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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO LARISSA MAGALHÃES COSTA CAMPANHA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS: Paulo Freire em Guiné Bissau RIO DE JANEIRO 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

LARISSA MAGALHÃES COSTA

CAMPANHA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS: Paulo Freire em Guiné Bissau

RIO DE JANEIRO 2009

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Larissa Magalhães Costa

CAMPANHA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS: Paulo Freire em Guiné Bissau

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. Silvio de Almeida Carvalho Filho

Rio de Janeiro 2009

Costa, Larissa Magalhães. Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos: Paulo Freire em Guiné-Bissau / Larissa Magalhães Costa. – 2009. 156 f. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Rio de Janeiro, 2009. Orientador: Silvio de Almeida Carvalho Filho

1. Paulo Freire. 2. Guiné-Bissau 3.Alfabetização de Adultos – Teses. I. Carvalho Filho, Silvio de Almeida. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Comparada. III. Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos: Paulo Freire em Guiné-Bissau

Larissa Magalhães Costa

CAMPANHA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS: Paulo Freire em Guiné Bissau

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História.

Aprovada em

________________________ (Silvio de Almeida Carvalho Filho, Doutor, UFRJ)

________________________ (Sabrina Evangelista Medeiros, Doutor, UFRJ)

________________________ (Edna Maria dos Santos, Doutor, UERJ)

RESUMO

COSTA, Larissa Magalhães. Campanha nacional de alfabetização de adultos: Paulo Freire em Guiné Bissau. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Departamento de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009

Este trabalho visa estudar a Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos realizada

em Guiné-Bissau, com a consultoria do educador brasileiro Paulo Freire, nos primeiros anos

após a independência daquele país, reconhecida por Portugal em 1974. Guiné Bissau é um

pequeno país, cujo desafio, no período em que Paulo Freire prestou consultoria, era construir

uma nação igualitária. Devido ao número de etnias que coabitavam e ainda coabitam o mesmo

território, a diversidade se mostra flagrante em todos os domínios e era sobre a base desta

realidade complexa que o Partido Africano pela Independência de Guiné Bissau e Cabo Verde

– PAIGC – tinha o projeto de construir uma identidade e consciência nacional. O partido, no

papel de Estado, utilizou diversas estratégias, entre elas, a educação e, mais especificamente,

a alfabetização de adultos para criar o sentimento de unidade entre os habitantes daquele país.

Nossa proposta é estudar a implantação da Campanha Nacional de Alfabetização de

Adultos, verificando como se deu a participação de Paulo Freire, a partir da análise exegética

das cartas que este educador enviou ao Comissariado daquele país. Procuramos discutir a

partir da comparação entre os documentos do PAIGC, dos documentos do período colonial e

das cartas com a bibliografia secundária, as relações sociais existentes naquela localidade,

verificando em que medida o Estado conseguiu alterá-las e concretizar o seu projeto da

construção da nação guineense. Para tanto, trabalhamos os conceitos de nação, identidade

nacional, liberdade e projeto político, buscando avaliar na prática a vinculação do sistema de

ensino com os objetivos propostos pelo projeto de desenvolvimento do país.

PALAVRAS-CHAVE: Paulo Freire, Guiné-Bissau, Alfabetização de Adultos

ABSTRACT

COSTA, Larissa Magalhães. Campanha nacional de alfabetização de adultos: Paulo Freire em Guiné Bissau. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Departamento de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009

The aim of this paper is to study the National Adult Alphabetizing Campaign carried

out in Guinea Bissau in the first years of its independence with the consulting of Brazilian

educator Paulo Freire. Portugal acknowledge it in 1974. Guinea Bissau is a small country

whose challenge, at the time Paulo Freire was there, was to build a socialist nation. Due to the

number of ethnic groups that shared the territory at that time and still live there the diversity

was obvious in every respect. The African Party for the Independence of Guinea Bissau and

Cabo Verde – PAIGC – wanted to build a national identity and consciousness based on such

complex reality. Playing the role of the state the party used several strategies – among them

education, adult alphabetizing specifically – to create the feeling of unit among the inhabitants

of that country.

We suggest studying the implementation of the National Adult Alphabetizing

Campaign, focusing on Paulo Freire’s participation based on the thorough analysis of the

letters he sent to the Guinea Minister of Education. By comparing the documents of the party,

of the colonial period, the letters and the secondary bibliography, we mean to discuss the

social relationships in that country. We also want to establish to which extent the State

managed to change them to carry out its project to build the Guinea nation. For that, we used

the concepts of nation, national identity, freedom and political project. By doing so we tried to

study the practical link between the educational system and the targets suggested by the

project of development of Guinea Bissau.

KEY-WORD: Paulo Freire, Guinea Bissau, Adult Alphabetizing

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 8 CAPÍTULO 1 – EDUCAÇÃO COMO PROJETO POLÍTICO ...................................... 18 Projeto Educacional Guineense............................................................................................ 29 Educação como projeto político ........................................................................................... 41 CAPÍTULO 2 – EDUCAÇÃO PARA LIBERDADE? ..................................................... 61 A vontade de construir uma nação ....................................................................................... 69 Afinidades teóricas: ............................................................................................................. 75 Divergências na prática:....................................................................................................... 82 CAPÍTULO 3 – O MÚLTIPLO E O UNO: TENSÕES DE UM NOVO PAÍS ............. 106 Guineidade ........................................................................................................................ 109 Unidade na diversidade: possibilidades e limites................................................................ 119 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 145 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS :........................................................................... 152

Lista de Mapas: Mapa nº 1 – Localização Geográfica Guiné-Bissau.......................................................... 19 Mapa nº 2 – Divisão das etnias no território guineense.................................................... 22 Mapa nº 3 – Divisão das regiões de Guiné-Bissau ............................................................ 39 Mapa nº 4 – Guiné-Bissau ................................................................................................. 51 Lista de Fotografias: Foto 1 – Vista parcial do Círculo de Cultura na Zona do Có .......................................... 65 Foto 2 – Estudantes do Liceu de Bissau no trabalho produtivo....................................... 79 Foto 3 – Escola na zona libertada...................................................................................... 92 Foto 4 – Vista parcial do Centro Máximo Gorki – Escola de Có................................... 100 Foto 5 – Estudantes do Liceu a caminho do campo........................................................ 102 Lista de Diapositivos: Diapositivo 1 – Culturas tradicionais africanas.............................................................. 139 Diapositivo 2 – Dominação Colonial ............................................................................... 141 Diapositivo 3 – Dominação Colonial ............................................................................... 142 Diapositivo 4 – Quadrinho aculturação ..........................................................................143

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INTRODUÇÃO

Nessas páginas percorremos a experiência da Campanha Nacional de Alfabetização de

Adultos realizada em Guiné-Bissau, com a consultoria do educador brasileiro Paulo Freire,

nos primeiros anos após a independência daquele país, reconhecida por Portugal em 1974.

Consideramos enriquecedor estudar Guiné Bissau, posto que é um país, cujo desafio,

no período em que Paulo Freire prestou consultoria, era construir uma nação igualitária.

Devido ao número de etnias que coabitavam e ainda coabitam o mesmo território, a

diversidade se mostra flagrante em todos os domínios, desde a cor da pele até a forma de

habitação e de povoamento; da língua à religião; do vestuário ao regime alimentar; do

instrumento agrícola até as regras de casamento; da divisão do trabalho à repartição das

riquezas. E era sobre a base desta realidade complexa que o Partido Africano pela

Independência de Guiné Bissau e Cabo Verde – PAIGC – tinha o projeto de construir uma

identidade e consciência nacional.

A definição do corte cronológico desta pesquisa foi não foi simples, na medida em que

não temos uma definição precisa do término da experiência. Assim sendo, trabalhamos com o

período de 1975 – ano do início da consultoria de Paulo Freire – a 1979, período final do

governo do PAIGC, que é retirado do poder por um golpe de estado em 1980.

O começo deste período foi de extrema euforia e de tentativa da implementação dos

planos do partido para o país, elaborados ainda no período da luta por Amílcar Cabral e pelos

líderes do partido. O PAIGC no governo pretendia continuar a experiência que tinha vivido

durante a luta pela independência que durou cerca de quinze anos. Podemos destacar desse

período os avanços no âmbito educacional e na consolidação das diretrizes que deveriam ser

seguidas pós-independência.

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Amílcar Cabral foi um dos fundadores do PAIGC e uma peça fundamental para a luta

pela independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde. Ele nasceu em Guiné-Bissau, estudou em

Cabo Verde e Portugal e retornou a sua terra natal como funcionário do governo colonial para

fazer o recenseamento agrícola, o que lhe proporcionou grande conhecimento do território,

muito importante para a luta armada que ocorreu anos depois deste trabalho.

Nas zonas libertadas do domínio colonial, o PAIGC consolidou sua ação, a partir de

uma organização até então nunca utilizada nessas regiões, baseada na vida comunitária, um

dos princípios tradicionais africanos. As escolas floresceram no mato e os hospitais de

campanha recolhiam os doentes, não só os guerrilheiros feridos, mas também os velhos, as

mulheres e as crianças vítimas dos bombardeios dos exércitos coloniais. Amílcar Cabral foi a

personalidade de maior destaque desse período, por ter conseguido mobilizar um grande

número de guineenses para auxiliar na luta contra o domínio colonial.

A guerra avançou rapidamente, deixando as tropas portuguesas em sérias dificuldades,

apesar das estratégias de bombardeamento com armas químicas e de divisionismo étnico, o

que o limitou a atuação deles aos centros urbanos e as fortificações dispersas pelo território.

A educação no período da luta teve um papel importante e isso se deve à forma como

o partido, e mais especificamente, Amílcar Cabral, entendia esse processo. A frase mais

célebre deste militante, que se transformou em uma palavra de ordem, constitui a base para o

entendimento da importância da educação: Cabral dizia que a luta de libertação era, acima de

tudo, um ato de cultura. E foi por causa deste princípio que as tarefas educacionais logo

apareceram nas primeiras regiões livres do domínio colonial. Cabe ressaltar que a educação

implementada nas zonas libertadas estava integrada às outras atividades cotidianas, sendo

vista como um aspecto da luta global (Cf. CARDOSO, 1993, ANDRADE, 1974).

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A escola era assumida pela população que a sustentava da mesma maneira que sustentava os guerrilheiros. Os alunos não eram retirados do seu ambiente, nem separados da comunidade, mas trabalhavam e viviam, lutavam e sofriam, em conjunto com todo o povo (OLIVEIRA, 1980).

Essa educação atrelada ao cotidiano da comunidade se apresenta como um ponto

fundamental para o nosso estudo, pois se aproxima de uma das assertivas de Freire: a

educação deveria partir da realidade do educando e estar atrelada à vida cotidiana da

comunidade.

Portugal não queria entrar em acordo com Guiné por ter interesse nas ilhas de Cabo

Verde e ter a preocupação de se formar um efeito dominó sobre as outras colônias. Para

dividir o PAIGC e o separar de sua base principal, o general Spínola – governador militar de

Guiné-Bissau nos anos que antecederam a independência – preparou um plano de invasão da

Guiné-Conakri, país vizinho ao território guineense que auxiliou na luta pela independência

de Guiné-Bissau.

O plano foi posto em prática em novembro de 1970 e fracassou. Em 1972, uma missão

especial da ONU foi visitar as zonas libertadas de Guiné-Bissau e apesar das tentativas dos

portugueses de mostrar domínio sobre as áreas, constatou-se que o PAIGC tinha o controle

territorial. Um ano mais tarde, o PAIGC decidiu proclamar o Estado da Guiné-Bissau, mesmo

que parcialmente dominado por Portugal. Esta proclamação tinha o objetivo de gerar uma

situação de ilegalidade da permanência portuguesa no território guineense, pois um Estado

reconhecido por outros Estados demonstra, como é exigido pelos princípios que regem a

ONU, que controla o seu território e a maioria da população, colocando o ocupante em uma

situação ilegal do ponto de vista jurídico.

O governo português estava convencido de que para a manutenção de sua colônia seria

necessário o aprisionamento ou a morte do principal dirigente do PAIGC, acreditando que isto

ocasionaria o fim do partido e conseqüentemente da luta. Cabral foi assassinado em janeiro de

1973, mas, antes de sua morte, delimitou os princípios da criação da Assembléia Popular e

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elaborou em grande parte o tipo de organização do novo Estado – principais órgãos de poder,

método eleitoral, entre outros.

Mais de um ano separou a morte do líder do movimento de libertação de Guiné e o

reconhecimento da independência daquele país, que ocorreu em setembro de 1974. O PAIGC,

no papel de Estado para colocar em prática os planos elaborados no período da luta, tentou

construir uma identidade nacional, a partir da conjugação interétnica. Assim como cada etnia

possui seus próprios costumes e maneira diferente de ver e de se relacionar no mundo e com o

mundo, o Estado é uma instituição que possui a sua própria forma de lidar com essas questões

e foi no encontro dessas diferentes visões que surgiram diversos problemas.

Após a independência, a Guiné-Bissau optou por um modelo de desenvolvimento

inspirado no socialismo. Podemos citar duas razões que motivaram esta escolha: a primeira é

que o país receberia o auxílio da União Soviética e dos países socialistas, tendo em vista o

período da Guerra Fria e a segunda é que outros países africanos recém-libertos que tinham

ensaiado um modelo de desenvolvimento do tipo liberal tinham fracassado (CARDOSO, nº

17, jan 94, p. 7). Além disso, não podemos esquecer que a formação da elite que liderou o

partido e a luta pela independência e assumiu o poder posteriormente, denominada por Mário

Cabral de “geração Cabral”, foi formada em Portugal e teve contato com os referenciais e

modelos político-econômicos do marxismo.

O paradoxo de pretender uma construção social baseada na igualdade e a prática

firmada em outras bases acompanhou este período histórico de transição da Guiné-Bissau. O

PAIGC tinha o propósito de construir uma nação, deixando a herança colonial de lado, e gerar

o crescimento do país. O partido, no Estado, utilizou diversas estratégias para criar um

sentimento de unidade entre os guineenses, entre as quais podemos destacar a educação e,

mais especificamente, a alfabetização de adultos.

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O PAIGC acreditava que seria possível romper totalmente com a estrutura colonial e

se deparou na prática com a falta de infra-estrutura e de verbas, levando o partido a optar pela

manutenção do aparato colonial, diferentemente do previsto antes de assumirem o governo e

do confronto com os problemas. Na educação, por exemplo, foco principal desta dissertação,

foram alterados os conteúdos das disciplinas humanas como História e Geografia, já que são

matérias que poderiam auxiliar na construção da identidade e da consciência nacional.

Nosso principal objetivo é analisar a implantação do projeto de alfabetização de

adultos, verificando como se deu a participação de Paulo Freire, através de um estudo

exegético das cartas que o educador brasileiro enviou ao comissariado daquele país.

Investigaremos também se a escolha do português como a língua a ser utilizada na

alfabetização atrapalhou na consecução do plano, visto que Freire defendia a alfabetização em

língua africana e o governo defendia a alfabetização em português. Da mesma forma,

verificaremos se, após a independência, formou-se uma elite reprodutora da herança colonial

e do modo de vida ocidental, visto que o projeto de desenvolvimento sócio-econômico

daquele país previa o rompimento com a forma de vida anterior, ou seja, o projeto da nova

sociedade elaborado pelo PAIGC visava uma transformação social, por isso, interessa-nos

também investigar em que medida isso foi alcançado.

Partimos do princípio de que a escolha da língua portuguesa para a alfabetização e a

centralização da campanha foram fatores decisivos para que a metodologia freireana não

correspondesse às expectativas esperadas. Também partimos da premissa de que apesar do

projeto de desenvolvimento sócio-econômico, pós-independência, prever o rompimento com a

herança colonial, se formou uma elite reprodutora do modo vida ocidental.

Esta pesquisa utilizou como fonte principal o livro de Paulo Freire Cartas à Guiné-

Bissau: registros de uma experiência em processo. Foram usados também um documento do

Comissariado de Estado da Educação Nacional e Cultura da República de Guiné Bissau, de

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julho de 1976, o discurso de Luis Cabral Guiné-Bissau: O estado da nação, proferido em 9 de

maio de 1978, durante a abertura da primeira sessão ordinária da II Legislatura da Assembléia

Nacional Popular, uma carta enviada por Freire à Mário Cabral publicada no livro escrito por

Paulo Freire em conjunto com Antonio Faundez intitulado Por uma pedagogia da pergunta e

textos de Amílcar Cabral publicados no livro A arma da teoria: Unidade e Luta I.

Em nossa principal fonte de análise são descritas as experiências vivenciadas por

Paulo Freire não só em Guiné, mas também nos outros países onde trabalhou – Brasil e Chile.

Ao ser consultado para participar do projeto de alfabetização pensado pelo PAIGC, sua

principal preocupação era mostrar que a proposta de alfabetização só seria viável se fosse

elaborada pelos guineenses, pois somente eles entenderiam as necessidades e dificuldades de

seu povo. Mesmo assim Freire se dispõe a auxiliar, descrevendo o trabalho teórico

desenvolvido por ele e sua equipe em Genebra. Após as visitas à Guiné, conhecendo melhor o

país e seus problemas, propôs soluções que ele gostaria que fossem pensadas, discutidas e não

simplesmente aceitas pela equipe, afirmando que o projeto de alfabetização proposto pelo

governo teria que estar de acordo com o projeto de nação que eles estavam pretendendo

construir, servindo a alfabetização como uma ferramenta para concretização do projeto de

nação. Neste livro, estão contidas 17 cartas que Paulo Freire enviou ao Comissariado de

Educação de Guiné Bissau. Estas são endereçadas principalmente a Mário Cabral. Como o

próprio título do livro aponta, registros de uma experiência em processo, ele foi publicado

antes do fim da consultoria, assim sendo, cartas publicadas neste livro são de janeiro de 1975

à primavera de 1976, maneira pela qual Paulo Freire datou a última carta. A análise exegética

dessas fontes proporcionou uma visão panorâmica sobre as atividades na alfabetização de

adultos.

No livro Por uma pedagogia da pergunta Freire publicou uma carta que enviou em

julho de 1977 à Mario Cabral em que sistematiza as discussões que tiveram sobre a questão

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da escolha da língua do sistema educativo e da alfabetização de adultos em Guiné-Bissau.

Nesta carta está evidente o desacordo que ambos tinham sobre este aspecto. Freire defendia

primordialmente que a língua do colonizador não poderia mediar a formação do povo, ao

contrário do PAIGC, que defendia a língua como um instrumento de relacionamento, sem

considerar a natureza ideológica da linguagem.

Para análise das cartas de P. Freire nos detemos sobre as seguintes questões propostas

por Ângela de Castro Gomes para o estudo de epístolas: quem escreveu e quem leu as cartas,

em que condições e locais foram escritas, quais seus objetivos, qual o seu ritmo e volume, que

assuntos e temas envolvem e como são explorados os vocabulários, enfim, qual o tipo de

linguagem utilizada. O valor das epístolas reside no fato de que, apesar de serem cartas

institucionais, apresentam a maneira pela qual Freire via o mundo e interagia com ele. Assim

sendo, nas cartas relativas ao trabalho de Freire desenvolvido em Guiné, a linguagem utilizada

é mais formal, se distanciando um pouco da escrita íntima, mas não deixando de ser uma

escrita pessoal ou como sugere Ângela de Castro Gomes, uma escrita de si.

O educador escreveu doze cartas para Mário Cabral, Comissário da Educação no

período em que foi consultor, e seis para a equipe de alfabetização de adultos, integrante do

Comissariado. Elas foram redigidas em Genebra e serviam como um relatório das atividades

promovidas pelo educador juntamente com a equipe do IDAC – Instituto de Ação Cultural,

que também participou desta experiência. Não há uma periodicidade constante (ritmo e

volume) no envio das cartas nem em suas respostas. Pelo contrário, Mário Cabral afirmou, na

entrevista concedida a Sérgio Guimarães, publicada no livro A África ensinando a gente, que

não respondeu as cartas enviadas por Paulo Freire. O Instituto Paulo Freire não tem o

manuscrito das cartas, nem os documentos que Freire ali menciona ter enviado à Guiné por

Miguel Darcy de Oliveira, nem as cartas ou a carta que a Comissão de Alfabetização enviou a

Freire. Os assuntos e temas que envolvem este corpus documental são concernentes à

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temática da alfabetização de adultos, na qual são descritas as atividades efetuadas e as

indicações propostas por Freire para o prosseguimento do trabalho.

O documento do Comissariado de Estado da Educação Nacional e Cultura da

República de Guiné Bissau, de julho de 1976, faz uma retrospectiva das ações que já haviam

sido tomadas, desde a educação nas zonas libertadas no tempo da luta até a educação do

período de transição, de 1974 a 1976, terminando com as perspectivas de atuações futuras. A

partir das diretrizes delineadas neste documento discutimos as medidas tomadas pelo partido e

suas implicações.

Entre os documentos do partido, temos o discurso de Luis Cabral proferido, em 1978

na Assembléia Nacional Popular, em que o presidente fez um balanço das condições do

Estado guineense. Debruçamo-nos sobre o trecho do discurso referente à educação em que o

então presidente do país mostra que ainda naquele ano, o governo estava se esforçando para

colocar em prática o programa do partido. Paralelamente, os textos de Amílcar Cabral

auxiliaram na medida em que delineiam os princípios do PAIGC.

A partir do corpus documental aqui descrito fizemos algumas comparações com o

intuito de melhor trabalhar nossas hipóteses. Comparamos os pensamentos de Paulo Freire e

do PAIGC com o intuito de verificar as semelhanças e diferenças entre ambos, assim como

comparamos o sistema de ensino guineense com o sistema de ensino no período colonial e o

discurso do partido e sua prática efetiva com o mesmo fim de verificar as semelhanças e

diferenças para vermos as permanências e rupturas que foram de fato efetuadas.

O método comparativo tem o mérito de possibilitar ao observador afastar-se de seu

próprio ponto de observação e, ao ultrapassar o caráter individual e único do que está sendo

observado, permitir a passagem da descrição para a explicação dos processos históricos,

sistematizando, assim, conhecimentos. É através da comparação que podemos perceber a

importância de uma ausência específica (CARDOSO, 1983, 409-419).

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Nossa pesquisa não se baseou em um trabalho exaustivo de comparação entre os

sistemas de ensino colonial, período da luta pela independência e pós-independência, nem

entre os pensamentos de Paulo Freire e do PAIGC, mas os paralelos efetuados entre tais

sistemas e pensamentos buscaram evidências das rupturas e permanências entre os modelos e

conseqüentemente, a partir de tais comparações, conseguimos agrupar dados que fossem

capazes de confirmar ou refutar nossas hipóteses.

Ciro Cardoso aponta que uma das vantagens do método comparativo é justamente a

possibilidade de um controle efetivo sobre as hipóteses. (CARDOSO,1983,409-419) A

abordagem comparativa enfatiza e torna visível o caráter seletivo e construtivo do trabalho

histórico, que muitas vezes fica implícito no uso de outras metodologias.

Heiz-Gerhardt Haupt no artigo O lento surgimento de uma História Comparada

aponta que algumas questões devem estar presentes ao se utilizar esta metodologia, quais

sejam, 1 – como decidir que objetos são comparáveis; 2 – como compará-los, e, 3 – por que

comparar. Debruçamo-nos sobre estas questões e entendemos que comparar os três sistemas

de ensino e os pensamentos de Freire e do PAIGC era possível na medida em que a partir

destas comparações verificaríamos a atuação na prática do Estado guineense evidenciando os

limites de sua atuação, assim como tornaríamos evidente as concordâncias e discordâncias

entre os dois pensamentos que ao mesmo tempo promoveram o início da experiência e

geraram o seu fim. A comparação foi efetuada a partir de temáticas emergentes dos

documentos do partido, do governo colonial e das cartas de Paulo Freire. Por fim, por que

comparar? Apesar desta resposta já estar implícita nas outras questões, vale ressaltar que

comparamos, pois queríamos trazer à tona as permanências do governo colonial no governo

do PAIGC (HAUPT, 1998, 205-216).

Comparamos o comparável na medida em que comparamos aspectos entre períodos

diferentes de um mesmo grupo social, ou seja, trabalhamos com sociedades contemporâneas,

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mas comparamos também o incomparável, já que a tônica desta metodologia é trabalhar com

a interdisciplinaridade. Promovemos um diálogo constante com conceitos da educação, assim

como utilizamos também noções sociológicas (THELM, BUSTAMENTE, PHOINIX 10,

2004).

O debate realizado em cada capítulo foi construído a partir de um conceito. Assim

sendo, no primeiro capítulo trabalhamos com a noção de projeto político, no segundo, são

trabalhados os conceitos liberdade e nação e no terceiro, identidade nacional.

No primeiro capítulo, intitulado “Educação como ato político”, investigamos questões

relativas ao sistema de ensino guineense, verificando a relação entre projeto político e

educação, assim como analisamos a partir deste contexto do sistema educativo o papel

desempenhado pela alfabetização de adultos.

No segundo capítulo, chamado “Educação para liberdade?”, discutimos a

possibilidade da libertação do povo guineense pela educação a partir da articulação entre os

objetivos políticos e pedagógicos de Paulo Freire e os objetivos políticos do PAIGC para a

construção do Estado e da nação pós-independência, refletindo sobre o papel do socialismo no

pensamento de ambos.

Já no terceiro capítulo, cujo título é “O múltiplo e o uno: tensões de um novo país”,

abordamos o debate sobre a criação da unidade na diversidade, idéia defendida por Amílcar

Cabral, verificando a maneira pela qual o PAIGC no governo buscou criar a identidade

nacional. A partir desta discussão trabalhamos a questão da dominação via aparato lingüístico,

uma vez que a escolha da língua em que se processaria a alfabetização foi senão o único, o

principal desacordo entre os pensamentos de Paulo Freire e Amílcar Cabral e a principal fonte

para o fim da consultoria prestada pelo educador àquele país do continente africano.

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CAPÍTULO 1 – EDUCAÇÃO COMO PROJETO POLÍTICO

Neste capítulo, abordaremos questões concernentes ao sistema educativo guineense e

apontaremos a relação entre projeto político e educação, assim como o papel desempenhado

pela alfabetização de adultos dentro deste contexto. Trabalharemos primordialmente o período

de 1975 a 1979, tendo em vista em que nele foi realizada a consultoria de Paulo Freire e da

equipe do Instituto de Ação Cultural – IDAC –, coordenada pelo educador brasileiro, para a

realização da Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos. A definição do corte

cronológico da pesquisa foi complicado devido à dificuldade de encontrar registro do término

da experiência. O livro Cartas à Guiné-Bissau, escrito por Paulo Freire, foi publicado no

período em que ele e sua equipe ainda estavam vivendo a experiência, em 1977. O artigo de

Rosiska Darcy de Oliveira, integrante do IDAC, no qual nos baseamos para delimitar a

temporalidade, diz que a experiência foi encerrada após 4 anos de contribuição. Assim sendo,

partimos do princípio que a consultoria foi encerrada em 1979. Mesmo não podendo precisar

com certeza o término da experiência, essa não chegou a 1980, já que neste ano houve um

golpe de Estado e a política governamental foi reformulada.

A educação teve um papel de destaque nos primeiros anos de independência,

denominado pelo Partido Africano pela Independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde –

PAIGC – de período de transição (1974-1976)1, pois o intuito desse era que o país progredisse

rapidamente. Para tanto, era necessário o desenvolvimento tanto de ordem quantitativa, tendo

em vista que era necessário dotar o país de um grande número de pessoas qualificadas, quanto

1 Esta denominação de período de transição aparece no documento do Comissariado de Educação e Cultura da República da Guiné-Bissau, de 1976, em que tratam do sistema educação desde o período colonial até o período de transição – 1974 a 1976 e são traçadas as perspectivas para os anos subseqüentes.

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de ordem qualitativa posto que a instauração do novo modelo cultural proposto dependia

diretamente de uma formação de qualidade.

Faremos uma breve contextualização do período logo após a independência de Guiné-

Bissau, pois é relevante que se compreenda a maneira pela qual o PAIGC, ao assumir o

governo, encontrou o território. O conhecimento da estrutura social da Guiné-Bissau é

fundamental na medida em que a compreensão entre as relações sociais e os nexos

explicativos, que delas poderemos retirar, ajudarão no entendimento das questões aqui

propostas.

Mapa nº 1 – Localização Geográfica Guiné-Bissau2

Guiné-Bissau é um pequeno país localizado na costa ocidental da África entre Senegal

e a República da Guiné3. Sua superfície é formada por uma zona continental, que é coberta

por rios caudalosos e pelo arquipélago de Bijagós. Na década de 1970, o país tinha cerca de

2 Mapa retirado da página http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:LocationGuineaBissau.svg. Acesso em 8 de outubro de 2008 3 Conakry é a capital desse país que é popularmente designado de Guiné-Conakry.

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800.000 habitantes que viviam majoritariamente da agricultura. A produção de arroz era a

principal fonte de alimentação, mas as produções de caju e amendoim também eram

substanciais (Cf. LOPES, 1982, p. 17, AUGEL, 2007, p. 50).

Esta região, que fora colônia portuguesa, teve sua independência unilateralmente

proclamada pelo PAIGC, em 24 de setembro de 1973, após mais de dez anos de luta armada.

A independência foi totalmente efetivada, ou seja, reconhecida também por Portugal, em 10

de agosto de 1974 (Cf. LOPES, 1982, p. 17, AUGEL, 2007, p. 50, CABRITA, 1999, p. 16).

A Conferência de Berlim, em 1885, partilhou o continente Africano entre as potências

coloniais européias. Nesse momento, Portugal que já estava presente em Guiné desde o século

XV teve que promover a ocupação efetiva do território, tendo em vista que se não cumprisse

essa condição poderia perdê-lo para outras potências coloniais. Apesar disso, o contorno

geográfico hoje existente só ficou definitivamente firmado após o acordo entre França e

Portugal (1902-1905), que ratificou o acordo de 1886 entre os dois países que determinava

que Portugal deixaria para França a região de Casamansa4; e, após violentas guerras de

conquista que duraram cerca de 30 anos, chamadas pelos portugueses de “campanha de

pacificação”. O último território dominado foi o arquipélago de Bijagós em 1936 (Cf. CÁ,

2004, p. 23, ALMEIDA, 1981, p. 31, LOPES, 1982, p. 21). Esse contorno geográfico

arbitrariamente determinado juntou naquele território diversos grupos sociais, assim sendo, lá

coabitam, ainda hoje, mais de 20 povos com mais de 20 línguas diferentes.

As etnias Fula e Balanta são as maiores e somam respectivamente cerca de 20% e 30%

da população. Os Manjanco, Mandinga e Pepéis5 correspondem cada a cerca de 10% da

população e as demais etnias somadas perfazem os 20% restante.

4 Esta região que passou a fazer parte do território senegalês era considerado o “coração da região” pela sua importância política, uma vez que lá era um bom ancoradouro para os vapores de alto mar que podiam aportar em segurança. 5 Esta etnia é conhecida como papéis ou pepéis, nome dado pelos portugueses.

21

Na bibliografia consultada sobre a composição das etnias em Guiné-Bissau, os dados

estatísticos sobre o percentual que cada uma corresponde varia bastante. O consenso se dá na

maneira pela qual estes grupos se organizam. O número de etnias e de línguas em Guiné-

Bissau é controverso, pois varia de acordo com os critérios criados pelo pesquisador que

contabiliza. Alguns sub-grupos étnicos são considerados por alguns etnias diferentes. Além

disso, provavelmente essa flutuação nos dados ocorra pela análise quantitativa desses grupos

em períodos diferentes, entretanto, não há como afirmar isso com certeza. O mapa abaixo se

refere a composição atual dessas etnias, na medida em que não foi possível encontrar mapa

etnográfico da Guiné-Bissau na década de 1970, mas acreditamos que o espaço geográfico ao

qual cada etnia está situada não teve uma alteração expressiva.

A sociedade guineense, apesar da quantidade de etnias que a compõe, pode ser divida

em 3 grandes grupos formados pela afinidade cultural, histórica e religiosa.6 O primeiro grupo

é composto pela maior parte da população, que compõe 55% e agrupa etnias que mantém as

práticas ancestrais, conhecidas como animistas. Este grupo é subdividido. Um subgrupo é

formado pelos Balantas, Bijagós e Felupes que tem uma organização social do tipo

comunitária e estratificada pelo sexo e idade, por isso, as funções são determinadas de acordo

com o sexo e a idade e a gestão administrativa judiciária e religiosa fica a cargo do conselho

de idosos. Já o subgrupo que congrega as etnias Manjacas, Pepéis e Mancanhas tem sua

organização social do tipo tributária e sua organização é considerada intermediária entre uma

estrutura vertical e horizontal, uma vez que já se encontra divisão social não baseada nas

divisões naturais, como por exemplo, sexo e idade, como é o caso da organização horizontal,

mas a divisão não é tão nítida como em uma estrutura vertical.

6 Essa divisão foi proposta pelos investigadores do INEP – Instituto Nacional de Estudo e Pesquisa.

22

Mapa nº 2 – Divisão das etnias no território guineense

7

O segundo grupo que compõe 40% da população é denominado de islamizados e é

formado primordialmente pelas etnias Malinké e Fula. Eles possuem escrita própria, posto

que utilizam o alfabeto árabe e a religião e os direitos consuetudinários se alicerçam no direito

corânico. A organização social é verticalmente organizada e os grupos são divididos em bases

familiares, políticas, religiosas e profissionais.

7 Mapa retirado da página www.tchando.com/gui4.html. Acesso em dia 8 de outubro de 2008.

23

O terceiro grupo compõe a menor parte da população soma 5% da população e foi

formado durante o período colonial. São os chamados luso-africanos que residem nos centros

urbanos, principalmente na capital e tem como língua materna o crioulo e a língua portuguesa

e são normalmente integrantes da religião católica (JAUARÁ, 2003, p. 8). É importante

ressaltar que mesmo esse grupo sendo minoritário, foi dele que saiu as principais lideranças

do país, após sua independência.

Amílcar Cabral8, sobre a organização dos grupos étnicos que viviam na Guiné-Bissau,

afirmava que os mandingas empurraram para junto do mar os grupos que eram do interior

como os balantas, papel, mancanha, entre outros. Além disso, ele afirmou que os balantas

aderiram a luta pela independência, posto que sua sociedade era horizontal e os homens que

faziam parte desse grupo queriam ser livres já que não tinham opressão interna, mas somente

dos portugueses. Cabral defendia que os balantas eram uma sociedade horizontal que não

tinham um grupo no comando e que os portugueses colocaram chefes mandingas ou antigos

cipaios para comandar esse grupo. Já os fulas ou manjancos tinham seus próprios chefes e

eram grupos hierarquizados (CABRAL,1978, p.125).

Em cima há o chefe, a seguir os religiosos, a gente grande da religião que, com os chefes, formam uma classe, a seguir vêm outros de profissões diversas (sapateiros, ferreiros, ourives) que, em qualquer outra sociedade, não têm direitos iguais aos de cima. [...] Depois então vem a grande massa da gente que lavra o chão. Lavra para comer e viver, lavra o chão para os chefes, como é costume (CABRAL, 1978, p. 125).

Carlos Cardoso, pesquisador do Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em

Ciências Sociais de Guiné-Bissau afirma que existiam entre 70 e 80 chefes tradicionais no

território guineense no século XVIII e cada qual administrava politicamente seu grupo étnico,

entretanto, todos estavam de alguma maneira submetidos ao reino mandinga, que atualmente

8 Como foi mostrado na introdução Amílcar Cabral foi um dos fundadores do PAIGC. Sua relação estreita com Guiné-Bissau e Cabo Verde, por ter nascido em Guiné e vivido em Cabo Verde o fez trabalhar pela independência de ambos, além de desejar a união dos dois território acreditando que seria possível a formação de uma única nação.

24

possui cerca de 13% da população, os fulas e os balantas são as etnias majoritárias com 20% e

30% da população, respectivamente. Provavelmente era embasado neste dado que Amílcar

Cabral defendia a existência da aproximação das culturas africanas. Amílcar Cabral defendia

que existiam muitas culturas na Guiné, mas que todas tinham uma base em comum.

Na Guiné, a cultura do nosso povo é produto de muitas culturas da África: cada etnia tem a sua cultura própria, mas todas tem um fundo igual de cultura, a sua interpretação do mundo e as suas relações na sociedade. E sabemos que embora haja populações muçulmanas, no fundo eles também são animistas, como os balantas e os outros. Acreditam em Ala, mas também acreditam no ‘iran’ e nos ‘djambacosses’. Tem alcorão, mas também têm o seu ‘gri-gri’ no braço e outras coisas. E o sucesso do Islamismo na nossa terra, como na África em geral, é que o Islam é capaz de compreender isso, de aceitar a cultura dos outros, enquanto os católicos querem acabar com isso tudo rapidamente para crerem na Virgem Maria, na Nossa Senhora de Fátima e em Deus Nosso Senhor Jesus Cristo (CABRAL, 1978, p.140).

Amílcar Cabral utilizava a idéia de um fundo comum das culturas africanas como

justificativa da existência de uma cultura guineense, ou seja, de uma unidade que no período

da luta se transformaria na consciência nacional.

A colonização da Guiné-Bissau, feita pelos portugueses, não alterou

significativamente as estruturas tradicionais existentes. Eram raras as propriedades agrícolas

que estavam nas mãos dos brancos e a presença militar e administrativa tinha o intuito de

explorar o comércio, gerar a imposição da monocultura e cobrar impostos, ou seja, a

economia da colônia estava integralmente subordinada aos interesses de Portugal.

O colonialismo provocou o aparecimento de uma pequena burguesia urbana composta

pelos funcionários do governo, comerciantes e professores, e o aparecimento de um reduzido

número de profissionais que trabalhavam no porto, na construção civil ou eram assalariados

rurais.9

9 CIDAC – 3 anos de independência

25

A colonização efetiva portuguesa durou cerca de 60 anos (1915-1973), mas foi

somente após a 2ª Guerra Mundial que este território foi verdadeiramente submetido à política

colonial (Cf. KOUDAWO, 1995, p. 69, AUGEL, 2007, p. 54).

A ocupação territorial se deu primordialmente na zona costeira, local em que foram

organizados centros urbanos cuja influência cultural colonial estava bem presente. Na década

de 1950, a infra-estrutura naquele território era precária, quase não havia estrada, as

telecomunicações não funcionavam direito, inclusive em Bissau, principal centro urbano. Não

havia escolas no interior e a assistência sanitária só estava presente nos entrepostos comerciais

(Cf. LOPES, 1982, p. 22).

No âmbito educacional, importante ferramenta para a assimilação da cultura européia

pelos guineenses, os portugueses procuraram descaracterizar as culturas autóctone e introduzir

novos valores. A educação escolar, que tinha o intuito de formar quadros administrativos para

o Estado colonial, era tida como uma forma de ascensão social para os africanos (ALMEIDA,

1981, p. 22-3).

O ensino colonial era funcional em relação às necessidades metropolitanas, inclusive quando não era implantado em algumas áreas (por ser considerado desnecessário): o saber transmitido foi sempre à cultura, os valores, a religião, os hábitos, a língua e até mesmo a geografia e a história dos povos da Europa (a história da África começava com a sua descoberta e colonização pelos europeus). Promovia-se assim a distinção entre aqueles que tinham acesso a esse conhecimento desligado da vida dos povos africanos (e que por isso podiam ser admitidos como aliados dos colonizadores) e aqueles que permaneciam ligados à sua cultura considerada inferior, resistindo ao aniquilamento de seus valores (e que, por não se tornarem civilizados, não tinham direito a uma vida melhor que a do trabalho forçado) (ALMEIDA, 1981, p. 22).

Até 1966, era feita uma grande comemoração quando um estudante de uma aldeia

terminasse o ensino primário. A partir de então, ele tinha duas possibilidades: ou o ingresso

no funcionalismo público ou a continuidade do estudo no liceu (JAUARÁ, 2003, 39).

A política educacional portuguesa em suas colônias objetivava, como o governo

português apontava, “formar cidadãos capazes de compreender plenamente os imperativos da

26

vida portuguesa, interpretá-los e transformá-los numa realidade constante, a fim de assegurar

a continuidade da nação” (SILVA CUNHA apud CABRITA, 1999, p. 26). Vemos aí uma

tentativa clara de Portugal de controlar todas as instâncias da cultura africana. Os livros

escolares eram um reflexo desse propósito e, até a década de 1960, o material utilizado na

colônia era o mesmo utilizado na metrópole. Somente em 1964, os livros começaram a ser

“africanizados” e continham ilustrações que mostravam uma convivência harmônica entre

brancos e negros. Ainda assim, as questões morais continuaram a ser tratadas do ponto de

vista português. (CABRITA, 1999, p. 27, ALMEIDA, 1981, p. 42) É evidente que essa

mudança de postura no ensino era uma tentativa de maior assimilação e aceitação da

população da manutenção dos portugueses em seus territórios ultramarinos. Vale lembrar que

o PAIGC se formou em 1956 e, já na década de 1960, iniciava a luta pela independência.

O fim do colonialismo tornava-se cada vez mais uma realidade para os movimentos emancipacionistas, principalmente com a independência de Gana em março de 1957. Esse fato influiu muito no crescimento da resistência contra a presença colonial na África (JAUARÁ, 2003, p. 227).

Além do acesso à educação ser restrito a um pequeno número de pessoas, estas

mantinham-se com dificuldade no sistema educativo. A educação dos guineenses se restringia

praticamente ao curso primário, para os poucos que conseguiram ir à escola. O baixo

aproveitamento dos alunos ocorria não só pela falta de preparo dos professores como também

pela exigência do aprendizado ser em português, que apesar de uma lei autorizar o uso de

idiomas nativos, esses não eram usados, uma vez que os professores não tinham domínio dos

mesmos (CABRITA, 1999, p. 29). Nenhum africano era legalmente impedido de freqüentar

as escolas primárias oficiais, desde que possuíssem cidadania portuguesa, ou seja, desde que

fossem assimilados. Como este grupo era formado por um número restrito de pessoas, uma

vez que eram muitos os requisitos necessários para conseguir a cidadania, a maior parte da

27

população estava excluída do sistema de ensino colonial (ALMEIDA, 1981, p. 48). Amílcar

Cabral a esse respeito dizia que

Na Guiné, 99% da população não podia ir à escola. A escola era só para os assimilados, ou filho dos assimilados, vocês conhecem a história toda, não vou contá-la outra vez. Mas é uma desgraça que o tuga causou na nossa terra, não deixar os nossos filhos avançarem, aprender, entender a realidade da nossa vida, da nossa terra, da nossa sociedade, entender a realidade da África, do mundo de hoje (CABRAL, 1978, p. 139).

Com a independência, o partido assumiu a responsabilidade do governo. Ao assumir

essa função o PAIGC poderia optar prioritariamente entre dois modelos políticos bem

diferentes, quais sejam: o da antiga metrópole ou inspirar as estruturas organizacionais na

África ancestral. Os dois modelos bem distintos em suas concepções possuem prós e contras.

A adoção do modelo da herdado da ex-metrópole facilitaria a implantação do novo governo,

na medida em que poderiam ser aproveitados os técnicos e funcionários herdados do antigo

governo colonial e a estrutura já estaria montada. Entretanto, haveria dificuldade de expandir

essa estrutura organizacional de acordo com as novas necessidades uma vez que seria

demorado formar novos profissionais com tal perfil e criaria-se um fosso entre a elite

urbanizada e a população etnorrural, maior parte da população. Já a inspiração organizacional

nos moldes da África ancestral basearia-se na descentralização das estruturas, formando-se

autogestões locais e a educação seria ministrada nas línguas nacionais e não em idiomas

estrangeiros (JAUARÁ, 2003, p. 53-4).

O partido, agora, responsável pelo governo do país, acreditava que ao disseminar as

idéias revolucionárias socialistas nas escolas, nos trabalhos, nas organizações de massas, as

comunidades etnorrurais iriam formar uma consciência nacional em detrimento de suas

consciências étnicas (JAUARÁ, 2003, p. 10). Nesse ideal está intrínseco o entendimento de

que o homem ao se despojar de sua identidade étnica ou regional iria assumir uma nova

identidade nacional de cunho socialista através do engajamento político e que essa seria capaz

28

de acabar com a exploração do homem pelo próprio homem. Daí resulta a defesa do PAIGC

da formação de um novo homem e de uma nova mulher para a construção da nação

guineense.

Entretanto, o governo optou pela manutenção de grande parte da estrutura colonial. No

plano externo foi demonstrada uma grande capacidade diplomática, posto que foram firmados

inúmeros projetos de cooperação técnica e financeira (JAUARÁ, 2003, p. 9).

“Na sociedade guineense, os critérios de estratificação social foram profundamente marcados pela política e interesses do poder colonial, e consequentemente herdados a nível do aparelho de estado e de outras instituições sociais pelo partido que conquistou a independência, o PAIGC. Como explica nosso colega Carlos Lopes (1988:57), ‘[...] após a independência, a prática social desenvolvida durante a luta armada foi-se esmorecendo face a capacidade de recuperação do estado colonial, entretanto herdado e posteriormente salvaguardado, no seu contexto político” (MONTEIRO, 1996, p. 350).

Como Carlos Lopes, aponta a prática desenvolvida durante a luta armada foi se

esmorecendo e o modelo de administração coletiva, tentado no início da administração –

período que Paulo Freire foi consultor do projeto de alfabetização de adultos – foi

abandonado antes mesmo de se consolidar devido a resistência da classe média urbana e dos

antigos funcionários coloniais, que estavam adaptados ao modelo administrativo anterior e

tiveram a seu favor a falta de profissionais qualificados e a complacência de alguns dirigentes

do PAIGC (JAUARÁ, 2003, p. 9).

A manutenção de grande parte da estrutura burocrática colonial evidencia o relevo

desta contextualização e traz à tona consigo a reflexão que os dirigentes guineenses se

confrontaram naquele período: como romper com a herança colonial mantendo sua estrutura?

Era premente a introdução do sistema educativo do PAIGC nas zonas que tinham

permanecido sob o controle da administração colonial até 1974, particularmente, os centros

urbanos como Bissau, Bafatá e Gabu, que tiveram grande influência dos colonizadores cuja

herança cultural estava fortemente presente. Aristides Pereira, secretário-geral do PAIGC, em

29

seu discurso na primeira sessão pós-independência da Assembléia Nacional Popular – ANP –

falou sobre a dificuldade que enfrentariam, tendo em vista que ele considerava que a batalha

mais dura era descolonizar as cabeças. Aristides Pereira declarou: “a batalha mais dura que

teremos talvez de travar será a descolonizar as cabeças, pois é uma tarefa urgente, como factor

determinante para assentarmos a nossa administração e a nossa economia em bases sãs e

abertas ao progresso e justiça para todos” (KOUDAWO, 1995, p. 109).

Foi proposto por alguns dirigentes do partido o fechamento provisório de todas as

escolas coloniais, no entanto, optou-se iniciar o ano letivo de 1974/75 utilizando a estrutura

colonial existente, introduzindo-se novos programas e materiais didáticos nesses

estabelecimentos. A falta de infra-estrutura, a escassez de material didático e a má-

qualificação dos professores foram obstáculos encontrados para consecução do plano de

utilização da educação como ferramenta para a libertação. Além disso, outro problema, o da

língua, talvez de amplitude ainda maior, assolava o projeto educativo de Guiné (Cf.

OLIVEIRA, 1980, CÁ, 2005).

Projeto Educacional Guineense

O PAIGC no governo procurou seguir os planos traçados pelo partido para construção

do Estado Nacional no período da luta pela libertação. Utilizaremos PAIGC, governo e Estado

como sinônimos, tendo em vista que nesse período o partido assumiu a liderança do Estado

guineense e os interesses do Estado e do partido foram, de certo modo, amalgamados. Os

projetos implementados foram os traçados pelo partido na luta pela independência, os líderes

do partido que assumiram os cargos de chefia e a escolha dos cargos era efetuada a partir da

militância e não necessariamente do preparo técnico e intelectual.

O documento de julho de 1976 do Comissariado de Estado da Educação Nacional e

Cultura da República de Guiné-Bissau denota a visão que o partido tinha sobre a educação no

30

período colonial, no período de luta pela independência e de transição definido por eles como

os anos de 1974 a 1976. Os primeiros anos após a independência foram chamados de período

de transição, posto que representavam a passagem do período colonial para o período em que

teriam, ou pelo menos desejavam ter, uma sociedade igualitária. Foram traçadas, também no

documento, as perspectivas para os anos seguintes.

A consultoria de Paulo Freire foi iniciada no período de transição, já que as

correspondências entre o educador e o Comissariado de Educação começaram em janeiro de

1975. Assim sendo, é fundamental demonstramos o projeto educacional do PAIGC neste

período para identificarmos o papel desempenhado pela alfabetização de adultos.

Nos objetivos gerais foi apontado que a finalidade do sistema educativo da República

da Guiné-Bissau era formar todo o povo desenvolvendo as capacidades intelectuais e

espirituais das novas gerações. Foi também reafirmada a necessidade da formação da

concepção científica do mundo para que “os alunos formados nas escolas sejam capazes de

interpretar, impulsionar e desfrutar os progressos da ciência, da técnica e da cultura e se

tornem jovens dotados duma educação integral” (DOCUMENTO: Comissariado da Educação,

1976, p. 54).

Além disso, foi mostrado no documento que os princípios gerais adotados na educação

tinham sido retirados das palavras de ordem gerais do PAIGC de 1965. Daremos especial

atenção a dois objetivos gerais e a conclusão que ilustram bem qual era o projeto educativo

daquele país.

Educar-nos a nós próprios, educar os outros e a população em geral para combater o medo e a ignorância, para eliminar pouco a pouco a submissão diante da natureza e das forças naturais que a nossa economia ainda não dominou. Lutar sem violências desnecessárias contra todos aspectos negativos, prejudiciais ao homem, que ainda fazem parte de nossas crenças e tradições. (...) Convencer cada um de que ninguém pode saber sem aprender e que a pessoa mais ignorante é aquela que sabe sem ter aprendido. Aprender na vida,

31

aprender junto do nosso povo, aprender nos livros e na experiência dos outros. Aprender sempre. (...) Portanto, o ensino no país tem por finalidade criar uma educação de massas que permita a integração do povo no mundo atual. O ensino, a todos os níveis deve ser orientado mediante a integração unitária de um sistema educacional que responda cabalmente às necessidades culturais, técnicas e sociais que o desenvolvimento da nação impõe.

Fica evidente que o PAIGC pretendia universalizar a educação, com o intuito de gerar

uma nova mentalidade calcada na concepção científica de mundo em detrimento de certos

aspectos tradicionais das culturas africanas. Esta perspectiva foi delineada ainda no período da

luta e se baseava na crítica às crenças que atrapalhavam a luta como, por exemplo, a crença

que amuletos não permitiriam que os corpos se ferissem, ou seja, o partido acreditava que

certas práticas das culturas africanas atrapalhariam o progresso do país e por isso precisavam

ser repensadas. Percebemos presente uma racionalidade ocidental no pensamento da elite

política guineense.

Amílcar Cabral, apesar de defender hábitos africanos antes da penetração colonial não

queria retornar as relações existentes antes da penetração dos portugueses no território. Pelo

contrário, Cabral pretendia criar o “novo homem” cujo fim era lucrar a partir da

industrialização do arroz e do amendoim. Daí a noção de progresso ser tão mencionada nos

documentos do partido.

A nossa luta é baseada na nossa cultura, porque a cultura é fruto da história e ela é uma força. Mas a nossa cultura é cheia de fraqueza diante da natureza. [...] Mas como já ultrapassámos isso, sabemos que na floresta, no mato, nós é que mandamos, nós, os homens, não é nenhum bicho, nenhum espírito que está lá metido. Isso é muito importante. Mas a realidade cultural da nossa terra é essa. Vários camaradas que estão aqui sentados têm o mesinho na cintura, convencidos de que isso pode evitar-lhes as balas dos tugas. Mas nenhum de vocês pode dizer-me que qualquer dos camaradas que morreram já na nossa luta não tinham mesinho na cintura. [...] Mas os camaradas devem compreender que tudo isso é também um obstáculo para a luta (CABRAL, 1978, p.142, grifo nosso).

Nos objetivos específicos do sistema educativo, vemos que algumas das metas eram:

ensino básico universal em seis anos, formação profissional pós-primária de 3 anos para

32

formação de quadros profissionais que auxiliassem no desenvolvimento do país como

professores para o 1º ciclo do ensino básico, auxiliares de enfermagem, práticos agrícolas e

profissionais destinados ao comissariado de energia, indústria e obras públicas, urbanismo e

construção, e, após esta formação geral era prevista uma formação pré-universitária de 2 ou 3

anos em institutos de ensino médio politécnico.

Existem dois pontos de destaque nos objetivos específicos, quais sejam, ligação

trabalho/estudo – escola e trabalho produtivo – e educação formal e não-formal. A defesa da

relação entre trabalho produtivo e escola se baseava na idéia de que os trabalhos manual e

intelectual deveriam ser atrelados, uma vez que o PAIGC entendia que a “fonte principal da

vida está na terra, na qual todos devem trabalhar para a produção de bens materiais”

(DOCUMENTO: Comissariado da Educação, 1976, p. 55). Vale lembrar que Guiné-Bissau era

um país agrário e a base da sua economia era a produção, principalmente do arroz

(OLIVEIRA, 1980, p. 73). O governo receava que a formação escolar afastasse a população

do trabalho agrícola e superlotasse os centros urbanos que não teria oferta suficiente de

trabalho. Para se evitar este problema do êxodo do campo para a cidade, o projeto

educacional, que tinha como intuito formar “novos” cidadãos, buscou amalgamar estes dois

aspectos. Era utilizada a expressão unir a escola à vida, ou seja, um dos pilares que embasava

a concepção educacional era a tentativa de aproximação da educação das realidades do país.

Quanto à educação formal e não formal é apontado que as metodologias seriam diferentes,

mas os objetivos eram os mesmo. Eles visavam a formação de pessoas que pudessem

trabalhar na cidade ou no campo de acordo com suas aptidões e vontades e queriam combater

a idéia de formação de escolas urbanas e escolas rurais, ou seja, era visado formar um único

sistema educativo em que em todos os níveis a educação estaria ligada necessariamente ao

trabalho produtivo. “Ora, um dos objetivos do ensino, agora, quer no sistema formal quer no

não-formal, quer na educação de jovens quer na educação de adultos, quer nas escolas

33

primárias quer nas secundárias, é ligar a escola a produção, de forma que a escola seja o local

onde se formem os quadros necessários para encarar o desenvolvimento sócio-econômico do

país” (DOCUMENTO: Comissariado da Educação, 1976, p. 56).

O Estado da Guiné-Bissau não quer um ensino seletivo, mas sim um ensino destinado a todo o povo, um ensino de massas. Quer métodos adaptados às realidades do país, adaptados a cada situação concreta. Quer levar a todo o povo, em todos os cantos do país, mais conhecimento e meios de melhor desenvolver as suas capacidades de trabalho, para o bem-estar de cada um e para o progresso do país. Desta forma, o povo não será objeto só, mas também sujeito das transformações sociais (DOCUMENTO: Comissariado da Educação, 1976, p.56).

Esse era o desejo do partido, mas não se efetivou na realidade. Além da reafirmação

constante do ensino estar adaptado às realidades do país é também dito com veemência que a

educação auxiliaria no desenvolvimento do mesmo. A educação estaria a serviço do progresso

daquele Estado Nacional.

As nossas escolas devem preparar esse homem de amanhã, ensinando-lhe não só a ler, a escrever e a fazer contas, mas também prepara-lo para participar na criação do mundo novo, de trabalho racional, aberto à técnica moderna, às conquistas da humanidade, para o desenvolvimento da qual ele deve contribuir (DOCUMENTO: Comissariado da Educação, 1976, p.56).

A pedagogia freireana estava de acordo com esse princípio do partido, na medida em

que ela não abarcava somente o aprendizado da leitura e da escrita dos signos lingüísticos,

mas primava principalmente pela reflexão do indivíduo sobre o seu meio social.

Segundo Paulo Freire, Mário Cabral, Comissário da Educação e Cultura do país,

quando Freire foi consultor do Projeto de Alfabetização de Adultos entendia a educação como

“expressão supra-estrutural, em suas relações dialéticas e não mecânicas com a infra-estrutura

da sociedade” (FREIRE, 1977, p. 45). Freire defendia a postura adotada pelo Comissariado e

afirmava que esta maneira de pensar a educação era bem eficaz, na medida em que as etapas

do ensino não eram só preparatórias para a próxima, mas estavam atreladas às necessidades

34

do país. Ao final de cada “nível de ensino”, o aluno teria desenvolvido competências

fundamentais para o desenvolvimento do mesmo, possibilitando, assim, o engajamento de

todos os alunos na luta pela “reconstrução” nacional.

O Comissariado considerava a educação como uma ferramenta para sedimentação da

transformação social que havia começado durante o período da luta pela independência.

O “novo homem” e a “nova mulher” tão almejados pelo PAIGC também seriam formados

pelo sistema de ensino, mas o Comissariado tinha consciência de que só a educação não seria

capaz de propiciar tal mudança. A educação poderia e lançaria o desafio, mas este deveria ser

adotado por todos os setores para que se concretizasse (FREIRE, 1977, p. 49).

Portanto, a grande tarefa da educação era esta, de acordo com Cabral: ‘temos que preparar nosso povo para aceitar este desafio que fazemos, o desafio da transformação da nossa terra.’ Segundo Cabral, o conceito de transformação da terra impede que se entenda a educação como mera transmissão estática de conhecimentos, antes compreendê-la como uma atividade dinâmica e criadora ao serviço da revolução social (CÁ, 2005, p. 73).

Freire em conversa com Sérgio Guimarães10 afirmou que Luis Cabral, irmão de

Amílcar Cabral e Presidente do Conselho de Estado da República da Guiné-Bissau, no

período em que ele foi consultor, afirmou que Amílcar conhecia o trabalho desenvolvido pelo

educador e durante a luta afirmara que chegaria o dia em que eles iriam chamar Paulo Freire

para trabalhar com eles lá (FREIRE, GUIMARÃES, 2008, p. 48). O pensamento de Freire

coadunava com as diretrizes do PAIGC formuladas por Amílcar Cabral durante a luta pela

independência da Guiné e que o líder da luta guineense almejava a concretização da

alfabetização de adultos com o auxílio do educador brasileiro.

Como vimos o sistema educativo guineense tinha como fim criar uma educação de

massas que permitisse a integração do povo no mundo moderno socialista. Isso significa dizer

10 Conversa publicada no livro FREIRE, PAULO, GUIMARÃES, Sérgio. Sobre educação: lições de casa. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2008

35

que era desejado igualdade de oportunidades a todos os cidadãos. Luis Cabral, no discurso

proferido em maio de 1978, durante a primeira sessão ordinária da II Legislatura da

Assembléia Nacional Popular, apontou que “a Educação é um dos domínios em que mais nos

temos esforçado para satisfazer os objectivos constantes do programa do Partido” (CABRAL,

1978, p. 123). A educação nesse período tinha 18% do orçamento e o Comissariado recebia

mais de um terço das receitas efetivas do Estado. Cabral aponta que mesmo com a maior

parcela do orçamento destinada ao sistema educativo a demanda educacional era ainda

enorme, entretanto, o presidente salientou a impossibilidade de destinar mais recursos além

dos que já eram consumidos neste setor. O percentual do orçamento destinado ao sistema de

ensino é reflexo do empenho e da crença que o governo tinha de que a educação era um dos

aparatos fundamentais para concretização dos seus planos. Vemos aí duas possibilidades,

quais sejam, ou a pobreza daquele país e os problemas de infra-estrutura eram realmente

gritantes, já que nem com a maior parcela do orçamento foi possível sanar os problemas do

sistema de ensino ou naquele período houve mais discurso do que a implantação na prática

das propostas.

No ano letivo de outubro 1974 a setembro de 1975, o PAIGC manteve a estrutura

existente, ou seja, nesse ano vigorou a estrutura da educação colonial, mas aumentou o

número de alunos nas escolas. “Este primeiro ano, quase experimental, permitiu também a

estruturação, a nível nacional, do Ministério da Educação e a recolha de dados indispensáveis

a uma planificação mais rigorosa do ensino” (OLIVEIRA, 1980, p. 84). A decisão entre a

manutenção do sistema educativo colonial ou seu fechamento foi bem difícil. O Comissariado

de Educação chegou a pensar em fechar as escolas no início do governo, até que

organizassem o ensino de acordo com os novos objetivos propostos pelo PAIGC. Com

relação a possibilidade do fechamento das escolas Mário Cabral disse: “Isso era um sonho.

Contudo, ainda hoje (1976) não estaríamos em condições de começar nossas aulas porque não

36

conseguimos ter, até agora, os meios que um tal ensino precisa” (FREIRE, 1977, p. 50). O

risco dessa manutenção seria a entrada em choque do sistema de ensino com o projeto de

desenvolvimento do país. A educação era nitidamente pensada como uma arma para a

transformação da sociedade e a permanência das estruturas coloniais poderiam configurar um

entrave neste intento.

Os anos letivos 1974-1975 e 1975-1976 serviram de base para que se delineasse um

novo sistema educativo que começou a ser implantado progressivamente a partir de 1976-

1977, denominado de ano II da Organização do sistema de ensino de Guiné-Bissau com as

seguintes limitações: falta de equipamentos, infra-estrutura e recursos financeiros. O ano

letivo de 1975-1976 foi denominado de ano I da organização do sistema de ensino, tendo em

vista que o contato com os problemas no sistema educativo no ano anterior viabilizaram a

organização do Comissariado com a criação de diversos conselhos, como o consultivo,

administrativo, etc. Vale lembrar que em 1974-1975 este departamento era ainda sub-

comissariado (CÁ, 2005, p. 87, ALMEIDA, 1981, p. 88, 157).

Nesse novo sistema educativo, o intuito era oferecer um ensino básico cujo fim era

escolarizar todos os jovens em seis anos. O Ensino Básico era dividido em dois ciclos, quais

sejam: 1º ciclo de quatro anos em que os alunos adquiririam conhecimentos de base e os

hábitos necessários para convivência na vida coletiva como solidariedade, responsabilidade,

amor ao trabalho, ao povo, à sua terra; 2º ciclo de dois anos em que os alunos completariam a

formação de base recebida no primeiro ciclo. Neste último ciclo, era dada, no entendimento

deles, a oportunidade ao jovem, através do aprendizado de uma língua de grande difusão, de

se abrir ao mundo exterior. Além disso, seriam desenvolvidos o espírito de iniciativa, o

sentido das responsabilidades individuais e o espírito crítico. As alterações nas disciplinas

foram: a introdução da Química e da Física (noções básicas para a compreensão dos processos

da natureza); Biologia em substituição as Ciências Naturais; união da formação militante,

37

História e Geografia em uma única disciplina denominada Ciências Sociais. Foi introduzido

Educação Sanitária e o francês – a língua dos países vizinhos da Guiné-Bissau que tinha um

bom número de falantes na capital – foi retirado para não sobrecarregar o ensino básico

(ALMEIDA, 1981, p. 159). A educação sanitária foi um dos focos da educação, já que na

Guiné existiam problemas de saúde, como, por exemplo, doenças causadas por insetos,

devido à falta de saneamento básico.

Após a formação básica, o aluno ingressaria em uma formação profissional pós-

primária de três anos ou seria admitido no ensino secundário (ensino Geral Polivalente)

também com três anos de duração. Terminado esta etapa o novo sistema nacional de educação

previa a existência de uma formação pré-universitária de dois ou três anos (CÁ, 2005, p. 83).

ESTRUTURA DO NOVO SISTEMA EDUCATIVO GUINEENSE

EDUCAÇÃO BÁSICA

6 anos

ENSINO GERAL

POLIVALENTE

3 anos

7ª a 9ª séries

1º CICLO

4 anos

2º CICLO

2 anos

FORMAÇÃO

PROFISSIONAL

PÓS-PRIMÁRIA

3 anos

ENSINO MÉDIO

POLITÉCNICO

mínimo de 2 anos

10ª classe em

diante

Um dos objetivos principais desse novo sistema de ensino se embasava no

desaparecimento das diferenças entre trabalho manual e trabalho intelectual. Por conseguinte,

em todas as escolas que o Comissariado projetava construir tinha espaços destinados às

38

granjas agrícolas. “O trabalho produtivo, além de contribuir para a união entre a comunidade

escolar e a comunidade trabalhadora no campo, ia ao encontro do desenvolvimento das

faculdades morais, físicas e culturais de todos os estudantes, levando estes a terem amor ao

trabalho e aos trabalhadores” (CÁ, 2005, p. 84-5).

Freire destinou a parte inicial do post scriptum do livro, nossa principal fonte de

pesquisa que relata o trabalho desenvolvido em Guiné-Bissau, para falar da relação entre

educação e trabalho e inicia a discussão mencionando a dificuldade na implementação desta

junção em Bissau. Ele diz que o Comissariado estimulou a permanência desta relação nas

antigas zonas libertadas e pacientemente foi implementando essa nova política nas escolas de

Bissau (FREIRE, 1977, p. 71).

Esta preocupação – a de jamais dicotomizar educação de produção – sempre caracterizou o PAIGC, marcando decisivamente toda a experiência educativa que se desenvolveu nas chamadas zonas libertadas, durante a luta, não poderia deixar de constituir-se num dado central, numa espécie de ‘tema gerador’ sobre que se fundaria o novo sistema educacional do país (FREIRE, 1977, p. 71).

Carlos Dias, que era o funcionário do Departamento de Educação de Adultos,

responsável por promover as relações entre trabalho e estudo, disse que a ligação entre esses,

neste período de transição, que tinha o intuito de consolidar a nação e a autodeterminação do

país, tinha dois objetivos, quais sejam: superação da contradição entre trabalho manual e

intelectual e possibilitar o autofinanciamento gradativo da educação (FREIRE, 1977, p. 72).

Evidencia-se neste discurso que objetivo de autofinanciamento gradativo da educação não era

somente ideológico, mas também financeiro, o que reforça o empenho em superar as

dificuldades inerentes a pobreza existente naquela região.

A dificuldade para a aceitação dos alunos do liceu em atrelar o trabalho manual ao

intelectual foi demonstrada por Freire. Entretanto, ele mostrou que este receio foi sendo

superado aos poucos, tendo em vista que de 1975 quando a experiência começou para 1977,

39

ou seja, dois anos depois, 800 jovens do liceu estavam organizados em comitês engajados no

trabalho produtivo ora no campo do hospital Simão Mendes, ora em outro campo agrícola

numa área urbana de Bissau (FREIRE, 1977, p. 73). Além disso, Freire mostrou que, no

interior do país, os resultados eram ainda melhores e que a região de Bafatá era considerada a

mais engajada, posto que se, em 1975/6, 96 das 106 escolas tinham seu campo agrícola, em

1977, todas as escolas já tinham seu próprio campo. Por conseguinte, faltava nessa região

somente o esforço de juntar a produção da escola com o da comunidade.

Mapa nº 3 – Divisão das regiões de Guiné-Bissau

11

O principal objetivo da educação no novo sistema de ensino foi publicado no Jornal

Nô Pintcha, na edição de 30 de setembro de 1976. Este foi um importante veículo de

comunicação no período desta pesquisa. Temos ciência da existência de textos relacionados à

alfabetização de adultos nele, mas, infelizmente, só tivemos acesso indireto ao conteúdo

11 Mapa retirado da página http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:GW-regions.png. Acesso em 7 de outubro de 2008

40

dessas publicações através da bibliografia consultada. O principal objetivo da educação no

novo sistema de ensino era:

Criar um trabalhador consciente de suas responsabilidades históricas e da sua participação efetiva e criadora e nas transformações sociais. Esperamos concretizar esse desejo através do conhecimento cada vez mais real das necessidades concretas do país, da definição do nosso projeto de desenvolvimento e do próprio trabalho realizado a nível das instituições escolares, através de discussões nos órgãos coletivos (Nô Pintcha apud ALMEIDA, 1981, p. 162-3).

Devido aos problemas mencionados, as reformas no ensino foram implantadas

lentamente. Mário Cabral, em um discurso-relatório proferido a Freire e sua equipe falou

sobre as principais tarefas para o ano letivo 1976-77, ano II de Organização do sistema de

ensino, após o PAIGC ter assumido o governo do Estado guineense. Três eram consideradas

fundamentais, quais sejam: 1º – a participação de todas as escolas no 3º congresso do Partido;

2º – a organização da Campanha Nacional de Alfabetização e 3º – ênfase nas relações entre

escola e trabalho produtivo (FREIRE, 1977, p. 50). Sobre a alfabetização de adultos, Mário

Cabral referiu-se aos trabalhos realizados em várias regiões do país através das “Brigadas”

capacitadas e supervisionadas pela Comissão Coordenadora de Alfabetização. As brigadas

eram grupos de estudantes que davam aulas aos demais. Isso possibilitava a disseminação da

educação, uma vez que os recursos financeiros não eram suficientes para as necessidades

(DOCUMENTO: discurso Luis Cabral 1978). Além disso, foi projetado um encontro ainda

para o ano II (1976-1977), que seria realizado em Bissau, em que participariam delegações

coordenadas pelos Ministros de Educação de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e

Moçambique. Seminário em que se avaliaria a prática que estava se realizando nesses países,

discutindo a educação em geral, mas dando ênfase na alfabetização de adultos. Luis Cabral,

ainda no discurso proferido na Assembléia Nacional Popular, disse que o encontro foi bem

satisfatório e o deixou orgulhoso, posto que foram discutidos muitos problemas comuns,

41

como por exemplo, a questão das línguas africanas nacionais e entre elas o crioulo

(DOCUMENTO: discurso Luis Cabral 1978).

Educação como projeto político

Vimos até o momento que o PAIGC acreditava que a educação era uma importante

ferramenta para a construção do Estado Nacional, uma vez que formaria pessoas para se

engajarem neste projeto, denominado por eles de luta pela “reconstrução nacional”.

A nação pressupõe uma cultura nacional que contribui para a criação de padrões de

alfabetização universais e de instituições culturais nacionais, como por exemplo, um sistema

educacional nacional (HALL, 2005, p. 50). A educação nesta perspectiva não é só um sistema

de instrução, mas um instrumento de divulgação da cultura e conformação dos indivíduos. A

educação, portanto, é um projeto político. E era desta forma entendida pelo governo

guineense.

Além disso, a educação é um sistema social e de socialização, na medida em que,

como Paulo Freire indicava, o ser humano é um ser inacabado e sua formação é produzida

através de um processo educacional que o ensinará a maneira de ser e atuar no mundo. Vale

lembrar que existe uma multiplicidade de sistemas educativos e estes que são elaborados de

acordo com as diversas concepções de mundo.

Todo e qualquer processo educativo é um ato político, na medida em que possui

alguma intenção. Para Freire não existe educação neutra, já que esta simplesmente velaria sua

intencionalidade, mas não a isentaria.

A educação como projeto político corresponde a uma determinada maneira de nos

relacionarmos e de exercemos o poder nesta relação. Em outras palavras, a maneira pela qual

nos relacionamos e como o poder é exercido configuram um projeto político. A educação

viabiliza um projeto político, sendo ela mesma parte deste.

42

No projeto político estão inscritas duas questões primordiais, quais sejam: que

sociedade queremos construir e que tipo de seres humanos queremos formar. São em torno

dessas questões que as sociedades mobilizam seus projetos e poderes são viabilizados por

meio de diferentes processos. Evidencia-se no documento do Comissariado de Educação de

1978 que o governo de Guiné-Bissau tinha clareza sobre o papel que a educação deveria

desempenhar na construção da nação e qual era o seu projeto político. “A orientação para a

educação também seria forçosamente escolhida em função do modelo da sociedade que se

pretendia construir. De igual modo, o tipo de escola que se criar e o tipo de quadros que se

formariam condicionariam grandemente essa mesma sociedade do futuro” (DOCUMENTO:

A Educação na Guiné-Bissau 1978 apud CÁ, 2005, 72).

Indubitavelmente, Paulo Freire foi quem mais trabalhou a dimensão política da

educação e a necessidade de fazê-la um processo mais consciente. Freire defendia que uma

educação crítica e reflexiva pode desvendar objetivos e pretensões não explicitados, mas

presentes nos projetos educacionais. Ele entendia que na tarefa educativa é fulcral a clareza

sobre o tipo de sociedade e seres humanos que se deseja formar. Em uma das cartas que Freire

enviou a Mário Cabral ele aponta a politicidade do ato educativo e afirma que

É nesse sentido que um Ministério de Educação, não importa em que sociedade, é sempre um ministério eminentemente político. Político, se serve aos interesses da classe dirigente, numa sociedade de classes; político, se serve aos interesses do povo, numa sociedade revolucionária (FREIRE, 1977, p.97).

Nesse sentido, a relação de Freire com PAIGC era de concordância na medida em que

o projeto de sociedade pós-independência estava bem delineado. O intuito da educação, nesse

momento, era não só formar pessoas tecnicamente capazes de construir o país, mas também

politicamente engajadas.

43

O Estado da Guiné-Bissau está consciente de que a educação é um dos fatores fundamentais da evolução dos indivíduos e das sociedades e que os seus efeitos são inumeráveis para o avanço técnico e para a elevação de nível de conhecimentos dos seus cidadãos (DOCUMENTO: Comissariado da Educação, 1976, p. 57)

Na terceira carta que Freire enviou ao Comissário Mário Cabral, se evidencia a clareza

no entendimento de que a educação é um projeto político e que a alfabetização faz parte deste

projeto global. Freire aponta que a alfabetização deve contribuir para o aclaramento da

consciência política da população e que esta não deve de forma alguma ser pensada

isoladamente como um conjunto de técnicas e métodos, mas, ao contrário, esta deve estar

inserida no projeto cultural que por sua vez está atrelado a objetivos políticos e econômicos.

Em outras palavras, a alfabetização, assim como o projeto cultural devem estar de acordo com

o projeto de sociedade que se deseja viver.

A alfabetização de adultos em Guiné-Bissau tinha papel de destaque na medida em

que em mais de 90% da população guineense era analfabeta, 95% pelo levantamento feito pro

Freire e pela equipe do IDAC (OLIVEIRA, 1980, p. 93) em 1975 e 90% dos 800.000

habitantes que viviam naquele território habitavam a zona rural. Assim sendo, torna-se de

fácil compreensão porque uma das mais importantes tarefas da educação expostas no

documento de 1976 era o combate ao analfabetismo. Os objetivos para a alfabetização de

adultos foram expostos no documento do Comissariado de Educação de 1978, quais sejam:

a) transmitir o máximo de conhecimentos a todo o povo, de forma a torná-lo elemento ativo das transformações sociais; b) levar as massas populares a compreender o que devem fazer para sua terra e quais os objetivos que ele já conhece na prática; c) valorizar o trabalho do povo, levando-o ao conhecimento no papel daquelas coisas que ele já conhece na prática; d) valorizar o homem e aproveitar as suas capacidades criadoras, de maneira que o nível de todo o povo seja modificado e gradualmente melhorado; e) criar uma sociedade em que os homens possam exercer verdadeiramente a sua personalidade e criar um desenvolvimento em que toda a potencialidade do povo seja posta a serviço do homem (DOCUMENTO: A educação na Guiné-Bissau, 1978 apud CÁ, 2005, p. 92).

44

A alfabetização englobaria alguns aspectos fundamentais para a “reconstrução

nacional”. No âmbito da saúde, em que estava sendo trabalhada a prevenção, se discutiria, por

exemplo, o combate ao mosquito e partiria-se da realidade da Guiné e se expandiria para

outros países africanos, também de colonização portuguesa, para enfatizar que este era um

problema comum. Além disso, enfatizaria-se a importância do trabalho coletivo em

contraposição ao trabalho individual para auxiliar no estímulo de formação de cooperativas

feita pelo comissariado da agricultura (FREIRE, 1977, p. 35). A educação guineense, que era

uma das formas de introduzir o socialismo, estava sendo voltada para o campo, uma vez que

90% ou mais da população daquele país era camponesa e essa pautava-se, fundamentalmente,

na transformação da realidade social.

Para concretização deste intento, o Comissariado criou o Departamento de Educação

de Adultos (Alfabetização), cujo trabalho foi desenvolvido com Paulo Freire e a equipe do

IDAC. “Alfabetizar é aprender a construir, é levar ao alfabetizando os instrumentos que são

necessários para que ele possa servir-se da sua capacidade para transformar o país”

(DOCUMENTO: Educação na Guiné-Bissau, 1978 apud CÁ, 2005, 91).

Freire e sua equipe fizeram algumas visitas à Guiné-Bissau. A primeira consistiu na

aprovação das bases do convênio entre o Conselho Mundial de Igrejas e o Governo daquele

país e para pensar como seriam efetivados os seminários de avaliação do trabalho que seria

desenvolvido primordialmente por Freire e sua equipe em Genebra e a implantação seria

administrada pelo Comissariado de Estado da Educação e Cultura, junto com um membro do

IDAC que se instalaria naquele país.

O entendimento de que se não partissem deste principio o projeto se configuraria

como uma invasão cultural confirma a coerência entre o pensamento e a prática deste

educador e sua equipe.

45

Partíamos, pois de uma posição radical: a da recusa a qualquer tipo de solução ‘empacotada’ ou pré-fabricadas; a qualquer tipo de invasão cultural, clara ou manhosamente escondidas. A nossa opção política e a nossa prática em coerência com ela nos proibiam, também, de pensar sequer que nos seria possível ensinar aos educadores e educandos da Guiné-Bissau sem com eles aprender (FREIRE, 1977, p. 17).

Freire aponta que primeiramente eles buscaram entrar em contato com todos os

departamentos do Comissariado de Educação com o intuito de conhecer os problemas e a

maneira pela qual estes estavam sendo confrontados no ensino primário e secundário. Freire

pretendia verificar como estava sendo elaborado o processo de transformação do sistema de

ensino e como estava sendo criada uma nova prática educativa em consonância com o projeto

de nova sociedade que o governo pretendia criar (FREIRE, 1977, p. 20-1).

O educador defendia a idéia de que a educação do colonizador não prestava em

nenhum sentido e que nada dela poderia ser aproveitado. Esta idéia bem radical era o reflexo

do seu pensamento naquele momento, e, por conseguinte, no projeto que buscava o

rompimento total com a herança colonial. Freire ignorava, portanto, a idéia de que a

convivência entre africanos e europeus teria modificado aquele povo e aquela cultura, da

mesma maneira que os africanos modificaram os hábitos dos europeus.

Nos termos de cooperação foram marcadas algumas das visitas que Freire e sua equipe

fariam ao país assim como a fixação em Bissau de um membro da equipe, sem custeio para o

governo guineense, que trabalharia junto a Comissão Coordenadora dos Trabalhos de

Alfabetização de Adultos, criada na mesma reunião em foi acertada o acordo (FREIRE, 1977,

p. 42). Nos intervalos das visitas, caberia a Freire e sua equipe, em diálogo com a Comissão,

fazer avaliação da prática, assim como elaborar as bases das futuras visitas, através das cartas

relatórios que foram publicados no livro Cartas à Guiné-Bissau: experiência em processo.

Freire assinala que em Genebra além dele e sua equipe continuarem pensando a

questão da educação em Guiné, particularmente no campo da alfabetização de adultos, eles

46

também elaborariam os materiais didáticos que fossem solicitados e que ao serem enviados à

Bissau seriam aprovados pela Comissão antes que seu uso fosse generalizado.

Freire conclui a síntese que fez das diretrizes do convênio afirmando que:

Dessa forma, nasceu o projeto que põe juntos, hoje, de um lado, o Comissariado de Educação da Guiné-Bissau, de outro a Commission on Churces’ Participation in Development, que o financia, o Instituto de Ação Cultural e o Departamento de educação do Conselho Mundial de Igrejas.

Há um ano que, sempre em diálogo com os nacionais, prestamos a mínima contribuição que podemos, e de que vem resultando um aprendizado que nos enriquece a todos (FREIRE, 1977, p. 42).

O trabalho da alfabetização partiria da estaca zero, ou seja, toda a estrutura

organizacional seria criada na medida em que fossem se realizando as experiências-piloto. A

falta do conhecimento do português pela população rural, a maioria no país, era um grande

obstáculo para a consecução do projeto. Assim sendo, optou-se pela implantação desse em

etapas. As premissas e as metodologias de trabalho iam sendo testadas gradativamente e

sendo repensadas conforme fosse necessário. “Na realidade, querer iniciar imediatamente uma

campanha massiva de alfabetização a nível nacional seria recair na perspectiva errônea que

consiste em reduzir a aquisição da leitura e da escrita a um esforço isolado, como se fossem

um fim em si mesmos” (OLIVEIRA, 1980, p. 93). Ao contrário, a conduta de Freire e sua

equipe baseava-se na idéia de que a alfabetização é a primeira etapa de um processo em

aberto e permanente de educação, que só tem sentido se for atrelado ao trabalho e à vida

cotidiana da população. A alfabetização tornava-se um instrumento que permitiria aos recém

letrados elaborar o conhecimento de sua própria realidade, visando aumentar seu poder de

transformação desta realidade.

Na carta nº 6, Freire informa ao Comissariado que conseguiram o financiamento e

marca nova visita à Guiné em fevereiro de 1976. Ele aponta a organização de sua equipe em

relação ao desenvolvimento do trabalho, afirmando eles faziam duas reuniões semanais para o

47

andamento do projeto, além do tempo que estudavam e trabalhavam sozinhos. Além disso, ele

disse que estavam coletando documentação sobre alfabetização de adultos que iriam remeter

ao Comissariado. Freire diz ainda que estava enviando uma carta em anexo e pedia que a

equipe acelerasse os estudos sobre o manual do animador e se dedicassem a fundo na

preparação deste, objeto da carta anexa (FREIRE, 1977, p. 106-7). Não foi publicado no livro

o material contido na carta em anexo e infelizmente não conseguimos durante o período desta

pesquisa acessar este material, de fato, não descobrimos se este material ainda existe.

Antes do trabalho desenvolvido com Freire e antes mesmo da entrada em Bissau

foram realizadas algumas atividades de alfabetização. A primeira campanha de alfabetização

foi realizada nas FARP e teve início em 1975. Para alfabetizar a população civil, o

Comissariado criou a Comissão Nacional de Coordenação de Alfabetização que era

encarregada pela orientação política e a Comissão Nacional de Alfabetização – CNA – que

era responsável pelos aspectos técnicos. Essas duas comissões foram responsáveis pelas

campanhas até 1978, momento em que foi criado o Departamento de Educação de Adultos.

(CÁ, 2005, 196)

Antes da participação de Freire na alfabetização de adultos, já tinham sido iniciadas

em Guiné-Bissau duas iniciativas e estas estavam de acordo com a perspectiva freireana de

educação. O esforço se centrava na unificação das experiências, respeitando-se as

especificidades de cada uma, para maior eficiência do Programa Nacional (FREIRE, 1977, p.

29). O chamado para a colaboração de Freire tinha o intuito de homogeneizar as iniciativas,

respeitando, como apontou o educador, as especificidades de cada um deles. “Assim,

enquanto que, no momento da primeira visita, havia 82 círculos de Cultura funcionando nos

quartéis de Bissau, nos bairros populares da cidade tudo estava por fazer ou refazer”

(FREIRE, 1977, p. 34).

48

Em 1976, foi elaborado um curso de formação de animadores dirigido pela equipe da

CNA. Dos 120 inscritos, apenas 60 terminaram o curso e somente 30 círculos de alfabetização

foram abertos, em Bissau. O projeto de alfabetização de adultos no campo civil, segundo

Freire, deveria estar diretamente ligada à política de governo, logo seria implementada em

regiões cujas relações sociais de produção estivessem em processo de mudança e no interior

de órgãos da administração do Estado, como hospitais, correios e telégrafos. Daí a

importância da estreita relação que o comissariado de Educação deveria manter com os

comissariados do Planejamento e Agricultura. Na primeira visita de Freire ao país, esta idéia

começou a ser esboçada, mas somente na segunda, em fevereiro de 1976, que isto ficou

definido claramente (FREIRE, 1977, p. 34). Estes círculos foram sendo fechados pela falta de

motivação das pessoas em se alfabetizar, diferentemente do que havia acontecido nas FARP,

em que os círculos tiveram grande êxito. Podemos perceber nas cartas e no texto de Rosiska

Darcy Oliveira, integrante da equipe do IDAC, os motivos para o êxito da campanha nas

FARP e a falta deste nos centros urbanos. Oliveira mostra que os anos de 1976 e 1977

marcaram “o início de um trabalho sistemático de alfabetização na região de Bissau, tanto no

seio das FARP como em alguns bairros periféricos da capital, bem como algumas

comunidades da zona rural” (OLIVEIRA, 1980, p. 94).

Freire, na carta nº 14, afirma o relevo do trabalho da comissão de alfabetização e diz

que “a dinâmica do trabalho na área civil dependerá muito do que se possa fazer no seio dessa

comissão que, por sua vez, deve ainda fornecer materiais à Comissão Nacional à qual cabe

pensar as linhas mais gerais da política da campanha” (FREIRE, 1977, p. 148).

Na carta nº 17, Freire aponta os possíveis motivos para os problemas enfrentados em

Bissau e para a concretização dos trabalhos realizados nas FARP.

Refiro-me ainda ao nível incipiente do trabalho de alfabetização de adultos nas áreas populares de Bissau. Em todos os depoimentos em torno do

49

andamento deste trabalho notava-se quão distantes se achavam os seus resultados, dos alcançados no mesmo esforço, no interior das FARP. (...) Parece evidente que uma das razões fundamentais que esclarecem o avanço se verifica nas atividades de alfabetização e pós-alfabetização no seio das FARP é o alto nível de consciência política de seus militantes, Consciência política forjada na luta de libertação. (...) Não é de se estranhar, por isso mesmo, que esses militantes, percebendo a luta pela reconstrução nacional como uma continuação necessária daquela, percebam, também, em termos críticos, a necessidade de aprenderem a ler e escrever como uma forma de melhor servirem à reconstrução do país e não como um meio de instrumentar-se no sentido de satisfazer a interesses individuais (FREIRE, 1977, p. 167).

Oliveira complementa a reflexão de Freire apontando que os componentes das FARP,

em sua grande maioria, foram combatentes na luta e, por conseguinte, eles já tinham o

engajamento necessário para a compreensão da necessidade da alfabetização e do trabalho

que estava sendo desenvolvido no setor educacional. A alfabetização não só forneceria

conhecimentos necessários para o desempenho das novas tarefas, mas também ajudaria na

elaboração das experiências passadas. A autora mostra que a experiência educativa na FARP

tinha duplo objetivo:

permitir a redescoberta e a elaboração teórica de toda a experiência política e cultural acumulada pelos combatentes na sua prática de luta;

Favorecer uma aquisição de conhecimentos e instrumentos que os qualifiquem para as novas tarefas a desempenhar, seja ainda no interior das Forças Armadas, seja na perspectiva de sua reinserção no meio rural (OLIVEIRA, 1980, p. 95).

Além disso, Oliveira defende que conhecimento do crioulo por todos os combatentes,

já que esta foi a língua utilizada na comunicação entre os membros das diferentes etnias

durante a luta, gerou as condições mínimas para o ensino do português, mesmo que este

processo tenha sido lento e gradual (OLIVEIRA, 1980, p. 95). O conhecimento do crioulo

facilitava o aprendizado do português, na medida em que esta língua é uma mistura das

línguas étnicas com a língua portuguesa. As FARP eram um organismo militar ligado ao

governo, e a disciplina, marca das forças armadas, foi um aspecto importante para a

disseminação do aprendizado da língua do colonizador em seu interior. O governo guineense

também pretendia utilizar as forças armadas como instrumento de difusão da língua

50

portuguesa, posto que os militares seriam animadores culturais dos círculos de cultura que

seriam implementados em todo o país na Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos.

Em Bissau, o estímulo para o aprendizado da leitura e da escrita não era coletivo como

o visto nas FARP. Ao invés de pensarem a maneira pela qual aquele conhecimento

corroboraria para a construção da nova sociedade, o intuito dos educandos que se inscreveram

nos círculos de culturas na capital do país era a espera da obtenção de uma melhoria na

situação profissional, ambicionando inclusive uma colocação no aparelho burocrático estatal.

O Estado não tinha condição de empregar o número de pessoas que almejavam fazer parte do

aparelho estatal e os estudantes foram aos poucos abandonando o curso e gradativamente os

círculos de cultura foram se fechando. A justificativa da equipe do IDAC para este abandono

foi a demora no processo de ensino-aprendizagem. “No momento em que o conteúdo da

alfabetização deixa de estar ligado à realidade cotidiana, o progresso é mais difícil e cai-se na

memorização mecânica. Pouco a pouco as pessoas desanimam, o esforço aparece como inútil

e desprovido de sentido, e o grupo acaba por desfazer-se no desinteresse geral” (OLIVEIRA,

1980, p. 96).

Ainda em 1976, mesmo diante do fracasso da tentativa de alfabetizar em Bissau, o

governo decidiu lançar a campanha nacional de alfabetização focando na população rural, que

era majoritária no país. Duzentos jovens, estudantes de diversas regiões, foram recrutados

para tal tarefa. Estes foram durante as férias participar do trabalho no campo e conviver com

os camponeses. A experiência foi realizada em 5 regiões, quais sejam: Buba, Cacheu, Gabu,

Oio e Tombali.12

12 Mapa retirado da página http://www.who.int/sysmedia/pdf/countries/gnb.pdf. Acesso em 7 de outubro de 2008.

51

Mapa nº 4 – Guiné-Bissau

No período da tarde, eles ensinavam os adultos a ler e escrever, assim como noções de

educação sanitária, higiene e agricultura, que tinham aprendido no curso de formação

ministrado na capital. Outra tarefa, primordial para a consecução da campanha era a formação

de novos animadores nas aldeias que deveriam continuar com o trabalho educativo após o

retorno dos estudantes (CÁ, 2005, p. 197). Assim como na capital, a campanha nas zonas

rurais também fracassou e decidiu-se, então, mudar o foco da campanha centrando o trabalho

na aprendizagem de técnicas ligadas ao desenvolvimento, à agricultura, a noções de saúde e

52

de higiene no lugar do aprendizado da leitura e da escrita. Por conseguinte, não foi empregada

nesta campanha comunicação escrita e sim a comunicação visual e oral (CÁ, 2005, p. 198).

A justificativa para falta de êxito nas zonas rurais foi o período escolhido para

campanha, pois como estava na época das chuvas as famílias estavam ocupadas com a lavoura

e em algumas áreas muçulmanas a prática do jejum dificultou a participação de alguns

alfabetizandos, além da falta de material e infra-estrutura que não era só um problema para a

alfabetização, mas sim para todo o sistema de ensino guineense. Contudo, o principal

problema apontado foi a escolha da língua.

A impossibilidade da alfabetização em português que já tinha sido evidenciada em

Bissau confirmou-se nas experiências nas zonas rurais. Freire aponta que mesmo não obtendo

o resultado esperado o projeto foi válido na medida em que surgiram experiências frutíferas

que inclusive ajudaram na reformulação da perspectiva adotada no projeto de alfabetização

(FREIRE, 1977, p. 76). A experiência altamente interessante que Paulo Freire se refere foi

vivenciada na aldeia de Sedengal, situada na região de Cacheu13.

Sedengal é uma aldeia em que coexistiam, no período da campanha, diversos grupos

étnicos que viviam da agricultura de subsistência. Era considerada como um ponto estratégico

para ser uma experiência-piloto, posto que a população que lá vivia tinha se engajada

ativamente na luta contra o colonialismo (OLIVEIRA, 1980, p. 97; ALMEIDA, 1981, p. 202).

Assim como na guerra, a população de Sedengal se empenhou no trabalho da

alfabetização tanto que, durante a discussão dos temas geradores, eles decidiram produzir

coletivamente para que a produção excedente pagasse as despesas do estudo. “E todos

resolveram cultivar bananas num campo agrícola (terreno do Estado) nos arredores da

tabanca14, em regime de trabalho voluntário coletivo, para produzir um excedente

13 Ver mapa na página anterior. Sedengal é uma aldeia que fica próxima a São Domingo, perto da fronteira com o Senegal. 14 Aldeia.

53

comercializável que financiasse as despesas do ensino” (OLIVEIRA, 1980, 101; ALMEIDA,

1981, p. 203). Este trabalho gerou a necessidade do aprofundamento de temas ‘relacionados

às técnicas do cultivo e de sua comercialização. Na horta coletiva, foi vivenciada a leitura e a

escrita da realidade, apesar da dificuldade no aprendizado da leitura e da escrita da palavra.

Sedengal se afirma, cada vez mais, hoje, a nível nacional na Guiné-Bissau, não porque os participantes dos círculos de cultura tivessem chegado a poder escrever e ler pequenas frases em língua portuguesa, mas porque em certo momento, da inviável aprendizagem daquela língua, descobriram o possível: o trabalho coletivo. E foi dando-se a esta forma de trabalho, com o qual começaram a ‘reescrever’ sua realidade e a ‘relê-la’ que se tocaram e despertaram a comunidade toda. Nenhum texto, nenhuma leitura mais correta poderiam ter sido apresentados do que a horta coletiva, do que a presença atuante de uma população engajada na reconstrução nacional (OLIVEIRA, 1980, p. 102).

O trabalho desenvolvido em Sedengal desencadeou a reformulação da campanha de

alfabetização e levou Freire a considerar que, em determinados casos, é necessário

primeiramente a implantação da pós-alfabetização para que a alfabetização aconteça em sua

plenitude num segundo momento.

A impressão que me fica sem nenhum dogmatismo, refletindo sobre a experiência de Sedengal, é que o dinamismo entre os círculos de cultura e a atividade produtivo-coletiva continuará, mas, em certo momento em face das dificuldades encontradas, o interesse pelo aprendizado do português diminuirá mais e mais. Se isto ocorrer, o que não significará nenhum desastre, não há, por que a Comissão Coordenadora diga um ‘até logo’ triste, de quem se sentisse frustrado, a Sedengal. A sua tarefa de Ação Cultural continuará. O domínio da linguagem enquanto linguagem total, da expressividade, permanecerá. A experiência de Sedengal simplesmente se afirmará noutro sentido, já evidente hoje: no da ‘leitura’ e no da ‘re-escritura’ da realizada, sem o aprendizado da escrita e da leitura dos signos lingüísticos (FREIRE, 1977, p. 79).

Após a passada em revista das experiências relativas a alfabetização de adultos e o

apontamento do principal problema que foi a escolha da língua para o desenvolvimento do

projeto, é importante denotar as estratégias que foram utilizadas ao longo deste percurso que

durou cerca de 4 anos. Vale lembrar que a discussão sobre a escolha da língua será

aprofundada no terceiro capítulo.

54

Freire faz uma síntese na introdução do livro, fonte desta pesquisa, das atividades que

foram realizadas no ano I da organização do sistema de ensino guineense – 1975/1976 – e

mostra que estratégia utilizada na alfabetização de adultos era a “linha de massas”. Nesse

ponto, ele deixa bem evidente o caráter político da alfabetização que se pretendia ter na Guiné

e aponta que os programas de alfabetização de adultos, independente de onde fossem

iniciados, decisão que dependia do partido e do governo, deveriam ser assumidos pela

população local. Podemos perceber aí que Freire buscou conciliar sua metodologia de

trabalho com as determinações do partido/governo (FREIRE, 1977, p. 64). O educador

buscou fazer o programa nacional de alfabetização a partir das necessidades locais, apesar de

existir uma uniformidade nas ações.

O projeto foi implementado a partir da definição de zonas prioritárias que estariam na

concepção do partido prontas para participar da “luta pela reconstrução nacional”. Freire

entendia que se as condições não existiam para tal ou ainda estavam muito longe de existir, a

alfabetização não tinha sentido, posto que seria feito somente o esforço do conhecimento do

signos lingüísticos sem a reflexão necessária que estes demandam. Assim sendo, a

alfabetização seria iniciada nos locais de maior engajamento político para que posteriormente

fosse disseminada pelo resto do país. “Por isso é que, sendo nacional a sua campanha, parte,

como antes salientei, daquelas zonas e daqueles setores que, propiciando uma prática válida,

oferecem aos quadros que dela participam um rico e indispensável aprendizado com que se

preparam para estender e aprofundar a ação” (FREIRE, 1977, p. 66).

Era baseado nesta perspectiva de alastramento após a criação das condições

necessárias para tal que Freire não defendia a massificação da alfabetização, mas sim estas em

linha de massas, que significavam a implantação do projeto por etapas. A crença neste ponto

de vista fica evidente no seguinte trecho publicado no livro: “De uma coisa estamos certos:

marchando na paciente impaciência, por isso com segurança, os trabalhos de alfabetização de

55

adultos, na Guiné-Bissau, mais que uma promessa são uma realidade” (FREIRE, 1977, p. 68).

Temos que lembrar que o educador escreveu o livro enquanto ainda vivenciava a experiência

e no período em que este foi publicado o programa nacional de alfabetização de adultos estava

no auge de sua implantação, daí ser coerente seu discurso repleto de expectativas.

A tática desenvolvida por Freire para alfabetizar consiste em um primeiro momento

em que são discutidas situações denominadas pelo educador de existenciais, tendo em vista

que refletem o cotidiano dos educandos para que os problemas sociais existentes na

comunidade sejam debatidos conjuntamente com a definição do que é cultura e do que é

natureza. É fundamental nesses primeiros debates que os educandos compreendam que o que

o homem transforma é cultura e que, por conseguinte, as situações cotidianas podem ser

transformadas, posto que são produtos das interações humanas. Após esta fase se iniciam as

discussões acerca das palavras geradoras que no caso da Guiné-Bissau foram escolhidas, ao

invés de localmente, pelo governo e estavam ligadas em sua maioria ao período da luta. Vale

ressaltar que os animadores culturais tinham autonomia para adaptar as palavras aos

educandos dos círculos. É interessante perceber que a resistência da população na campanha

de alfabetização provavelmente foi fruto da distância entre os objetivos desta e dos reais

interesses da população. Cá diz que a oposição entre a cultura oral e escrita teve um papel

fundamental nessa resistência (CÁ, 2005, p. 203).

Freire e a equipe do IDAC propuseram ao Comissariado de Educação o uso de

audiovisual como estratégia para discussão da realidade guineense. Mário Cabral gostou tanto

da idéia que esta foi apresentada em uma reunião de base do partido, que foi feita no bairro de

Pilon de Cima, na periferia de Bissau. O uso do audiovisual foi à alternativa encontrada, pela

equipe, para tornar acessível à população sua história, uma vez que a taxa de analfabetismo

naquele país era elevada. Claudius Ceccon, integrante da equipe do IDAC, disse sobre o uso

do audiovisual:

56

[...] era preciso encontrar um modo de transmitir uma série de dados que haviam sido recolhidos, para que toda a população tivesse acesso à sua própria história. Como fazer? Era preciso encontrar um meio que permitisse uma ‘leitura’ (...) um meio que fosse suficientemente flexível para permitir que o conteúdo fosse discutido, criticado, completado e incorporado à própria experiência e conhecimento (CECCON, 1980, p. 108).

A opção pelo uso de desenhos de humor veio do entendimento de que a leitura das

informações contidas neste tipo de representação só é possível se o conteúdo for familiar,

assim sendo, parte-se do local para o universal, princípio defendido por Paulo Freire e sua

equipe. Além disso, o humor ajuda nesse processo de apreensão, na medida em que ele

justamente não é sério nem sisudo, como costuma ser, infelizmente, a educação (CECCON,

1980, 109). Vemos neste ponto um retorno à prática da oralidade africana, devido à

impossibilidade do aprendizado da leitura da escrita na língua portuguesa.

Depois do não funcionamento da campanha de alfabetização com a consultoria de

Paulo Freire, em 1979 foi desencadeada uma nova ofensiva, organizada pelo Departamento de

Educação de Adultos – DEA – criado nesse mesmo ano. Essa nova iniciativa tinha previsão

de duração de 5 anos e se fundava em um método de alfabetização funcional, em que

diferentemente do ocorrera anteriormente os alfabetizadores seriam assalariados. No período

de elaboração deste projeto culpabilizaram Freire pelo fracasso das tentativas anteriores.

O projeto-piloto para a definição de que metodologia adotar na alfabetização e pós-alfabetização teve origem na constatação e avaliação negativa do fracasso das campanhas anteriores. Não era possível realizar um programa de alfabetização inspirado no método de Paulo Freire, em que os alfabetizandos aprendessem a ler e escrever a partir do descobrimento e da compreensão crítica de sua realidade e das palavras geradoras a que estavam ligadas como povo, luta, trabalho, disciplina. Essa metodologia não deu os resultados previamente esperados. Ademais, a campanha tinha como língua o português, falado apenas por 10 a 12% da população. Era necessário, portanto, propor uma nova metodologia e testa-la na prática (CÁ, 2005, 199).

Realmente não é possível alfabetizar na metodologia freireana em um língua

estrangeira e menos ainda com palavras que não faziam parte do universo vocabular dos

57

educandos. O que é contraditório nessa crítica feita pelo governo ao educador é que este

defendeu veementemente a necessidade do uso de outra língua que não a portuguesa no

projeto, entretanto, o comissariado sempre rejeitou sua idéia.

Até o momento foi demonstrada a visão do PAIGC, no próximo capítulo será discutida

a relação entre a teoria e sua implantação na prática. Já evidenciamos o principal ponto de

discordância entre Freire e o governo, é importante que reflitamos, agora, de forma breve,

uma vez que esta temática também será aprofundada no capítulo que se segue, sobre o projeto

guineense, norteado pelas seguintes questões: este era um projeto socialista? Como o Estado

via e se relacionava com as sociedades tradicionais locais?

Considero fulcral começar este debate com uma citação de Carlos Lopes:

De uma forma geral, quase todos os MLN adoptaram como suas as teses soviéticas sobre a libertação nacional e a construção do socialismo. Quase todos estimam que a luta de libertação nacional conduz à revolução social, e atribuem um caráter concomitante e de reacção em cadeia a estas duas vertentes da contestação política. Quase todos falam do novo homem que nascerá das lutas de libertação nacional sem dar um grande conteúdo ao que tal significa (LOPES, dezembro 1986 ano X nº 69/70, p. 102).

Vemos, pela afirmativa de Lopes, que a filiação ao socialismo e ao marxismo-leninista

não foi só uma iniciativa de Guiné-Bissau. Pelo contrário, Angola e Moçambique declararam

seu posicionamento oficialmente, ao contrário do PAIGC que não se dizia socialista, mas

refletia em seus documentos e programas fidelidade aos princípios da democracia nacional

(LOPES, dezembro 1986, ano X nº 69/70, p. 103). O autor aponta que confundimos, muitas

vezes, o socialismo com a mudança para qualquer novo modo de produção que pretenda

acabar com a herança colonial e criar um fortalecimento econômico e remodelamento social a

fim de consolidar a nação. Ele diz que esquecemos que estes objetivos podem ser de uma

revolução burguesa. Mesmo que algumas medidas sejam tomadas com o fim da socialização

dos meios de produção, estas podem rapidamente serem transformadas (LOPES, dezembro

1986, ano X nº 69/70, p. 104).

58

De facto assiste-se, nos países escolhidos, as duas fases de evolução política. Uma que se situa até 1977, na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, em que a dinâmica da luta de libertação nacional ainda encobre muitos fracassos de concepção e onde os mitos ainda não estão destruídos. Nesse período consolidam-se as estruturas do movimento em partido de vanguarda no modelo leninista adaptado aos condicionalismos locais. Os Congressos de 77 declararam acabar com o subdesenvolvimento na década seguinte, ou acabar com o inimigo, ou vencer o analfabetismo, etc. Enfim, o optismo. E a partir de 1980 é que se inicia a consciência da catástrofe iminente e inicia-se a procura dos meios para a conjurar. Esse processo foi mais transparente na Guiné-Bissau, com o 14 de novembro de 1980 (LOPES, dezembro 1986, ano X nº 69/70, p. 105).

Esse período do otimismo apontado por Lopes foi o período da tentativa da

reformulação das relações existentes com Portugal e busca pelo que denominavam de

autodeterminação. O PAIGC acreditava que era necessária uma vanguarda formada por

intelectuais para a consolidação da nação guineense. Essa vanguarda deveria ser formada pelo

grupo que Amílcar Cabral defendia que deveria se suicidar como classe para renascer como

membro do povo. Freire definiu que o intelectual deveria ser de um novo tipo e que este

surgiria dentro desta nova sociedade que estava sendo criada, no ponto de vista deles

reconstruída. Este intelectual seria forjado na unidade entre o trabalho manual e o trabalho

intelectual (FREIRE, 1977, p. 59). Esse grupo que deveria se suicidar e ser de um “novo tipo”

foi o grupo que lutou na guerrilha e era formado pelos quadros urbanos do partido, que

algumas vezes passou por cima da luta campesina.

A busca pela “reconstrução da nação” foi empreendida através da articulação entre o

partido e o Estado. Apesar de Amílcar Cabral defender que a criação nação deveria ser feita a

partir da diversidade na unidade, o discurso nacionalista, após a independência, se colocava

acima das etnias. Raul Mendes Fernandes apontou que os chefes tradicionais que não

apoiavam o governo de Luis Cabral foram julgados no Tribunal Popular e punidos

exemplarmente. A justificativa para a pena de morte, inclusive, era de crime contra a nação

(FERNANDES, nº 16 jul 1993, p. 44).

“Este discurso ‘nacional’, elaborado pela direcção intelectual do PAIGC, justificava a violência legítima contra os obstáculos à edificação do Estado-

59

nação, isto é um aparelho de Estado centralizado sob o controle de uma burocracia política constituída pela aliança entre as direcções intelectual e militar do PAIGC reforçada pelos funcionários da antiga administração colonial” (FERNANDES, nº 16 jul 1993, p. 44).

Podemos perceber que existia certa confusão entre os interesses do partido e os

interesses do governo e a tentativa da formação da nação e da criação de uma identidade

nacional foi promovida até mesmo através do uso da força. Vemos que no interior do Estado

coexistiam os interesses da direção militar, intelectual e dos antigos funcionários da antiga

administração colonial. Como os interesses dos grupos étnicos eram conjugados nesse

mosaico? Vale lembrar que as etnias tinham interesses muitas vezes distintos e que habitavam

naquele território mais de 20 grupos diferentes. A Guiné-Bissau surgiu dividia entre cristãos e

muçulmanos, mais claros e mais escuros, cabo-verdianos e guineenses, quem estudou fora ou

não, entre guerrilheiros e quem ficou em Bissau. Essa complexidade nas relações sociais

existentes no território guineense fazem com que seja difícil pensar em uma nação igualitária.

No próximo capítulo veremos com maior profundidade as relações estabelecidas entre o

partido/governo e os chefes tradicionais, assim como analisaremos a importância do

desenvolvimento nacional e da educação para a concretização da autodeterminação. Em

outras palavras a educação e o desenvolvimento econômico libertariam o povo guineense?

Para finalizar este capítulo consideramos fundamental citar um trecho do artigo de Fernandes

que sintetiza a relação entre os chefes tradicionais com sistema colonial, em seguida com o

movimento de libertação nacional, no primeiro momento após a independência, em que é

tentando suplantar os interesses étnicos, para culminar na crise do Estado-nação, em que as

identidades étnicas passam a ser “respeitadas”.

O sistema político colonial, baseado na aliança entre o poder colonial e os poderes tradicionais, foi posto em causa pelo movimento de libertação nacional, que gerou novas formas de poder centradas nas noções de partido, estado e nação. Após a independência, a construção de um Estado nacional centralizado, sob o controle de uma burocracia política, esmaga os ‘etnismos’, acusados de serem os geradores de tribalismos e de práticas antinacionais. A crise do Estado-nação e a gestão monolítica do Partido

60

fizeram renascer as afirmações de identidade de caráter étnico e com elas os novos poderes tradicionais. Os combates políticos que se abrem com o processo de democratização valorizam este novo campo, que é investido de múltiplas estratégias das quais algumas são apenas versões adaptadas da estratégia colonial, com o objectivo de se manter no poder ou de substituir a antiga classe dirigente. No entanto, a dinâmica das sociedades tradicionais não se deixa fixar no quadro de uma dicotomia monopartidarismo VS pluripartidarismo. Esta dinâmica procura integrar os novos factores econômicos e políticos em função do desenvolvimento dos seus próprios conflitos (FERNANDES, nº 16 jul 1993, p. 49-50).

61

CAPÍTULO 2 – EDUCAÇÃO PARA LIBERDADE?

Como vimos no capítulo 1, a educação era pensada como ferramenta para a libertação

do povo guineense. Neste capítulo articularemos os objetivos pedagógicos políticos de Freire

com os objetivos políticos na construção do Estado e da nação pós-independência, pensando o

papel do socialismo neste contexto.

O PAIGC, ao assumir o governo, tinha a tarefa de construir um Estado independente,

economicamente auto-sustentável baseado prioritariamente na agricultura, e para tanto,

desejava criar uma consciência nacional em detrimento da regional ou étnica (JAUARÁ,

2003, p.14). A questão central para a concretização da autodeterminação era como construir

essa nação e desenvolvê-la. O esforço pela coesão e o agregamento dos indivíduos na fase do

estabelecimento estatal foi enorme. A estratégia era criar um vínculo entre o período da luta e

o pós-independência através da chamada do povo para a luta da “reconstrução” nacional. A

palavra construção, apesar de ser mais adequada, entrava em contradição com o discurso do

PAIGC, na medida em que era defendido que não se podia construir o que já existia, daí o uso

freqüente do termo reconstrução. A alfabetização tinha a função de, como Freire dizia,

reinventar a educação e ressignificar os símbolos sociais com o fim da construção de uma

consciência e identidade nacionais. Vale lembrar que Freire, assim como os integrantes do

PAIGC, utilizava o termo “reconstrução” nacional.

A reflexão sobre a relação entre ensinar e libertar é premente, posto que essas noções

eram diretamente associadas tanto por Freire quanto pelo partido. Amílcar Cabral partia do

princípio de que só um povo culto é um povo livre e, por conseguinte, desde a fundação do

PAIGC a educação era considerada como essencial. O líder da luta pela libertação guineense,

em um de seus últimos discursos, insistiu na importância desta para a formação do povo da

Guiné-Bissau, iniciando a educação, sobretudo, com a alfabetização (CÁ, 2005, p.190-5).

62

Para Amílcar Cabral, como apontamos no 1º capítulo, a cultura tinha um peso muito grande e

esse seu entendimento se aproximava de um socialismo primitivo que foi muito valorizado

em Guiné-Bissau.

Assim como para Cabral, para Freire as noções de liberdade e cultura eram essenciais

em seu pensamento. Freire partia do princípio de que não podemos libertar o outro. A

libertação só acontece através da iniciativa do libertado e para que ocorra a mudança é

necessário que o sujeito a deseje, percebendo a sua condição de oprimido. Paulo Freire

entendia que a incumbência da educação era propiciar a transformação social através da

formação crítica e reflexiva dos educandos. É de fácil compreensão, nesse sentido, o motivo

pelo qual Freire considerava a educação como ato político, já que esta pode transformar ou

manter a ordem vigente, dependendo do projeto com o qual ela está comprometida.

Para o educador brasileiro existiam duas formas principais de educar. Uma era a

educação bancária, na qual o professor era considerado o detentor do conhecimento e sua

função era “doar” este aos seus alunos; e a outra era a educação libertadora, na qual educador

e educando em conjunto construiriam o conhecimento a partir de suas vivências. A educação

libertadora defendida por Freire apresenta duas dimensões, quais sejam: política – leitura do

mundo – e gnosiológica – leitura da palavra (SARTORI In: REDIN, ZITKOSKI, 2008, p.

152).

A concepção de educação freireana propõe um fim maior do que o aprendizado da

leitura e da escrita, ela propõe a construção do conhecimento a partir do questionamento dos

educandos sobre sua atuação no mundo. Na educação como prática da liberdade estão

inscritas a política, a economia, saúde, a cultura e as necessidades que aquele grupo possui em

todas essas esferas.

A libertação, para o educador brasileiro, estava ligada, como ele mencionava, à

conquista da palavra. Para Freire, o direito de pronunciar a palavra é o direito do sujeito de se

63

expressar no mundo e de poder modificá-lo. Através da palavra, o homem participa do

processo histórico de sua sociedade (FREIRE apud LIMA, 1981, p.66). A defesa deste princípio

está evidente na primeira carta que Freire enviou ao Comissário de Educação de Guiné, como

podemos perceber no trecho a seguir:

Na perspectiva libertadora, que é a de Guiné-Bissau, que é a nossa, a alfabetização de adultos, pelo contrário, é a continuidade do esforço formidável que seu povo começou a fazer, há muito, irmanado com seus líderes, para a conquista de sua palavra. Daí que, numa tal perspectiva, a alfabetização não possa escapar do seio mesmo do povo, de sua atividade produtiva, de sua cultura, para esclerosar-se na frieza sem alma de escolas burocratizadas em que cartilhas elaboradas por intelectuais distantes do povo – em que pese às vezes sua boa intenção – enfatizam a memorização mecânica a que antes me referi (FREIRE, 1977, p.91).

Na concepção freireana, a pronúncia da palavra tinha o poder de transformar a

realidade. Vale lembrar que para o educador brasileiro a pronúncia da palavra não estava só

no âmbito do discurso, mas sim na inter-relação entre discurso e prática. Na educação

denominada por Freire de bancária, a palavra não está vinculada a ação e promove a ‘cultura

do silêncio’. Já na educação libertadora, palavra e ação estão interligadas e possibilitam a

criação e recriação do mundo (ALMEIDA, STREK, 2008, p. 306).

Nesse sentido, o povo guineense ao conseguir a independência estava trilhando o

caminho para a conquista de sua palavra que seria alcançada através da concretização do

projeto nacional delineado pelo PAIGC. Freire não entendia a educação como transmissão de

saber, mas sim como uma ação cultural capaz de interferir na prática social vigente. A ação

cultural tinha como fim a libertação, razão pela qual educação é pensada por ele como uma

prática para a liberdade. Mas o que significa, então, ação cultural e como viabilizá-la?

Para analisarmos a questão, é importante lembrar que Freire entendia cultura como

toda criação humana e, exatamente por ser fruto de um ato humano, esta poderia ser

modificada de acordo com a vontade e o entendimento dos homens. O educador defendia que

os homens viviam na “cultura do silêncio”, fruto da dominação de uns homens sobre os

64

outros. Esta consistiria na naturalização das práticas sem a reflexão sobre as mesmas. A falta

de reflexão sobre a atuação dos homens levaria a exploração de um grupo sobre o outro e a

idéia da neutralidade na educação camuflaria este princípio, mantendo a ordem de acordo com

os interesses do grupo que estaria no poder. A conquista da palavra representaria a tomada de

decisão da população sobre sua vida e seu futuro. “Freire entende a cultura como uma

totalidade de produtos significativos criados pelos homens através de sua práxis e seu trabalho

(ação). Esta totalidade compreende o universo simbólico e ‘abrangente’ em que os homens

atuam como seres conscientes” (LIMA, 1981, p.107). Clarifica-se a partir da definição de

Lima porque Freire entendia a educação como ação cultural. O homem ao refletir sobre sua

prática poderia transformá-la através de sua ação.

A meditação sobre a prática cotidiana seria realizada nos círculos de cultura, que

poderiam ter conjuntamente a alfabetização, mas não necessariamente, e esta se fundava no

diálogo. Freire aponta que em determinados casos a pós-alfabetização pode preceder a

alfabetização. Esta decisão só pode ser tomada a partir da experiência vivenciada no círculo

de cultura e, conseqüentemente, da demanda das pessoas que o freqüentam.

Para melhor compreensão do tema faremos um pequeno parêntese para explicar o que

eram os círculos de cultura, como estes funcionavam, o que é a alfabetização e a pós-

alfabetização e porque a pós, no entendimento deste educador, poderia preceder a

alfabetização.

Na fotografia abaixo15 vemos parcialmente um círculo de cultura na zona de Có.

Podemos perceber que a organização do círculo de cultura é, como o próprio nome indica,

circular. O animador de debates senta-se ao lado dos educandos denotando que todos têm a

mesma importância no ato de aprendizagem.

15 (FREIRE, 1977, p. 98)

65

Foto 1 – Vista parcial do Círculo de Cultura na Zona do Có

Freire entendia que a língua também era um instrumento de dominação, por isso,

como defendia que a educação tradicional, visava à manutenção da ordem vigente e o intuito

de sua teoria do conhecimento era o rompimento desta ordem, o educador procurou em seu

trabalho utilizar outros vocábulos, evidenciando que nos espaços de produção de

conhecimento por ele compartilhado, a prática existente era outra. Assim sendo, as salas de

aula, que não precisavam ser necessariamente dentro de um prédio, era por ele denominada

círculo de cultura. Círculo de Cultura é um nome sugestivo uma vez que traz a tona o objetivo

principal dessa metodologia de ensino que era a reflexão acerca da cultura do povo para a

partir da análise de sua prática cotidiana poder transformar a sociedade. Vemos aí a

importância da noção de cultura no pensamento deste educador. O espaço físico em que se

processaria a relação de ensino-aprendizagem podia ser diverso, como no caso de Guiné-

Bissau, que no período da luta a alfabetização acontecia nas florestas ou como no caso do

66

próprio educador que foi alfabetizado por sua mãe, no quintal de casa embaixo de uma

mangueira com gravetos para escrever na terra. Os alunos e professores eram chamados de

educando e educador, já que seus papéis seriam diferentes de uma sala de aula tradicional.

Nos círculos de cultura educadores e educandos construiriam conjuntamente o conhecimento,

no lugar dos alunos serem considerados receptáculos de conhecimento e o professor o

detentor do mesmo.

A alfabetização consistia no aprendizado da leitura e da escrita das palavras que

faziam parte do cotidiano dos educandos. Estas palavras denominadas de palavras geradoras

eram discutidas e a partir de suas famílias fonéticas novas palavras eram escritas. O nome

palavras geradoras tinha o intuito de evidenciar que estas palavras além de gerar o debate,

gera a formação de novas palavras e, conseqüentemente, de novos conceitos. Para tornar mais

palpável esta definição, usaremos a palavra geradora luta, utilizada na experiência guineense,

como exemplo. Após o debate no círculo sobre o que significa luta, para que luta, contra

quem e a favor de que se luta, os educandos aprenderiam a escrever esta palavra e a partir das

famílias fonéticas LA-LE-LI-LO-LU e TA-TE-TI-TO-TU, os educandos formariam novas

palavras e, posteriormente, formariam frases. A pós-alfabetização era o momento em que se

aprofundaria o debate sobre a realidade. Freire partia do principio que nem sempre os

educandos estavam preparados para o aprendizado da leitura e da escrita, mas eram

politicamente alfabetizados, motivo pelo qual a pós-alfabetização poderia e deveria preceder a

alfabetização. Posteriormente veremos que isto aconteceu em Guiné-Bissau.

Nem sempre, porém, é necessária a coincidência entre o aprofundamento crítico da ‘leitura’ da realidade com o aprendizado da leitura e escrita dos signos lingüísticos, isto é, com a alfabetização no sentido que é geralmente entendida. Em certas circunstâncias é possível que uma comunidade se engaje, durante algum tempo, numa séria prática reflexiva sobre sua realidade, discutindo uma temática geradora significativa, ligada a seus interesses concretos, indagando-se em torno, por exemplo, de sua experiência produtiva, de caráter coletivo; de como produzir melhor, perguntando-se sobre seu papel no esforço da ‘reconstrução nacional’, envolta, enfim, num programa que poderíamos chamar de pós-alfabetização, sem que, porém, se tivesse iniciado no aprendizado da leitura e da escrita dos

67

signos lingüísticos. Seria, no caso, a prática de ‘re-leitura’ crítica de sua realidade, associada a uma forma de ação sobre ela, a que poderia despertar a comunidade para o aprendizado da leitura e da escrita dos signos lingüísticos. O oposto, numa perspectiva revolucionária, é que seria inviável, isto é, o aprendizado da língua sem o aprofundamento da ‘leitura’ e da ‘re-leitura’ da realidade (FREIRE, 1977, p.75).

Para o educador brasileiro, a educação é comunicação e se funda no diálogo, já que é

um encontro entre sujeitos interlocutores que buscam os sentidos dos significados (FREIRE,

2002, p. 69). Para ele, a educação não era de forma alguma transferência de conhecimento,

pelo contrário, esta é um ato gnosiológico, no qual educador e educando se deparam com

objeto cognoscível a fim de admirá-lo e neste processo construírem conhecimento em

conjunto. Notamos assim a importância dos círculos de cultura, que no próprio nome já

contém uma proposta diversa da organização tradicional da sala de aula.

Um dos pontos mais abordados nos livros de Paulo Freire se refere a politicidade do

ato educativo. O educador defendia de maneira categórica a impossibilidade da educação ser

neutra e ser entendida como transmissão ou extensão de um saber. Correlata a esta temática

está a sua visão sobre a importância da comunicação, que posteriormente passou a chamar de

diálogo, para o sistema de ensino. Freire discutiu de forma aprofundada no livro Extensão ou

Comunicação?16 este assunto e apontou algo simples e aparentemente óbvio, mas que é de

extrema importância para sua teoria do conhecimento. Para ele uma comunicação eficiente

consiste na expressão de signos lingüísticos pertencentes aos universos dos sujeitos

interlocutores. Em outras palavras, a condição sine qua non para a concretização do diálogo

está no universo vocabular utilizado.

O papel do educador nesta concepção deveria ser a de inventor dos caminhos que

possibilitassem e facilitassem a problematização do objeto de estudo, como podemos perceber

no trecho a seguir de nossa fonte de pesquisa.

16 FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação?. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002

68

Sua tarefa não é a de servir-se desses meios e desses caminhos para desnudar, ele mesmo, o objeto e depois entregá-lo, paternalisticamente, aos educandos, a quem negasse o esforço da busca, indispensável ao ato de conhecer. Na verdade, nas relações entre o educador e os educandos, mediatizados pelo objeto a ser desvelado, o importante é o exercício de atitude crítica em que face do objeto e não o discurso do educador em torno do objeto (FREIRE, 1977, p.18).

Isso não significa dizer que o educando deve ser privado de informações que solicite

enquanto analisa o objeto, posto que a educação não é um ato de adivinhação. A informação é

fundamental para que o objeto possa ser analisado criticamente, entretanto, o educador não

deve privar o educando da reflexão entregando-lhe o conhecimento pronto e acabado. É nesse

sentido que Freire tece uma crítica ao uso de cartilhas e defende o uso de materiais que

estimulem a autonomia na produção do conhecimento.

Criatividade e autonomia são duas palavras de ordem na teoria do conhecimento deste

educador e foi partindo desta ampla concepção sobre a maneira pela qual o conhecimento é

construído que Freire pensou o papel que a alfabetização desempenharia na Guiné-Bissau.

Uma das primeiras reflexões com que se defrontou dizia respeito ao público que a campanha

abrangeria. Freire acreditava que o alto índice de analfabetismo era de natureza lingüística, ou

seja, mais de noventa por cento da população não sabia ler e escrever, já que do ponto de vista

político ele considerava o povo guineense altamente letrado, pelo fato de considerar que

tinham uma grande reflexão sobre a prática cotidiana (FREIRE, 1977, p.18). E partindo desse

entendimento ele reafirmava a necessidade da alfabetização estar diretamente ligada à opção

política.

Nesse sentido, se a opção do educador é revolucionária e se sua prática é coerente com sua opção, a alfabetização de adultos, como ato de conhecimento, tem, no alfabetizando um sujeito deste ato. Dessa forma, o que se coloca a tal educador é a procura dos melhores caminhos, das melhores ajudas que possibilitem ao alfabetizando exercer o papel de sujeito de conhecimento no processo de sua alfabetização (FREIRE, 1977, p.18).

69

Essa concepção educativa ia ao encontro da visão do PAIGC, que pretendia usar a educação e

a alfabetização de adultos como ferramenta para o recrutamento de pessoas para a construção

de uma nova sociedade.

Vimos que a educação era enxergada como uma engrenagem importante para a

construção da nação e para o desenvolvimento do país tanto no ponto de vista de Freire,

quanto do PAIGC. Para melhor abordar, então, a idéia da educação como prática da liberdade

é fundamental que compreendamos as noções que alicerçavam o pensamento do PAIGC,

como unidade e desenvolvimento, por exemplo. Em outras palavras, analisaremos a maneira

pela qual o PAIGC, enquanto Estado e não mais como partido, implementou medidas que

visavam consolidar sua autodeterminação.

A vontade de construir uma nação

O desejo de se construir uma nação em Guiné-Bissau é notório em todos os

documentos do PAIGC. Procuraremos traçar aqui um panorama do que era almejado pelo

partido em seus documentos e comparar com a prática efetivada nos primeiros anos após a

independência.

Para discutirmos o esforço de tornar Guiné-Bissau uma nação é relevante uma breve

reflexão sobre este conceito, que é polissêmico. Nação deriva do latim, de um verbo que

significa nascer. Originalmente, este conceito faz referência a um grupo de pessoas

provenientes de um mesmo lugar (GRAÇA, 2005, p.19). Como o intuito desta pesquisa não é

especificamente o debate acerca deste termo, definiremos a maneira pela qual este será aqui

utilizado. Partimos das definições de Stuart Hall e Montsserat Guibernau para construção de

nossas ponderações. Hall aponta que “uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que

explica seu poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade” (HALL, 2005, 48) e

Guibernau define nação como um grupo humano consciente de formar uma comunidade e

70

partilhar uma cultura comum, ligado a um território claramente demarcado, tendo um passado

e um projeto comuns e a exigência do direito de se governar. Desse modo, a nação inclui

cinco dimensões, quais sejam: psicológica (consciência de pertencimento a um grupo),

cultural, territorial, política e histórica. Vale lembrar que Guibernau diferencia a nação do

Estado Nacional apontando que o segundo é um fenômeno moderno, caracterizado pela

formação de um tipo de estado que possui o monopólio do que afirma ser o uso legítimo da

força dentro de um território demarcado, e que procura unir o povo submetido a seu governo

por meio da homogeneização, criando uma cultura, símbolos e valores comuns, revivendo

tradições e mitos de origem ou, às vezes, inventando-os (GUIBERNAU, 1997).

Guibernau mostra ainda que as principais diferenças entre uma nação e um estado

nacional, quando estes não coincidem, são que, enquanto os membros de uma nação têm

consciência de formar uma comunidade, o estado nacional procura criar uma nação e

desenvolver um senso de comunidade dela proveniente. Enquanto a nação compartilha uma

mesma cultura, valores e símbolos, o estado nacional tem como objetivo a criação de uma

cultura, símbolo e valores comuns. Os membros de uma nação podem relembrar seu passado

comum; se os membros de um estado nacional fazem o mesmo, podem se defrontar com um

quadro em branco – porque simplesmente o estado nacional não existia no passado – ou,

então, fragmentado e diversificado, por terem antes pertencido a diferentes etnias. Enquanto o

povo que forma uma nação tem um senso de pátria e se sente ligado a um território, o estado

nacional pode ser o resultado de um tratado ou da vontade de políticos que decidiram onde

traçar o limite entre os estados.

A consideração sobre diferenciação entre a nação e estado nacional no caso guineense

é muito pertinente, na medida em que era o PAIGC, no papel do Estado, que estava buscando

criar o sentimento de pertencimento das diversas etnias, sob a denominação de “luta pela

reconstrução nacional”. É possível afirmar que em Guiné-Bissau foi o Estado quem fomentou

71

a formação da Nação, cuja consolidação ainda não é plenamente observada até dias atuais. Os

limites geográficos da Guiné foram marcados a partir de acordos entre Portugal e os demais

países com aspirações imperialistas e, devido a esta marcação aleatória, mais de vinte culturas

diferentes viviam e ainda vivem neste mesmo território. Nesse sentido, podemos dizer que o

movimento anticolonial foi um movimento nacional sem nação (GRAÇA, 2005, p.21), isso

porque até a luta não havia na Guiné uma consciência nacional formada. O sentimento de

unidade e pertencimento começou a ser criado neste período e este foi utilizado como o

símbolo do nascimento da nação.

O conceito de nação em África está assim intimamente ligado aos movimentos nacionalistas que, ao terem decidido lutar pela independência, agendaram na ordem do dia a libertação nacional. Este termo não deixava de encerrar ambivalências e, mais do que expressão de uma realidade, reflectia uma ideologia, um sonho (CARDOSO, 1998, 92).

A historiografia sobre Guiné no debate acerca da existência ou não da nação neste

território aponta que o Estado guineense ainda está construindo a nação e que aos próprios

políticos ainda falta consciência de Estado (Cf. LOPES, 1982, 102-5; AUGEL, 2007, 266,

CÁ, CARDOSO, 1998, 93). “A Guiné-Bissau como Estado ainda está buscando uma

identidade amalgamadora para cimentar definitivamente as muitas pedras do seu mosaico

étnico, fortuitamente ligadas pela argamassa das fronteiras arbitrárias levantadas pelas

potências imperialistas.” (AUGEL, 2007, 266)

Amílcar Cabral entendia que a nação (unidade nacional) surgiria a partir do momento

em que os problemas e as aspirações das pessoas que viviam no mesmo território fossem

comuns. Para ele, a união entre as pessoas seria fruto dos seus interesses comuns.

Não é a existência duma raça ou dum grupo étnico ou seja o que for que define ou condiciona o comportamento dum agregado humano. Não. São, sim, o meio social e os problemas resultantes da reacção desse meio e das reacções dos próprios homens em questão. Tudo isso define o seu comportamento. Por outras palavras: um grupo de homens – seres humanos – constituirá uma raça ou um grupo étnico ou outra coisa, na me medida em que enfrentem problemas comuns e lutem pelas mesmas aspirações (CABRAL, 1978).

72

É consenso que no período da luta pela independência a mobilização e a união entre as

etnias predominaram (LOPES, 1982, p.103). Entretanto, não podemos afirmar o que o mesmo

ocorreu após a independência.

O PAIGC, enquanto Estado Nacional, pretendia formar uma nação a partir da criação

de uma identidade comum fundamentando seu posicionamento nas idéias defendidas por

Amílcar Cabral. Partindo da afirmativa de Hall de que a nação é uma comunidade simbólica,

procuraremos evidenciar que o partido procurou criar um conjunto de significados que

representasse a guineidade. A construção da identidade nacional se promove a partir de

matéria-prima retirada da história, da geografia, da memória coletiva e de fantasias pessoais.

Os grupos sociais elaboram e ordenam essas matérias-primas de acordo com determinantes

sociais e seus projetos. Vale lembrar que as matérias-primas também podem ser tradições

inventadas (AUGEL, 2007, p. 237). A construção da narrativa da nação guineense remete à

luta de libertação e ao mito fundador da mesma. A história que localiza a origem da nação em

Guiné é o massacre de Pidiguiti, realizado no cais do porto em 1959. Podemos perceber isso

no artigo de Wilson Trajano, da Universidade de Brasília, que trata sobre a questão dos

rumores para a criação da identidade nacional. Ele diz:

Finalmente, o porto pertence também à simbólica da nacionalidade. Foi no cais do Pidiguiti que, a 3 de agosto de 1959, os portuários de Bissau, os grumetes de então, entraram numa greve fatídica. A polícia colonial interveio imediatamente e, com uma violência inusitada, atirou e matou dezenas de trabalhadores. Este incidente, conhecido como o "massacre do Pidiguiti", aparece com uma tal freqüência nos documentos do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e nos discursos dos líderes políticos que pode ser tratado como um dos mitos fundadores da nacionalidade. Diz a mitologia política da nação que a decisão de se opor ao regime colonial fazendo uso de todos os meios, inclusive a luta armada, só foi tomada depois dos acontecimentos trágicos daquele início de agosto. Com toda esta carga associativa, o porto continua sendo um poderoso símbolo para pensar as relações entre guineenses e europeus. Ele não representa somente o local em que se desenrolam as atividades do comércio de longa distância que liga Bissau a outros lugares do mundo. Evoca com forte apelo emocional a violência da relação entre europeus e africanos, a brutal mercantilização humana dos séculos de tráfico atlântico e

73

representa com grande carga de afetividade o berçário da sociedade crioula e de seus membros prototípicos: os grumetes.17

O compartilhamento dessas experiências, que representam tanto o triunfo quanto as

perdas respectivamente, produzem sentido para a nação. Nesta perspectiva, a nação, assim

como os indivíduos, é formada na relação entre o que foi e o que está projetado para ser. A

representação que se tem do passado e a formulação do que deve ser no futuro apontam o

caminho a ser trilhado pela mesma. No caso daquele país, a representação do passado estava

moldada a partir da interação entre a cultura européia – em especial portuguesa, a partir do

legado colonial – e as culturas africanas e a projeção futura era um país no qual a igualdade

social seria a tônica. No discurso literário, por exemplo, a narração da nação foi feita

primeiramente na literatura de combate em que era encenado o mito fundador com

manifestações de dor e repúdio referentes ao período colonial e grande nostalgia ao período

anterior à chegada dos portugueses. Era constantemente exaltado o herói revolucionário e

estimulada a união a partir desses símbolos (AUGEL, 2007, p.269).

A “reconstrução nacional”, sinônimo de construção de uma nova sociedade, tornou-se

palavra de ordem do partido. O uso deste termo evidencia que era defendida a valorização dos

costumes tradicionais, entretanto, alguns desses também deviam ser combatidos em prol do

que eles consideravam como progresso.

O Estado, na tentativa de construir a nação, buscou teoricamente a congregação dos

interesses étnicos. Esses interesses são também políticos, econômicos e não só culturais

(GRAÇA, 2005, p.22). A etnicidade está inscrita nas relações sociais e nas relações de poder

existentes na sociedade.

17 Cf.TRAJANO, Wilson. Outros Rumores de Identidade na Guiné-Bissau. Este texto é uma versão modificada da conferência apresentada com o título Rumores Crioulos de Identidade em Guiné-Bissau no Seminário "Análise Antropológica de Rituais" promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UnB nos dias 26, 27 e 28 de julho de 2000, publicado no site http://www.didinho.org/Serie279empdf%20outros%20rumores%20de%20identidade%20wtf.pdf , visitado em 23/05/2007

74

O PAIGC falava em nome da nação e do povo, reafirmando ininterruptamente a

unidade nacional em seus discursos. Consolidar as idéias de unidade e nação no imaginário

social foi uma importante ferramenta de controle a fim de transformar o conglomerado de

etnias guineenses em uma comunidade nacional.

Para Amílcar Cabral a idéia de unidade estava diretamente ligada à noção de

transformação da realidade.

Podemos evidentemente tomar unidade num sentido que se pode chamar de estático, parado, que não é mais que uma questão de número; por exemplo, se considerarmos o conjunto de garrafas que há no mundo, uma garrafa é uma unidade. Se considerarmos o conjunto de homens reunidos nesta sala, o camarada Daniel Barreto é uma unidade. E por aí fora. Essa é a unidade que nos interessa considerar no nosso trabalho, de que falamos nos nossos princípios do Partido. É e não é. É na medida que queremos transformar um conjunto diverso de pessoas num conjunto bem definido, buscando um caminho. E não é, porque aqui não podemos esquecer que dentro desse conjunto há elementos diversos. Pelo contrário, o sentido de unidade que vemos no nosso princípio é o seguinte: quaisquer que sejam as diferenças que existem, é preciso ser um só, um conjunto, para realizar um dado objectivo. Quer dizer, no nosso princípio, unidade é tomada no sentido dinâmico, de movimento (CABRAL, 1978, p.117).

Podemos perceber que Cabral defendia a diversidade na unidade. Uma reflexão que é

suscitada por este entendimento é como consolidar isso, na medida em que é necessário

“apaziguar” os interesses díspares dos diversos grupos. Como o Estado se relacionaria com os

interesses divergentes dos grupos étnicos, sem beneficiar um em detrimento dos outros? Ou

seja, como lidar com as relações de poder existentes naquela sociedade, transformando-as de

maneira que se concretizasse o plano da construção e consolidação de uma sociedade

igualitária?

O Estado na Guiné-Bissau ao tentar modernizar o país e consolidar uma entidade

nacional, na prática, tentou subordinar as identidades étnicas (Cardoso, 1998, p.95) ao

contrário do que era pretendido por Amílcar Cabral.

Antes de aprofundarmos a maneira pela qual o PAIGC implementou o programa

desenvolvido no período da luta, delinearemos a concordância entre o pensamento teórico do

75

partido e Freire, para posteriormente analisar os problemas que eles enfrentaram na execução

do projeto de desenvolvimento nacional e no projeto de alfabetização.

Afinidades teóricas:

No início deste capítulo, apontamos algumas convergências entre os pensamentos de

Paulo Freire e do PAIGC. O ponto principal de concordância entre ambos se fundava no tipo

de educação que se pretendia trabalhar, uma vez que tanto Freire quanto o PAIGC pensavam

a educação como prática da liberdade. Freire e a equipe do IDAC – Instituto de Ação Cultural

–, nos trabalhos que desenvolveram em conjunto com os governos dos países africanos

tiveram como princípio basilar a noção de autodeterminação (RIBEIRO In: STRECK,

REDIN, ZITKOSKI, 2008, p.101).

Freire acreditava que a educação era uma importante ferramenta para a transformação

social que seria efetuada a partir da prática dos homens no mundo. Assim como Freire,

Amílcar Cabral, que foi o grande idealizador das noções que alicerçaram o pensamento do

PAIGC, acreditava que o homem poderia transformar o mundo, como podemos perceber no

trecho a seguir:

O homem é parte da realidade, a realidade existe independente da vontade do homem, e o homem, na medida em que a realidade influencia a sua consciência, cria a sua consciência, ele pode adquirir a possibilidade de transformar a realidade a pouco e pouco. Esta que é a nossa opinião, digamos, o princípio do nosso Partido, sobre a relação entre o homem e a realidade (CABRAL, 1978, p.130).

Pretendemos, agora, retomar a discussão que já foi iniciada no primeiro capítulo

mostrando que ambos concordavam em três pontos primordiais para o desenvolvimento da

educação guineense, quais sejam: a conexão entre educação e trabalho produtivo; a relação

“dinâmica” entre teoria e prática e a educação como ato político, uma vez que estes são a base

de sustentação do trabalho desenvolvido por eles. Assim sendo, esses aspectos serão aqui

76

trabalhados com o intuito de evidenciar a complementaridade do pensamento teórico entre

Freire e o PAIGC. Apesar de já termos debatido acerca da educação como ato político, é

indispensável retomar algumas questões por se tratar de um ponto principal para o

entendimento das duas respectivas concepções de educação.

Na primeira carta enviada a Mário Cabral – Comissário da Educação de Guiné-Bissau

– Freire explica a razão pela qual aceitou o convite para trabalhar em Guiné. Ele diz: “Como

homem do terceiro mundo, como educador com este mundo comprometido, outra não pode

ser minha posição, como a dos companheiros com quem trabalho, senão a de oferecer a

contribuição mínima que possamos dar ao povo de Guiné” (FREIRE, 1977, p.91). Para além

de se afirmar como pertencente à nação brasileira, Freire se classifica como 3º mundista

aproximando-se assim da condição sócio-econômica e política da África e complementa,

fazendo uma reflexão acerca da alfabetização, ao mostrar que o projeto de Guiné-Bissau tem a

perspectiva libertadora de seu trabalho, pois eles – guineenses – estariam trabalhando para a

conquista de sua palavra.

Na publicação do CIDA-C18, que analisa a situação de Guiné pós-independência é

constatado que a educação pretendida pelo PAIGC é eminentemente política. “Fazer uma

educação politizada é certamente uma das primeiras preocupações do PAIGC na Guiné-

Bissau. Nos internatos e nos liceus, no trabalho da JAAC – Juventude Africana Amílcar

Cabral – e nas unidades das FARP, enfim um pouco por toda a parte faz-se formação política

(grifo do autor)” (CIDA-C, s.d, p.13). Freire, na carta nº 3, faz referência à politicidade do ato

educativo. O educador diz que a luta após a independência muda de perspectiva, pois não é

mais para a expulsão “física” do colonizador. É a luta pela consolidação da libertação e a

concretização de um modelo de sociedade já desenhado na etapa anterior:

Este modelo, que é eminentemente político, deve envolver, necessariamente um projeto cultural global em que a educação, nele incluída a alfabetização

18 CIDA-C. Guiné-Bissau: 3 anos de independência.s.d.

77

de adultos, se insere. Projeto cultural, que sendo fiel, de um lado, às matrizes populares, sem contudo, idealiza-las, seja fiel, de outro, ao esforço de produção do país. [...][A alfabetização] Deve ser uma contribuição fundamental ao aclaramento dos níveis da consciência política do povo. [...]

Se percebemos a alfabetização numa tal perspectiva, compreendemos como jamais pode ser ela sequer pensada isoladamente ou reduzida a um conjunto de técnicas e de métodos. Isso não significa que métodos e técnicas não sejam importantes. Significa que aqueles e estes estão a serviço de objetivos contidos no projeto cultural que, por sua vez, se encontra envolvido e envolvendo os objetivos políticos e econômicos do modelo de sociedade a ser concretizado (FREIRE, 1977, p. 97, 99).

Luís Cabral, presidente da Guiné-Bissau, num discurso proferido em outubro de 1975,

no Centro de Preparação de monitores Escolares no Gabú19, disse que a primeira coisa que

deveria ser ensinada era o amor à terra, o orgulho a história e a luta e o amor ao partido, pois

essas eram criações do povo que consolidariam a unidade e a consciência nacional.

Orgulhosos de cada grupo a que pertencemos, de cada cultura, para valorizarmos essa cultura, para a enriquecer, mas devemos pôr acima dessa cultura o amor pela nossa terra no seu conjunto, para termos consciência de que somos cidadãos da nossa República da Guiné-Bissau acima de todas as culturas e particularidades que os grupos étnicos possam ter (CIDA-C, s.d., p.114).

Cabral aponta que o amor a terra, o orgulho a história e a luta e o amor ao partido são criações

do povo. Se fossem criações do povo de fato, não seria necessário ensiná-las ao povo.

Percebemos com isso o esforço das autoridades guineenses em consolidar a nação e a unidade

nacional a partir da subordinação dos grupos étnicos.

A questão da unidade nacional aparece constantemente nos textos referentes ao

PAIGC, por ser a função prioritária do partido consolidar a consciência nacional. Freire não

faz menção explícita à questão da unidade e não discute a importância da questão nacional,

entretanto, sempre reafirmava que o projeto de alfabetização deveria estar de acordo com o

projeto da nova sociedade, deixando subentendido que concordava com a abordagem do

PAIGC em relação a essas questões, já que o que não concordava foi amplamente informado.

Na carta nº 5, Freire declarou: “Sabemos todos, vocês e nós, que tal empenho, que não resulta 19 Gabú era dos grandes centros de Guiné-Bissau. Ver mapa 4 na página 49 do capítulo 1.

78

de um ato mecânico, implica na radical transformação do sistema de educação colonial, sem o

que se frustrará o projeto da nova sociedade.” Nesta epístola, é defendida a importância do

rompimento com a educação do colonizador para a construção de uma nova sociedade. Na

carta 12, o educador demonstra sua preocupação constante com a relação da educação com o

novo projeto: “Creio indispensável debater com ela [Comissão Nacional] alguns aspectos,

pelo menos, da problemática geral da alfabetização, da pós-alfabetização e de suas necessárias

conexões com o sistema educacional do país, bem como as relações desse sistema com o

projeto global da sociedade que se busca criar.” Vale lembrar que independente da insistência

de Freire de relacionar o projeto educacional ao projeto de construção do país a falta de

recurso e de infra-estrutura atrapalhou a consecução do plano.

A defesa incessante da educação para formação de uma nova sociedade traz consigo a

discussão de que nova sociedade se pretende, e no caso da Guiné, a discussão da relação entre

educação e trabalho produtivo. “O desejo de ultrapassar a separação entre o trabalho

intelectual e manual é também uma constante, traduzida concretamente em ligar a escola à

produção” (CIDA-C, s.d., p.117). Esta frase da publicação do CIDA-C demonstra mais uma

semelhança entre o pensamento freireano e o do PAIGC. Freire a esse respeito diz na primeira

carta que a educação teria que estar vinculada à atividade produtiva e à cultura20 do povo e

não a escolas burocratizadas com cartilhas elaboradas por intelectuais (FREIRE, 1977, p.92).

No documento sobre educação, escrito pelo Comissariado de Estado da Educação Nacional e

Cultura da República de Guiné-Bissau, em julho de 1976, está colocada a importância de a

escola estar atrelada ao trabalho produtivo. O PAIGC defendia que um dos objetivos do

Comissariado de Educação Nacional e Cultura ao reestruturar o sistema de ensino era acabar

com a separação entre o trabalho manual e intelectual incorporando ao cotidiano da escola o

20 É importante ressaltar que Freire assim como o PAIGC utiliza o termo cultura no singular. Ao contrário do entendimento de ambos consideramos que existem culturas que convivem no território guineense.

79

trabalho agrícola, já que a agricultura era a base da economia daquele país (DOCUMENTO:

A educação na Guiné-Bissau, 1976, p.55).

A actividade do campo em nosso país deverá constituir efectivamente um suporte para a pedagogia revolucionária, num método prático de vincular a teoria com a realidade, o ensino com o trabalho produtivo, um processo eficaz a unir o trabalho intelectual com o manual, o do fortalecimento do intercâmbio entre a cidade e o campo, o de que a escola se identifique na prática com a vida (DOCUMENTO: A educação na Guiné-Bissau, 1976, p. 55).

A educação atrelada ao trabalho produtivo ajudaria na resolução do problema do êxodo rural,

posto que o aluno ao sair do sistema de ensino estaria apto a trabalhar na terra e não se sentiria

desvalorizado como acontecia com o aluno no sistema de ensino colonial que não

conseguindo se manter nele voltava se sentindo “humilhado” para o trabalho no campo.

Foto 2 – Estudantes do Liceu de Bissau no trabalho produtivo

80

Na fotografia acima21 vemos estudantes do Liceu de Bissau participando do trabalho

produtivo. Essa iniciativa tinha o intuito de aproximar o aluno da principal fonte de renda do

país que era a agricultura, tentando mostrar que o trabalho manual é tão importante quanto o

intelectual.

O trecho do documento do Comissariado de Educação de 1976 sintetiza a concepção

educativa guineense e evidencia o destaque dado a relação entre trabalho e educação.

Percebemos, também, o que consideramos o terceiro ponto de convergência entre os

pensamentos dos dois, na medida em que tanto para Freire quanto para o PAIGC a teoria

serviria para a melhoria da prática e estas seriam dialeticamente complementares. Assim

sendo, a relação entre teoria e prática e educação e trabalho produtivo são na verdade idéias

complementares, posto que a educação seria a teoria – trabalho intelectual – e o trabalho

produtivo – trabalho manual – a prática.

Na terceira carta que o educador enviou ao Comissário de Educação é enfatizada a

importância da relação dinâmica entre teoria e prática dizendo que “somente na medida em

que os seminários de capacitação promovam a unidade da prática e da teoria, dando ênfase à

análise do condicionamento ideológico de classe e à necessidade daquele suicídio, é que se

convertem em verdadeiros contextos de capacitação” (FREIRE, 1977, p.99). Neste trecho

Freire se refere ao suicídio de classe, tema defendido por Amílcar Cabral, que dizia que era

necessário que os assimilados, impregnadas pelo ideal do colonizador cometessem suicídio de

classe para a construção nacional, ou como chamavam, “reconstrução”. Na carta nº 17, Freire

volta a esta temática e reafirma a necessidade do entrelaçamento entre teoria e prática,

mostrando que essa era também uma das preocupações de Amílcar Cabral, através da citação

de uma frase da obra Unidade e Luta de Cabral que sintetiza essa discussão “Pensar para agir

e agir para pensar melhor” (FREIRE, 1977, p.169). Esse é um dos princípios de Freire, que

21 (FREIRE, 1977, p. 126)

81

acreditava que a teoria serve para orientar a prática e que a prática reorienta a teoria, conforme

observamos na citação que segue: “Daí a insistência com que digo e re-digo que a prática de

pensar a prática é a melhor maneira de pensar certo” (FREIRE, 1977, p.166). Fica nítido a

partir do debate travado acima que as concepções de educação freireana e do PAIGC estão em

consonância com a teoria socialista.

Os três aspectos aqui trabalhados, quais sejam, educação como ato política, relação

entre teoria e prática e relação entre trabalho produtivo e educação, são de grande relevo para

a compreensão do pensamento de ambos por serem as bases que o alicerçam. Consideramos

importante citar mais um ponto fundamental para o entendimento que foi devido a essa

afinidade de conduta e pensamento que o Comissariado de Guiné-Bissau convidou Paulo

Freire para trabalhar em seu país.

Em suma, a grande tarefa da educação é esta: temos de preparar o nosso povo para ele aceitar este desafio que fazemos, o desafio da transformação da nossa terra. O conceito de transformação da terra impede que se entenda a educação como uma mera transmissão estática de conhecimentos, antes faz compreende-la como uma actividade dinâmica e criadora a serviço da revolução social (CIDA-C, s.d., p.115).

Este parágrafo do texto do CIDA-C aponta que o PAIGC entendia educação como um

ato criativo e não como uma transmissão de conhecimento. O PAIGC no governo buscou

colocar em prática o que havia sido delineado na plataforma do partido durante o período da

luta. As idéias de Amílcar Cabral se baseavam no marxismo-leninista e podemos perceber

isso nos termos utilizados nos documentos e pelos integrantes do partido. Freire também

compartilha desta visão de mundo e compreendia o ato educativo de forma similar. Ele

criticava uma educação vista como doação de conhecimento e denominava de “conhecimento

empacotado” o conjunto de ensinamentos que o professor iria “doar” aos seus alunos. Freire

afirma isso em diversas cartas, como por exemplo, na primeira em que diz:

Alfabetização de adultos que, numa perspectiva libertadora, enquanto um ato criador, jamais pode reduzir-se a um quefazer mecânico, no qual o chamado alfabetizador vai depositando suas palavras nos alfabetizandos. Quefazer

82

mecânico e memorizador, no qual os alfabetizandos são levados a repetir, de olhos fechados, vezes inúmeras, sincronizadamente: la, le, li, lo, lu; ba, be, bi, bo, bu; ta, te, ti, to, tu, ladainha monótona que implica sobretudo numa falsa concepção do ato de conhecer. Repete, repete que tu aprendes é um dos princípios desta falsa concepção do ato de conhecer (FREIRE, 1977, p.91).

Pode-se constatar que a visão do PAIGC e Freire sobre educação foi o elemento

motivador para o convite e para sua aceitação. Unir a escola à vida é uma expressão que

designa uma tentativa por parte tanto do Comissariado quanto deste educador de aproximar a

educação à realidade do país, cumprindo a escola não só uma função pedagógica, mas

também política, econômica e social.

Divergências na prática:

Ficou evidente, a partir do que foi acima exposto, a aproximação teórica entre os

pensamentos do PAIGC e do educador brasileiro. Vale lembrar que ambos pensamentos se

fundamentavam nos ideais marxistas. Freire no período do exílio teve um contato mais

próximo com a obra de Gramsci, Kosik, Habermas e outros filósofos marxistas. Moacir

Gadotti diz ter a impressão de que o marxismo de Freire nutre-se, sobretudo, em Gramsci, o

que se reflete nos diálogos que o educador brasileiro manteve com os educadores dos Estados

Unidos como, por exemplo, com Henri Giroux, Donaldo Macedo, Ira Shor, Peter MacLaren e

Carlos Alberto Torres. Este último afirma que o pensamento de Freire na década de 1970

pode ser “claramente percebido como uma expressão da pedagogia socialista” (TORRES,

1996, p.124). Heinz Peter Gerhardt foi o analista freireano que melhor sintetizou o que

poderíamos chamar de mudança no pensamento de Freire. Ele diz que o deslocamento das

teses epistemológicas estão refletidas na escolha bibliográfica do autor. Em Educação como

prática da liberdade, Freire se embasou em Scheler, Ortega y Gasset, Mannheim, Wright

Mills, Whitehead, já na Pedagogia do Oprimido estão presentes Marx, Lenin, Mao e

Marcuse. Isso não significa dizer que suas primeiras fontes tenham se tornado irrelevantes,

83

mas demonstra uma mudança no entendimento de seus conceitos-chave, pois em Educação

como prática da liberdade o conceito de transformação significa participação e integração no

sistema democrático, já na Pedagogia do Oprimido transformação já compreende a

possibilidade de subversão e revolução. Não podemos esquecer que neste período Freire

também teve contato com as obras de Albert Memmi, Frantz Fanon e Amílcar Cabral sendo a

leitura das obras deste último que alicerçaram o trabalho que desenvolveu em Guiné-Bissau.

O PAIGC foi fundado formalmente em Guiné-Bissau por cinco cabo-verdianos e

guineenses e era liderado por Amílcar Cabral. Amílcar Cabral nasceu em Guiné-Bissau,

realizou seus estudos liceais em Cabo Verde e, em 1945, ingressou no Instituto Superior de

Agronomia, em Lisboa. Amílcar foi um dos primeiros africanos a estudar em Portugal e o

precursor do que Mário Cabral denomina “a geração Cabral”.

Amílcar Cabral imprimiu ao partido sua dupla herança cultural, exprimindo-a no

projeto político fundamental do partido que era unidade de Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Naturalmente os ideais do período em que estudou em Portugal estavam inscritos no quadro

ideológico do movimento, tornando-se visíveis os referenciais e modelos político-econômicos

do marxismo. Humberto Cardoso22 diz que, num primeiro momento, o PAIGC foi fiel à

estratégia dos partidos marxistas e se aproximou do operariado guineense, particularmente

dos estivadores e recrutou membros da elite – estudantes, funcionários e empregados

comerciais – de Guiné e Cabo Verde. Após o massacre de Pidjiguiti, em 1959, no qual foram

massacrados pelas autoridades coloniais dezenas de trabalhadores, por uma greve organizada

e instigada pelo partido, este optou por uma nova estratégia, que seria a da luta armada. O

PAIGC definiu que a guerrilha seria no território guineense conta das condições geográficas.

Amílcar Cabral conhecia bem a localidade que é repleta de florestas atravessada por rios,

22 CARDOSO, Humberto. O Partido único em Cabo Verde: um assalto à esperança. Imprensa Nacional de Cabo Verde, 1993

84

devido ao trabalho de recenseamento que efetuou enquanto ainda trabalhava para o governo

colonial.

Humberto Cardoso sintetizou os ideais do PAIGC em três pontos:

1 – a questão central da luta de libertação é a eliminação do domínio imperialista e, por conseguinte, o seu papel não termina com a independência nacional;

2 – devido às limitações dos trabalhadores e camponeses há a necessidade de uma vanguarda constituída por uma minoria capaz de consciencializar as massas;

3 – como a burguesia nacional é para se liquidada, porque associada ao imperialismo e às classes trabalhadoras e camponeses, têm limitações econômicas e culturais, elementos da pequena burguesia devem assumir a direcção da luta, na medida em que só eles sabem distinguir a verdadeira independência da independência fictícia. (CARDOSO, 1993, p.16).

Esses princípios foram declarados por A. Cabral, em 1966, na Conferência

Constitutiva da Organização Tricontinental realizada em Havana, Cuba. Evidencia-se nesses

três pontos a adoção por parte de Amílcar Cabral de princípios socialistas, assim como

podemos perceber já a definição da importância da idéia do suicídio de classe, uma vez que

seria necessária a formação de uma vanguarda para conscientizar o povo, que se constituiria a

partir do suicídio da “pequena burguesia”.

Na mesma conferência Amilcar Cabral aprofundando os pontos que balizavam a

conduta do partido defendeu que a luta de classes era o motor da história e que a dominação

imperialista negava o processo histórico do povo dominado, “por meio da usurpação violenta

da liberdade do processo de desenvolvimento das forças produtivas nacionais” (CARDOSO,

1993, 15). Ele defendeu também que a libertação nacional era um fenômeno que consistiria

em um conjunto sócio-econômico de negar a negação do seu processo histórico, ou seja, a luta

de libertação nacional seria a luta contra o neocolonialismo, e, por isso, a pequena burguesia

revolucionária deveria ser capaz de se suicidar como classe, para ressuscitar na condição de

trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do

povo a que pertence. Esses princípios defendidos por Cabral em Havana expressam a base de

85

sustentação do PAIGC, estando a conduta política, econômica, social e cultural do partido

pautada nestes pontos (Cf. CARDOSO, 1993, ANDRADE, 1974).

Vemos que o PAIGC entendia que a independência não seria conquistada só com a

saída dos portugueses, mas sua liberdade estaria consolidada no momento em que a

autodeterminação e a unidade estivessem garantidas.

Mas nós enfrentamos o problema não só da libertação, mas também do progresso do nosso povo. E, nessa base, vemos logo que a nossa luta não pode ser só contra estrangeiros, tem que ser também contra alguma gente da nossa terra. O nosso povo tem que lutar ao mesmo tempo contra os seus inimigos de dentro. Quem? Toda aquela camada social da nossa terra, ou classes da nossa terra, que não querem o progresso do nosso povo, mas querem só o seu progresso, das suas famílias, da sua gente. E por isso que dizemos que a luta do nosso povo é contra tudo quanto seja contrário à sua liberdade e independência, mas também contra tudo quanto seja contrário ao seu progresso e à sua felicidade (CABRAL, 1978, p.156).

É interessante perceber que Amílcar Cabral associava as noções de independência a

progresso e felicidade. E a luta não era só contra os portugueses, mas todos aqueles que não

partilhassem de sua visão de mundo, ou seja, que não concordassem que a implantação do

sistema socialista era o mais adequado. Cabia, então ao Estado a responsabilidade de criar as

bases para que o país não fosse mais dependente. O plano de desenvolvimento calcava-se na

agricultura e na noção de progresso. Faustino Bali23 diz que

A Guiné-Bissau foi um dos raros países da África Ocidental que conquistou sua independência através de uma luta armada. Quando a obteve, em 1974, a palavra progresso era pronunciada por todas as bocas. A nova forma de economia de mercado já tinha conquistado toda a África e encontrava-se solidamente instalada. (...) Na altura, o objectivo era, de facto, a modernização, o crescimento económico da Guiné-Bissau representado pela palavra de ordem ‘reconstrução nacional’. O sentimento de estar atrasado em relação aos outros fez esquecer a questão primordial, muitas vezes exprimidas por Cabral, a saber: como e porquê desenvolver (grifos do autor)” (BALI, nº 8 jul 1989, p.73).

A crítica de Bali denota uma grave disparidade entre o discurso e a prática adotada

pelo Estado na medida em que em seus documentos a agricultura seria o centro do

23 Faustino Bali, em 1989, era investigador do Centro de Estudos de História Contemporânea do INEP.

86

desenvolvimento e o que se efetivou na prática foi a tentativa de desenvolvimento através da

industrialização buscando-se adaptar mundo rural a este impulso (BALI, nº 8 jul 1989, p.73).

Entendemos desenvolvimento como melhoria nas condições de vida e de trabalho das

populações através de mudanças tanto qualitativas como quantitativas na maneira de produzir.

Assim sendo, aperfeiçoar a tecnologia tradicional era tarefa imprescindível para o

desenvolvimento do país (SILÁ, nº 13, jan 1992, p.10). Em 1977, no I Congresso

Extraordinário do PAIGC definiu-se que o setor industrial deveria catalisar o

desenvolvimento da agricultura que era considerada, como vimos, a base da economia (SILÁ,

nº 13, jan 1992, p.13).

A julgar por essas medidas devia-se esperar o desenvolvimento de um sector industrial com uma base rural, quer dizer, uma indústria de transformação de produtos agrícolas a de produção de bens para agricultura, tais como arados, instrumentos de moagem, material de irrigação, bicicletas. A lógica em que se baseava a implantação de tais indústrias é bem simples: ao contribuir par modernização da agricultura, estas indústrias iniciavam ao mesmo tempo o tal movimento de dinamização recíproca que as tornava viáveis (SILÁ, nº 13, jan 1992, p.14).

Ao modernizar a produção agrícola esta estaria apta a produzir excedentes e matérias

primas para as unidades industriais. Entretanto, não foi isso o que aconteceu. Foram criadas,

de 1975 a 1980, diversas fábricas como a de artigos plásticos, que não sobreviveu à sua

inauguração, a de leite e espuma que teve problemas crônicos de abastecimento de matéria-

prima e eram fechadas periodicamente, a de cerâmica que apesar de funcionar com matéria-

prima local fechou as portas e a fábrica de sumo e compotas que por ter sido instalada em

uma ilha isolada com problemas de transporte produzia poucos meses por ano em pequena

quantidade, de forma que os produtos não chegaram a aparecer no mercado nacional (SILÁ,

nº 13, jan 1992, p.19).

Evidencia-se, a partir do quadro acima exposto, que não houve um eficaz

planejamento para a criação da indústria nacional no governo de Luis Cabral. As medidas

87

adotadas não tiveram êxito, não colaborando para o tão almejado desenvolvimento e

autodeterminação. Além disso, as medidas adotadas no campo industrial foram de encontro ao

projeto delineado pelo PAIGC que tinha na terra sua maior preocupação.

Parte da historiografia africana mostra que o problema do desenvolvimento centrou-se

na existência de duas racionalidades. Estado e camponeses constituem essas duas maneiras

distintas de pensar, que se confrontaram e atrapalharam o crescimento do país. A maneira pela

qual o Estado via e pensava a produção agrícola era diferente da forma pela qual os

camponeses a concebiam (Cf. LOPES, 1982, BALI, nº 8 jul 1989). Os anseios dos dirigentes

guineenses não eram compartilhados pela maior parte da população, tendo em vista que os

camponeses somam a maior parte da população que viviam e ainda vive no território

guineense. Rosemary E. Gally discorda da existência de duas racionalidades e aponta que a

falta de investimento no campo não estimulou o desenvolvimento. A autora afirma que a

lógica da acumulação estava presente nas tabancas24 e o que faltou foi a oportunidade para sua

efetivação (GALLI, nº 8 jul 1989).

Lopes questiona se o Estado da maneira pela qual foi erigido atrapalhou a consecução

do plano de desenvolvimento. Será que a burocracia estatal abriu brecha para o florescimento

de uma classe que dominaria a maior parte da população? O autor aponta que a manutenção

da estrutura colonial, apesar de não estar nos planos dos guineenses, precisou ser mantida e

essa manutenção foi um grande problema para o partido se tornando um entrave para o

desenvolvimento (LOPES, 1982, p.89).

Esse debate historiográfico procura explicar os motivos para a não obtenção do

desenvolvimento esperado. É importante buscar o entendimento para tal fato, entretanto, este

não é o objeto desta pesquisa. Assim sendo, o que nos interessa nessa discussão é que ela

evidencia, independente se por rejeição dos camponeses devido à racionalidade diferente do

24 aldeias

88

Estado ou por falta de investimento no campo, que o PAIGC não conseguiu colocar em

prática a plataforma do partido delineada por Amílcar Cabral e os integrantes do partido no

período da luta. Vale ressaltar também que ocorreu uma falta de sintonia entre a educação e o

plano de desenvolvimento do país. Freire defendeu em várias cartas a necessidade da ligação

entre o projeto global de sociedade e o projeto do sistema de ensino. Ao se alterar o projeto de

desenvolvimento, o projeto educacional deveria ser remodelado, mas essa alteração no

sistema de ensino não ocorreu, denotando o distanciamento entre a teoria e a prática

empregada pelo PAIGC no comando do país.

Nos debruçaremos agora sobre as implantação do sistema educativo e mais

especificamente do projeto de alfabetização de adultos apontando, assim como na discussão

sobre o desenvolvimento econômico, as disparidades entre a teoria e a prática. Além disso, é

fundamental salientar que em 1977 houve uma transformação no governo que afetou a

implantação do planejamento anterior. De 1974 a 1977 a organização estatal era composta

por Comissariados e esse nome tinha o intuito de aproximar mais o trabalho desenvolvido

pelo Estado do povo. Nesse período o Comissário de Educação e Cultura da República da

Guiné-Bissau era Mário Cabral. Jauará aponta que a partir de 1977, ano em que foi feita a

primeira remodelação governamental, os comissariados se transformaram em ministérios e o

Ministro da Educação até 1980 foi Filinto Vaz Martins e Mário Cabral virou ministro do

desenvolvimento Rural. Também foi criado o ministério da Informação e da cultura cujo

ministro era Mário de Andrade. Os documentos e a bibliografia consultada referentes ao

sistema educativo não aprofundam esse ponto e os documentos referentes a alfabetização de

adultos não chegam nem a tocar nesta temática, deixando a dúvida se no período do trabalho

desenvolvido em conjunto com Freire o contato que tiveram foi efetivamente só com Mário

Cabral. Paulo Freire no livro Por uma pedagogia da pergunta publicado em conjunto com

Antonio Faundez ao tratar sobre a experiência vivida na Guiné-Bissau não cita esta mudança

89

e chama Mário Cabral de Ministro da Educação, diferentemente da maneira como o trata no

livro Cartas à Guiné-Bissau. Além disso, neste livro foi publicada uma carta que não consta

neste livro endereçada à Mário Cabral de julho de 1977 (FREIRE, FAUNDEZ, 1985, p. 119-

142).

Partimos do princípio que houve um remodelamento, já que Freire muda o tratamento

utilizado com Mário Cabral – de Comissário passa a chamar de Ministro e também menciona

Mário de Andrade, como responsável pela Cultura, o que não acontece no livro Cartas à

Guiné-Bissau. Assim como não conseguimos precisar a data do término da relação de Freire

com aquele país, não conseguimos também precisar a data da saída de Mário Cabral da

educação.

Independente disso a demarcação da mudança no governo é deveras relevante, posto

que ela indica uma alteração no projeto guineense. A opção pelo uso do termo Comissariado

era aproximar o trabalho desenvolvido pelo governo do povo, denotando o cuidado deste na

busca pela construção de uma sociedade igualitária. Além disso, isto traz à tona os problemas

existentes dentro do governo que culminou no golpe de Estado de 14 de novembro de 1980,

liderado por Nino Vieira que se tornou primeiro–ministro na 2ª reformulação governamental

realizada em 1978. Nesta reformulação, as tendências existentes dentro do partido se

evidenciaram e a luta por uma nova partilha do poder se intensificou. “Os princípios do

partido eram constantemente violados em favor de lutas intestinais e de conflitos de interesses

entre militantes de distantes origens sociais e de clivagens diversas. Desde a independência e

da assunção da administração do país pelo PAIGC vêm surgindo graves atentados ao

principio democrático e à gestão da coisa pública” (JAUARÁ, 2003, p.246).

As duas tendências a que Jauará se refere são por ele designadas de luso-africanos e

etnorrurais. Os luso-africanos eram as pessoas influenciadas pela cultura européia,

descendentes, miscigenados ou não, falantes da língua portuguesa e da língua crioulo e,

90

majoritariamente, católicos. Em Angola e Moçambique o grupo que faz a síntese cultural

entre os hábitos africanos e europeus é denominado de crioulo. “É a presença simultânea de

elementos da cultura africana e européia no seu comportamento que irá caracterizá-lo como

crioulo. Ou seja, é a sua capacidade de atuar nesses dois mundos e realizar a interligação entre

eles.” (A crioulidade p. 47) Os luso-africanos tem a mesma matriz crioula, posto que

representam um amálgama cultural entre Europa e África, fazendo surgir com isso novos

hábitos e um “novo tipo de homem” dentro dessa cultura africana. (Cf. THOMAZ, 2008, p.

47, BITTENCOURT, 1996, p. 55) Já os etnorrurais formavam a maior parte da população e

congregam os grupos étnicos islamizados e animistas que possuíam, respectivamente,

organização social verticalmente hierarquizada e estratificada do tipo comunitária (JAUARÁ,

2003, p.7). Jauará defende a existência de duas racionalidades, ou seja, duas maneiras

distintas de pensar, como foi mostrado anteriormente e afirma que estas estavam presentes e

entravam em conflito dentro do próprio governo.

Durante a luta colonial, houve uma aproximação dos grupos étnicos em prol da

expulsão dos colonizadores. A manutenção dessa aproximação, ou seja, a busca pela

sedimentação da consciência nacional foi promovida através da educação e da tentativa da

criação de uma cultura nacional popular.

O partido/governo revolucionário imaginava que a disseminação de idéias revolucionárias (pró-socialistas) nas escolas, nos lugares de trabalho, nas organizações de massas e, por extensão em todas as comunidades etnorrurais iria progressivamente abalar e levar ao descrédito os laços ou tentativas de fortalecimento da consciência étnica e/ou regional, formando, assim, uma nação em que só haja lugar para camaradas guineenses, totalmente desnutridos de ideais étnicos e prontos para assumirem as suas responsabilidades no desenvolvimento harmonioso do país sob a inquestionável liderança da elite governante do partido. Ainda no ardor revolucionário, o partido entendia que só uma filosofia socialista seria capaz de extirpar a exploração do homem pelo homem e eliminar as concepções obscurantistas que impediam os etnorrurais de serem completamente livres das crenças e/ou costumes ancestrais, dos seus lideres manipuladores, para então, como cidadãos revolucionários, integrarem a frente de luta contra o subdesenvolvimento (JAUARÁ, 2003, p.10).

91

Na prática, foi tentada a formação de uma unanimidade na forma de pensar através da

disseminação de idéias revolucionárias, isso pode ser percebido através da escolha das

palavras geradoras “povo”, “trabalho”, “luta”, “disciplina”, mas esta também foi buscada

através do uso da força. Vale lembrar que as palavras geradoras foram escolhidas pelo

governo para todo o território nacional, contudo, os animadores de debate tinham autonomia

para escolher palavras geradoras complementares que melhor se adequassem a realidade da

região.

A idéia da transformação da sociedade a partir da criação de uma nova mentalidade no

entendimento de Freire tinha que partir de uma transformação radical do sistema educacional

herdado do colonizador. Esta é uma decisão política, que segundo o educador, deveria estar

atrelada necessariamente ao projeto de sociedade que se procurava criar. Assim sendo, a

educação serviria para auxiliar na organização do desenvolvimento, tendo em vista que

refletiria sobre o que, como, para que e para quem produzir (FREIRE, 1977, p.22). A idéia de

questionar o como, porque, para que e para quem, Freire pensava em usar não só para a

produção ajudando na orientação do desenvolvimento, mas também na análise das situações

existenciais. O foco desses questionamentos é auxiliar no desnudamento do objeto de estudo e

nos interesses que tem inscritos nele. Daí que ao fazer essa avaliação a transformação social

seja possível, na medida em que torna os sujeitos críticos e conscientes de que são agentes de

sua própria história.

A decisão, ante a impossibilidade de romper, da manutenção da estrutura do sistema

educativo colonial foi um grande entrave para a afirmação do novo sistema de ensino. Freire

era radicalmente contra essa manutenção. Além da herança colonial, o educador apontava que

existia outra herança que era da luta de libertação. Ele elogiava as experiências no período da

luta nas zonas libertadas. Ou seja, Freire fazia uma avaliação muito positiva do trabalho

desenvolvido pelo PAIGC durante o período da luta e dizia que “era preciso saber, sobretudo,

92

como as equipes nacionais, ao preocupar-se com a transformação do sistema herdado do

colonizador, viam a herança da guerra. É que, na verdade, o novo sistema a surgir, não poderá

ser uma síntese feliz das duas heranças, mas o aprofundamento em todos os aspectos

melhorado do que se fez nas zonas libertadas, em que a educação eminentemente popular e

não elitista se desenvolveu” (FREIRE, 1977, p.23).

Foto 3 – Escola na zona libertada

Na fotografia acima25 vemos uma escola na zona libertada, no período da luta pela

independência. Pela imagem vemos que era uma escola improvisada, no meio da floresta,

com os materiais que dela podiam ser retirados. Percebemos que a influência da educação

freireana ainda não estava presente, pelo menos, não em sua plenitude, uma vez que a sala de

aula, mesmo sendo na floresta e não dentro de uma sala reproduz o modelo do sistema de

ensino colonial em que o professor fica em pé e usa um quadro negro e os alunos sentados em

suas carteiras copiam a matéria.

25 (FREIRE, 1977, p.28)

93

Freire era radicalmente contra a manutenção de qualquer estrutura colonial e

acreditava que a transformação educacional deveria partir do que já tinha sido começado pelo

PAIGC na luta. Como vimos o governo guineense, apesar de concordar com Freire, diante das

dificuldades decidiu manter a estrutura escolar colonial. Faremos um comparação, sem nos

aprofundarmos demasiadamente, entre a educação colonial, a educação implementada pelo

PAIGC no período da luta e a educação implementada nos primeiros anos após a

independência pelo governo, posto que a comparação servirá como instrumento de análise da

possibilidade da concretização de uma educação para a liberdade.

Um ponto que diferencia bem os três sistemas educativos se refere ao acesso. A

educação colonial era restrita a um pequeno número de africanos considerados assimilados à

cultura portuguesa. A educação no período da luta promovido pelo PAIGC estava presente

nas zonas libertadas e abrangia um número maior de pessoas do que a educação colonial. Já a

educação nos primeiros anos de independência foi largamente expandida como podemos

verificar no quadro a seguir.

Antes da Independência

1971/1972

Depois da Independência

1974/1975

Áreas

Ocupadas

Áreas

Libertadas

Total Crescimento Total

Escolas

Construídas

297

164

461

238

699

Alunos

Matriculados

3.128

14.531

17.659

52.567

70.226

Professores 661 258 919 571 1.490

94

Logo após a independência houve um crescimento de 238 estabelecimentos de ensino

e se compararmos a educação pós-independência somente com a colonial houve um aumento

de 402 estabelecimentos. Com relação ao número de estudantes se o crescimento somando a

educação anterior à independência já é muito significativo, tendo em vista que quase

cinqüenta e três mil alunos ingressaram no sistema de ensino, na comparação entre educação

colonial e do país independente, o aumento se torna ainda mais gritante, pois o número de

alunos cresceu em mais de sessenta e sete mil. Quanto ao número de professores, o aumento

não é tão significativo se levarmos em conta o número de estudantes, o que reflete que as

salas de aulas no país independente tinham um número elevado de alunos, uma vez que ao

dividirmos o número de educandos pelo número de professores percebemos que tinham cerca

de 47 estudantes por professor. Esse número é melhor do que o PAIGC apresentava no

período da luta já que a média era de 56 educandos por professor. No período colonial a

média de alunos por professor era 5, o que teoricamente poderia promover uma educação de

melhor qualidade. Evidencia-se aí que o acesso ao sistema de ensino era muito caro para o

governo guineense, ao contrário da educação colonial que tinha um número elevado de

professores e um número pequeno de alunos (Cf. CÁ, 2008, p. 135-6).

O período logo após a independência é considerado como o período da revolução

educacional da Guiné-Bissau, tendo em vista que em todo território nacional os guineenses

foram incentivados a se matricularem nas escolas.

A comparação efetuada no quadro se restringe a década de 1970. Neste período os

movimentos de libertação já estavam presentes na África e a educação colonial tinha o intuito

de manter o domínio português sobre o território. Durante o tempo em que a Guiné-Bissau

fora colônia portuguesa, o sistema de ensino passou por diversas mudanças. Restringiremos

aqui nossas observações nas 2 décadas anteriores a independência, pois nelas que se

95

estruturaram o sistema de ensino colonial que foi em alguns aspectos preservados e em outros

rompidos após a independência.

Na década de 1960, houve uma nova orientação nas medidas educacionais nas

colônias portuguesas com o aumento da assimilação e a reforma do ensino primário (Cf.

ALMEIDA, 1981, 41). Essas medidas tinham o objetivo de promover a manutenção de

Portugal em seus territórios ultramarinos e auxiliar na luta contra os movimentos de libertação

das colônias. Portugal mudou sua política de contenção de vagas nas escolas, nos anos que

antecederam a independência, devido à pressão exercida pelo PAIGC. A estratégia era utilizar

a educação como forma de “desafricanizar” as mentes e como propaganda contra a

independência. Em outras palavras, eram ensinados os hábitos europeus e conteúdos da escola

da metrópole, assim como era dito que a história da África só passou a existir com a chegada

dos portugueses (Cf. CÁ, 2004, 43). Apesar do aumento do número de matrículas nas escolas

primárias e no Liceu e do envio de alguns estudantes para universidades portuguesas, as

oportunidades oferecidas eram poucas em relação à população desassistida, além disso,

problemas como a má qualidade do ensino, as dificuldades de acesso à escola para os

africanos, a discriminação e a falta de utilidade do conhecimento escolar no cotidiano não

foram sanados (Cf. ALMEIDA, 1981, 57).

Podemos vislumbrar através do discurso do General Spínola, que naquele momento

era governador militar de Guiné-Bissau, na Cerimônia de inauguração da escola preparatória

do ensino Secundário de Bafatá, em 1973, a estratégia portuguesa para a manutenção de seus

territórios ultramarinos. Spínola defendia fervorosamente que a solução para o problema

colonial português deveria ser resolvido por vias diferentes a da guerra. 26

26 Esta idéia está explicita no livro Portugal e o Futuro publicado em 1974 um pouco antes da Revolução dos Cravos.

96

A inauguração de uma nova escola é sempre motivo de justificado júbilo, para quem detendo um mandato de Governo, encontra na educação e na formação das camadas jovens o mais válido instrumento de construção do progresso e do bem estar social. Alguém afirmou, a este respeito, que o Ensino e a Educação são o melhor investimento. De facto, os grupos humanos progridem ao ritmo da sua capacidade de resposta oportuna à escalada das necessidades do seu bem-estar, sejam elas intrínsecas ou resultantes do contacto com outros grupos cultural e tecnicamente mais evoluídos; e se verifica entre os grupos mais qualificados em termos de engenho criador, capacidade técnica e senso moral. Daí poder concluir-se que, nos tempos que correm, o subdesenvolvimento resulta menos da carência de recursos do que da inaptidão para a superar. E se foi pela constante análise da experiência vivida em clima de complexa laboração intelectiva, cimentada ao longo dos anos, que as sociedades mais evoluídas atingiram o estádio da era espacial, terá de ser pelo aproveitamento de quanto desse processo os meios de difusão não facultam que as sociedades subdesenvolvidas recuperarão o atraso que consentiram. Resulta, assim, que só no estudo e na subseqüente base de investigação e laboração as sociedades encontram adequada ferramenta de aceleração do seu progresso em ordem a esperar a distância que as separa dos grupos mais evoluídos (SPINOLA, 1973, 367-8).

A visão do governo português sobre os africanos está explícita na definição de Spínola

que os caracteriza como povos menos evoluídos ou nas palavras deste general, menos

qualificados em termos de engenho criador, capacidade técnica e senso moral. Evidencia-se

assim a explicação para o ensino guineense ser similar ao da metrópole, visto que com a

educação do povo “mais evoluído” talvez eles (africanos) tivessem a possibilidade de vencer

o subdesenvolvimento. A manutenção de Portugal, naquele território se justificaria, portanto,

como a entrada e permanência do progresso através do contato com um grupo mais

qualificado. Vale lembrar que esse discurso foi proferido no ano em que o PAIGC já tinha

libertado do domínio português a maior do território e alguns meses antes de ser proclamada,

por Amílcar Cabral, a independência unilateralmente. Esse discurso foi publicado com outros

do mesmo general, pela Agência Geral Ultramar, em 1973, provavelmente como uma

tentativa ainda de consolidação da sua permanência em seus territórios no ultramar. O título

da obra “Por uma portugalidade renovada” sinaliza a estratégia daquele país de criação de

uma identificação dos guineenses com os hábitos portugueses pela afirmação de que estes

faziam parte da nação portuguesa.

97

Podemos sintetizar os resultados da educação colonial da seguinte forma:

a) A assimilação: os esforços dos colonizadores para integrar os indígenas à civilização não parecem ter produzido resultados significativos na Guiné-Bissau. O número de assimilados oficialmente reconhecidos não atingiu 1% da população. Após 5 séculos de colonização portuguesa a Guiné tinha 90% de analfabetos, cerca de 20% da população capaz de falar português e 4% da população convertida ao catolicismo.

Apesar do número de assimilados oficialmente ser muito pequeno nos últimos anos da

presença portuguesa em Guiné-Bissau, como tentativa de manutenção do seu poder sobre

aquele território não existia uma grande diferenciação entre os assimilados e a população que

assumira hábitos similares aos portugueses.

b) Formação de mão de obra: a formação profissional de nível médio atingiu um número muito pequeno de estudantes na Guiné-Bissau, dos quais grande parte é constituída de europeus. Não havia escolas de formação de professores nem Universidades. As atividades econômicas estabelecidas pelos colonizadores na Guiné prescindiram de formação técnica e profissional (obtida através da escolarização) da mão de obra africana, em quase sua totalidade. A economia agrícola era baseada no trabalho forçado dos indígenas, a infraestrutura urbana precária e o pequeno número de europeus instalados na colônia não exigiam uma grande quantidade de funcionários de Estado; a inexistência de atividades industriais e extrativas ou outras que pudessem demandar mão de obra especializada e o desinteresse de Portugal pelo desenvolvimento de sua colônia mais pobre são fatores que podem explicar o descaso da administração colonial com a formação profissional dos guineenses.

c) Propaganda contra a independência: esse objetivo orientou algumas mudanças no ensino colonial nos últimos anos da luta pela independência, como o aumento do número de matrículas nas escolas primárias e no Liceu, a criação de escolas primárias ligadas aos quartéis e de centros sanitários e escolares, o envio de alguns estudantes para Universidades portuguesas. No entanto, as novas oportunidades educacionais eram muito poucas em relação ao conjunto da população desassistida e os problemas anteriores permaneceram (ALMEIDA, 1981, p. 56).

Podemos perceber que Portugal procurou usar a educação como elemento de

diferenciação social, formando, em um primeiro momento, somente o número de pessoas

necessárias para o funcionamento do seu quadro administrativo e em um segundo momento a

educação foi utilizada como tentativa de manutenção do seu território. O aumento do número

de matrículas na década de 1970 é o reflexo da tentativa do governo português de preservar

98

seu império ultramarino. O General Spínola que dizia que não venceria a guerra militarmente

promoveu ações que melhoraram os sistemas de ensino e saúde. A Guiné-Bissau que o

PAIGC combateu estava muito diferente da Guiné-Bissau da década de 1940. Mesmo a luta

tendo ocorrido em um panorama diferente do quadro geral do colonialismo, ainda assim a

educação colonial era elitista e excludente e mascarava através do discurso civilizador e do

ideal de que a história daquele país só havia começado com a chegada dos portugueses a

possibilidade de autonomia do pensamento e da ação daquele grupo. Vale ressaltar que o

PAIGC teve dificuldade em entrar em algumas partes de Guiné-Bissau que tiveram acesso ao

projeto “Guiné Melhor” de Spínola.

Outro ponto que diferencia bastante os três tipos de educação dizia respeito ao

caráter/concepção do ensino. Enquanto na educação nas zonas libertadas e no país

independente o ensino era ligado ao trabalho no campo, na educação colonial o aluno tinha

que se dedicar exclusivamente ao ensino e, por conseguinte, era elitista e excludente.

Antes de mostrarmos o bom resultado no atrelamento do ensino ao trabalho produtivo

é fulcral apontarmos que na educação após a independência também existia um critério de

exclusão dos alunos que era o da militância. Apesar do discurso do PAIGC e de Freire afirmar

que a escola dos colonizadores era elitista e excludente, quando nos deparamos com os

critérios para a mudança do aluno de um nível para o outro no sistema de ensino também

ficam claros critérios de seleção, que da mesma maneira, podem ser considerados

excludentes, não elitista na medida em que não é a função que a pessoa ocupa ou a quantidade

de dinheiro ou a cor da pele que possui que garante sua manutenção no ensino, mas sim a sua

crença na luta e nos ideais socialista.

Por outro lado, há critérios também, como não poderia deixar de haver, que regulam a passagem de um nível de ensino a outro. Do ensino básico ao geral polivalente, como deste ao médio politécnico. Os candidatos passarão de um a outro, de acordo com as qualidades reveladas no nível anterior. Impõe-se a comprovação de sua seriedade nos estudos, a sua qualificação

99

científica e técnica, em função do nível de onde vêm, bem como a comprovação de suas qualidades morais e militantes (FREIRE, 1977, p.47).

Fica claro neste trecho que se o aluno não comprovasse suas qualidades morais – o que se há

de convir é bem impalpável – e de militante, este não poderia continuar estudando. Isso no

pensamento de Freire e do PAIGC não se configurava como exclusão, mas na educação

colonial os governantes também não consideravam exclusão manter os africanos não

assimilados fora do sistema de ensino, posto que estes não eram considerados por eles

civilizados. O sistema de ensino guineense após a independência também foi estruturado de

forma a excluir pessoas, mesmo afirmando que o estudo que tinham obtido auxiliaria em sua

vida, ao contrário do ensino do período colonial, que o aluno não podendo continuar os

estudos tinha grande dificuldade em se adaptar ao seu antigo modo de vida.

Apontamos que a manutenção da estrutura escolar colonial atrapalhou a

implementação do sistema educativo guineense após independência. Até a escola de Có que

foi considerada como escola-modelo para o ano letivo de 1976/77, também enfrentava

dificuldades, não com a herança do sistema educativo colonial, mas com a falta de

alojamentos, salas de aula, espaço para a biblioteca, material para o estudo e material

esportivo. A experiência vivida nesta escola mostrava a viabilidade do projeto delineado no

período da luta e como defendido por Paulo Freire de uma educação sem a herança do

colonialismo português.

O centro de preparação de professores Máximo Gorki, que foi instalada em um quartel

português abandonado em Có, região de Cacheu, tinha o ensino atrelado a vida cotidiana da

população circunvizinha do estabelecimento de ensino. O contato dos professores que se

formavam no instituto com a população das tabancas era matéria obrigatória no currículo. A

alfabetização de adultos também era matéria regular do curso. Os professores-estagiários,

orientados pela Comissão Coordenadora da Alfabetização de Adultos, fizeram um

levantamento sócio-econômico e cultural da área para escolher as palavras geradoras que

100

seriam utilizadas na alfabetização de adultos de Có e arredores. Podemos perceber que existia

integração entre a escola e a comunidade e que a relação entre teoria e prática era eficazmente

presente. No centro de formação e capacitação de professores Máximo Gorki, a gestão era

coletiva e as decisões eram tomadas em assembléias. Além disso, a relação entre educação e

trabalho produtivo era mais uma matéria obrigatória e uma prioridade, já que para o PAIGC

não podia existir separação entre trabalho manual e intelectual (ALMEIDA, 1981, 145-6).

Foto 4 – Vista parcial do Centro Máximo Gorki – Escola de Có

Na fotografia acima27 vemos pessoas jogando bola no recreio no Centro de Formação

e Recuperação de Professores Máximo Gorki, na Escola de Có, em 1977. Este centro, apesar

de ter tido breve duração, foi um importante centro de experimentação de metodologias para o

sistema de ensino.

Luis Cabral, presidente do Conselho de Estado disse sobre a educação em Guiné-

Bissau:

27 (FREIRE, 1977, p.70)

101

O problema do ensino é de grande importância. A escola é como uma faca de dois gumes, porque aos alunos deve ser ensinado o que devem fazer quando forem grandes. Se não se fizer assim, acontecerá como dantes, em que cada indivíduo que aprendia a ler até a 3ª ou 4ª classe, já não queria ser lavrador, queria vir para a cidade. Se deixarmos que isso continue a acontecer, as nossas escolas constituirão uma grande fábrica de desempregados, porque não teremos trabalho para dar a toda a gente na cidade. Portanto, temos que criar nova mentalidade nos indivíduos que vão a escola.

Temos que valorizar o trabalho do camponês. Por isso temos que fazer uma revisão total do nosso programa de ensino. Temos de transformar o nosso programa de ensino num programa de acordo com o nosso desenvolvimento. Um programa de ensino que servirá a nossa terra e não um programa de ensino que irá formar indivíduos que irão desprezar o próprio trabalho do seu povo, dos seus pais. Queremos sim que cada indivíduo estude mais para elevar o nível do nosso povo, que cada indivíduo que estudar mais e aprender mais, sirva a sua terra, o seu povo (DOCUMENTO: Comissariado Educação, 1976, 55).

A relação entre o trabalho manual e intelectual era fundamental para o sistema

educativo guineense na medida em que a economia do país estava baseada predominante na

agricultura. A educação, portanto, deveria estar a serviço do desenvolvimento do trabalho

produtivo e a alteração da prática gerada durante o período colonial era premente, posto que,

como Luis Cabral apontou a cidade não tinha condição de aproveitar o número de pessoas que

se formariam no sistema adotado, já que este visava universalizar a educação. O foco era

acabar com a segmentação, não se teriam mais escolas urbanas e escolas rurais, e formar

pessoas que pudessem trabalhar no campo ou na cidade de acordo com o seu próprio

interesse.

Nos dois primeiros anos em que foi relacionada a educação e trabalho agrícola os

resultados foram bem positivos. Na região de Tombali28, por exemplo, foram plantadas pelos

alunos do Ensino Básico 917 bananeiras, foram colhidos 1.020 quilos de arroz e foram

preparados 837 metros quadros de área para o cultivo. Os resultados na região de Bafatá

foram ainda melhores. Noventa e seis das cento e seis escolas existentes naquela região

28 Ver mapas 3 e 4, páginas 38 e 49 respectivamente, no Capítulo 1.

102

produziram 24.516 quilos de batata, 4.823 quilos de arroz, 11.117 quilos de milho, 800 quilos

de amendoim e 250 de feijão (Cf. FREIRE, 1977, p. 123; CÁ, 2008, p. 147). Na imagem

abaixo vemos29 estudantes do Liceu a caminho do campo para participarem de atividades

agrícolas, evidenciando que a relação entre a educação e o trabalho produtivo foi um tema

fortemente trabalhado pelas autoridades guineenses.

Foto 5 – Estudantes do Liceu a caminho do campo

A alfabetização de adultos, apesar de estar relacionada com o sistema de ensino ou,

pelo menos, buscou-se esta interligação, não se confrontou diretamente com uma estrutura

pré-existente, uma vez que sua estrutura foi sendo criada conforme foi se elaborando a

campanha. Freire salientou que o importante no caso de Guiné-Bissau era a busca pela

29 (FREIRE, 1977, p. 112)

103

harmonia entre o que se pretendia com a educação de adultos e o que se buscava realizar com

o sistema regular de ensino do país (FREIRE, 1977, p.43).

É interessante salientar que, quer do ponto de vista das FARP, quer do Comissariado de Educação, a alfabetização era tomada como um ato político, em cujo processo os alfabetizandos se engajam com os alfabetizadores enquanto militantes no aprendizado da leitura e da escrita. Posição, de resto, em total coincidência com a nossa. Os problemas, pois, não se punham ao nível da visão correta do processo, mas ao nível de sua concretização (FREIRE, 1977, 29).

Mas, então, quais foram os problemas enfrentados na concretização? Primeiramente, a

tentativa de usar a euforia da população após a independência para promover uma campanha

de alfabetização em massa, dotando o povo, que era majoritariamente analfabeto, das técnicas

da leitura e da escrita e envolvê-los dentro desse processo que chamavam de “luta pela

reconstrução nacional” acarretou, ao contrário do planejado, uma centralização da campanha

que partia da capital. Acrescido a isso essa centralização levou a escolha das palavras

geradoras para todo território nacional, o podemos considerar uma temeridade em um trabalho

desenvolvido na perspectiva freireana, tendo em vista que nela o aprendizado deve partir do

universo vocabular do educando e não sair de uma resolução dentro de um gabinete. Os

alfabetizadores, que não tiveram o preparo adequado, outro problema na implementação do

programa, tinham autonomia para adaptar as palavras geradoras de acordo com a realidade

que estivessem trabalhando, entretanto, isso não foi suficiente para solucionar o que

consideramos um dos grandes empecilhos na concretização do projeto, a falta de

entendimento da população da necessidade de se aprender a ler e a escrever para o tipo de

vida que levavam (GERHARDT, nº 35 jul/ago 1980, 114). Alterar o projeto de alfabetização

e começar com a pós-alfabetização, como foi proposto por Freire e pela do IDAC, era uma

tentativa, através do retorno à oralidade, costume em que se embasam as práticas dos povos

africanos, de promover através da reflexão o entendimento de que aquele país vivia um novo

104

momento e, portanto, era necessária a adoção de novas práticas e costumes. Práticas e

costumes que formariam uma nova cultura nacional.

Nos objetivos gerais do sistema de ensino educacional guineense definido nas palavras

de ordem gerais do PAIGC, em novembro de 1965; e, reafirmado no III Congresso do

PAIGC, em 1977, vemos que era pretendida a transformação dos princípios do partido em

convicção pessoal e hábito da conduta cotidiana da população, o desenvolvimento de uma

consciência nacional ‘favorável’ ao desenvolvimento do país e a fomentação de “elevados

gostos estéticos” e sentimentos humanos. Esses elementos seriam fundamentais, no

entendimento do PAIGC, para a formação dessa nova cultura nacional. Evidencia-se aí um

excesso de diretividade do partido, o que no nosso entendimento inviabiliza uma educação

para a liberdade.

O desejo de combater o analfabetismo presente desde o período da luta pela

independência na plataforma política do PAIGC não foi concretizado a contento, ou seja, não

chegou ao índice pretendido por falta de uma seqüência na organização no âmbito

governamental. O golpe de Estado de 1980 e da desorganização central, fruto deste golpe,

atrelado a falta de vontade política acarretou uma crise no sistema de ensino (Cf. CÁ, 2008,

149).

O sistema que se impôs de facto depois do acesso à independência revelou ser um compromisso entre a herança colonial e as tentativas de inovação sucedidas nas zonas libertadas. A nova abordagem que dominara os primeiros anos da década de 70 e que via a educação ao serviço de uma nova sociedade, um novo homem, uma nova nação, um novo modelo de desenvolvimento não conseguiu vingar. As experiências que deviam contribuir para uma integração entre a escola e a comunidade tais como a Escola de Formação de Professores Máximo Gorki de Có, que devia servir como um centro de animação sócio-política para a comunidade local e de pesquisa em todos os aspectos da vida económica, social, política e cultural das populações locais, ou o Centro de Educação Popular Integrado, que devia formar professores em estreito contacto com a comunidade, foram sol de pouca dura. A educação que se instituiu foi uma educação baseada em modelos ocidentais que pouco têm a ver com a realidade sócio-cultural do país. A aposta é feita na língua do colonizador em detrimento das línguas

105

locais. A própria política de desenvolvimento é voltada para a ‘recuperação’ do atraso acumulado em relação à Europa (CARDOSO, 1998, p.95).

Apesar do governo guineense também preferir como Freire o rompimento total com a

herança colonial, a falta de verbas e de infra-estrutura impossibilitou a transformação radical

pretendida, posto que, o investimento necessário para se descartar o que já existia era

demasiado alto. A prática desenvolvida no período da luta armada foi se enfraquecendo aos

poucos. Temos que reconhecer que o PAIGC procurou fazer o possível diante da

impossibilidade de se fazer o que se pretendia, mas esta tentativa não foi suficiente para

implantação da educação para liberdade e para formação da nação e da identidade nacional

como fora vislumbrada. Além disso, a vinculação dos interesses políticos partidários à

organização das instituições públicas atrapalhou o funcionamento dos serviços do Estado, na

medida em que tinha que se esperar pelas decisões político-partidárias para implementação

das medidas na prática, o que gerou um caos generalizado (Cf. CÁ, 2008, p. 146).

No próximo capítulo aprofundaremos o debate sobre a criação de uma identidade

nacional e o problema da escolha da língua no sistema de ensino. Amílcar Cabral acreditava

que a língua servia somente para a comunicação e por isso considerava a única herança

positiva deixada pelos colonizadores. Já Paulo Freire via a língua como um instrumento de

dominação e, por conseguinte, considerava inaceitável a determinação do partido de

alfabetizar a população em português. Será a partir deste conflito entre Paulo Freire e o

governo guineense que debateremos a idéia da construção de uma identidade nacional com o

auxílio do sistema de ensino.

106

CAPÍTULO 3 – O MÚLTIPLO E O UNO: TENSÕES DE UM NOVO PAÍS

Neste capítulo, abordaremos o debate acerca da construção de uma identidade nacional

a partir da idéia de Amílcar Cabral que era a criação da unidade na diversidade. Essa

discussão suscita a reflexão sobre a dominação via aparato lingüístico. Este é o único ponto de

divergência entre o pensamento de Freire e o líder da luta pela independência de Guiné-

Bissau e Cabo Verde. Para Amílcar Cabral a língua portuguesa era a única herança positiva

do colonialismo e para o educador brasileiro a manutenção da língua reforçaria a dominação,

uma vez que a linguagem reflete o pensamento dos diferentes grupos sociais. Assim sendo,

trabalharemos a questão da escolha da língua no programa nacional de alfabetização de

adultos e as implicações dessa opção.

Freire, no livro Cartas à Guiné-Bissau, faz um paralelo entre o Brasil e a África e as

aproximações são marcadas a partir dos elementos que o autor aponta sentir saudade em sua

terra natal. Podemos dizer que o educador aponta semelhanças nas identidades e, por isso, diz

se sentir tão a vontade, uma vez que a África quase o faz se sentir em casa. O grifo no termo

quase revela um ponto importante na construção das identidades, posto que por mais

semelhantes que as duas culturas possam ser, elas, necessariamente, têm traços distintivos,

que as tornam únicas.

Freire explicita, no mesmo livro, os motivos da publicação antes do término da

experiência e a razão pelo qual aceitou trabalhar com o governo daquele país. Ao afirmar que

a ajuda só poderia ser firmada a partir da igualdade nas relações, Freire explica porque

defendia que o PAIGC não estava construindo a nação, mas sim reconstruindo-a, uma vez que

em seu entendimento aquele grupo só partia do zero nas condições materiais.“(...) De

reconstrução, digo bem, porque a Guiné-Bissau não parte do zero, mas de suas fontes

107

culturais e históricas, de algo de bem seu, da alma mesma do seu povo, que a violência

colonialista não pode matar” (FREIRE, 1977, p. 16).

Esta negação do passado colonial é típica dos movimentos de independência, uma vez

que a busca pelo rompimento com o modelo europeu era a tônica para formação da nova

identidade. Eles pensavam que a renegação do passado era importante para a construção de

uma nova cultura e não levavam em consideração que era impossível o rompimento total com

a herança colonial, uma vez que traços culturais europeus já tinham sido incorporados ao

cotidiano guineense. Essa postura no período posterior a independência é condizente, já que

estavam no processo de construção da identidade. Aos poucos não só os guineenses, como os

africanos em geral, perceberam a inviabilidade desta proposta e mudaram sua perspectiva.

Podemos fazer um paralelo desta situação com o da historiografia. Carlos Lopes aponta que a

produção historiográfica sobre a África feita pelos não africanos, principalmente antes da

independência, mas também após, dicotomizava esta sociedade criando relações de oposição

como tradicional versus moderno, oral versus escrito, etc. As análises sobre o continente

africano reforçavam a idéia colonial da inferioridade daqueles povos. Em contraposição ao

grupo não africano, logo após as independências naquele continente, a historiografia africana

feita por africanos queria mostrar a superioridade daqueles povos e daquelas culturas. Lopes

chama este movimento de pirâmide invertida e aponta que Ki-Zerbo foi um dos precursores

desse movimento que afirmou que a África também tinha história. O momento seguinte a esta

inversão foi chamada por Lopes de momento em que as “emoções estão controladas” e que a

produção historiográfica da pirâmide invertida seria substituída pela historiografia da nova

escola. Em outras palavras, após delinear os primeiros contornos da historiografia africana a

partir do rompimento com a historiografia tradicional, seria o momento de uma escrita da

história africana mais ‘equilibrada’ (LOPES, n. 18, jul. 94, p. 13). Esse adendo tem uma dupla

função, qual seja, a primeira foi traçar um paralelo com a situação de Guiné-Bissau pós-

108

independência em que o discurso da necessidade de rompimento era exacerbado. A segunda

função também relacionada com a primeira está diretamente ligada a produção textual deste

período que era bem inflamada para mostrar a atuação do partido. Em outras palavras, a

escrita do período logo após a independência pode ser considerado como a pirâmide invertida.

Retornando ao tema central de nossa pesquisa, Paulo Freire parte da premissa de que

as fontes culturais e históricas da Guiné-Bissau não saem do zero. Esta concepção se

sedimentava no que o PAIGC defendia, baseado nas idéias de Amílcar Cabral. Assim sendo,

ambos afirmavam que os portugueses atrapalharam o processo de unificação das etnias, por

isso eles utilizavam o termo reconstrução e não construção, já que acreditavam que os traços

comuns das diversas etnias – denominado por A. Cabral de ‘fundo de cultura comum’, como

vimos no capítulo 2 – se sobreporiam às particularidades, formando-se uma identidade

nacional. A criação de um passado comum e a criação de antecedentes históricos é uma

prática nas construções das nações. Devemos nos interrogar, portanto, se essa aproximação

existia de fato, ou seja, devemos nos interrogar se eles estavam reconstruindo a nação ou

utilizando isso como uma ferramenta para a criação do sentimento de unidade (OLIVEIRA,

1980, p. 77). Como vimos no capítulo 2, a Guiné-Bissau quando se tornou independente

estava bem dividida. Existiam os cristãos e os muçulmanos, além dos grupos de práticas

animistas, os mais claros e mais escuros, os cabo-verdianos e os guineenses, os que estudaram

fora ou não. Vale lembrar que os guineenses tinham uma grande rixa com os cabo-verdianos

por acreditarem que esses estavam com os melhores cargos no governo. Assim sendo, torna-

se bem difícil pensar em uma nação igualitária e em uma identidade nacional, tamanha a

diversidade existente no país.

109

Guineidade

O entendimento das concepções que balizavam a construção da identidade nacional

auxiliará na compreensão do papel da educação e, principalmente da alfabetização de adultos.

Para iniciarmos a discussão sobre a construção da identidade nacional em Guiné-Bissau é

necessário que retrocedamos ao período do movimento de libertação nacional. Além disso, é

fulcral a análise correlata da criação da identidade com a formação da nação, tendo em vista

que para a construção dessa é importante o sentimento de pertencimento ao grupo, ou seja, é

necessária uma identidade comum.

A luta de libertação nacional foi um movimento amalgamador das etnias. A esse

respeito Amílcar Cabral dizia “há 10 anos, nós éramos fulas, manjacos, mandingas, balantas,

papeis e outros... Somos agora uma nação de guineenses” (LOPES, 1987, p. 60). Podemos

perceber que Amílcar Cabral atribui à luta da libertação, a formação de uma consciência

nacional. Este partia da premissa de que “a unidade e a consciência nacionais são essenciais

para o desenvolvimento das estruturas políticas, econômicas, sociais e culturais da nação em

formação” (LOPES, 1987, p. 67). Sua argumentação se balizava no pressuposto de que as

culturas dos africanos eram independentes e autônomas da penetração colonial e isto

legitimava a sua liberdade. Amílcar Cabral dizia que a luta pela libertação nacional era a luta

pela reconquista da dignidade histórica e era a negação histórica imposta pela ocupação

colonial. É importante ressaltar que esse era um discurso político cujo intuito era legitimar a

congregação das étnicas gerando o sentimento de pertencimento a um único grupo e a uma

única entidade que os transcenderia que era a nação.

Neste ponto podemos perceber uma similitude com o pensamento de Paulo Freire que

defendia que era necessário que o povo guineense reconquistasse, nos dizeres deste educador,

sua palavra. A reconquista da palavra, para Freire, era possibilidade da própria definição do

110

povo do seu futuro e o ato educativo requereria o reconhecimento e a assunção da identidade

cultural.

As propostas pedagógicas de Freire partem da identidade e para ela convergem a partir da defesa da autonomia, inaugurando-se como compromisso com dos homens consigo mesmos, com sua identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e a de classe (GUSTSACK IN: STRECK, REDIN, ZITKOSKI, 2008, P. 220).

Freire na experiência guineense não trata de maneira direta da questão da identidade

nacional, mas encontramos em sua obra essa idéia de identidade cultural como necessária para

o ato educativo. Para que acontecesse a alfabetização freireana era premente uma identidade

cultural, até mesmo porque as palavras geradoras e os temas de debate eram retirados da

prática cotidiana do grupo. Nesse sentido, a campanha nacional de alfabetização de Guiné-

Bissau era um desafio, posto que ao mesmo tempo que se procurava alfabetizar se procurava

sedimentar essa identidade cultural ou nacional.

Sobre a formação da identidade, Amílcar Cabral dizia que esta tinha um caráter

dialético e que “consistia no facto de que um indivíduo (ou um grupo) só é semelhante a

certos indivíduos ou grupos se é também diferente de outros indivíduos (ou grupos), o que faz

da estrutura social o grande sustentáculo da cultura” (LOPES, 1987, p. 60).

A identidade diz o que um grupo é em contraposição aos outros. “Quando uma pessoa

tem identidade, está situada, isto é, disposta na forma de um objeto social pelo conhecimento

de sua participação ou filiação nas relações sociais” (GUIBERNAU, 1997, p. 82). Guibernau

aponta que a identidade cumpre três funções principais, quais sejam, ajuda a fazer escolhas,

torna possíveis as relações com os outros e confere força e capacidade de adaptação. A

identidade nacional, segundo a autora, confere força e poder de adaptação aos indivíduos,

porque reflete a identificação deles próprios com uma entidade, a nação, que os transcende. O

PAIGC pretendia a formação da identificação daquele grupo, como forma de demarcação de

seu posicionamento no cenário mundial.

111

Na construção de uma identidade estão implicadas a definição de quem somos em

contraposição de quem não somos, delimitando, assim, critérios de pertencimento ao grupo.

A identidade e a diferença estão estreitamente ligadas a sistemas de significação, posto que a

identidade é um significado culturalmente atribuído (SILVA, 2000, p. 89). Essa determinação

do que faz parte da identidade de um grupo e o que fica de fora significa dividir o mundo

entre nós e os outros, a partir de classificações. “Dividir e classificar significa, neste caso,

também hierarquizar. Deter privilégio de classificar significa também deter o privilégio de

atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados” (SILVA, 2000, p. 82). Woodward

complementa esta idéia afirmando que

todas as práticas de significação que produzem significados envolvem relações de poder, incluindo o poder de definir quem é incluído e quem é excluído. A cultura molda a identidade ao dar sentido a experiência e ao tornar possível optar, entre as várias identidades possíveis, por um modo específico de subjetividade. Somos constrangidos, entretanto, não apenas pela gama de possibilidades que a cultura oferece, isto é, pela variedade de representações simbólicas, mas também pelas relações sociais (WOODWARD, 2000, p. 19).

Para pensar na identidade nacional em Guiné-Bissau é primordial a reflexão sobre o

mosaico étnico que forma aquele país, delimitado por fronteiras arbitrárias definidas pelas

potências imperialistas. Guiné-Bissau é um país heterogêneo e não possui elementos em seu

passado que façam emergir o sentimento de unidade, lealdade e pertencimento. Cada etnia

possui sua própria história, seu próprio passado e não se pode falar de um passado comum

entre as etnias, em termos de ‘país’ (AUGEL, 2007, p. 266). Nesse ponto podemos nos referir

a Eric Hobsbawn que aponta as identidades nacionais como tradições inventadas ou a

Benedict Anderson que chama as nações de comunidades imaginadas. A luta pela

independência foi um dos fortes componentes utilizados para a criação destes sentimentos

fundamentais para a criação da nação. Carlos Lopes chama a atenção para que foi justamente

o Movimento de Libertação Nacional (MLN) que conseguiu essa conjugação étnica que

qualificou de notável. “O MLN conseguiu uma conjugação interétnica notável. Durante a luta

112

armada as diferentes etnias partilharam a causa comum. Desenvolveram a interacção.

Acreditaram nas mesmas palavras de ordem. Descobriram cumplicidades colectivas”

(LOPES, 1987, p. 61). Durante a luta existiu uma conjugação interétnica, o que não significa

dizer que se criou uma identidade comum, na medida em que esta conjugação tinha um fim

muito bem delineado que era a expulsão dos portugueses da Guiné. Lopes afirma que o

movimento de libertação nacional não tinha outro jeito para obter êxito se não fosse através da

formação da consciência nacional. Era preciso que se formasse um quadro teórico que

balizasse a luta. “O PAIGC não adotou pela continuidade e legitimou a ruptura” (LOPES,

1987, p. 62). Durante a luta este foi o posicionamento e este foi o discurso adotado após a

independência, momento em que o PAIGC assumiu o governo e conseqüentemente o papel de

Estado. Entretanto, ao exercer esta função o PAIGC viu a impossibilidade do rompimento

total e manteve a estrutura colonial e como mostramos, na educação foi procurado alterar os

currículos principalmente das disciplinas humanas, como história e geografia, por exemplo.

Em outras palavras, o PAIGC enfatizou a ruptura, mas em sua gestão houve continuidades.

Cabral dizia que um grupo de homens formaria um grupo étnico ou uma raça ou

qualquer outra coisa, na medida em que enfrentassem problemas comuns e tivessem as

mesmas aspirações (LOPES, 1987, p. 62). Nesse sentido, é de fácil compreensão que durante

a luta pela libertação do território guineense tenha existido uma espécie de solidariedade

nacional, posto que a saída dos portugueses era desejada pela maioria da população.

Entretanto, após a saída dos portugueses a manutenção dos laços firmados durante a luta se

tornou mais difícil, na medida em que o objetivo que tinha levado a criação desses laços já

havia sido alcançado. O governo pretendia que a interação entre os grupos étnicos continuasse

após a independência do país para a construção e consolidação da nação guineense. Encontrar

uma maneira pela qual houvesse a interação inter-étnica no território guineense foi a árdua

113

tarefa que o governo daquele país se confrontou durante os primeiros anos após a

independência, ou melhor, que se confronta até os dias atuais.

No entendimento de Amílcar Cabral, a identidade nacional seria criada a partir da

reafricanização da mentalidade dos assimilados. Para ele, a massa popular era depositária da

cultura e no processo de auto-identificação dos assimilados, através do suicídio de classe,

acabaria se construindo a identidade nacional. Esta se formaria a partir do grupo social que

fosse capaz de globalizar a cultura. E como apontamos anteriormente a luta foi feita pelos

quadros urbanos. O grupo que deveria reafricanizar sua mentalidade e que ao contrário em

alguns passou por cima do campesinato.

Resumindo, a consciência nacional serviu sobretudo para lançar um novo peão no jogo: o estado. ‘Ela deixou surgir esse novo sujeito histórico na cena política – diz-no Béji. É uma resposta radical à colonização, mas ele mesmo torna-se uma nova interrogação. Será que é somente uma vítima histórica ou produzirá igualmente o seu próprio sistema de opressão (LOPES, 1987, p. 64).

A questão suscitada por Lopes além de pertinente é fonte de reflexão na medida em

que aponta o cuidado que o partido que assumiu o governo deveria ter para não produzir

situação de dominação semelhante ao período colonial, tendo em vista que tinham lutado

tanto para se libertar.

Após a independência, o PAIGC indicava que a criação de uma identidade nacional

era importante para o recrutamento da população para a participação no projeto de nação que

eles ambicionavam. O Partido pretendia criar um sentimento de unidade na diversidade.

Devemos nos questionar sobre a possibilidade e os limites dessa tentativa. A criação da

identidade é uma demanda de afirmação, ou seja, é a definição dos traços de identificação do

grupo e, para tanto, o governo queria buscar elementos que fossem constitutivos de todas as

etnias para a formação da nação. Como já foi mostrado, remeter ao passado e a busca por

mitos fundadores são parte do processo de construção da identidade nacional.

114

Assim, como não deve considerar a nação somente como uma unidade política, mas sim como um sistema de representação cultural. É verdade que as instâncias culturais, tais como a língua, a religião, o discurso identitário, fazem parte integrante das culturas nacionais, mas igualmente as representações simbólicas são elementos constitutivos e básicos para a arquitetura desse edifício que é a nação. E as culturas nacionais, prossegue Stuart Hall, ‘ao produzir[em] sentidos sobre a nação, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam o seu presente com o passado e imagens que dela são construídas (AUGEL, 2007, p. 273).

A utilização de símbolos e rituais são essenciais para a manutenção da identidade,

além disto, eles mascaram as diferenças existentes naquele grupo societário e colocam em

destaque a comunidade, criando um sentimento de grupo. A dialética da lembrança e do

esquecimento faz parte do processo de criação e da narração da nação. Assim, o que deve ser

lembrado ou esquecido é definido como forma de criação do sentimento de pertencimento. O

sentimento de pertencimento é forjado a partir de diferentes componentes. Um componente de

destaque é a cultura. A cultura foi muito valorizada por Amílcar Cabral e pelos guineenses

após a independência.

A educação é um dos instrumentos utilizados para a criação dessa homogeneidade

cultural. Tomaz Tadeu da Silva aponta a língua, junto com a construção de símbolos

nacionais como hinos, bandeiras e brasões, como um dos elementos centrais para a criação de

laços que ligam as pessoas de um determinado grupo (SILVA, 2000, p. 85). A definição da

língua nacional e, conseqüentemente, da língua em que se processaria a alfabetização, era,

portanto, para Guiné-Bissau, um fator de extrema importância. Apesar da língua ser

considerada um dos elementos amalgamadores, naquele país, ela representava mais uma fator

de insegurança como elemento de auto-identificação dos guineenses. O português, embora

tenha sido adotado como língua oficial não era e ainda não é nem minimamente adotado pela

população. O crioulo é falado pela maioria e, por isso, pode ser considerado um elemento

aglutinador e de identificação, apesar do seu domínio se concentrar mais na capital e nos

centros urbanos.

115

Augel (2007, p. 27) afirma que falta na Guiné-Bissau o “projeto Guiné-Bissau” em

que se desenvolvam mecanismos desencadeadores do sentimento de pertencimento. A autora

diz que a grande preocupação de Amílcar Cabral que se fundava na valorização das diferenças

culturais étnicas, cuja soma seria a cultura nacional, está sendo desvirtuada. O pensamento de

Cabral é usado como um discurso autopromocional, mas na prática não se aplica sua teoria.

Procurou-se, nos primeiros anos de independência, infelizmente sem êxito, promover o gosto

pelo pertencimento ao território e também nutrir o sentimento de coletividade em prol do bem

comum. Apesar do PAIGC colocar que pretendia através da educação buscar elementos que

fossem constitutivos de todas as etnias, vemos na alfabetização de adultos, que foram usadas

palavras geradoras que remetiam a luta pela independência, reforçando o esforço daquele

grupo para sua libertação. Ao mesmo tempo que parece contundente o uso de palavras como

povo, luta, guerra, esse foi um dos fatores de desmobilização e falta de interesse dos

educandos.

Paulo Freire buscou, com a alfabetização de adultos, repensar a história daquele grupo

que há pouco se libertara do colonialismo. O intuito era a formação de um novo homem e

uma nova mulher que através da alfabetização se engajassem na luta pela “reconstrução”

nacional. Este educador visava reinventar a educação para a construção de uma cultura

nacional popular. Freire afirma que a cultura nacional está atrelada a cultura erudita e que esta

se contrapõe à cultura popular, sendo a segunda vista como uma corruptela da linguagem

formal. Para aplacar esta desigualdade o autor defendia a reinvenção da linguagem e a criação

de um projeto de cultura nacional popular em que os antagonismos sociais fossem superados

(FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 95-6). O educador brasileiro defendia que a introjeção de

valores da cultura dominante – no caso de Guiné-Bissau, a dos colonizadores – era um

fenômeno social e cultural e que sua extrojeção demandava uma transformação através de

116

uma ação cultural30 (FREIRE, 1981, p. 44). Para tanto, Freire defendia, como já foi

evidenciado anteriormente, que o povo guineense deveria conquistar sua palavra.

Para este educador a educação é um ato político e serve para a transformação ou para a

manutenção da ordem social.

Veremos mais adiante que a realidade pode ser mudada de modo revolucionário só porque e só na medida em que nós mesmos produzimos a realidade, e na medida em que saibamos que a realidade é produzida por nós. A diferença entre a realidade natural e a realidade humano-social está em que o homem pode mudar e transformar a natureza; enquanto pode mudar de modo revolucionário a realidade humano-social porque ele próprio é o produtor desta última realidade (KOSIK, 1995, p. 23).

Assim sendo, Freire defendia que a teoria deveria orientar a prática e esta deveria

reorientar a teoria num permanente processo de aperfeiçoamento. A metodologia de ensino

deste educador parte da premissa de que o ensino necessariamente está atrelado à melhoria da

vida da comunidade, por conseguinte, uma pessoa que não é da comunidade não pode definir

o que faz parte ou não do processo de ensino-apredizagem do grupo.

A assunção da identidade cultural tomada como pressuposto às práticas educativas remete a educação ao patamar de ação cultural para a transformação, mudança e liberdade. Faz-nos lembrar como propõe Silva ao discutir o conceito de identidade cultural em Stuart Hall, que também a história, em seu passado-presente-futuro, é mutável e fluida porque assumem-se como mutantes os sujeitos. Ou seja, ‘ao ver a identidade como uma que de tornar-se, aqueles que reivindicam a identidade’ não se limitam, não se fixam a ela e por ela com seus valores. Ao contrário, percebem que seus valores se transformam tornam-se capazes de ‘posicionar a si próprio e de construir e transformar as identidades históricas, herdadas de um passado comum (GUSTSACK IN: STRECK, REDIN, ZITKOSKI, 2008, P. 220).

Freire queria com a educação e com a alfabetização de adultos transformar o mundo e

construir novas identidades culturais, por isso ele e o PAIGC defendiam tanto a idéia da

formação de um novo homem e uma nova mulher. Ambos partiam do entendimento que os

membros do PAICG, por serem militantes do período da luta, seriam os intelectuais mais

adequados para a formulação do projeto, uma vez que conheciam, por viverem, a realidade do

30 FREIRE, Paulo. Ação cultural para liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981 p. 44

117

país. Percebemos aí que o projeto da construção da nação guineense estruturava-se no período

da luta e que Freire compartilhava desta compreensão sem refletir sobre as necessidades

peculiares de cada etnia. Outro ponto em comum no pensamento deles, fruto da concepção

marxista que embasava suas posturas de mundo, era a idéia da necessidade de uma vanguarda

para a implantação do projeto. O que ocorreu de fato foi a saída dos portugueses para os luso-

africanos assumirem o lugar.

Além do massacre de Pidiguiti, tradição inventada como marco de origem da nação

guineense pelos luso-africanos, outro fator de identificação do povo era o crioulo.

Vimos o kriol utilizado como factor de auto-identificação, reforçando de algum modo identidade face a um projecto de dominação e aculturação colonial. A interpenetração de tradições orais indígenas no kriol desenvolveu, ainda que em contextos limitados, o potencial de mediar entre grupos e, implicitamente, tornar-se uma fonte de identidade nacional. (...) A tradição kriol oferecia o simbolismo da revolução, fornecia o ‘código secreto’ da comunicação clandestina, e permitia a criação de uma ‘comunidade imaginada’ nacional (KING, 2003, p. 138).

O crioulo foi usado durante o período da luta como língua de mobilização popular, da

coesão social e da reivindicação dos valores africanos (KING, 2003, p. 140). Mais do que

isso, “o crioulo era a síntese cultural elaborada numa situação de opressão” (AUGEL, 2007, p.

289). Podemos perceber a partir disso, que o crioulo se tornou um traço identitário realçado na

luta. A partir disso, torna-se mais difícil compreender os motivos que impulsionaram o

PAIGC a definir o português como língua a ser utilizada no sistema de ensino. O crioulo

como síntese cultural era uma ferramenta fundamental para a criação da identidade nacional,

ao contrário do português que representava o ex-colonizador.

Além deste problema, qual seja, da escolha da língua em que se processaria a

alfabetização, Freire comenta no livro A África ensinando a gente31 a dificuldade e o esforço

que a “reconstrução nacional” requer:

31 GUIMARÃES, Sérgio, FREIRE, Paulo. A África ensinando a gente: Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe. São Paulo: Paz e Terra, 2003

118

Quanto mais eu me meto no esforço da reconstrução nacional, tanto mais eu descubro o óbvio: Quão difícil é realmente reconstruir uma sociedade! Criar uma sociedade nova, que vai gerar um homem novo e uma mulher nova! E aí a gente percebe, na verdade, como isso não tem nada que ver com os mecanicismos, que não tem nada que ver com espontaneímos, nem tampouco com voluntarismo. Mas, pelo contrário, isso demanda uma consciência política clara, que se vai clarificando mais na práxis política, fora da qual não há caminho, eu creio, não há solução. (...) Mas exatamente porque isso não é mecânico, mas sim dialético, em certos casos a educação anuncia o mundo a transformar-se, mas é preciso que esse mundo se transforme realmente para que o anúncio que a educação faz não caia no vazio. Isso tudo exige rigor de estudo, capacitação de quadros, o desenvolvimento econômico e social do país, tudo a um só tempo! Não é fácil (GUIMARÃES, 2003, p. 41-2).

Neste trecho, Freire usa de maneira não crítica o adjetivo nacional, posto que o utiliza

como sinônimo de social. Em outras palavras, Freire não faz uma reflexão profunda acerca do

que significa construir uma nação, talvez esta também tenha sido uma das dificuldades que

impossibilitaram o êxito do projeto da alfabetização, na medida em que talvez o educador não

tenha conseguido compreender algumas motivações do partido e isso tenha influenciado de

maneira negativa na determinação de alguns dos seus posicionamentos.

Freire defendia que a luta da “reconstrução nacional” era a continuidade da luta de

libertação e que o problema da identidade cultural estava presente neste debate. Ele usava a

frase de Amílcar Cabral para ilustrar esse problema, dizendo que “a luta de libertação é um

fato cultural e um fator de cultura.”

A luta de libertação é um fato cultural na medida em que é um produto daquela cultura

– um evento histórico – e é um fator de cultura, posto que induz a transformação, modificando

o ambiente em que emergiu o fato cultural. Ou seja, cria novas configurações culturais.

Podemos perceber que o governo de Guiné-Bissau pretendia utilizar a alfabetização

como ferramenta para a criação de uma identidade nacional do povo guineense. A

alfabetização em massa tinha o objetivo de ressaltar a cultura local32, criando uma identidade

32 A utilização do termo cultura no singular neste trecho tem o intuito de demarcar o posicionamento tanto do Freire quanto do PAIGC, que pretendiam através da homogeneização a criação da identidade nacional. Vale lembrar que não concordamos com esta postura e entendemos que em Guiné-Bissau existem diversas culturas.

119

nacional, para que os ideais do colonizador fossem esquecidos. O partido utilizava o termo

cultura no singular para demarcar seu posicionamento, ou seja, era buscada uma

homogeneização para criação da identidade. É possível homogeneizar respeitando as etnias?

Este posicionamento do governo parece evidenciar uma contradição em seu próprio discurso,

ou pelo menos, uma falta de reflexão aprofundada sobre a maneira pela qual se implantaria a

unidade na diversidade.

Unidade na diversidade: possibilidades e limites

Até o momento, tratamos a questão da unidade na Guiné-Bissau refletindo sobre a

possibilidade da criação da identidade somente no interior do território guineense. É

necessário, entretanto, apesar de não ser o foco desta dissertação, refletir um pouco sobre a

unidade de Guiné-Bissau e Cabo Verde, tendo em vista que até 1980 a tentativa de criação do

sentimento de pertencimento ao grupo era buscado não só no território guineense, mas

também entre os dois países.

A unidade entre Guiné-Bissau e Cabo Verde era pensada a partir das aproximações

históricas e da língua comum – o crioulo. Apesar de existirem correntes guineenses anti cabo-

verdianas, estas não tiveram grande expressão política. Amilcar Cabral defendia que Guiné-

Bissau e Cabo Verde eram um só pela natureza, história, geografia e pela tendência

econômica. Ele fundamentava a união primordialmente nos laços de sangue e nos laços

históricos. O povoamento das ilhas de Cabo Verde começou em 1461 e foi feito

principalmente com escravos vindos da Costa da Guiné. Até 1879, Portugal manteve as duas

colônias sob a mesma organização e administração.

Um resumo que não será abusivo, permitirá dizer que, durante mais de três séculos, sob a autoridade colonial portuguesa, a actual Guiné-Bissau e as ilhas de Cabo Verde, cuja população tem a sua raiz fundamentalmente

120

nessas paragens, estiveram ligadas através de uma união orgânica formal (RIBEIRO, 1983, p. 28).

Geograficamente, Amílcar Cabral defendia que os dois territórios eram complementares,

posto que Guiné-Bissau não tem montanhas e Cabo Verde são ilhas vulcânicas (RIBEIRO,

1983, p. 31).

A noção de complementaridade usada no âmbito geográfico foi pensada também no

âmbito econômico. Após a independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde conquistadas em

1974 e 1975 respectivamente, a unidade política dos dois países foi uma decisão político-

partidária e a integração econômica foi pensada a partir da idéia da complementaridade das

economias, apesar de Aristides Pereira, secretário-geral do PAIGC, em 1978, afirmar que a

definição de uma estratégia bi-nacional de desenvolvimento consistia na aceitação de

situações pontuais de concorrência (RIBEIRO, 1983, p. 47).

A gestão de Luis Cabral foi bem conturbada e nela foram assassinados vários líderes

que participaram da luta. Uma grande crise em 1980 levou a deposição de Luis Cabral, em 14

de novembro, com um golpe que dizia ter o intuito de salvaguardar a unidade nacional e os

ideais revolucionários. Pouco tempo depois da posse de Nino Vieira, líder do Movimento

Reajustador, que executou o golpe, efetuou-se a separação entre Guiné-Bissau e Cabo Verde,

em 1981 (AUGEL, 2007, p. 63).

Voltando a refletir sobre a questão da unidade, para Amílcar Cabral esta só poderia

existir atrelada a noção diferença. Para ele só havia necessidade de unir o que era diferente,

tendo em vista que se fosse igual, já seria uno. “O fundamento principal da unidade reside na

diferença entre as coisas. Se estas não forem diferentes, não é preciso fazer unidade; não há

problema de unidade” (CABRAL, 1978, p. 118). Cabral usou como representação da unidade

um time de futebol. Sua argumentação era de que os onze jogadores mesmo sendo diferentes

tinham uma aspiração comum que era ganhar o jogo e tinham que fazer isso necessariamente

121

em conjunto. Cada um preservaria sua personalidade, idéias, problemas, mas formariam uma

unidade agindo em conjunto para a concretização do objetivo (CABRAL, 1978, 118).

Quer dizer que o problema da unidade surge na nossa terra, repito, não por causa da necessidade de juntar pessoas com pensamentos políticos diferentes, mas sim de juntar pessoas com situação económica diferente, apesar de essa diferença não ser tão grande como noutras terras que possuem uma situação social e culturas diferentes, inclusive a religião (CABRAL, 1978, p. 119).

No interior da Guiné-Bissau, para pensarmos nas possibilidades e limites da criação da

unidade na diversidade é premente não esquecermos o conglomerado de etnias que compunha

e ainda compõe aquele país e as relações de poder que ali foram estabelecidas.

Como vimos, o território guineense é composto por diversas etnias que possuem suas

próprias culturas com suas próprias línguas. É difícil precisar o número de grupos que

convivem naquele território, posto que, existem grupos e subgrupos e os critérios para a

quantificação destes variam bastante, como foi evidenciado no primeiro capítulo. O que se

pode afirmar é que este número é superior a 20. Podemos dizer que as etnias mais numerosas

são os Balantas somando 27% da população, os Fulas somando 22%, os Mandinga com 12%,

os Mandjaco com 11% e os Pepel ou Papel com 10%. É importante ressaltar que há uma

grande diferença entre os povos que vivem no litoral em relação aos que vivem no interior. Os

mandinga e os fulas, por exemplo, são povos que vivem no interior. Estes grupos dedicavam-

se majoritariamente ao comércio. Em contrapartida, os grupos do litoral, como os Balanta e os

Brame33, por exemplo, eram agricultores (AUGEL, 2007, 77). Os grupos islamizados, que

mais negociaram com o governo colonial resistiram mais a tentativa de criação da identidade

comum e da nação, diferentemente dos grupos animistas que participaram da luta e estiveram

mais abertos as incursões do PAIGC. Sedengal é um exemplo de uma área que participou

33 Augel aponta que os Brame são subdivididos em Mandjaco, Pepel e Mancanha (p.77), já Jauará diz que Brames é sinônimo de Mancanhas. (p. 7)

122

ativamente da luta pela independência e após esta ser conquistada participou também

ativamente nas propostas do governo e por isso foi uma experiência piloto considerada de

sucesso na Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos.

Para Amílcar Cabral a unidade era um meio de concretização do plano de

independência e da possibilidade da autodeterminação dos territórios africanos e não a

finalidade do mesmo. Augel aponta que atualmente as relações interétnicas, diferentemente do

período desse estudo, são pacíficas e apesar das culturas serem controladas por um sistema

estatal dominado pelo grupo crioulo da capital (os luso-africanos), há espaço para a

diversidade cultural, principalmente nas atividades religiosas e domésticas (AUGEL, 2007, p.

78).

Como vimos, Amílcar Cabral pontuou que a diferença estava mais na economia do

que na cultura e que a permanência de posições sociais distintas possibilitava a preservação da

dominação de um grupo sobre o outro.

Nós lutamos para libertar o nosso povo, não só do colonialismo, mas de toda a espécie de exploração. Não queremos que ninguém mais explore o nosso povo, nem brancos, nem pretos. Porque a exploração não só os brancos que a fazem, há pretos que querem explorar ainda mais que os brancos (CABRAL, 1978, p. 35).

Amílcar Cabral considerava que o suicídio de classe era primordial para a viabilidade

da construção de uma nação igualitária. Os assimilados à cultura portuguesa tinham aprendido

a administrar o aparelho de Estado por sua condição “semi privilegiada” na sociedade

colonial, mas ao mesmo tempo sentiam a discriminação presente no colonialismo. O suicídio

representava a perda dos privilégios e Cabral sabia que existiria os que não abririam mão e,

em seu entendimento, estes trairiam a revolução. “E se nós, amanhã, trairmos os interesses

dos nossos povos, não será porque não o soubéssemos. Será porque quisemos trair e não

teremos, então, qualquer desculpa” (CABRAL apud CABRITA, 1999, p. 163) Consideramos

importante fazer um parêntese acerca do uso do vocábulo povos no plural. Ribeiro aponta que

123

Amílcar Cabral usava indiscriminadamente o singular e o plural para se referir a cultura,

povo, nação, país e território e que isto não representa uma imprecisão em sua teoria, mas ao

contrário reforçava o enraizamento em seu pensamento da noção de unidade (RIBEIRO,

1983, p. 39).

Mudando um pouco o foco do nosso debate, refletiremos sobre quem são os

analfabetos em Guiné-Bissau para mapear quais foram os grupos ou espaços sociais que

foram “esquecidos” pela escola. Relacionaremos em seguida a argumentação aqui produzida

com a questão da identidade nacional e a campanha de alfabetização de adultos, assim como

trabalharemos de maneira aprofundada a questão da dominação via aparato lingüístico.

Apesar de nos primeiros anos após a independência, através do esforço de se realizar

em pouco tempo o que o colonialismo não havia feito no tempo em que lá esteve, a oferta

educativa ter crescido grandemente, o acesso ao sistema educativo era desigual, não só em

relação ao gênero, mas também as etnias (MONTEIRO, nº 1 jan 1997, 49). O censo de 1979

mostrou que “os recursos do país em indivíduos instruídos ou em vias de o serem incidiam

sobre o sexo masculino e sobre os centros urbanos” (MONTEIRO, nº 1 jan 1997, 35). Em

outras palavras, o investimento era pequeno nas mulheres e nas zonas rurais do país.

Todo esse conjunto de características identificadas em 1979 convergiam na conclusão de que, apesar dos esforço despendidos desde 1974 – a independência total – muito restava ainda por fazer para mudar a face do país relativamente ao nível da instrução dos seus habitantes (MONTEIRO, nº 1 jan 1997, p. 35).

Se os camponeses e as mulheres eram os grupos menos instruídos, entre as etnias

podemos apontar que, ao contrário do que se imaginaria, as etnias animistas, apesar da

resistência à dominação colonial, forneceram o maior número de alunos às escolas oficiais, já

os fulas e os mandingas que eram mais propensos a falar português devido a sua aproximação

com o governo colonial foram mais resistentes ao ingresso nas escolas coloniais, posto que

tinham suas próprias escolas e sua crença muçulmana era diferente das dos portugueses.

124

Assim sendo, os fulas, mandingas, no interior, e os balantas no litoral são os grupos com

maior número de analfabetos, já os brames e os grupos ditos mistos ou sem etnias

(assimilados) são os com maior índice de instrução (MONTEIRO, nº 1 jan 1997, p. 49). É

interessante perceber que o grupo que era o maior produtor da riqueza nacional – os

camponeses – era o que possuía menor instrução e que tinha menor representação no governo,

como vimos no capítulo 2. Se na teoria a economia e a educação seriam voltadas para o

campo, podemos perceber pelos dados que na prática este plano não se efetivou a contento. A

economia se voltou para a industrialização ao invés da agricultura e a educação teve

importantes experiências que relacionavam a educação ao trabalho produtivo, mas não

duraram muito tempo, além disso, faltou sintonia entre o projeto educativo e o projeto global

de sociedade.

Retomando a discussão da formação de uma identidade nacional a partir da educação e

da construção da unidade na diversidade, é preciso resgatar o que fora debatido no início deste

capítulo para aprofundarmos a idéia de que não possível basear a construção da unidade na

diversidade somente na conjugação interétnica.

Com efeito, o homem africano, cuja diferença essas literaturas afirmam e defendem, é um ser, cultural e psicologicamente, dividido. Busca, porém a sua unidade, quando se liberta dos elementos alienantes que a aculturação lhe trouxe, despindo-se dos atavios descaracterizadores, sem rejeitar, todavia, liminarmente toda a ocidentalização. Reconhece-se que o equilíbrio cultural e psicológico do colonizado e do africano é complexo, na medida em que a assimilação dos valores alienígenas a que esteve sujeito não é toda ela negativa. Por outro lado, dos valores culturais negros a que sua conscientização cívica e política lhe impõe que regresse, nem todos são aceitáveis ou desejáveis, por historicamente anacrônicos ou por inadequação a nova realidade constituída pelo contacto colonial. (TRIGO, s.d, p.70)

Vemos, portanto, que a criação da unidade na diversidade tinha que ser pensada a

partir da interação da conjugação interétnica com a herança colonial. Independente do desejo

do partido de extirpar a herança colonial, isto era impossível, tendo em vista que alguns traços

culturais europeus, pela convivência, já tinham sido introjetados, tendo, inclusive, um grupo

125

formado com esses valores dentro da divisão proposta pelos pesquisadores do INEP daquele

país. As identidades são construídas a partir de valores e códigos sociais formados

coletivamente, por isso, a criação da identidade é um ato político, posto que parte da

idealização das relações sociais que instituem a cidadania. Nesse sentido, é necessário tempo

para que o sentimento de pertencimento se sedimente (AUGEL, 2007, 263).

O interessante no discurso de Amílcar Cabral e do PAIGC é que ao mesmo tempo em

que afirmavam de forma radical que era preciso romper com a herança colonial, afirmavam

que o idioma português era umas das melhores coisas que os colonizadores tinham deixado.

O português é uma das melhores coisas que os Tugas nos deixaram, porque a língua não é prova de nada, mas senão instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros; é um instrumento, um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo.” (MACÊDO, humanidades, p. 37)

Essa contradição gerou alguns problemas para o governo, na medida em que a população que

ia ser alfabetizada não conseguia compreender a necessidade do aprendizado do português,

principalmente porque era defendido que o rompimento com o Portugal era fundamental. Foi

criado pelo partido a idéia de que o uso do português, uma língua não africana, diminuiria os

problemas internos. Isso não deixa de ser verdade, mas a escolha do português favorecia um

grupo, dificultando os que não tinham o domínio desse a ter uma ascensão social, de se

relacionar com o Estado e ter um cargo público. Além disso, diferentemente do que afirmava

Amílcar Cabral estão inscritos na língua traços essenciais da cultura. Da mesma maneira que

Freire possivelmente não compreendia de fato os meandros necessários para a construção da

nação, como vimos no capítulo 2, o governo guineense não compreendia em sua plenitude a

teoria do conhecimento freireana que parte do princípio de que a língua segrega, domina e

também liberta, daí o educador defender que o povo deveria conquistar o direito de

pronunciar a sua palavra, ou seja, de nomear o mundo a sua maneira.

126

Freire dizia que a palavra é um elemento importante de uma cultura, pois é ela que

propicia a nomeação e a reinvenção do mundo. “Na verdade, o processo de libertação de um

povo não se dá, em termos profundos e autênticos, se esse povo não reconquista a sua palavra,

o direito de dizê-la, de ‘pronunciar’ e de ‘nomear’ o mundo” (FREIRE, 1977, p. 145). Freire

complementa dizendo que a imposição da língua do colonizador ao colonizado é uma

condição fundamental para a dominação. “Não é por acaso que os colonizadores falam de sua

língua como língua e da língua dos colonizados como dialeto; da superioridade e riqueza da

primeira a que contrapõem a ‘pobreza’ e a ‘inferioridade’ da segunda” (FREIRE, 1977, p.

145). Apesar disso, o PAIGC, optou pela utilização do português como língua oficial e

determinou que a alfabetização deveria ser ensinada neste idioma.

É importante destacar que os indivíduos, independente dos grupos a que pertencem,

estão rodeados de formações discursivas de toda a sociedade. São essas formações que

conformam o comportamento dos indivíduos na realidade cotidiana. Por isso, Freire

acreditava que a educação era eminentemente política, pois esta é capaz de reelaborar os

discursos podendo reproduzi-los, mantendo, desta forma, a ordem vigente, ou transformá-los

(BACCEGA, 1995, p. 55). A educação nesse sentido, para Freire, tem um papel de destaque,

posto que auxilia na reflexão sobre as relações sociais e propicia a transformação.

Paulo Freire entendia que a atuação de cada membro está delimitada por seu discurso e

que a educação poderia transpor essas barreiras, uma vez que ela serviria para ensinar e tornar

disponível aos indivíduos os diversos tipos de discursos existentes na sociedade. Fica claro,

portanto, que a educação constitui fator capaz de gerar tanto igualdade quanto desigualdade

social. No primeiro caso, através do estudo, os indivíduos poderiam apreender os diversos

tipos de discursos sociais e com isso fazer parte dos diferentes grupos sociais, principio

defendido por P. Freire, que censurava a educação utilizada como ferramenta para a

127

segregação, conferindo poder a quem detém certo discurso e excluindo quem não o

compreende.

Na verdade, os participantes de uma situação comunicativa se reconhecem enquanto indivíduos portadores de certas intenções e disposições mentais a partir dos contextos sociais e não fora deles (Marx, 1973). Será portanto a partir de um certo contexto que um determinado texto poderá ser produzido, contexto esse que atribui papéis para os participantes que deverão se portar adequadamente, realizando certo tipo de ações (STEUERMAN, 1981, p. 2).

Ação que trabalha com os símbolos sociais e sua decodificação, a alfabetização de

adultos, defendida por Paulo Freire, proporciona a entrada dessas pessoas em um novo grupo

– o grupo dos letrados.

A palavra, como pronúncia do mundo, não será um dizer no vazio, de efeito sonoro ou semântico. O "dizer a palavra", em Freire, não é modalidade passiva, ela é a própria existência que, sendo humana, não pode ser muda nem desvinculada de uma práxis (José Barbosa da Silva, site visitado em 08/08/08).

Para Freire o direito de dizer a palavra, saber lê-la e escrevê-la estava necessariamente

atrelada ao entendimento do seu significado, significado este que não estava só no âmbito do

discurso, mas diretamente ligado a prática da vida cotidiana. A educação em geral e, mais

especificamente, a alfabetização de adultos tornaria disponível aos educandos os diversos

discursos sociais e suas conseqüentes maneiras de agir no mundo para que este pudesse

participar dos diversos grupos sociais existentes. Steuerman defende que, apesar da intenção

de Freire ser possibilitar a mudança, este reproduz os papéis institucionais existentes na

educação tradicional e conseqüentemente mantêm a instituição de ensino como reprodutora

social (STEUERMAN, 1981, p. 8).

Como o educador defendia cada experiência é única e impossível de ser transplantada,

assim sendo, é possível certamente em determinados círculos houve na prática a reprodução

social ao invés da transformação. Entretanto, não podemos afirmar categoricamente que esta

seja a tônica do pensamento freireano. Mesmo que muitos círculos de cultura não tenham

128

obtido o resultado esperado, os integrantes das FARP e a experiência realizada em Sedengal

mostram que foi possível refletir sobre a prática cotidiana e alterar as relações sociais

existentes em Guiné-Bissau. Em outras palavras, A Campanha não obteve os resultados

esperados, mas alguns círculos tiveram êxito e colocaram em prática tanto os princípios do

PAIGC quanto os de Paulo Freire.

Freire acreditava que as pessoas estavam num processo de aprendizado e

transformação constante e que por isso poderiam, através da educação, melhorar sua condição

de vida. Por isso, Freire tentava atingir o maior número de pessoas, visando transportá-las de

uma realidade a outra, evitando, ou tentando diminuir a exclusão social.

A educação defendida por Paulo Freire pretende desmistificar os símbolos, fazendo

com que o conhecimento seja gerado na integração aluno-professor e que a construção da

realidade que ocorre cotidianamente se dê sob outras bases. Assim, a linguagem tem um papel

preponderante, pois é a partir dela que os símbolos são criados e recriados e que o

conhecimento se produz e reproduz.

Ana Maria Freire, segunda esposa do educador, mostra que:

O convite de Freire ao alfabetizando adulto é, inicialmente, para que ele se veja enquanto homem ou mulher vivendo e produzindo em uma determinada sociedade. Assim, Freire convida o analfabeto a sair da apatia e do conformismo de ‘demitido da vida’ em que quase sempre se encontra e desafia-o a compreender que ele próprio é também um fazedor de cultura. O ser-menos das camadas populares é trabalhado para não ser entendido como desígnio divino ou sina, mas como uma determinação do contexto econômico-político-ideológico da sociedade em que vivem. (...) Quando o homem e a mulher se percebem como fazedores de cultura, está vencido, ou quase vencido, o primeiro passo para sentirem a importância, a necessidade e a possibilidade de se apropriarem da leitura e da escrita. Estão alfabetizando-se, politicamente falando (FREIRE, 1996, p. 37).

Paulo Freire acreditava que o mundo e o homem articulam-se num processo

ininterrupto de construção e reconstrução, ou seja, o mundo e os homens são projetos que se

fazem e se refazem a partir de suas atuações, o que demonstra, que o individuo é, ao mesmo

tempo, fruto e agente de sua história. Ser fruto e agente de sua própria história significa que o

129

homem, concomitantemente, constrói cultura e por ela é moldado. Freire acreditava, portanto,

que como somos agentes e pacientes de nossa própria cultura, podemos transformá-la. Assim

sendo, os temas ou palavras geradoras são escolhidos a partir do universo vocabular do

educando, ou seja, as palavras que serão os temas de discussão dos círculos de cultura são

escolhidos a partir da problematização da prática dos educandos, fazendo com que este recrie

e re-signifique seus significados.

O aprendizado da leitura e da escrita deve ser um ato criador, envolvendo,

necessariamente, a compreensão crítica da realidade. A noção de que existe um conhecimento

anterior, a partir da análise de práticas concretas, abre novas perspectivas aos alfabetizandos,

que passam a vislumbrar a possibilidade de forjar um conhecimento, além dos limites

anteriores. Desmistificam-se, assim, as falsas interpretações dos mesmos, decorrentes de uma

construção social formuladora de verdades acabadas e da naturalização do conhecimento.

O alfabetizando, na metodologia freireana, é desafiado a refletir sobre seu papel na

sociedade enquanto aprende a escrever a palavra sociedade, a repensar a sua história enquanto

aprende a escrever e a decodificar o valor sonoro de cada sílaba desta palavra. O professor,

nesta visão, tem o papel de coordenar o debate, por isso a designação dada de animador de

debates, e problematizar as discussões para que opiniões e relatos surjam. Daí emerge outro

pressuposto do pensamento freireano que se refere à dialogicidade do ato educativo. Para

Freire a educação prima por ampliar a visão de mundo dos educando e isso só pode ser feito a

partir do diálogo. Para ele, “a atitude dialógica é, antes de tudo, uma atitude de amor,

humildade e fé nos homens, no seu poder fazer e refazer, de criar e recriar” (FEITOSA, 1999,

p. 2).

Paulo Freire, no livro Cartas à Guiné-Bissau, desenvolve um pouco a idéia do papel

da alfabetização dizendo que:

130

Daí que jamais nos tenhamos detido no estudo de métodos e de técnicas de alfabetização de adultos em si mesmos, mas no estudo deles e delas enquanto a serviço de, e em coerência com uma certa teoria do conhecimento posta em prática, a qual, por sua vez, deve ser fiel a certa opção política. Nesse sentido, se a opção do educador é revolucionária e se sua prática é coerente com sua opção, a alfabetização de adultos, como ato de conhecimento, tem, no alfabetizando um sujeito deste ato. Dessa forma, o que se coloca a tal educador é a procura dos melhores caminhos, das melhores ajudas que possibilitem ao alfabetizando exercer o papel de sujeito de conhecimento no processo de sua alfabetização (FREIRE, 1977, p. 18).

Freire não discute aprofundadamente, nesta fonte de pesquisa, o ponto que foi o

principal aspecto de desacordo entre ele e o PAIGC. Vemos que ele está de acordo com o

partido de que a educação deve estar atrelada a opção política e, por conseguinte, deve servir

para este fim, mas a questão da autonomia tão prezada por Freire o “obriga” a defender a

educação na língua materna, no caso, o crioulo que era falado por 80% da população em

detrimento do uso do português que era defendido pelo PAIGC. A alfabetização em outra

língua seria uma invasão cultural e iria contra esse princípio fundamental de sua teoria do

conhecimento. Ou seja, o pensamento de Paulo Freire não coadunava com o pensamento do

PAIGC no que era mais essencial. Assim como Freire se preocupava em não invadir as

culturas guineenses levando soluções prontas, ele procurava não invadir a cultura popular

alfabetizando com palavras que eram tidas como estrangeiras para a maior parte da

população.

Freire não propôs nada inovador, se levarmos em conta que na plataforma do partido,

escrito em 1963, antes da emancipação do povo guineense, já estava prevista a criação da

escrita crioula e a alfabetização em massa. Contudo, o governo jamais aceitou a idéia. Para

ele, a alfabetização tinha que ser em português, sob a justificativa de que a adoção de uma

língua africana isolaria Guiné do resto do mundo.

Sobre o problema da escolha da língua, Paulo Freire diz:

131

Pudemos observar que os alfabetizandos, durante os largos meses de esforço, não conseguiram fazer outra coisa senão uma caminhada cansativa em torno das palavras geradoras. Marchavam da primeira à quinta; na quinta, haviam esquecido a terceira. Voltava-se à terceira e se percebia que haviam olvidado a primeira e a segunda. Por outro lado, ao procurarem criar palavras com as combinações silábicas de que dispunham, raramente o faziam em português. Eu mesmo tive oportunidade de ver palavras escritas por alguns deles, cuja grafia coincidia com a de palavras portuguesas, mas cuja significação era outra, completamente, pois era em língua mancanha ou balanta que pensavam. Por que? Porque a língua portuguesa não tem nada que ver com sua prática social. Na sua experiência quotidiana, não há um só momento, sequer, em que a língua portuguesa se faça necessária. Nas conversas em família, nos encontros de vizinhos, no trabalho produtivo, nas compras no mercado, nas festas tradicionais, ao ouvir o camarada presidente, nas lembranças do passado. Nestas, o que deve estar claro é que a língua portuguesa é a língua dos “tugas”, de que se defenderam durante todo o período colonial (ALMEIDA, 1981, p. 205).

A justificativa do governo de que o ensino em uma língua africana isolaria Guiné-

Bissau do resto do mundo é contundente, entretanto, a falta de êxito da alfabetização em uma

língua estrangeira é um fato irrefutável. Como conciliar os interesses, então, para a escolha da

língua? Vale lembrar que esta é ainda uma questão não solucionada na Guiné. Mesmo que o

PAIGC optasse pelo uso do crioulo como língua da alfabetização haveria um outro

impedimento, uma vez que esta não possui escrita. Era necessário, portanto, que o ensino

ocorresse em português não só pela justificativa de fechamento, mas até que se criasse escrita

para esta língua. Em certa medida é compreensível o posicionamento do PAIGC diante da

opção pelo uso do português como a língua do ensino, entretanto, a historiografia aponta que

este posicionamento atravancou a concretização do planejamento educacional.

O pedagogo brasileiro Paulo Freire, logo após a independência, tentou aplicar um plano de alfabetização e escolarização em grande escala na Guiné-Bissau e, depois de uns poucos anos, acabou desistindo, por não conseguir convencer o governo da necessidade de se começar a alfabetização pelas línguas maternas, método usado largamente em muitos países africanos de colonização inglesa ou francesa. (AUGEL, 2007, p. 73)

Augel mostra que a alfabetização nas línguas maternas foi muito utilizado nos países

africanos e que a recusa a adoção desta iniciativa levou Freire a desistir da consultoria que

prestava aquele país. É evidente que a falta de verbas atrapalhava a produção de material

132

didático nas línguas maternas e que essas por não possuírem escritas demandariam maiores

gastos com a contratação de lingüistas para a criação de suas escritas. Entretanto, o aspecto

determinante para a não aceitação do uso do crioulo ou das línguas maternas no ensino se a

concepção de Amílcar Cabral, que ao delinear as diretrizes do PAIGC, defendeu que a única

herança positiva de Portugal foi o português, língua que já tinha vocábulos científicos e por

este motivo não era preciso criá-los, como no caso do crioulo. Além disso, Amílcar Cabral

defendia que a língua portuguesa era um importante fator de unidade (CABRITA, 1999, p.

159). Podemos perceber com isso que os luso-africanos eram um grupo modernizador que na

verdade ao contrário do proclamavam eram ocidentalizados.

Ao afirmar que a língua não é prova de mais nada, senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros, Amílcar Cabral deixava de perceber lamentalvelmente a natureza ideológica da linguagem, que não é algo neutro como lhe pareceu no texto citado. Esta é uma das raras afirmações da obra de Cabral que jamais pude aceitar (FAUNDEZ, FREIRE, 1985, p. 126).

Para Paulo Freire a linguagem expressa o pensamento dos indivíduos e por isso as

relações de poder estão inscritas nela. O educador via a linguagem comprometida com as

classes sociais, daí sua teoria do conhecimento partir do universo vocabular dos educandos. O

objetivo de partir da realidade do educando era confrontar as diferenças de significado que os

vocábulos apresentam, a partir do diálogo. Assim sendo, mudar a linguagem fazia parte do

processo de transformação do mundo (OSOWSKI In: REDIN, ZITKOSKI, 2008, p. 252).

O uso do crioulo ou das línguas maternas na educação auxiliariam no êxito do novo

sistema de ensino e na perspectiva freireana impulsionariam a transformação social, posto que

a educação permitiria a análise, a descrição e o debate em profundidade da realidade social

existente. Além disso, o uso dessas línguas estaria de acordo com os outros princípios do

partido que eram o ensino atrelado a vida cotidiana e ao trabalho produtivo. Como convencer

os educandos sobre a importância da luta pela construção nacional com o rompimento da

133

herança colonial se mantinham a língua do colonizador e sua estrutura de ensino? Talvez uma

alternativa viável fosse a promoção do ensino em mais de uma língua. Assim sendo, não

defendemos que não houvesse o ensino do português, em contrapartida, essa também não

pode ser a única opção, já que dificultava a relação de ensino-aprendizagem. Um dos

problemas decorrente dessa opção era a falta de entendimento do que estava sendo estudado.

“O ensino do português se faz então por métodos usados no ensino de uma segunda língua, de

uma língua estrangeira. Fora da sala de aula, como em Cabo Verde, os alunos só empregam o

crioulo” (CUNHA, 1981, p. 79). Como o ensino em português não é só uma opção, mas uma

falta também de opção pela pouco infra-estrutura, fica evidente que havia uma

incompatibilidade “irreversível” entre o pensamento de Freire e do PAIGC.

A teoria do conhecimento freireana não foi pensada para o ensino em uma língua

estrangeira, uma vez que parte da realidade social e da vida cotidiana. Como escolher palavras

geradoras que não fazem parte da vida dos educandos? Como problematizar as questões

sociais e pedir que os educandos se expressem livremente se não tem o domínio da língua

para tal? Além disso, este educador defendia o rompimento total com a herança colonial,

inclusive o rompimento com a língua. “De fato, o problema da língua não pode deixar de ser

uma das preocupações centrais de uma sociedade que, libertando-se do colonialismo e

recusando o neo-colonialismo, se dá ao esforço de sua re-criação. E neste esforço de re-

criação da sociedade a reconquista pelo Povo de sua Palavra é um dado fundamental”

(FREIRE, 1977, p. 173). É evidente que a postura de Freire parece meio dicotômica, como se

este visse os colonizadores como nefastos e que nada deles pudesse ser aproveitado. Os

colonizados se apropriaram da língua dos colonizadores e promoveram algumas mudanças na

mesma, mudanças essas inerentes ao uso diário de qualquer língua. Entretanto, é importante

fazermos um adendo no caso da alfabetização de adultos. A reflexão sobre o uso do português

como língua da alfabetização é ainda mais complexa do que a reflexão do uso do português na

134

educação em geral, pois a alfabetização se processaria em uma língua estrangeira para a

maioria dos guineenses e não na língua de quem estava sendo alfabetizado. Isso inviabiliza,

como acabamos de mostrar, a alfabetização na metodologia freireana, na medida em que ao

mesmo tempo em que o educando estava aprendendo a ler e escrever estava aprendendo

conjuntamente uma nova língua e um novo vocabulário. Nesse sentido, a escolha do

português impossibilitou o aprendizado da língua portuguesa e alterou o projeto

transformando-o primeiramente em pós-alfabetização, no qual os educandos discutiriam a

vida cotidiana, a realidade do país, para, posteriormente, aprenderem a ler e escrever. Em

outras palavras, a leitura do mundo precederia a leitura dos signos lingüísticos.

A bibliografia aponta que o posicionamento de Freire acerca da escolha da língua era

acertado, uma vez que a orientação dos especialistas, e, inclusive do coordenador do ensino de

línguas do Ministério de Educação, Cultura e Desportos da Guiné-Bissau, de 1986, Francisco

Macêdo, era de que o ensino deveria ser primeiramente em crioulo para que posteriormente se

aprendesse o português, configurando esta como segunda língua no sistema educativo.

Macêdo apontou que no ano escolar 1986/87 42% dos alunos inscritos no sistema de ensino o

abandonaram, 34% ficaram reprovados e somente 24% foram aprovados. A partir desses

dados evidencia-se a continuidade e não a ruptura com o sistema colonial de ensino.

Ao estudar as causas desse fracasso, chegamos a conclusão de que tão baixo índice de aproveitamento é conseqüência não só da falta de instalações escolares, de livros, de materiais didáticos e do baixo nível dos professores, mas também, e sobretudo, da dificuldade da língua (MACÊDO, humanidades, p. 36).

Em 1977, foi realizado no Rio de Janeiro, o XV Congresso Internacional de

Lingüística e Filologia Românica, e neste evento a professora Maria Luíza Buscardini,

licenciada pela Universidade de Lisboa, mostrou a inevitabilidade do ensino em crioulo:

A necessidade, ou melhor, a inevitabilidade de empregar o crioulo na educação será uma imposição do meio sociocultural e terá, por outro lado, o

135

respaldo do pensamento quase unânime dos lingüistas e dos pedagogos contemporâneos: dos lingüistas, que não mais admitem a existência de línguas intrinsecamente superiores a outras; dos educadores, para os quais toda aprendizagem deve iniciar-se na língua materna, a fim de que o educando não se veja diante de duas dificuldades simultâneas: a da disciplina que deve aprender e da forma lingüística em que tem que estudá-la (CUNHA, 1981, p. 81).

O próprio Mário Cabral, no Encontro dos Ministros da Educação das cinco ex-

colônias portuguesas, realizado na Guiné-Bissau em fevereiro de 1978, falou da necessidade

da expressão dos guineenses ser em crioulo, entretanto, este indicou também que o crioulo

não era falado por todos. Mário Pinto de Andrade, no Conselho Nacional de Cultura da

Guiné-Bissau, também em 1978, organizou um Seminário de Lingüística Africana e na

abertura deste evento apontou que:

A realização deste seminário inscreve-se no quadro de uma das prioridades enunciadas pela política cultural do PAIGC, no sentido de reabilitação do patrimônio cultural da nação, isto é: a fixação e transcrição, o ensino e o desenvolvimento das línguas nacionais. Agimos, aliás, em conformidade com o espírito e a letra do Programa Maior do PAIGC que no plano da instrução e da cultura prescreve claramente:

Na Guiné, desenvolvimento das línguas nativas e do dialecto crioulo, com a criação da escrita para essas línguas. Em Cabo Verde, desenvolvimento e escrita do dialecto crioulo.

Mas não se trata apenas de atingir o objetivo técnico de possuir e dominar os dados do conhecimento científico das línguas faladas no espaço nacional, mas sobretudo de estudar e pensar nesses idiomas, e daí tirar todas as implicações operatórias no tocante à alfabetização, ao ensino, à comunicação social e a difusão da cultura. (...)

(...) Repercutindo-se nos setores da educação, da comunicação social, da criatividade literária e artística, uma política lingüística correcta contribui para levar à prática o princípio fundamental da democratização da cultura – criar condições concretas para as massas populares tenham pleno acesso, nos veículos de expressão íntima do seu pensamento, ao saber, à ciência, e às técnicas modernas, na perspectiva do desenvolvimento nacional (CUNHA, 1981, p. 83).

Apesar deles ainda não apontarem explicitamente o uso dessas línguas no ensino já

sinalizavam o entendimento de que isto seria necessário e apesar da resistência da utilização

136

do crioulo nos anos logo após a independência, período desta pesquisa, posteriormente, o

governo guineense percebeu a inevitabilidade no seu uso.

Consideramos importante retomar o debate acerca da escolha da língua em que se

processaria a alfabetização de adultos, apesar da impossibilidade do aprendizado da leitura e

da escrita na metodologia freireana já ter sido largamente defendida. Paulo Freire publicou no

livro Pedagogia da Pergunta uma carta que enviou ao Comissário Mário Cabral, em julho de

1977, abordando exatamente esta temática. Freire, apesar de considerar inviável o uso do

português na maior parte dos casos traça uma estratégia para seu uso em alguns pontos

específicos e diz que nos demais se trabalharia no campo da ação cultural. Freire aponta na

carta o seguinte:

Em primeiro lugar, nos parece urgente concretizar o que você e Mário de Andrade vêm pensando, e a que me referi acima, isto é, a disciplina escrita do crioulo, com o concurso de lingüistas que sejam igualmente militantes. Enquanto este trabalho de disciplina do crioulo se estivesse fazendo, limitaríamos, no campo da ação cultural, a alfabetização em português:

I) à área de Bissau, onde a população, dominando perfeitamente o crioulo, tem familiaridade com o português. Aí sobretudo se faria nas frentes de trabalho, em que ler e escrever esta língua podem significar algo importante para os que aprendem e para o esforço de reconstrução nacional;

II) a certas áreas rurais, quando e se os programas de desenvolvimento econômico social exigirem dos trabalhadores habilidades técnicas que, por sua vez, demandem a leitura e a escrita do português. Neste caso, se o crioulo não é falado fluentemente como se dá em Bissau, impõe-se, ainda, o reestudo da metodologia a ser usada para o ensino da língua portuguesa

Em qualquer dos casos, porém, se faria indispensável discutir com os alfabetizandos as razões que nos levam a realizar a alfabetização em português.

Percebe-se, assim, quão limitada seria a ação no setor da alfabetização de adultos. E que fazer com relação às populações que não se encontram nas

137

hipóteses referidas? Engajá-las, a pouco e pouco, em função das limitações de pessoal e de material, num esforço sério de animação ou ação cultural. Em outras palavras, na ‘leitura’, na ‘releitura’ e na ‘escrita’ da realidade, sem a leitura e a escrita das palavras (FAUNDEZ, FREIRE, 1985, p. 131-2).

No livro Cartas à Guiné-Bissau, Freire descreve o Caderno de Educação Popular

preparado por Claudius Ceccon junto com a Comissão Coordenadora, em Bissau, cujo

objetivo era oferecer suporte aos alfabetizandos facilitando a transição para a pós-

alfabetização, além de auxiliar os animadores de debates em sua tarefa educativa. Terminada

a montagem do caderno este foi submetido ao Comissário de Educação Mário Cabral e a José

Araújo, Secretário para a organização do partido, a quem caberia a decisão final para a

impressão do mesmo. (FREIRE, 1977, p. 81-2) Nesta carta de julho de 1977, percebemos que

até aquela data o material didático que estava sendo preparado, conforme descreveremos

abaixo, ainda não tinha sido usado. O educador considerava que este material era um bom

suporte para o ensino, mas que ele em si não resolvia o problema da língua.

O que queremos dizer é que, mesmo dispondo de um bom material de ajuda, como teremos com o Caderno de Educação Popular, os resultados seriam apenas pouco melhores. É que o Caderno, enquanto material de suporte, em si, não é capaz de superar a razão fundamental, substantiva, da dificuldade: a ausência da língua portuguesa na prática social do povo. E esta língua estrangeira – o português – não faz parte da prática social das grandes massas populares da Guiné-Bissau na medida em que não se insere em nenhum dos níveis daquela prática (FAUNDEZ, FREIRE, 1985, p. 130).

O caderno era dividido em dois momentos. O primeiro continha 20 palavras geradoras

com codificações correspondentes. Da 1ª a 9ª apareciam a palavra, a codificação, a palavra

dividida em sílabas e duas folhas pautadas em branco para que o aluno pudesse formar novas

palavras e sentenças. Da 9ª para a 10ª palavra aparecia o que Freire denominou de 1º livro,

pois os alunos seriam chamados a partir desse momento para a leitura de sua realidade a partir

de textos e não mais de imagens. Da 10ª a 14ª palavras ocorre o mesmo procedimento

138

anterior, ou seja, igual a 1ª a 9ª. Nessa fase o educando deveria ser estimulado a escrever

pequenos textos e não só palavras e sentenças soltas. Entre a 14ª e 15ª palavra geradora

aparecia o 2º texto, um pouco maior e mais complicado, ou, menos simples que o primeiro.

Dois textos de Amílcar Cabral ainda apareciam na primeira parte do caderno. O primeiro

entre a 18ª e 19ª palavra geradora, e, o 2º, sobre a unidade de Guiné-Bissau e Cabo Verde

após a 20ª palavra. Ainda na primeira parte do caderno, por sugestão de Miguel Darcy de

Oliveira, existiam 4 páginas entre as palavras geradoras, apenas com os lugares indicados para

a codificação e as famílias silábicas, cabendo ao animador e aos alfabetizandos preencherem

esse espaço com palavras geradoras adequadas à realidade do grupo, dependendo da

necessidade do círculo de cultura (FREIRE, 1977, p. 85). Fica evidente que a intenção do

partido era a homogeneização dos círculos de cultura e não o respeito ao universo vocabular

dos educandos. A tentativa de permanência desse respeito veio da idéia de Miguel Darcy de

Oliveira.

O segundo momento tinha o intuito de situar o educando claramente no momento de

transição para a pós-alfabetização.

Em síntese a segunda parte do caderno, que é introduzido por um texto curto, dois ou três períodos, objetivo e motivador, consta de oito codificações, sem, obviamente, nenhuma palavra geradora, pois que já não é o caso, às quais se seguem páginas pautadas em branco e quatro textos de Amílcar Cabral, extraído do seu trabalho sobre formas de resistência – a econômica, a política, a armada e a cultural. As oito codificações, fotografias, algumas das quais de real beleza, giram em torno de oito temas geradores nacionais – o da produção, o da defesa, o da educação, sistemática e assistemática, o da saúde, o da cultura, no sentido mais amplo da palavra, o do papel dos trabalhadores, camponeses e urbanos, das mulheres e da juventude no esforço da reconstrução nacional (FREIRE, 1977, p. 85-6).

Freire, na descrição do caderno, apontou a importância da colaboração do jornal Nô

pintcha e da Rádio Nacional no aprendizado desses educandos, afirmando que o material

publicado no jornal poderia ser utilizado nos círculos de cultura como temas de debate. Freire

propunha também que existisse no jornal uma página destinada aos círculos de cultura,

139

noticiando o seu desenvolvimento, publicando, ainda nesse espaço, textos dos alfabetizandos,

assim como as soluções encontradas para eventuais problemas de forma que um círculo

auxiliasse na experiência do outro (FREIRE, 1977, p. 83).

Outro material que não conseguimos ter certeza de sua utilização nos círculos de

cultura e que é bastante interessante, tendo em vista que são desenhos que problematizam a

colonização e propiciam a reflexão sobre a educação colonial e a africana, são os diapositivos

que foram apresentados ao Ministério de Educação e na reunião de base do partido, realizada

no bairro de Pilon de Cima. Ceccon afirma que este poderia ser um bairro na periferia de

qualquer cidade brasileira. Mesmo que os diapositivos não tenham sido utilizados nos

círculos, estes foram vistos e discutidos nesse encontro por um bom número de pessoas –

entre quinhentas e mil. Os diapositivos propiciam não só a reflexão sobre a história da Guiné-

Bissau, mas o debate sobre a identidade.

Diapositivo 1 – Culturas tradicionais africanas

140

Nessa imagem foi trabalhada a idéia da educação nas culturas tradicionais. Esses

homens eram os grandes sábios da aldeia, assim como eram os guardadores da cultura, dos

costumes e das tradições. Em uma das visitas da equipe do IDAC à Guiné-Bissau, em

conversa com desses homens foi dito a eles que “antigamente não havia escola. Mas nem por

isso deixava de haver educação. Aprendia-se fazendo, aprendiam-se coisas úteis, cada adulto

era um professor” (CECCON, 1980, p. 110). Esse diapositivo serviria para discutir o papel

das culturas tradicionais e das práticas dessas culturas que deveriam ser, no entendimento do

PAIGC, superadas em nome do progresso e do desenvolvimento da nação guineense. Assim

sendo, esta imagem suscitaria o debate acerca das práticas ancestrais e das crenças das

culturas guineenses, como vimos por exemplo, no capítulo 1 o uso do mesinho. Além disso,

se debateria a noção da cultura oral em contraposição a cultura escrita e como o aprendizado

da leitura e da escrita para auxiliaria no desenvolvimento do país. Amílcar Cabral defendia

veementemente a supressão de certas práticas culturais para o desenvolvimento do país.

A realidade cultural da nossa terra é essa. Mas devemos pensar bem na nossa cultura: ela é ditada pela nossa condição económica, pela nossa situação de subdesenvolvimento económico. Temos que gostar muito da nossa cultura africana, nós queremo-la muito, as nossas danças, as nossas cantigas, a nossa maneira de fazer estátuas, canoas, os nossos panos, tudo isso é magnífico, mas se esperarmos só pelos nossos panos para vestirmos nossa gente toda, estamos mal. Temos que ser realistas. A nossa terra é muito linda, mas se não lutamos para mudar a nossa terra, estamos mal. [...] Temos que ter coragem para dizer isso claramente. Ninguém pense que a cultura de África, o que é verdadeiramente africano e que, portanto, temos que conservar para a toda vida, para sermos africanos, é a sua fraqueza diante da natureza. Qualquer povo do Mundo, em qualquer estado que esteja, já passou por essas fraquezas, ou há-de passar. Há muita gente que ainda nem chegou aí: passam a sua vida a subir às árvores, comer e dormir, mais nada ainda. E esses, então, quantas crenças tem ainda” Nós não podemos convencer-nos de que ser africano é pensar que o relâmpago é a fúria de Deus (Deus qui panha raiba). Não podemos acreditar que ser africano é pensar que o homem não pode dominar as cheias do rio. Quem dirige uma luta como a nossa, quem tem a responsabilidade duma luta como a nossa, tem que entender, pouco a pouco, que a realidade concreta é essa (CABRAL, 1978, p. 141).

141

Diapositivo 2 – Dominação Colonial

A apresentação da chegada dos portugueses foi feita a partir da montagem de um

navegador do século XV com uma ave de rapina. Esta imagem que tinha uma visão

claramente política sobre a colonização na demonstração dos diapositivos feita no bairro de

Pilon de Cima gerou risos, gritos e palmas como se estivessem comemorando um gol. A

análise dessa imagem mostrou a equipe do IDAC que esta metodologia funcionava bem, ou

seja, a comunicação estava estabelecida e, por conseguinte, poderiam explorar a discussão

sobre a herança colonial e a criação da identidade a partir o uso dos desenhos de humor

(CECCON, 1980, p. 110).

142

Diapositivo 3 – Dominação Colonial

Ceccon mostra que a cada imagem relativa ao período colonial e a relação dos

africanos com os portugueses era sentida com sofreguidão, como é o caso, da história em

quadrinho que ilustra bem isto, na medida em que houve uma incrível reação de quem estava

assistindo, posto que remeteu o período em que as famílias mais numerosas tinham que

escolher um filho para estudar. Este era chamado de ‘o branco’ já que renunciaria aos valores

de sua cultura. Outras imagens mostravam os valores da escola criada nas zonas libertadas, e

143

apontava o sistema escolar como um cavalo que não servia mais já que a escola deveria surgir

da participação de todos a partir da discussão dos dados que lhes estavam sendo oferecidos

naquele momento.

Diapositivo 4 – Quadrinho aculturação

Ali estava um instrumento de trabalho do qual os guineenses podiam se apropriar para ajudar-se na tarefa de reconstrução nacional. Era necessário, entretanto, criar os meios para que esses instrumentos de trabalho passassem efetivamente às mãos dos nacionais (CECCON, 1980, p. 112).

Não sabemos de fato se este material chegou a ser usado. Podemos perceber que,

assim como o caderno de educação popular, a discussão era dirigida e definida, ao contrário,

do que indica a proposta de alfabetização freireana. Assim como no caderno, Ceccon aponta

uma alternativa para adaptação do uso deste material a uma realidade especifica, que seria o

144

animador de debates preparar diapositivos de acordo com a necessidade do círculo. Vemos

um esforço de Freire e da equipe do IDAC em adaptar suas estratégias de trabalho e forma de

pensar à Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos de Guiné-Bissau. Ao mesmo tempo

vemos um desvio na conduta pregada discursivamente por Freire e sua equipe. Apesar de

Freire defender respeito a cultura dos educandos e não querer promover uma invasão cultural,

os direcionamentos da Campanha não levaram em consideração a diversidade e sim a

homogeneização. Provavelmente este direcionamento esteja ligado ao que podemos chamar

de inversão da teoria freireana. Ao invés de partir da cultura do povo para discutir as relações

sociais existentes na localidade, as palavras geradoras foram escolhidas com o intuito de gerar

a identificação de um povo a partir de símbolos criados pelo período da luta contra o

colonialismo. Como a alfabetização não estava funcionando optaram pelo uso dos

diapositivos em que foram usados os mesmo símbolos. Fica evidente então que mais

importante que o aprendizado da leitura e da escrita era a visão política a partir da introjeção

da população de determinados ideais.

Apesar disso, determinar que a Campanha não funcionou seria reduzir demais o

trabalho lá desenvolvido. Não responsabilizamos nem Freire nem o governo pela não

obtenção dos resultados esperados. Pelo contrário. Uma série de problemas afetou o

desenvolvimento do projeto, fazendo com que este não chegasse ao resultado pretendido por

todos – PAIGC, Freire e sua equipe. Afirmar com veemência que a experiência fracassou é

como dissemos antes, reduzir demais o trabalho lá desenvolvido, já que mesmo que o índice

de analfabetismo não tenha chegado ao esperado, no seio das FARP o analfabetismo foi

praticamente erradicado e a experiência vivenciada em Sedengal mostraram a viabilidade do

projeto.

145

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos discutir nesta dissertação a adequação do projeto nacional de

alfabetização de adultos, realizado em Guiné-Bissau com a consultoria de Paulo Freire, com o

projeto de desenvolvimento elaborado pelo PAIGC para a construção do Estado Nacional

guineense, tendo em vista que tanto Paulo Freire quanto o partido guineense acreditavam que

a harmonia entre ambos era fundamental para a construção do sentimento de pertencimento a

nação que começava a ser construída. Ao contrário do que defendemos aqui, de que os

guineenses estavam construindo a nação, tanto Freire quanto o PAIGC partilhavam a idéia de

que lutavam pela “reconstrução nacional”. O uso do termo “reconstrução” era uma estratégia

discursiva, utilizada junto com a criação de um mito fundador e de antecedentes históricos,

objetivando criar um sentimento de identificação entre os diversos grupos étnicos que

compunham aquele país a partir de um passado comum. Além disso, o PAIGC partia do

princípio de que para se formar uma consciência nacional, deixando-se de lado as

consciências étnicas, era preciso disseminar os ideais socialistas pelas escolas, trabalhos e

organizações de massas.

Como vimos, a tentativa de criar uma identidade nacional e a criação do sentimento de

unidade na diversidade não obteve o resultado esperado. A população não foi mobilizada a

contento, ou seja, o PAIGC não conseguiu mobilizar a população para participar da maneira

como eles denominavam “da luta pela reconstrução nacional”, uma vez que diferentemente do

que Amílcar Cabral pretendia, o PAIGC tentou subordinar as identidades étnicas no lugar de

respeitar as diferenças, no comando do Estado guineense.

Os primeiros anos após a independência foram de extremo entusiasmo, buscando-se a

implementação do socialismo assim como houve a tentativa de relacionar o projeto de

desenvolvimento nacional à agricultura, tendo em vista que era a principal fonte de renda do

146

país. A falta de recursos foi um grande empecilho para a consecução do plano de

desenvolvimento, posto que Guiné-Bissau era um país pobre e estava em situação ainda pior

devido aos quinze anos de luta armada, o que levou a procura de ajudas externas que em

pouco tempo mostraram suas ambigüidades. Os empréstimos e financiamentos estavam

atrelados a gastos com os países que os cediam, impedindo assim o governo de colocar em

prática o plano da maneira pela qual tinha sido elaborado. Ao invés do governo investir na

agricultura como fora planejado, o investimento foi feito na industrialização do país e em

indústrias que não supriam as necessidades do território nacional. Algumas fábricas estavam

mal localizadas e tiveram problemas de abastecimento de matérias-prima assim como houve

problemas na distribuição dos produtos.

Um outro ponto de entrave na concretização do plano elaborado pelo PAIGC no

período da luta ocorreu pela falta de separação entre as noções de Estado e partido. Ao

assumir o governo, o PAIGC manteve sua estrutura partidária e o comando muitas vezes era

difuso, na medida em que as decisões não partiam necessariamente do governo, mas

precisavam passar pela burocracia do partido.

Podemos perceber que a prática dos dirigentes guineenses realmente não correspondeu

a sua intenção determinada na fase anterior. Uma parte considerável dos investimentos

estrangeiros foi utilizada na modernização de equipamentos, “que não foi acompanhada, ao

mesmo ritmo, pela evolução da capacidade de sua utilização produtiva, da sua gestão e da sua

manutenção” (CARDOSO, 1993, p. 8). A utilização desta estratégia gerou progressiva

diminuição da produção de alimentos, êxodo rural, dependência externa incontrolada, ameaça

permanente de colapso econômico. A determinação das necessidades pela burocracia do

Estado engendrou um estado de penúria generalizado. Os comerciantes privados perderam

sua margem de lucro, por causa das empresas estatais, e o processo de circulação informal

147

lançou as bases de uma acumulação privada pela burocracia do estado, assim, as empresas do

Estado entravam em falência, enquanto as fortunas privadas aumentavam.

A construção do Estado Nacional e a mistificação do partido único foram os elementos

propulsores do processo de acumulação privada:

o discurso populista e revolucionário do partido implicava um recurso constante à ideologia da luta de libertação nacional e ao pensamento de Cabral, que era apresentado de forma doutrinária por meio de citações. O discurso anticolonial, a mistificação do partido e do líder carismático visavam garantir o apoio popular necessário à construção do Estado Nacional, e este, por sua vez, era a base da acumulação privada da burocracia do Estado (FERNANDES, nº 17, jan 94, p.34).

Esta situação levou à criação de um Plano de Desenvolvimento em 1983-84, no qual

foi consagrado o programa de estabilização econômica, cujos objetivos eram: criar bases

sólidas para a situação econômica e financeira; liberalizar o comércio, racionalizar o uso da

ajuda externa; e controlar a economia. Esta orientação foi retomada, posteriormente, em 1986,

com a adoção do Programa de Ajustamento Estrutural.

O problema da infra-estrutura e de verbas afetou não só o plano de desenvolvimento,

mas também todas as áreas do governo. Na educação, o Comissariado diferente do que tinha

decidido anteriormente não fechou o sistema de ensino anterior e manteve a estrutura escolar

colonial, alterando o conteúdo de algumas disciplinas. A prática efetuada no período da luta

aos poucos foi sendo enfraquecida e a experiência da administração coletiva, prática do

período em que Freire foi consultor, foi progressivamente sendo abandonada. A alfabetização

de adultos como não tinha uma estrutura pré-moldada, posto que no período colonial não

existiu esta categoria de ensino, teve o projeto criado concomitantemente à elaboração da

campanha, que buscou a ligação da alfabetização com o sistema global de ensino.

Um aspecto que auxiliou na inviabilização da Campanha de Alfabetização de Adultos

foi a opção do partido de seguir a concepção de Amílcar Cabral, por concordar, obviamente

com este aspecto, tendo em vista que eles faziam parte do mesmo grupo cultural, que

148

considerava a língua portuguesa como a única herança proveitosa da colonização. Vale

lembrar que este foi o único ponto de desacordo entre os pensamentos de Freire e Amílcar

Cabral.

A alfabetização freireana parte da vida cotidiana do educando, por isso, dificilmente

funcionaria em uma língua estrangeira, no caso, o português. Como refletir sobre a prática se

os educandos em questão, os guineenses, nem conhecem a palavra? Como uma teoria do

conhecimento eminentemente política, sua finalidade seria distorcida se implementada de tal

modo.

Amílcar Cabral via língua como um instrumento, não levando em conta que é esta que

media e conforma a cultura. Assim sendo, Freire e Cabral tinham concepções bem diferentes

acerca deste aspecto. Freire defendia o uso do crioulo nas escolas por entender que a língua é

um importante traço da cultura. Até recentemente os guineenses mantiveram o pensamento de

Cabral neste ponto. Insistir no uso do português é insistir no insucesso escolar, já que a

imagem desta língua não só está ligada a dominação colonial como também não faz parte da

vida cotidiana da população. Não há uma incapacidade dos guineenses no aprendizado do

português, pelo contrário, muitas culturas existentes na Guiné-Bissau são bilíngües. O que

existe é uma resistência ao aprendizado do português, resistência essa fruto da falta do

entendimento da necessidade do aprendizado da mesma.

A mudança da tentativa do aprendizado da leitura e da escrita dos signos lingüísticos

para o uso dos diapositivos provavelmente foi a saída encontrada por Freire e sua equipe para

auxiliar no engajamento da população na construção da nação, mantendo a concepção de sua

teoria do conhecimento que é, como já foi dito, explicita e assumidamente política. O uso dos

diapositivos representava um retorno à oralidade, tradição dos grupos societários africanos,

cujo intuito era aproximar a alfabetização dessas culturas. Os diapositivos foram fruto da

decisão da antecipação da pós-alfabetização. Em outras palavras, a pós-alfabetização

149

precederia o aprendizado dos signos lingüísticos e se basearia primordialmente no debate de

questões políticas, o que reafirma a idéia de que a alteração na campanha foi feita com o

objetivo de recrutar pessoas para a construção da nação. A pós-alfabetização assim como a

alfabetização pretendia mostrar aos educandos que Guiné-Bissau vivia um novo momento e

que era necessária a adoção de novas práticas e costumes que formariam, como eles

denominavam, o “novo homem” e a “nova mulher”, partícipes de uma nova cultural nacional.

A educação como ato político, para Paulo Freire, era a engrenagem necessária para a

aquisição da liberdade e o educador entendia que esta não seria vivenciada na superação da

dicotomia opressor-oprimido e sim na prática cotidiana. Para Paulo Freire não se é livre e sim

se está livre, sendo a manutenção da liberdade efetuada na relação cotidiana entre os agentes

sociais. Em outras palavras, a liberdade é construída diariamente, não sendo possível adquirir

liberdade e estar permanentemente nesta condição.

Clarifica-se, assim, por que para este educador liberdade e transformação social são

conceitos interligados, tendo em vista que para se estar livre precisa-se transformar

cotidianamente. E é nesse sentido que a pronúncia da palavra se destaca em seu pensamento.

Ter o direito de pronunciar, para Freire, não era um ato puramente discursivo e sim a prática

de análise do mundo pelo sujeito, e, é justamente esta prática que possibilita a mudança

social.

Além da questão da língua, problemas estruturais e falta de verba também foram

fatores preponderantes para a interrupção da campanha assim como a centralização na capital

atrapalhou a implementação do projeto. A escolha das palavras geradoras para todo o

território nacional ia de encontro a perspectiva educativa freireana e os animadores de debate,

apesar de terem autonomia para adaptar as palavras para a realidade com a qual estivessem

trabalhando, não tiveram o preparo adequado para atuarem nos círculos de cultura. A escolha

do período das chuvas para a realização dos círculos na zona rural, por exemplo,

150

impossibilitou a participação de muitos adultos que estavam lavrando a terra. Tanto no

PAIGC quanto em Paulo Freire o discurso foi muito mais eficaz do que a implantação na

prática de suas teorias. Freire defendia a não invasão cultural, mas orientou e aceitou que as

palavras geradoras fossem nacionais e tivessem ligação com o período da luta. O excesso de

diretividade de ambas as partes inviabilizou a concretização da almejada educação para a

liberdade.

Apesar de todos os pontos acima citados, entendemos que adjetivar de fracassada a

Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos em Guiné-Bissau é certamente uma visão

reducionista. O número de educandos que aprenderam a ler e escrever não chegou ao índice

previsto pelo Comissariado de Educação, mas algumas experiências foram bem-sucedidas,

como por exemplo, os alunos do Liceu de Bissau que trabalharam no campo ou a experiência

de Sedengal que serviu como um dos projetos-piloto para a alfabetização de adultos. Paulo

Freire esteve presente não só na educação de adultos, em que participou ativamente, mas

influenciou o sistema educativo como um todo, ainda que seu projeto educacional não tenha

prevalecido posteriormente.

Assim como Amílcar Cabral dizia que a luta pela libertação nacional era um fato

cultural e um fator de cultura, na medida em que ao mesmo tempo que é um produto da

cultura induz a transformação dessa, podemos dizer que Freire entendia o conhecimento desta

mesma maneira, posto que o conhecimento é simultaneamente um produto social e um fator

na transformação social. Para Paulo Freire, a

revolução não pressupõe uma inversão nos pólos oprimido-opressor, antes, pretende re-inventar, em comunhão, uma sociedade onde não haja a exploração e a verticalidade do mando, onde não haja a exclusão ou a interdição da leitura do mundo aos segmentos desprivilegiados da sociedade (FREIRE, 1996, p.40).

Logo, o projeto educacional de Paulo Freire consiste em questionar a naturalização do

conhecimento e buscar, através do debate nos Círculos de Cultura, concluir que embora

151

objetivado, o mundo social foi feito pelos homens e, portanto, pode ser refeito, ou seja,

transformado.

Nos detemos bastante nos princípios defendidos na teoria do conhecimento freireana

por acreditar que foi a defesa de princípios semelhantes e da condição similar de 3º mundo

que levou Guiné-Bissau a chamar Paulo Freire para a consultoria e esta foi a motivação

para que esse aceitasse o convite.

Mais importante que a metodologia freireana em si, ou seja, a maneira pela qual se

operaria a aquisição do conhecimento, é o símbolo que Paulo Freire representa. Freire

representa a adequação de um pensamento com uma época. O educador brasileiro, junto

com o PAIGC, reinventou sua teoria do conhecimento na tentativa da formação da

identidade nacional. Ao invés de partir da cultura do povo para alfabetizar, eles tentaram

criar uma cultura do povo e disseminar essa a partir da educação. Mais do que a aquisição

do aprendizado dos signos lingüísticos o que era pretendido por Paulo Freire e pelo PAIGC

era o engajamento político de um povo para a luta de ideais específicos.

152

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