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EDITORIAL Religião, ecologia e transformações culturais Joel Antonio Ferreira .................................................................... 7 ARTIGOS El Siglo de los Mártires: beatos controvertidos y santos en olvido Amílcar Carpio Pérez Iliana Moreno Téllez................................................................... 11 Festa em (Fé)Minino: diálogos entre cultura popular, religiosidade e gênero na povoação do bacalhau-GO Raquel Miranda Barbosa. ........................................................... 35 Religião e Mística: elementos constituintes das lutas camponesas no Brasil Carolina Teles Lemos ................................................................. 63 São Sebastião e o Milenarismo na Guerra do Contestado (1912-1916) Eduardo Rizzatti Salomão .......................................................... 83 S U M Á R I O

Caminhos v. 9, n. 1[1]

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Revista caminhos es una publicación del Programa de Pós- Graduacao Stricto Sensu em Ciencias da Religiao, perteneciente a la Universidade Católica de Goiás, Brasil. ISSN electrónico: 1983- 778X / ISSN impreso: 1678- 3034

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EDITORIAL

Religião, ecologia e transformações culturaisJoel Antonio Ferreira ....................................................................7

ARTIGOS

El Siglo de los Mártires: beatos controvertidos y santos en olvidoAmílcar Carpio Pérez Iliana Moreno Téllez ...................................................................11

Festa em (Fé)Minino: diálogos entre cultura popular, religiosidade e gênero na povoação do bacalhau-GO Raquel Miranda Barbosa. ...........................................................35

Religião e Mística: elementos constituintes das lutascamponesas no BrasilCarolina Teles Lemos .................................................................63

São Sebastião e o Milenarismo na Guerra do Contestado(1912-1916)Eduardo Rizzatti Salomão ..........................................................83

S U M Á R I O

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Vivências e Ressignificações de um Movimento MessiânicoContemporâneoDaniela Nunes .........................................................................105

O Mestre Juramidã: análise da constituição da figura históricado Sr. Raimundo Irineu SerraIsabela Oliveira ..........................................................................93

Da Nova Era à New Age Popular: as transformações nocampo religioso brasileiro Amurabi Pereira de Oliveira .....................................................113

Pós-Colonialismo e Religião: possibilidades metodológicas José Roberto Alves Loiola .........................................................133

RESENHAS ............................................................................171

ATIVIDADES DO NER - PUC GOIÁS..................................205

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HISTÓRIA CULTURAL

E RELIGIÃO

E D I T O R I A L

O presente é o tempo das misturas oudas incorporações, é o processo da própria

incorporação. Temperar, temporalizar, é misturar.(Gilles Deleuze)

O parâmetro colocado por Max Müller para o estudo científico das reli-giões, nos finais do século XIX, foi a Ciência da Linguagem. A noção de cultura estabelecida no século XX partiu do mesmo princípio, seja através da vertente estruturalista, seja com o impacto da antropolo-gia interpretativa. Foi com tal conceito amplo de cultura, capaz de envolver os vínculos sociais, as ações, a subjetividade e a constituição dos sentidos, que surgiu a Nova História Cultural no final da década de oitenta do século passado.

As contribuições dadas por essa vertente teórica, que rapidamente se expandiu e tornou-se hegemônica na historiografia mundial, apontam como essa visão dos processos históricos possibilita captar melhor a riqueza das duas correntes básicas, em conflito, dos estudos religiosos. Não se trata, exatamente, de tentar um ecletismo metodológico ou uma neu-tralização do confronto epistêmico, que geralmente enriquece. O que consideramos é a possibilidade de superar as abordagens naturalísticas, que pretendem “explicar” as expressões religiosas a partir de um fator externo, sem cair na “compreensão” fenomenológica, que valoriza a

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essência da religião isolando-a da configuração social. De maneira simples, enunciamos o principio norteador que serve de plataforma à perspectiva aberta: a constituição do sentido.

Podemos identificar na experiência religiosa um núcleo de possibilidades sig-nificativas, mesmo perante os grandes desafios da vida como a doença e a morte. A história cultural trouxe para o centro das investigações, de modo mais amplo, tal construção da significação, partindo da análise das representações sociais, dos modos de apropriação e das práticas surgidas de suas interações. Estas, por sua vez, as retro-alimenta e transforma, em um processo initerrupto.

Destarte, podemos compreender como a representação de uma divindade pode adequar-se às demandas de um grupo, mas não se reduz a estas, pois pode, simultaneamente, criar demandas. Isso porque a represen-tação religiosa possui uma lógica própria, interna, distinta de outros processos de significação abertos na conjuntura social. As interações e intercâmbios são intermitentes, mas trata-se de ver o religioso como um agente, dentre os demais, no trabalho de articulação da significância feito pelos sujeitos.

Por isso, muitos dos artigos aqui reunidos não valorizam a abordagem insti-tucional. Claro que ela é importante, e será tratada, contudo o núcleo da significação encontra-se nos sujeitos religiosos. Um exemplo pode ser visto no artigo que abre o dossiê, tratando do mundo devocional mexicano. Amílcar Carpio Pérez e Iliana Moreno Téllez demonstram os intercâmbios entre a política de canonização exercida pelo Vaticano nas últimas décadas e as guerras de fundo religioso ocorridas no México.

Outra perspectiva do mundo das devoções é dada por Raquel Miranda Barbosa. Ela aborda a historia de uma festvidade em um pequeno povoado do interior de Goiás. A “guardiã” da devoção a Nossa Senhora da Guia foi uma mulher e, na ótica da autora, as questões relativas ao gênero modalizaram, de algum modo, a festa.

Tratando ainda do tema do mundo camponês, há o artigo de Carolina Teles Lemos. A estudiosa observa as transformações recentes da mística que sustenta os movimentos de luta pela terra, como os agentes mantém seu engajamento após o declínio da Teologia da Libertação em sua forma clássica.

Bem diferente foi a mística daqueles que lutaram na Guerra do Con-testado e que acreditaram na proteção continua de São Sebastião. O artigo de Eduardo Rizzatti Salomão estuda como este conhecido

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mártir da tradição cristã tornou-se uma personagem daqueles conflitos, defendendo particularmente a população pobre.

O texto de Salomão pode ser lido em contraponto com a análise de Daniela Nunes acerca do movimento religioso liderado por mestre Yokaanam, que resultou na construção da Cidade Eclética, nas prosimidades de Brasília. O messianismo dos dois movimentos, apesar de aparecerem sob este mesmo conceito, possuem características bastante distintas.

O Santo Daime, abordado por Isabela Oliveira, também apresenta traços de messianismo, pois Raimundo Irineu Serra foi considerado uma manifestação contemporânea de Cristo ou do Espírito Santo. O fun-dador deste grupo, portanto, vem recebendo através do trabalho da memória uma gama de significações incrustadas nas tradições religiosas latino-americanas.

Esse rico imaginário é estudado por Amurabi Pereira de Oliveira a partir do foco no conjunto de movimentos da Nova Era. A própria denomina-ção precisa ser revista, defende o autor, pois a “novidade” é recebida de acordo com tradições pré-existentes. Criticando a caracterização estabelecida na literatura de ser um movimento religioso das classes médias, ele sugere o enraizamento popular de uma série de segmentos.

Encerrando o dossiê, um artigo de vertente mais metodológica, tratando do impacto das teorias pós-coloniais sobre os estudos religiosos. José Roberto Alves Loiola demonstra que este referencial abre um campo de possibilidades criativas e críticas para as pesquisas acerca da religiosidade. Se o mundo contemporâneo passa por uma guinada epistemológica, como defende o autor, a História Cultural tem sido fundamental nesse processo.

Temos, ao final, duas resenhas. A primeira trata de uma abordagem recente do Concílio Vaticano II feita pelo investigador inglês Ian Linden. A segunda comenta o livro do escritor Altamir Celio de Andrade, que escreve nas fronteiras da religiosidade, da história e da sabedoria.

Que a leitura deste número da Revista Caminhos possa, semelhantemente, questionar nossos tradicionais limites academicistas e renovar nossas percepções da história. Dar sabor a nosso tempo, temperar e tempo-ralizar, como sugere Deleuze, não seria uma função das teorias?

Eduardo Gusmão de QuadrosDoutor em História pela UnB. Professor na Universidade

Estadual de Goiás e na PUC Goiás.

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AMÍLCAR CARPIO PÉREZ, ILIANA MORENO TÉLLEZ**

Resumo: nas últimas décadas, a Igreja Católica incremetou o numero de be-atificações e canonizações. Em meio a estes processos, chama a atenção a imagem do mártir como um modelo ideal católico, que é enfatizado no discurso emanado pelo Vaticano. Durante o século XX, o México e a Espanha viveram “perseguições religiosas” que provocaram o martírio de alguns fiéis católicos, entretanto, apesar da aparente semelhança, estes processos têm diferenças de fundo que ajudam a compreender parte da orientação seguida pela Igreja nos processos de beatificação e canonização durante os últimos pontificados.

Palavras-chave: Mártir. Beatificação. Canonização.

EL SIGLO DE LOS MÁRTIRES:

BEATOS CONTROVERTIDOS

Y SANTOS EN OLVIDO*

D e la A a la Z, desde la beata Albertina Belkenbrock1 a San Zygmut Gorazdowski,2 podríamos seguir el santoral católico y encontrar ejemplos de consagrados cuya devoción se restringe en el mejor de los casos al ámbito local, pero en general son desconocidos por la feligresía católica. En las últimas décadas la lista de nuevos santos y beatos aumentó considerablemente, siendo durante el pontificado de Juan Pablo II (1978 – 2005†) el periodo con el mayor número de causas que concluyeron en los altares. El Vaticano ha seguido de manera especial las causas de aquellos que murieron en defensa

A R T I G O S

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de la Iglesia, volviéndose así, en mártires del catolicismo. Estos mártires han sido numerosos, no se concentran geográficamente en una misma región y varios de estos procesos fueron grupales, como ejemplo tenemos los casos de los 101 mártires coreanos, los 17 filipinos, los 117 vietnamitas, los 120 chinos, los 188 japonen-ses, los 25 mexicanos del año 2000 y los 13 del 2005 o los 498 españoles del 2007.3

En México, desde 1914 se inicia un periodo de roces entre la Iglesia cató-lica y diversos gobiernos civiles, teniendo su punto crítico durante la Guerra conocida como “Cristera” (1926-1929). En este lapso de tiempo, ocurrieron muertes de católicos (religiosos y laicos) que fue-ron considerados mártires, al perder la vida en defensa de la Iglesia. Asimismo, en España inicia un periodo de “persecución religiosa” desde 1934, teniendo su punto crítico durante la Guerra Civil (1936-1939), donde murieron católicos involucrados en el conflicto de uno y otro bando. En ambos casos, la Iglesia resaltó el martirio de aquellos que murieron en defensa del catolicismo y los colocó como modelo a seguir por su feligresía.

En el año 2000, veinticinco mexicanos que murieron durante los conf lic-tos iniciados en 1914, alcanzaron los altares con su canonización y en 2005, 13 más fueron beatificados. En 2007 se beatificaron a 498 mártires, que habían apoyado al bando nacional durante la Guerra Civil Española. Aunque estos casos tienen en común la “persecución religiosa” y el martirio reconocido por la Iglesia, hay grandes diferencias a destacar. En el caso mexicano los canonizados en 2000, fueron populares por unos meses, pero actualmente la mayoría se encuentran en el olvido, son santos desconocidos fuera del ámbito local; en un segundo proceso se beatificó a Anacleto González Flores, este proceso fue cuestionado debido a su parti-cipación considerada “violenta” durante la guerra cristera. En el caso español, hablamos de un proceso controvertido debido a que en su mayoría fueron católicos que apoyaron al franquismo, y con la ley de memoria histórica, no gozan de gran aceptación en la península ibérica.

Al revisar la historia de estos nuevos santos y beatos del siglo XX, surgen las siguientes preguntas ¿Cuál fue la política seguida por la Iglesia cató-lica sobre estas causas? ¿Cuáles son las similitudes y diferencias en los procesos de canonización y beatificación de los mártires de México

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y España? ¿Existe alguna tendencia seguida por la Iglesia católica en este tipo de procesos? Responder estas interrogantes es el propósito de esta pesquisa. Los siguientes párrafos se dividen en tres apartados: en el primero abordaremos la orientación seguida por el Vaticano en los procesos de beatificación y canonización; posteriormente abor-daremos el caso de los mártires mexicanos, así como las diferentes interpretaciones que se han suscitado al respecto; por último, nos aproximaremos al contexto y las características de los mártires de la Guerra Civil Española, las interpretaciones y controversias que se están suscitando en los diversos medios.

SECULARIZACIÓN Y PLURALISMO RELIGIOSO

En las últimas décadas del siglo anterior, cuando se esperaba que los avances tecnológicos y científicos influyeran en los hábitos y creencias de un mundo más comunicado, provocando que el fanatismo y la religión se limitaran en la práctica al ámbito privado, Zaid (1989, p. 9) escribía: “…en el ocaso del segundo milenio (más que los dioses), ya no está tan claro quién va enterrar a quién: si la cultura moderna al cristianismo o el cristianismo a la cultura moderna.” Hoy es evidente que el esperado declive de lo religioso en el mundo contemporáneo no ha sucedido, aunque se ha transformado (BASTIAN, 2004)

A mediados del siglo pasado, era lugar común para quienes trabajaban temas ligados a los procesos de secularización y modernidad, pronosticar la muerte o en el mejor de los casos, la privatización de lo religioso. Sin duda, estamos lejos de presenciar el ocaso de la religión. Pero el proceso de secularización4 que tuvo un mayor avance durante la segunda mitad del siglo pasado, trajo aparejado la globalización del pluralismo religioso, que modificó la compo-sición religiosa mundial.

La globalización del pluralismo religioso, tuvo implicaciones negativas sobre todo para las religiones hegemónicas. En los casos de Sudamérica, México y España el catolicismo fue la religión más afectada. En los siguientes cuadros podremos apreciar como fue la evolución religiosa en estas regiones.

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País 1997 2000 2004

Brasil 17.94 13.52 20.03

Rep. Dominicana 16.52 10.58 11.11

Chile 16.33 22.75 25.04

Uruguay 11.27 29.27 26.60

Colombia 11.14 6.85 18.18

Perú 10.06 4.21 11.72

Argentina 8.80 9.15 10.82

Venezuela 7.54 5.64 13.97

Tabla 1: Percentaje de no católicos de América Latina

Fuente: Gumusio (2005, p. 37).

Tabla 2: Distribución porcentual de la adscripción religiosa en México (1950-2000)

Año CatólicaProtestante o

EvangélicaJudaica Otra Ninguna

1950 97.84 1.28 0.07 0.43 0.00

1960 97.09 1.67 0.29 0.40 0.56

1970 96.17 1.82 0.11 0.32 1.60

1980 92.63 3.29 0.09 0.86 3.12

1990 90.14 5.00 0.08 1.45 3.34

2000 87.27 6.61 0.13 2.13 3.27

Fuente: Torre y Zuñiga (2007, p. 139).

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Fuente: Pérez y Poveda (2007, p. 65-82).

Año 1965 1975 1982 2002

Católico 98 88 89 79.7

No creyente 2 2 9 11.5

Otra religión 0 0.2 0.5 1.4

No Contestó 0 4 2 7.3

Tabla 3: Evolución religiosa de España (1965-2002)

Como se puede apreciar en los cuadros anteriores, la disminución del cato-licismo fue constante, aunque no existe un crecimiento avasallador de otra creencia religiosa, por lo tanto, el catolicismo sigue siendo mayoritario en estas regiones.

A pesar de la secularización, la modernidad y el pluralismo religioso, la Iglesia católica sigue teniendo una gran presencia en la sociedad, pero ¿cómo reaccionó la Iglesia católica ante este contexto? Frente al avance de un mundo cada vez más secularizado y plural, la Iglesia se vio orillada a tomar una serie de decisiones, entre las que destacan el adaptarse a la modernidad y “reconquistar los espacios secularizados”, a este proceso se le conoce como “contrasecularización” (DE LA TORRE, 2006, p. 28-31).

Una reacción dentro de la Iglesia católica, fue disminuir los tiempos en los procesos de canonización y beatificación, provocando la aparición de nuevos símbolos religiosos; además se resaltó ciertas características y virtudes orientadas a un ideal de catolicismo vinculado al martirio. La creación de nuevos símbolos religiosos es una respuesta de la Igle-sia católica a la producción simbólica de otras creencias, un tipo de mercancía religiosa para competir en un mundo donde la pluralidad de credos está en aumento.

LA IGLESIA CATÓLICA EN EL SIGLO DE LOS MÁRTIRES Ante el embate de la secularización, la Iglesia católica reorientó y amplió la

representación de la santidad. En 1964 a unos años del Concilio Vati-cano II, Giovanni Battista Montina, el Papa Pablo VI (1963-1978†), a través de la Constitución Dogmatica Lumen Gentium, dio un cambio fundamental en la apreciación sobre la santidad. En su artículo 39 se

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menciona que, “… todos en la Iglesia, ya pertenezcan a la jerarquía, ya pertenezcan a la grey, son llamados a la santidad,… Esta santidad… aparece de modo particular en la práctica de los que comúnmente llamamos consejos evangélicos.” Y en su artículo 41 se reafirma que:

…todos los fieles cristianos, en cualquier condición de vida, de oficio o de circunstancias, … se podrán santificar de día en día, con tal de recibirlo todo con fe de la mano del Padre Celestial, con tal de cooperar con la voluntad divina, manifestando a todos, incluso en el servicio temporal, la caridad con que Dios amó al mundo.5

A partir de la Constitución Lumen Gentium, se hizo patente la apertura y la posibilidad de alcanzar la santidad a todos los católicos sin importar jerarquías eclesiales, es decir, se puede merecer la santidad con la ayuda de Dios y cumpliendo los preceptos establecidos por la Iglesia, volviéndose alcanzable para laicos y religiosos.

Desde 1978 y siguiendo la línea abierta por su antecesor, el Papa Juan Pablo II, dio gran importancia a los procesos de beatificación y canoniza-ción. En 52 celebraciones realizó 498 canonizaciones y en otras 147 celebraciones realizó 1341 beatificaciones, siendo el Papa con el mayor número de santos y beatos llevados a los altares. En el siguiente cua-dro podemos apreciar los datos relacionados con las beatificaciones y canonizaciones efectuados por diversos Papas durante el siglo XX hasta el presente pontificado:

Tabla 4: Canonizaciones y beatificaciones realizadas en el siglo XXPapa Pontificado Beatificaciones CanonizacionesPío X 1903-1914 35 4Benedicto XV 1914-1922 17 2Pío XI 1922-1939 301 33Pío XII 1939-1958 118 33Juan XXIII 1958-1963 3 10Pablo VI 1963-1978 23 83Juan Pablo II 1978-2005 1341 498Benedicto XVI 2005- 2010 779 28

Fuente: <http://www.vatican.va/news_services/liturgy/saints/index_saints-blesseds_sp.html>.

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En los procesos que culminaron durante el pontificado de Juan Pablo II, hay ciertas particularidades que llaman la atención, sobre todo la afirmación del martirio como testimonio de fe y modelo para alcanzar la santidad. A este respecto en la Carta Pastoral Tertio Millennio Adveniente (1994), en su fracción 37, Juan Pablo II manifestó lo siguiente:

La Iglesia del primer milenio nació de la sangre de los mártires... Al tér-mino del segundo milenio, la Iglesia ha vuelto de nuevo a ser Iglesia de mártires. Las persecuciones de creyentes —sacerdotes, religiosos y laicos— han supuesto una gran siembra de mártires en varias partes del mundo. El testimonio ofrecido a Cristo hasta el derramamiento de la sangre se ha hecho patrimonio común de católicos, ortodoxos, anglicanos y protestan-tes… Es un testimonio que no hay que olvidar.

Este texto continúa con un exhorto y una invitación a los católicos, para no perder la memoria y el ejemplo de los mártires recientes, haciendo hincapié en la vitalidad que infunden las canonizaciones y beatifica-ciones en las iglesias locales:

En nuestro siglo han vuelto los mártires, con frecuencia desconocidos, casi « militi ignoti » de la gran causa de Dios. En la medida de lo posible no deben perderse en la Iglesia sus testimonios… es preciso que las Iglesias locales hagan todo lo posible por no perder el recuerdo de quienes han sufrido el martirio, recogiendo para ello la documentación necesaria… En estos años se han multiplicado las canonizaciones y beatificaciones. Ellas manifiestan la vitalidad de las Iglesias locales, mucho más numerosas hoy que en los primeros siglos y en el primer milenio… Será tarea de la Sede Apostólica, con vista al Año 2000, actualizar los martirologios de la Iglesia universal, prestando gran atención a la santidad de quienes también en nuestro tiempo han vivido plenamente en la verdad de Cristo.6

La afirmación del martirio durante el pontificado de Juan Pablo II, se plas-mó en varios documentos, en la Homilía de junio de 1983, titulada Solemne Celebración en Niepokalanóv, “Ciudad de la Inmaculada”, en la Carta Encíclica Redemptoris Missio de 1990, en la Carta Encíclica Veritatis Splendor de 1993, en la Homilía dirigida a los jóvenes en la XV Jornada Mundial de la Juventud en agosto del 2000, en el Discurso ofrecido a los participantes de la beatificación de los mártires españoles

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en 2001, en la Conmemoración Ecuménica de los Testigos de la Fe del siglo XX, en mayo de 2000, en la Bula Incarnationis Mysterium durante el jubileo del año 2000. En este último documento, en su apartado 13, se desprenden las siguientes líneas:

Un signo perenne, pero hoy particularmente significativo, de la verdad del amor cristiano es la memoria de los mártires. Que no se olvide su testimonio. Ellos son los que han anunciado el Evangelio dando su vida por amor. El mártir, sobre todo en nuestros días, es signo de ese amor más grande que compendia cualquier otro valor. Su existencia refleja la suprema palabra pronunciada por Jesús en la cruz: « Padre, perdónales, porque no saben lo que hacen » (Lc 23, 34). El creyente que haya tomado seriamente en consideración la vocación cristiana, en la cual el martirio es una posibilidad anunciada ya por la Revelación, no puede excluir esta perspectiva en su propio horizonte existencial. Los dos mil años transcurridos desde el nacimiento de Cristo se caracterizan por el constante testimonio de los mártires.7

Juan Pablo II vio en el martirio un modelo de fe para el catolicismo. El número de causas que apoyó es considerable, y casi la mitad de las beatificaciones realizadas en su pontificado corresponden a católicos muertos a través del martirio. Durante su pontificado es notorio el interés por los pro-cesos de católicos acaecidos durante diversas “persecuciones religiosas”, que se desarrollaron en diferentes años y regiones del mundo. Para él, este tipo de procesos dejan constancia de una vocación misionera y en la memoria de la humanidad la prueba de la “persecución” en contra de la Iglesia católica, además, a través del martirio se crea un vínculo entre el catolicismo actual y el de los primeros siglos.

En los procesos seguidos durante el pontificado de Juan Pablo II, se dis-tingue la línea iniciada en Lumen Gentium, la apertura universal de la santidad en el catolicismo y su innegable origen contemporáneo. Además, al reforzar el reconocimiento del martirio como vía de san-tidad, las canonizaciones y beatificaciones abarcan países tan diversos como México, España, China, Filipinas, Corea, Vietnam, etcétera (PELLISTRANDI, 2004, p. 115-22).

Cabe mencionar que no obstante que las beatificaciones de los 498 mártires de la persecución religiosa española fueron en el año 2007, durante el

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pontificado de Benedicto XVI, es indudable que la mayor parte de este proceso se dio bajo el impulso de su antecesor. Así, en el pontificado actual de Benedicto XVI culminaron varios procesos que iniciaron con su antecesor.

EL MARTIRIO EN LA SANTIDAD MEXICANA

El sacerdote Cristóbal Magallanes encabezó la lista de veinticinco mártires que en el año 2000 fueron canonizados. Debido a ello, nos centraremos en este sacerdote para revisar las particularidades de este proceso y sus diferencias con otro grupo de mártires mexicanos beatificados en 2004.

En 1914 inicia en México un periodo de persecución religiosa que tiene su clímax con el conflicto de 1926-1929 y que se prolongó en algunas regiones hasta finales de los años treinta. En mayo de 1927 el párroco de Totatiche, Jalisco, Cristóbal Magallanes Jara fue detenido y fusilado por la tropa federal. Su muerte ocurrió cuando el conflicto llamado cristero, entre el gobierno federal y católicos, llegó a los enfrenta-mientos armados en la región norte de Jalisco; desde hacía algunos meses el ejército recorría la zona mediante el argumento de frenar la desobediencia del clero, dando muestras de una vocación anticlerical, promovida por el presidente de la república Plutarco Elías Calles y los gobernadores.

Los problemas crecieron cuando los obispos decidieron suspender el culto público y cerrar los templos en todo el país el 31 de julio de 1926, para protestar por una nueva ley que establecía la supeditación del clero al poder civil e introducía cambios en materia de culto. Si bien el conflicto se había iniciado entre las cúpulas eclesiástica y del go-bierno federal, en la medida que la problemática se agudizó, los laicos católicos se vieron involucrados y entre sus motivos además de los religiosos, habían algunos que esperaban resolver problemas viejos y agravios latentes de los años de la postrevolución. Ante la medida, el gobierno de Calles exigió a los gobernadores aplicar la ley y castigar a los infractores, esta situación polarizó las relaciones entre la Iglesia y el Estado y dio pie a la persecución de laicos, sacerdotes y religiosos.

En este contexto de persecución religiosa, algunos de los católicos muertos fueron considerados por la Iglesia mártires y promovieron sus causas de canonización. En 1934 monseñor Francisco Orozco y Jiménez inició el proceso para llevarlos a los altares, en 1992 con el Papa Juan

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Pablo II fueron beatificados y en el jubileo del año 2000 canonizados.La muerte de Cristóbal Magallanes ocurrió en 1927 cuando fue aprendido

por el ejército cerca del municipio de Totatiche, Jalisco. Después de su detención fue trasladado a la casa municipal y en su interior le indicaron que se colocara junto a un resto de pared de adobe, Magallanes pidió permiso de hablar para decir: “soy inocente, perdono de corazón a los autores de mi muerte, pido a Dios que mi sangre sirva para la paz entre los mexicanos desunidos.” (SANDOVAL, 2000, pp. 168-178) Después del fusilamiento se le dio el tiro de gracia, el cadáver fue sacado hasta el zaguán donde fue expuesto y posteriormente enterrado.8

La muerte de este sacerdote fue similar a la muerte de los otros 25 mártires que integran este proceso. Pero ¿cómo se desarrolló esta causa?

Antes del año 2000 no existían más de 10 santos en América Latina, por lo tanto, estas canonizaciones fueron las más numerosas en la historia de la Iglesia Latinoamericana. Ninguno de estos mártires empuñó las armas o incitó a la lucha armada y murieron al grito de ¡Viva Cristo Rey y Santa María de Guadalupe!. Asimismo, hay que mencionar que no es un grupo sólo de mártires “cristeros” como se ha manejado en algunos medios, son mártires de la persecución religiosa y sus muertes abarcan desde 1915 a 1937. La Iglesia católica señaló que ellos no se vincularon con el levantamiento armado y que:

…veintidós fueron sacerdotes que imitando al buen pastor…, no quisieron abandonar sus comunidades cristianas, y desafiando el peligro, desempeña-ron con fidelidad el oficio que tenían encomendado por sus superiores… se abstuvieron de toda acción política y no intervinieron en la lucha armada que en contra del Gobierno promovió el grupo llamado Cristero. Muchos de estos sacerdotes dijeron en repetidas ocasiones que estaban preparados para el martirio… Sufrieron pacientemente las amenazas, los desprecios, los tormentos corporales y los sufrimientos del alma… Perdonaron a sus perseguidores, y... audazmente sufrieron la muerte por Cristo y por la Iglesia en el momento de su sacrificio…9

El milagro atribuido a estos mártires, fue un milagro colectivo concedido a una mujer de la ciudad de Guadalajara, México, a quien se le había detec-tado una enfermedad conocida como mastopatía-fibroquistica-bilateral (quistes en los senos). Después de una operación para extirparle los quistes, el diagnóstico dado a esta mujer fue, que mientras su cuerpo

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siguiera hormonalmente activo su enfermedad era incurable, además de la aparición de quistes más pequeños. En el mes de enero de 1993, la salud de esta mujer se agravó, sufría dolores de cabeza, a la vez que sentía molestias con la luz natural y su oído se volvió muy sensible a los ruidos. El 30 de enero de este mismo año el Pbro. José Gálvez Amezcua fue de visita a la casa de la mujer enferma con un obsequio:

…una cruz que contenía reliquias de los Beatos Mártires Mexicanos; …su mamá …le puso la cruz sobre el pecho y luego fue a traer un florero; al regresar a la habitación … le dijo que … quería levantarse … la enferma se levantó y fue a la cocina donde se encontraban sus hermanas [...] Ellas, inmediatamente se dieron cuenta del gran cambio en la salud de su hermana, pero no se atrevían a decir nada, porque creían que era la mejoría que suelen tener todos los enfermos antes de morir… Días después, cuando… se estaba bañando, fue cuando se dio cuenta que todos los tumores habían desaparecido…10

Los estudios médicos posteriores corroboraron que esos quistes habían desapa-recido, y no tenían alguna explicación para ese hecho. El comunicado que dio la Iglesia sobre este acontecimiento fue:

Me es grato comunicarles que la curación milagrosa obtenida por la intercesión de nuestros Mártires Mexicanos y reconocida en el proceso ca-nónico por la Congregación de las Causas de los Santos, ya fue aprobada por los médicos peritos y por los Censores teólogos como hecho milagroso; próximamente será sometida al juicio de los cardenales y obispos, y se espera confiadamente que su dictamen sea favorable y su canonización se realice pronto...11

Hay que tomar en cuenta que la beatificación de este grupo de mártires se había realizado en 1992 y por lo tanto era necesaria la comprobación de un milagro para que la Iglesia pudiera continuar con la causa de canonización.

En estos mártires la jerarquía católica ha recalcado su obediencia en todo momento a Dios y a su Iglesia. Estos rasgos son destacados ante los feligreses como un modelo a seguir para los demás católicos. El día que fueron canonizados estos mártires, el Papa Juan Pablo II recomendó que “… el luminoso ejemplo de Cristóbal Magallanes y compañeros

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mártires os ayude a un renovado empeño de fidelidad a Dios” (GON-ZÁLEZ, 2001, p. 279).

Algunos académicos interpretaron estas canonizaciones como un deslinda-miento de la Iglesia y sobre todo de la Iglesia conservadora de Jalisco, ante el conflicto armado “cristero”. El grupo de mártires encabezado por Cristóbal Magallanes, no tomó parte activa ni pasiva durante este conflicto, nunca apoyó al movimiento armado, por lo tanto forman un grupo pacifista-no cristero. La Iglesia mexicana y sobre todo la de Jalisco apoyó estas causas tratando de destacar la actitud pasiva de estos mártires y asumir así esa actitud pacifista como la postura tomada por toda la Iglesia, deslindándose con ello de cualquier participación en el conflicto (GONZÁLEZ, 2001, p. 279). Pero esta interpretación suscita una dicotomía en la elección de causas de canonización por parte de la Iglesia. En noviembre de 2005 Benedicto XVI (aunque desde el 22 de junio de 2004, Juan Pablo II ya las había aprobado), beatificó a un grupo de 13 mártires encabezados por el laico Anacleto González Flores. La controversia de este grupo, es que está conformado en su mayoría por laicos que murieron durante el periodo cristero y además fueron martirizados, pero al contrario del grupo encabezado por Cristóbal Magallanes, estos mártires representan a un grupo cristero-belicoso, porque optaron al final por la vía armada. Por ejemplo, uno de estos mártires, Miguel Gómez Loza, participó en el descarrilamiento del tren de la Barca, Jalisco el 19 de abril de 1927, en donde fueron asesinados por parte de los cristeros, tanto miembros del ejército federal como pasajeros (incluidos niños y mujeres), quedando demostrado que en este conflicto excesos hubo en ambos lados.

El nombre de Anacleto González, suscitó desde su postulación algunas di-ficultades para su beatificación, que inició en la década de 1980 y se concretó hasta el año 2005. El hecho de que estos mártires aceptaron la vía armada durante el conflicto cristero causó algunas controversias, Anacleto González estuvo de acuerdo al final de su vida con el levan-tamiento y lo alentó abiertamente. (COBIAN, 2005)

Con la canonización del grupo de Magallanes, la Iglesia trató de darle un nuevo enfoque a su participación dentro del conflicto, esto al apoyar los procesos de pacifistas, pero con el grupo de Anacleto González, ésta postura ya no es tan clara. Con la beatificación de este nuevo grupo, destaca el hecho que la Iglesia mexicana hasta ahora sólo ha postulado a sacerdotes pacifistas y las postulaciones de belicosos se han concentrado

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en los laicos. La interpretación que podemos sacar de estos hechos es que, la Iglesia le concede al conflicto armado legitimidad, le rinde hasta cierto punto un homenaje a través de los mártires encabezados por González Flores, pero con este homenaje deja la responsabilidad de este conflicto casi en su totalidad en los laicos, resaltando de esta forma que los portadores de la paz y de reconciliación durante el conflicto fueron los sacerdotes y con ellos la Iglesia. Pero los mártires pacifistas no podrían haber existido sin la participación de los mártires belicosos.

En lo referente a la devoción, sólo dos de los veinticinco canonizados cuenta con un reconocimiento fuera del ámbito local. La devoción a San Cristóbal Magallanes y san Toribio Romo se ha fortalecido fuera de su región. Debido al alto índice migratorio que se vive en varías regiones del país, a estos santos (como muchas otras devociones), se les piden favores relacionados con la migración, y una vez en Estados Unidos muchos de sus feligreses viajan con alguna imagen o reliquia, de esta forma los “santos también migran”, difundiendo su devoción en ambos lados de la frontera. En el caso de los demás santos que conforman este grupo, tuvieron la suerte contraria, en general son santos desconocidos por su feligresía, no trascienden el ámbito local, y su devoción no augura un arraigo fuerte en su región de origen, así es posible que llegue el pronto olvido antes de su reconocimiento nacional, estos santos no gozan de una devoción popular amplia.

MÁRTIRES ESPAÑOLES: HASTA EN EL CIELO LA REPÚBLICA PIERDE

En las siguientes líneas nos centraremos sólo en el proceso de beatificación de 498 españoles ocurrida en 2007, debido a las controversias que susci-tó, aunque existen otros procesos como se mencionará más adelante.

Los católicos beatificados en el año 2007, fueron muertos durante el con-flicto español que se desarrolló entre 1934 a 1939, pero ¿cuál fue el contexto en el que surgen estos mártires? Para entender este proceso, no hay que perder de vista la relación y las fricciones existentes entre la Iglesia y el gobierno de la Segunda República española.

La Segunda República española fue proclamada en 1931, dando fin al gobierno monárquico del rey Alfonso XIII. La República desde un principio se enfrentó a varias problemáticas, una de ellas fue la relación con la Iglesia. (FAGEN, 1975, p.11.) La Iglesia católica quería mantener

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los privilegios ostentados durante siglos pero, por el contrario, los cambios propuestos por el nuevo gobierno iban en otra dirección. Con la proclamación de una nueva Constitución en 1931, la relación Iglesia – Estado entró en un punto ríspido. En este documento se integraron algunas leyes que afectaban los intereses eclesiales, por ejemplo, el artículo 26 decretaba que: “…el presupuesto para el sostenimiento del clero secular debería ser eliminado al cabo de dos años. Las numerosas órdenes, que en 1931 contaban con unos 45.000 frailes y monjas, tenían que registrar sus bienes, así como declarar las cifras de sus ingresos e inversiones.” Además, se buscó la creación de un sistema de escuelas laicas, el establecimiento del divorcio, la secularización de cementerios y hospitales y la reducción de órdenes religiosas (JACKSON, 1985, p. 65).

Durante estos años se intentó llegar a un Concordato que diera solución a los problemas existentes entre la República y la Iglesia católica, pero no se concretó un acuerdo, llegando a un punto de inflexión con el estallido de la Guerra Civil Española. Desde el comienzo de la guerra en 1936, España quedó dividida en dos zonas: el frente popular, donde se apoyó a la República y la zona nacional controlada por el general Francisco Franco.

En la zona del frente popular los católicos vivieron la persecución religiosa, debido al apoyo que la Iglesia brindó al general Franco. Los eclesiás-ticos hicieron patente su postura en 1937, con la “Carta colectiva de todos los obispos españoles”, que fue publicada y firmada por prela-dos, arzobispos, obispos y vicarios de la Iglesia. En este documento se mencionó lo siguiente:

Afirmamos que el levantamiento cívico-militar ha tenido en el fondo de la conciencia popular de un doble arraigo: el del sentido patriótico, que ha visto en él la única manera de levantar a España y evitar su ruina definitiva; y el sentido religioso, que lo consideró como la fuerza que debía reducir a la impotencia a los enemigos de Dios, y como la garantía de la continuidad de su fe y de la práctica de su religión. … Hoy, por hoy, no hay en España más esperanza para reconquistar la justicia y la paz y los bienes que de ellas deriva, que el triunfo del movimiento nacional. 12

La persecución de católicos en zonas dominadas por los republicanos se dejó ver en Madrid y Barcelona, por ejemplo, en la iglesia de los carmelitas, “… de la calle de Lauria había sido uno de los baluartes de los insur-

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gentes (nacionalistas)... Cuando los soldados se rindieron y salieron, la multitud prendió fuego al edificio para desalojar a los frailes. Una ametralladora fue situada frente a la puerta principal de la iglesia, y conforme los aterrorizados frailes iban saliendo, eran ametrallados” (JACKSON, 1985, p. 259-60). Estas acciones se repitieron en varios puntos durante el desarrollo del conflicto (1936 – 1939), lo que posi-bilitó, que estas muertes fueran tomadas años más tarde por la Iglesia, como ejemplos de martirio.

Pero en las zonas dominadas por el bando nacional, hubo católicos que no apoyaron la causa del general Franco, eran simpatizantes de la Re-pública. Un caso muy conocido pero no único, es el de los 16 curas vascos que fueron fusilados en 1936:

El número de sacerdotes fusilados, las fechas y lugares de las ejecuciones y la coyuntura política y militar en que se produjeron confirman que estas actuaciones del bando franquista no constituyeron incidentes aislados. Fueron iniciativas con un determinado sentido, reprimir a quienes de-fendían la legitimidad republicana, sin que para esta práctica del terror fuese impedimento que el encausado fuese religioso. No puede descartarse que tal condición constituyera causa o agravante, en un momento en que, por el apoyo decidido de la Iglesia a la sublevación, el bando franquista desplegaría su inquina contra los curas que se oponían a la rebelión.13

Para el bando nacional los religiosos simpatizantes de la República eran enemigos y se les trató como tal. Por su parte, la Iglesia no reco-noció la muerte de estos católicos como ejemplos de martirio, lo que provocó una fuerte controversia. Así, en la beatificación de los católicos españoles del 2007, estuvo integrada sólo por simpatizantes del bando nacional.

PROCESO DE BEATIFICACIÓN

La integración final de este proceso, se dio durante una reunión celebrada en Roma en 2002, donde estuvieron presentes los postuladores responsables, la directora de la Oficina para las causas de los Santos de la Conferencia Episcopal Española, así como los dirigentes de la Congregación de las Causas de los santos de Roma. Después de esta reunión, fue notorio

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un cambio en la manera en que se presentó la muerte de estos católi-cos. Se dio un giro en los motivos de su muerte, es decir, ya no eran católicos asesinados por cuestiones políticas, sino que su muerte había sido exclusivamente por razones religiosas. De esta forma se legitimaba su muerte en defensa de su fe, lo que permitía considerarlos mártires del catolicismo. Los católicos que participaron y murieron apoyando el bando republicado fueron excluidos de esta posibilidad.

El proceso de 2007, no ha sido el único en el que se llevan a los altares a participantes muertos durante este conflicto. Por ejemplo, el 21 de noviembre de 1999 el Papa Juan Pablo II canonizó a diez religiosos fusilados durante la Revolución de Asturias de 1934, nueve de ellos eran españoles y uno era argentino. Otra ceremonia celebrada, fue la del sacerdote diocesano Pedro Poveda Castroverde muerto en 1936, beatificado en Roma en 1993 y canonizado en 2003 por el Papa Juan Pablo II en su visita a España.14 En total se han beatificado cerca de 977 religiosos españoles y canonizado once.

Pero la beatificación de los 498 religiosos, celebrada en la Plaza de San Pedro por el Papa Benedicto XVI, el 28 de octubre del año 2007, ha sido la más controvertida. En total eran 498 católicos, entre mujeres y hombres, que pertenecieron a distintas diócesis y congregaciones religiosas. Cabe señalar que la mayoría eran españoles, pero entre ellos se encontraban dos mexicanos, dos franceses y un cubano, que fueron considerados por la Iglesia católica como “mártires del siglo XX”.

Gran parte de la controversia que gira en torno a este proceso se debe al contexto en que se dieron las beatificaciones. Desde el 2004 España

Por rango Eclesiástico Por Diócesis

Obispos: 2 Madrid: 172 Albacete: 13 Burgos: 1Sacerdotes: 24 Barcelona: 146 Ciudad Real: 11Religiosos: 462 Toledo: 55 Mérida-Badajoz: 7Diáconos: 1 Sevilla: 21 Cartagena: 6Subdiáconos: 1 Oviedo: 20 Jaén: 6Seminaristas: 1 Cuenca: 17 Málaga: 6Laicos: 1 Santander: 14 Gerona: 3

Fuente: Fleta (2007, p. 33).

Cuadro 1: Mártires españoles beatificados en 2007

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es gobernada por el Presidente José Luis Rodríguez Zapatero, el cual pertenece al PSOE (Partido Socialista Obrero Español), durante su gobierno la relación Iglesia-Estado no ha sido del todo cordial y se ha fragmentado, sobre todo a partir de la propuesta de la Ley de memoria histórica. Esta ley fue aprobada el 31 de octubre del 2007, tres días después de la beatificación de los 498 religiosos perseguidos durante la República y la Guerra Civil. Dicha ley tiene como objetivo:

…reconocer y ampliar derechos a favor de quienes padecieron persecuci-ón o violencia, por razones políticas, ideológicas, o de creencia religiosa, durante la Guerra Civil y la Dictadura, promover su reparación moral y la recuperación de su memoria personal y familiar, y adoptar medidas complementarias destinadas a suprimir elementos de división entre los ciudadanos, todo ello con el fin de fomentar la cohesión y solidaridad entre las diversas generaciones de españoles en torno a los principios, valores y libertades constitucionales. 15

Esta ley reconoció la participación de aquellos que defendieron la existencia de la República durante la guerra y de facto sancionó al bando con-trario y a sus aliados. Los enemigos de la democracia en esta lucha se personalizaron en la figura del general Francisco Franco y en uno de sus aliados, la Iglesia católica. La reacción de la Iglesia ante esta ley fue negativa, porque consideraba que sólo reabría viejas heridas entre los españoles. Algunas voces desde el catolicismo expresaron su descontento por el nulo reconocimiento de sus caídos, ya que en esta guerra varios católicos vivieron la persecución, la tortura y la muerte a manos de integrantes del bando republicano.

Este proceso reabrió un viejo conflicto. Por un lado, se logró el reconocimiento de los “defensores de la democracia” por parte del actual gobierno español y por otro, la Iglesia reconoció sólo como mártires a los católicos que participaron y murieron en el bando nacional. A raíz de esto, estas beatificaciones han sido cuestionadas, por considerarlas una forma de continuar una pugna iniciada hace varias décadas. Hay que tomar en cuenta, que la marca de la Guerra Civil Española y la posterior dictadura, han sido difíciles de olvidar.

Esta controversia continua, por ejemplo en 2007 se presentó una propuesta para crear en Valencia, el Templo de los mártires de la Guerra Civil, proyecto que tiene el objetivo según miembros de la Iglesia, de

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…honrar la memoria de los beatos valencianos muertos en la Guerra Civil ‘por el odio a la fe’ y de todos aquellos que murieron en la misma persecu-ción religiosa y fueron beatificados con anterioridad”. Para algunos esta propuesta fue considerada como una actitud propia de la posguerra y sólo abonaba más elementos a la discordia. El coordinador del Grupo para la Recuperación de la Memoria Histórica, Matías Alonso, manifestó que, el “controvertido templo puede ser usado políticamente con el consiguiente daño a la convivencia, mientras que sigue la hostilidad hacia las otras víctimas y la memoria democrática.16

CONCLUSIÓN

La Iglesia católica se enfrenta en los últimos años a una “desregulación ins-titucional”, desde hace unas décadas ha ido perdiendo su hegemonía religiosa a nivel mundial y en contraparte otras opciones han ganado terreno, como el caso de las iglesias evangélicas (BASTIAN, 2004, p. 155). La secularización a nivel mundial no significó la muerte de la religión, pero si propició un reordenamiento en el mapa religioso. Es bajo este contexto de competencia en el plano religioso, que hay un incremento en el número de beatificaciones y canonizaciones en el mundo, sobre todo durante los pontificados de Juan Pablo II y el actual de Benedicto XVI. De esta forma la santidad es una respuesta del catolicismo a la producción simbólica y al crecimiento de otras creencias. La Iglesia católica reafirma la creencia hacia ella a través de los santos como vía de salvación, hoy más que nunca, la santidad es un estado alcanzable para los católicos (laicos y religiosos).

El martirio es el elemento que se destaca en estos procesos. Hablar de martirio nos remite por un lado, a la persona que lo sufre y por el otro a quienes lo ejecutan, un tirano, en México y España fue el gobierno civil. Según la Iglesia católica un mártir debe reunir una serie de particularidades, sobre todo el mártir es un testigo de Dios, es un modelo a seguir por su conducta, debe de aceptar su martirio y en ningún momento oponerse a su muerte, además, el martirio debe ser admitido por alguien que ha recibido la fe y la gracia por medio del bautizo y por tal motivo es capaz de soportar el sufrimiento. El tirano puede ser una persona física o moral que actúa directamente o proporciona los medios para efectuar la muerte del cristiano. Para ser tirano se necesita obrar mediante un acto deliberado y provocar la muerte física de su víctima.

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Al revisar los procesos recientes de canonización y beatificación, es evidente que la Iglesia ha privilegiado el martirio como vía para llegar a los altares. En diferentes documentos, Juan Pablo II resaltó la imagen del mártir como ejemplo y testigo de fe para el catolicismo. Y en los hechos, fue durante su pontificado donde llegaron a los altares un mayor número de procesos de católicos muertos a través del martirio.

Durante el siglo XX, en varias regiones del mundo, el catolicismo se involucró en diversos conflictos. En México y España durante la primera mitad de este siglo, la Iglesia y el Estado protagonizaron una lucha que giró en torno a la laicidad del Estado, esta disputa pasó a las armas e involucró a laicos y religiosos. Estos conflictos dejaron un número elevado de mártires reconocidos por la Iglesia católica, pero debido a que sus muertes tienen como principal responsable al Estado, desde su origen están politizadas. Por ello, en la última década los procesos de estos santos y beatos, han culminado bajo una serie de controversias. Además, algunos de estos mártires se resistieron a su martirio e incluso empuñaron las armas, lo que contradice uno de elementos que debe cumplir un mártir.

Por último, hay que agregar que aunque estos mártires hayan sido elevados a los altares, en la mayoría de los casos su devoción no se ha difundido entre los fieles. Si bien es la Iglesia la que legitima una devoción por medio de la beatificación y canonización, es el pueblo quien se apropia de ella y asegura su continuidad y difusión. En España la devoción de los 498 beatos se encuentra rodeada más por una disputa por recuperar la memoria de uno y otro bando, siendo un pretexto de legitimidad para los “defensores de la Iglesia” y de provocación para los “protectores de la democracia”. Aún es muy pronto para hacer un balance acerca de la devoción de estos beatos, pero actualmente no gozan de gran aceptación en la sociedad española. En el caso de los santos mexicanos, sólo dos gozan de una devoción con visos de permanecer en el santoral popular mexicano, los demás casos se han convertido después de su canonización en santos en el olvido.

THE CENTURY OF CONTROVERSIAL SAINTS, BLESSEDS AND FORGOTTEN MARTYRS

Abstract: in recent decades, the Catholic Church has increased the number of beatifications and canonizations. Within these processes, strike an image of martyr as the ideal model of Catholic, which is enhanced in speeches

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of Vatican. During the 20th century, Mexico and Spain lived a “religious persecution” that led to the martyrdom of some faithful Catholics, but, despite their apparent similarity, these processes have substantive differ-ences which help us understand part of official orientation determined by Church in processes of beatification and canonization, especially during the recent pontificates.

Keywords: Martyr. Saints. Canonization. Mexico History.

Notas

1 Nació en 1919 en São Luís, municipio de Imaruí, al norte de Brasil, su familia era origina-ria de Westfalia (Alemania). En el año 2006 el Papa Benedicto XVI, la beatificó. Consul-tado el 15 de noviembre de 2010 en: http://www.vatican.va/news_services/liturgy/saints/ns_lit_doc_20071020_berkenbrock_sp.html

2 Nació en Sanok, Polonia, en 1845. Estudió en el seminario de Lvov, y recibió la ordenación sacerdotal en 1871. El Papa Juan Pablo II lo canonizó, en Lvov, en 2005. Consultado el 15 de noviembre de 2010 en: http://www.vatican.va/news_services/liturgy/saints/ns_lit_doc_20051023_gorazdowski_sp.html

3 No obstante que existen otros casos de beatificaciones y canonizaciones de mártires muer-tos durante la “persecución religiosa” de los años treinta en España, en esta investigación sólo consideramos el proceso de 2007 por la controversia que suscitó, como se expondrá en el texto.

4 Para evitar ambigüedades conceptuales, nos adherimos a la definición de secularización que la considera, como la: “…pérdida progresiva de pertenencia social y cultural de la religión en tanto que marco normativo que orienta las conductas y la vida moral… este proceso se lleva a cabo mediante la influencia de los demás campos de la actividad social (económico, intelectual, artístico, etc.), sin producir demasiado conflicto y, generalmente, sin debate. Si bien la religión sigue siendo pertinente para los individuos, y socialmente legítima, ya no puede imponer ni su concepción de la vida ni sus normas morales al conjunto de la sociedad. Las conciencias están ad-quiriendo gradualmente mayor autonomía respecto a la autoridad religiosa.” (BLANCARTE, 2008, p. 341)

5 Constitución Dogmatica Lumen Gentium. Consultado el 5 de julio de 2009, en: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_sp.html

6 Carta Pastoral Tertio Millennio Adveniente. Consultado el 7 de julio de 2009, en: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jp-ii_apl_10111994_tertio-millennio-adveniente_sp.html

7 Bula Incarnationis Mysterium. Consultado el 8 de julio de 2009 en:

http://www.vatican.va/jubilee_2000/docs/documents/hf_jp-ii_doc_30111998_bolla-ju-bilee_sp.html

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8 Hacía mediados de 1927 varios sacerdotes de Jalisco habían muerto a manos del ejército federal: “a). El 18 de enero de este año fue arrestado en Tamazulita, arrastrado y después colgado y baleado al llegar a Tecolotlán el P. José Jenaro Sanchez; b) El 21 de abril a las 8.30 a.m, fue pasado por las armas en Yahualica, el Sr. Cura de Nochistlán, D. Ramón Adame; c). En mayo, no sabemos qué día, fue martirizado de distintas maneras y al fin apuñalado en Tototlán el P. Sabas Reyes; d). El 25 de mayo fueron fusilados en Colotlán, los Sres. Curas de Totatiche D. Cristóbal Magallanes y Pbro. Agustín Caloca; e). El 25 de junio fue fusilado en la Hda. de Quilla perteneciente a Tecolotlán, el Sr. Cura de esta población D. José Ma. Robles; f ). En la segunda quincena de junio fue asesinado el P. de Mazatlán, D. J. Isabel Flores.” Archivo Histórico Museo Cristero Ing. Efrén Quesada Ibarra. DT3- # 83. Los asesinatos sobre sacerdotes.

9 Comisión Diocesana de Causas de Canonización, “Los Beatos fueron pastores auténticos y no mártires de la Cristiada”, Semanario, periódico de la Arquidiócesis de Guadalajara, Guadalajara, Jalisco, 11 de julio de 1999, p. 16.

10 SIN AUTOR, “Valido, el milagro atribuido a Cristóbal Magallanes y compañeros Márti-res”, Semanario, periódico de la Arquidiócesis de Guadalajara, Guadalajara, Jalisco, 27 de junio de 1999, pp. 10-11.

11 Ibídem, p. 11.

12 Consultado el 1 de julio de 2009 en: http://www.fuenterrebollo.com/Gobiernos/

13 Manuel Montero, “Otros mártires de la guerra civil”. Consultado el 7 de julio del 2010, en:

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14 Consultado el 4 de julio de 2009, en: Http://www.conferenciaepiscopal.es/santos/martires/dossier.html

15 Consultado el 1 julio del 2009 en <http://leymemoria.mjusticia.es/paginas/es/ley_memo-ria.html>.

16 Consultado el 29 de marzo de 2011 en:

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* Recebido em: 21.03.2011. Aprovado em: 31.03.2011.

** Maestro en Humanidades (Historia) por la Universidad Autónoma Metropolitana- Iztapalapa (México). Miembro de la Comisión para el Estudio de la Historia de la Iglesia en América Latina y el Caribe (CEHILA- México). Contacto: [email protected]

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*** Licenciada en Historia por la Escuela Nacional de Antropología e Historia (México). Miembro de la Comisión para el Estudio de la Historia de la Iglesia en América Latina y el Caribe (CEHILA- México). Contacto: [email protected]

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RAQUEL MIRANDA BARBOSA**

Resumo: este artigo analisa similaridades e particularidades de uma festividade do catolicismo popular a partir das interconexões entre cultura, religio-sidade e gênero em Goiás. Demonstra como a Povoação do Bacalhau (GO), cinco quilômetros ao sul da cidade de Goiás, descortina relações de poder, disputas entre Igreja e elites sociais pelo controle oficial das festas, os itinerários percorridos pelos agentes na primeira metade do século XX. Entretanto, uma das nuanças que singularizam a festa em louvor a Nossa Senhora da Guia apresenta-se com maior ênfase na presença feminina à frente desta devoção religiosa (mariana) do catolicismo popular sejam elas em instâncias sagradas, profanas ou como ‘guardiãs’ das tradições locais.

Palavras-chave: Festas Religiosas. Poder. Mulher.

FESTA EM (FÉ)MININO: DIÁLOGOS

ENTRE CULTURA POPULAR,

RELIGIOSIDADE E GÊNERO NA

POVOAÇÃO DO BACALHAU (GO)*

As festividades são uma forma primordial, marcante, da civilização humana. [...] tiveram sempre um conteúdo essencial, um sentido profundo, exprimiram sempre uma concepção do mundo. (Mikhail Bakhtin).

F estar é um dos termos que caíram no gosto popular porque sintetizam um universo superlativo de aspirações individuais e que, na maioria das vezes, só podem ser postos em ênfase se estiverem envoltos na coletividade. Segundo Bakhtin (1993), as festas estão como um de-marcador do tempo. Elas representam o momento certo para uma

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nova dimensão a ser vivida ou permitida pelos indivíduos, como uma espécie de trégua do mundo real em favor do hedonismo.

Mesmo que a realidade latente reafirme as constantes relações de poder que permeiam o cotidiano social, o ato de festar alimenta o reconhecimento desta realidade de uma forma mais tênue possibilitando, mesmo que num momento singular, “usufruir” do espaço praticado da festa com todos os segmentos dela compostos simultaneamente. Esta pode ser a fórmula para o controle e a estabilização da hierarquia que regulamenta as relações entre os indivíduos que se iniciam pelo privado perpassando o público, naturalmente.

De maneira semelhante, Brandão (1989, p. 19) afirma: “a festa é justamente o jogo generoso e não raro tenso de passagem, de todos ou de alguns atores, de um espaço ao outro”. Guiados por esse jogo, conjugamos variações que se contrastam e ao mesmo tempo se completam e, nesse sentido, passamos a entender que as festas estão como parte integrante do universo social e, por isso, aberto a discussões que podem permear as mais variadas formas de apreciação.

Ao aproximarmos sagrado e profano, feminino e masculino, poder e submis-são, devoção e diversão, restrição e permissividade, público e privado, erudito e popular, enfim, nestes e em outros elementos sensíveis, percebemos a multidimensionalidade que integra o estudo das festas, que exprime o popular ato de festar: um momento aberto às mediações que comumente não ocorrem nas relações cotidianas.

As festas são apresentadas por Almeida e Souza (2008, p. 29) “como objeto de pesquisa [...] fenômeno multifacetado, ambivalente e polissêmico”. Estes conceitos expressam com nitidez a plasticidade das festas e, por isso, não há fronteiras no campo do saber que possam utilizar-se deste objeto nas mais diferentes possibilidades de estudo. Sobre o campo histórico, compreendemos que o ofício do historiador é embrenhar-se na investigação de novos objetos, como é o caso das festas, procurando revisitar conceitos e abordagens em busca do “novo”.

É neste sentido que trazemos, através deste artigo, uma discussão que possibi-lite justapor o tempo e o espaço, procurando cercar o objeto de estudo com reflexões sobre a história, a cultura e a religiosidade popular num diálogo constante entre o geral e o específico, atribuindo intersecções com a Povoação do Bacalhau. Desta maneira, ao inserir a festa de Nossa Senhora da Guia entre os estudos sobre a religiosidade popular em Goiás, abrimos um vão para compreender como essas práticas, através

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de uma construção ininterrupta de representações, são apropriadas por grupos sociais diferentes, traduzidos de forma bastante peculiar entre eles. A partir desta reflexão pode-se pensar a festa como uma represen-tação social, religiosa e cultural, simultaneamente. Chartier (1990, p. 18-9) leva-nos a constatar essa possibilidade de análise quando afirma:

As representações coletivas mais elevadas só têm uma existência, isto é, só o são verdadeiramente a partir do momento em que comandam os actos – que têm por objectivo a construção do mundo social, e como tal a definição contraditória das identidades – tanto a dos outros como a sua. [...] a função simbólica (dita simbolização ou representação) como uma forma mediadora que informa as diferentes modalidades de apreensão do real [...] e da religião, ou dos conceitos do conhecimento científico.

Analisando o contexto religioso popular, mais especificamente o goiano, verifica-se que as práticas religiosas estiveram associadas a um con-junto de influências pertencentes ao meio social coletivo, envolvendo os sujeitos destas práticas em manifestações plurais da cultura híbrida atávica pelo viés religioso à “cultura dos humildes”, todavia apropriada pelo discurso dominante. É por isso que Almeida e Souza (2008, p. 32) associam-se a esta idéia, pois segundo eles, “não há como negar que festa e poder são fenômenos que se atraem”. Nesta abordagem, a prioridade será o interior da festa; ela nos possibilita enxergar de forma mais clara que “o poder, qualquer que seja a instância, não só tem instituído as festas como se apropria das existentes” (ALMEIDA; SOUZA, 2008, p. 32).

Ao constatar essas influências, salientamos que mesmo sendo este um mo-mento avesso ao cotidiano e a “ordem” instituída no mundo real, as festas são vistas como uma representação informal das relações sociais, embora em seus meandros procura-se retroalimentar a “ordem” prevista na realidade social como um todo. Confirma-se esta perspectiva em Rachel Soihet (2002, p. 347):

Abre-se, na Festa [...], um canal de comunicação dos mais importantes entre as classes e os grupos sociais. Aí vão-se intercambiar idéias e valores, por meio de estruturas de comunicação informal, constituindo-se a cultura, [...] pólo agregador e canal eficaz de sociabilidade.

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O estudo das festas procura dar ênfase a um espaço de sensibilidades que se constrói e reconstrói a partir de elementos viáveis à compreensão das sociabilidades humanas. Ao ressignificá-las, nos apropriamos de novas práticas do fazer religioso configurando um espaço aberto a novas identidades culturais muitas vezes balizadas entre formal e informal, traduzidos no conceito baktiniano de festa.

A festa cria, paradoxalmente, entre aqueles que a praticam, a idéia de hiato temporal, pois à medida que o ritual se inicia outra concepção cronoló-gica se instala propondo um envolvimento não igualitário, diferenciado entre os sujeitos. Ou seja, significa um rompimento momentâneo dedicado à fé, ao prazer estabelecido em pontos de comunhão sobre os vários elementos que fazem dela um sentido, uma realização, uma reinvenção constante. O prazer se sobrepõe em alguns casos à fé, pois na compreensão dos atores desse espetáculo, o momento é fortuito para romper as barreiras hierárquicas existentes, possibilitando uma entrega incondicional aos prazeres, às vezes concebidos e legitimados pelo sagrado, que ora cimenta uma disfarçada coesão social quase indissolúvel nessa trama de possibilidades que interliga o sagrado e o profano.

Em outras palavras, podemos considerar que as festas estão como uma “invenção” do mundo social para atenuar a realidade permeada pelas disputas simbólicas existentes no cotidiano do homem e, interrom-pidas com o propósito “comum” de celebrar uma possível “inversão” e/ou junção de papéis que na maioria das vezes acontecia envolta nas utopias do sagrado:

A festa marcava de alguma forma uma interrupção provisória de todo o sistema oficial, com suas interdições e barreiras hierárquicas. Por breve lapso de tempo, a vida saía de seus trilhos habituais, legalizadas e consagradas, [...] penetrava no domínio da liberdade utópica. O caráter efêmero [...] a sensação fantástica nesse clima particular (BAKHTIN, 1993, p. 77).

Nesta perspectiva, vale reafirmar que esta representação esteve justificando a colonização vista como sinônimo de dominação, hierarquização e reforço de autoridade. Nesta trama, entende-se que as fronteiras culturais se tornam ainda mais permeáveis. A própria oscilação entre formalidade e informalidade proporciona momentos de racionalidade por aqueles que utilizam das festas como mecanismo de práticas latentes

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no convívio secular. Esta disputa pelo poder simbólico evidencia-se na Primeira República e se expressa na religiosidade popular, a partir de um estudo de caso em Goiás, numa situação de discordância que culmina na disputa pela legitimação destes interesses.

Em relação à Igreja, entendemos que, “em nome do espírito romanizador, passa a uma atitude de oposição ostensiva, desenvolvendo o comba-te ao “catolicismo popular”, exigindo a depuração destes eventos” (SOIHET, 2002, p. 350). Certamente, as sociabilidades existentes nas festas religiosas e, especificamente, da Povoação do Bacalhau-GO, expressam situações similares, conduzindo o objetivo desta pesquisa em demonstrar os impactos destas e outras ações manifestas no cotidiano social, religioso e cultural de homens e mulheres que protagonizaram a festa religiosa mais popular do espaço em discussão.

Nesta direção, vale salientar as manifestações culturais - e isso inclui o âmbito religioso - não como uma prática dada ou herdada, pois as indagações sobre o surgimento desta festa ainda não foram esclarecidas devido à escassez de fontes. Contudo, pensaremos a festa de Nossa Senhora da Guia como algo construído e fomentado pelas tradições religiosas populares presentes na identidade cultural da cidade de Goiás. Conco-mitante, uma manifestação religiosa que se notabiliza pela autonomia cultural dos moradores locais. Empenhados em afirmar uma identi-dade própria, percebemos na festa do Bacalhau a “invenção” de um conjunto autêntico de iniciativas no sentido de implicar em um estilo performático bastante original, que característico das singularidades religiosas expostas no espaço sagrado e profano que mescla-se em um único sentido.

Esta festa ocorre, ainda hoje, no mês de setembro. Os preparativos para sua realização demonstram que seus participantes aguardam com euforia este momento singular no cotidiano social local. Através de sensibilidades captadas em jornais, documentos e depoimentos de alguns moradores e devotos que conheceram os tempos “áureos” da festa, estão também registrados na memória social o eixo norteador de um legado religioso que subsiste ao tempo e o antagonismo com relação ao espaço central, a cidade de Goiás. Isto repercute nas práticas dos atuais moradores que ressignificaram a festa de Nossa Senhora da Guia na atualidade, sem deixar perder algumas das tradições (re) inventadas no início do século passado, tempo no qual focamos esta análise.

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EM LOUVOR À MARIA: LUZ E GUIA NA POVOAÇÃO DO BACALHAU

Em setembro, mês da primavera, envolta no perfume das flores, acontece a

festa de Nossa Senhora da Guia no Bacalhau. Neste período, o distrito se transforma num espaço de novidades e repetições, pois o momento de agitação conduz famílias residentes e sazonais ao encontro em prol da alegria e da devoção que marcam o cotidiano desta festividade.

Os jornais que circulavam no início do século XX demonstram que os pre-parativos para este momento iniciavam muito antes do mês da santa. O papel dos leigos, filhos devotos e determinados em “agradar” a Mãe Guia, lança mão da empreitada de zelar e edificar a igreja em home-nagem à padroeira local. A capela que fora derrubada, em 1904, para a reconstrução do novo templo a cargo de Dona Francisca Dantas de Amorim, conforme apresentamos no capítulo anterior teve sua obra paralisada por quase dois anos devido ao esgotamento de recursos.

Podemos observar que os documentos mencionam sobre a paralisação da obra, mas não esclarecem como ocorreram os festejos ou se não houve festa no ano de 1905. Seria uma afirmação quase impossível de ser comprovada, já que nos jornais da época, inclusive do ano de 1905, nada informam sobre as comemorações habituais. Contudo, o formato tradicional da festa fora comprometido, pois a inexistência de um dos símbolos da padroeira na povoação, a capela, demonstram com clareza que a tradição litúrgica dos ritos religiosos populares que ocorrem no espaço sagrado não foram contemplados. Esta prerrogativa conduziu o “fervor” religioso de outros devotos da santa para a continuação do feito, conforme segue o documento a seguir.

Tendo se esgotado o recurso pecuniário, ficou a obra paralysada até fins de maio último, éphoca em que aparecem mais dois apóstolos do bem – o acreditado comerciante Francisco Pereira e sua senhora d. Virginia – que chamaram para si a tarefa de continuação do trabalho [...], promettendo dal-o concluído até 8 de Setembro deste anno, ocasião em que terá logar a festa de N.S. da Guia sob a evocação da qual a igreja está sendo construída. Para conclusão da obra vão o sr. José Francisco e sua senhora despender do seu bolso, por adiantamento, a quantia que for necessária – nunca menos que 3 contos de réis- para serem indemnisados depôs com o producto das esmolas que forem recolhendo1.1

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Herança do período colonial, a edificação, manutenção e liturgia das capelas ficavam a cargo dos leigos. Nos grandes latifúndios o espaço destinado ao sagrado era o ponto de convergência de muitos fiéis com o objetivo de cumprir suas promessas e festejar a fartura da colheita oriunda da terra que muita vezes não era sua. Brandão (1986, p. 96-97) nos auxilia nesta compreensão quando afirma: “um representante da elite agrária constrói uma igreja e um representante da elite católica traz a igreja”. Ao estabe-lecer o vínculo da fé combinam-se “modalidades de divisão do trabalho religioso entre o sacerdote, o laicato, o corpo de fiéis e a massa de clientes” (BRANDÃO, 1986, p. 96). Este último, segundo o autor, encara a festa como um momento de saciar suas carências nas práticas de “caridade” muito comuns nas festas religiosas, assim como, no deleite profano que, seguramente, aliciava estes sujeitos ao mantenedor de tais “prazeres”.

Como referencial deste legado católico oficial, muitas das festas religiosas do catolicismo popular iniciam-se pela novena. Sugerido pelo próprio nome, este momento coletivo antecede alguns dos pontos altos da festa - levantamento do mastro, procissão e missa – com ladainhas ininterruptas por nove dias consecutivos. Na literatura de Nara do Nascimento Silva, apontamos a conservação da tradição quando me-ninos e meninas aprendiam com os adultos como se reconstroem as práticas religiosas, lidas a partir do universo popular, ressignificado constantemente através dos novos sujeitos que as praticam.

Eu curti na pele, ampliei minha mente, enraizei a saudade, robusteci meu bairrismo, deitada na areia branca às margens do Bacalhau. Eu vigorei minha fé, preservei meu misticismo acompanhando os mais velhos nas ladainhas compridas, nas procissões e novenas na enfeitada capelinha de Nossa Senhora da Guia, Padroeira do lugar.2

Vejamos, no caso de perpetuação das tradições, o exemplo de Dona Olgany

Borges Amorim3. Em seu depoimento, ela afirma que desde pequena foi levada ao Bacalhau por seu pai, justificando ser ele o responsável pela sua devoção a Nossa Senhora da Guia. Moradora do centro da cidade de Goiás, ela dirigia-se ao Bacalhau exclusivamente para participar da festa, tornando-se um hábito de devota praticante, incutido desde a infância, voltar à Povoação sempre no período da festa.

Sobre as novenas, entendemos que elas simbolizam uma das influências da cultura portuguesa integrante dos ritos religiosos populares difundidos

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por todo o país. Porém, a religiosidade vista no catolicismo popular não repousa, exclusivamente, nas tradições européias. Esta era uma representação já compreendida pela maioria das pessoas, inclusive por aquelas mais intelectualizadas. Neste sentido, o jornal Cidade de Goyaz traz uma matéria intitulada a Morte das Tradições Religiosas, do jornalista Luiz do Couto:

A nossa crença se formou com o auxílio de raças diferentes e de civilizações chistãs superiores, do que conservamos a base inconfundível e de rudi-mentares preceitos religiosos, de substrato admirável [...] uma herança que nos legaram nossos antepassados e que gerações posteriores são forçadas por um princípio de honesta conservação, a manter nos domínio do espírito e da esfera religiosa.4

Esta manifestação da impressa, tardia com relação ao ocorrido no Bacalhau em 1905, reflete parcialmente sucessivas crises entre devotos e a Igreja quando se trata da preservação das tradições religiosas populares em Goiás. Podemos dizer que no ano correspondente à paralisação das obras da igreja, as práticas do sagrado não estiveram integradas ao espaço destinado para tal. Por isso, o apelo para o retorno às tradições religiosas pode ser compreendido como reflexo posterior, mas que já estaria ocorrendo ao longo de anos anteriores. Compreendemos, de certa maneira, que o fato ocorrido na Povoação do Bacalhau integra uma seqüência de “rompimentos” dos laços que consistem na preser-vação das tradições religiosas.

Apoiando-nos em ELIADE (1992, P. 25), entendemos que “para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras [...]. Há, portanto o espaço sagrado [...] e há outros espaços não-sagrados, e por conseqüência sem estrutura e nem consistência”. Esta falta de identidade com o espaço sagrado, certamente, motivou o casal Francisco e Verginia, aludidos no documento anterior, a se pron-tificarem quanto ao término da obra, assegurando a plena realização dos festejos religiosos do ano de 1906, então marcado pela ruptura das tradições religiosas locais no ano de 1905, como já afirmamos.

Conforme outros relatos deste mesmo jornal, os festejos ocorridos no Bacalhau contemplaram todas as instâncias de uma tradicional festa religiosa popular. Cânticos, missa, almoço, alegria e cordialidade marcaram não só os festejos à padroeira, mas a volta do símbolo da fé e das tra-

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dições religiosas do lugar que se inverteram de alguma forma devido à ausência do seu referencial sagrado. Ressaltamos então, que as fontes trazem de forma quase indiscutível: a festa ocorrida na Povoação do Bacalhau conservava todas as práticas existentes nas festas populares, e seu controle estava nas mãos de homens e mulheres influentes nas mais variadas instâncias do poder representativo da elite local.

Por isso, cabe aqui retornarmos à discussão sobre as crises que pairavam em Goiás quanto às divergências institucionais ultramontanas e as tradições religiosas. Os fatos apresentados quanto à festa estão situados no início do século XX, lembrando que esta situação in-suportável das divergências políticas “incentivou” Dom Eduardo a transferir a diocese para Uberaba quase dez anos antes. O que nos interessa, neste momento, é perceber a permanência de alguns elementos motivadores das discórdias entre a ortodoxia e heterodoxia durante o bispado de Dom Eduardo em Goiás, que não alteraram a “ordem” instituída pelos populares e a elite política local em torno das festas religiosas. Vemos que o controle da festa continua entre os sujeitos economicamente importantes da comunidade local, e a administração financeira da capela estaria delineando-se na mesma direção conforme se vê no trecho:

Os abaixo assiganados, tendo promovido o andamento dos trabalhos de construção [ilegível] nova Igreja do Bacalháo, que [ilegível] sido apenas iniciados pela zeladora da Capella d`esta povoação, julgam do seu dever não só para sciencia do público, como para evitar dúvidas futuras, publi-car os gastos com os mesmos trabalhos; por isso offerecem a consideração abaixo, pela qual ficara sabendo que a referida Igreja fica a lhes dever a quantia de 4: 205$750 reis, para lhes ser paga com o producto das esmolas dos fieis que forem arrecadando; condição esta fizeram constar quando se propuzeram a faser os ditos trabalhos. Eis demonstração: Demonstração das despesas feitas com a construção da nova Igreja de N. Sª da Guia. A receber: Pagamentos a operários e serventes: 2.773$200. Compras de madeira: 1.500$670. Commedorias a operários e serventes: 287$200. Dinheiro emprestado ao zelados para os 1º serviços: 120$00. Somma: 4681$070. Deduz de esmolas recebidas: 400$500. Resta: 4.280$570. Abate-se a quantia recebida pela zeladora: 30$000. Quantia por nós despendida: 4.250$570. Goyaz, 5 de novembro de 1906. José Francisco Pereira e Vergina Leal Pereira.5

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De acordo com os dados chegamos à conclusão de que o poder, antes e depois da festa, estava concentrado nos representantes mais “ilustres” da comunidade, e nem mesmo esta prestação de contas atenua tais reflexões. Desdobramos estas evidências propondo a seguinte reflexão: esta relação de trocas, que extrapola as simbólicas preexistentes em qualquer festa do catolicismo popular, explicita-nos que a transferência da diocese garante, por um lado, a força do poder episcopal.

A figura de Dom Eduardo se investe da envergadura do discurso de absolu-tista do rei francês Luís XIV, sinalizando com sua ação a idéia de que “a diocese sou eu”. Mas, por outro lado, marca o dilema da disputa interna pelo poder simbólico na cidade de Goiás uma vantagem ao já constituído poder oligárquico que continuava a beneficiar-se da “or-dem” religiosa popular vigente, mantida quase inalterada. Neste caso, o exemplo da Povoação do Bacalhau pode ser remetido, certamente, a outras festas religiosas na cidade de Goiás como, por exemplo, a folia do Divino e a Semana Santa. Para uma compreensão mais clara sobre essas trocas e permanências, utilizamos as reflexões de Brandão (1989, p. 11-2) como aporte:

Festa popular no Brasil. [...] cheia de falas e gestos de devoção, ruptura e alegria, ela afinal não é mais do que uma seqüência cerimonialmente obrigatória de atos codificados de dar, receber, retribuir, obedecer, cum-prir. Troca-se o trabalho por honrarias, bens de consumo por bênção [...] o investimento do esforço pelo reconhecimento do poder, a fidelidade da devoção pela esperança da bênção celestial. Obedece-se ao mestre, ao festeiro [...] e outras pessoas dedicadas às vocações e ao desejo de manter vivos os costumes cerimoniais de seus antepassados.

Neste sentido, acreditamos que a transferência da diocese para Uberaba re-

presentou uma exposição de poderes discordantes e, de certa forma, contribuiu para o fortalecimento do poder local no controle das festas e das tradições religiosas em geral. Neste caso, o poder institucional não atingiu seus reais objetivos, e a vinda do mais expressivo símbolo da romanização em Goiás, Dom Eduardo Duarte da Silva, pouco contemplou as novas ideologias defendidas pela Igreja após o Concílio do Vaticano I.

Os estudos de Mônica Martins da Silva (2008) sobre códigos e regras criadas pelo então bispo contemplam documentos quanto à normatização das

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festas religiosas em Goiás. Uma das mais pontuais estaria ligada ao controle das festas pelos leigos, que deveriam ser acompanhadas por padres com o objetivo de regular o descomedimento que frequentemente ocorria. Desta forma, a presença eclesiástica contemplaria o controle das esmolas e rendas das festas, já que a Igreja não mais contava com o apoio financeiro do Estado. Os regulamentos eram claros: “cabia ao padre o controle da renda das festas e a escolha do coletor de esmolas e donativos” (SILVA, 2008, p. 152). Porém, sem êxito, conforme nos apresenta os registros dos jornais transcritos neste tópico. Estas e ou-tras normativas foram alguns dos motivos cruciais das lutas travadas por Dom Eduardo Duarte da Silva junto às oligarquias locais, com destaque para a família Bulhões, que influenciava outros aliados para o enfrentamento político-religioso. O conflito culminou na súbita, porém vantajosa, transferência aos interesses políticos e populares, simultaneamente.

Outro dado revelador trazido pelos fragmentos dos jornais utilizados neste trabalho dá-se quanto à presença feminina junto aos festejos e noutras atribuições não menos significativas. Destacamos em primeiro lugar a senhora Anna Francisca Dantas de Amorim, referenciada como zeladora da capela e idealizadora do projeto de ampliação da mesma. Identificamos que sua função de “zeladora” ia muito além do que, na prática, esta função é compreendida por nós hoje. Ao pensar em zeladoria eclesiástica, principalmente quando se trata de uma mulher, enxergamos sua função basicamente nas atribuições domésticas ne-cessárias para o bom andamento dos trabalhos religiosos dos quais é dispensada.

Mas, no caso de Dona Anna Francisca, alguns dados nos chamam uma atenção especial acerca do que realmente seja sua real atribuição na capela do Bacalhau. Segundo o documento, sua função de zeladora conjugava com a de responsável pelas esmolas e donativos. Possivelmente, este “privilégio” encheu-a do propósito ousado de reconstruir a igreja pensando essencialmente em aumentar sua capacidade espacial e, não se concretizando até o fim, por falta de recursos financeiros, como já constatamos. Isso não é de fato o mais importante. O que queremos ressaltar é que o crescimento do papel feminino junto aos festejos populares se intensifica desde a vinda de Dom Eduardo com uma in-tenção bem específica para a Igreja: enfraquecer o poder masculino sem legitimar o feminino, mas utilizar-se do feminino como arma potente

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para desarticulação política que se construira inclusive a partir do viés religioso. Essa prerrogativa eclesiástica pode-se dizer, recai numa via de mão dupla, pois as mulheres iniciam uma trajetória incomum aos preceitos religiosos e passam aos poucos a se apropriarem do âmbito religioso não apenas como instrumento, mas como parte integrante das práticas religiosas representadas por homens. Para Azzi (1984, p. 103), esta expansão feminina se deu quando a mulher:

No pensamento da Igreja, devia enquadrar-se perfeitamente no esquema de uma ordem social conservadora, reagindo fortemente contra as aspira-ções liberais. Era dentro dessa postura conservadora que tanto a mulher leiga quanto a religiosa eram convidadas a participar da vida da Igreja neste período. [...] a presença da mulher no âmbito da Igreja se afirmava.

Nota-se que a estrutura ideológica alterada pelos ideais romanizadores modifica a estratégia da Igreja diante das mulheres. Entretanto, a conduta masculina se mantém ao delimitar o espaço, ao reforçar sua vocação sob a nebulosa dominação masculina, na qual é conferida sua representação dentro do campo religioso católico. O que nos chama a atenção, é que os exemplos percebidos na Povoação do Bacalhau traduzem outra realidade. O campo religioso atribuiu circunstâncias possíveis para uma visibilidade maior da mulher nas tradições religiosas do lugar, contrariando os preceitos regulamentados pelo próprio Dom Eduardo, como já comentamos.

Nesta direção, os exemplos não se limitam à Dona Anna Francisca Dantas de Amorim. Destacamos a atuação, frente aos festejos religiosos no Bacalhau, as esposas do Major Joaquim Maria de Sant`Anna e do comerciante José Francisco Pereira, respectivamente. O nome da esposa do major ficara suprimido do fragmento do jornal Goyaz, mas especifica claramente sua função de juíza do dia que corresponde à função de festeira, ou seja, aquela responsável pela organização, re-cepção dos devotos e eclesiásticos, pela bebida e comida servidas na festa e as honrarias de anfitriã. Segundo Alba Zaluar (1983, p. 72) o festeiro “essa autoridade [...] se tornava o representante do santo e, portanto, da comunidade moral dos devotos”. Como se trata de uma divindade mariana, provavelmente esta seja uma prerrogativa para a inserção feminina entre os festejos religiosos na Povoação do Bacalhau, com imputação de destaque.

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No que diz respeito à distribuição de alimentos, ressaltada pelo fragmento do jornal Goyaz Órgão Democrata de 1906, o relato informa ter havido “um farto almoço”. Sobre este aspecto, Zaluar (1983) afirma que tal prerrogativa está implicitamente associada à função do festeiro que deve reforçar o jogo simbólico da fartura e da provisão concedidas pelo santo ou santa no ano que se passou, retroalimentando a necessidade de buscar a proteção divina dispensada através da “autoridade” do festeiro(a).

Desta maneira, as contradições entre as classes sociais opostas no processo de produção desapareceriam no plano simbólico. A oposição entre essas classes seria mediada através da comida. A ‘eficácia’ da festa nada mais seria que a ‘eficácia’ da tradição. Ajustar contas com o santo significaria ajustar contas com a tradição e recomeçar a vida rotineira, com suas normas e valores relembrados, resolvendo ritualmente (ou simbolicamen-te) contradições sociais inerentes à maneira pela qual se organizava essa sociedade tradicional (ZALUAR, 1983, p. 75-6).

Com relação à esposa do comerciante local, a senhora Vergínia Pereira Leal, nome e feitos estão bastante destacados no documento citado ante-riormente. Esta é mais uma evidência de que a mulher estava sendo vista quanto aos atos ligados à vida religiosa direta ou indiretamente. Graças à iniciativa do casal, a festa de Nossa Senhora da Guia ocorre-ra de acordo com as tradições do catolicismo popular, deixando-nos explícita a participação e/ou intervenção dos leigos no controle dos cultos e na construção ou reconstrução dos templos religiosos, mesmo sendo impactados pelas novas doutrinas católicas.

Ainda priorizando o papel feminino, a coluna Publicações a Pedido, do docu-mento em que nos baseamos até aqui, expõe a prestação de contas do casal e destaca que a própria esposa solicitou este espaço destinado ao público para justificar os gastos com o intuito de esclarecer como seria a forma de ressarcimento para que não houvesse dúvidas posteriores. Mas o historiador, com seu olhar atento deve priorizar outras leituras e, neste sentido, compreendemos que a atuação desta mulher extrapo-lava o espaço privado, participando de coisas “sérias”, assim rotuladas, exclusivamente, ao desempenho masculino, como é o caso econômico.

Não encontramos mais nenhum dado sobre a festa do Bacalhau que me-recesse ênfase dos meios de comunicação local. Isso significa que,

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após a reconstrução do templo, os festejos a Nossa Senhora da Guia, possivelmente, estiveram dentro da normalidade dos ritos religiosos do catolicismo popular, novena, procissão, levantamento do mastro, missa e distribuição de alimentos. Assim, a festa do Bacalhau percorre a sinuosidade das tradições populares que conjugam o sagrado e o profano como facções indivisíveis uma da outra.

Mas o espaço sagrado novamente entra em questão nos anos quarenta, do século passado, trazendo esta prerrogativa como um diferencial nos costumes e tradições que não se deixam morrer e, novamente, a presença feminina se destaca na manutenção dos costumes simples, porém, mar-cantes quanto à identidade religiosa da população local. Discutiremos no próximo tópico o cruzamento da história de vida de Dona Alice do Nascimento e a religiosidade popular, como uma representação de fé, devoção e resistência aos inesperados acontecimentos que marcam e redefinem os papéis e os sujeitos da história.

ENTRE AS MULHERES, UMA GUARDIÃ DE NASCIMENTO

As discussões sobre mulher, religião e devoção vêm percorrendo até aqui um caminho de afunilamento gradual. Isso se constata a partir de algu-mas reflexões feitas no capítulo anterior e no decorrer deste capítulo, procurando discorrer, entre uma análise teórica e histórica, sobre os temas mais centrais que norteiam esta pesquisa. As apreciações que ora vamos propor têm como objetivo clarificar o sentido desta narrativa que se justifica, especialmente, pela compreensão da identidade reli-giosa da Povoação do Bacalhau e as singularidades do culto mariano ali praticado.

Cruzaremos a história de uma mulher que, aparentemente, não fugia ao comportamento clássico das mulheres casadas da primeira metade do século XX. Mãe, esposa, dona de casa, caridosa, religiosa são algumas das características de uma personagem presente em mais um episódio que envolveu a Igreja de Nossa Senhora da Guia e suas festividades anuais. Já afirmamos que o papel da mulher junto às práticas religiosas crescera “significativamente” durante a romanização. O espaço aberto a elas caminhou na direção que nos fizesse encontrar ações que as-seguraram a continuidade das tradições religiosas vivas atualmente e consideradas como uma das mais expressivas manifestações da cultura e da identidade local.

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Para ampliarmos o entendimento sobre as ações imediatas de determinados sujeitos que nos levam a compreender como os valores religiosos podem exprimir um dos vários vieses que cimentam a identidade de um povo, neste caso, de uma comunidade. Reportamo-nos a Lemos (2007, p. 14) que destaca a religião como um espaço que “recria, reorganiza, constrói e reconstrói em permanente conexão com outros aspectos que estruturam a sociedade em questão”.

Segundo o Sr. Waldery do Nascimento6, filho de Dona Alice, o dia marcante na história da Povoação do Bacalhau ocorrera da seguinte forma:

Em 1944, saí aqui na porta [...] levanto de manhã, naquela época chovia mês de dezembro e janeiro dia e noite, levantei um dia lá e foi mês de dezembro, tinha lá quase um mês inteiro chovendo, e a gente levantava cedo, cinco horas, cinco e pouquinho, o dia “tava” clareando... Quando eu abri a porta, que era aqui onde funcionava a coletoria, era a porta de saída da gente [...] quando eu saí aqui na porta eu vi que a Igreja tinha caído: a frente da igreja ‘despejou’. [...] seria uma frente como a frente da Igreja de Areias. ‘[...] voltei, e falei para minha mãe, minha mãe ainda “tava” deitada: Mãe a Igreja caiu’.

Ainda no mesmo depoimento, a testemunha ocular do fato ocorrido descreve que a reação de sua mãe foi imediata:

Nossa Senhora! Quê que é isso! – disse, segundo ele, D. Alice. Ela levantou correndo e foi procurar o pessoal para ajudá-la tirar, carregar as coisas, chovendo, debaixo de chuva. Trouxeram as coisas dela, as imagens, aquela coisera toda. Aqui nesse quarto, onde está estas duas janelas, ali era um corredor que saía aqui. Tinha um quarto e uma sala [...] e, então minha mãe botou a Igreja. Esta Igreja funcionou aqui uns dois ou três anos, [...] tudo fazia aqui em casa. Continuou a fazer as novenas, as rezas, todo ano fazia aqui em casa [...] devido ser um bairro de muita gente pobre, minha mãe tinha uma visão muito grande de caridade, ela foi muito caridosa.

Os relatos nos permitem perceber que o episódio cruza com as similaridades

de outros momentos da história da vida religiosa da Povoação do Ba-calhau. As conexões entre o ocorrido no início do século XX e neste momento são indefectíveis. Estas “coincidências” nos levam a crer que o comportamento dos fiéis estaria mais visível à continuidade das

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tradições religiosas do lugar de forma ininterrupta. Isto não aparece muito claramente em 1906. Por isso é correto afirmar que o súbito acontecimento alterou a forma como os festejos a Nossa Senhora da Guia aconteceram; entretanto, almagamaram uma identidade religiosa que extrapolou os limites do inesperado ou mesmo o valor dado ao espaço sagrado.

Esta é uma característica que merece ser destacada, porque muito diz sobre as peculiaridades do comportamento religioso dos devotos da Povo-ação, claramente refletido no esforço e no engajamento coletivo da preservação de seu mais expressivo referencial religioso e cultural. Para isso, novamente, o papel feminino de uma guardiã de Nascimento dá sinais imediatos quando se trata da defesa das tradições, da fé e da religiosidade de um povo, espacialmente distante da cidade de Goiás, conscientemente autônoma, como se vê no depoimento registrado anteriormente.

O relato da senhora Célia do Nascimento7, filha de Dona Alice Nascimento, reforça o que já fora dito pelo seu irmão, o Sr. Waldery. Mas algo inu-sitado nos chama a atenção no momento em que perguntamos sobre a importância de sua mãe para a religiosidade do lugar. Ele afirma que:

Ela sempre foi muito religiosa. [...] tudo dela foi Nossa Senhora da Guia desde criança. Porque essa igreja existe aí desde quando ela era criança. [...] foi criada aqui e o povo [...] sempre foi muito religioso. Então, a igreja caiu [...] eu devia ter assim uns seis mais ou menos, me lembro dessa igreja. [...] ela se virou e fez uma outra igreja, pequena, menor, metade da que tinha aí, mas fez. Que essa igrejinha que tem aí.

Vemos que a migração das celebrações para a casa de Dona Alice não alteram as representações estéticas da festa, mas, ao mesmo tempo, a desassociam do rígido envolvimento com o sagrado. Neste movimento atípico, po-demos compreender que o espaço sagrado passa a ser concebido a partir de onde se encontra a imagem da santa, embora não fosse descartada a necessidade de reconstruir um novo templo, como já foi discutido. Conforme escreve Brandão (1986, p. 159), “a religião popular não é de igreja, mas da comunidade [...] não há lugares [...] de separação, nem há sujeitos sociais separados”. Os dados nos levam a crer que o caso do Bacalhau encaixa-se nesta perspectiva.

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Embora as referidas tradições religiosas aos poucos se firmassem em novos domínios, outro desafio encabeçado por Dona Alice estava no trânsito entre as limitações de uma época de “crises”, integrada à realidade social humilde dos moradores, referida pelo Sr. Waldery do Nascimento. Falamos da construção de uma nova igreja. Este quadro implicou, certamente, no tempo de permanência da igreja na sala da casa de Dona Alice Nascimento, conforme nos fora relatado. Todavia, a ini-ciativa para a reconstrução do templo esbarrou em outras dificuldades circunstanciais da época. Estas não foram suficientemente fortes para inibir que tais propósitos fossem uma das prioridades dos moradores locais, representados na pessoa ousada de Dona Alice.

É compreensível seu envolvimento neste projeto. Até por que sua casa passa a simbolizar a permanência da igreja e dos ritos presentes na festa de Nossa Senhora da Guia, naquela “decadente” povoação. Cabia, então, à hospitaleira devota, a responsabilidade da direção dos fes-tejos populares, o convite oficial ao padre para ser rezada a missa, a distribuição dos alimentos após a festa e, por conseguinte, a iniciativa do ideal de realizar as obras previstas para a reconstrução da capela. Segundo depoimentos orais, objetivava-se angariar fundos e doações com moradores locais e da antiga capital, que continuavam a vir para o Bacalhau com o intuito de devoção à santa, como ocorria anualmente. É importante ponderar que a pessoa de Dona Alice abriu portas para o êxito desta empreitada e, mesmo envolta sob alguns equívocos, de que trataremos adiante, em nada diminuíram sua notabilidade quando o assunto gira em torno de ações destinadas à preservação das tradições religiosas populares na região:

Ela começou a novena na casa dela e, [...] fazia um cafezinho de manhã, colocava lá fora da rua com as roscas mais gostosas do mundo. Meu pai me trazia para assistir essa reza dela, depois ela foi pedindo ajuda pra um amigo, pra outro, pra outro, pra outro, até que ela levantou a cape-linha. Essa capela que existe aí. [...] era uma época muito boa, as portas ficavam abertas, as pessoas vinham das fazendas, vinha de todo o lugar para cumprir promessa, colocava dinheiro no cofre, depois esse dinheiro era levado para o pároco da cidade.8

Ademais, encontramos outras fontes que trazem informações sobre este movi-mento em prol da reconstrução da igreja. Segundo o Sr. Waldery, este

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projeto fora encabeçado por sua mãe, que saía do Bacalhau, respaldada pela influência e prestígio familiar, para pedir donativos que levaram à composição de uma comissão de pessoas interessadas neste fim. Os argumentos de Dona Alice e de outros membros da comissão renderam frutos, mas a demora na realização da obra desperta a manifestação da imprensa local:

Tempos atraz, cerca de dois anos organizou-se uma comissão com o elogi-ável intuito de reerguer a igreja do Bacalhau. Angariou-se numerário na cidade e o material para a construção foi adquirido, inclusive tijolos em grande quantidade. Verificamos, entretanto, que a igreja não foi erguida e os tijolos não mais se encontram naquele local e por isso, esperamos que os interessados se manifestem e expliquem o que há a respeito.9

A partir do mesmo veículo de comunicação à resposta veio em seguida:

Li, no último número de seu brilhante jornal, uma nota reproduzindo o sentimento popular referente às obras da Capela do Bacalhau. Na qualidade de componente da comissão promotora dessas obras, adepto do regimem antigo, em que o contribuinte tem direito de conhecer o emprego de seu dinheiro, e o administrador do alheio, o dever de indicar, sem metáforas nem cabotianismo o emprego daquilo que ficou confiado à sua adminis-tração, venho solicitar agasalho nas colunas desse destemido periódico, sempre devotado às causas desta terra, para a resposta que desejo dar ao conhecimento público. Há anos, organizou-se, nesta cidade uma comissão para reconstruir, quanto antes à antiga capela de N. S. da Guia, do Ba-calhau, por suas velhas tradições querida de todos. [...] Com esse mesmo dinheiro, tendo obtido gratuitamente olaria e lenha, foram empilhados no local das obras como diz a nota ora respondida. Nessa época, chegava a estação das chuvas, impossibilitando o inicio da obra; o Sr. Prefeito Divino de Oliveira procurou alguns dos membros da comissão, pedindo, por empréstimo, os ditos tijolos. Disse, então, S. Excia, que se encontrava, no momento, com obras públicas inadiáveis, tendo necessidade desse mate-rial, que não encontrava em outras mãos, prometeu fazer restituição com pequeno lucro para o mutuante, logo que, entrada a seca, fosse, possível o fabrico de tijolos. Essas pessoas, que naquele tempo ainda não tinham elementos seguros para duvidar da palavra do Sr. Prefeito, ponderando que agiriam em cooperação com os poderes públicos, no interesse, ao que

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se dizia da coletividade, resolveram emprestar s mencionados tijolos por um prazo de mais ou menos seis mezes, medida que não traria prejuízo às projetadas obras, que não seriam atacadas na estação chuvosa. Acontece que a seguinte estiagem passou, sem que fosse feita a restituição, apezar dos insistentes pedidos dos credores; voltaram às águas e nova estiagem, recebendo os credores risonhas e cortezes promessas jamais cumpridas. Depois de muitos desmanches se convencionou que os tijolos seriam restituídos, não em espécie, mas sim em dinheiro, pelo preço da época. Satisfeitas muitas das exigências na apresentação da conta, o mutuante passou do mau ao peor. Se não existem tijolos nos cofres municipaes, dinheiro lá não fica e, os credores, que esperem. Por esta exposição, vê-se que os responsáveis pelas obras da capela do Bacalhau não se distanciaram da linha de bom proceder, de vez que tão somente prestaram um serviço à coletividade confiados na autoridade pública. Pensaram que estavam em terra firme e incursionaram em areias movediças. Aqui fica, prezado patrício, a ex-plicação precisa e leal do ocorrido; por ela espero que o pôvo possa julgar os responsáveis por este doloroso caso. Sempre grato e mui atenciosamente. J. de M. Ramos Jubé.10

Os trechos de teor provocativo, ao nosso entender, muito justificaram o

atraso da obra. O envolvimento do poder público demonstrou o que estaria por detrás do atraso das obras da nova capela. Vale destacar que a lenha e a olaria referidas no documento podem ser provenientes das doações dos próprios moradores e devotos da santa, já que esta atividade norteava comumente a economia da região. Então, não seria precipitada a afirmação de que estes motivos serviram para “apressar” a reconstrução da capela, com a limitação de não poder contemplar o estilo arquitetônico similar ao da igreja de Areias, ou melhor, o ide-alizado pela senhora Anna Francisca em 1904. A capela reconstruída entre os anos de 1947 e 1948 se localiza no mesmo lugar onde estava a antiga, entretanto, menos ambiciosa no seu novo tamanho, possi-velmente, devido às circunstâncias apresentadas.

Ateremo-nos à análise, no período de permanência da igreja na casa de Dona Alice e seu engajamento na reconstrução da nova capelinha. Assim como nos informa o depoimento da senhora Célia, as ações que merecem ser acentuadas estão relacionadas à concretização do objetivo da recons-trução, no qual, segundo ela, sua mãe seria a principal representante,

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apesar do documento anterior ter sido respondido por outra pessoa. Para outras reflexões, pensemos um pouco sobre esta questão: se Dona Alice foi a guardiã que se dispôs a preservar as tradições religiosas do Bacalhau, porque ela não seria a pessoa mais indicada para responder e/ou justificar o uso dos tijolos para outros fins? Ou ela não era a líder oficial, por que a memória social assim a registra?

Devemos pensar que, para o segmento oficial, o nome de homem, perten-cente a uma das famílias “renomadas” da cidade de Goiás, traria maior respeitabilidade à comissão oficialmente organizada. Se esta fosse chefiada por uma mulher, mesmo ela sendo tão engajada na causa que envolve não somente a igrejinha em ruínas, mas também as tradições religiosas populares, isso tornaria mais evidente à pre-sença feminina em âmbito oficial. Além do mais, percebemos que a hora foi oportuna para denunciar a ingerência do então prefeito, conforme nos apresentou o documento. Entretanto, devemos nos concentrar no comportamento, bastante peculiar, mas visto tam-bém em outras ocasiões, quanto ao envolvimento de mulheres nas questões relacionadas à fé e às tradições religiosas da região, nas quais identificamos ações de muita notabilidade, pois o templo relaciona-se a estes aspectos.

Este é, a nosso ver, um dos fatores mais significativos que compõem a construção da identidade religiosa da Povoação do Bacalhau. Estes elementos se sobressaem aos rígidos fundamentos constitutivos do catolicismo popular quando se trata de um referencial simbó-lico físico para a devoção ao santo ou santa. As especificidades existentes ali variam ao modo trivial do catolicismo popular que impactou a consolidação das devoções religiosas no Brasil, desde o período colonial, quando se reservava um lugar nas proprieda-des para a construção da capela e ali se iniciava a devoção de um padroeiro(a). Sobre isso, entendemos que o trabalho do historiador atinge sua missão quando estas “minúcias” rompem os paradigmas que insistem em traduzir uma realidade contradizente às muitas variações existentes no comportamento insólito no âmbito cultural concernente aos populares.

Tornamos a afirmar que os atos e os ritos pertencentes às festas populares já identificadas nos festejos da povoação mantiveram-se. Contudo, vale ressaltar que o palco de utopias que envolvem a trama do sagrado e profano, de alguma forma, se ressignificou diante da nova conjuntura.

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Isso inclui o rompimento da fronteira espacial entre o templo e a casa, a qual se passaria, a partir do acontecimento descrito, a se promover à celebração dos festejos anuais. Quando perguntamos a Dona Olgany quais ritos existiam na festa no período em que a “igreja” estava na casa de D. Alice, ela respondeu que havia a reza e a confraternização com alimentos servidos pela anfitriã. Certamente, por ser muito jo-vem, o pai de Dona Olgany restringia sua participação apenas nos atos sagrados do terço, das rezas e cânticos. Já no relato de Dona Célia do Nascimento verifica-se a seguinte descrição:

Primeiro tinha uma novena, depois tinha o trido, depois a missa, depois a procissão, tinha a banda de música, aí quando acabava a procissão, a banda de música, vinha todo mundo aqui pra casa para tomar o café. E minha mãe fazia brevidade, biscoito, bolo de arroz, pão de queijo, tudo e serviam o café para todo mundo da festa, era servido aqui na varanda de casa. E a banda de musica, vinha e ficava tocando aí. Depois que o povo tomava o café ainda tinha uma dançazinha, ainda tinha uma brincadeira, todo ano era desse jeito. Pessoal da cidade vinha pra cá; ela é que ia lá convidava o pessoal, vinha um padre, celebrava a missa, todo ano tinha essa festa, [...] Vinha gente de Goiás, muita gente [...] do Areião, que é esse pedacinho entre o Bacalhau e Goiás; era cheio de gente aqui. O meu pai tocava na banda de música Santa Cecília; então ele trazia a banda pra tocar e tocava a missa todinha, tocava a procissão todinha [...]. Tinha um senhor que morava ali em cima, que agora não estou me lembrando o nome dele, ele que era responsável pra tocar o sino, [...] os mais destemidos soltavam os foguetes, o tempo todinho da procissão soltando foguetes, tocando o sino e a banda de música acompanhando.11

Estamos diante de uma verdadeira festa religiosa. Sagrado, profano, distri-

buição de alimentos, sociabilidades e sensibilidades que integram o espaço das utopias previstas no tempo festivo, e nem mesmo o con-traste com as ruínas do templo alterou a plena realização dos festejos devotados à sua padroeira. Conforme nos apresentam as memórias do Sr. Waldery do Nascimento,

A festa acontecia aqui em casa. [...] minha mãe fazia questão de [...] dar o lanche para o pessoal após a festa. Era muito biscoito, pão tudo era

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feito aqui. Tinha forno de lenha; ela trazia o pessoal, pegava aí, três ou quatro pessoas que ajudava ela a semana inteira [...] aqui era uma mesa quase o dobro dessa, o pessoal entrava por aqui que era um corredor até a porta lá e saía por cá. Recebiam leite, chá, café biscoito à vontade, servia à vontade [...] todo ano o problema era o lanche após a festa que não podia faltar, e farto.12

As justificativas dadas pelo Sr. Waldery quando menciona que o “problema era o lanche” têm haver, segundo ele, com a pobreza da população local. Os moradores mais pobres, afirma, não tinham condições de contribuir para a realização deste momento de confraternização, mas era uma parte fundamental para êxito da festa ocorrida a cada ano. Como já pudemos constatar, esta prática de distribuição de alimentos era indispensável em todas as festas religiosas e, segundo Bakthin (1993, p. 14) “o contato livre e familiar que se estabelece durante [...] o clima de festa [...] adquirem um sentido novo e uma forma mais profunda”. No Bacalhau aplica-se bem esta regra, pois a distribuição de alimentos associa-se ao prazer de reunir e agradar a todos que freqüentaram o lugar sagrado. Logo, estariam aptos a usufruir dos deleites “profanos” expressos nos mais variados prazeres que agradam o corpo.

Não é a primeira vez que nos deparamos com esse tipo de sociabilidade na festa da padroeira do Bacalhau. Mencionamos em outros trabalhos “farto almoço” oferecido pela esposa do Major Joaquim Maria de Sant`Anna era um costume tradicional das comemorações em louvor à santa e, nos tempos de Dona Alice, ressignificou-se por meio do “lanche” muito comum nos costumes cotidianos daquela época conforme depoimentos orais. Outro dado interessante se revela: a distribuição dos alimentos na festa aparece justaposta à condição financeira do responsável pelos festejos, provocando a visualização de outras peculiaridades da festa de Nossa Senhora da Guia: o permanente “controle” do festejo nas mãos dos mais abastados.

No caso em estudo, destacamos a figura de Dona Alice não só pelo tempo em que se manteve à frente das festividades locais, mas o destaque, coincidentemente ou não, se deu quanto à sua condição financeira e prestígio familiar. Isso aponta para a “disponibilidade” em acolher a igreja em sua residência por pouco mais de três anos. Tais fatores contribuem para legitimar a personagem na função de guardiã das tradições locais.

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CONCLUSÃO

Ao olharmos para o contexto da festa, percebemos práticas que exprimem um universo de sociabilidades inerentes à necessidade de entregar-se às utopias que extrapolam a realidade cotidiana, proporcionando momentos que sublimem as agruras da existência do eu. Vimos que cultura dos povos dissemina diversas formas de se praticar a festa, pois são nestes momentos fáusticos que determinamos identidade, cultura, sociedade, valores e crenças que balizam-se entre o sagrado e o profano. Eles estão amalgamados nos ideais de um “jogo” simbólico que permite, sobretudo, trocas.

Assim, no terceiro capítulo trouxemos uma discussão mais específica sobre a festa de Nossa Senhora da Guia, sobre a qual possibilitou-nos a elas-ticidade de outras abordagens interligadas à representação do mundo social. Ao incorpora-se ao sagrado, a festa toma um corpo coletivo de existência fazendo-se perceber num espaço viável de relações de poder, verificáveis com facilidade entre aqueles que exercem o controle sobre ela. Neste sentido, levantamos problemáticas em torno da legitimação e do comando da festa de Nossa Senhora da Guia, como forma de identificarmos aqueles que se sobressaem nesta realização.

Nesta tarefa, muito nos surpreendeu constatar que as mulheres se destacaram no intento de preservar as tradições culturais religiosas, não somente no Bacalhau, em tempos quando o preconceito tradicional masculino se reforçava em outras esferas sociais. Utilizando fontes primárias, vimos a festa como um instrumento de poder e prestígio, seja financeiro seja social, contribuindo para evidenciar um comportamento atípico das mulheres destacadas nesta análise. O comportamento resistente das figuras femininas veio confirmar a hipótese de que o culto mariano pode ser um elemento norteador para a inserção da mulher no campo religioso, opção legitimada pela Igreja Católica durante a romanização para assegurar o enfraquecimento de outras frentes. Como analisa Azzi (1984, p. 101):

Essa cooperação feminina se torna mais evidente em força de três aspectos principais. Em primeiro lugar, os bispos visavam diminuir a força das antigas irmandades e ordens terceiras, influenciadas pela maçonaria, as quais, atuando com independência da autoridade eclesiástica, estavam todas nas mãos de homens. Em segundo lugar, procurando evitar os abusos

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existentes no culto divino, os prelados haviam restringido progressivamente a celebração das cerimônias litúrgicas nos horários noturnos, em que era possível haver maior influência do elemento masculino; por coincidir com o horário de trabalho e por conseqüência disso, a presença feminina tornou-se cada vez maior nas práticas religiosas. Por último, a reforma católica dava à religião uma forma acentuadamente clerical.

Entre estes aspectos, destacamos a importância feminina dada por alguns bispos romanizadores. Em Goiás, Dom Eduardo se destaca neste rol, porém, a transferência da sede da diocese para Uberaba coloca algumas das mulheres citadas neste estudo não como meras cooperadoras, mas responsáveis diretamente pela religião popular. São como guardiãs das tradições e dos costumes religiosos, inegavelmente, calcados no catolicismo de matriz laical. Ou melhor, das leigas.

Ao entrecruzarmos a história de Dona Alice à história da capela do Bacalhau, compreendemos que a afirmação se torna mais evidente. Suas ações acompanharam os movimentos da preservação da festa em alusão à padroeira conservando, e ao mesmo tempo, ressignificando os ritos. Sua presença marca não só os costumes, vistos ainda hoje na Povoação, como a memória social, remetendo à existência da capela da região:

Ela que fez a [...] capela. Foi a Dona Alice do Nascimento; ela que fez a capelinha com a ajuda dos amigos, uma capelinha muito simples que depois foi melhorada [...] por outras pessoas. [...] foi pedindo ajuda pra um amigo, pra outro, pra outro, pra outro até que ela levantou a capelinha. Essa capela que existe aí.13

Nesta trajetória de vida, encontramos uma mulher descendente de uma das famílias mais tradicionais da região, visível no prestígio inerente à sua condição social. Entretanto, não seria imatura a afirmação de que suas ações sensíveis muito representaram para o legado religioso conservado pelos moradores locais ainda na atualidade. A imagem da ousadia e de devoção refletida na pessoa de Dona Alice Nascimento levou-a a oferecer sua casa para ser a nova sede guardiã da santa, da festa, dos ritos, das tradições e do ideal de reconstrução do símbolo religioso aniquilado.

Reconstruída a capela, entre os anos de 1947 e 1948, a vida cotidiana da Povoação do Bacalhau ganhou novos contornos. Contudo, isso não

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implicou em seu desaparecimento, mas lhe impôs uma nova estrutura baseada no controle por meio do poder simbólico e econômico daqueles “moradores” sazonais que migram do Bacalhau para Goiânia, devido às crises em decorrência da transferência da capital nos anos de 1930. Esta nova fase, que atribuo como a Era dos Festeiros, aguça-nos os sentidos e as inquietudes para caminhos ainda promissores no que tange aos outros aspectos que ressignificaram a festa de Nossa Senhora da Guia dos anos de 1950 e, posteriormente. Assim, esta prerrogativa aponta-nos o caráter dinâmico destas manifestações religiosas de cunho popular e o estudo da Povoação do Bacalhau ofereceu-nos tal compreensão.

PARTY IN FEMALE: DIALOGUES AMONG POPULAR CULTU-RE, RELIGIOUSNESS AND GENDER IN THE “BACALHAU” SETTLEMENT, GOIÁS-BRAZIL.

Abstract: this article analyzes similarities and particularities of a festival of the popular Catholicism from the interconnections among culture, religious-ness and gender in Goiás. It demonstrates how the ‘Bacalhau’ settlement, five kilometers south of the city of Goiás, reveals power relationships, con-tests between Church and social elites for the official control of the festivals, the  itineraries  traveled by the  subjects  in the first half of the twentieth century. However,  one  of the  nuances  that singularizes the  festival in honor of ‘Nossa Senhora da Guia’ presents itself with great emphasis on the feminine presence ahead of  this religious devotion  (Marian) of the popular Catholicism, whether in sacred or profane instances or as ‘guard-ians’ of the local traditions.

Keywords: Religious festivals. Power. Woman.

Notas1 GLG, Gabinete Literário Goiano, Jornal – Goyaz “Órgão Democrata”, Nº. 915, 30/06/

1906, p. 2.

2 Poema “Davidópolis” In: SILVA, Nara do Nascimento. Sineiros de Goiás (contos, crônicas e poemas). Brasília: ed. do autor, sem data, p. 15.

3 Entrevista realizada com Olgany Borges de Amorim, 7/9/2007.

4 FFSD, Fundação Frei Simão Dorvi. Jornal - Cidade de Goyaz, ano III: número 130, 08/06/1941.

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5 GLG, Gabinete Literário Goiano, Jornal - Goyaz “Órgão Democrata”. Anno XXIII, Núme-ro 934; 10/11/1906, p. 4.

6 Entrevista realizada com Waldery do Nascimento, 8/9/2007.

7 Entrevista realizada com Célia do Nascimento, 8/9/2007.

8 Entrevista realizada com Olgany Borges de Amorim, 7/9/2007.

9 FFSD, Fundação Frei Simão Dorvi. Jornal Cidade de Goiás, ano IX, Goiás, 15/9/1946. Diretor: Goiás do Couto, n. 313, p. 5.

10 FFSD, Fundação Frei Simão Dorvi. Jornal Cidade de Goiás, ano IX, Goiás, 27/09/1946. Diretor: Goiás do Couto, n. 313, p. 5.

11 Entrevista realizada com Célia do Nascimento, 8/9/2007.

12 Entrevista realizada com Waldery do Nascimento, 8/9/2007.

13 Entrevista realizada com Olgany Borges de Amorim, 7/9/2007.

Referências

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* Recebido em: 02.03.2011. Aprovado: 23.03.2011.

** Mestre em história pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Professora da Universidade Estadual de Goiás. E-mail: [email protected]

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CAROLINA TELES LEMOS**

RELIGIÃO E MÍSTICA

ELEMENTOS CONSTITUINTES

DAS LUTAS CAMPONESAS

NO BRASIL*

Resumo: neste artigo nos ocupamos com o lugar e o papel da religião e da mística enquanto elementos presentes nas lutas dos movimentos de lutas camponesas. Nossa análise aponta para a concepção de que a religião e a mística, pelo seu potencial de mobilizar as pessoas na busca de melhorias para si e para os outros, desempenham um papel dinamizador também no enfrentamento de questões relacionadas com as injustiças e desigualdades sociais. Sinais desse papel podem ser percebidos na presença histórica do elemento religioso e da mística nas lutas camponesas tanto em períodos mais antigo da história do Brasil como na atualidade. Tal presença se percebe tanto por parte dos/as trabalhadores/as envolvidos/as nessas lutas como dos/as agentes de pastoral que nelas estão inseridos, na condição de líderes ou de intelectuais orgânicos.

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Palavras-chave: Religião. Mística. Lutas camponesas. Acampados. Agentes de pastoral.

N os debates sobre o lugar e o papel da religião e da mística enquanto ele-mentos presentes nas lutas dos movimentos sociais na atualidade vemos diversos posicionamentos dos debatedores. Para alguns, a religião e a mística representam um empecilho às lutas, pois desempenham um papel amortizador quanto aos impactos dos acontecimentos referentes às injustiças e desigualdades sociais, resultando em redução do poten-

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cial de enfrentamento dessas questões tanto pelos movimentos sociais quanto pelas pessoas em particular; para outros a religião e a mística, pelo seu potencial de mobilizar as pessoas na busca de melhorias para si e para os outros, desempenham um papel dinamizador também no enfrentamento de questões relacionadas com as injustiças e desigual-dades sociais; para outros ainda, religião e mística respondem apenas às questões de foro íntimo, não tendo nada a dizer nem como amor-tizadora nem como motivadora para as lutas sociais. E os movimentos sociais de luta pela terra, que lugar dão à religião e à mística? Ou, melhor colocando a questão: que lugar ocupam a mística e a religião no caso das lutas pela terra no Brasil? No texto que segue, buscamos responder a essas questões. Para realizar tal tarefa, vamos explicitar os conceitos de mística e de religião, bem como destacar o lugar de tais elementos nas lutas camponesas; o segundo tópico aborda a presença histórica do elemento religioso e da mística nas lutas camponesas em períodos mais antigo da história do Brasil; em seguida, vamos evi-denciar como, no caso das lutas concretas dos movimentos sociais no campo, os/as trabalhadores/as envolvidos/as nessas lutas vivenciam e explicitam a compreensão que têm da mística e da religião; por fim, chamaremos à cena os/as agentes de pastoral que estão inseridos nas lutas camponesas, na condição de líderes ou de intelectuais orgânicos, para que nos falem de sua própria mística.

A “MÍSTICA” E A RELIGIÃO COMO UM DIREITO DO/A CAMPONÊS/A

Forman (1979, p. 273), em sua análise sobre o campesinato brasileiro, apreende muito bem o papel da mística no contexto das ações, lutas e organizações no campo:

Mesmo nos movimentos políticos contemporâneos mais secularizados, as crenças religiosas desempenharam um duplo papel. Assim, para o alistamento de camponeses e trabalhadores rurais em associações sindicais e polí ticas e na sua mobilização para uma ação política di reta era preciso que seus organizadores soubessem ma nipular os símbolos religiosos, dando-lhes novo signi ficado.

Também José de Souza Martins, em uma entrevista ao Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), am plia esta visão, afirmando que uma das

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reivindicações dos camponeses é o direito à sua própria mística. Para Martins

os setores mais avança dos da Igreja têm muita dificuldade em aceitar o catoli cismo popular, o misticismo, etc. Uma das rei vindicações claras e óbvias das populações do campo é a reivindica ção ao direito de ser mística, de ter uma outra visão da religião, da religiosidade, inclusive uma outra visão de Deus. Temos ignorado isso, em nome dos nossos valores, das nossas preocupações mais ra cionais, que são menos emocionais. A população está reivindicando inclusive isto: o direito de ser mís tica. Se a gente chama isso de alienação, ela está reivindicando inclusive o direito de ser alienada1.

Pelas afirmações anteriores, vimos que, além de destacar a necessidade da mística para os camponeses, os autores fazem uma crítica à forma como os movimentos sociais se posicionam em relação a ela. Essas afirmações ainda fazem sentido no contexto dos movimentos sociais organizados em torno das lutas camponesas atuais? Vamos, nos itens que seguem, tentar responder a essa questão iniciando por esclarecer os conceitos de mística e de religião.

Alguns autores definem religião como religiosidade, uma adesão a crenças e a práticas relativas a uma igreja ou instituição religiosa organizada, e diferenciam-na de espiritualidade, a relação estabelecida por uma pessoa com um ser ou uma força superior na qual ela acredita (LUKOF, 1992). A nosso ver, a conceituação de religião inclui tanto os aspectos individuais como os institucionais, podendo esses aspectos ocorrerem juntos ou apenas ocorrer aquilo que é mais comum ser denomina-do como espiritualidade, ou seja, um fenômeno apenas individual, identificado com aspectos como transcendência pessoal, sensibilidade ‘extraconsciente’ e fonte de sentidos para eventos na vida (SIEGEL, et al., 2001). Entre os tantos conceitos de religião encontrados, o que mais se aproxima da perspectiva que vislumbramos em nossa análise parece ser o que segue: religião é

uma estrutura de discursos e práticas comuns a um grupo social referentes a algumas forças sobrenatu rais, personificadas ou não, múlti plas ou uni-ficadas, tidas pelos crentes como anteriores e superiores ao seu ambiente natural e social, frente às quais os crentes expressam certa dependência e diante das quais se consideram obrigados a um certo comportamento em

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sociedade com seus semelhantes (MADURO, 1983, p.31) e criam um sis tema de relações (culto) entre os ho mens e essas forças (deuses) (POR-TELLI, 1984, p. 21).

No caso dos camponeses, pensamos que o que está sendo reivindicado é seu jeito próprio de viver suas crenças e práticas religiosas, indepen-dentemente de estarem ou não inseridos nas lutas camponesas.

A reivindicação desse direito foi por muito tempo criticada pelos agentes dos movimentos sociais nos mais diferentes setores que entendiam que as crenças e práticas religiosas reforçavam a alienação em que viviam as massas populares. No entanto, alguns pesquisadores e agentes percebiam a intensa presença do elemento religioso no cotidiano das pessoas e viam por bem valorizar esse elemento como um potencializador das lutas populares, entre elas, das lutas camponesas. Entre estes, cito o pensamento de Otto Maduro (1983) que nos diz que as reli giões não necessariamente constituem um obstáculo à autonomia das classes subalternas, pois sob determinadas condições so ciais, e dada uma determinada situação interna do campo reli gioso, certas práticas, dis-cursos e institui ções religiosos de sempenham, em sociedades de classes, um papel favorável ao de senvolvimento autônomo de certas clas ses subalternas e ao forta lecimento de suas alianças contra a dominação.

Isto se dá, principalmente, quando o sistema religioso das classes subalternas torna explícitas as relações de do minação, dessacralizando as classes dominantes e apresen tando as lutas contra a dominação como inspi-radas pelas for ças sobrenaturais e metassociais.

A compreensão de que a religião pode desempenhar a função de media-dor ativo de uma classe subalterna para que passe de um grau, em sua consciência de classe, para um grau superior, bem como o de ser canal de organização autônoma ou de mobilização das classes subalternas foi sendo construída e/ou absorvida por teólogos como Leonardo Boff e Frei Betto. Os referidos teólogos articularam essa construção naquilo que denominaram como a mística do militante cristão.

Para Boff e Frei Betto (2005, p. 33-52) as palavras mística, evocando mistério, caráter incomunicável de uma realidade ou intenção, e espiritualidade, referida ao que não tem arrimo na vida material, têm sido associadas à experiência religiosa. A partir da Teologia da Libertação2, que nos anos 70 abriu caminho para a aproximação entre fé e política, mística, espiritualidade (e religiosidade, em sentido amplo) passaram a ser con-

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sideradas experiência globalizante que não desvincula espiritualidade e ação, ética e responsabilidade pelos destinos humanos e da sociedade.

No mesmo sentido afirma Marcelo Barros (2002, p. 2) que “mistério”, e daí vem a palavra “mística”, é o segredo que motiva o mais profundo da vida do crente. E esse segredo, diz ele, não é apenas intelectual. Não é apenas ideológico. É de amor.

Isto porque os cristãos acreditam que Jesus de Nazaré resolveu abrir o mis-tério mais profundo do Reino de Deus para todo mundo que quiser apaixonar-se por este projeto em sua vida pessoal e para o universo todo. Este é o núcleo da fé, sem o qual tudo o mais perde o sentido.

Embora estes teólogos tenham destacado a experiência religiosa e, com ela, articulado a crença no Deus judaico-cristão, uma vez que esta é a di-vindade pregada pela Teologia da Libertação, vemos que nem sempre é assim que ela é entendida pelos agentes das lutas camponesas. Há vezes em que a mística não se associa necessariamente a necessidade de crença em alguma espécie de divindade, como é o caso da mística praticada pelos agentes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) ou outros movimentos que se ocupam com a luta pela terra.

Nesses espaços a mística é entendida muito mais como o mistério, aquele caráter incomunicável de uma realidade ou intenção que impulsiona as pessoas a lutarem por maior justiça nas relações no campo; e a transcen-dência, aquilo que não tem arrimo na vida material, característica da espiritualidade, não necessariamente se refere ao Reino de Deus, mas à concretização de relações mais respeitosas entre os seres humanos entre si e entre os seres humanos e a natureza. Sendo assim, nesses espaços o que eles denominam como mística e espiritualidade se aproxima mais da concepção de uma fé que reflete, conforme afirma Derrida (2000), ou de uma espiritualidade secularizada, como afirma Sauer3.

Para Derrida (2000, p. 11-89) na religião se cruzam duas experiências, dois veios ou duas fontes: a experiência da crença (o crer ou o crédito, o fiduciário ou o fiável no ato de fé, a fidelidade, o apelo à confiança cega, o testemunhal sempre para além da prova, da razão demonstrativa, da intuição) e a experiência do indene, da sacralidade ou da santidade.

Para o referido autor a religião é sempre a resposta e a responsabilidade prescrita, ela não se escolhe livremente, em um ato de pura e abstrata vontade autônoma (DERRIDA, 2000, p. 41). Ela implica liberdade, vontade e responsabilidade, mas sem autonomia. Quer se trate de

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sacralidade, de sacrificialidade ou de fé, o outro faz a lei, outra é a lei, entregar-se ao outro, a qualquer outro e ao completamente outro. Será essa concepção de religião e de mística a que orienta e motiva os militantes nas lutas camponesas? Ou melhor, como se articulam, então, nas lutas camponesas, os projetos de melhoria nas suas condições de vida, a mística, a vivência de suas crenças e práticas religiosas?

A CONSTRUÇÃO DO “REINO MESSÂNICO” ENQUANTO LUGAR DA RESISTÊNCIA INFINITA NA HISTÓRIA DO BRASIL

Para Derrida (2000, p. 29-30) para se entender a religião, duas pistas se abrem: o messiânico e a chóra (lugar limítrofe, espaço denso de possibilidades e de significados). Sendo que messiânico, para o autor, significa mes-sianicidade (abertura ao futuro ou à vinda do outro como advento da justiça; fé sem dogmas, que avança no risco da noite absoluta) sem messianismo (sem horizonte de expectativa nem prefiguração profética). Chóra, afirma Derrida (2000, p. 29), nunca chegará a se professar em uma ordem religiosa e nunca se deixará sacralizar, santificar, humanizar, teologizar, cultivar, historializar. Radicalmente heterogênea em relação ao santo e ao sagrado, ao são e ao salvo, nunca se deixa indenizar; é o lugar da resistência infinita e não o da tolerância, uma vez que esta está sobrecarregada de conotações cristãs.

Percebemos, no caso da lutas camponesas, que essas duas perspectivas da experiência religiosa se encontram. As lutas camponesas apresentam-se, assim, tanto como o messiânico quanto como a chóra. Nela, um dos mitos que é acionado como conteúdo-referência é o mito do paraíso, como o lugar predestinado por Deus às pessoas que vivem segundo seus mandamentos. No entanto, a hermenêutica presente na leitura desse mito é a já adotada anteriormente pelos movimentos messiânicos presentes nos mais diferentes lugares e tempos da história do Brasil (QUEIROZ, 1976, p. 164ss).

De acordo com a referida hermenêutica, o pa raíso é um lugar onde as relações sociais se in vertem totalmente, isto é, lá as pessoas que sofrem neste mundo gozarão de plena felicidade, enquanto os ricos e explorado res de hoje serão seus serviçais.

Em tal perspectiva, ao contrário da ideia tradicional, o paraíso não repre senta o lugar da igualdade social, mas da inversão das clas ses so-ciais, em outras palavras, é o lugar da desforra dos explorados de hoje.

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Estes é que terão o poder de mandar, te rão suas mesas fartas, muita saúde, alegria, festas, roupas bonitas, poderão viver sem trabalhar, conviverão com seus amigos etc. Tudo isto na presença de Deus.

Essa concepção não é nova na história do Brasil. Os primeiros cronistas e missionários que aqui passaram já assinalaram para a presença de certa efer vescência religiosa em tribos tupis-guaranis nos primei ros tem pos da colonização. Na descrição de Queiroz (1976, p. 164-175), profetas indígenas iam de aldeia em aldeia apresentando-se como a reencarna-ção de heróis tri bais, incitando os índios a abandonar o trabalho e a dançar, pois os “novos tem pos”, que instalariam na terra uma espécie de Idade do Ouro, es tavam para chegar4. Exemplificarei esta reação dos indígenas com algumas citações de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976). Entre os movimentos migratórios citados por Maria Isaura, estão os de 1562, na Bahia, com três mil índios.

Ainda na Bahia, na região do rio Real, onde a fome e a doença exterminaram os ín dios aldeados pelos Jesuítas, e o restante fugiu para a flo resta, por volta de 1600, tupinam bás migraram em três tropas, em busca do paraíso terreal; em 1605, determinado pajé promoveu a migração de perto de doze mil índios que, saindo de Pernambuco, foram em direção da Ilha de Maranhão, onde outros já se tinham refugiado procu rando escapar aos portugueses. Em 1609:

uma encarnação do demônio ou Jurupari apare ceu aos tupinambás, tam-bém em Pernambuco, propondo-lhes meios para se libertarem dos brancos e porem fim às condi ções penosas em que se encontravam; prometia-lhes que se o seguissem, levá-los-ia para o paraíso terrestre dos caraíbas e dos profetas. O povo foi atrás dele em um número superior a sessenta mil... Afirmava o líder que era chegado o momento de nativos retomarem o lugar dos senhores, escravizando os brancos; por isso Deus o enviara a pregar. O ídolo que adoravam liberta ria os fiéis do cativeiro, passando os brancos dali por diante a trabalhar, e os que recusassem seriam trans formados em árvores e pedras (QUEIROZ, 1976, p.169).

Assim, nestes primeiros séculos de colonização, movi mentos indí genas sincréticos violentos e não violentos enri queceram a paisa gem religiosa e povoaram as reações de resistên cia à violência que lhes estava sendo imposta.

Como a distribuição eqüitativa das terras não acontecia, premidos pelas péssimas condições de vida, pela pressão dos latifundiários, pela ação

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do próprio Estado, os campone ses foram aos poucos tentando assumir sua própria história e organizando-se de diversas maneiras, ao arrepio da lei, para lutar pelo seu chão.

Essas reações às vezes tiveram um caráter apenas de protes tos, como no caso dos cangaceiros, no Nordeste, entre 1870 a 1940; o Movimento dos Balaios, no Maranhão, de 1838 a 1841. Outras vezes apresentaram ca racterísticas de protestos religiosos, como é o caso dos movi mentos messiânicos5 que surgiram nesse período.

Um exemplo do segundo caso ocorreu em Canudos, em 1870 quando, sob a liderança messiânica do monge Antônio Conse lheiro, as lutas cam-ponesas assumiram a fórmula mística de busca da terra prometida. Reuniram-se 30.000 camponeses que viviam e trabalha vam em regime de comunismo primitivo. Tudo era bem comum. Acaba ram formando uma cidade que ganhou o nome de Belo Monte.

A república é que foi ajustar contas com aqueles cam poneses “monarquistas”. Os três primeiros ataques do exér cito regular foram repelidos com êxito. Mas o combate era desigual porque os camponeses estavam isolados. Atacados por 10.000 ho mens, sucumbiram à grande superioridade do fogo.

Outra campanha da vigilante república contra camponeses “monar-quistas” foi a do Contestado, de 1912 a 1916. De novo sob a liderança de um místico “curandeiro e benzedor”, o ex-militar José Maria. Mas o caráter de classe da luta já é mais franco e pronunciado que o de Canudos. Essas lutas sob liderança messiânica traduzem seu cará ter espontâneo e refletem o isolamento das massas camponesas na re-sistência permanente ao latifúndio.

Essa forma de experienciar a mística acima descrita seria o que Derrida de-nomina como a abertura ao futuro ou à vinda do outro como advento da justiça; fé sem dogmas, que avança no risco da noite absoluta.

Afirma Derrida (2000, p. 12) que na trajetória do debate, na história da historicidade da religião há que se encontrar uma forma de considerar uma história do mal radical, de suas figuras que nunca se limitam a ser figuras e que sempre inventam um novo mal. Isto porque sabemos que a perversão radical do coração do homem (Kant) não é uma só, nem dada de uma vez por todas. A escritura representa perfeitamente o caráter histórico e temporal do mal radical. E, pelo que vimos, o mal radical enfrentado pelos indígenas e camponeses em luta era a carência de possibilidades mínimas de sobrevivência. Sendo assim,

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somente a construção de um reino messiânico poderia lhes devolver essas possibilidades.

O MITO DA “TERRA PARA TODOS” E A SALVAÇÃO DO “MAL RADICAL”

A mística das lutas camponesas se aproxima da afirmação de Derrida (2000, p. 70), quando o autor afirma que a mesma lógica que fornece uma fonte comum entre religião e ciência se faz presente na concepção de salvação: salvar a vida, salvar o vivente como o intato, o indene, o salvo, que tem direito ao respeito absoluto, à retenção, ao pudor.

Para o autor este postulado coloca uma questão: por um lado está o respeito absoluto pela vida, o “não matarás”, por outro lado, até mesmo para garantir este princípio, há a necessidade do sacrifício. Essa mesma dinâmica se percebe nos momentos mais fortes de conflitos das lutas camponesas: para defender a vida, muitas vidas correm o risco de serem, e muitas vezes são, sacrificadas.

É na concepção da luta pela vida que se inserem as lutas pelas transformações nas relações sociais que se estabeleceram no Brasil nas últimas décadas do Século XX. Em 1978 o Brasil foi sacudido pela greve histó rica dos metalúrgicos do ABC Paulista. Os trabalhadores rurais não foram tes-temunhas passivas des ses acontecimentos. Entraram na luta, iniciando sua orga nização para conquistar a terra em suas regiões de moradia, resistindo ao êxodo e à migração e denunciando a concentra ção da terra (TORRENS, 1992).

A repercussão foi imensa. Os lavradores começaram a or ganizar-se em nume-rosos municípios. Contavam com a ajuda de vá rios sindicatos. Eram animados pelo trabalho da Pasto ral da terra e pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

Afirma Torrens (1992) que, em Janeiro de 1985, em Curitiba, Paraná, acon-teceu o pri meiro congresso dos trabalhadores rurais sem terra, com a pre sença de 1.500 delegados vindos de todos os Estados. Tam bém es tavam presentes representantes de lavradores organiza dos do Peru, Equador México e Bolívia.

As posições e princípios formulados nesse encontro fo ram: que a terra seja para quem nela trabalha; que a reforma agrária seja feita sob o con-trole dos trabalhadores; que os trabalhado res rurais tenham o poder de decidir sobre como se vai dividir as terras e cultivá-las e também

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sobre as formas de titulação; que o governo legalize todas as terras que fo rem ocupadas; os trabalhadores rurais que ocuparem as terras devem criar suas leis e organismos (TORRENS, 1992, p. 79).

A reação violenta do latifúndio não se fez esperar. Um in ventário parcial6, de iniciativa dos trabalhadores rurais sem-terra apurou 1.100 assassinatos no campo entre 1964 e 1985. O número de vítimas au-menta de ano para ano. Em 1982, foram assas sinados 58 trabalhadores rurais; em 1983 já são 98 mortes no campo. Em 1984, são eliminados 128 trabalhado res da roça e em 1985 o número de mortes sobe para 222. Só nos primeiros 4 meses de 1986 são assassinados 115 pobres do campo.

Embora o número de assassinatos tenha diminuído, a realidade de conflitos e mortes no campo continua nos anos que marcam a virada do milênio. Apresentamos a seguir duas Tabelas em que aparecem os números de conflitos e de assassinatos no campo, bem como o número de pessoas (camponeses e lideranças de movimentos camponeses) envolvidas nos conflitos:

Tabela 1: Conflitos de movimentos camponeses de 1995 a 1999

1995 1996 1997 1998 1999

Conflitos 554 750 736 1.100 983

Assassinatos 41 54 30 47 27

Pessoas 381.086 935.134 506.053 1.139.086 706.361

Fonte: CPT (2004, 2004, p. 12).

Tabela 2: Conflitos de movimentos camponeses de 2000 a 2004

2000 2001 2002 2003 2004Conflitos 660 880 925 1690 1.801Assassinatos 21 29 43 73 39Pessoas 556.030 532.772 451.277 1.190.578 1.083.232

Fonte: CPT (2004, 2004, p. 12).

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Pelas afirmações das pessoas acima apresentadas e pela descrição da intensidade das lutas camponesas, com o resultado de violência acima descrito, podemos perceber que não é a inconsciência da dureza da realidade que leva os camponeses à luta, mas sim, ao contrário, a esperança da superação do mal radical das injustiças sofridas (Tabelas 1 e 2). Ou seja: eles lutam porque crêem na mudança e crêem na mudança porque lutam. E é isso que significa a experiência de uma “fé que reflete”.

No caso das lutas camponesas, a mística é alimentada por diversos mitos e símbolos e por ideias-chave presentes na cultura popular e na tradição bíblica. Um exemplo é que, em nossa pesquisa7 (LEMOS, 1994, p. 98), uma afirmação que perpassa as respostas das lavradoras e lavradores entrevistados/das é a de que a terra é para todos. Nessa insistência transparece um dos principais mitos que justi fica e sustenta a lutas camponesas hoje, o mito da criação, no qual Deus, ao criar a terra, povoou-a com as outras cria turas e deu ao homem para que cuidasse dela e nela se multipli casse. Eis o que afirmou José, um dos membros do acampamento de Sem Terras em Tamarana, Paraná:

acho que ele (Deus) dá força para nós, acho que nós não tamos fazendo pecado em invadir terra, porque Deus deixou a terra para todos; Eu acho que tem que ser assim, né, porque antes Deus deu a terra prá todos, não escolheu pessoa, os podero sos que caçaram pra eles (LEMOS, 1994, p. 147).

Podemos recorrer à perspectiva de Derrida (2000, p. 11) para entender a mística da lutas camponesas. Segundo o referido autor, há que articular o discurso sobre a religião a um discurso sobre a salvação (o são, o salvo, o indene, o santo, o sagrado, o imune).

Para Derrida a ideia de salvação está relacionada com a ideia do mal (o mal hoje, presentemente): identificando o mal se terá acesso ao que pode ser a figura e a promessa da salvação para o nosso tempo e para a sin-gularidade do religioso que está de volta.

Nessa perspectiva, de qual mal buscam salvar-se os protagonistas da lutas camponesas? Visam eles libertar-se dos males de uma política agrária e agrícola que, há séculos, favorece sempre uma classe privilegiada no campo e os deixa desamparados, mas busca libertar-se, acima de tudo, da concentração injusta da terra nas mãos dos latifundiários e de todas as conseqüências dessa concentração: fome, doenças, falta de moradia, de trabalho, violências e assassinatos.

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A certeza de que a promessa de Deus se realizará é alimentada pela mística cotidiana da lutas camponesas. Para os que estão envolvidos nessas lutas, tanto é verdade que a terra feita por Deus é para todos que, Deus até “já deu” provas concretas de que está lutando com eles. Em um confronto com a polícia, o jeito que “Deus lutou” foi man dando uma forte chuva. Esta chuva favoreceu os/as sem-terra, pois inutilizou as bombas de gás da polí cia, além de atolar os ônibus em que estes vieram, facili tando a mobilidade dos/as acampados/das que estavam acos tumados a conviver com a mesma. Eis a narrativa de D. Isabel, membro de um acampamento em Ibema, Paraná, quando perguntei a ela se sabia da ocorrência de algum milagre ocorrido no acampamento:

me lembro da questão do dia 28 de dezembro. O confronto com a polícia a gente não esperava nada, todo mundo dor mindo, de repente o batalhão chegou. O pessoal se pe gou na organização e com fé e coragem enfrentou os ho mens. Deus nos ajudou muito. O dia tava bonito e Deus logo mandou chuva para nos ajudar. A chuva judiou de nós mas judiou mais deles. A bomba de gás mesmo não ia funcionar com a chuva. Aquele dia para nós foi muito importante, uma data inesquecível (LEMOS, 1994, p. 85).

Sendo assim, se para Derrida (2000, p. 12) o mal é a abstração radical que se dá em diferentes lugares: máquinas, técnicas, tecnociência, transcendência teletecnológica, para os Sem-Terra e para todos os que lutam para perma-necer na terra e dela sobreviver, o mal é a não possibilidade de acesso a ela.

Afirma o autor que, para se falar da religião, é necessário pensá-la a partir de potências de abstração e dissociação, como desenraizamento, desloca-lização, desencarnação, formalização, esquematização universalizante, objetivação, telecomunicação (DERRIDA, 2000, p. 12). Vemos que é nessa situação que as pessoas que lutam pela terra vivenciam sua mística. E o fazem não como forma de abstração, mas como forma de encarnação, de experiência, de envolvimento na superação daquilo mesmo que os faz desenraizados, deslocalizados.

Para entender a relação entre religião e razão, Derrida (2000, p. 20) retoma o pensamento de Kant, e afirma que na origem e trajetória dessa relação a imagem da terra prometida pode ser o vínculo essencial entre a promessa do lugar e a historicidade.

No caso da mística das lutas camponesas, o mal radical (a injustiça) apresenta sua cara bem explícita: as pessoas não têm a terra e são agredidas quan-

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do buscam conquistá-la. Se a escritura representa o caráter histórico e temporal do mal radical, a memória do sofrimento vivenciado nas lutas relata a busca de superação desse mal. Ela também está muito presente nas celebra ções, mas já agora transformada em símbolo de vitó ria, pelo fato de ser compreendida como parte do processo das lutas camponesas. Na narrativa que segue, percebemos essa perspectiva. O Sr. Sebastião, acampado em Ibema, Paraná, nos conta sobre os fatos que mais marcaram, para ele, no decorrer das lutas:

a missão que fazia tipo procissão e rezamos o sofri mento quando chegamos aqui, o temporal que enfrenta mos. Os pisto leiros que enfrentamos, a polícia que en frentamos, o despejo até com metralhadora, tudo. Só por Deus pra vencer; e a celebração da entrada, porque a gente sofreu tanto na quela entrada, a gente agradece a Deus a permanência aqui na área e pede que ele ajude a manter nosso obje tivo (LEMOS, 1994, p. 73).

Esta visão de que o sofrimento é também vi tória está muito li gada ao mito da terra prometida, segundo o qual, para que os israelitas a conquistassem, teriam que derrotar todos os povos que a esti vessem ocupando. Assim como eles sofreram nessas lutas, atual mente não pode ser diferente com as(os) sem-terra.

Afirma Derrida (2000, p. 42) que religião se refere a resposta, a sacramento e testemunho. Esses elementos compõem uma raiz comum entre a religião e a razão crítica e tecnocientífica, ou seja, religião e razão têm a mesma fonte. Ambas se desenvolvem a partir do recurso à garantia testemunhal do todo performativo que compromete a responder tanto diante do outro quanto a respeito da performatividade performante da tecnociência. A mesma fonte única divide-se maquinalmente, au-tomaticamente e opõe-se reativamente a si mesma. Essa reatividade é um processo de indenização sacrificial, ela tenta restaurar o indene que é ameaçado por ela própria.

Nos espaços das lutas camponesas o sacramento e o testemunho são ex-pressados de diferentes formas nas celebrações por eles vivenciadas. Celebrar os acontecimentos da luta se torna importante como fator alimentador da mística, pois como afirma Benincá (1987, p. 97-106), se através do simbólico, o ri tual con seguir transformar a assembléia numa comunidade onde os par ticipantes, abdicando dos seus critérios individuais de dis cernimento, assumirem a visão de mundo celebrada

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na ação li túrgica, terá, então, conseguido sua eficácia. Esta eficá cia, porém, exige do fiel participante uma avaliação moral de suas práticas sociais e políticas, simbolicamente reves tidas com rou pagem religiosa, à luz dos princípios morais da visão de mundo do ritual.

No caso das lutas camponesas, a força do ritual é um fator alimentador. Nele se faz presente a memória dos momentos fortes da luta. Ao narrar os momentos que consideram significativos, as lavradoras e lavrado res fornecem elementos que nos ajudam compreender a mística e a força que os mantém unidos nos momentos mais fortes dos confli tos. E eles não foram poucos e nem fáceis de serem enfrentados, como destaca D. Olinda ao falar sobre o quê, na perspectiva dela, teria sido um momen-to significativo nas lutas. Embora a narrativa seja um pouco longa, a transcrevemos toda, para destacar a riqueza de informações nela contida.

O mais significativo foi o momento que houve a polí cia, porque houve um crescimento maior e melhor em termos de or ganizações. O pessoal, quando estava le vantando, a polícia chegou, por volta das 6:30h. da ma nhã. Com poucas palavras o pessoal já estava unido, tentando resistir a polí cia. Eram em torno de 700 a 800 po liciais contra mais ou menos 1.500 a 2.000 pes soas. Um grupo guarneceu a parte da cerca, levando foice, água para se pro teger contra bomba de gás. Le varam também bomba de gasolina, que foi cons truída na hora. E a terra foi nossa arma. E houve orações de uma companheira adventista que rezou o tempo todo. As mulhe res ficaram juntas fazendo comida para alimentar as crianças. Era falada uma palavra de ordem, que era ocupar, resistir e produzir. Ao meio dia, conseguimos afastar os policiais e fo mos percebendo que estávamos com a vitória. Eu sinto que houve uma vitória para os camponeses, e todos os sem-terra de todo Paraná e do Brasil. Se eles conseguissem dominar nóis seria uma derrota para todo o país. Para nós foi um marco histó rico da luta, que é sempre lembrado pelas famílias da comunidade de Cristópolis (nome dado ao acampamento) (LEMOS, 1994, p. 109).

Essa narrativa pode ser entendida à luz do pensamento de Derrida (2000, p. 20) que, a partir do pensamento kantiano, afirma que só existem duas famílias de religião, duas fontes ou dois troncos: a religião de mero culto, que procura os favores de Deus, mas essencialmente não age, limita-se a ensinar a oração e o desejo. O homem não tem que se tornar melhor, ainda que seja pela remissão dos pecados; ou a religião

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moral, que visa a boa conduta da vida; comanda o saber, dissociando-o do saber o qual lhe está subordinado, e prescreve o tornar-se melhor agindo para tal fim exatamente a partir do seguinte princípio: não é essencial nem necessário que alguém saiba o que Deus faz ou fez para sua salvação, mas antes o que ele mesmo deve fazer para ser digno dessa ajuda. Trata-se de uma “fé que reflete”. Essa é a fé que percebemos nas pessoas que lutam pela terra.

A MÍSTICA COMO EXPRESSÃO DE UMA “FÉ QUE REFLE-TE”: O CASO DOS AGENTES LÍDERES NOS MOVIMENTOS SOCIAIS CAMPONESES

Referindo-se às lutas camponesas do século XX, segundo Sauer (1993, p. 20), a realidade de violência no campo, gestada pelo autoritarismo de um modelo agrícola e agrário brasileiro concentrador, gerou uma indignação ética em amplos se tores da Igreja. Esta indignação ética foi um dos moto res propulsores do envolvimento e apoio de setores das Igrejas às lutas populares no campo. Tais setores, in fluenciados e res paldados pelos pressupostos teórico-teológicos da Teologia da Libertação e pelos avanços eclesiais, desenvolveram uma militân cia pastoral e fize ram com que as igrejas respondessem com ati tudes de so lidariedade e denúncia proféticas, através de docu mentos e manifestos oficiais.

A perspectiva levantada por Sauer se aproxima da forma de compreensão de Derridá, quando trata da mística a modo de “fé que reflete”.

Tal perspectiva é melhor percebida nos depoimentos dos agentes de pastoral que atuam nos acampamentos e assentamentos de Sem Terras no Sul do Brasil. Os agentes de pastoral são pessoas que atuam em nome de suas Igrejas ou da CPT, junto aos acampados/as, com a intenção de contribuir na organização e no forta lecimento da luta pela terra. Em nossa análise, os colo camos na categoria dos intelec tuais orgânicos, seguindo o conceito dessa categoria oferecido por Gramsci8.

Celmo, um dos agentes de pastoral ligado à CPT, atuante nos acam-pamentos de trabalhadores Sem Terra em Ibema e Tamarana, Paraná, assim se coloca frente à luta cotidiana pela terra: “Se existe um Deus no qual eu acreditei, e eu es tou lutando, então eu estou fazendo o que Deus quer. Se ele não existe, eu fico feliz igual. Porque estou con tribuindo para que as coisas mudem e os outros sejam fe lizes” (In: LEMOS, 2004, p. 124).

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O depoimento desse agente pode ser entendido à luz do pensamento de Derrida (2000), ao afirmar que Kant, para definir a fé que reflete, recorre à lógica de um princípio simples: para nos comportarmos de forma moral, é necessário proceder como se Deus não existisse ou já não estivesse interessado pela nossa salvação.

Pelo que podemos perceber no depoimento do agente acima citado, a falta de certeza sobre a existência de Deus não se configura como um grave problema à sua mística, uma vez que o que ele deseja mesmo são as mudanças, ou seja, a superação do mal radical que traz a infelicidade à população camponesa.

Talvez essa experiência pudesse ser melhor compreendida à luz da referência feita por Derrida (2000, p. 22) ao pensamento de Hegel. Afirma o autor que, para Hegel, a verdade da religião é o saber absoluto. A religião dos tempos modernos será fundada no sentimento de que o próprio Deus morreu. As filosofias dogmáticas e as religiões naturais devem desaparecer, e a mais serena liberdade, em sua mais elevada totalidade, deve ressuscitar da maior dureza, da mais empedernida impiedade, do vazio da mais grave privação de Deus.

O alimento da mística das lutas camponesas é buscado nos textos bíblicos pelos seus protagonistas. Para o agente do meio rural, a palavra bíblica tem no seu contexto um sentido de interpretação do sofrimento e es-perança, a partir do jeito de ser e viver do homem e da mulher pobre e agricultora. Daí a prática das lutas camponesas ser associada ao jeito profé tico dos agentes bíblicos e as suas dimensões de perceber a atuação de Deus na história e na proposta de um novo homem e uma nova mulher, com dignidade e justiça, pois como afirma Antônio, um dos agentes de pastoral “O projeto final que a gente tem como cristão de um novo céu e uma terra deveria come çar por aqui e a luta pela terra é um dos jeitos de concretizar” (LEMOS, 2004, p. 199).

Basicamente podemos perceber, nas respostas, que os/as agentes entendem como sendo a mensagem de sua religião a questão da solidariedade e do apoio às lutas camponesas. Por outro lado, também podemos perceber que o tema da defesa da vida tem um pa pel fundamental nas suas atividades, sendo que o fundamento desta defesa passa pelo direito de acesso à terra, pelo espírito comunitário, pela busca da união.

A afirmação bíblico-teológica de que a terra é de Deus, portanto, é de todos, foi a mais usada pelos agentes de pastoral, para explicitar a mensa-gem da religião na lutas camponesas: “Prá mim começa pela Bíblia, que

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a terra é de todos e Deus não criou a terra para uns enquanto outros não têm o que comer, morar, sobre viver. Eu tenho muito claro que Deus quer a terra para to dos” (PAULO apud LEMOS, 1994, p. 86).

Vimos, portanto, que um dos principais elementos motivadores da prática sócio-religiosa que envol ve o agente de pastoral no meio rural é a palavra bí blica que, segundo eles, tem no seu contexto um sentido de interpretação do sofrimento e esperança, a partir do jeito de ser e viver do homem e da mulher pobre e agricultora. Daí a prática ser associada ao jeito profé tico dos agentes bíblicos e as suas dimensões de perceber a atuação de Deus na história e na proposta de um novo homem e uma nova mulher, com dignidade e justiça.

IDEIAS CONCLUSIVAS

Como entender as lutas camponesas sem ter presente a mística que a sus-tenta? sem perceber o papel importante da memória de todas as lutas anteriores na alimentação das lutas atuais? A memória coletiva, e no caso, a memória que se expressa na mística das lutas camponesas, cons-titui um dos mais poderosos agentes de solidariedade social. Utiliza símbolos cheios de sentido. As recordações evocadas por esses símbolos estão carregadas de afe tividade comunitá ria, são fonte de comunhão psíquica e quase biológica; ofe recem uma explicação, ou pelo menos uma racionali zação da situação atual; por último, propõe lições para o fu turo. É o suficiente para contribuirem para a solidariedade das pessoas envolvidas nas lutas, para chamarem seus membros à participação e para orientá-los na ação individual e coletiva.

Para Derrida (2000, p. 20-8), em relação às diferentes forças de abstração presentes na sociedade, a religião encontra-se ao mesmo tempo no an-tagonismo reativo e na supervalorização reafirmadora. Ela encontra-se onde o saber e a fé, a tecnociência e a crença, o crédito, a fiabilidade, o ato de fé estiveram sempre comprometidos, ou seja, no cerne da aliança de sua oposição. Deste estado, resulta a aporia do sem saída.

No caso da lutas camponesas, vejo que é exatamente aí que se alimenta a esperança de se encontrar uma saída; ou seja, as pessoas que lutam pela terra não desconhecem os riscos que correm (está aí a história dos companheiros para alertá-los para isso); não desconhecem também a desigualdade presente no jogo de forças que marca as lutas (são os que têm e podem tudo contra os materialmente despossuídos); eles

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não ignoram também as contradições presentes nas relações internas de suas organizações, nas competições e lutas pelo poder interno, nas fragilidades humanas de quem está na luta, mas fazem desse conhe-cimento o alimento para se conquistar a superação dessa situação.

RELIGION AND MYSTIC: COMPONENTS OF PEASANT STRUGGLES IN BRAZIL

Abstract: in this article, we study the place and role of religion and mysticism while elements present in struggles of movement of peasant. Our analysis points to idea that religion and mysticism, by their potential to mobilize people in search of improvements to themselves and others, play a leading role in tackling issues, related with social injustices and inequalities. Signs of this role can be perceived in historic of religious presence in peasant struggles by older periods of Brazil history as today. This presence, if realizes both on parts of workers, involved the pastoral peasant wherre they are inserted how leaders or organic intellectuals.

Keywords: Religion. Mysticism. Peasant struggles. No-lands, pastoral agency.

Notas

1 José de Souza Martins. Entrevista no caderno do CEAS, n. 136, p. 10.

2 Lowy (2000, p. 8) afirma que a Teologia da Libertação é muito mais profunda e ampla que uma mera corrente teológica, como muitos a vêem. Para o autor, ela é “um vasto movimento social, que propomos chamar de ‘Cristianismo da Libertação’, com consequências políticas de longo alcance”.

3 Sauer sugeriu essa concepção quando, por minha solicitação, reagiu a este texto.

4 Uma apresentação dos principais movimentos religiosos das tribos indígenas desse período encontra-se em Queiroz (1976, p. 164-216).

5 Para uma melhor compreensão do que sejam movimentos messiânicos, sua caracterização e dinâmica interna, ver Queiroz (1976, p.25-45).

6 Um dossiê detalhado da violência no campo entre 1964 a 1986 encontra-se em: Assassinatos no campo: crime e impunidade (1964-1986). Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra, 1987.

7 Trata-se de pesquisa de campo empírico, realizada em cinco acampamentos de trabalhadores/as Sem Terra, localizados em diferentes municípios do Estado do

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Paraná. A pesquisa foi em forma de entrevistas, com questões abertas. Os sujeitos da pesquisa foram acampados/as que reivindicavam a realização da reforma agrária no Brasil, e agentes de pastoral que atuavam nas áreas ocupadas. O material coletado foi analisado e apresentado em forma de dissertação de mestrado em Ciências da Religião, pela UMESP, em 1994.

8 Gramsci (1985, p. 3) os conceitua como agentes que procuram, de um modo orgânico, dar homogeneidade às organizações populares e consciência aos seus sujeitos de sua função social e polí tica. No caso dos/das agentes de pastorais, como intelectuais orgânicos, atuam junto aos acampados, persua dindo-os a continuarem na luta, buscando uma fundamentação teórica, religiosa ou social para dar compreensão às suas lutas políticas.

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* Recebido em: 16.03.2011. Aprovado em: 30.03.2011.

** Doutora em Ciências Sociais e da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Professora titular na Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Experiente na área de Sociologia, atuando principalmente nos seguintes temas: religião, catolicismo, tradições culturais, gênero e cristianismo.

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EDUARDO RIZZATTI SALOMÃO**

Resumo: durante a Guerra do Contestado (1912-1916) manifestou-se entre a população a crença no advento iminente de uma época de felicidade e fartura. S. Sebastião, mártir cristão venerado pelos habitantes do planalto catarinense, passou a ocupar uma posição estranha à tradição católica: o santo popular não seria apenas o protetor contra a fome e a peste, mas foi o comandante de um Exército celestial. Este artigo discute questões relacionadas à expectativa da realização do milênio e a ressignificação das crenças cristãs e mitos messiânicos presentes no Contestado, tendo como foco o papel exercido pelo mártir S. Sebastião e a sua associação ao messianismo.

Palavras-chave: Guerra do Contestado. Milenarismo. Messianismo.

A região denominada de Contestado corresponde, em linhas gerais, a uma vasta área situada na região serrana do oeste de Santa Catarina. Essa rica e majestosa extensão de terras ao sul do Brasil, outrora recoberta por vastas florestas de araucárias e ervais nativos, vegetação que ainda hoje caracteriza parcela significativa da região, foi disputada entre os estados do Paraná e Santa Catarina. Durante os anos 1912 a 1916, nesse território ocorreu um conflito que a historiografia nacional nomeou de Guerra do Contestado, em alusão direta a designação empregada para se referir à disputa territorial citada. Assim, o Contestado passou para a história como palco de uma guerra cujo nome recorda o litígio entre

SÃO SEBASTIÃO E O MILENARISMO

NA GUERRA DO CONTESTADO

(1912-1916)*

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estados fronteiriços. E, nesse contexto, a miséria da população, a falta de serviços regulares de educação e saúde (serviços raros, à época, no Brasil como um todo), os crimes sem solução, as desapropriações de terras em desfavor dos caboclos, enfim, muitas observações a respeito dos problemas políticos e sociais ressaltaram que essas questões foram agravadas por ter sido o Contestado palco de uma agressiva disputa pela posse da terra, alimentada, sobretudo, pelos desmandos inerentes ao coronelismo.

A interpretação acima esboçada, já incipiente nas primeiras publicações sobre a guerra, a exemplo dos livros dos então tenentes Demerval Peixoto, Campanha do Contestado, e Herculano T. d’Assunção, A Campanha do Contestado, valorizou uma percepção que atribuía à ausência da ação do estado, como regulador das relações de poder e provedor da educação regular, a razão dos conflitos sociais ocorridos no sertão brasileiros. Supunha-se, assim, que essa “ausência” dera margem para que chefes locais impusessem a sua vontade e promovessem a violência. E nesses desmandos muitos autores vislumbraram a razão ou “causa” da eclosão da guerra. Mas, naquilo que é pertinente ao presente estudo, interessa saber que, para os partidários dessa interpretação, a manifestação de crenças religiosas no contexto dos conflitos sociais, como ocorrido em Canudos e no Contestado, nada mais seriam do que um veículo de expressão da insatisfação da população.

Sobre essa questão, é interessante salientar que, posteriormente, pesquisa-dores de inspiração marxista, como Rui Facó, autor de Cangaceiros e fanáticos, não discordaram, substancialmente, dessa conclusão, tão cara aos pensadores de formação positivista. É certo que as reflexões promovidas pela corrente de pensamento marxista empreenderam aná-lises diversas, as quais envolveram aspectos relacionados à organização social/consciência de classe e das relações de opressão promovidas pelo estado. Mas, de tudo o que se discutiu e das contribuições oferecidas, essa percepção do estudo dos movimentos sociais igualmente julgou que a manifestação da religiosidade dos envolvidos nesses conflitos foi tão somente expressão da rebeldia de um grupo que, diante da opressão, não percebeu outro caminho para externar sua indignação e revolta. Faltava, pois, um guia a direcionar as energias revolucio-nárias desencadeadas, uma espécie de “Partidão” com o propósito de conscientizar as massas oprimidas. Por fim, tal percepção mecanicista e limitada das relações humanas terminou por direcionar um olhar

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desconfiado, quando não reprovador, às produções daqueles que va-lorizavam a religião com legítimo objeto de análise; produções que não raro foram taxadas de fruto de uma tendência mistificadora em ciências sociais.

Voltando à denominação da Guerra do Contestado, chama a atenção que essa terminologia não foi comumente empregada ou aceita entre aqueles que combateram as forças do governo federal e estadual de ambos os estados. Para a maioria da população em armas, nomeada pela imprensa e pelos militares de “fanáticos”, o conflito em curso foi interpretado como um evento há muito esperado, pois, conforme era crença corrente, havia sido vaticinado pelo monge João Maria, e anunciado para breve e nomeado pelo seu seguidor ou irmão, o mon-ge José Maria. Tratava-se da “Guerra de São Sebastião”, evento que inauguraria uma era de fartura e felicidade, e cujo império da “lei de Deus” e a monarquia seriam restabelecidos, dando fim aos sofrimentos da população serrana.

O presente artigo tem por objetivo discutir o papel exercido por S. Sebas-tião no Contestado, onde questões relacionadas às manifestações da religiosidade e a expectativa da realização do milênio serão abordadas. Nesse sentido, o estudo da devoção ao mártir conduziu a reflexão sobre a provável associação desse santo popular com o mito sebastianista (o retorno do rei D. Sebastião) e com a legenda carolíngia (os feitos do rei Carlos Magno e os Pares de França), passando, a seguir, por uma discussão sobre a interpenetração de crenças na região, questão que aborda a escatologia cristã e o messianismo-régio.

Para alcançar o objetivo proposto, será apresentada a narrativa atribuída ao martírio de S. Sebastião, e a devoção a ele destinada, de forma a propiciar a elaboração de conjecturas sobre o papel assumido pelo santo no imaginário da população local. Antecedendo esse momen-to, apresentam-se algumas considerações sobre as conceituações que dão o suporte teórico da pesquisa em curso. Ressalta-se que aqui se limitou, intencionalmente, a discussão conceitual a um rol de termos considerados essenciais para este artigo: imaginário, representação, mito e cultura.

Sobre o imaginário, contou-se com as reflexões de Bronislaw Baczko, para quem os imaginários sociais são referenciais do sistema simbólico de uma comunidade, elaborados num processo de representação desta comunidade sobre si mesma, constituindo a sua referência e

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a sua identidade. O autor afirma que as funções sociais e as crenças comuns, entre outros exemplos, fixam modelos comportamentais, marcando a identidade coletiva e, consequentemente, delimitando o seu território e as suas fronteiras (BACZKO, 1991, p. 28). Ainda a esse respeito, consultou-se Cornelius Castoriadis, para quem o imaginário “É criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens” e “Aquilo que denominamos ‘realidade’ e ‘racionalidade’ são seus produtos” (CASTORIADIS, 2007, p. 13).

A definição de imaginário envolve também a compreensão da noção de representação. A respeito desse conceito, Roger Chartier pensa sobre o modo como uma determinada realidade é dada a ler, nos diferentes momentos históricos, discutindo a sua construção e significação. Segundo o autor, as representações do mundo social são produzidas a partir das disposições estáveis e partilhadas, próprias de determinado grupo. O chamado processo de produção de significados é historica-mente construído, numa relação que envolve esquemas culturais que variam de acordo com os grupos sociais e com os meios intelectuais que os agentes envolvidos pertencem. Pesa, na constituição dos signifi-cados, configurações intelectuais múltiplas, numa realidade que reflete “esquemas intelectuais incorporados” e que “criam figuras através das quais o mundo ganha sentido” (CHARTIER, 1990, p. 19).

O imaginário, portanto, nada tem de mistificação ou delírio. Trata-se de con-dição inerente ao ser humano e ao seu posicionamento em dado meio social. A instituição religiosa tem papel fundamental na mediação da interpretação dos símbolos que estruturam uma sociedade. Os símbolos religiosos, abordados de acordo com a ortodoxia da religião instituída, apresentam-se como instrumentos de regramento e enquadramento dos membros de uma comunidade. Obviamente, isso não significa que todos os membros da comunidade assimilem esse regramento. Mas a religiosidade e as suas manifestações, oferecendo interpretações não raro destoantes do proposto pela instituição mediadora – quando não totalmente discrepantes dessa, e assim em conflito aberto com a ortodoxia – igualmente exercem papel norteador numa comunidade, acomodando seus membros às regras convencionadas, dando sentido às suas ações, bem como alimentando expectativas por vezes surpre-endentes aos olhos do observador não afeito a diversidade com que a sacralidade por incontáveis vezes se apresenta.

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Para a população envolvida com a guerra teve relevância o mito do Exército de S. Sebastião e a sua intervenção no reordenamento social. Esse mito fundamentou-se na certeza de que uma intervenção sobrenatural ocor-reria na história. Deve-se, para se compreender esse fenômeno, compre-ender que para os devotos uma crença ou mito não é algo quimérico, uma fantasia ou ilusão. Pois se trata, para aqueles que compartilham da mesma expectativa e valores, de uma verdade, porque se refere ao que é compreendido como uma realidade ou fato, como definiu Eliade ao conceituar mito (ELIADE, 2006, p. 12). Joseph Campbell vai mais longe, afirmando que “Não seria demais considerar o mito a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas” (CAMPBELL, 2007, p. 15). Nessa oportunidade não se aprofundará a reflexão sobre as funções dos mitos e crenças, uma vez que a definição proposta por Eliade é satisfatória para propósito deste artigo: o mito aqui abordado, portanto, é aquele compreendido pelos devotos como anunciando um evento histórico (um “fato”). Trata-se de intrigante manifestação da cultura; e que nada tem de inatual, uma vez que milhares de pessoas no ocidente partilham da expectativa de que Jesus Cristo intercederá na História por uma segunda vez. Seguindo a definição weberiana do antropólogo Clifford Geertz, as manifestações culturais encerram múltiplos símbolos e significados, os quais se constituem de teias elaboradas pelo homem, formando um complexo emaranhado (GEERTZ, 1987, p. 4). E nesse emaranhado encontra-se o fenômeno religioso aqui estudado; sendo essa é a definição de cultura assumida neste artigo.

Abordar a narrativa do martírio de S. Sebastião remete a um mergulho no imaginário cristão, rico em fabulações sobre a vida dos santos e mártires, homens e mulheres apresentados como portadores de um signo que os destinava a indicar o caminho da salvação, testificando a grandeza e a sabedoria divinas. Em nome da fé, esses personagens teriam suportado as provações mais terríveis, encontrando na dor, na fome e na humilhação em nome de Cristo o caminho da salvação.

Aqui não se tem o propósito de apresentar qualquer juízo sobre a fundamentação histórica das hagiografias ou do martirológio cristão. As biografias da vida e obra dos santos e mártires são forçosamente elogiosas; são, em síntese, narrativas trabalhadas por mãos e mentes guiadas pela fé, e tem por propósito servir de guia àqueles que aspiram à salvação inspirada nas crenças e valores da cristandade. Sabe-se que o culto aos santos

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nasceu da cerimônia de culto aos mártires, no séc. II (DELUMEAU, 2000, p. 291). Entretanto, nem todos os mártires passaram a gozar da prerrogativa oficial de santo nos termos definidos pela ortodoxia Católica. S. Sebastião, por exemplo, não foi canonizado, mas a devoção popular o elevou a condição de santo, e assim é tratado em orações e inúmeras festividades. A fonte principal sobre a obra do mártir é a Legenda Áurea, elaborada pelo dominicano Jacopo de Varazze, no séc. XIII. Mas, considerando as adições à narrativa oficial, já incorporadas na tradição popular brasileira, optou-se também por empregar neste trabalho publicações diversas sobre a vida e obra de S. Sebastião.

Acredita-se que S. Sebastião foi assassinado em 20 de janeiro de 288, em Roma. Na atualidade, autores diversos o reconhecem como padroeiro dos atletas, presidiários e soldados. Tradicionalmente, a sua proteção é evocada para deter as guerras, a fome e as epidemias. No candomblé há referências de sua associação a Oxossi, divindade guerreira que o sincretismo religioso relaciona na Bahia a S. Jorge. O rei português D. Sebastião, nascido em 20 de janeiro, foi batizado em homenagem ao mártir, que passou a ser o seu protetor pessoal. E, por essa condição, D. Sebastião teria recebido do papa Gregório XIII uma das setas do martírio. Mas, a relação entre os dois personagens homônimos, após a mal fadada aventura do rei português na África, tornou-se ainda mais estreita e significativa, como será visto adiante.

S. Sebastião teria nascido em Narbona, cidade localizada na Gália (França), ou na italiana Milão, em meados do séc. III. Cedo ficou órfão de pai. A família encontrava-se na Itália, à época em que o imperador Diocle-ciano promulgou um edito determinando a perseguição aos cristãos. Sebastião teria recebido os primeiros ensinamentos religiosos de sua mãe, e desde moço revelara o seu entusiasmo pela fé, o que o motivou a residir em Roma, com o objetivo de auxiliar os cristãos perseguidos. Na capital do Império alistou-se na milícia, e cedo se destacou como um soldado exemplar. Ingressando na Guarda Pretoriana, suas qua-lidades de líder e, de acordo com Baroni, a “rara beleza e maneiras atraentes” chamaram a atenção do Imperador (BARONI, 1940, p. 22). Não tardou e Sebastião foi elevado ao posto de comandante da sua unidade militar.

As obras atribuídas a Sebastião incluem exortações, conversões, curas e milagres, tudo realizado em oculto, pois, para prosseguir em sua missão, o mártir teria optado por ocultar a sua fé dos chefes roma-

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nos, de forma a conservar o posto e a possibilidade de interceder em favor dos perseguidos. A tradição afirma que, por ação do mártir, os irmãos Marco e Marceliano – nobres romanos, cujos genitores, esposas e filhos eram pagãos - não abjuraram a fé cristã, mesmo diante dos castigos impostos na prisão aos que se recusassem a prestar culto aos deuses do panteão imperial. O mártir também teria sido visto envolto num “esplendor celeste” e assistido por “um anjo” em várias ocasiões. Conta-se que Zoé, esposa do chanceler romano Nicostrato, na presença de Sebastião teria vislumbrado um anjo radiante, acontecimento que a teria curado da mudez. E por obra do milagre, o chanceler teria mandado soltar os gêmeos Marco e Marcelino e decido converter-se ao cristianismo. Após essas primeiras ações a lista de convertidos por obra de Sebastião se ampliaria de forma notável. Nela se inclui a conversão dos pais dos gêmeos citados, diversos amigos daqueles, um irmão do chanceler Nicostrato, o carcereiro de uma prisão romana e respectiva família e diversas pessoas envolvidas nos dois episódios anteriores, totalizando 68 “almas”. Sebastião também teria convertido o prefeito de Roma, que após ouvir as prédicas do mártir, e aceitar destruir os ídolos dispostos em sua residência, foi curado de um mal que o afligia havia anos. E dessa conversão não só teria resultado o afastamento voluntário do prefeito de suas funções, como a impres-sionante conversão de toda a sua família e servos, totalizando 1.400 pessoas (BARONI, 1940, p. 29-37).

Entretanto, diante dos seus feitos, não tardou para o imperador ser informado de que o militar a serviço de Roma era cristão, e como tal, renegava os deuses do panteão. Furioso, Diocleciano teria convocado o capitão a sua presença e o interrogado. Sebastião não só teria confirmado prontamente a condição de cristão, como teria ainda explicitado as suas razões e exortado o imperador a segui-lo. Insensível a pregação, Diocleciano decidiu sacrificá-lo como um exemplo para aqueles que persistiam em renegar os deuses romanos, e ordenou que fosse aplicado o castigo destinado a um traidor.

A tradição afirma que para cumprir as ordens do imperador foram convoca-dos os arqueiros da “Numídia”, famosos pela sua destreza no manejo do arco e da flecha. A ordem era amarrar o capitão Sebastião a um Loureiro no bosque de Apolo, e crivar o seu corpo de setas. Mas, no cumprimento dessa sentença deveria ser observada a imposição de uma morte lenta e o mais dolorosa possível.

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O soldado estava nu. Roupas e pertences espalhavam-se no chão: um manto purpúreo, um elmo, sandálias, um saiote, insígnias de prata e uma faca de punho de osso. Amarraram-lhe os braços atrás da cabeça, junto ao tronco de uma árvore. Afastaram-se. Eram nove arqueiros escuros e altos, com arcos que os superavam em altura. As aljavas às suas costas levavam setas de afiadas pontas de ferro.Colocaram-se em posição. Esticaram os arcos. A primeira seta zuniu no ar e foi enterrar-se no corpo do soldado. Outras vieram, certeiras. Mas Sebastião não emitia uma única palavra. Mantinha os olhos fechados. E, a cada estocada, tremiam-lhe de leve as pálpebras (MACCA; ALMEIDA, 2003, p. 9).

Cumprida a ordem, o corpo de Sebastião “tão coberto por flechas que parecia um porco-espinho” (VARAZZE, 2006, p.181) foi entregue a uma cristã chamada Irene. Porém, durante os preparativos para o sepultamento, percebeu-se que o coração do mártir ainda palpitava. Após alguns dias, o jovem estava recuperado, e contrariando o conselho dos amigos, decidiu enfrentar o imperador mais uma vez. Era o dia 20 de janeiro, ocasião em que se realizavam cerimônias de culto a deuses pagãos. No transcorrer das celebrações realizou-se uma audiência pública. Nessa ocasião, teria surgido Sebastião em tom desafiador, admoestando Diocleciano a se arrepender de seus atos bárbaros. Num primeiro momento, o imperador teria ficado atordoado com a presença do ex-comandante da guarda, mas, passado o efeito da surpresa, ordenou que Sebastião fosse espancado até a morte. No entanto, não satisfeito com a aplicação da pena, Diocleciano decidiu impor ao capitão uma última humilhação: seu corpo deveria ser tratado como dejeto, e re-metido à cloaca maxima. Enviado à fossa imunda, o corpo do mártir teria sido encontrado por uma matrona romana que lhe providenciou um sepultamento digno, permitindo que os cristãos o cultuassem secretamente (BARONI, 1940, p. 58-62).

A narrativa apresentada resume o martírio, e por que não dizer a hagiografia de S. Sebastião, com a ressalva de que se trata de santo aceito pela convenção popular. Nela encontra-se a máxima de que todo o sofri-mento em nome do Senhor se reverterá em benefício para o crente. A dor e a humilhação nada seriam se comparadas ao galardão do céu. Não é uma memória que se descortina, é um conto moral-religioso destinado a corroborar as lições da fé. Observa-se que narrativa de-

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fine um modelo de herói-cristão, oferecendo ao crente um exemplo de vida inspirado nos valores da cristandade, desvelando uma função eminentemente pedagógica.

O certo é que S. Sebastião tornou-se um dos mártires mais célebres, cuja fama espalhou-se de Roma para toda a cristandade. As relíquias do mártir teriam sido depositadas na basílica do Vaticano, por ordem do papa Gregório IX (827-844) e, posteriormente, dispersas para outros lugares sacros (GEPB, [1990], p. 24). A sua invocação para combater a peste caracterizou uma de suas especialidades, sendo manifestada na Idade Média e Moderna. Ao mártir atribui-se cessar epidemias e realizar curas, observando-se o fenômeno em Roma, em 680; Cápua, em 1500; Milão, em 1575; Lisboa, em 1599-1570; Ebersberg, Alemanha, em 1601-1602; e na Espanha a devoção ao santo é registrada a partir do séc. VII. É relevante observar que em Portugal, as chamadas “Cons-tituições Diocesanas do Porto”, datadas de 1687, determinavam que se realizassem nas freguesias uma procissão em louvor de S. Sebastião (GEPB, [1990], p. 24-5).

No Brasil S. Sebastião se distinguiu entre muitos santos populares desde o período colonial. Mas, o que mais chama a atenção, é que a associação do mártir com o rei português D. Sebastião não foi algo incomum. Como já citado, tudo começa quando o rei, nascido em 20 de janeiro de 1554, foi batizado de Sebastião em homenagem ao mártir, considerado seu protetor pessoal. Durante o reinado de D. Sebastião, procissões em 20 de janeiro foram instituídas, não sendo certo se eram em alusão ao nascimento do rei ou em agradecimento da intervenção de S. Sebastião contra a peste da 1569-1570 (GEPB, [1990], p. 25). Seja qual for a resposta adequada à esta questão, certamente a relação entre o rei e o santo não deixaram de ser observadas, posto que qualquer homenagem ao mártir em 20 de janeiro não deixava de ter relação com o nascimento do monarca. Ungido e protetor teriam, em Portugal, estreita relação, a qual não cessaria mesmo após a morte do rei.

Conta-se, ainda, que S. Sebastião foi “visto” lutando ao lado das forças portu-guesas que enfrentaram os franceses e os tamoios no Rio de Janeiro, no séc. XVI. É provável que a função de protetor dos soldados influenciou a narrativa atribuída a esse episódio. O reinado de D. Sebastião, por sua vez, não deixou de ter seu peso nessa construção, observado que a devoção ao mártir, protetor do rei, ganhara projeção nesse período. Mas, por fim, em alusão aquele evento, o mártir, protetor do rei, tornou-se então o protetor da cidade recém fundada, sendo nomeado

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de S. Sebastião do Rio de Janeiro (CASCUDO, 1985, p. 403). Após o “desaparecimento” do rei português nas areias de Alcácer-Quibir, no Marrocos, em 1578, a relação entre os dois personagens homônimos ganhou novas dimensões.

No Brasil colônia houve o registro de uma relevante associação entre o mártir e o rei. No dia 20 de janeiro de 1634, na igreja de Acupe, na Bahia, o padre Antônio Vieira proferiu o “Sermão de São Sebastião”. Nele, Vieira discorreu sobre as qualidades do mártir e o associou, por meio de metáforas, ao rei D. Sebastião:

Primeiramente foi S. Sebastião o encoberto, porque encobriu a realidade da vida debaixo da opinião da morte. São palavras formaes do Texto ecle-siastico da sua historia: Quem omnium opinione mortuum, noctu sancta mulier Irene sepeliendi gratia jusit auferri; sed vivum repertur domi suae auravit; et paulò post confirmata valetudine. Óh milagre! Óh maravilha da Providencia divina! Na opinião de todos era Sebastião morto: omnium opinone mortuum; mas na verdade e na realidade estava Sebastião vivo: vivum repertum (GODOY, 2005, p. 115).

Para Vieira, ambos, rei e santo, sofreram o martírio destinado àqueles que advogam à causa de Cristo, e nada mais lógico do que estender a correspondência entre os personagens homônimos para o campo da expectativa da intervenção de um preposto de Deus na História. A associação subentendida destinou-se a uma evidente pregação sebas-tianista, e atendeu ao contexto da luta pela restauração portuguesa que culminou com a ascensão ao trono de D. João IV. Assim, S. Sebastião, santo popular presente na ação catequética dos jesuítas, converteu-se num veículo para a pregação da restauração. Protetor do rei, o mártir S. Sebastião, mediante o discurso de Vieira, permanecia a cumprir desígnio semelhante ao ser citado em nome de uma causa cara aos portugueses.

Lançando o olhar sob o Brasil contemporâneo, verifica-se que S. Sebastião é o santo padroeiro de inúmeras cidades, e não são poucas as pessoas batizadas em sua homenagem. A Grande Enciclopédia Delta Larousse, edição de 1973, registra que mais de 150 paróquias foram nomeadas em sua homenagem (GEDL, 1973, p. 6222). O mártir também é cantado em versos populares e é tema da literatura de cordel. Folias são organizadas em sua devoção, e não raro a sua imagem é vista em

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festividades várias, entre elas a Festa do Divino. Das orações que lhe são dirigidas, uma o nomeia de “Santo Guerreiro”, valorizando o seu caráter combativo:

Ó, glorioso São Sebastião,Com a formosura corporalAtraístes a vós os olhos de muitos,Mas com as virtudes da almaRoubastes os corações de todos,Ó Santo GuerreiroQue enfrentou o tormento das flechas,Dai-nos a graçaDa alegriaE da serenidadeEm meio aos enganos da vida.Por Cristo, Nosso Senhor,Amém (MACCA; ALMEIDA, 2003, p. 33).

Na região serrana do estado de Santa Catarina, onde se desenrolou a Guerra do Contestado, S. Sebastião foi um dos santos mais festejados. Era intitulado de “patrono do sertão”, motivo pelo qual a quase totalidade das capelas do interior eram a ele dedicadas (QUEIROZ, 1957, p. 91; 99). A festa em seu louvor era organizada na semana correspondente ao dia 20 de janeiro, na localidade de Taquaruçu, distrito de S. Sebastião das Perdizes Grandes, no município de Curitibanos. Essa festividade, a semelhança da Festa do Divino (a qual também era comemorada em Taquaruçu), incluía novenas, música, leilões, jogos, cavalhada, fogos de artifício, procissões e baile, o que ratifica o prestígio do mártir entre os habitantes da região (QUEIROZ, 1957, p. 92). E foi justamente no conflito que a historiografia nacional convencionou chamar de Guerra do Contestado, que S. Sebastião reassumiu o papel exercido na Antiguidade romana: o de chefe militar. No Contestado, Sebastião não seria apenas o protetor contra as guerras e as epidemias, mas o comandante de um Exército celestial ou encantado, destinado a restaurar a monarquia e inaugurar uma época de fartura e felicidade.

Em meados de 1910, surgiu nos arredores do município catarinense de Campos Novos um peregrino conhecido pelo nome de José Maria. Em face das qualidades de curandeiro e profeta, esse personagem não

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tardou a ficar famoso e ser identificado por algumas pessoas como um “irmão” de S. João Maria (peregrino, curandeiro e profeta estimado na região, e então “desaparecido”), recebendo, a semelhança daquele, a alcunha de monge. Ressalta-se que o termo “monge”, no caso em estudo, não se refere ao seguidor de uma regra monástica, sendo aqui a alcunha atribuída pela população local aos andarilhos que se dedi-cavam a erigir cruzeiros, pregar e curar.

José Maria foi convidado para participar dos concorridos festejos de Taquaruçu alusivos a Festa do Divino. Durante a permanência em Taquaruçu, José Maria organizou uma guarda de honra intitulada de Pares de França, inspirando-se na História do Imperador Carlos Magno, livro que Câmara Cascudo observou tratar-se de um dos mais conhecidos da população do interior do Brasil (CASCUDO, 1953, p. 441). Sobre o assunto, Vinhas de Queiroz observou que os Pares de França também podem ter sido inspirados na tradição das cava-lhadas, que encenavam batalhas entre mouros e cristãos (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 85). Nada nos impede de conjecturar que os festejos realizados em Taquaruçu até a eclosão da guerra tenham, a semelhança da festas dedicadas ao Divino no interior do Brasil, sido palco de elaboradas encenações das façanhas atribuídas aos Pares de França. Curioso que a guarda de elite do monge seria composta não pelos 12 cavaleiros da legenda carolíngia (número que nos recorda os apóstolos de Cristo e as tribos de Israel), mas por um total de 24 pares; o que talvez tenha sido um erro de interpretação, por parte do monge ou de algum adepto (CABRAL, 1960, p. 181) ou tenha sido fruto de mera adaptação efetuada nos festejos então promovidos. O que se sabe é que concluído os festejos, muitas famílias, agindo de forma contrária ao costume, optaram por permanecer em Taquaruçu, acontecimento que despertou no potentado local, o coronel Albuquerque, o receio de que esse grupo fosse empregado contra ele pelos seus adversários, os quais eram, de fato, próximos ao monge.

E foi justamente devido a proximidade com o grupo político opositor ao coronel Albuquerque, e da acusação de que reunia em torno de si um grupo armado, que José Maria se viu obrigado a buscar refugio em território paranaense, deslocando-se para a região do Faxinal do Irani, então pertencente ao município de Palmas - PR. Nessa ocasião, atribui-se ao monge a primeira referência à guerra que adviria. Alfredo de O. Lemos, redator de importante depoimento sobre o conflito, afirma

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que “José Maria resolveu retirar-se dizendo que fossem para suas casas, que ele ia começar a guerra de São Sebastião” (LEMOS, [1990], p. 18). E o vaticínio proferido seria:

Eu vou começar a guerra de São Sebastião em Irani com meus homens que lá me esperam; mas olhe Eusébio, marque bem o dia de hoje, no primeiro combate, sei que morro, mas no dia em que completar um ano, me esperem aqui em Taquaruçu, que eu venho com o grande exército de São Sebastião (LEMOS, [1990], p. 18).

É impossível ler essa afirmação e ignorar a semelhança com o mito sebastianista que, ao advogar o retorno do rei D. Sebastião alude à manifestação de um Exército encantado. No Brasil, além da pregação do padre Vieira, verifica-se a presença do sebastianismo no séc. XIX, na Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Mas especificamente a crença na manifestação de um Exército encantado eclodiu e ganhou adeptos fervorosos em Pernambuco, quando dos movimentos sebastia-nistas da “Cidade do Paraíso Terrestre” (1817-1820) e “Pedra Bonita” ou “Reino Encantado” (1836-38).

Não se sabe se o monge José Maria conhecia o sebastianismo, ou se o mesmo era professado entre aqueles que integraram a sua comitiva. O que foi relatado é que em face da presença do monge e de numeroso séquito em território paranaense, as autoridades desse estado julgaram que o avanço de um grupo armado, encabeçado por uma líder com ares de messias, mais se assemelhava a uma investida armada; ação que sugeria relação com a disputa territorial com Santa Catarina. É notório que a presença de um grupo armado proveniente do estado vizinho não era incomum à época, pois muitos partidários da causa, de um lado ou outro, adentravam o território em litígio, nele estabelecendo co-brança de impostos, grilando terras, entre outros expedientes ilegais. E, frequentemente, esses desmandos eram praticados igualmente por autoridades que representavam os estados litigantes. A tensão existente, em face da situação conflituosa, contribuiu para a atitude intolerante do governo paranaense, uma vez que logo que soube da notícia da presença do séquito de José Maria, decidiu enviar uma força policial ao encalço dos supostos invasores.

No dia 22 de outubro de 1912 ocorreu o encontro entre a força estadual e os seguidores de José Maria, resultando na morte do monge e do co-

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mandante da tropa. Surpreendidos pelo desastre, uma vez que a força policial foi desarticulada, julgou-se que José Maria contava com um efetivo bem armado, consideração que alarmou o governo paranaen-se, o qual não tardou para solicitar apoio de tropas federais e exigir providências do governo catarinense. Posteriormente, verificou-se que o desastre ocorreu mais por imprudência dos militares, do que por estarem diante de um inimigo bem equipado.

Porém, para aqueles que esperavam que o desastre no Irani ao menos silen-ciasse os seguidores de José Maria, a surpresa foi ainda maior. Para alguns dos adeptos o monge não teria de fato morrido, pois após o combate fora visto “fugindo pelas nuvens num cavalo” (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 104). Outros aguardavam a ressurreição do monge, e por isso o seu corpo foi enterrado superficialmente e coberto com tábuas (idem, ibid.). Um oficial do Exército, o tenente farmacêutico Luiz Ferrante, foi enviado ao local após o combate, com a missão de investigar o ocorrido, e afirmou que era crença corrente de que os seguidores do monge “acreditavam que os fanáticos mortos em combate ressuscitariam”. (Depoimento de Luiz Ferrante) (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 109).

Assunção, outro cronista da época, recolheu de um informante uma profecia atribuída a José Maria, em que se afirma que o monge aguardava a luta e previa a sua ressurreição.

Si eu morrer, resuscitarei e trarei força de Cavallaria dos Céos para matar todos os peludos e todos os que não forem da lei da Monarchia; os irmãos que morrerem resuscitarão e poderão brigar com dez soldados da Republica e hão de vencer! (ASSUNÇÃO, 1917, p. 225).

Este vaticínio vai ao encontro do coletado por Lemos sobre o Exército de S. Sebastião e a ressurreição do monge. Note-se que a ressurreição não seria apenas do monge, mas de todos os “fanáticos” mortos em combate. E durante a rebelião, observou-se que “Nos combates, os velhos entravam com prazer, pois entre eles era crença arraigada de que ressuscitariam jovens, junto ao monge José Maria. (ASSUN-ÇÃO, 1917, p. 79). Verifica-se que logo após o ocorrido em Irani, a população local e, em particular, os adeptos do monge, interpretaram o massacre como a confirmação dos vaticínios então ouvidos, que, em síntese, alardeavam que a Guerra de S. Sebastião era iminente, e

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não tardaria para que José Maria retornasse integrando as fileiras do Exército encantado.

Em outubro de 1913 numerosas famílias de fato rumaram para Taquaruçu, aguardando ansiosamente o retorno do monge e o início da guerra. Alarmado, o coronel Albuquerque recorreu ao governador de Santa Catarina. A polícia foi mobilizada e solicitada a intervenção do Exér-cito. Os rumores de que um novo Canudos estaria sendo erguida no sul do Brasil atemorizou o governo federal. Taquaruçu foi atacada em 31 de dezembro de 1913. A primeira investida resultou em fracasso total, e serviu para exaltar por completo os devotos, bem como foi o pretexto explorado para que o governo federal mobilizasse tropas em maior escala, sob o argumento de que não se poderia tolerar a repetição da longa e extenuante campanha militar em Canudos. Novo ataque foi desencadeado em 8 de fevereiro de 1914; e, agora contando com efetivos maiores e artilharia pesada, as tropas massacraram o povoado, espalhando o terror entre a população serrana.

Esse acontecimento, longe de arrefecer o ânimo dos seguidores de José Maria, reforçou a crença de que a Guerra de S. Sebastião era um fato evidente e em curso. Novos contingentes populacionais se reuniram aos primeiros rebeldes, inúmeros povoados, nomeados pelas forças repressoras de “redutos”, foram constituídos. O movimento, outrora localizado em Taquaruçu, terminou por se transformar numa rebelião que percorreu uma área de mais de 25 mil quilômetros quadrados, e que se estenderia até meados de 1916, custando a vida de milhares de pessoas.

Registros sobre essa prolongada guerra revelam fragmentos de crenças mes-siânicas e milenaristas. E é relevante que a referências ao Exército de S. Sebastião e a ressurreição de José Maria não foram as únicas manifestações da religiosidade a se fazer ouvir. Alusões a uma guerra que duraria mil anos, ao rei Carlos Magno, a ressurreição dos devotos, ao poder de sortilégios e patuás, entre diversas outras expressões do sagrado marcaram os discursos dos “fanáticos”.

Vinhas de Queiroz foi um dos pesquisadores que colheu depoimentos que revelam aspectos referentes à crença no Exército celestial ou encan-tado e que nomeiam lideranças rebeldes como pregadoras de uma mensagem milenarista que incluiu referências a gesta carolíngia. Um depoente por ele entrevistado afirmou que líderes “diziam que ia fazer mil anos da Guerra de Carlos Magno” (Depoimento de Clementino)

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(VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 111). E nas orações protetores encontradas com membros dos Pares de França encontra-se referência a personagens e símbolos cristãos, bem como a uma espécie de fórmula protetora, que invocava proteção ao usuário da súplica. S. Sebastião é o personagem mais destacado, seguindo-se referências a hóstia, a Cristo, a Deus, a Virgem Maria, além de anjos e o Espírito Santo. Um exemplo dessas orações é a encontrada na guia de Jerônimo Antonio Pereira, e recolhida por Assunção (1917, p. 79):

Espada luserna! Aqui está o apostollado Joronymo Antonio Pereira, o bello cavalleiro de São Sebastião! Quem atirar no seu corpo atira na ostia consagrada porque entre a porvora e a espuleta Jesuis Cristo feis morada. Deus adiante, paz na guia de Jenonymo Antonio Pereira. Encomendo a Deus e a Virgem Maria que seu corpo não seja prezo e nem atado e nem do demonio atentado e seja guardado por São Silvestre com 47 Anjos 7 québra pédra 7 québra férro e as armas e faca que apontarem no seu corpo na agua ficará e os ferros que apontarem em pedaço ficará. Os seus inimigos conhecerão que Deus é Vivo. Pater, Filho, Espirito santo. Pela Ostia Consagrada. Amem Jesuis. B+H+B+D+M+++ Bento + Vétos + Nonéto + Sibus + Binonéto + Jesuis + Maria + Jusé +.

Sabe-se que Jerônimo Pereira foi ajudante-geral do comandante do reduto de Santa Maria e famoso Par de França. Além dessa oração que invoca proteção para o usuário, entre os pertences dessa liderança cabocla foi encontrada uma prédica intitulada “Oração de S. Salvador do Mun-do”, a qual faz referência a Carlos Magno: “Todas as pessoas muito se ademiram do grande milagre e o Rei dos 12 pares de França mandou descrever com palavras do Santo Evangelho” (ASSUNÇÃO, 1917, p. 306). Outra oração, coletada por Demerval Peixoto, igualmente nomeia um Par de França como cavaleiro de S. Sebastião e repete, em linhas gerais, os dizeres e a fórmula da oração anterior: “Espada eletrica per-tence a Antonio de Sousa nobre cavaleiro de São Sebastião em nome de Santo João Maria quem atira no meu corpo atira na hóstia consagrada” (PEIXOTO, 1916, p. 64). E citado por um jornal, tem-se outra súplica que cita S. Sebastião (aqui nomeado “Bastião”), nos moldes das orações já citadas: “Espada elétrica, pertence ao apóstolo de Bastião Roberto Serafim de Oliveira, nobre cavalheiro de bastião, quem atirar no meu corpo atira na hóstia consagrada” (Jornal A Notícia, de 23 de maio de

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1914, cf. ESPIG, 1998, p. 151). Mas, afinal, que personagem seria o Sebastião apresentado nas evocações protetoras? Percebe-se que o destaque ao mártir (ou rei) evidencia uma devoção muito particular, e que confirma ser ele consagrado entre os Pares de França.

Maria I. P. de Queiroz, ao discorrer sobre o sebastianismo no Brasil, apresentou a hipótese de que no Contestado estaríamos diante da deturpação do nome da imagem: “Uma letra truncada teria determinado a passagem de D. Sebastião para S. Sebastião” (QUEIROZ, dez./93-fev./94, p. 39). E assim, talvez a questão estivesse relacionada à pronúncia incorreta de um pronome de tratamento. Certamente, os paralelos entre a de-voção ao mártir e o sebastianismo manifesto em Pernambuco, levam a questionar se ao pronunciarem e escreverem S. Sebastião não estariam, os caboclos, de fato referindo-se ao rei português desaparecido nas areias do Marrocos.

Maurício V. de Queiroz observou essa questão e sugeriu que a condição de santo guerreiro protetor contra a fome e a peste, e sua posição de padroeiro do Sertão, seriam as raízes para a escolha de S. Sebastião como comandante de um Exército. Vinhas de Queiroz não aprofundou essa discussão, mas concluiu admitindo que o problema apresentava outros desdobramentos, propondo que não seria incoerente supor que se tratasse de uma nova manifestação do sebastianismo no Brasil (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 109).

Márcia J. Espig, em dissertação de mestrado sobre a gesta carolíngia no Contestado, também observou a relação entre S. Sebastião e D. Se-bastião. Comentando as reflexões de Maria Isaura, Espig afirmou que a possibilidade de estarmos diante de uma “letra truncada” é uma hipótese alicerçada em base frágil, pois desconsidera as peculiaridades do culto ao mártir e sua posição de destaque, não se podendo afirmar que D. Sebastião estaria revestido do nome do mártir cristão (ESPIG, 1998, p. 91-2).

Estudando o problema durante a coleta de documentos para o doutoramente deste pesquisador, verificou-se farta informação sobre S. Sebastião nas fontes sobre a Guerra do Contestado. O relatório de combate da força de ataque ao reduto de Santa Maria, redigida pelo capitão do Exército Tertuliano Potyguara, no item “Diversos artigos arrecadados” cita “4 bíblias sagradas, grande quantidade de santos de madeira de todos os tamanhos e feitios, sendo o maior número de São Sebastião” (POTYGUARA, 1914, cf. Acervo AHEx). Peixoto confirma esse dado,

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e informa que no reduto de Santa Maria havia uma capelinha onde eram recolhidas as imagens dos santos, destacando-se a de S. Sebastião “do tamanho de um adulto” (PEIXOTO, 1916, p. 399), e que fora conduzida à Santa Maria por uma multidão em reza: “A figura serena do santo mártir, trespassado o peito nu pelas flechas sangrentas, im-pressionava sobremodo os fiéis. Era a imagem mais cuidada” (idem, ibid.). E confirmando o culto ostensivo a S. Sebastião, a reprodução do desenho do seu suplício foi pintada em estandartes empunhados pelos rebeldes, e hoje um exemplar dessas insígnias compõe o acervo do Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro, e uma fotografia dessa imagem foi publicada nos Anais do citado museu (MHN, 1947-1957, p. 55).

Portanto, apesar de toda a discussão em torno da questão, verifica-se que as fontes sobre a guerra não deixam dúvidas de que S. Sebastião, o mártir cristão foi o objeto de devoção e não o rei português. E tendo por base a imagética (imagens de culto e a bandeira do mártir), essa conclusão se afirma, uma vez que é evidente não ser outro, que não S. Sebastião, o personagem cultuado. Diante dessa confirmação, mas sendo percebido o ineditismo da devoção manifestada, não se pode ignorar que um fenômeno de ressignificação/redimensiona-mento do culto ao santo popular se processou. No Contestado S. Sebastião foi o comandante de um Exército celestial ou encantado, cuja ação ocasionaria a derrota dos inimigos da “santa religião” e a ressurreição dos crentes mortos em combate. Esse papel assemelha-se ao exercido por D. Sebastião, o rei “Encantado”; e ainda se pode conjecturar sobre a associação/assimilação do culto ao mártir com a legenda carolíngia.

Sobre essa problemática, deve ser enfatizado que, mesmo diante dos obs-táculos geográficos, das distâncias e dos hábitos culturais diversos, o intercâmbio entre culturas, a fusão de crenças e a interpenetração de símbolos e mitos, são constantes na história religiosa dos povos. Faz-se necessário valorizar o que Carlo Ginzburg chamou de circularidade cultural. Mitos e crenças não são imutáveis e estanques. Tais con-cepções e visões de mundo são reelaboradas, percorrendo os estratos sociais, assim como o espaço geográfico e o tempo. O sebastianismo e a legenda carolíngia encontraram tanto entre letrados, como entre as classes populares, ao longo dos séculos, um terreno fértil para pros-perar. E foi justamente pelas mãos de letrados e populares que esses

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mitos sofreram reinterpretações que lhes asseguraram a longevidade, pois ajustados as necessidades de cada meio e época não perderam o seu vigor. A mitologia e religião comparadas tratam dessas questões com maestria, e ao historiador oferecem reflexões fundamentais para se buscar compreender, mediante análise dos fragmentos de uma época, questões atinentes as diversas formas de expressão do sagrado.

A respeito da circulação de mitos e crenças no Contestado, sabe-se que os redutos foram freqüentados por pessoas que transmitiram uma men-sagem plena de símbolos esotéricos, revelando o contato dos rebeldes com concepções espiritualistas. Tome-se um exemplo: Assunção afirmou que um adivinho freqüentava os redutos, e em suas prédicas constam referências presentes no discurso caboclo. O autor não informou o nome do personagem, mas contou que em sua atividade “evocava” João Maria e José Maria, usando do que denominou de “sinais cabalísticos”. Esse adivinho além de dizer a boa ou má sorte dos seus consulentes, forneceria os meios necessários para remediar a influência da má sor-te; e evocando os santos ou praticando a astrologia previa o futuro. Esse praticante da “cometologia” foi apontado por Assunção como o redator da “carta de Jesus Cristo”, destinada a aconselhar os “errantes do novo século” (ASSUNPÇÃO, 1917, p. 242-3). Essa carta também é citada por Peixoto, que a nomeou de “carta de S. José Maria”. O conteúdo da prédica alertava para os castigos advindos dos pecados, e para as mudanças anunciadas por um eclipse e o aparecimento de um cometa, fenômenos que seriam seguidos de uma peste e de uma praga de gafanhotos (PEIXOTO, 1916, p. 195-6). Vinhas de Queiroz confirmou que sinais cabalísticos eram frequentemente empregados pelos “fanáticos”, e publicou em sua obra a foto de um “signo-salomão” (pentagrama) gravado numa espada pertencente ao um Par de França (VINHAS DE QUEIROZ, 1981, p. 320).

Como se observa, uma miríade de símbolos e expressões ligadas ao mis-ticismo e a religiosidade estivem presentes entre os devotos de S. Sebastião. Evidencia-se, assim, que o imaginário dos habitantes da região alimentou-se não somente de expectativas presentes no mito carolíngio e sebastianista, mas contou com o aporte de manifestações de cunho espiritualista variadas. Diante desse aglomerado de manifes-tações, tudo leva a crer que a devoção destinada a S. Sebastião sofreu a interpenetração de outras crenças, sofrendo uma remodelação que, ajustada as expectativas em curso na guerra, sustentou a convicção

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da sociedade cabocla de que um evento sobrenatural se operaria na história, assegurando-lhes a vitória.

E dessa interpenetração de crenças emergiu um santo popular renovado, cujo papel ultrapassou o que lhe foi reservado pela tradição católica. Portanto, parece coerente supor que S. Sebastião assumiu a função outrora destinada ao rei-messias do milenarismo, personagem inerente ao imaginário judaico-cristão e destinado a restabelecer no mundo a “lei de Deus”, preparando o advento de Cristo. E a pergunta termina por se fazer necessária: teria S. Sebastião se convertido num santo dos Últimos Dias? A devoção a S. Sebastião constituiu-se em algo aparente-mente novo, e que observado atentamente se reporta a tradição antiga e persistente do mito do rei dos Últimos Dias. Estudar esse intrigante e complexo problema descortina um recorte pouco explorado da Guerra do Contestado, e esse é o desafio da pesquisa em curso.

S.SEBASTIAN AND THE MILLENARY’S MOVEMENT OF CONTESTADO (1912-1916)

Abstract: during the Brazil’s Contestado rebellion (1912-1916) was manifested among the people the belief in the imminent advent of an era of happi-ness and affluence. St. Sebastian, a Christian martyr venerated by the inhabitants of the highlands of Santa Catarina, has come to occupy a strange position to Catholic tradition: the popular saint would not only protect against famine and plague, but was the heavenly Army commander. This paper discusses issues related to the expectation of the realization of the millennium and reinterpretation of Christian beliefs and messianic myths present in Contestado, focusing on the role played by the martyr St. Sebastian and his relationship to the messianism.

Keywords: Contestado. Millenarianism. Messianism.

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* Recebido em: 17.11.2010. Aprovado em: 20.03.2011.

** Doutorando em História pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: [email protected]

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VIVÊNCIAS E RESSIGNIFICAÇÕES

DE UM MOVIMENTO MESSIÂNICO

CONTEMPORÂNEO*

DANIELA NUNES**

Resumo: o presente artigo pretende apresentar ao público leitor, o movimento socioreligioso guiado por mestre Yokaanam e instalado próximo ao Planalto Central, destacando sua importância em relação à cenarização religiosa contemporânea e assim, contribuir para os debates na seara acadêmica, que volta a se interessar, com a atenção merecida, as contribuições do sagrado e sua animação nas demais esferas sociais.

Palavras-chave: Messianismo. Yokaanam. Contemporaneidade e ecletismo..

F oi pensando na relação com o outro e nos infindáveis modos de per-cepção do mundo que nos deparamos com a Fraternidade Eclética Espiritualista Universal. A princípio um campo peculiar e instigante, mas que ao contato mais imediato mostrou-se um centro irradiador de múltiplas representações e de inúmeras vozes e sensibilidades, em uma multiplicidade de sentidos, de significados polissêmicos que con-substanciaram o imaginário de construção e permanência da Cidade Eclética próxima aos arredores de Brasília

O mote prevalente do artigo deriva de um olhar direcionado aos movimentos religiosos contemporâneos e um deles em particular, por sua historici-dade e alcance messiânico-milenarista, tomou-nos a atenção.

No dia 04 de novembro de 1956, 66 famílias, contabilizando aproximada-mente 300 pessoas, provenientes em sua maioria do Rio de Janeiro e lideradas por um homem de estatura mediana, aparência peculiar,

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sandálias rasteiras, cabelos longos, cajado em mãos, atingiram o Pla-nalto Central e se instalaram nos arredores da futura capital do país.

Em análise preliminar, viam-se esses migrantes pressionados por fatores sociais, econômicos e religiosos. Deflagrado o movimento e resolvida a sua fixação, erigiram os fraternários1 o que se lhes afigurava ser uma “cidade santa”, um espaço sagrado2 que se destinaria prevalentemente a recomendar com acento a reunião de todas as religiões. Essa concepção que reservava o grupo ao lugar que passava a animar por meio de práti-cas3 que se orientavam de modo prevalente sob o signo da sacralidade.

Essa nova espacialidade, por via de consequência, encaminhava a sua caracteri-zação na medida em que se definia a estruturação da cidade. Para tanto, o sagrado dava ânimo e orientava no mais das vezes a organização do lugar. A paisagem cultural, em resumo, ganhava contornos e texturas mais nítidos ao colocar harmonizados e em relação de contiguidade as construções templárias e residenciais.

Uma questão se impõe: no campo discursivo, como endereçar legitimidade a um grupo que se deixava instruir primordialmente pelo sagrado e ansiava distinguir-se identitariamente? Vejamos como o líder do mo-vimento, mestre Yokaanam, ao se aferrar a uma tradição que, segundo ele, proporciona como tributo o acúmulo de conhecimentos soerguidos pela humanidade, corrobora discursivamente a distinção do grupo religioso que emanava de seu agudo visionarismo:

Não penseis que a Fraternidade Eclética Espiritualista Universal é mais uma religião. Não! A Fraternidade não tem ideal novo, precisamente porque entendemos que tudo, tudo, já está escrito! (...) Precisamos somente é fechar as bibliotecas e passar a praticar aquilo que já aprendemos de sobra... Dois mil anos são passados! (FEEU, 1949).

Essa ação deliberada que se empenha em ressignificar o domínio público a partir de uma concepção marcadamente religiosa, portanto, validava-se, em síntese, na restauração de uma conduta cristã primitiva, na exaltação à humildade, à caridade e à pobreza, no propósito confesso de promover o aperfeiçoamento espiritual da humanidade, o que, assim divisamos, não abortava a consecução de um projeto inovador que se deixava desvendar se observados o planejamento e a elaboração do espaço da cidade.

Sob essa postura includente e municiado das prédicas e predições de mestre Yokaanam definiam-se os contornos identitários do grupo socior-

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religioso em questão: institucionalmente denominado Fraternidade Eclética Espiritualista Universal, popularmente conhecida pelo nome de Cidade Eclética, surgida no Rio de Janeiro e, conforme salientamos, trasladada para os arredores de Brasília, acompanhando a perspectiva de interiorização do país, construía-se o grupo dos fraternários que se deixavam entusiasmar pelo fervor ao ecletismo.

Por que estudos endereçados ao campo das religiosidades? A religião sempre se apresentou como um campo infindável de análise sócio-cultural. Não como reflexo de alguma esfera social, mas igualmente como ma-nifestação dotada de significados e significantes, capaz de legitimar práticas, estabelecer diálogos, criar laços identitários e tornar possível, ao pesquisador, identificar modos de vida, de organização e de percepção da realidade de um determinado espaço-temporalmente determinado.

O advento da modernidade provocou uma racionalização das imagens mí-ticas do mundo e o direcionamento da religiosidade para a esfera da subjetividade e da vivência pessoal, perdendo sua função social de integração. O acúmulo de conhecimento científico pretendidamente deveria conduzir a humanidade a um estado de emancipação, liber-dade, enriquecimento e à construção de uma verdade ligada ao dado empírico, uma gradual intelectualização das experiências.

A tecnologia e a ciência se incorporaram ao processo industrial e fez-se ascender uma nova base cultural, as grandes religiões que se apoiavam em uma relação de autoridade cederam lugar a uma busca pela evolução do ser.

A ironia em relação ao progresso e a confiança na Belle Epoque deram espaço a um rompimento com as concepções da modernidade, do domínio da razão e da credibilidade das metanarrativas, ampliando o campo para a diversidade de perspectivas, ideias e postulados.

Igualmente, os centros institucionais do saber tem-se mostrado receptivos às variadas contribuições referentes ao âmbito religioso e suas múltiplas representações. Ainda que com o advento da modernidade tenha se objetivado uma pretensa secularização da sociedade, a religiosidade manteve-se como referencial, operando decisivamente na constituição de grupos socioculturais zelosos em anunciarem seu pertencimento identitário a partir de uma concepção que prima por uma reorga-nização do espaço e das vivências apoiando-se em uma arquitetura reconhecidamente sagrada.

Na Fraternidade Eclética Espiritualista Universal, a relação entre antigo e moderno dialogam e convivem entre o grupo, pesada a transformação

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não apenas estética ancorada nos signos dessa cidade, mas focando na própria organização cotidiana realizada pelos adeptos. Nesse sentido, foram reestruturados, no núcleo religioso em questão, novos modelos de sociabilidade, que embora alimentassem a pretensão, não foram absolutos e não atenderam aos anseios de toda a comunidade, gerando uma relação ambígua entre confiança emocional e vigilância entre os indivíduos que compartilham desse mesmo espaço.

Respeitando a reserva de sentidos inatingível pelo pesquisador, as lacunas e os silêncios, as vivências religiosas do grupo eclético de mestre Yoka-anam, ainda que inexplicáveis plenamente, devem ser pautadas na relação dialógica entre a prática e o discurso, ressalvando o cuidado com as narrativas dos fiéis.

Mas, afinal, que cidade é essa a que rendemos uma atenção especial e que se tornou nosso entusiasmo maior? Citarei abreviadamente, aspectos referentes ao nosso objeto.

Trata-se de um grupo sócio-religioso institucionalmente denominado Fra-ternidade Eclética Espiritualista Universal popularmente conhecido pelo nome de Cidade Eclética, surgido na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1945 e trasladado para os arredores de Brasília em 1960, tornando-se legalizado em 1949 com a elaboração da Constituição Estatutária4, na qual é definido como instituição científica, eclética, filosófica, altruísta, religiosa e apolítica. Com a publicação do Diário Oficial da União, foi considerado pessoa jurídica de utilidade pública, por meio do Decreto Municipal nº. 10.213, de 13 de março de 1950, de 16 de agosto de 1950, do Estado do Rio de Janeiro, então antigo Distrito Federal, tornando-se oficialmente reconhecido.

Os irmãos fraternários, assim definem o caráter da Cidade Eclética:

científica, filosófica, altruísta e, sobretudo, eclético-religiosa e apolítica, tendo como objetivo básico do seu supremo poder legislativo, representado por Yokaanam, a consecução da unificação e concórdia universal de todas as religiões e escolas em litígio sectário sob a invocação do nome do mes-mo Deus e a implantação da Religião Universal, sob a bandeira única e comum do mesmo Deus e mesmo cristo. No plano secular, seu objetivo seria a criação e manutenção de silogeus, academias, hospitais, asilos, maternidade, creches, ambulatórios, escolas, reformatórios, farmácias, laboratórios, consultórios, bibliotecas, livrarias, oficinas profissionais,

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liceus de artes e ofício, ginásio, jornais, revistas, rádio-difusão, teatro e cinema gratuitos, grupos escoteiros, juventudes eclético-regionais de todas as religiões, assistência social e espiritual gratuita, cursos de reeducação, alfabetização de adultos, e infância abandonada, além da Constituição da Cidade Eclética, destinada ao aproveitamento e abrigo da infância abandonada e dos indigentes enfermos e da construção da sede-própria, dever este a que se obrigam todos os Irmãos a ela pertinentes (MELLO, 2005, p. 145).

Aliado a essa perspectiva de um Brasil imerso em uma religiosidade caracteri-zada fortemente pelos mitos propiciadores do surgimento de determi-nadas crenças, mestre Yokaanam acompanhou o circuito de transição da nova capital e procurou seguir a tendência de desenvolvimento do país, onde se deu o deslocamento de um movimento milenarista do tipo messiânico, característico do meio rural, para uma sociedade industrial, com a repaginação do imaginário originalmente conhecido por meio da adoção de novos elementos.

A transferência da Fraternidade Espiritual para os arredores de Brasília, pode ser entendida como um fluxo de migração de um contexto profano, marcado pela cidade do Rio de Janeiro, para um novo contexto com características eminentemente sagradas, de consolidação do movimento religioso, no atual município de Santo Antônio do Descoberto.

Auto-intitulando-se o Primeiro Santuário Essênio do Brasil e das Américas, a Cidade Eclética apresenta-se como um setor privilegiado referente à formação Doutrinal do grupo.

Os preceitos trabalhados na Fraternidade, que embora se defina como eclética, possuem um caráter essencialmente espírita, com um forte acento em técnicas Kardecistas e de Umbanda. O ecletismo tão enfaticamente utilizado por Yokaanam e seus obreiros refere-se ao caráter de seleção de preceitos filosóficos e espirituais erigidos em três pilares: o Evangelho e os princípios do Cristianismo primitivo, a Doutrina e as práticas compiladas por Allan Kardec e o Evangelho da Umbanda Eclética5, contendo os ritos aprovados para o exercício da Umbanda cristã.

De acordo com as formulações de Yokaanam, a Doutrina Eclética Universal estaria codificada segundo três grandes planos de ação.

1º Escolher as religiões mais dignas em espiritualidade apostólica, exem-plificadas nas disciplinas de reforma e de esforço cotidiano.

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2º Reunir as Religiões, tolerando-lhes apenas os rituais de excelência, característica fundamental e de responsável dignificação igualitária.3º Expurga-lhes, pouco a pouco, todos os senões sectários e mercenários incompatíveis que, por falta de compreensão, discernimento, responsabi-lidade ou de pureza, deslustram, comprometem, desfiguram, profanam e separam as Religiões, entre si e perante os povos desiludidos com todas, por falta de exemplos dignos e edificantes, acima das palavras e discursos... E, por fim, restaurar-lhes todas as coisas, profanadas ou desvirtuadas, num certo eixo de gravidade universal, onde se estabelecerá um comando de conjunto pacífico e moral de todas as atividades sociais e religiosas no solo de uma gigantesca e belíssima CATEDRAL ECLÉTICA, que servirá de templo universal para todas as Religiões, exatamente como confirmou o que afirmou a 38 anos o irmão ‘Jacob’ (pseudônimo de Fred Figner) no livro ‘Voltei’, psicografado por Chico Xavier no seu capítulo ‘No santuário Magnífico’ (MESTRE YOKAANAM, 1974, p. 65).

O objetivo de mestre Yokaanam e dos irmãos fraternários, não se caracterizava pela criação de uma nova religião, mas de uma seleção cuidadosa de vários elementos filosóficos e religiosos, oriundos de Doutrinas diversas.

A Fraternidade surge como mediana de reconciliação, se assim melhor me farei entendido; reúne sob o mesmo teto e sob o mesmo pólo do Evangelho várias religiões: espírita-kardecista, protestante, israelita, umbandista (não é africanismo ou quimbanda), teosofista, maçom, ocultista, católica livre, etc. (MESTRE YOKAANAM, 1995).

Para realizar sua seleção e alicerçar sua obra, Yokaanam percorreu, ob-servou e participou de infindáveis atividades e rituais em muitos templos evangélicos, centros espíritas, terreiros de umbanda, candomblé e sociedades esotéricas e maçônicas.

As atividades realizadas na Fraternidade se dividem em dois planos de atuação, um exotérico, que compreende conjunto de conheci-mentos e práticas desempenhadas por um grupo ou comunidade religiosa, por meio da execução de rituais e liturgias abertas ao público em geral e outro plano esotérico, que se refere aos conhe-cimentos partilhados por uma classe selecionada, que dividem uma experiência secreta, objetivando a proteção e a significação real desse conhecimento.

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A opção pela ideia de Fraternidade advém do envolvimento de mestre Yoka-anam com a maçonaria, ressalvados alguns princípios, considerando como autêntica apenas a prática maçônica espiritual e mística exercida nos seus primórdios.

O cerne motivador a desenhar a problemática do nosso presente esforço cognitivo aqui narrado inicia-se com uma discussão sinalizada pelo sociólogo Lísias Nogueira Negrão (1984), gentil colaborador e interlo-cutor valioso nessa jornada. Negrão, ainda na década de 1970, voltou sua atenção para a Fraternidade Eclética Espiritualista Universal, com o intuito de compreender as transformações ocorridas no imaginário religioso brasileiro, em especial nos grandes conglomerados urbanos.

Foi pensando nesse mesmo cenário e na importância das manifestações religiosas para as diferentes formações sociais, que nos deparamos com aquele que julgamos primordial para a compreensão do universo místico-esotérico instalado na Cidade Eclética, o mestre Yokaanam, por seus adeptos assim denominado. Nesse primeiro momento, nossas atenções centraram-se na figura carismática do messias, condutor do movimento e guia espiritual da cidade.

Portador de um discurso de autoridade competente, mestre Yokaanam ganhou notoriedade ainda no antigo Distrito Federal, em um momento em que o ciclo dos messianismos parecia desaparecido do cenário religioso nacional, principalmente em uma esfera urbana e industrial, como na cidade do Rio de Janeiro da década de 1940.

O messias se afirmou carismático, assumiu-se dotado de um sentido mis-sionário determinado pelo divino, aliado a sua excepcional mediuni-dade, admitida e reconhecida por seus adeptos, que conferiam a ele qualidades extraordinárias e extracotidianas e que lhe permitiam um acesso privilegiado com entes sobre-humanos.

Ele foi o mestre dos obreiros ecléticos, foi a autoridade, o poder, a sabedo-ria e o pai de uma coletividade acima dos demais. Por sua qualidade extraordinária, sua aparência peculiar e suas pregações entoadas por um tom conservador, tornou-se exemplo de humildade e de bondade e por sua capacidade em operar milagres, realizar curas e pela excep-cionalidade de sua mediunidade é distinguido, reverenciado e evocado constantemente por seus adeptos como o maior médium do Brasil.

A caracterização da Fraternidade Eclética Espiritualista Universal como um movimento messiânico tornou-se possível em decorrência da presença de valores e atitudes conservadoras, ainda presentes, entre

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os primeiros adeptos, provenientes em sua grande maioria, de regiões mais tradicionais do país. Assim como a maior parte da população Guanabarina da década de 1950.

Para o surgimento de determinados movimentos ou mesmo para que se justifique a espera messiânica do povo brasileiro, a existência de certas crenças e mitos torna-se necessárias para sua efetivação. Destarte, o país insurge com um leque de possibilidades, um espaço marcado por uma religiosidade marcadamente abundante, onde o mundo social se une ao espaço sagrado de forma a propiciar a proliferação de seitas e grupos peculiares.

Basilar para a concretização de experiências sócio-cultural e religiosa, a exemplo da cidade Eclética, o messias surge um enviado divino, mensageiro de um tempo futuro e próspero, que trará justiça e salvação. A espera e o reconhecimento de personalidades res-ponsáveis por uma transformação do campo social se destacam no cenário nacional como um elemento relativamente comum.

Vamireh Chacon, professor da Universidade de Brasília, em seu ensaio acerca da busca pela identidade brasileira mais profunda, dedica uma substanciosa reflexão sobre os traços messiânicos como característica do povo brasileiro.

Somos messiânicos desde as origens luso-afro-indígenas, e vivemos eterna-mente como que á espera de que El-Rei Dom Sebastião, de mãos dadas com Zumbi dos Palmares e algum cacique tupinambá do século XVI, venha nos apontar um caminho de redenção, melhor dito de salvação. Enquan-to eles não surgem das brumas atlânticas, corremos atrás de lideranças carismáticas, pois eleição após eleição sempre surgem auto-proclamados salvadores da pátria (CHACON, 1998).

O autor destaca a importância das lideranças carismáticas como uma constante

na política brasileira, identificada pelo povo como destino nacional e referência profunda da forte carga religiosa característica do país, mar-cado por uma contínua espera, que se sobressai das vivências pessoais e se mistura aos mais diversos campos de ação, como maneiras de se adaptar a determinadas situações da vida cotidiana.

O messias apresenta-se como o personagem centralizador para o surgimento de um movimento com características messiânicas. Como persona-gem capital ele promove, ordena e domina o grupo em sua estrutura

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e organização, percorrendo um ciclo que apresenta uma regularidade relativamente fixa.

O que caracterizaria seu poder de decisão sobre o grupo se explicaria pela organização social e reestruturação das práticas e propósitos caracterís-ticos de um agrupamento religioso. Ainda que o messias apresente-se como um eleito divino, com poderes sobrenaturais e um carisma nato, há a coletividade dos adeptos que o legitima e lhe confere poderes específicos, estabelecendo-se, pois, uma relação de troca.

Os adeptos se reúnem voluntariamente em torno do líder para transformar uma situação de descontentamento, que exige a participação ativa de cada indivíduo do grupo. A responsabilidade individual surge como determinante diante do coletivo.

Existe assim, uma concepção ativa e consciente do papel do indivíduo na sociedade, e nas transformações por eles pretendidas. O messianismo se configuraria como uma ideologia, moldada em termos religiosos, onde o postulado principal seria o dever, para cada membro do grupo, de intervir na corrente dos acontecimentos, a fim de orientá-los.

Importante em nossa análise é a posição do sujeito e seu diálogo com o meio sociocultural em que se escreve sua biografia, reconhecendo o indivíduo como um criador e uma força ativa na sociedade.

O sociólogo alemão Norbert Elias em sua obra A Sociedade dos Indivíduos, contribui de forma seminal em nossa investigação acerca da autonomia do sujeito e sua participação dinâmica no curso da história.

Nenhuma pessoa isolada, por maior que seja sua estatura, poderosa sua vontade, penetrante sua inteligência, consegue transgredir as leis autô-nomas da rede humana da qual provêm seus atos e para a qual eles são dirigidos Nenhuma personalidade, por forte que seja, pode, [...] deter mais que temporariamente as tendências centrífugas cuja força corresponde às dimensões do território. Ela não pode transformar sua sociedade, de um só golpe (ELIAS, 1994, p. 48).

Nessa direção, a formação religiosa presente na Cidade Eclética é resultante de um processo histórico-cultural, em que seus atores contribuíram, cada um a sua maneira, para a consolidação das práticas, dissemina-ção da Doutrina, afirmando-se como produtores e colaboradores de um projeto que criou formas e tornou-se uma possibilidade real de experimentação.

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É notório o valor e o peso de mestre Yokaanam para o movimento e coesão do grupo, mas é também decisivo, o desejo de todos os adeptos, que juntos, tornaram possível algo anteriormente apenas vislumbrado.

A importância de uma pessoa sobre outras, sua importância para elas, pode ser especialmente grande, mas a autonomia da rede em que ela atua é incomparavelmente mais forte. A crença no poder ilimitado de indivíduos isolados sobre o curso da história constitui um raciocínio veletério. Não menos destituída de realismo, contudo, é a crença inversa, segundo a qual todas as pessoas têm igual importância para o curso da história (ELIAS, 1994, p. 51).

Norbert Elias não descarta a possibilidade de o indivíduo atuar como maior rigor na paisagem sociocultural ao qual encontra-se inserido. Assim, nem a sociedade, nem o indivíduo modificam unilateralmente a his-tória, não há uma regra geral, ou modelo interpretativo único que fixe cabalmente o papel e as possibilidades de mudança por parte dos sujeitos sociais. Mesmo o indivíduo em sua singularidade e em certas margens pode promover mudanças significativas no curso dos acontecimentos.

Para Max Weber, somente na análise da dominação carismática surge um indivíduo que, particularmente encarnando determinados atributos socialmente reconhecidos, isto é, dotado de carisma, poderia – em circunstâncias peculiares – modificar a forma de ordenação de uma sociedade, subvertendo a ordem e, modernamente, a avassaladora rotinização do domínio da racionalização.

Denominamos Carisma uma qualidade pessoal considerada extracotidiana [...] em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanas, ou, pelo menos, extracotidianos específicos, ou então se toma como enviada por Deus como exemplar, e, portanto, como líder [...] (WEBER, 1994, p. 158).

Após a transferência do grupo para a região próxima ao Planalto Central e a construção da cidade santa, iniciou-se um processo de burocratização necessária à administração e manutenção do grupo. A presença de mestre Yokaanam incorporou-se às atividades cotidianas perpetradas pelos adeptos. Dessa forma, ambos os poderes, o carismático do líder e o burocrático do quadro administrativo conviviam na comunidade e essa relação estabelecia-se não sem conflitos.

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Após o ano de 1985 e com a morte do messias, o carisma, originalmente responsável pela efetivação do movimento, servindo, ainda, para conduzir as práticas e fortalecer os vínculos, permaneceu disseminado entre o grupo.

Entre os adeptos, além de um profundo respeito pelo messias, há a certeza do caminho escolhido, da responsabilidade de cada membro pela construção da cidade e pela relativa estabilidade do grupo, isso revela a participação ativa e consciente dos envolvidos, o que mostra que a construção da Nova Jerusalém do Planalto Goiano (MELLO, 1999) não foi o sonho de um único homem, mas um desejo coletivo e um empenho realizado por todos.

A manifestação religiosa localizada na Fraternidade Eclética foi fundada por um imigrante cuja trajetória está diretamente relacionada com as transformações sociais ligadas ao processo de modernização do país. As práticas ritualísticas perpetradas pelo grupo e vistas como repostas messiânicas bem sucedidas dialogam, em grande parte, com o novo estilo dos movimentos religiosos contemporâneos, marcado pela am-pliação das possibilidades de diálogo com Doutrinas e filosofias diversas.

A motivação que nos levaram ao encontro da temática aqui brevemente ex-posta, situa-se entre a empatia com objeto da pesquisa e a curiosidade despertada pelo universo sagrado peculiar da Cidade Eclética, aliado ao atual posicionamento da academia, que volta a direcionar uma atenção mais substancial ao fenômeno religioso e sua atuação enquanto forma de apreensão de contextos culturais distintos.

Com o advento da modernidade e o processo de secularização da sociedade, o fenômeno religioso passou a vigorar de forma mais proeminente nos espaços privados e das vivências subjetivas. O papel cultural e intelectual da religião foi afetado pelo discurso moderno de criação de um Estado erguido sob o domínio da razão. A ciência moderna foi construída com uma linguagem em que as narrativas tivessem um sentido não-teológico, sem a referência a um propósito divino.

Para Zigmunt Bauman, sociólogo polonês significativamente atuante no cenário contemporâneo, o projeto moderno, motor da modernidade sólida, realizava através dos Estados-Nações, uma eliminação da am-bivalência, tudo deveria ser conhecido e categorizado para então ser controlado. Aquilo que permanecesse duplo deveria ser eliminado. A ciência operou nessa classificação do mundo, visando seu posterior uso técnico.

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A ciência moderna nasceu da esmagadora ambição de conquistar a Natureza e subordiná-la às necessidades humanas. A louvada curiosidade científica que teria levado os cientistas “aonde nenhum homem ousou ir ainda”, nunca foi isenta da estimulante visão de controle e administração, de fazer as coisas melhores do que são (isto é, mais flexíveis, obedientes, desejosas de servir) (ZIGMUNT, 1999, p. 48).

Essa estratégia conduziu a espetaculares triunfos da ciência e de sua ramifi-cação tecnológica, mas não conduziu a humanidade ao um estado de felicidade e realização prometido pela racionalização e cientificidade das estruturas sociais.

Na tentativa de homogeneizar e classificar, a paisagem cultural e suas infinitas manifestações foram relegadas ao âmbito pessoal, as crenças, credos e costumes tonaram-se não uma marca de diferenciação, mas um es-tigma social. Logo, a autoridade do sagrado e, de modo mais geral, as preocupações com a eternidade sofreram mudanças assim como todos os outros espaços de atuação do indivíduo.

Com a modernidade o discurso dominante estava pautado pelo uso da razão, da ciência, da tecnologia, para a construção de uma ordem e progresso. A Religião e suas infinitas possibilidades de manifestação transferiram-se para um outro palco de atuação, mas não foram ex-terminadas ou extintas, apenas suspensas, não bem esquecidas, mas raramente lembradas.

[...] a secularização não é, acima de tudo, a perda da religião no mundo moderno. É o conjunto dos processos de reconfiguração das crenças que se produzem em uma sociedade onde o motor é a não satisfação das expectativas que ela suscita, e onde a condição cotidiana é a incerteza ligada à busca interminável de meios de satisfazê-las (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 42).

O atual cenário contemporâneo assiste a uma retomada de discussões antes descartadas dos grandes centros de debate. Destarte, a ideia de retorno do sagrado apresenta-se como uma questão problemática.

A religiosidade e suas formas de atuação no real sempre se configuraram como uma resposta ao desamparo diante da incerteza e do desconhecido. E o que se assiste presentemente é uma retomada, também na seara acadêmica, de um fenômeno que se fez sentir, em maior ou menor instância, durante todo o desenvolvimento do indivíduo.

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Diferentemente dos grandes modelos explicativos que englobavam o todo, percebe-se, hoje, uma maior abrangência nas possibilidades de per-cepção e inserção no mundo. O sujeito encontra-se diante de um complexo modo de experimentação do cotidiano e que se faz sentir em todas as esferas sociais.

O que caracteriza a religiosidade dessa nova temporalidade que se apresenta está diretamente relacionado à dinâmica do movimento, a mobilidade e dispersão das crenças. Percebe-se uma desregulação institucional e uma pluralização do religioso, onde as grandes instituições perdem, de forma crescente, sua capacidade de enquadramento do crer.

Essa caracterização da sociedade não se faz notar unicamente pelo enco-lhimento de uma esfera religiosa diferenciada, mas igualmente pela disseminação dos fenômenos de crença, que se distancia dos redutos específicos de manifestação dos cultos, para atuar com mais liberdade em qualquer espaço.

Diferentemente daquilo que nos dizem, não é a indiferença com relação à crença que caracteriza nossas sociedades. É o fato de que a crença escapa totalmente ao controle das grandes Igrejas e das instituições religiosas. Ob-viamente, com mais frequência, é através do levantamento da proliferação incontrolada das crenças que se apresenta a descrição do panorama da religiosidade atual (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 42).

O que está em pauta é considerar e decidir, diante dos riscos, quais dos flu-tuantes e sedutores fins devem ter prioridade. Tudo corre agora por conta do indivíduo. Cabe a ele descobrir o que é capaz de fazer, esticar essa capacidade ao máximo e escolher os fins a que essa capacidade poderia melhor servir. Para que as possibilidades continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de petrificar-se em realidade.

A religiosidade por nós vivenciada se organiza a partir da individualização e da subjetivação das crenças. O aspecto decisivo onde se percebe mais nitidamente essa perda de regulamentação encontra-se na liberdade dos indivíduos em construir seu sistema de fé, não necessariamente ligado a um corpo de crenças único e institucionalmente validado.

Assistimos a um fenômeno das destradicionalização da religiosidade, a partir da ênfase no presente, nas diferenças, na experimentação, na possibili-dade de um diálogo mais abrangente com vários referenciais oriundos de Doutrinas e filosofias diversas.

À medida que a religião e suas manifestações concentram-se no âmbito privado,

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adquirem características mais íntimas e emocionais, concentrando-se na experiência do indivíduo. Esse arranjo tem por referencial o centro das novas religiosidades e o símbolo da sociabilidade da modernidade.

No país o fenômeno da pluralidade religiosa apresenta certas particularidades. O sincretismo, tão enfaticamente abordado e discutido, parece fazer parte da sua formação sócio-cultural e histórica.

O Brasil continua sendo, não obstante a exploração, a opressão, a domina-ção e a intolerância, um espaço privilegiado para o diálogo e para a troca inter-societária, para a aprendizagem em termos de um sócio-genético-multi, que diz respeito não apenas à diversidade, mas também genética, racial (SIQUEIRA; LIMA, 2003, p. 152).

O Brasil como local privilegiado, Brasília e o Planalto Central como terra predestinada, representações que remetem não apenas ao imaginário local da capital, mas que ultrapassam suas dimensões espaciais e geográficas e adquirem uma legitimidade para além das fronteiras territoriais.

A ideia de transferência da capital para o interior inseria-se em uma perspectiva de desenvolvimento que objetivava a interiorização do país de forma estratégica e a muito planejada, consolidada de forma efetiva no governo do então presidente Juscelino Kubitschek.

Iniciada sua construção no ano de 1956, Brasília foi erguida no curto espaço de tempo de três anos e meio, inaugurada no dia 21 de abril de 1960, aliou as tentativas e incertezas que surgiram em seu início, subjugando as inúme-ras críticas e receios em relação a sua transferência para o interior do país, distante dos centros tecnicamente organizados e em meio a um espaço geográfico que se apresentava relativamente hostil, o presidente Juscelino Kubistchek, o arquiteto Oscar Niemayer e o urbanista Lúcio Costa, jun-tamente aliado ao sonho, o esforço e a idealização de uma infinidade de personagens outros, bem como o pioneirismo e a bravura edificante dos candangos que a despeito de suas mais variadas origens, consolidaram o plano de construção da nova capital do país.

A edificação do projeto de transferência do Distrito Federal para o interior do Planalto Central, abriu possibilidades de representações múltiplas, de criação de uma modernidade repleta de expectativas e ainda não realizada em outra parte do território nacional. As divergências quanto à construção de Brasília encontrou lugar de destaque dentro desse

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imaginário permeado pelos mais diversos sentimentos mudancistas e antimudancistas (SANTOS, 2008), onde pairava uma forte atmosfera de insegurança do que seria o Brasil da nova capital.

Brasília foi forjada pelo mito e pela ideia da construção de uma cidade com um projeto modernista rico em carga simbólica. Uma cidade sem raízes, povoada por imigrantes e aberta a identidades múltiplas, marcada por um fenômeno urbano singular, responsável por envolver seu planejamento na construção de um espaço síntese, de cruzamento para diversas expressões regionais do país, permitindo o surgimento de um diálogo entre tradição e vanguarda.

A cidade nasceu sobre o manto do sagrado e sua arquitetura tornou-se sím-bolo de uma sociedade que se quis afirmar mais justa e solidária. No imaginário social, este ideário da construção da capital seria caracte-rizado como paraíso de fartura e abundância, que resultaria em uma nova civilidade.

A capital e o seu entorno apresentam-se como campos de vivência e de produção que reúnem vários elementos representativos dessa nova possibilidade de experimentação do sagrado, além do mito místico que envolve a sua construção.

Representações simbólicas e sagradas que marcam tanto o imaginário social de Brasília, quanto propiciam o surgimento de seitas e grupos respon-sáveis por uma nova visão de mundo.

Não apenas surgiram vários grupos religiosos influenciados pela construção da nova capital, como tal fenômeno continua a proliferar, evidenciando uma característica não apenas Ocidental, mas que pode ser observada como uma tendência da modernidade e do desenvolvimento cultural de nossa civilização.

Modelos alternativos que se apresentam como respostas a inquietações an-tigas, uma ampliação dos espaços de diálogo entre o copioso campo referencial, que em diversas ocasiões se distinguem das grandes religi-ões tradicionalmente institucionalizadas e que como um dos pilares, caracteriza-se por uma maior flexibilidade diante da ortodoxia.

A emergência de fenômenos religiosos não se delimita ao domínio do sagra-do, mas se caracteriza por sua atuação igualmente como fato social. O sagrado traduzindo a sociedade sob forma de imagens e modificando-se à medida que o contexto se transforma.

Sensível a esse aspecto, mestre Yokaanam acompanhando a mobilização ideológica para a realização e implantação de ideais ambiciosos e pro-

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eminentemente religiosos, explicado em termos históricos e políticos como a efetivação e a consolidação de um movimento milenarista do tipo messiânico inserido em uma sociedade marcada pelo acelerado processo de modernização, instaura sua “cidade santa” nos arredores da mítica Brasília e consolida assim o ideário da Terra Prometida de Dom Bosco, por Yokaanam também assim legitimada.

LIVED EXPERIENCES AND RESIGNIFICATIONS OF AN CONTEMPORARY MESSIANIC MOVEMENT

Abstract: this paper aims to present a search about the movement led by master Yokaanam and installed, near the Central Plateau, the Ecletic City. Hi-ghlighting the importance in relation to contemporary religious cenarious and contribute to discussions on modernity, religious and academic studies, whom return to be interested in contributions of sacred and its animation in social spheres.

Keywords: Messianism. Yokaanam. Contemporary. Eclecticism.

Notas1 Fraternários: assim são nomeados e reconhecidos internamente os religiosos que se vinculam

à Fraternidade Eclética Espiritualista Universal.

2 Leia-se espaço sagrado, aqui, à luz das reflexões pontuadas por Mircea Eliade, que o define como o locus em que se dão as hierofanias (manifestações do sagrado) e que apresenta uma nítida rotura com o espaço profano, não-ritualizado (ELIADE, 1998, p. 295-6).

3 Valemo-nos da noção de lugares praticados refletida e consagrada pelo historiador Michel de Certeau (1994).

4 A constituição Estatutária da Fraternidade Eclética Espiritualista Universal, por diversas vezes foi reformada, em decorrência de sua transferência e mais tarde pela morte de mestre Yokaanam, se adaptando aos novos contextos e realidades possíveis.

5 Obra escrita por mestre Yokaanam, com o objetivo de se tornar um guia para a formação de novos obreiros, em acordo com o que se admitia nas religiões afro-brasileiras.

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* Recebido em 09.02.2010. Aprovado em: 20.03.2011.

** Mestre em Historia pela Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

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ISABELA OLIVEIRA**

Resumo: o presente artigo analisa a compreensão compartilhada pelos seguidores do Sr. Raimundo Irineu Serra, fundador do Santo Daime, sobre a sua pessoa e a maneira como esse entendimento se constituiu por meio da dinâmica da oralidade entre as décadas de 1910 e os dias atuais. Para os daimistas, o Sr. Irineu é o “Mestre Juramidam”, palavra que revela uma ampla gama de significados, que fala da pessoa do Sr. irineu como presença viva do Cristo na contemporaneidade e também como uma manifestação atual do Espírito Santo. Por meio da análise do conteúdo expresso pelas memórias compartilhadas dos seguidores na religião, demonstra-se como esse conceito se formou entre os daimistas e investigam-se as diferentes influências culturais que contribuíram para a formação desse significado na religião.

Palavras-chave: Oralidade. Santo Daime. Religião. Líder.

O MESTRE JURAMIDÃ: ANÁLISE

DA CONSTITUIÇÃO DA FIGURA

HISTÓRICA DO SR. RAIMUNDO

IRINEU SERRA*

O fundador do Santo Daime, Sr. Raimundo Irineu Serra, conhecido entre seus seguidores como Mestre Irineu é, hoje, uma personalidade inter-nacionalmente conhecida. A religião fundada por ele, o Santo Daime, encontra-se espalhada pelos quatro continentes e conta com milhares de adeptos. Em Rio Branco (Acre) há, inclusive, um bairro batizado com o seu nome, tamanha sua notoriedade entre os acreanos. Em 2008, a história de seu contato inicial com o chá psicoativo Ayahuas-ca e a fundação da religião Santo Daime fizeram parte do roteiro da minissérie “Amazônia” produzida pela Rede Globo e levaram milhoes

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de brasileiros a conhecer o Sr. Irineu Serra. Mas quem é esse homem? Por que ele tem se tornado cada dia mais conhecido no mundo?

As reflexões que aqui oferecidas buscam responder à pergunta “Quem é o Sr. Irineu Serra para os seus seguidores?” e averiguar, por meio dos relatos orais presentes na religião, como se constituiu a sua figura histórica e o seu significado para os praticantes da religião.

Partem da compreensão de religião enquanto uma construção social em con-tínua formação, um fenômeno social, dialético e humano que oferece, para seus seguidores, um conjunto de significados que fundamenta sua compreensão do cosmos como sendo composto por dimensões tangíveis e intangíveis (BERGER, 2004). Tal ordenamento significativo é per-cebido como um corpus semântico que orienta a conduta dos adeptos no seu dia-a-dia e estrutura sua compreensão sobre a realidade.

Nesse sentido a religião Santo Daime é entendida como uma construção social, histórica e cultural inserida no contexto mais amplo da sociedade que não têm outro sentido ou outra existência senão aqueles que lhe são conferidos pela atividade e pela consciência humanas (idem, ibidem) os quais são construídos por meio de um processo dialógico que se dá na conversação, na interação entre as pessoas com sua memória, seus registros orais e escritos.

Para Berger (2004, p. 19) o ordenamento simbólico construído dialogicamente pelas pessoas na religião pode ser entendido como a própria cultura, percebida num sentido mais amplo, como a totalidade dos produtos humanos e não apenas a esfera simbólica presente nesse conjunto.

Já Geertz (1989, p. 103) entende cultura como um sistema entrelaçado de signos interpretáveis; como teias e padrões de significados construí-dos pelos homens e por eles compartilhados, que são determinados e transmitidos historicamente, se expressam de maneira simbólica e permitem que os homens se comuniquem, perpetuem e desenvolvam seu conhecimento e suas atividades. Ou seja, um conceito semiótico de cultura, que a entende como um sistema de significação, como um contexto onde continuamente se formam as práticas sociais, no caso a religião Santo Daime, cuja compreensão passa, necessariamente, por uma abordagem interpretativa dos significados coletivamente construídos.

Partindo dos conceitos de Berger (2004) e Geertz (1989), considera-se os sentidos compartilhados pelos daimistas como um corpo semântico, uma teia de significados que se estrutura e se ressignifica continuamente por meio da interação das pessoas com seu conteúdo que permite aos

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daimistas a elaboração contínua novas leituras do passado, por meio de sua vivência presente da religião.

Assim, a construção social do Santo Daime e da constituição histórica da figura de seu fundador, Sr. Raimundo Irineu Serra, são entendidos como processos culturais, coletivos e dialógicos, inseridos no contexto das transformações sociais e históricas mais amplas da sociedade sobre a qual não se pode determinar um início preciso mas que se deu a partir do início do século XX, a partir das vivências pessoais de seu fundador e continua ainda hoje em formação, por meio da interação dos seguidores com suas memórias e as narrativas orais presentes na religião.

O Sr. Irineu nasceu na cidade de São Vicente Férrer (MA) em 1890 e mudou-se para o Acre na sua juventude, por volta de 1912, dentro do fluxo migratório fomentado pela extração do látex em larga escala. O período foi marcado pelo grande boom da produção gumífera na região amazônica o qual atraiu trabalhadores de diversas regiões do país, em especial do nordeste.

Foi trabalhando como seringueiro e membro da Comissão de Limites1 que ele teve contato com a bebida Ayahuasca. A Ayahuasca é um chá com propriedades psicoativas utilizado milenarmente2 pelas populações nativas da região amazônica brasileira e andina para diferentes finali-dades3, tais como: diagnóstico e cura de doenças, adivinhação, caçadas, preparação para guerra (MACRAE, 1992) e em práticas xamânicas e de curandeirismo4.

Ao beber a Ayahuasca, por volta de 1912/14, o Sr. Irineu teve revelações psíquicas e espirituais que o levaram, nos anos seguintes, a constituir uma nova forma de trabalho com essa bebida milenar. Sob sua direção, deu-se, durante as décadas de 30 e 60, na cidade de Rio Branco (AC), o processo principal de formação da religião Santo Daime. Nesse período a bebida foi rebatizada, uma nova técnica para o seu preparo foi desenvolvida e os principais rituais, símbolos e fundamentos dou-trinários da religião foram constituídos.

Também foi nesse período, entre as décadas de 30 e 60, que o Sr. Raimundo Irineu Serra consolidou a sua liderança à frente da na religião Santo Daime em Rio Branco e foi sendo, paulatinamente, por meio do diálogo estabelecido pelos seguidores da religião e as narrativas orais do grupo -, sendo considerado, pelos seus discípulos como um grande curador, um líder comunitário expressivo, um bom conselheiro e padrinho informal

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de muitas pessoas da região. Na atualidade, para muitos daimistas, ele é uma “pessoa que se cristificou” ou mesmo o renascimento anunciado na Bíblia do próprio Cristo. De um modo geral, para seus seguidores ele é, carinhosamente, o “Mestre Juramidam”, um neologismo pre-sente na religião, que tanto fala do que seria o “nome espiritual” do Mestre Irineu – “o seu nome no astral”5 – mas que também revela o significado mais profundo dessa conexão entre o Mestre Irineu e o Cristo. Um presença Crística cujo significado se remete ao conceito de Espírito Santo enquanto terceira pessoa da Santíssima Trindade, presença ativa de Deus cada ser, em toda a criação.

Uma das primeiras e mais significativas narrativas que associam o Sr. Irineu ao universo do divino e que, portanto, contribuem para a construção de seu carisma e de sua trajetória hagiográfica, relembra uma de suas primeiras experiências com a Ayahuasca.

De acordo com essa narrativa, o Mestre Irineu tomou a Ayahuasca pela primeira vez no contexto nativo amazônico de utilização da bebida entre indíge-nas, caboclos, curandeiros, seringueiros, xamãs e vegetalistas6 da região.

O relato do Sr. João Rodrigues Facundes, antigo seguidor da religião, des-creve aquilo que, na sua compreensão, foi a primeira experiência do Sr. Irineu com a Ayahuasca e revela algumas características do uso da Ayahuasca no contexto nativo.

Olha ele tomou também até a titulo de curiosidade. Lá com Antônio Costa. Lá no Alto Acre. Ele soube da existência (da bebida) através dele e, por sinal, ele soube primeiro que lá nos Incas tomavam. E quando, falando com Antônio Costa, ele disse que sabia, que conhecia, foram [...] tomar o Daime. [...] Ele tomou lá, hoje vamos dizer que seja Vila Assis Brasil por ali, entre Brasiléia e Vila Assis Brasil. Agora, depois, realmente ele foi lá pro Peru.Por sinal, conheceu um caboclo por nome Pizango, e esse Pizango sabia aonde as andorinhas moravam. Então ele prometeu ao Mestre que iria tomar Daime com ele em determinado dia, e prepararam lá o trabalho. Esperaram, esperaram, esperaram e nada do Pizango aparecer. Aí come-çaram o trabalho. Aí daí a pouco veio aquele senhor (uma pessoa que apareceu na miração do Sr. Irineu). E (essa pessoa) pulou dentro da lata, que tava o Daime. E ele (o Sr. Irineu) até proseou, disse: ‘Agora... Muito bonito! Eu vou tomar Daime aqui com o serviço do caboclo aqui dentro da lata! (risos)’ Mas não falou com o peruano.

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Aí ele (o ser dentro da lata) vai e manda o Mestre Irineu perguntar a cada um daqueles irmãos, se estavam mirando e olhar um por um ali dentro daquela lata pra ver o quê que viam. E assim ele fez, de um por um, de um por um perguntando. E só viam Daime, só viam Daime, só viam Daime. Aí chegou no último, seu Antônio Costa. Aí ele (o ser dentro da lata) disse: ‘Tá vendo? Só você, pode aprender igual ou mais do que eu. Ninguém me viu aqui, só usted. Mande ele (uma determinada pessoa) me deixar um vaso de Daime, lá de trás daquela fumaceira’7. [...]. Então, ele (o Sr. Irineu) perguntou aos companheiros dele, quem é que tinha coragem de ir lá. Então André Costa (irmão do Sr. Antônio Costa) foi e deixou lá (o recipiente com a Ayahuasca). Agora interessante... Após o trabalho, o Daime não estava mais lá naquele vaso (risos). Por isso que ele dizia, e eu também afirmo, que ele sabia onde as andorinhas moravam, o caboclo Pizango (entrevista, maio/ 2007, Rio Branco – AC).

Assim, o relato do Sr. João Facundes, amplamente difundido com pequenas variações entre os daimistas, referenda o Sr. Irineu como alguém com qualidades especiais, capaz de aprender tanto ou mais que um “mestre ayahuasqueiro” do contexto nativo e, portanto, também o insere e testifica sua capacidade dentro da tradição milenar da bebida.

Após esses momentos iniciais de contato com a Ayahuasca, aparecem na religião, relatos que mencionam as experiências do Sr. Irineu a sós ou acompanhado por seus conterrâneos, Antônio e André Costa, tanto no interior da floresta como na cidade de Brasiléia.

Entre essas lembranças destaca-se o encontro entre o Sr. Irineu e uma bela senhora que apareceu-lhe vindo da lua em sua direção dentro de uma visão psicoativa com a Ayahuasca. A narrativa do Sr. Luiz Mendes Nascimento, antigo seguidor do Sr. Irineu, descreve o encontro do Sr. Irineu com Clara:

[...] Até que chegou o dia marcado (que o Sr. Irineu iria beber com o Sr. Antônio Costa a Ayahuasca que havia preparado). Ele (Sr. Irineu) tomou. Foi quando ela realmente apareceu pra ele, tendo como o seu trono a lua. Ela veio pousada dentro da lua. Aí ele pasmou. Ele nunca tinha visto e nem imaginava de estar ali diante de tanta formosura. Porque ela era tão visível que ele definia nela tudo. Toda a beleza, as pestanas, as sobrancelhas... Uma divindade. Foi quando ela falou pra ele, se identificou como mãe, disse:

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– Eu sou a tua mãe. A Clara justamente. Você tá aqui na presença dela, tua mãe, a Virgem da Conceição. Ou tu acha que tu tá enganado. Tu tá me vendo aqui como Satanás é?– Ave Maria, minha mãe. Nunca, nunca. Não tem lógica. Jamais.– Mas tu imagina o quê de mim? Eu sou uma feiticeira?– Ave Maria minha mãe, jamais.– Então é tu mesmo que vai dizer, quem é que tu acha que eu possa ser. Aí ele disse que só acertou dizer pra ela:– A senhora pra mim é uma Deusa Universal.Juntou todo o quadro... não dava outra coisa, a não ser uma Deusa Uni-versal. Foi quando ela disse:– Mas tu acha que o que tu ta vendo alguém já viu?Aí ele embaraçou... Até porque ele era um iniciante e essa bebida já vinha... E ele achou que ele tava vendo era o resto daquilo que os outros deixaram de ver. Ela disse:– É teu engano. Porque o que tu tá vendo aqui ninguém nunca viu. Dessa forma, ninguém nunca viu. Só tu. Portanto eu quero ‘firmar um compromisso contigo’ e mais adiante um pedido tu me pedes. Aí e eu tô pronta para atender (Entrevista, maio/ 2007, Rio Branco – AC).

As palavras do Sr. Luiz Mendes também contribuem para a construção da percepção do Sr. Irineu como uma pessoa com qualidades especiais – alguém que “viu” algo na Ayahuasca que ninguém havia visto antes -, e colaboram, assim, a constituição da compreensão da Ayahuasca como uma bebida ligada ao universo cristão e divino por meio das experiências individuais e especiais do Sr. Irineu.

Para firmar o seu compromisso com o Sr. Irineu, Clara pede a ele para fazer uma “dieta” de oito dias, alimentando-se apenas de macaxeira insossa, bebendo a Ayahuasca e trabalhando na coleta do látex das seringueiras, para que então, após esse período ela pudesse firmar um compromisso com ele e revelar-lhe algo especial. O relato do Sr. Luiz Mendes fala desse momento após esse período de reclusão iniciática na floresta:

Após cumprida a dieta, Ela chegou pra ele, clara com a luz do dia. Ela disse que estava pronta para atendê-lo no que ele pedisse. Pediu que Ela lhe fizesse um dos melhores curadores do mundo. Ela respondeu que ele não poderia ganhar dinheiro com aquilo.- Minha Mãe, eu não quero ganhar dinheiro.

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- Muito bem! Mas você vai ter muito trabalho. Muito trabalho!Ele pediu que Ela associasse tudo que tivesse a ver com a cura, nessa bebida.- Não é assim que tua está pedindo? Pois já está feito. E tudo está em tuas mãos (REVISTA..., 1992, p. 14-5).

Então, ao final da “dieta” a Virgem da Conceição concede ao Sr. Irineu as dádivas a que ele faz jus pelo seu sacrifício e pelos seus méritos pessoais e o atende em seu pedido de ser “um dos maiores curadores do mundo”. Nesse momento, o Sr. Irineu nos termos propostos por Couto (1989, p. 50), recebe o seu status de iniciado na linha de conhecimentos da Ayahuasca, tornando-se um curador.

Por outro lado, tendo em vista o fato do Sr. Irineu pedir a Virgem da Con-ceição que associe à bebida “tudo que tivesse a ver com a cura”, ele também recebe, simbolicamente, nesse momento, uma “nova” bebida, imantada pelas bênçãos de Nossa Senhora. Assim, esse relato e outros semelhantes, também contribuem para consolidar a transformação simbólica da Ayahuasca em Daime construindo uma ideia de origem divina para seus poderes curativos e associando, assim, cada vez mais a bebida ao universo da cura, do divino, do cristão, contribuindo para a construção da ideia do Sr. Irineu como pessoa predestinada para constituir algo novo e bendito com a Ayahuasca.

Por se tratarem de relatos que oferecem uma solução imaginária e discursiva para a construção da idéia de origem para os seguidores do Santo Dai-me, esses relatos podem ser considerados mitos-fundadores da religião no sentido proposto por Chauí (2004), construindo uma condição de imanência para esse momento vivido pelo Sr. Irineu, que independe das condições históricas, sociais e culturais que lhe facultaram a existência.8

Na década de 30, período inicial da formação da religião, o Sr. Irineu se tornará amplamente conhecido na incipiente cidade de Rio Branco como um grande curador e “Chefe da Ayahuasca”. Inicialmente, as sessões de cura com a bebida eram realizadas na sua própria casa, geralmente em três quartas-feiras subseqüentes, quando, então, a bebida era servida para os participantes e procedia-se a um período de aproximadamente uma hora e meia de concentração mental em benefício dos doentes.

Com o passar do tempo, já nas décadas de 40 e 50, a fama de curador do Mestre Irineu se espalhou para fora do Acre e chegou a outros estados amazônicos, fortalecendo a compreensão da bebida como milagrosa, santa e do Sr. Irineu como grande curador e líder espiritual de uma

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incipiente comunidade agrária nos arredores de Rio Branco.Assim, dentro da dinâmica da oralidade, tanto a compreensão da pessoa do

Sr. Irineu como da bebida Ayahuasca foram se ressignificando até o sentido compartilhado na atualidade pelos daimistas da bebida como um sacramento9 eucarístico cristão e do Sr. Irineu como presença crística.

No processo de ressignificação da Ayahuasca os componentes da bebida receberam novos nomes. A folha, que era conhecida apenas como “folha”, passou a ser chamada Rainha e o cipó (ou mariri) passou a ser chamado Jagube.

Considerando o fato que os daimistas entendem comumente a folha como o princípio feminino que compõe o Daime e o cipó como a parte mas-culina da bebida é possível considerar-se que o nome Rainha seja uma referência à figura da “Rainha da Floresta” (a Virgem da Conceição) com a qual, segundo os seguidores mais antigos da religião, o Mestre Irineu se comunicou até o final de sua vida, recebendo dela, em sua compreensão, as instruções para a constituição dos rituais, símbolos e fundamentos doutrinários do Santo Daime. As palavras da Sr. Altina Serra, nora do Mestre Irineu, confirmam essa hipótese.

A rainha (folha) é a Rainha. A feminina. É a Nossa Senhora (eu acho né). Porque a Rainha é Nossa Senhora e a nossa protetora é a Virgem da Conceição. Ela é rainha soberana. Jagube é o masculino. [...] É o rei (Entrevista, maio/ 2007, Rio Branco – AC).

Já a narrativa10 do Sr. Walsírio Genésio da Silva, filho consangüíneo do Mestre Irineu, revela o significado do Jagube para os seguidores.

Ele (o Mestre) disse para nós: ‘Eu sou o Daime, e o Daime é eu’. Primei-ramente ele disse: ‘Eu sou o Jagube, e o Jagube é eu’. ‘Eu sou o Daime, e o Daime é eu, e quando quiser conversar comigo, se reúnam, se unam, tomem um Daime e eu estarei ao lado de vocês’. Isso é muito fácil do senhor aprender. [...] Se o senhor se prestar a esse trabalho, ter seu comportamento, sua dieta, porque sempre ele vem. Ele sofreu muito para aprender, pra trabalhar, pra deixar pra nós.11

Pelas palavras da Sr. Altina e do Sr. Walsírio é possível perceber que para os daimistas o Jagube é o princípio masculino, o Rei, uma representação do próprio Mestre que se identificou inicialmente com o cipó e mais

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tarde com toda a bebida.Cumpre salientar que no contexto da cultura nativa amazônica é comum a

compreensão de que as plantas são habitadas por um espírito, em geral uma “mãe”, que transmite ensinamentos e com quem é possível esta-belecer um aprendizado, uma comunicação, uma cura. Tal fato levou, por exemplo, o antropólogo Eduardo Luna (1986) a propor o termo “plantas-professoras” – plantas-maestras – para designar o conjunto das plantas psicoativas usadas ela população amazônica com a finalidade de aprendizado, cura e comunicação com a realidade espiritual.

A partir das palavras do Sr. Walsírio é possível perceber que esse espírito divino que se manifesta no Daime é considerado, pelos seguidores da religião, como o próprio Mestre Irineu.

Por outro lado, os daimistas consideram que a ingestão do Daime na religião é um sacramento eucarístico ou que a própria bebida seja, em si mesma, sacramento. Essas compreensões ficam evidentes, por exemplo, no relato do Sr. Pedro Domingos da Silva, antigo seguidor do Sr. Irineu. Ao ser indagado se na religião Santo Daime havia algum sacramento, o Sr. Pedro respondeu:

Ele é o próprio Daime, que vem de Deus... Acabamos de falar agorinha, como é que é... junta essas três forças, Pai, Filho e Espírito Santo, as três pessoas da Santíssima Trindade. Tudo junto: o santíssimo sacramento, sacramento de Deus. O sacramento é o próprio Deus, o próprio Jesus Cristo, da onde nós vamos sacar a fé, a esperança e o amor, a verdade a vida e a justiça do próprio Deus (Entrevista, maio/2007, Rio Branco – AC).

Como pode ser percebido no relato do Sr. Pedro Domingues da Silva, para os daimistas, as graças recebidas na ingestão sacramental do Santo Daime dizem respeito à comunhão que acontece entre as pessoas e o ser divino que se encontra na bebida entendido tanto como a Santís-sima Trindade.

Por meio da leitura da teia de significados constituída por diferentes narrati-vas orais, percebe-se a existência de uma aproximação cada vez maior entre o significado do Mestre e a Santíssima Trindade na medida que ele mesmo se identificou como o Daime. Essa compreensão do Mes-tre Irineu como pessoa que se “cristificou” ou como o renascimento anunciado do Cristo pela Bíblia revela-se, por exemplo, nas palavras do Sr. Luiz Mendes do Nascimento.

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Ele (Mestre Irineu) chegou a uma perfeição tal que se cristificou! Quer dizer duas pessoas distintas que viveram tempos diferentes, mas que quer dizer a mesma coisa. Porque o próprio Antônio Gomes12 que é um dos portadores de um hinário de muito valor! Que é realmente toda uma expressão verdadeira. Ele diz que ‘Jesus Cristo veio ao mundo. Terminou o que veio fazer. Entregou ao nosso Mestre’... que é Mestre Irineu ! ‘Ele tem o mesmo poder’. Então ele tendo o mesmo poder de Jesus, o quê, que falta pra ser Jesus? É Jesus mesmo, porque se eu...Por exemplo, tivesse os poderes de Jesus eu também seria Jesus que eu não tenho os mesmos poderes! Então num é tanto mistério! Num é tanto mistério, num dá nem assim pra se questionar e fazer confusão... Então pra mim ele é Jesus! (Entrevista, 2004, Seringal Fortaleza – AC).

Assim, na medida em que o ser divino presente no Daime foi identificado como o Mestre Irineu e esse foi reconhecido como Cristo, a ingestão do Daime também foi se ressignificando até o seu significado atual de sacramento eucarístico cristão.

No entanto, esse processo dialógico de constituição social de significados ainda avançou um pouco mais e essa idéia fica clara no compreensão da palavra Juramidam.

A primeira vez que a palavra Juramidam apareceu na história da religião foi em um hino recebido pelo Sr. Antônio Gomes, o qual se intitula “O General Juramidam”. 13 Como Juramidam trata-se de um neologismo surgido na cultura daimistas, para se compreender o seu significado é necessário se fazer uma leitura transversal de diversas narrativas que usam essa palavra. Diz o hino já citado do Sr. Antônio Gomes.

O General JuramidamOs seus trabalhos é no astralEntra no reino de DeusQuem tem força divinal...

Quando surgiu o hino foi interpretado pelos seguidores como uma referência à pessoa do Sr. Irineu. Por sua vez, a presença do titulo de General se remete aos momentos iniciais da religião, onde os seguidores recebiam “patentes” de acordo com o grau espiritual que alcançavam na religião. Nesse sentido, de acordo com as palavras do hino do Sr. Antônio Go-

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mes, percebe-se que Juramidam também remete a um grau espiritual alcançado pelo Sr. Irineu.

Em seu hinário, além de ter falado Jesus Cristo em terceira e em primeira pessoa, o Sr. Irineu ainda deixou um único hino em que também se refere a si mesmo como Juramidam. Uma narrativa essencial, portanto, na elucidação desse conceito. Diz o hino 111, Estou aqui:

Estou aquiE eu não estando como éEu penso na verdadeMe vem tudo que eu quiser A minha Mãe me trouxeEla deseja me levarTodos nós temos a certezaDeste mundo se ausentar Eu vou contenteCom esperança de voltarNem que seja em pensamentoTudo eu hei de me lembrar Aqui findeiFaço a minha narraçãoPara sempre se lembrarem Do velho Juramidam.

A compreensão mais comum que encontrei entre os adeptos da palavra Jura-midam fala que esse seria o nome do Sr. Irineu no astral. Mas, dentro da religião a palavra Juramidam tanto se refere à pessoa do Mestre como à imagem de Império e esses dois conceitos encontram-se ligados entre si como pode ser percebido nas palavras proferidas pelo dirigente de uma sessão daimista em seu encerramento.

Dirigente: ‘Em nome de Deus Pai e da Virgem Soberana Mãe, do Pa-triarca São José, de todos os seres divinos da corte celestina e com a ordem no nosso Mestre14-Império Juramidam, está encerrado o trabalho de hoje meus irmãos e minhas irmãs. Louvado seja Deus nas alturas’.

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Todos juntos: ‘Para sempre seja louvada a nossa mãe Maria Santíssima sobre toda a humanidade. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém’.

Por outro lado, o relato a seguir, do Sr. Sebastião Mota de Melo, avança na compreensão do que seja esse império para os daimistas e correlaciona o conceito de Juramidam ao Espírito Santo, Terceira Pessoa da San-tíssima Trindade.

Vamos estar na perfeição perante o nosso Pai Supremo Celestial porque agora é tempo do Espírito Santo. Cada um que se conforme e entre em comunhão com Jesus Cristo, como assim está dito e escrito no Terceiro Tes-tamento! Tem o Primeiro, vida de Deus Pai, o mundo dele. O Segundo, o mundo de Jesus Cristo. E o Terceiro, o mundo do Espírito Santo, pois até o nome é Jura. Como disse, o nome agora é Jura, e é Juramidam. Quem não for Midam não pode ser filho de Jura. Acredite quem acreditar, mas se não nascer de novo, não terá a Vida Eterna! (ALVERGA, 1998, p. 110).

Pelas palavras do Sr. Sebastião, é possível perceber que Juramidam se revela não apenas como referencia à pessoa do Sr. Irineu e o grau espiritual alcançado por ele como também fala de Juramidam a união dos filhos (Midam) como o Pai (Jura). Seu relato também acrescenta que, na sua compreensão, vivemos “o tempo do Terceiro Testamento”, ou seja, o tempo da manifestação Espírito Santo, da terceira pessoa da Santíssima Trindade e assim contribui para revelar o significado de Juramidam não apenas como o Cristo encarnado na pessoa do Sr. Irineu e revelado na ingestão sacramental da bebida como também como presença cristica que se manifesta na união de todos os seres com o Pai, o divino.

Por outro lado, ao indagar os seguidores sobre a origem do termo Império Juramidam, recebi a seguinte resposta espirituosa da Sra. Altina Serra que ao mesmo tempo confirma as interpretações já expostas como remete a possiveis raízes culturais do termo na religião.

O império?! Vem de Imperatriz no Maranhão (risos)... Império, império, império... Significa dizer de rei, imperador [...] Pois é... Mas eu acho que império é o palácio dele, o reinado dele: Mestre Império Juramidam. E esse reinado é muito fino. Acho que é onde está todas as coisas (Entrevista, maio/ 2007, Rio Branco – AC).

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O relato da Sra. Altina acrescenta a idéia de que o império é um palácio, um reinado onde estão todas as coisas e faz uma referência ao Maranhão.

No Maranhão, estado natal do Sr. Irineu, uma das festas devocionais mais importantes é o culto ao Divino Espírito Santo. Nele, por sua vez, a palavra império figura como um dos elementos centrais da festa e representa a corte composta por um casal de crianças ricamente fanta-siados como rei e rainha e seus mordomos-régios que, juntos carregam a “Santa Croa” (Santa Coroa), a pomba branca e todos os símbolos que se referem ao Divino Espírito Santo.

As palavras de D. Altina corroboram, portanto, a ideia de Juramidam como presença cristica que se revela na atualidade como Espírito Santo tanto na pessoa do Sr. Irineu como no conjunto da irmandade daimista e da união de todos os seres com o criador.

Por tudo que foi exposto percebe-se que a constituição histórica do signi-ficado do Mestre Irineu para os seus discípulos passou por muitos momentos e construiu-se por meio de um intricado processo dialógico estabelecido entre os seguidores da religião Santo Daime e as narra-tivas orais presentes no grupo. Nesse processo, de seringueiro, o Sr. Irineu passou a ser considerado homem predestinado para a liderança espiritual, grande curador e Chefe da Ayahuasca, um ser que se cristi-ficou, até ser identificado como próprio Cristo revelado na atualidade como manifestação individual e coletiva do Espírito Santo por meio dos ensinamentos do Santo Daime, de sua ingestão sacramental e da vivência comunitária de seus adeptos.

The juramidã maister: an analyse of historical images about mr. Rai-mundo irineu serra

Abstract: this article analyzes the image shared by followers of Mr. Raimundo Irineu Serra, founder of Santo Daime Religion. About this character are formed divers ideas through the oral culture dynamics since 1910 until present days. As his followers, he is the “Juramidam master”, word that reveals a wide range of meanings, others speak about Mr. Irenaeus as living in presence of Christ, a contemporary form, and also how a ma-nifestation of Holy Spirit. Through the analysis of content expressed by memories shared in this religion, we demonstrated how this concept was made and investigated the different cultural influences that contributed to formation of Irenaeus’ meaning.

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Keywords: Orality. Santo Daime. Religion. Leader.

Notas 1 A Comissão de Limites foi uma organização formada pelo Governo Brasileiro para

delimitar as fronteiras entre o Acre, a Bolívia e o Peru. O Acre foi o primeiro Ter-ritório Federal da História do Brasil. Foi incorporado à nação brasileira em 1903 (ARRUDA, 2006, p. 16).

2 Embora existam evidências arqueológicas do uso de plantas psicoativas na Amazônia Equatoriana entre 1500-2000 a.C., o uso pré-histórico da Ayahuasca ainda não pode ser comprovado (MCKENNA, 2004).

3 Dobkin de Rios (1972, p. 45) reuniu os diferentes usos da Ayahuasca no contexto nativo amazônico em três grandes grupos: para contato com o sobrenatural – onde figuram usos mágicos, no contexto de rituais religiosos, na adivinhação e na feiti-çaria, para o tratamento de doenças e para o lazer e a interação social.

4 A utilização da Ayahuasca pelos índios e curadores mestiços foi amplamente documentada por diversos pesquisadores, tais como Reichel-Dolmatof (1976), Luis Eduardo Luna (1986), Marlene Dobkin de Rios (1972) entre outros.

5 Astral é como os daimistas se referem genericamente à realidade espiritual.

6 É uma pessoa que adquiriu seus conhecimentos por meio de uma planta e que normalmente usa essa planta no diagnóstico e cura de seus pacientes” (LUNA, 1986, p. 32)51. Vegetalista é um termo genérico. Outros termos específicos podem ser utilizados para designar essas pessoas, de acordo com o tipo de planta com a qual aprenderam e utilizam em suas práticas curativas. Entre esses, destacam-se: o “Tabaqueiro”, que trabalha primordialmene com o Tabaco, e o “Ayahuasqueiro”, que se utiliza da Ayahuasca.

7 Fumaceira é uma casinha pequenina onde o seringueiro defuma a borracha.

8 Essa idéia também é defendida pela antropóloga Sandra Goulart (1996), para quem essas histórias que narram os primeiros contatos do Sr. Irineu com a Virgem Maria e a bebida podem ser consideradas histórias exemplares, mitos-fundadores, devido à maneira como são repassadas no contexto do grupo e a importância que passaram ter para os seguidores na sua fundamentação doutrinária e ritual.

9 De acordo com Grenz, Guretzki e Nordling (2005, p. 120), na concepção cristã de sacramento, constituída a partir de Santo Agostinho, ele é compreendido como ato simbólico visível por meio do qual se considera que sejam dispensadas graças invisíveis. Nesse sentido, esses autores consideram que os sacramentos devem ser percebidos como ações por meio das quais os fiéis desfrutam das verdades que eles representam. Através dessa definição compreende-se sacramento, primordialmen-

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te, como uma ação social, cujo significado se forma historicamente como destarte toda a religião. Nesse livro, a preocupação primordial dessa análise é de elucidar, por maio das narrativas dos seguidores do Santo Daime, o sentido da ingestão da bebida para os daimistas e se essa ação é percebida como um meio de se alcançar uma graça divina e, por sua vez, compreender o significado dessa graça para os adeptos.

10 Narrativa coletada em entrevista feita pesquisador Eduardo Bayer Neto em 15/11/1991 na cidade de Rio Branco – AC.

11 Este relato foi retirado de uma entrevista realizada pelo Sr. Eduardo Bayer Neto em 15 de novembro de 1991, na cidade de Rio Branco, Acre.

12 Um dos mais antigos seguidores do Sr. Irineu que tem um conjunto de hinos (hinário) onde num dos quais existe o verso citado pelo Sr. Luiz Mendes do Nas-cimento.

13 Hino 13 do hinário “O amor divino” do Sr. Antônio Gomes

14 Nas sedes do Alto Santo é comum que se utilize a palavra Chefe-império ao invés de Mestre-império a qual fala da ressignificação do Sr. Irineu enquanto Mestre.

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* Recebido em: 15.01.2011. Aprovado em: 20.03.2011.

** Doutora em História pela Universidade de Brasília. Professora da Faculdade de Comunicação da UnB. E-mail: [email protected]

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DA NOVA ERA À NEW AGE

POPULAR: AS TRANSFORMAÇÕES

NO CAMPO RELIGIOSO

BRASILEIRO*

P ensar o sagrado no Brasil é reconhecer toda a idiossincrasia que possui um país que, desde seu princípio, tem sido marcado por um intenso processo de fluxos culturais, de modo que matrizes diversas têm-se hibridizado, configurando a realidade. Freyre (2005) já nos havia apontando tal direção ao propor em Casa Grande & Senzala a existência de um país essencialmente mestiço, de modo que não poderia escapar ao sagrado tal marca. Notoriamente, cabe uma crítica ao autor na medida em que o mesmo olvida como as relações de poder se estabelecem nesta

AMURABI PEREIRA DE OLIVEIRA**

Resumo: o presente trabalho visa contribuir em termos historiográficos, mas também sociológico e antropológico, para a discussão sobre a Nova Era no Brasil, destacando não apenas o seu percurso, bem como os seus desdobra-mentos. Em especial, a partir do que denominamos New Age Popular, a reelaboração das práticas e dos discursos da Nova Era ante os elementos presentes na religiosidade popular brasileira. Neste sentido, compreendemos que tal transformação se atrela a contextos sociais, políticos, históricos e culturais maiores, que só podem ser compreendidos diante da dinâmica de disputas travadas no campo religioso. Destacamos que a New Age Po-pular encontra-se presente não apenas nos Novos Movimentos Religiosos, a exemplo do “Santo Daime” e o “Vale do Amanhecer”, como também encontra-se dissolvido nas mais diversas práticas religiosas.

Palavras-chave: New Age Popular. Nova Era. Campo Religioso.

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“mestiçagem”, uma vez que inserido no projeto colonial, o papel de colonizado e colonizador se estabelece a partir de relações hierárquicas e que se impõem enquanto “naturais” (MEMI, 2007).

Uma vez destacado o papel das relações de poder postas no plano cultural, há de se enfatizar que o catolicismo é o elemento mais emblemático desta relação, na medida em que imbricam-se o projeto político e o cultural de Portugal para com a América. A cruz católica não repre-sentou apenas o cristianismo, mas também toda uma concepção de mundo eurocêntrica que constituiu a realidade brasileira.

Ainda assim, a presença das demais realidades culturais e religiosas se fez, e se fazem, presentes na configuração religiosa brasileira, seja aquela que remeta à matriz africana, ou ainda indígena, ou mesmo árabe, judaica, oriental, que também se fizeram presentes a seu modo (FREYRE, 2003). Tais presenças se arranjaram num complexo espaço de disputas simbólicas, de modo que poderíamos entender a principal expressão de tais lutas, o sincretismo, ora como forma de dominação ora como forma de resistência, ainda que tais esferas não se desassociem.

Estas gradações e disputas simbólicas levaram ao mascaramento dos orixás pelos santos católicos, que não se deu, obviamente, de forma aleatória, mas sim baseada num complexo jogo de analogias estabelecido entre os santos e os orixás (BASTIDE, 1985). E mais que isso, os orixás não foram apenas mascarados, como também selecionados em consonância com a nova realidade aqui encontrada nas Américas, pois como aponta Souza (1986, p. 94):

Para que pedir fecundidade às mulheres se, na terra do cativeiro, elas geravam bebes escravos? Como solicitar aos deuses boas colheitas numa agricultura que beneficiava os brancos, que se voltava para o comércio externo e não para a subsistência? ‘Mais valia pedi-les a seca, as epide-mias destruidoras de plantações, pois colheitas abundantes acabariam se traduzindo em mais trabalho para o escravo, mais fadiga, mais miséria’. A primeira seleção operada n seio da religião africana colocaria de lado as divindades protetoras da agricultura, valorizando em contrapartida, as da guerra – Ogum –, da justiça – Xangô –, da vingança – Exu.

Desse modo, o campo religioso brasileiro está marcado desde o princípio por uma série de disputas e tensões, sem as quais não é possível pensar o sincretismo religioso. Afora isto, há de se destacar todo o aspecto

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simbólico que envolve tal realidade, ao considerarmos que quando o Brasil emerge para o universo europeu ele ocupa junto ao imaginário do mesmo o lugar do paraíso perdido em meio às águas, arquétipo presentes em diversas culturas como aponta Eliade (2002), e cujo mo-tivo edênico persiste no imaginário social brasileiro, como já descrito em certa medida por Holanda (1959) e analisado posteriormente por Carvalho (1998).

Notoriamente toda esta configuração religiosa se complexifica ainda mais com a alta modernidade, na medida em que os sujeitos passam a autonomizarem-se cada vez mais com relação à totalidade simbólica que os envolvem. Da mesma forma em que os fluxos culturais tornam-se ainda mais dinâmico, a cultura se transnacionaliza-se (ORTIZ, 2006), e a relação entre o global e o local torna-se menos passível de ser posta em termos de antinomias.

Em meio a estes dinâmicos processos culturais, o Brasil adentra o século XX imerso em enésimas possibilidades religiosas. O espiritismo kardecista do século XIX ganha mais força, sincretiza-se com o candomblé nos anos 20 e forma a umbanda (ORTIZ, 1999); o protestantismo começa a tornar-se uma realidade palpável, e até o final do século chega a re-presentar 15%; as migrações no processo de industrialização também trazem japoneses, chineses, libaneses, judeus que consigo trazem sua cultura e suas religiões. Já no final da segunda metade daquele século, o “boom” da Nova Era no país, expressada principalmente pelo mercado editorial. Tal cenário configura o que Pierucci (2004) denominou de “destradicionalização” do campo religioso brasileiro.

Buscaremos analisar neste trabalho a emergência e os desdobramentos da Nova Era no Brasil, destacando em como este movimento ao se deparar com a realidade religiosa brasileira, metamorfoseia, configurando uma realidade idiossincrática com relação à Nova Era em outros países, o que denominamos de New Age Popular. Destacaremos com isso os aspectos sui generis existentes nesta realidade religiosa e de como poderemos lançar mãos de elementos teóricos para compreender este desdobramento da Nova Era no Brasil.

NOVA ERA: PERCURSOS E CONFIGURAÇÕES NO BRASIL

A Nova Era surgiu a partir de uma confluência de discursos e práticas, em especial a a partir do entrecruzamento do esoterismo europeu, e das

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religiões orientais. Há na verdade uma busca pela síntese entre o oci-dental e o oriental, ainda que possamos destacar aqui que a perspectiva tomada com relação ao oriente é por vezes permeada pelas relações históricas entre estas duas civilizações, ou mais especificamente ain-da, pelo orientalismo que vem a ser um modo particular do ocidente pensar o oriente, em especial o “Oriente Latente” que envolve uma positividade quase inconsciente sobre o oriente, que possui certa una-nimidade, estabilidade e durabilidade com relação a tal construção. Dando ao oriente “[...] um tipo ruim de eternidade: daí quando o Oriente é visto positivamente, expressões como ‘a sabedoria do Leste” (SAID, 2007, p. 282).

Ainda assim, há de se destacar que por mais que haja uma construção social do ocidente em torno do oriente, no movimento Nova Era busca imergir nesta outra realidade, seja através das viagens realizadas por ocidentais ao Oriente, seja através da busca por gurus orientais que vieram ao ocidente disseminar sua filosofia. Amaral (2000) ainda pontua que nas origens da Nova Era podemos destacar o Transcendentalismo, o Espiritualismo, a Teosofia, a New Thought e a Christian Science.

Amaral (1999, p. 47) nos dá a seguinte definição de Nova Era:

[...] a possibilidade de transformar, estilizar, desarranjar ou rearranjar elemen-tos de tradições já existentes e fazer destes elementos, metáforas que expressem performativamente uma determinada visão em destaque em um determinado momento, e segundo determinado momento.

Todo este percurso da Nova Era demandou um longo período que se inicia século XIX, com a fundação da Sociedade Teosófica em 1875, mas que passa a ganhar visibilidade na segunda metade do século XX, em especial nos anos 60 e 70. No Brasil, após os 80 em especial, até mesmo devido ao cenário social e político pelo qual o país passava no período anterior (ANDRADE, 2002).

No entanto, ainda que tal visibilidade ocorra no século XX, a existência de muitos desses elementos que se vinculam a este fenômeno – ocultismo, esoterismo, orientalismo – data desde o século XVIII no Brasil, como a primeira agrupação de maçons que data de 1797 em Pernambuco (MAGNANI, 2000). No início do século XX, temos aqui a emergência de uma pluralidade de sociedades iniciáticas, como a primeira loja teosófica em 1902, Circulo Esotérico da Comunhão do Pensamento

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em 1909, A Sociedade Antroposófica em 1935, A Sociedade Teosófica Brasileira em 1916, a Rosacruz Amorc em 1956 e a Rosacruz Áurea em 1957. Todas estas encontram-se ainda em atividade e possuíam um caráter determinante sobre a Nova Era no Brasil. Nos anos poste-riores também houve uma profusão de templos de religiões de caráter oriental, fundados por migrantes chineses, japoneses etc.

Todos estes fenômenos contribuíram para a formação e configuração da Nova Era, mas por si só não bastavam. Há outras questões de fundo, a agitação política e cultural ainda que focada em outras questões trouxe a tona todo o debate em torno da contra-cultura, que também imbrica-se no complexo percurso da Nova Era. Magnani atrela ainda a tal cenário no país a questão do cenário artístico, chamando a atenção par as seguintes questões:

No contexto da agitação toda dessa época, foi o Tropicalismo que abriu espaço para uma postura identificada com a estética libertária e dionisíaca da contra-cultura: Caetano Veloso, sem lenço, sem documento, nada nos bolsos ou nas mãos, alegremente celebra a recusa aos valores do sistema. Ainda hoje Gilberto Gil demonstra afinidade com alguns dos temas holísticos; o disco Quanta, de 1997, é o mais recente sinal dessa abertura.No entanto, foi Raul Seixas quem explorou explicitamente em suas composições aspectos mais místicos, chegando inclusive a participar, juntamente com o então parceiro Paulo Coelho, de sociedades iniciáticas inspiradas na doutrina do famoso esoterista inglês Aleister Crowley. Os títulos de alguns de seus discos – Por exemplo Aeon, Gita, este último contendo a música ‘Sociedade Alternativa’ – atestam essa tendência (MAGNANI, 2000, p. 19).

Como se pode ver, o fenômeno no país possui inúmeros meandros e idiossin-crasias, de modo que ainda que possamos pensar a Nova Era enquanto um fenômeno transnacionalizado que veio ao Brasil já com os moldes pré-estabelecidos. Ainda assim, temos que considerar que houve a emergência de elementos particulares neste novo cenário, no qual se mesclaram desde elementos ligados à pluralidade religiosa existente no país, até o cenário político e cultural pelo qual o Brasil passava no momento do “Boom” da Nova Era, em especial em seu momento mais ligado ao mercado, com destaque para o mercado editorial.

Devemos ainda destacar que o contexto da Nova Era liga-se ainda à alta modernidade, ou pós-modernidade como preferem alguns, no qual os

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processos identitários encontram-se mais dinâmicos, de modo que a possibilidade de arranjar e combinar identidades fragmentas mostra-se acessível como nunca antes (HALL, 2006). Da mesma forma que nesse momento há um recuo da religiosidade para a esfera da subje-tividade (BITTENCOURT FILHO, 2003), o nos leva a reconhecer que há uma maior liberdade para o processo de autonomização da identidade religiosa.

Não poderíamos pensar a emergência da Nova Era sem considerar o aspecto da individualidade moderna, uma vez que nas sociedades pré-modernas a tradição pesa sobre os sujeitos de modo que as escolhas encontram-se de forma limitada, ainda que reconheçamos que a tradição não é estática, nem tão pouco sepultada pela modernidade, que muitas vezes a reaviva ou mesmo a reinventa (GIDDENS, 1997). É no contexto moderno que se faz possível a elaboração de práticas religiosas que ressignificam elementos culturais diversos que são utilizados de forma performática, criando respostas ad hoc às diversas finalidades visadas.

Afora este aspecto ligado ao processo de individualização dos sujeitos que se liga às práticas religiosas da Nova Era (CAROZZI, 1999), há de se destacar também toda a rede que se criou em torno destas práticas, envolvendo tanto a esfera do mercado quanto também das vivências religiosas, não apenas individuais como também coletivas, uma vez que, compreendemos que a individualização moderna é importante para se compreender a emergência do fenômeno, porém este não se encerra neste aspecto apenas.

Para Magnani (1999), a Nova Era constitui um verdadeiro de circuito, pelo qual os praticantes vivenciam as mais diversas experiências, que não necessariamente ligam-se a um aspecto religioso. Segundo Amaral (1999), o que importa para os praticantes não é a profundidade das experiências, mas sim a quantidade, de modo que se buscará viven-ciar o maior número possível de práticas, e as mais variáveis possí-veis. Corroboramos com a autora ao entender que neste universo a quantidade e diversidade de práticas mostrar-se-á demasiadamente importante, no entanto, a profundidade destas experiências também possuirá implicações para os adeptos, até mesmo porque neste difuso universo encontramos várias práticas confessionais, nas quais exige-se exclusividade dos adeptos, complexos processos de iniciação.

Com relação ao circuito criado, Magnani (1999) destaca que entre as insti-tuições envolvidas há uma série de inter-relações, mas que não gera

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uma homogeneidade com relação às práticas e discursos adotados. Ainda segundo o autor nos encontramos diante:

[...] de uma sólida, bem estabelecida e consolidada rede, base para as escolhas que, pelos trajetos, determinam aproximações entre os requentadores por meio da adoção de certos princípios, hábitos e padrões de consumo. A noção de circuito, aplicada às atividades do universo neo-esô permite situá-las na confluência de outros, na dinâmica da cidade, sem construir um gueto, excêntrico, à parte: determinados eventos, como festivais, shows, apresentações, de maior repercussão, terminam atraindo um público mais amplo, sendo realizados em espaços não necessariamente identificados com esse universo, como os teatros do SESC, o Tuca, da PUC, o Centro Cultural São Paulo da Secretaria Municipal de Cultura, o Parque da Independência, no Museu do Ipiranga, e assim por diante (MAG-NANI, 1999, p. 77).

Ou seja, na medida em que se criam os espaços e circuitos há uma reinvenção não apenas dos elementos diversos trazidos, como também do espaço e do tempo, eventos que passavam desapercebidos passam a ganhar significados, como a passagem do calendário, as mudanças da lua etc. Espaços rurais passam a ser utilizados para sediar alguns desses movi-mentos, de modo que a própria relação homem natureza é repensada, neste sentido o discurso da Nova Era conflui com outros discursos não religiosos, como o ecológico, o feminista, o gay etc.

Há também a criação de todo um mercado em torno dos elementos que envolvem estas práticas no Brasil, que se refere não apenas aos eventos como também a lojas, livros de auto-ajuda, bem como propriamente esotéricos, roupas, revistas, cursos, workshops, viagens turístico-espiri-tuais etc. De toda forma por mais que se possa falar em um mercado esotérico os bens ofertados não são aleatórios, muito pelo contrário, estes buscam dar um significado às práticas postas por aqueles que acessam tal mercado, de modo que “a ‘utilidade’ dos bens em oferta está relacionada, por sua vez, a tudo aquilo que pode contribuir para a melhoria da qualidade de vida’ do consumidor [...]” (AMARAL, 2000,p. 126).

Este aspecto mercadológico demonstra apenas parte do fenômeno, pois como aponta Silva (2000, p. 190) com relação ao “boom” do mercado místico-esotérico:Argumentamos que a expansão do mercado editorial esotérico evidencia um fe-

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nômeno cultural muito mais significativo do que pode parecer à primeira vista. Pois observando-se a evolução do mercado editorial em todo o mundo, verifica-se, que embora tenha sido grandemente impulsionado, a partir dos anos 60 por uma série de fatores técnico-econômicos e também, político-culturais, a produção de livros continua a ser um negócio incerto e extremamente variável. [...] a literatura esotérica tornou-se um filão que permitiu não somente a expansão do mercado editorial neste campo literário por mais de 20 anos consecutivos, assegurando a publicação e venda de antigos e de novos títulos, como também, estimulando o aparecimento de novos escritores, de novas editoras, e de novos postos de venda especializados.

O que defendemos aqui é que no Brasil o desdobramento da Nova Era não se limitou ao aspecto mercadológico, muito pelo contrário, visuali-zamos que há um delineamento de um estilo de vida próprio àqueles que vivenciam as práticas da Nova Era. Siqueira (2003) aponta que este novo estilo de vida pode ser verificado através da incorporação de valores, que se difundem não apenas entre os freqüentadores e adeptos, como também na população de modo geral, para a autora:

[...] a busca e incorporação de visões de mundo, de valores e de significados que têm ocorrido ultimamente (unidade homem-natureza, espiritual-físico, mente-corpo, holismo-unicidade e lugar de polaridades; energia, karma) incluem, mas não se esgotam na direção orientalizante. Ademais, aqueles parecem não se restringir a grupos periféricos, ou somente a adeptos ou frequentadores de novas religiosidades (SIQUEIRA, 2003, p. 129).

Esta disseminação de valores é essencial para se compreender o momento posterior que trataremos aqui, que denominamos de New Age Popular, que se remete a uma reelaboração não apenas dos valores existentes como também dos diversos elementos: lingüísticos, visuais, performá-ticos etc. Entendemos que o desdobrar da Nova Era no Brasil possuiu, em princípio, um caráter bastante ligado à reprodução dos discursos e práticas realizados nos contextos originários da Nova Era, que se estende também à esfera mercadológica, bem como àquela ligada aos valores e aos estilos de vida, porém tal cenário vem se modificando, em especial a partir dos anos 80 quando tais práticas e discursos pas-sam a se atrelar aqueles já existentes no cenário religioso brasileiro, o que se tornará visível tanto a partir da emergência e expansão de

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novos movimentos religiosos, como também a partir da reelaboração de outros já existentes.

NEW AGE POPULAR OU A NOVA ERA À BRASILEIRA

Como já afirmamos, a Nova Era no Brasil possuiu inicialmente um caráter centrado muito mais numa reprodução do que é construído no âmbito norte americano e europeu, que inclui também leituras performáticas do xamanismo siberiano, da meditação tibetana, do zen budismo, etc, de modo que por vezes a figura do índio americano é muita mais recorrente que dos indígenas brasileiros (MAGNANI, 2000), que possuem também toda uma história de práticas xamânicas e terapêu-ticas milenares.

Neste primeiro momento histórico, que poderíamos datar do início do século XX até meados dos anos 80, possuindo uma expressão mais significativa partir dos anos 60, as preocupações estavam muito mais centradas em experienciar práticas já legitimadas no âmbito simbólico, que por sua vez só se faziam possíveis a partir do processo de transnacionalização da cultura (ORTIZ, 2006). Deste modo, são indissociáveis a emer-gência da Nova Era no Brasil e a Globalização. Segundo Magnani (2006, p. 171):

[...] muito mais freqüentes eram as referências aos índios das planícies norte-americanas, a Castañeda, aos incas, ao xamanismo siberiano – isso para não falar no esoterismo europeu, das filosofias orientais, dos cultos místicos da Antiguidade Clássica, da tradição wicca, do paganismo celta, etc.

Tais referências só se fazem possíveis ante ao desencaixe espaço/tempo existente

na modernidade (GIDDENS, 1991), de modo que se abre a possibili-dade da utilização, ainda que performática, de elementos diversos não pertencentes a um determinado contexto originalmente, mas que ao serem ressignificados passam a compor uma nova realidade, ainda que não necessariamente reflitam uma realidade simbolicamente geradora de sentido a todos de um dado grupo, como é o caso da Nova Era.

Bittencourt Filho (2003) chama a atenção para o fato de que a elaboração destas práticas globalizadas não englobou as massas. Em verdade os estudos de Nova Era apontam para o fato de que a grande maioria de seu pública origina-se nas classes médias/altas (MARTINS, 1999).

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Consoante ao autor:

É preciso ponderar que o sistema não logrou atender às demandas materiais e espirituais das massas, antes, acentuou as diferenças sociais e manteve as maio-rias distanciadas da racionalidade tipicamente moderna. Tal distanciamento, somado a outros fatores, fortaleceu o prestígio das mais diversas formas de magia. Amplíssimos segmentos empobrecidos da população – incluindo cama-das intermediárias ‘ órfãs’ do ‘milagre’ econômico – sentiram-se excluídas do ‘mundo moderno’, restando-lhes a incumbência de forjarem suas próprias regras e combinarem originalmente um mosaico simbólico que lhes conferisse sentido e dignidade (BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 187).

Ou seja, estas classes ao se encontrarem excluídas desses bens simbólicos passaram a elaborar seus próprios, que em parte partiam destes per-tencentes às classes médias/altas, e em parte partiam de elementos diversos olvidados na formação da Nova Era no Brasil. Notoriamente na medida em que determinados bens simbólicos, em termos de práticas e discursos, se afastam de seus contextos originários estes tendencial-mente são reelaborados (BOURDIEU, 2004).

Neste novo momento, elementos pertencentes ao catolicismo popular, ao espiri-tismo e às religiões afro-brasileiras são reavivados e articulados ao discurso da Nova Era, em verdade as experiências místicas e holísticas vivenciadas por estes freqüentadores abrem-se para práticas diversas já legitimadas no campo religioso, uma vez que, ainda que possamos falar em termos de hierarquia de legitimidade no campo religioso entre as religiões de possessão no Brasil (BRANDÃO, 2004). Estas sempre foram vistas enquanto sim-bolicamente eficazes, de modo que seus bens de salvação ofertados sempre foram procurados, ainda que temidas ou mesmo combatidas por vezes.

É importante neste momento destacar qual a definição de New Age Popular seguimos:

[...] uma nova releitura, a partir de um contexto social próprio, de práticas e tradições culturais originadas no Brasil e no exterior – entre as quais, a umban-da, elementos da religiosidade popular, o espiritismo kardecista e, o catolicismo popular, principalmente – nos moldes típicos da New Age, que recria aspectos culturais – como os rituais, principalmente os de possessão, das religiões populares no Brasil, além do aspecto estético –, que até então, não haviam sido enfatizado pelo movimento (OLIVEIRA, 2009, p. 39).

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Como já apontamos estas mudanças abarcaram não apenas o surgimento de novos movimento s religiosos, como também a reelaboração de prá-ticas existentes em religiões já estabelecidas no campo. No que tange aos Novos Movimentos Religiosos, que poderíamos enquadrar dento destas modificações, é importante destacar que muitos emergiram nos anos 60 e 70, ou mesmo antes, porém só ganham visibilidade nos anos 80, alias alguns como o Santo Daime, Barquinha, Vale do Amanhecer apenas fundam templos fora da sede neste período.

É importante neste momento destacar alguns dos principais movimentos que configuram o que denominamos de New Age Popular, de modo a esclarecer porque os enquadramos em tal categoria, claro que devido à pluralidade religiosa existente no país qualquer forma de generalização ou de classificação será sempre limitada (GUERRIERO, 2006).

Em nosso entender um dos movimentos mais emblemáticos desta categoria seria o Vale do Amanhecer. Fundado em 1969 por Neiva Z. Chaves, mais conhecida como “Tia Neiva” pelos adeptos, em Planaltina, cidade satélite de Brasília, em sua formulação místico-esotérica encontramos elementos do catolicismo popular, do espiritismo kardecista, das religiões afro-brasileiras, e da própria Nova Era, após a morte da fundadora em 1986 houve uma expansão do movimento, de modo que seu espaço físico se abriu para não adeptos em Brasília, havendo inclusive um templo da Universal do Reino de Deus neste local, como também houve a abertura de templos fora de Brasília sendo hoje cerca de 600.

As religiões ayahuasqueiras também se destacam entre aquelas que podería-mos enquadrar na New Age Popular, ainda que suas origens históricas remetam à primeira metade do século XX, quando, no Acre ,Rai-mundo Irineu Serra, mais conhecido como Mestre Irineu, teve acesso à ayahuasca, chegando a fundar uma doutrina nos anos 30 na qual, além do elemento indígena, encontram-se elementos do catolicismo e das religiões afro-brasileiras. Quando nos anos 80 o Santo Daime se dissemina, ele chega a possuir cerca de 42 comunidades, principalmente nas regiões Sul e Sudeste. A ingestão do Daime passa a ser associado à idéia de transcendência e à perspectiva holística difundida no universo Nova Era, cujos discursos influenciam na reelaboração da doutrina.

Encontramos ainda entre as religiões ayahuasqueiras, a União do Vegetal. Foi fundada em 1961 por José Gabriel da Costa, e seus adeptos acreditam que a bebida teria sido descoberta pelo Rei Salomão, personagem

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bíblico que teria passado os conhecimentos a um homem chamado Caiano. Ainda segundo os adeptos, este reencarnou como José Ga-briel. O movimento é atualmente o maior a se utilizar ritualmente da ayahuasca. Dentre tais religiões, a mais sincrética é eminentemente a Barquinha, fundada em 1943 por Daniel Pereira de Mattos, em tal movimento a influência da umbanda é mais notória.

Além destes movimentos nos quais o hibridismo cultural se faz mais per-ceptível encontramos a influência do discurso Nova Era também em outras expressões da religiosidade popular, de modo que a New Age Popular não se restringe aos novos movimentos religiosos, a própria umbanda possui vários ramos que se articulam com o esoterismo e mesmo com o daime, daí denominações denominadas umbandaime, e umbanda esotérica.

Além do mais encontramos ainda centros espíritas e afro que se utilizam do Reike, freiras que realizam acupuntura, dentre outras práticas, que nos fazem perceber como o campo religioso brasileiro tem se transformado e diversificado, e como que os discursos elaborados são sempre trans-formados gerando novas práticas capazes de dar significado às mais diversas realidades culturais.

O que destacamos aqui é que após os anos 80, e mais ainda após os anos 90, os sujeitos passam a reivindicar a elaboração de seus próprios discursos e bens simbólicos, não se restringindo à absorvê-los já prontos, me-nos ainda quando estes não refletem sua própria realidade em termos lingüísticos e visuais.

Na New Age Popular termos como caboclos, médium, passes, trabalho etc deixam de possuir o caráter historicamente estigmatizado que tinham até então e passam a ser percebidos como elementos legítimos dotados de eficácia simbólica, em especial nos rituais que remetem às curas espirituais. O processo de legitimação de tais elementos remete à experiência vivida por aqueles que buscam tais bens simbólicos, de modo que a legitimidade sai do argumento de autoridade como é recorrente na Nova Era.

Os pretos-velhos, os caboclos são reelaborados, apresentam-se como guias es-pirituais, e mais que isso são também “embranquecidos”, uma vez que a elaboração da New Age Popular não implica numa superação das relações sociais de dominação existentes, por mais que se possa pensar no contexto da “reafricanização”, ou “dessincretismo” dos cultos afro-brasileiros. Muito pelo contrário, as hierarquias simbólicas existentes reproduzem-se neste

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contexto, de modo que são mais comuns as referências ao espiritismo kardecista que aos cultos afro-brasileiros, já que no Brasil há uma grada-ção entre o espiritismo, umbanda e candomblé, indo da mais legítima a menos legítima, da mais branca a mais negra, da mais ligada a tradição escrita àquela ligada mais à tradição oral (BRANDÃO, 2004).

Estes elementos, em especial aqueles oriundos das religiões afro-brasileiras, são, desse modo, não apenas sincretizados como também ressignificados e reinventados. Os caboclos transformam-se neste contexto, estando presentes no Vale do Amanhecer, na Barquinha, no Santo Daime etc. Prandi (2005, p. 121) dá a seguinte definição de tais entidades:

O caboclo, que nada mais é do que o espírito de um índio ancestral brasileiro, foi originalmente o centro do culto dos mais tarde chamados candomblés de ca-boclo, de origem banta. Foi adotado depois pela umbanda, quando então sofreu transformações, mantendo-se, contudo, a mitologia da origem indígena e o uso do tabaco e de artefatos indígenas.

A existência de tais entidades não pode ser compreendidas de forma estática, até mesmo porque o sincretismo não é estático (BASTIDE, 1985). Deve ser, sim, entendida de forma contextual, de modo que o religioso não se desvincula do social e do político. A New Age Popular só pode ser compreendida, neste sentido, se consideramos o contexto histórico no qual esta se insere.

Argumentamos que o novo cenário leva a elaborações nas quais novas lógicas emergem, e também que tal este histórico viabiliza a configuração de novas formas geradoras de sentido, que ao mesmo tempo considera a esfera subjetiva do sujeito moderno como também o aspecto coletivo referente ao grupo social ao qual os indivíduos pertencem, de modo que a Nova Era é remodelada ante aos elementos da cultura e religio-sidade popular brasileiras.

Neste sentido, o projeto na Nova Era não é perdido, de modo que continua a fé no melhoramento da humanidade, no aprimoramento do self e no processo de evolução individual e coletivo. Porém, outros elementos não presentes originalmente inserem-se nesta nova síntese, possibili-tando a construção de uma totalidade simbólica geradora de sentido para as identidades excluídas socialmente no contexto moderno, em especial no sentido econômico e cultural.

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Os desdobramentos da New Age Popular longe de se configurar um fenômeno efêmero, apresenta-se enquanto uma formulação original geradora de sentido para as práticas religiosas daqueles que procuram suas vivências, e mais que isso sintetiza um dado momento histórico em que há um empoderamento por parte daqueles que historicamente apenas recebiam os discursos religiosos e os bens de salvação. Neste momento passam a formular seus próprios discursos de modo que possam refletir suas próprias realidades, como também elaboram seus bens de salvação que passam a transitar no próprio mercado religioso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos ao final deste trabalho destacando que qualquer apontamento realizado por agora é provisório, tendo em vista da dinamicidade apresentada pelo campo religioso brasileiro. De toda forma o que nos cabe destacar aqui é como as identidades fragmentadas dos sujeitos (HALL, 2006) possibilitam um arranjo infinito de possibilidades e combinações, que por um lado recepcionam os valores e os discursos trazidos pela Nova Era, por outro confrontam os mesmos recriando-os ante a realidade política, social e cultural apresentada.

Defendemos aqui que o percurso traçado da Nova Era para a New Age Popular não é simplesmente um movimento homogêneo, ou mesmo isento de tensões, muito pelo contrário, reflete sim um processo diacrô-nico de disputas simbólicas no campo, seja em torno da legitimidade das visões de mundo conflitantes seja em torno das possibilidades postas de criação de instrumentos significativos para uma dada realidade social.

Notoriamente além de rupturas, marcadas principalmente pela introdução dos novos elementos (com destaque para o elemento afro), há também continuidades em relação à Nova Era tanto que características funda-mentais como a crença no melhoramento individual e coletivo, bem como a de que a humanidade estaria ingressando num novo momento permanecem (OLIVEIRA, 2009). Assim como a possibilidade posta do arranjar e fazer convergir o discurso oriental e ocidental, ainda que mais uma vez chamemos atenção para as relações de poder aí postas marcadas principalmente pela perspectiva adotada em relação ao oriente criada nesta relação.

Por fim, cabe destacar mais uma vez aqui que a New Age Popular torna-se emblemática através de alguns movimentos religiosos emergentes, porém

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suas práticas são capilares, infiltram-se no campo religioso nos mais diversos movimentos, e talvez esta perspectiva ainda não tenha sido captada pelos pesquisadores da sociologia, antropologia e dahistória das religiões. Todavia, é um movimento que dificilmente terá volta. Isto também não implica em dizer que as vozes historicamente silen-ciadas agora mudaram posicionalmente de forma radical, até mesmo porque quando um discurso e/ou uma prática são criados pode ocorrer diversas apropriação que podem tanto questionar quanto ratificar as relações de poder e de dominação postas, de modo que encerramos aqui destacando que a New Age Popular é a marca da inventividade humana, e como tal é sempre dinâmica e expressiva.

FROM NEW AGE TO POPULAR: THE TRANSFORMATIONS IN BRAZILIAN RELIGIOUS FIELD

Abstract: this work aims contribute to historiography, but also sociological and anthropological terms, although the discussion of New Age in Brazil. It highlighting not only these ways but the deployment of New Age, especially from calling Popular New Age, which is a reworking of practices and discourses of classical New Age, considering elements present in Brazilian popular religiosity. In this sense, we understand this transformation with links about social, political, historical and cultural contexts. With this, we can be understood the dynamics of disputes flared in religious field. We note that the Popular New Age is present not only in New Religious Movements, such as “Santo Daime”, the “Valley of Dawn”, etcetera, but dissolved in variety of religious practices.

Keywords: Popular New Age. New Age. Religious Field.

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* Recebido em 15.12.2010. Aprovado em: 18.03.2011.

** Doutor em Sociologia pela UFPE. Professor na Universidade Federal de Alagoas.

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PÓS-COLONIALISMO

E RELIGIÃO:

POSSIBILIDADES

METODOLÓGICAS*

JOSÉ ROBERTO ALVES LOIOLA**

Resumo: o artigo propõe afirmar que o pensamento moderno, não se sustenta mais como suporte teórico único para os estudos de religião. O pensamen-to complexo nos lembra que o indivíduo é mais que a divisão binária; masculino-feminino. Há universos que se perpassam formando novos universos ao mesmo tempo, tanto globais, quanto locais. O artigo propõe o pós-colonialismo como uma epistemologia mais adequada para pensar a realidade religiosa que assume cada vez mais, a natureza cambiante da pós-modernidade.

Palavras-chave: Pós-colonialismo. Fenomenologia. Ciência da religião. Modernidade..

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A pesar da complexidade teórica que envolve a discussão na área dos estudos culturais e da religião, parece haver consenso que o paradigma da modernidade tem sustentado, por exemplo, concepções científi-

cas e teológicas culturais e filosóficas, principalmente entre os séculos XVI e XVIII, e elas tornaram-se assaz insuficientes para responder as demandas da humanidade. Criticar esse modelo epistemológico é uma parte do imenso desafio imposto pela agenda do pós.

Santos (2006, p. 25) é um dos pós-colonialistas que nos tem oferecido uma crítica bastante lúcida:

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[...] Tinha chegado à conclusão que a ciência em geral e não apenas as ciên-cias sociais se pautavam por um paradigma epistemológico e um modelo de racionalidade que davam sinais de exaustão, sinais tão evidentes que podíamos falar de uma crise paradigmática. Esse paradigma cuja formulação tinha sido o positivismo em suas várias vertentes, assentava nas seguintes ideias fundamentais; redução da complexidade do mundo a leis simples susceptíveis de formulação matemática; uma concepção da realidade dominada pelo mecanicismo determinista e da verdade como representação transparente da realidade; uma separação absoluta entre conhecimento científico – con-siderado o único válido e rigoroso – e outras formas de conhecimento como o senso comum ou estudos humanísticos; privilegiamento da causalidade funcional, hostil à investigação das “causas últimas [...].

O Pós-Colonialismo

Ao atribuir a paternidade da Ciência da Religião a Friedrich Max Müller (1823-1900), Greschat (2005) admite por outro lado, que sua ma-ternidade tenha sido da filologia. Logo, o interesse pelos estudos de religião parece ter derivado de trabalhos escriturísticos, incluindo tanto a tradução, quanto a produção de textos. Lembrando que os atores e autores nesse processo inicial de classificação morfológica das religiões laboraram basicamente numa perspectiva hegemônica européia. O autor indica o preconceito europeu em relação às histórias de algu-mas religiões não-européias em frases como a de George Grey; “Na verdade, suas tradições são realmente infantis. O fato de que há raças que baseiam sua fé absurda nelas é algo que nos deixa melancólico”. Continua Greschat;

[...] Para administrar suas colônias, outros europeus também tinham de aprender as línguas indígenas. Para exercitá-las, precisavam de textos. Portanto, lingüistas coletaram além de frases gramaticais padrão, textos simples como fábulas, provérbios e enigmas. Era muito difícil chegar a textos religiosos, cujo horizonte era muito mais amplo que o das narrativas infantis. Aliás, essa é uma das razões do preconceito europeu, segundo o qual religiões sem escrituras seriam primitivas [...] (GRESCHAT, 2005. p.54).

Não será necessário uma revelação especial, para concluirmos que tendo o

cristianismo embarcado nas caravelas patrocinadas pelo racionalismo

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europeu, na incansável luta por espalhar a moralidade cristã européia pelo resto do mundo, sob o pretexto da reta doutrina e da evangelização civilizatória, contribuiu muitíssimo para a consolidação não apenas da colonização em si, como também consolidou uma epistemologia, um jeito de pensar a experiência religiosa, de forma acentuadamente colonialista.

O pós-colonialismo expressa exatamente a idéia de uma contraproposta epis-temológica ao pensamento único, que alimentou não apenas o projeto de expansão européia justificado pelo mito da modernidade,

[...] Mas esta crueldade da Modernidade, invisível a seu núcleo eman-cipador racional ‘ilustrado (aufgenklärt)’, pareceria empalidecer diante dos sofrimentos dos camponeses pacíficos africanos presos como animais, transportados em navios pestilentos através do Atlântico[...] (DUSSEL, 1993. p.162).

Também estabeleceu uma radical separação entre Ciência e Religião. Essa di-cotomização por sua vez, converteu a ciência em ideologia, desgastando sistematicamente a relevância da experiência religiosa, reduzindo-a ou a uma neurose ou a uma magia ou superstição. Nesse contexto, a divindade passa a ser considerada uma mera projeção humana, enquanto o “homem se torna lobo do próprio homem” (Bacon e Hobbes). Oportunamente, Lévinas (2002), identificou um conseqüente paradoxo em que a razão científica ao regredir para uma aparência de racionalidade, negou os pressupostos da própria ciência. Restando-nos a astúcia da ideologia da guerra e da classe oposta à outra. Também para o autor, a episte-mologia moderna é positivista (neocientista) e favorece o afastamento do sujeito da realidade. Em suma, o estruturalismo é a síntese dessa visão cientificista, na qual não há lugar para valores, só técnica. Baruch Spinosa que propôs a demolição desse edifício ideológico; infelizmente, esqueceu de preservar o andar da idéia de Deus!

Diria em outras palavras que o pós-colonialismo de Santos propõe tanto uma aproximação da religião com a ciência e outras formas de co-nhecimento, quanto estabelece um novo desafio para as ciências da Religião, na pós-modernidade.

Aqui reside o maior desafio para os estudos de religião; se converter do colonialismo a partir de uma nova transição paradigmática, deslocando-se do referencial da razão indolente, para a multi-referencialidade de

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uma nova ecologia de saberes. O primado epistemológico moderno, já não responde às necessidades dos(as) sujeitos(as) religiosos(as) atuais cada vez mais complexas. Há que se romper com o “útero” da falsa universalidade do “conhecimento puro” e paradoxalmente, manter o cordão umbilical com o conhecimento sapiente, já que o pós-colonialismo não propõe a negação da ciência. Como o próprio Santos afirma, há que se realçar o aspecto edificante da ciência. Acreditamos, portanto, que sem esse novo nascimento, qualquer tentativa de ciência/s da/s religião/s será repetitivamente moderna.

A ruptura cartesiana, que propunha a separação entre imanência e transcendên-cia, ocasionou o que Lévinas classifica de, a ruptura da essência, a qual é superada em Santos pelo que ele chama de dupla-ruptura (quebra da rigidez tanto da ciência quanto do senso comum). Nesse novo contexto semântico, o autor anuncia uma racionalidade cosmopolita e entende ser possível construir uma nova ética e uma nova política de baixo para cima, do ponto de vista do colonizado. Ou seja, a ciência e o senso comum precisam se descolonizar. Concordando com Santos, Lévinas, diria que isso seria o retorno à moralidade da moral e o reencontro com o outro. Seria também a recuperação da transcendência e a recolocação da verdadeira ciência. E mais, seria a destruição da burocracia ima-nentista, cujo rigor científico universaliza a clausura do ser. E somente assim, conclui o autor, seria possível a volta do “interessamento e da responsabilidade”. Felizmente essa “dupla ruptura” já é possível ser constatada segundo a teóloga feminista, Wilmes (2007):

[...] Numa sociedade pós-moderna na qual tradição – não importa quais – se ramificam em muitas direções, é possível escolher elementos de muitas tradições. E não somente isso: também dentro de uma tradição, como por exemplo, a judaico-cristã – manifesta-se a pluralidade de direções. O que se manifesta na nossa perspectiva como elementos fixos da realidade são a diversidade e heterogeneidade, e já não a unidade, aquilo que é comum. O saber canonizado está perdendo sua importância, outras formas de orientação histórica estão se impondo[...] (WILMES, 2007, p. 16).

O Fenômeno Religioso

Ao falar da relação da filosofia da ciência e o senso comum, Rubem Alves (1996), alerta-nos de que “quando se esgotam os recursos da técnica”,

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florescem sempre um representante do sagrado; o padre, o feiticeiro, o pastor, e outros. É como se a experiência religiosa estivesse sempre em standby. Na verdade, a superação dicotômica entre ‘ciência’ e ‘religião’ está na admissão do fato de que não há conhecimento absoluto:

[...] Parece-me que esta conclusão é válida para todos os níveis do conhe-cimento humano. Se o conhecimento constrói sobre a emoção, isto é, se o conhecimento é a racionalização de uma maneira de ser do sujeito em relação ao objeto, nem mesmo o conhecimento científico pode ser absoluto. Nas palavras de Popper, “não conhecemos; só podemos dar palpites. E os nossos palpites são guiados pela fé não-científica, metafísica (muito em-bora biologicamente explicável), em leis que nós podemos descobrir [...] (ALVES, 2005, p. 111).

Se como afirmou o autor, em nenhum nível do conhecimento humano existe um que seja absoluto, o que dizer do conhecimento religioso? Será pos-sível sustentar a afirmação de que uma determinada religião ou uma determinada teologia, ou um determinado sistema ritualístico ou uma determinada noção do sagrado seja a única e última verdade? Como acreditamos que não, entendemos ser mais relevante investigarmos o fenômeno religioso a partir de um conceito cientifico edificante (discriminando adequadamente a natureza de cada conhecimento que o constitui). Isso nos remete a uma definição do fenômeno religioso.

Considerando que o fenômeno religioso dá-se na interação entre o sujeito e o que ele atribui como sagrado; não havendo, portanto, consenso único sobre um único sagrado; o fenômeno religioso então, são composições pessoais, culturais, individuais e coletivas, que certa(s) ciência(s) da(s) religião(es) procura descrever e analisar comparativamente em relação aos vários significados que a simbólica religiosa pode ter para cada pessoa.

Os inúmeros tipos de experiências religiosas, associados a inúmeras neces-sidades humanas verificáveis, faz com que a realidade social se torne no chão ou no cenário do fenômeno religioso, sobre o qual uma gama de profissionais da área de humanas, possa pesquisar.

Filoramo (1999) e Prandi (1999) ao reconstituir o histórico do Estatuto científico das ciências das religiões, destacam que no período po-sitivista as grandes características da ciência da religião foram; a apologética e o cientificismo. Ao indicarem o arrefecimento do posi-tivismo em fins do século XIX, ocasião em que Max Müller inicia

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seus trabalhos sobre religiões comparadas, passa-se a ter duas ênfases interpretativas. Uma que insistia em ‘explicar’ o fenômeno religioso e a outra, que buscava manter uma relação mais ‘compreensiva’ com o referido fenômeno.

Como explicar o fenômeno religioso?

Segundo os autores, a ênfase no modelo explicativo opõe-se ao da compre-ensão, na medida em que tenta-se explicar a religião a partir da lógica das ciências naturais. Sabemos por exemplo que tanto na academia, quanto na paróquia, não é possível dizer o endereço ou a forma origi-nal da revelação/sagrado na consciência humana. A provável certeza é que nossa linguagem sobre Deus é sempre simbólica. Quem quiser insistir nessa ‘explicação’, deve atentar para o que diz Alves (2005, p. 26), parafraseando Wittgenstein:

[...] ‘uma luta contra o feitiço que formas de expressão exercem sobre nós’. A idéia de feitiço é muito sugestiva. Que é estar enfeitiçado? É estar sob o poder de algo estranho que nos domina sem que o saibamos, que está presente sem que o vejamos. Pensar a linguagem como uma forma de feitiço é reconhecer que ela nos possui e nos domina, o que torna impossível nos apercebermos do sentido último de nossa conduta [...] Antes de tudo, é necessário arrancar da linguagem suas vestimentas sagradas, suas pretensões de verdade. Linguagens são construções da realidade. Elas não são cópias do real. As linguagens exprimem nossos palpites acerca do mundo. Lutar contra o feitiço da linguagem, portanto, é lutar contra suas pretensões dogmáticas, que na religião recebem o nome de ortodoxia [...].

Meslin (1992) ao se referir sobre a função dos símbolos religiosos admite que o sentido simbólico seja uma contribuição marcante das ciências humanas. Entende que diante dos conceitos formais, o símbolo é muito mais rico e amplo, quer pela sua plurivocidade, quer por sua ambivalência.

[...] Todos sabemos que o homem não cessa, a cada instante de sua exis-tência, de interpretar e transpor a experiência imediata que ele faz de todas as coisas. Desta forma, ele dá um sentido aos fenômenos que verifica nos acontecimentos que vivem; essa expressão se torna para ele a própria expressão da realidade [...] (MESLIN, 1992, p. 166).

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Portanto, conforme o autor, qualquer comunicação de uma experiência direta com Deus, não apenas está em aberto, como só pode ser fundamentada na linguagem. Ao ignorar esse dado, o estudioso de religião, pode cair em reducionismos como veremos a seguir.

O primeiro tipo de ênfase interpretativa, conforme Filoramo e Prandi retomam os princípios positivistas, na medida em que precisam de uma estrutura própria do mundo empírico que “pode ser decom-posta e recomposta em subestruturas e agregados mais elementares”. Reforça-se nessa perspectiva o método do tipo monoteísta, segundo os autores.

Nessa tentativa de explicação do fenômeno religioso, o risco de reducionismos é muito freqüente. A propósito, as disciplinas da área de humanas que encetarem a tarefa de abordar o fenômeno religioso sem uma perspec-tiva pós-colonial, poderão cair na velha armadilha da racionalidade moderna, a saber; o pensamento único.

A questão da busca pela essência é muito debatida hoje, entre os autores de orientação, Platonico-agostiniano-Kantiano-junguiana, versus autores de orientação mais sociológica.

[...] Para Marx a religião é ‘expressão’ da miséria real e ‘protesto’ contra essa miséria. A miséria real é a miséria material daí a religião ser o ‘suspiro da criatura oprimida, o sentimento de um mundo sem coração, o espírito de situações em que o espírito está ausente. É o ópio dos povos’. A chave para a concepção de mundo, para Marx, está no processo produtivo. Nele o homem se auto-aliena. ‘Quanto mais o ho-mem põe Deus em primeiro lugar, menos se ocupa consigo mesmo [...]’ (CAMPOS, 2009).

Na perspectiva das ciências sociais, não há uma essência na religião. Relevan-te, é o contexto social e a perfomance da religião, diante das questões econômicas concretas:

[...] Augusto Comte (1798-1857) está associado ao ‘positivismo’ e é conside-rado o ‘pai da sociologia’, visto ter cunhado no fins dos anos 30 (Século XIX) o termo ‘sociologia’. Teorizava Comte que o mundo estava caminhando para um terceiro estágio – positivo ou científico – cuja principal característica seria o abandono dos resquícios das etapas anteriores: mitologia, teologia,

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metafísica e outras manifestações próprias da ‘infância’ da humanidade [...] À nova ciência, Sociologia (Física Social) caberia a função de tornar o saber total e abrangente, tanto sobre a natureza como sobre a história. Como ciência, a sociologia deveria resolver todos os problemas da huma-nidade e promover a coesão de todos aos bons ideais, dentro de um clima de ‘ordem’ e de ‘progresso’. Contudo, no final da vida, Comte propôs uma nova religião, que cultuaria a razão e a humanidade. Essa seria a religião do ‘grande ser’ a religião universal [...] (CAMPOS, 2009).

Na verdade, essas ideias foram revisitadas, posteriormente, pela escola de Frankfurt. Todavia, são exemplos dos riscos de se levar às últimas conseqüências o viés ‘explicativo’ na tentativa de abordar o fenômeno religioso com apenas um referencial. Eu diria que Durkheim, já nos advertia ao afirmar que a religião é algo indefinível em si mesma. Segundo ele, seu estudo deveria considerar apenas suas expressões no meio da sociedade. Mas será que é só isso?

Como compreender o fenômeno religioso?

Filoramo e Prandi continuam apresentando uma descrição do desenvolvimen-to metodológico nos estudos de religião, apontando a possibilidade de explicar, compreendendo. Os desafios persistem principalmente no equilíbrio entre os campos das ciências naturais e das ciências humanas. Os autores chamam a atenção para o risco da prevalência de premissas de um campo sobre o outro, mas não indicam limites. Portanto, per-sistem as questões a seguir; como explicar uma experiência religiosa à distância, sem envolvimento? Como explicar um fenômeno religioso adequadamente, se o(a) pesquisador(a) não for um crente e nem um pouco agnóstico? Ou não conhecer o método científico?

[...] Tudo isso, não está disprovido de conseqüências também no plano epis-temológico. Como já havia basicamente intuído Max Weber, a contraposição entre a explicação e compreensão vai sendo progressivamente substituída por um modelo de integração baseado, de um lado, na necessidade de um plura-lismo metodológico que encontre no interior de cada trajetória as garantias da própria ‘cientificidade’ e, do outro, na necessidade de levar em conta os aspectos ‘subjetivos’ da pesquisa [...] (FILORAMO; PRANDI, 1999. p. 11-2).

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A essa altura do nosso trabalho, acreditamos que esteja mais clara a razão pela qual afirmamos anteriormente que o pós-colonialismo de Santos, oferece ao estudioso da religião um sistema epistemológico mais versátil, onde todos os aplicativos metodológicos1 tanto os que enfatizam o devir histórico, quanto aqueles com tendências mais me-tafísicas podem ser operados. Usando as palavras de Filoramo e Prandi, cremos que o politeísmo metodológico poderia ajudar na elaboração de um estatuto curricular não-dicotômico, interdisciplinar, onde tanto a ciência, quanto o senso comum, tivessem não uma relação de oposição, mas de complementaridade. Até porque, conforme os autores,

[...] O que se dá a conhecer ao estudioso dos fenômenos religiosos não é nem uma ‘religião’ no estado puro, nem só a psique ou a cultura ou a sociedade, mas um entrelaçamento concreto, historicamente dado, entre determinadas ‘individualidades’ religiosas com sua particular lógica e estrutura e determinados contextos histórico-sociais. Caberá depois à análise decifrar e reconstruir, caso a caso, a delicada trama subjacente a essa urdidura [...] (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 20).

A complexidade do fenômeno religioso e a epistemologia psicológica

Não tomamos o termo complexo aqui, como mero sinônimo da palavra “dificuldade”, mas nos sentido que Edgar Morim emprega. Em que a realidade não deve ser vista apenas pelo prisma da linearidade. A propósito, o arquiteto Oscar Niemayer já demonstrou com o auxílio da matemática, como o curvilíneo pode se harmonizar com o retilíneo. Essa visão complexa e tridimensional do mundo, pode nos auxiliar, por exemplo, no entendimento de que o fenômeno religioso pode ser explicado e compreendido por várias teorias e disciplinas e nenhuma delas, deve pressupor esgotá-lo.

De Wilhelm Wundt a Antonio Godin a teorização psicológica sobre a religião, tem sido densamente diversa. Assim como o empirismo associado ao materialismo tem permeado significativamente esse debate. Poderíamos citar alguns psicólogos de ambientes psiquiátricos e psicanalíticos, fecundos epistemólogos que contribuiram razoavelmente para uma teoria mais geral de fenômeno religioso dentre eles, poderíamos citar Sigmund Freud na área da Psicanálise que ao reduzir o fenômeno

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religioso a uma neurose, reproduziu o iluminismo em sua abordagem. Todavia, retomando o conceito do pensamento complexo, a linha reta da epistemologia de vários autores e autoras, inclusive a de Freud, contribuíram significativamente no aperfeiçoamento do método de abordagem da religião. Filoramo e Prandi confirmam isso ao citar o próprio Freud:

[...] “Se a aplicação do método psicanalítico pode-se obter um novo ar-gumento contra o conteúdo de verdade da religião, pior para a religião, mas com o mesmo direito os defensores da religião poderão servir-se da psicanálise para confirmar plenamente o significado afetivo da doutrina religiosa [....] (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 175).

Conforme Valle (1998), a psicologia da religião é na verdade uma colcha de retalhos teóricos, onde se encontra as várias tendências verificadas na ciência psicológica. Inspirados em Freud, Jung e em muitos outros, o pêndulo oscila desde objetivação do fenômeno religioso à espiritu-alização mais radical desse fenômeno, promiscuindo, sem qualquer distinção, o real e o irreal [...] do behaviorismo à transpessoalidade, do bioneurológico às difusas modalidades de humanismo religioso ou ateu.

[...] Algumas dessas orientações acentuam a dimensão subjetiva; outras, a dimensão objetiva da experiência e do comportamento religioso. São reproduzidas sob o manto da linguagem psicológica, todas as problemati-zações encontradas na filosofia contemporânea. Podem ser identificadas, entre outras, as seguintes confluências teóricas: o comportamentismo, o pensamento existencial, a fenomenologia, o positivismo, o cognitivismo, o vitalismo, o romantismo, o materialismo fisiológico, o diealismo, o marxismo, o estruturalismo, a lingüística, etc [...] (VALLE, 1998, p. 45).

Poderíamos acrescentar ainda, a orientação pós-colonialista fenomenológica.

Será que a fenomenologia husserliana ajudaria o cientista da religião pós-colonial? Antes de tentarmos responder a essa questão, baseado em Filoramo e Prandi, acreditamos que não devemos esquecer que a ciência da religião nasce no contexto das ciências humanas, e estas, por sua vez, foram gestadas no iluminismo. Seu grito de independência na segunda metade do século XIX tornou possível a elaboração de um estatuto científico da ciência da religião, que vem sendo aperfeiçoado

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ao longo da história. E é claro, que o ranço positivista sempre esteve presente em suas opções metodológicas. Portanto, antes de encontrar um bom método é preciso construir um quadro teórico que pelo me-nos nos dê a garantia de manter o vírus da dicotomia-positivista em quarentena. Os autores também nos lembram que é também no século XIX, que De Brosses, Ch. Dupuis, Chr. Meiners e B.Constant, que “baseavam-se no pressuposto iluminista da fundamental unidade da natureza humana e suas diferentes expressões, incluindo religiosas”, lançam o pioneiro método da religião comparada, que irá provocar um forte e necessário abalo na superioridade epistemológica da teologia cristã-carteziana.

[...] Rejeitado o preconceito teológico da superioridade da revelação cristã, eles apresentam o mundo das religiões procurando abolir qualquer fronteira entre o mundo cristão e o mundo não cristão. Além de nomear e classificar os fatos religiosos, reagrupando-os em determinadas “espécies” (fetichismo, magia, tabus, culto dos mortos, astrolatria,etc), esses estudos colocavam-se o problema de captar, graças à comparação, aquilo que unia as várias religiões [....] (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 28).

Diante desse quadro, convém-nos às perguntas; como os estudos de religião poderão contribuir no processo de tolerância entre as religiões mun-diais? Como os estudos de religião podem ajudar na conscientização da preservação do planeta. Como o cristianismo pode finalmente experi-mentar a kenósis do Cristo e de fato ser solidariamente trangressor de sua própria racionalidade pura, misturando-se nas regiões de fronteira a exemplo de Anzaldúa2? É claro que tais questões não poderão ser aprofundadas nesse artigo, mas penso que trabalhos como o de Aloysius Pieris (2008) nos encoraja, por exemplo, a quebrar a superioridade da religião cristã sobre as religiões afro-brasileiras. É claro que para tanto, precisamos aperfeiçoar a cada passo nossos métodos de aproximação dos fenômenos religiosos pensando cada vez mais numa sociedade plural e emancipada, política e socialmente.

A FENOMENOLOGIA DA RELIGIÃO

Quando a fenomenologia nasce com Edmund Husserl (1859-1938), cumpre inicialmente o propósito de dar mais consistência racional à filosofia.

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Na verdade, ela surge como uma profunda crítica à filosofia Kantiana. Marx e Nietzsche influenciaram significativamente o pensamento hus-serliano que se apresentou contra o psicologismo e a intencionalidade da consciência, fundamentando-se a partir dos conceitos; epoché e visão eidética. Fenômeno (do grego) é: literalmente aquilo que aparece.

[...] A nova palavra de ordem do movimento fenomenológico (voltemos às coisas) – com seu esforço anti-metafísico e realista de investigar as reali-dades que nos circundam, captando, graças à suspensão do juízo (epoché) e à capacidade intuitiva do pesquisador, a sua essência (visão eidética) – dava substância e coerência filosófica às difusas exigências de voltar a estudar a riqueza e a variedade da experiência humana segundo métodos não redutivos, mais aptos a restabelecerem a sua viva complexidade e variedade [...] (FILORAMO; PRANDI, 1999. p. 29-30).

Fenomenologia e Pós-Colonialismo

Nesse aspecto, o método fenomenológico de Husserl faz uma intersecção clara com a teoria pós-colonial de Santos e se constitui viável para os estudos de religião, na medida em que acredita que:

[...] A ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer qualquer razão científica para considerar melhor que as explicações alternativas da metafísica, astrologia, da religião, da arte ou da poesia. A razão por que privilegiamos hoje a forma de conhecimento assente na previsão e no controle dos fenômenos nada tem de científico. É juízo de valor [...] (SANTOS, 2003, p. 139).

Juízo de valor é o que a fenomenologia de Husserl propunha suspender,

enquanto o pesquisador estivesse diante do fenômeno. Essa noção de epoché será mantida na formulação da fenomenologia religiosa. Por exemplo, Filoramo e Prandi nos lembram que é com essa perspectiva que Wilhelm Dilthey anuncia um tempo de triunfo da ciência do espírito sobre a psicologia genético-positivista. A propósito, Gerardus Van der Leeuw (1933), apresenta sucintamente o método fenomenológico no campo religioso quando diz, “o fenômeno é ao mesmo tempo um objeto que se refere a um sujeito e um sujeito em relação com o objeto”. O autor Rudolf Otto, também contribuirá significativamente a partir de

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uma perspectiva alemã, oferecendo excelentes análises . Posteriormente, uma série de tradições fenomenológicas renomeará a antiga ‘história comparada das religiões’ sob novos títulos disciplinares.

Uma Possível Fenomenologia Pós-Colonial da Religião

Pensamos como um propósito geral que a noção eidético-epoché husserliana, deva ser combinada com a dupla-ruptura de Santos ou com a dupla-crítica de Mignolo(2003). Todavia, entendemos ser fundamental resignificar o que Husserl chamava de “essência” evoluindo para o conceito amplo de uma alteridade. Acreditamos que podemos pensar a “essência” em termos de uma “ética”, conforme Lévinas sustenta em seus trabalhos no pós-guerra. Então, poderíamos estabelecer como objetivo geral para uma fenomenologia pós-colonial da religião o seguinte; Analisar o fenômeno religioso em perspectiva pós-colonial, atribuindo como válido todas as teorias e teologias que reforcem a alteridade nas tra-dições escritas ou não. Um segundo objetivo geral seria; aprofundar uma análise crítica da retórica discursiva tanto dos textos sagrados, quanto da linguagem ritual. E mais especificamente; a) Usar nessa análise tanto os critérios científicos, quanto os do senso comum. b) Identificar nas experiências religiosas, formas de harmonização entre as premissas das ciências sociais e naturais.

Os tempos pós-modernos exigem epistemologias cada vez mais dinâmicas. Na área da religião até pelo seu histórico, a fenomenologia ainda pode ser uma metodologia cada vez mais ampla e flexível, podendo estabelecer critérios dentro de uma fixidez cada vez mais provisória. Não incluir a discussão ética e política nesse trabalho é corrermos o risco de continuarmos no discurso absoluto e universal que por pelo menos duzentos anos o racionalismo moderno nos conduziu como teólogos e estudiosos da religião.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não acreditamos que possamos simplificar a complexidade do fenômeno religioso a um plano teórico mais funcionalista ou fisiológico. As ideias pós-coloniais podem oferecer certamente alternativas criativas e mais completas tanto para explicarmos, quanto para compreendermos as várias nuances da experiência religiosa. A superação dos reducionis-

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mos; filosóficos, sociológicos, teológicos, psicológicos, materialistas e espiritualistas, só é possível a partir de uma profunda crítica das pre-missas dicotômicas da agenda do pensamento hegemônico ocidental. Razão pela qual o pós-colonialismo de Santos, se apresenta como uma ferramenta epistemológica assaz compatível para essa reflexão.

A fenomenologia da religião, que é filha da fenomenologia filosófica de Edmund Husserl, a partir das várias adaptações históricas, parece ser a atitude metodológica ainda viável para a consolidação do estatuto científico inaugurado por Max Müller no século XIX.

Essa discussão continua aberta e muito relevante em tempos tão líquidos e complexos identificados como pós-modernidade. Algumas soluções pós-modernas tem se mostrado meramente repetidoras do pensamen-to moderno, classificadas por Santos pela expressão Pós-modernismo celebratório. Como toda teologia e doutrina religiosa se expressam a partir de uma epistemologia, entendemos ser fundamental adicio-narmos à noção fenomenológica da religião, o suporte teórico do Pós-colonialismo de oposição.

POS-COLONIALISM AND RELIGION: METHODOLOGICAL POSSIBILITIES

Abstract: the paper proposes to state that modern thought, no longer holds only as theoretical support for studies of religion. Complex thinking reminds us that the individual is more than the binary split male-female. There are universes which run through forming new universes at the same time, both global and local. The article suggests post-colonialism as an epistemology more appropriate to think of the religious reality that is increasingly, the changing nature of post-modernity.

Keywords: Post-colonialism. Phenomenology. Science and religion. Modernity.

Notas

1 Estamos pensando nesse exemplo, de forma análoga à linguagem técnica da infor-mática; onde a epistemologia pós-colonial e as metodologias da(s) ciência(s) da(s) religião (es), podem ser comparadas à relação de compatibilidade que um “sistema operacional”, pode ou não, ter com “programas /aplicativos”.

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2 Glória Anzaldúa é autora feminista mexicano-norteamericana que trabalha o con-ceito “mestiçagem” para descrever sua teoria sobre a vivência dramática de mesti-ços nas fronteiras culturais, como lugares tanto de devastações e matanças como de possibilidades e ressignificações.

Referências

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MESLIN, Michel. A experiência humana do divino: fundamentos de uma antropo-logia religiosa. Tradução de Orlando dos Reis. Petrópolis: Vozes. 1992. pp.166-195.

FILORAMO, Giovanni; PRANDI, Carlo. As ciências das religiões. São Paulo: Paulus. 1999.

ALVES, Rubem. Religião e repressão. São Paulo: Loyola, 2005.

LÉGER, Danièle Hervieu. O peregrino e o convertido: religião e movimento. Tradução de João Batista Kreuch. Petrópolis: Vozes, 2008.

CAMPOS, Leonildo Silveira. O estudo da religião nos clássicos das Ciências Humanas e Sociais. Introdução à Ciência da Religião. Aula n. 3(39 slides). 08/09/2009.

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LÉVINAS, Emmanuel. De Deus que vem à idéia. Tradução de Marcelo Fabri, Marcelo Luiz Pelizzoli e Evaldo António Kuiava. Petrópolis: Vozes, 2002. Título original: De Dieu qui vient a L´idée.

MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/ Projetos Globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003.

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DUSSEL, Enrique. 1492 o encobrimento do outro: a orígem do mito da modernidade; conferências de Frankfurt. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes,1983.

PIERIS, Aloysius. Viver e arriscar. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2008.

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* Recebido em: 20.03.2011. Aprovado em: 01.04.2011.

** Universidade Metodista de São Paulo

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LINDEN, Ian. Global Catholicism: diversity and change since Vatican II. London: Hurst Publishers, 2009. 337 p.

O CONCÍLIO VATICANO II

E A MODERNIDADE RELIGIOSA

EM PERSPECTIVA

R E S E N H A S

A Igreja Católica é uma instituição que atrai boa parte dos pesquisadores em sociologia da religião. Uma das razões para esse fascínio pode estar em sua ampla capacidade de lidar com as próprias divergências internas e com aquelas que lhe chegam a partir das mais diversas sociedades. Essa habilidade perfaz o caráter universal da Igreja e sua dimensão instigante.

Nesta direção está o caminho que o livro de Ian Linden vai percorrer. O autor é ex-diretor do Instituto Católico de Relações Internacionais e atual professor associado at SOAS (School of Oriental and African Studies), University of London.

Linden retrata a Igreja de um modo que expõe as fragilidades e fortalezas desta instituição, assim como sua interlocução nem sempre pacífica com o mundo moderno. Este parece ser o eixo principal do livro, composto por dez densos capítulos que contemplam as transformações da Igreja em vários continentes. O autor analisa com acuidade o que poderíamos denominar de maior evento histórico de transformação do catolicismo na modernidade, o Concílio Vaticano II e sua repercussão mundial.

O Concílio Vaticano II abrangeu não apenas a Igreja européia, mas foi uma construção que pôde contar com as mãos de leigos e clérigos no oci-dente moderno. A abrangência do Concílio mereceu do autor uma abordagem igualmente vasta e este é um dos principais méritos do livro. A contextualização histórica e política surpreendem pelo nível

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de detalhamento e pela inclusão dos principais atores envolvidos com o tema em destaque.

O livro traz uma breve autoapresentação do autor a partir da qual o leitor fica situado em relação a perspectiva analítica da obra. Profundo conhece-dor da Igreja Católica, por pesquisas e por inserção, Linden pode ser caracterizado como um intelectual orgânico nos termos Gramscianos.

A Igreja Católica precisa ser compreendida por sua constituição não mono-lítica. Desse modo, no início do trabalho tem-se a apresentação da Igreja como composta por quatro modelos: o primeiro explicitaria a Igreja dos Batizados; o segundo, a Igreja autorepresentada, como ela se vê e se apresenta ao mundo; o terceiro contemplaria os aspectos burocráticos e institucionais da instituição e o quarto, seria a Igreja tal como é percebida pelo mundo, pelas diversas sociedades. A partir dessas considerações Linden quer assegurar o caráter múltiplo e com-plexo da constituição do Concílio Vaticano II, formado a partir de plurais percepções de Igreja e por vários atores em distintos contextos sócio-históricos.

Para apresentar com mais propriedade o que foi o Concílio Vaticano II e o processo de modernização do catolicismo, o autor analisa brilhantemente os antecedentes históricos e culturais que propiciaram a consolidação deste evento. Para isso, trabalha no primeiro capítulo do livro o que denominou de legado do anti-modernismo analisando o contexto da França anticlerical e as reações da Igreja Católica a essa tendência oriunda da Revolução Francesa. A Igreja Católica na Europa liberal é crítica a todo tipo de “ismos”, mas o modernismo foi o mais rejeitado pela instituição nos séculos 18 e 19. Nesta parte do livro o autor faz uma minuciosa análise do desenvolvimento das críticas da Igreja ao modernismo por meio de vários documentos eclesiais. Linden relata, por exemplo, que em 1910 o modernismo foi denominado por Pio X de “ receptacle of all heresias”.

A postura e o papel dos papas que antecederam o Concílio e dos papas João XXIII e Paulo XVI é tratada no livro com grande propriedade. A riqueza de detalhes e a revelação do que seriam os bastidores do Concílio deixa o leitor com pouco fôlego e ávido por adentrar nas tramas de uma história real.

Os quatro primeiros capítulos do livro trabalham em detalhes os conflitos e ambigüidades de posições dos clérigos em relação aos rumos do Con-cílio Vaticano II, bem como a relação dos eclesiásticos com o mundo

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moderno. O combate à nova teologia empreendida, sobretudo pelos teólogos franceses, e a necessária abertura ao pluralismo das sociedades colocavam a Igreja numa atitude de queda de braço. Linden analisa detidamente as contribuições dos dominicanos e jesuítas na formulação da nova teologia.

As contra-correntes e as tendências mais liberais dentro do episcopado mundial são trazidas de modo a deixar o leitor bem informado sobre bispos e teólogos que tiveram grande influência na transformação do pensamento da Igreja. A secularização de Jackes Maritain, o ecume-nismo do dominicano francês Yves Congar, o humanismo cristão de D. Helder Câmara, são alguns dos exemplos das diferentes correntes que balançavam o neo-escolasticismo. Embora muitas figuras mascu-linas sejam lembradas, o autor dá destaque para a renovação da vida religiosa feminina, sobretudo nos USA, por meio da Sister Formation Conference, fundação criada pela religiosa Mary Emil Penet na última década anterior ao Concílio.

A partir do quinto capítulo o autor se dedica à análise das imbricações po-líticas e religiosas nos países situados fora do continente europeu que tiveram também lugar nas reflexões conciliares. São analisadas ainda as configurações da missão católica no início do século XX também na Nova Zelândia e na América Latina. Ao mesmo tempo o autor empreende uma detalhada análise dos conflitos da Igreja no Chile e na América Central. Grupos como os Christians for Socialism criado nos primeiros anos após o Vatican II mereceram destaque na análise de Linden. Impressiona como o autor trabalha as perspectivas dos atores envolvidos como se estivesse ele mesmo presente nos eventos. A relação entre Igreja chilena e o governo Allende não são negligenciadas em sua elaboração analítica.

Não há como analisar o Concílio Vaticano II, ocorrido nos anos 1962-1965, sem a ele relacionar o fundamental papel da Igreja da América Latina com a emergência da teologia da Libertação que aflora sob o temor do comunismo. O livro dedica um capítulo a esse tema: a Igreja dos pobres na América Latina. Aí são analisados o papel da Ação Católica, da juventude militante e a opção pelos pobres que se institui como um lema no período conciliar de aggiornamento.A análise de Linden é crítica e demonstra como o continente marginalizado enfrentou resistências também diante das prioridades conciliares ou do que seria um viés temático europeu. Naquele período, as viagens dos papas não

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eram freqüentes e a América Latina aparecia como um continente lon-gínquo, analisa Linden. A experiência dos padres operários na França tinha suscitado resistências e tinha sido até mesmo condenada por Pio XII, mas os ideais e as práticas da pobreza por parte do clero e das religiosas permaneceram apesar de tudo. Esse era um tema candente que não seria ignorado na fase conciliar e pós-conciliar.

O livro sela de forma inexorável as interações entre religião e política. O autor constata, com certo pesar, que o apartheid na África do Sul foi praticamente ignorado pelo Concílio. Contudo, o envolvimento de clérigos e religiosas na defesa dos direitos humanos e o apoio e solida-riedade prestados aos militantes africanos ilustram que os modelos de Igreja apresentados inicialmente por Linden são procedentes. Um dos personagens mais contundentes na luta contra a segregação racial foi o arcebispo Denis Hurley, fortemente mencionado em toda a análise de Linden sobre esse contexto sociopolítico. A Igreja não se reduz e nem se abre ao mundo apenas por meio de suas formulações doutrinárias, mas antes pela prática de seus adeptos que forçam constantemente a revisão da tradição.

As Filipinas e a África do Sul são analisadas em um mesmo capítulo e se constituem como um exemplo da construção de uma crítica ética das condições social, econômica e política de determinadas sociedades. A análise do autor privilegia a rejeição desses países a todo tipo de imposição cultural.

A Igreja se sustenta por sua primordial capacidade de conjugar disciplina com alteridade e adaptação, mesmo que esse movimento não ocorra linearmente e sem conflitos. Assim, embora todo o livro tenha como premissa a dimensão globalizante do catolicismo, a análise sobre o fenômeno da globalização e o relacionamento entre cristianismo e cultura em nossa época é feita pelo autor a partir do capítulo nove quando então é discutida a tão conhecida vertente cristã denominada inculturação. Contudo, dessa vez, o foco é o Islam.

Nada parece fugir à perspicaz análise de Linden que situa o leitor sobre as tensões do catolicismo na Índia convivendo com a religião Hindu e a sociedade de castas. Essa prática coloca em pauta as várias abordagens sobre as culturas e sua autenticidade diante da mensagem cristã. Assim, a globalização intensificou o debate entre universalismo e particularis-mo na medida em que as identidades nacionais manifestam-se diante de um monstro que as deseja engolir. A situação das Igrejas locais é olhada com desconfiança e certa ambigüidade por Roma. Nessa direção

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Linden relembra as declarações do então cardeal Joseph Ratzinger – atual Bento XVI- já na década de 1990 quando atuava na Sagrada Congregação para a doutrina da Fé e advogava que o Cristianismo seria em si mesmo uma cultura.

A análise do autor vai cobrir ainda os anos do papado João Paulo II e sua incursão pelo mundo. Linden finaliza seu livro revendo sua metáfora inicial sobre os quatro tipos de Igreja Católica reduzindo-os para apenas dois tipos: a Igreja como ela é em sua fragilidade humana e a Igreja com seu desejo de ser uma construção teológica.

A leitura é indispensável por trazer contribuições interdisciplinares favorecendo as áreas de sociologia, teologia, história e ciência política.

SÍLVIA REGINA ALVES FERNANDESDoutora em Sociologia. Professora na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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ENTRE TRÊS

ANDRADE, Altamir Celio de. Os Três. Juiz de Fora: Editar, 2010. 112 p.

A recém-lançada obra do professor Altamir Celio de Andrade, intitulada Os três oferece múltiplas possibilidades de leitura, dada a sutileza e beleza de sua linguagem, o enredo que conduz o leitor a uma interessante viagem por cidades da antiguidade - Alexandria, Jericó, Jerusalém etc.-, junto a personagens que, ademais de suas próprias histórias de vida, dedicam-se a reconstituir e ao mesmo tempo reconstruir por meio da leitura de manuscritos e da coleta de relatos orais uma “história maior”. Para o leitor que conhece ou estuda a palavra bíblica, a nar-ração de Os três convida a pensar o modo como os Evangelhos foram elaborados e re-elaborados no correr dos anos do primeiro século de nossa era. Um romance que pode ser lido como um ensaio. O leitor vai se aproximando de sua(s) história(s) por intermédio de três perso-nagens, que se reúnem na biblioteca de Alexandria, berço dos estudos na antiguidade, para acercarem-se a esses escritos.

O romance, como um palimpsesto, convida sempre a novas leituras, pois não se revela a um primeiro olhar, há camadas que o leitor não acessa enquanto tem as letras sob os olhos. Somente mais tarde, ao ler outro trecho é que vai se dando conta de que algo já estava insinuado páginas atrás. É imprescindível atentar às sutis “pistas” deixadas ao longo dos capítulos: encontros furtivos, co-incidências que obrigam a leitura a uma constante reordenação, pois ocorre de já em fases avançadas o leitor

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dar-se conta das pegadas deixadas capítulos antes. Nesses momentos voltamos mentalmente a páginas anteriormente lidas que alteram e recolocam a leitura primeira. Essa “estratégia” escritural aponta de forma astuta para um fato muito importante: o que sucede sempre muda nossa visão acerca dos acontecimentos, alterando significativa-mente nossa interpretação. Assim também a escrita dos evangelhos foi sendo modificada por meio de revisões e revisitações aos textos e testemunhos que se somaram, de modo que a “verdade” (se a pudermos encontrar) está em suas múltiplas interpretações, que se fazem através de coincidências e até dissidências entre os relatos.

Podemos ler algumas palavras e ideias recorrentes nos discursos dos perso-nagens, tais como lacunas, incompletude, impossibilidade de acesso a uma só versão, o que nos remete à própria estruturação do romance. Há fatos que podem passar despercebidos a uma primeira ou mesmo a posteriores leituras, mas que conferem profundidade e sabor ao ro-mance. Já nas primeiras páginas, nas quais o narrador nos apresenta o personagem Ben-Honí, ocorre algo aparentemente desimportante: Ben-Honí leva consigo alguns manuscritos pelo caminho, tropeça e isso “foi suficiente para que um dos papiros escapasse de seu braço e rolasse por entre as pedras” (p.20). Não há menção posterior ao fato, fica para o leitor a lacuna: teria Ben-Honí recuperado o papiro? Se não, o que estaria escrito ali? De que modo seu conteúdo alteraria a reunião dos outros textos? Não sabemos, não podemos acessar nenhu-ma certeza, apenas ficar com as perguntas, inferir e assim completar ou aceitar as lacunas.

Uma imagem é recorrente neste romance, aparece já no princípio e surge outras vezes no texto chamando a atenção para si de maneira sutil: o vaso de barro, que não surge apenas como acessório e para o qual é preciso atentar. O que nos diz o vaso que se parte? O que diz ele à estrutura narrativa? Devemos nos formular perguntas como essas, pois neste romance há muito a ser lido depois de tê-lo lido.

Para terminar esta apresentação, é importante ressaltar o entrecruzamento das histórias, a beleza com que são apresentadas as personagens femininas (Rahel, Beer-Shebah, Sahníris, Ísis) e as angústias, sonhos e vivências dos quatro personagens que dedicam seus dias a perscrutar a Palavra e o que ela revela para além de si mesma: aquilo de que ela mesma é testemunha. Já próximo ao final do romance surge um personagem que é um dos mais instigantes e perspicazes e a quem o narrador nomeia apenas como ‘velho’. Sobre suas palavras há muito para se refletir e

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elas ressoarão na mente daqueles leitores que se aproximarem de sua sabedoria: uma sabedoria lacunar, aguda, cortante - “Este é o último dos dias perfeitos. Estamos na fronteira. A partir daqui só escuridão e dor” (p.93). Não se pode encerrar esta apresentação sem mencionar a riqueza e literariedade das descrições dos lugares por onde passaram os personagens deste romance. É preciso ler para sentir [aqui trata-se precisamente de ‘sentir’] o estilo do autor: “Águas que vinham de longe, que beijavam outras terras e testemunhavam carícias. Águas que banhavam outros povos e bebiam de muitos rios. Águas que tragavam remadores e realizavam sonhos. Nestas águas muita gente encontrou o fim de amores; alguns que antes eram senhores, nelas jaziam sem nome.” (p.29). Ao terminar o romance o leitor perceberá que não há fechamento pois não encontramos a certeza de um final “feliz” ou “in-feliz”, somos convidados a apenas acompanhar as gaivotas que sobem e descem, “mergulhando como flechas na imensidão deste Mar” (p.111).

DAYANE CAMPOS DA CUNHA Pós-Graduanda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected]

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RESUMO E PERSPECTIVAS

O projeto de pesquisa “Mulheres nas Origens do Cristianismo” visa analisar o lugar e a função das mulheres nas origens do cristianismo, destacadamente nos séculos I e II, por meio de análise exegética de textos do Novo Testamente bem como de reconstrução histórica com base em material epigráfico e iconográfico disponíveis. Busca também delinear as projeções e representações dos papéis das mulheres na lite-ratura religiosa dos dois primeiros séculos da era cristã (NT; apócrifos; apologéticos). O objetivo principal é a escrita de uma história dos inícios do cristianismo na perspectiva das relações de gênero, destacando-se o protagonismo feminino naquele processo histórico-social.

A análise de textos do Novo Testamento com referenciais exegéticos, her-menêuticos e com instrumental analítico de gênero permite evitar a vitimização e a exacerbada protagonização de mulheres, contribuindo para uma visibilização mais equilibrada de processos de opressão e de libertação de mulheres, de sua presença e práxis possíveis dentro das limitações de sua época e contexto histórico-social e religioso. A interpretação dos textos permite, com a perspectiva da intra, inter e extratextualidade, portanto, perceber funções opressoras e libertadoras dos textos e de suas tradições, também interpretativas.

ATIVIDADES DO NER - PUC GOIAS

MULHERES NAS ORIGENS

DO CRISTIANISMO

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O projeto de pesquisa dá continuidade a pesquisas anteriores, nas quais a pesquisa do lugar social e de representação constituiu o foco do nosso trabalho, que já estava colocado na tese de doutoramento, realizado na Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião da Universidade de Kassel, Alemanha, com o título “Frauen in der Apostelgeschichte” [Mulheres nos Atos dos Apóstolos], obra publicada em alemão (1992) e traduzida ao inglês (1995).

OBJETIVOS

� Investigar o processo de surgimento histórico dos textos-objeto a partir da fonte material dessa literatura, que é a vida, a sociedade e a história do povo judeu e judaico-cristão inserido no contexto da época.

� Analisar exegeticamente este material literário com recurso à leitura e interpretação a partir do original grego (Novum Testamentum Graece), estabelecendo comparações com outras expressões culturais e literárias da Antiguidade.

� Reconstruir elementos da herança sócio-cultural ocidental cristã e, portanto, também de significativa parcela da cultura religiosa brasileira, no sentido da aprendizagem histórica e das representa-ções de gênero nela presentes, questionadas ou legitimadas pela religião judeu-cristã. A leitura e interpretação crítica dos textos em perspectiva feminista de libertação podem contribuir signi-ficativamente para a (re)construção de relações mais justas entre os diversos setores da nossa sociedade, seja em espaço acadêmico, eclesial e social.

Perspectiva Histórica

Na pesquisa buscar-se-á aplicar elementos teóricos do campo da história social (CRUSEMANN et al., 2009; CASTRO, 1997; KESSLER, 2006) e da história cultural (VAINFASS, 1997) à análise de textos sagrados como expressões da história e da cultura das primeiras comunidades cristãs. Parte-se do pressuposto de que os textos sagrados são documentos lite-rários surgidos em determinados contextos históricos e que necessitam ser analisados com os recursos no campo da pesquisa histórica para definir a ‘historicidade’ dos conteúdos codificados nos textos (WEG-

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NER, 1998), mas especialmente perceber as estruturas em termos de uma história das mentalidades, história social e história cultural.

O pressuposto teórico de novas abordagens no campo da história está colocado na afirmação de que toda a realidade é social ou culturalmente cons-tituída ou construída. Fundamental aqui é a noção de ‘representação’ como conceito epistemológico. Para a definição deste conceito, pode-mos nos valer das palavras de Pesavento (2005, p. 39), quando afirma:

As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência. São matrizes geradoras de conduta e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade.

Assim, tanto ações sociais quanto representações sobre o real ou social tornam-se passíveis de serem apreendidas pelo conhecimento, porque passaram a ser vistos como textos hermeneuticamente apreensíveis. O mundo se tornou um mundo marcado por códigos de representações, símbolos a serem decifrados pelos historiadores do social. Nisso também se inserem os textos chamados ‘religiosos’ ou ‘sagrados’.

História cultural procura examinar como a realidade social foi construída, como as releituras (desconstruções e reconstruções a partir das percep-ções dos vários grupos sociais, sejam eles étnicos, religiosos, regionais, nacionais, sociais ou políticos) se fizeram e fazem. Ela busca também perceber como os diferentes agentes sociais representam a si mesmos e o mundo que os cerca (sociabilidade e sensibilidade) por meio de atos, ritos, palavras, imagens, objetos da vida material, remetendo ao mundo do imaginário, mantendo a conexão com o real.

A história assume a dimensão de ‘narrativa’, que tem o objetivo de chegar o mais próximo da verdade do acontecido. Fazer história torna-se um procedimento indiciário: fontes, documentos, registros, provas etc. são acessados para dar autoridade à fala do(a) historiador(a). Aqui entra em cena também o recurso à memória, que aparece como reação à aceleração das mudanças sociais e históricas que ameaçam as identi-dades (BURKE, 2005).

A interdisciplinaridade é necessária para o diálogo com outras ciências como a antropologia, arqueologia, literatura, filosofia, semiótica, arte,

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filologia, exegese, teologia, ciências da religião, etc. História cultural lida, assim, fundamentalmente com conceitos derivados do campo da hermenêutica/da ciência dos processos de interpretação, pois é um fazer que trata de sentidos, significados, construções, representações, imaginários, portanto, de expressões da atividade simbolizadora do ser humano, as quais, por sua vez, necessitam ser interpretados para dentro de novas situações.

Perspectiva Hermenêutico-Exegética

A tarefa de uma história das origens do cristianismo em perspectiva femi-nista de libertação está relacionada com o campo da interpretação no sentido de que se trata de um processo de construção de texto bem como de (re)leitura de um texto. “Na busca de construir uma forma de conhecimento sobre o passado, o historiador dá a ler este passado, decifrando-o e dotando-o de uma inteligibilidade” (PESAVENTO, 2005, p. 59). Neste sentido, a escrita de uma história é também uma tarefa inscrita no campo da hermenêutica.

A pesquisa entende ‘literatura sagrada’/‘textos sagrados’ como produções humanas, cultural e historicamente situadas, que ganharam status canônico ou sagrado em conseqüência de processos de simbolização dentro de determinados grupamentos humanos e comunidades de fé ao longo da história. Tais textos sagrados antigos se evidenciam como relevantes dentro de um constante processo de releitura e interpretação (CROATTO, 2001).

Na análise de textos sagrados, a pesquisa parte dessa constituição dos ‘textos sagrados’, aplicando elementos teóricos do campo da hermenêutica ao processo de interpretação. Com a formação exegética ‘histórico-crítica’ (VOLKMANN, 1992; WEGNER, 1998), busca-se elementos teóricos de outras tradições ou enfoques exegéticos e hermenêuticos, tais como a noção de ‘mundo do texto’ (RICOUER, 1988), as inter-relações entre as intentio auctoris, intentio operis e intentio lectoris (ECO, 2001; WITT, 2002).

No diálogo entre o método histórico-crítico e a história cultural, elabora-se a compreensão que textos bíblicos também podem ser entendidos como ‘representação’. Como tal, “carregam em si uma ambigüidade enquanto fontes para a reconstrução das representações existentes em determinados grupos e sociedades no passado. Os textos não são

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aquilo que aconteceu, o que também é pressuposto da análise exegé-tica histórico-crítica.” (RICHTER REIMER, 2008, p. 46). Dito de outra forma, textos podem ser entendidos também como ‘modelo de ação’: eles “são formas específicas de um agir humano; são ações simbólicas que se utilizam de signos polissêmicos e por isto necessitam da interpretação” (THEISSEN, 1974, p. 37). Esta interpretação pre-cisa considerar as representações do mundo e do ser-no-mundo que constituíam o imaginário permeado de valores e de expectativas de pessoas e comunidades judeu-cristãs que se expressavam por meio de suas convicções e aspirações religiosas, registradas também nos textos bíblicos. O texto não é o evento, ele é reflexo/representação de algo a partir de um determinado olhar. Neste sentido, ele tem uma “pretensão à verdade e refere-se a um passado real, mas toda a estratégia narrativa de refigurar essa temporalidade já transcorrida envolve representação e reconstrução [...] O texto histórico [...] é apenas memorável” (PE-SAVENTO, 2004, p. 36). Esta memória da qual o texto resulta passa por processos seletivos e de ressignificação (CHEVITARESE, 2005, p. 1416-7) já na sua fixação escrita, principalmente no caso dos evangelhos do Novo Testamento, e carecem de um criterioso e crítico processo interpretativo e da própria análise de sua história interpretativa.

Para uma análise hermenêutica feminista de libertação, toma-se o conceito básico ‘hermenêutica da suspeita’ de Schüssler Fiorenza (1992=1983; 1995; 2009) que afirma serem os textos bíblicos reflexo de culturas androcêntricas que falam – quando falam – não apenas de mulheres, mas também sobre e no lugar de mulheres, definindo o modo como elas devem se comportar na família, na sociedade, na religião... Há que se desconstruir, portanto, o texto para reconstruir sua história sócio-cultural e a influência que o texto teve na construção de identidades de homens e mulheres durante séculos e milênios em seus processos de releitura que contribuíram na formulação de doutrinas e dogmas de submissão de mulheres e outras minorias qualitativas.

Uma hermenêutica crítica feminista, num processo de reconstrução da história de cristianismos originários que visibilize o silêncio, a marginalização e a participação de mulheres, questiona a própria hermenêutica bíblica tradicional como sendo um dos lugares de construção de um imagi-nário hostil às mulheres, principalmente por causa da sexualidade: a práxis interpretativa de textos bíblicos tem sido um dos instrumentos de dominação e de construção de uma imagem negativa de mulheres

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(SCHOTTROFF, 1995). Para tal, há que se observar a ‘história dos efeitos’ destes textos (GADAMER, 2002), o que, na exegese, se faz por meio do tópico ‘história interpretativa’ dos textos.

Por ser dialógica e interdisciplinar, a hermenêutica feminista faz uso do conceito de ‘ser’ e ‘experiência’ de Heidegger que, junto com Gadamer, liberta a hermenêutica de suas amarras dogmáticas, fazendo com que o sentido normativo dos textos, com o qual fundamentalmente se ocupa(va) a hermenêutica eclesiástica tradicional, retrocedesse em benefício do sentido que o texto pode vir a ter a partir das próprias experiências das pessoas que entram em contato com este texto. Compreender e interpretar não são questões apenas do pensar, falar e refletir, mas um ‘modo de ser da existência’, um ‘estar e ser-no-mundo’ (HEIDEGGER, 1988). A pré-compreensão existe e se fundamenta na vida e, no campo religioso, nas perguntas que a pessoa faz em busca do Sagrado. Não há leitura e interpretação neutras de textos sagrados.

Numa hermenêutica feminista de libertação há, por isto mesmo, uma mudança epistemológica que destaca que conhecimento é construído também pela experiência. Recupera-se, portanto, a experiência humana, com suas ambigüidades e complexidades, na construção do conhecimento; junto com a razão, resgata-se a corporeidade, a afetividade, o cotidiano, a inclusividade e o contexto vital desta construção do conhecimento; questiona-se o essencialismo dualista e androcêntrico, bem como o paradigma das ‘verdades eternas’ (GEBARA, 1997). Uma hermenêutica crítica de libertação visa, desde seu princípio, ser uma hermenêutica contextual, crítico-construtiva e processual.

Perspectiva das Relações de Gênero

Realizar uma análise exegética e hermenêutica de textos bíblicos em pers-pectiva feminista de libertação é adentrar em territórios que durante milênios estavam sob o domínio de homens poderosos da hierarquia eclesiástica, acadêmico-teológica e sócio-política. Com as conquistas realizadas por mulheres também nestes espaços, principalmente nos dois últimos séculos, observam-se avanços significativos e desafios emergentes de novas demandas. Um deles é ler e interpretar os textos bíblicos com o instrumental analítico de gênero.

A expressão ‘gênero’ como instrumental de análise começa a ser usada nos anos 1980 em estudos e movimentos feministas. Com ele, objetivou-se

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identificar, compreender e transformar relações assimétricas de poder entre homens e mulheres, estendendo-o também à questão de classe e etnia (SCOTT, 1991) que aparecem em processos de discriminação e subordinação de mulheres. As ‘questões de gênero’, portanto, não estão restritas a mulheres, visto que essa categoria permite e visa ana-lisar também as relações sociais entre homens e homens, mulheres e mulheres. Trata-se sempre de relações de poder e mudança.

Dentro das ciências humanas, a historiadora Joan Scott (1991) foi a que primeiramente explicitou o conceito utilizado em distintas tendências nos estudos feministas. Dentro da efervescência epistemológica da época, a autora destaca sua compreensão de gênero como instrumental analítico: “O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder.” (SCOTT, 1991, p. 16). Percebe-se gênero como um constructo sociocultural a partir das diferenças de sexo que define as funções sociais entre homens e mulheres e as impõe como ‘naturais’ em processos de discriminação, subordinação e opressão de mulheres, e as relações tornam-se hierar-quizadas (BIDEGAIN, 1996). Esta ‘naturalização’ das diferenças que são socioculturalmente construídas é afirmada, assumida, introjetada, reproduzida em processos de formação/educação formal e religiosa, bem como nos meios de comunicação. Sendo construídas e culturais, estas relações assimétricas de poder podem ser transformadas.

Com este instrumental analítico é possível contribuir para a ‘desnaturalização’ das diferenças socioculturalmente construídas, sendo que o mesmo pode estender-se às relações de gênero, classe, etnia e geração (SCOTT, 1991). Na construção das relações sócio-culturais, portanto, a questão e a dinâmica de poder e mudança são fundamentais (RICHTER REIMER, 2005, p. 27). A mudança e a dinamicidade são inerentes às relações de poder, porque o poder não é estático; ele é “parte constitutiva do tecido social [...] é dinâmico e circulante” (STRÖHER, 2004, p. 109, com base em Foucault).

Dentro de um mesmo discurso/texto/narrativa pode haver uma polifonia que brota de distintas experiências de diferentes pessoas que ‘aparecem’ no texto. A multiplicidade de elementos discursivos num mesmo texto ou na análise comparativa entre vários textos que tratam do mesmo tema podem ajudar a ‘recompor as resistências’, visto que o poder não é exercido isoladamente, mas dentro de um “conjunto de redes de

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poderes” (FOUCAULT, 1985, p. 90) que interagem. É neste sentido – em contraposição a uma concepção de poder estático, homogêneo e único – que a análise de narrativas bíblicas pode contribuir para uma visão não-vitimizadora de mulheres e outras minorias qualitativas, ajudando a superar a noção de que estruturas androcêntricas (que continuam existindo!!) possam tirar por completo o poder desta gente (FOUCAULT, 2000). Simultaneamente tal análise pode incentivar nosso empoderamento também por meio do resgate de tradições que nos vêm de textos que narram, de diferentes perspectivas, a respeito de eventos fundantes nas origens do cristianismo.

Na análise bíblica com a categoria de gênero pergunta-se como se chegou a construir as relações de poder existentes, quais os argumentos te-ológicos que se utilizou para fundamentar, sedimentar, legitimar ou transformar determinadas funções sociais e eclesiais distintas ou iguais para homens e mulheres, crianças e adultos, judeus e gregos, ricos e pobres... Busca-se também perceber e resgatar histórias subversivas, onde poderes opressores foram transformados em poderes compartilhados.

Para nossa atualidade e a realidade de lutas de mulheres e outras minorias qualitativas, a abordagem e a análise de textos que fazem parte da nossa história são importante para a compreensão e a (re)construção de nossa própria história e empoderamento para mudanças possíveis e necessárias. Isso diz respeito aos nossos processos de libertação daquilo que nos oprime e machuca de forma direta e indireta, do que também fazem parte preconceitos em relação ao que é diferente.

Referências

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IVONI RICHTER REIMER

Professora doutora no Departamento de Filosofia e Teologia da PUC Goiás. Docente no Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Ciências da Religião (mestrado e doutorado) e no Mestrado em História Cultural da PUC Goiás. Tem pesquisas registradas na PROPE e é bolsista de produtividade do CNPq

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SANTIDADE, RELIGIÕES

E LITERATURA

SAGRADA

O projeto tematiza a santidade na literatura sagrada das religiões, e com-preende a santidade enquanto manifestação do numinoso, tremendo e fascinante, sendo que a santidade é compreendida como mediadora entre divindade e seres humanos.

Em se tratando do tema da santidade, a presente pesquisa pretende analisá-la em sua relação com as religiões, no âmbito de seus textos sagrados. Por isso, o problema se desdobra e se entrelaça, nos três aspectos analisados, a saber, a relação entre santidade, religiões e livros sagrados.

SANTIDADE DIVINA E HUMANA

Santidade designa o atributo divino, de que só Deus é santo, e designa aquilo que se aproxima da divindade e está, portanto, separado do profano (SCHLESINGER; PORTO, 1995, p. 2294-5).

Por um lado, portanto, santidade é atributo exclusivo de Deus, pois só Deus é santo. Mas, por outro lado, santidade passa a ser atributo de pessoas, ou até mesmo de objetos. É nesse sentido que as diversas religiões e igrejas aplicam o conceito de santo de maneira diferenciada e, por vezes, polêmica.

Em seu sentido original, em hebraico (qdsh), grego (temenos) e latim (sanctus), a palavra santo deriva de raízes com o sentido geral de

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cortar, significa separado, colocado à parte, e designa tudo aqui-lo que se relaciona com a divindade, e foge ao uso profano (DE FRAINE, 1971, col. 1389). Mas, santidade é também aquilo que coloca o ser humano em relação com a divindade, para purificá-lo. Assim sendo, santo é o que está próximo de Deus ou também, no outro pólo, o que está distante dele. No pensamento de Rudolf Otto (1985), santidade caracteriza o tremendo e o fascinante da divindade, bem como sua hierofania, ou seja, a manifestação do sagrado aos seres humanos.

Como entender, com a análise de Otto, que a santidade expresse a distância do Deus tremendo e, ao mesmo tempo, a proximidade do Deus fasci-nante? Como pode o ser humano, e mesmo as realidades da natureza, revestir-se do sagrado da divindade?

O reconhecimento da santidade, nas religiões, depende dos critérios com que se analisa o fenômeno. Assim sendo, as religiões ou igrejas possuem vários conceitos de santidade, porém predomina, em todas elas, um aspecto mais institucional e outro mais popular, de acordo com o olhar de quem a reconhece. A devoção popular, com freqüência, é paralela e, não raro, conf litante com a proposta da religião oficial.

A religião popular é o conjunto de costumes e vivências religiosas do povo, no seu cotidiano, que marca a sua relação com Deus ou com o sagrado. Ela está em paralelo ou em contraste com a religião oficial e hegemônica. Inspira-se nos princípios doutrinais, mas cria suas expressões culturais próprias (GASPAR, 2002).

No projeto, pergunta-se também pela função da religião popular, nas diversas expressões culturais, e pelas tentativas de padronizar oficialmente tais práticas (PALEARI, 1990).

SANTIDADE OFICIAL E POPULAR NAS GRANDES RELIGIÕES

Embora normalmente o conceito de santidade esteja associado ao cristianismo, essa é uma realidade constante nas diversas religiões da humanidade (WACH, 1990, p. 429-30).

O estudo enfoca a convivência do binômio oficial e popular, em religiões como hinduísmo, budismo, confucionismo, judaísmo, cristianismo, islamismo, religiões indígenas e afro-brasileiras.

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R E S E N H A SSANTIDADE NOS TEXTOS SAGRADOS, O DIVINO E HUMANO

Os textos sagrados das religiões são, via de regra, reconhecidos como palavra de Deus. Essa palavra, em muitos casos, é interpretada como real e absoluta. Trata-se do fenômeno chamado de fundamentalismo, ou seja, o texto deve ser lido tal qual está escrito, sem mediação hermenêutica. Nesse caso, as palavras divinas se identificam com as palavras humanas expressas por escrito (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 1994, p. 62-65).

A própria evidência mostra, porém, que Deus, o transcendente, ao transmitir sua palavra, se expressa de maneira imanente, em linguagem humana e compre-ensível à cultura à qual se destina. No próprio catolicismo, a Constituição Apostólica Dei Verbum (n° 13), do Concílio Vaticano II, denomina esta realidade de “condescendência” divina, “pois as palavras de Deus expressas por línguas humanas se fizeram semelhantes à linguagem humana”.

Pergunta-se como, nessa polaridade enquanto livro divino e livro humano, a Bíblia é sagrada e, em conseqüência, suas palavras são santas e san-tificadoras? (OTTO apud MCKENZIE, 1983, p. 847).

Essa mesma ambigüidade, se podemos assim dizer, expressa a própria natureza divina, que se revela nas Sagradas Escrituras. Por um lado Deus é santo, transcendente e inacessível, como ilustra a chamada “Lei de santidade” (Lv 17-26). Por outro lado, Deus está próximo, caminha com o povo, acom-panha as pessoas, como na marcha do povo de Deus pelo deserto (Nm 11-14). A Moisés, Deus afirma: “Não poderás ver a minha face, porque o homem não pode ver-me e continuar vivendo” (Ex 33,20). Ao mesmo Moisés, poucos versículos antes, afirma o contrário: “Iahweh, então, falava com Moisés face a face, como um homem fala com seu amigo” (Ex 33,11).

A mesma análise, aqui exercitada sobre a Bíblia Judaico-Cristã, poderia ser feita sobre o Alcorão (GNILKA, 2006, p. 83-99; MANDEL, 1999) ou sobre outro livro sagrado.

Resta a pergunta sobre a interpretação de um texto sagrado em lin-guagem humana, qual a mediação hermenêutica para compreender a palavra de Deus revelada aos seres humanos? (CROATTO, 1986).

SANTIDADE: UM MODELO ANTROPOLÓGICO

Como referencial teórico, o ponto de partida da análise é o estudo de André Vauchez (1987, p. 292-5), que analisa o fenômeno da santidade e do culto aos santos como um modelo antropológico.

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Tal modelo, segundo o autor, ultrapassa tempos, lugares e estruturas religiosas. Caracteriza tanto o Oriente quanto o Ocidente. Encontra-se no paganismo, como no cristianismo e no islamismo. Antecede o cristianismo e continua presente até hoje, no Brasil e em outras partes do mundo.

RELIGIÕES: A EXPERIÊNCIA DO TREMENDO E FASCINANTE

A descrição deste referencial teórico vale-se da síntese sobre “O sagrado e a experiência religiosa” de Carolina Teles Lemos (2009, p. 17-23).

Segundo a descrição de Rudolf Otto (1985, p. 17-22), o sagrado é o “totalmente outro”, separado do profano. Por isso mesmo é inacessível e está além da capacidade humana de compreensão.

Mircea Eliade (1992, p. 7-23) critica e completa a definição de Otto, afirma que o sagrado é algo que se agrega ao profano. Por isso mesmo é ambíguo.

O sagrado se manifesta na vida humana, de maneira diferenciada do profano. A hierofania (manifestação do sagrado) pode se dar em objetos, lugares, espaços ou tempos, tornando-os também sagrados.

LITERATURA SAGRADA, PALAVRA DIVINA E PALAVRA HUMANA

Grande parte das religiões da humanidade fundamenta seus ensinamentos com base em livros sagrados. São textos reconhecidos como palavra de Deus, mas sempre veiculados com palavras humanas. São considerados inspirados e constituem uma manifestação privilegiada da vontade divina.

Assim como o cristianismo baseia sua santidade na Bíblia, assim também outras culturas e diferentes gerações encontram, em seus livros sagra-dos, fundamentação para espiritualidade e sentido da vida. É o caso da tradição monástica hinduísta e budista, e do ideal da mística islâmica sufi, entre outras.

A Bíblia Cristã e a Bíblia Muçulmana, já santificaram muitas vidas, ao longo dos séculos. Já produziram inúmeros mártires, místicos profundos, santos engajados no amor ao próximo (SILVA, 2004, p. 87).

JUSTIFICATIVA TEÓRICA

Compreender a santidade está na origem das grandes questões da huma-nidade, porque leva ao questionamento sobre a natureza da pessoa

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humana e da própria divindade. Desse problema têm se ocupado, tradicionalmente, a filosofia e a teologia. Mais recentemente também a psicologia. Ultimamente, no âmbito das ciências da religião, envolve-se a antropologia, a sociologia, a história e mesmo outras áreas das ciências, como a física quântica.

Dada a amplitude de análise, apresenta-se o desafio para as religiões. Cada uma dessas ciências procura responder a seu modo à questão da san-tidade. Mas há elementos comuns entre todas elas, que esta pesquisa quer levantar. Para tanto, a recorrência aos seus livros sagrados facilita a delimitação do estudo.

O problema é atual e pertinente, dada a tendência dominante de ler os textos de maneira dual, às vezes dualista, ou até maniqueísta, estabelecendo marcos contrastantes entre santo e pecador, bem e mal, certo e errado, Deus e diabo.

JUSTIFICATIVAS PRÁTICAS

Além dos motivos teóricos e acadêmicos, várias razões práticas levam a enfocar a temática da santidade. Dentre outros, podem ser elenca-dos os seguintes: projeto de pesquisa aprovado junto à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG) intitulado “Padre Pelágio: trajetória de santidade”, em parceria com Eduar-do Gusmão de Quadros e Marcos Aurélio Fernandes; formação bíblica e exegética do pesquisador; disciplina “Literatura sagrada das religiões”, no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, ministrada pelo pesquisador; conexão com projetos de pesquisa anteriores, “O parto na literatura bíblica”, “As crianças na Bíblia Hebraica”, “Sabedoria em provérbios da Bíblia e de hoje”, “Padre Pelágio, trajetória de santidade”; interesse do pesquisador pela cultura popular.

HIPÓTESE

A santidade, enquanto elemento comum às diversas religiões, conforme expressa nos livros sagrados, permite uma compreensão da aproxi-mação entre o sagrado e o profano, o imanente e o transcendente, o humano e divino.

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OBJETIVO

Analisar o fenômeno da santidade, no âmbito das religiões, conforme trans-mitida em seus textos sagrados, para verificar como o santo permite experiência privilegiada do sagrado, porque nele se reconhece a fusão da divindade com a humanidade.

PASSOS METODOLÓGICOS

Como se trata de um estudo teórico, a metodologia aplicada constará, basicamente, da leitura e análise de fontes bibliográficas. Realizará levantamento bibliográfico e classificação do material. Incluirá a orientação de monografias e teses, nos diversos níveis, de graduação, especialização, mestrado e doutorado. Terá sua apresentação em semi-nários e congressos, bem como publicação em revistas especializadas e em forma de livro, de acordo com os progressos alcançados.

Referências

CROATTO, José Severino. Hermenêutica bíblica. Tradução de Haroldo Reimer. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulinas, 1986.

Dei Verbum. In: Documentos do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1970.

DE FRAINE, J. Santo. In: VAN DEN BORN, A. (Org.). Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Tradução de Frederico Stein. Vozes: Petrópolis, 1971. p. 1389-93.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano - A essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

GASPAR, Eneida D. (Org.). Guia de religiões populares no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2002.

GNILKA, Joachim. Bíblia e Alcorão – o que os une, o que os separa. Tradução de Irineu J. Rabuske. São Paulo: Loyola, 2006.

LEMOS, Carolina Teles. O sagrado e a experiência religiosa. In: REIMER, Ivoni Richter e SOUZA, João Oliveira (Orgs.). O sagrado na vida: subsídios para aulas de Teologia. Goiânia: Ed. aa UCG, 2009, p. 17-23.

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MANDEL, Gabriele. Os 99 nomes de Deus no Alcorão. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1999.

MCKENZIE, John L. Santo. In: MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. Tradução de Álvaro Cunha. São Paulo: Paulinas, 1983. p. 847-50.

OTTO, Rudolf. O sagrado. Tradução de Prócoro V. Filho. São Bernardo do Campo: Metodista, 1985.

PALEARI, Giorgio. Religiões do povo: um estudo sobre a inculturação. São Paulo: Ave Maria, 1990.

PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja. Petrópolis, Vozes, 1994. (Documentos Pontifícios, 260).

SCHLESINGER, Hugo; PORTO, Humberto. Dicionário Enci-clopédico das Religiões. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 1995.

SILVA, Valmor da. Bíblias e livros sagrados. In: SILVA, Valmor da (Org.). Ensino Religioso: educação centrada na vida – subsídio para a formação de professores. São Paulo: Paulus, 2004. p. 87-101.

VAUCHEZ, André. Santidade. In: Enciclopédia Einaudi. V.12 Mythos/logos, sagrado/profano. Lisboa: Imprensa Nacional, 1987. p. 287-300.

WACH, Jochim. Sociologia da religião. Tradução de Luiz Roberto Benedetti. São Paulo: Paulinas, 1990.

VALMOR DA SILVA

Docente no Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Ciências da Religião (mestrado e doutorado) da PUC Goiás.

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O PADRE PELÁGIO

E O PADRE ETERNO:

PRÁTICAS DEVOCIONAIS

EM TORNO DO

"SANTO DE GOIÁS"

O sacerdote redentorista Pelágio Sauter recebeu o codinome popular de “santo de Goiás”. Ele chegou da Alemanha no início do século passado, época em que havia acentuados conflitos da hierarquia católica com o laicato. Nas suas tarefas pastorais, acabou se identificando com o povo simples que encontrou no “sertão”, e a simpatia foi recíproca.

Uma série de motivos levaram à crença de que ele era um homem santo, desde a dedicação com que administrava os sacramentos (“desobrigas”) até os remédios que costumava receitar aos doentes. Quando faleceu, em 1961, sua fama de “milagreiro” já ultrapassava as fronteiras estaduais. Do túmulo, começou a jorrar uma água que possuiria poderes curati-vos, conforme os devotos. Graças aos milagres gerados, a memória de padre Pelágio ainda hoje é cultivada pelo povo goiano.

Este projeto de pesquisa está voltado para a análise da devoção que este homem despertou em tantas pessoas. Queremos entender seu carisma, sua ha-bilidade em despertar confiança, os modos com que se adequou ao que podemos denominar de uma religiosidade sertaneja. Por outro lado, ana-lisaremos as demandas que a população projetou sobre esta personagem, como um conjunto de representações do que seria um “homem de Deus” adequou-se às suas ações e a seu temperamento. Por fim, colocaremos a busca do milagre como algo central nesta experiência religiosa. Tal busca transcende as instituições e as teologias oficiais, sendo fundamental na construção social do que a população classifica como santo.

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APRESENTAÇÃO

Os limites entre o natural e o sobrenatural são mais tênues do que geralmente se pensa. Para quem quer entender os fenômenos religiosos, transcendê-los é uma tarefa intermitente. Por outro lado, os quadros referenciais do conhecimento científico nos levam a reduzir o âmbito explicativo ao que se pode compreender racionalmente. Por isso, buscar analisar a demanda do milagre e os fenômenos correlatos da santidade é um desafio para os pesquisadores das ciências humanas.

A santidade é um fenômeno de muitas dimensões. Ela envolve aspectos reli-giosos de comunhão com uma força considerada superior, a busca da salvação de algum mal ou a recuperação de algum infortúnio sofrido, através de um elemento mediador. Revela aspectos sociais, como a busca de normatizações e a constituição das identidades coletivas; culturais, a exemplo das tradições e festejos religiosos; políticos, pois liga-se ao domínio institucional e a aplicação das regras do conviver; econômicos, já que envolvem trocas entre os devotos e a igreja ou entre os próprios fiéis. Assome-se as crenças no pós-morte, um nível que é abordado explicitamente pelos discursos e ritos do que costumamos chamar de religioso.

Este fenômeno complexo, e universal, é estudado nesta pesquisa através de uma personagem que passou boa parte de sua vida em Goiás. Pelágio Sauter nasceu em 1878, na cidade de Hausen, Alemanha. Já ordena-do sacerdote, aceitou o convite para ser missionário no Brasil, onde aporta em 1909. No ano seguinte, veio residir na casa redentorista em Campinas de Goiás.

É possível que sua origem rural tenha levado a uma maior afinidade com as práticas religiosas que encontrou no Estado de Goiás. Desde 1913, pelo menos, realizou diversas viagens para as missões populares, de-nominadas popularmente de “desobrigas”. Nestas excursões, percorria com seus companheiros dez a vinte cidades em cerca de dois meses (Santos, 1984:795). Aprendeu a dormir em redes, a cavalgar em mulas, saborear os alimentos que lhe eram oferecidos. Encontramos nesta sua atuação, talvez, o primeiro elemento dos santos populares do Brasil moderno: uma atuação missionária e com função sacramental.

Complementarmente, a carência de sacerdotes era grande e a atuação do clero costumava ser envolta de representações mágicas. Isso é especialmente válido para as questões da saúde, tanto do corpo quanto da alma. Era

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comum entre os missionários andar com uma maleta de remédios nas viagens para as doenças mais vulgares. Não tardou para que sua fama de taumaturgo começasse a se espalhar. Temos, então, uma segunda hipótese a ser confirmada: a relação entre santidade e curas, já clássica na história dos fenômenos de santificação (VAUCHEZ, 1987).

A ação de padre Pelágio ainda esteve muito ligada à devoção do Divino Pai Eterno, na cidade de Trindade. A devoção do Barro Preto – antigo nome da localidade - em pouco tempo tornou-se a maior celebração religiosa de Goiás, com romeiros provindo de boa parte das cidades do Estado (Deus, 2001). Com o passar dos anos, ele se dedicou especialmente à assistência aos mais pobres, fornecendo esmolas e alimentação, bem como providenciando hospedagem para eles. Sua preocupação ajudou a criar na década de cinqüenta a Vila de São Cotolengo, voltada ao recebimento de miseráveis e doentes. Temos então dois elementos que se cruzam: um seria esta ligação com a assistência aos que mais precisam e o outro a proximidade do padre com o próprio Pai Eterno. Supomos certa sobreposição entre as duas devoções. Atualmente, por sinal, o corpo do sacerdote repousa no santuário de Trindade, promovendo um reforço mútuo do poder miraculoso.

Os traços aqui aventados parecem ter aproximado o personagem histórico Pelágio Sauter de certa tradição acerca da santidade. Na sua velhice, as pessoas o procuravam na Casa Redentorista em Campinas para obter favores, muitas vezes sobrenaturais. Nas missas que celebrava na matriz daquele bairro de Goiânia, os comungantes esperavam que algo espe-cial acontecesse (BOVO, 2007). Falecendo em 1961, as relíquias de quem conviveu com ele são ainda conservadas com bastante devoção.

Um fenômeno após sua morte muito contribuiu para o crescimento da sua fama de santidade. Do túmulo de Padre Pelágio, visitado por quem o admirava em vida, começou a brotar uma água que logo foi conside-rada milagrosa. Muitos relatos de cura surgiram e o túmulo virou um centro de peregrinação popular.

A continuidade da devoção levou à abertura de processo de canonização de Padre Pelágio, no Vaticano, em 1997 (GOIANIEN, 2005). O processo está dividido em três partes básicas. A primeira, redigida pelos postu-lantes da causa e assinada pelo representante da Ordem Redentorista junto à Congregação. Trata-se de uma síntese geral da vida de padre Pelágio a partir dos dados que estão documentados nas partes seguin-tes. A segunda, e maior parte do processo, trás os testemunhos das

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pessoas que, de alguma forma, entraram em contato com o sacerdote. A terceira, reúne documentos do acervo pessoal de Pelágio Sauter e artigos publicados na impressa sobre ele.

O conjunto das mais de oitocentos e cinqüenta páginas encerra com uma interessante declaração de que Pelágio não é objeto de culto na arqui-diocese de Goiânia. Ora, todo o processo aponta exatamente para o inverso, descrevendo diversos atos onde a intercessão do padre reden-torista foi eficiente. O cuidado dos eclesiásticos em afirmar que ele não recebe nenhuma forma de latria indica os melindrosos meandros de um processo como esse.

São muitas as vozes ali reunidas. Destrinchá-las é a tarefa desta investigação, buscando captar a experiência devocional manifesta nesta documen-tação. Esse “santo de Goiás” nos aponta para um cruzamento fértil de atitudes e esperanças, onde a política eclesiástica e as crenças populares se enriquecem, negociando interesses que transgridem o nível natural. No fundo, está a manifestação do maravilhoso pertinente aos milagres e ao mundo dos que cultivam a fé.

MÉTODO E FONTES

O referencial teórico-metodológico propício a nossa investigação relaciona-se a duas fontes básicas: uma compreensão hermenêutica dos processos culturais e o enfoque fenomenológico da experiência religiosa. Com isso, estamos afirmando que não concordamos com as duas vias da história cultural apontadas por Peter Burke: uma que enfatiza os sentidos e outra as representações (BURKE, 2005, p. 9). A nosso ver, devemos caminhar na investigação das representações sociais e religiosas para a construção dos sentidos da experiência (BONNEL; HUNT, 1999).

Max Weber (1997, p. 65), em seus estudos de sociologia da religião, indicou que seria melhor chegarmos a alguma definição de religião no final de nossas investigações, e não partir delas. Não é que consideremos inúteis as tentativas de construção teórica; elas nos dão uma direção de pesquisa, mas consideramos, como o mestre alemão, mais pertinente uma abordagem de teor pragmático.

Não existe religião “sozinha”. Daí a importância de não se partir de um nível abstrato, isolado, sendo preferível identificar como funciona o religioso em um dado grupo, época ou cultura (CAPUTO, 2002). Para identificá-lo, entretanto, é necessário partir de algumas características.

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A escola fenomenológica foi a que forneceu, a nosso ver, as contribuições mais relevantes neste ponto. Gerard Van der Leew (1964) enfatizou a vivência do religioso como um tema fundamental das pesquisas. Ela não seria algo captável em si, pois os sujeitos religiosos ao tentarem compreendê-la e explicá-la, retrabalham-na com as categorias lingüís-ticas disponíveis. Há um esforço de traduzibilidade para os códigos comuns do cotidiano. Sob a ordem também do logos é que tal vivência fica arquivada na memória, podendo ser reatualizada através das ações rituais (QUADROS, 2004).

O típico da experiência com o sagrado seria a sensação de um sentido último, profundo, para a vida e para os cosmos. Essa capacidade de significação é acompanhada da busca de poder, de controle sobre as circunstâncias da vida (Leew, 1964:650). Os limites do sentido requerem poder e o poder estabelece limites ao sentido. Tais fronteiras encontram-se na ação da busca de transcendência.

A fenomenologia forneceu uma boa base para os estudos religiosos, contudo ela possui acentuada tendência ao idealismo. Uma história “religiosa” da religião deve ser cruzada com uma história mais “naturalística”, isso sem deixar de perceber os limites da abordagem científica quando tratamos dos milagres (GRIFFIN, 2000). Propomos, portanto, cruzar a historicização das concepções religiosas com a historicização também das categorias trabalhadas nas ciências humanas.

A fé, essa dimensão dinâmica da vida, interage com outros fatores e compete cotidianamente com outros investimentos realizados pelos sujeitos (CERTEAU, 1985; 1996). Ao mesmo tempo, não podemos deixar de ver o específico gerado através do ato de crer, ou seja, o que chamamos de plusificação (QUADROS, 2006). Algo a mais envolve o objeto de fé ou a doutrina religiosa. Esse é o aspecto básico da esfera do sagrado.

Devoções religiosas são práticas, práticas sobre o outro. Bem o percebeu Alphonse Dupront (1987, p. 61) quando afirmou que neste campo “o sentido é o útil”. Não queremos negar o caráter doutrinário da ex-periência devota – um nível, na verdade, interfere no outro – porém ressaltamos nesta pesquisa sua via predominantemente utilitária.

A dimensão útil dos objetos de fé não é uma característica exclusiva do reli-gioso. A lógica da dádiva, fundamental nas devoções, foi considerada por seu formulador como um “fato social total” (MAUSS, 1974, p. 41). Ou seja, a troca travestida em presente exprime aspectos do fun-cionamento de diversas instituições. A dádiva aos seres considerados

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sagrados compõem uma das forças do campo social e mesclam-se com outras esferas. A história das devoções religiosas é, sempre, uma história complexa ou, como preferem Werner e Zimmermann (2003), uma “história cruzada entre empiria e reflexividade”.

Com tais noções leremos os documentos sobre a atuação de Padre Pelágio em Goiás.. Ele escreveu pouco e seu acervo pessoal é composto ma-joritariamente de cartas a pessoas próximas. A princípio, não teremos acesso a este material, que por tratar de temas familiares, também não é o interesse de nossa pesquisa. Não pretendemos fazer sua biografia, mas analisar aspectos públicos de sua vida. De seus escritos, ressalve-se as canções e orações compostas e ainda utilizadas na romaria do Pai Eterno.

Os periódicos são uma fonte de destaque, em particular os editados pela igreja. O primeiro jornal criado foi A Cruz, que circulou no início da república. O periódico O apóstolo (1895-1897) contribuiu para a normatização do catolicismo romanizado, junto com O lidador (1900-1917). O Brasil Central (1934-1964), publicado pela diocese de Goiás, foi o jornal que mais durou e teve bom número de leitores. O levantamento das informações que contem sobre a festa de Trindade e sobre Pelágio foram identificadas na primeira fase desta pesquisa. Agora, partiremos para sua análise. O jornal Santuário da Trindade, editado pelos padres redentoristas igualmente já foi trabalhado, faltando a análise das informações encontradas.

As Cartas Pastorais dos episcopados correspondentes ao período enfocado são uma fonte importante. Elas costumam fornecer uma imagem panorâmica das questões que permeavam o catolicismo e postulavam estratégias para enfrentar os problemas ali apontados. Há bom nú-mero delas no acervo do Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central.

O acervo do Arquivo do Estado de Goiás possui a documentação admi-nistrativa, principalmente civil. Alem das cinco caixas sob a rubrica Trindade, com material sobre a devoção, há livros manuscritos de interesse como o Livro de provisões de vigários, coadjutores, demissórias e cartas de ordens (1908-1931), o Livro de Provisões dadas em Visitas pastorais da diocese de Goiás (1909-1924), o Livro de Tombamento das Paróquias da Diocese de Goiás, entre outros. Há ainda a documentação sobre Campinas e acerca da vida religiosa da Nova Capital, como o Livro de Atas do Congresso Eucarístico de Goiânia (1948). Este mate-

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rial, em nosso planejamento, deverá ser trabalhado pelos bolsistas da pesquisa, sendo aproveitado para os trabalhos de conclusão de curso dos respectivos discentes.

A principal fonte desta pesquisa será o processo de canonização de Padre Pelá-gio, que atualmente corre no Vaticano sob os auspícios da Arquidiocese de Goiânia e da Ordem Redentorista. A documentação ali reunida possui grande valor e sua análise apenas foi iniciada na primeira fase do projeto (aprovado pela Universidade Estadual de Goiás em 2008).

Após a heurística desta documentação, buscaremos entender melhor de que modo Padre Pelágio agiu sobre esse contexto e como conseguiu ser uma força de renovação do catolicismo popular. Sua memória, afinal, ainda é cultivada nas devoções de Goiás.

Referências

AZZI, Riolando. O catolicismo popular no Brasil. Rio de janeiro: Vozes, 1978.

AZZI, Riolando. O altar unido ao Trono. São Paulo: Paulinas, 1992.

AZZI, Riolando (org.). A vida religiosa no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1983.

BENEDETTI, Luiz R. Os santos nômades e o Deus estabelecido. São Paulo: Paulinas, 1983.

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EDUARDO GUSMÃO DE QUADROS

Docente no Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Ciências da Religião (mestrado e doutorado) e no Mestrado em História Cultural da PUC Goiás.

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