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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
LARISSA MAGALHÃES COSTA
CAMPANHA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS: Paulo Freire em Guiné Bissau
RIO DE JANEIRO 2009
Larissa Magalhães Costa
CAMPANHA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS: Paulo Freire em Guiné Bissau
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Silvio de Almeida Carvalho Filho
Rio de Janeiro 2009
Costa, Larissa Magalhães. Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos: Paulo Freire em Guiné-Bissau / Larissa Magalhães Costa. – 2009. 156 f. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Rio de Janeiro, 2009. Orientador: Silvio de Almeida Carvalho Filho
1. Paulo Freire. 2. Guiné-Bissau 3.Alfabetização de Adultos – Teses. I. Carvalho Filho, Silvio de Almeida. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Comparada. III. Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos: Paulo Freire em Guiné-Bissau
Larissa Magalhães Costa
CAMPANHA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS: Paulo Freire em Guiné Bissau
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História.
Aprovada em
________________________ (Silvio de Almeida Carvalho Filho, Doutor, UFRJ)
________________________ (Sabrina Evangelista Medeiros, Doutor, UFRJ)
________________________ (Edna Maria dos Santos, Doutor, UERJ)
RESUMO
COSTA, Larissa Magalhães. Campanha nacional de alfabetização de adultos: Paulo Freire em Guiné Bissau. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Departamento de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009
Este trabalho visa estudar a Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos realizada
em Guiné-Bissau, com a consultoria do educador brasileiro Paulo Freire, nos primeiros anos
após a independência daquele país, reconhecida por Portugal em 1974. Guiné Bissau é um
pequeno país, cujo desafio, no período em que Paulo Freire prestou consultoria, era construir
uma nação igualitária. Devido ao número de etnias que coabitavam e ainda coabitam o mesmo
território, a diversidade se mostra flagrante em todos os domínios e era sobre a base desta
realidade complexa que o Partido Africano pela Independência de Guiné Bissau e Cabo Verde
– PAIGC – tinha o projeto de construir uma identidade e consciência nacional. O partido, no
papel de Estado, utilizou diversas estratégias, entre elas, a educação e, mais especificamente,
a alfabetização de adultos para criar o sentimento de unidade entre os habitantes daquele país.
Nossa proposta é estudar a implantação da Campanha Nacional de Alfabetização de
Adultos, verificando como se deu a participação de Paulo Freire, a partir da análise exegética
das cartas que este educador enviou ao Comissariado daquele país. Procuramos discutir a
partir da comparação entre os documentos do PAIGC, dos documentos do período colonial e
das cartas com a bibliografia secundária, as relações sociais existentes naquela localidade,
verificando em que medida o Estado conseguiu alterá-las e concretizar o seu projeto da
construção da nação guineense. Para tanto, trabalhamos os conceitos de nação, identidade
nacional, liberdade e projeto político, buscando avaliar na prática a vinculação do sistema de
ensino com os objetivos propostos pelo projeto de desenvolvimento do país.
PALAVRAS-CHAVE: Paulo Freire, Guiné-Bissau, Alfabetização de Adultos
ABSTRACT
COSTA, Larissa Magalhães. Campanha nacional de alfabetização de adultos: Paulo Freire em Guiné Bissau. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Departamento de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009
The aim of this paper is to study the National Adult Alphabetizing Campaign carried
out in Guinea Bissau in the first years of its independence with the consulting of Brazilian
educator Paulo Freire. Portugal acknowledge it in 1974. Guinea Bissau is a small country
whose challenge, at the time Paulo Freire was there, was to build a socialist nation. Due to the
number of ethnic groups that shared the territory at that time and still live there the diversity
was obvious in every respect. The African Party for the Independence of Guinea Bissau and
Cabo Verde – PAIGC – wanted to build a national identity and consciousness based on such
complex reality. Playing the role of the state the party used several strategies – among them
education, adult alphabetizing specifically – to create the feeling of unit among the inhabitants
of that country.
We suggest studying the implementation of the National Adult Alphabetizing
Campaign, focusing on Paulo Freire’s participation based on the thorough analysis of the
letters he sent to the Guinea Minister of Education. By comparing the documents of the party,
of the colonial period, the letters and the secondary bibliography, we mean to discuss the
social relationships in that country. We also want to establish to which extent the State
managed to change them to carry out its project to build the Guinea nation. For that, we used
the concepts of nation, national identity, freedom and political project. By doing so we tried to
study the practical link between the educational system and the targets suggested by the
project of development of Guinea Bissau.
KEY-WORD: Paulo Freire, Guinea Bissau, Adult Alphabetizing
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 8 CAPÍTULO 1 – EDUCAÇÃO COMO PROJETO POLÍTICO ...................................... 18 Projeto Educacional Guineense............................................................................................ 29 Educação como projeto político ........................................................................................... 41 CAPÍTULO 2 – EDUCAÇÃO PARA LIBERDADE? ..................................................... 61 A vontade de construir uma nação ....................................................................................... 69 Afinidades teóricas: ............................................................................................................. 75 Divergências na prática:....................................................................................................... 82 CAPÍTULO 3 – O MÚLTIPLO E O UNO: TENSÕES DE UM NOVO PAÍS ............. 106 Guineidade ........................................................................................................................ 109 Unidade na diversidade: possibilidades e limites................................................................ 119 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 145 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS :........................................................................... 152
Lista de Mapas: Mapa nº 1 – Localização Geográfica Guiné-Bissau.......................................................... 19 Mapa nº 2 – Divisão das etnias no território guineense.................................................... 22 Mapa nº 3 – Divisão das regiões de Guiné-Bissau ............................................................ 39 Mapa nº 4 – Guiné-Bissau ................................................................................................. 51 Lista de Fotografias: Foto 1 – Vista parcial do Círculo de Cultura na Zona do Có .......................................... 65 Foto 2 – Estudantes do Liceu de Bissau no trabalho produtivo....................................... 79 Foto 3 – Escola na zona libertada...................................................................................... 92 Foto 4 – Vista parcial do Centro Máximo Gorki – Escola de Có................................... 100 Foto 5 – Estudantes do Liceu a caminho do campo........................................................ 102 Lista de Diapositivos: Diapositivo 1 – Culturas tradicionais africanas.............................................................. 139 Diapositivo 2 – Dominação Colonial ............................................................................... 141 Diapositivo 3 – Dominação Colonial ............................................................................... 142 Diapositivo 4 – Quadrinho aculturação ..........................................................................143
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INTRODUÇÃO
Nessas páginas percorremos a experiência da Campanha Nacional de Alfabetização de
Adultos realizada em Guiné-Bissau, com a consultoria do educador brasileiro Paulo Freire,
nos primeiros anos após a independência daquele país, reconhecida por Portugal em 1974.
Consideramos enriquecedor estudar Guiné Bissau, posto que é um país, cujo desafio,
no período em que Paulo Freire prestou consultoria, era construir uma nação igualitária.
Devido ao número de etnias que coabitavam e ainda coabitam o mesmo território, a
diversidade se mostra flagrante em todos os domínios, desde a cor da pele até a forma de
habitação e de povoamento; da língua à religião; do vestuário ao regime alimentar; do
instrumento agrícola até as regras de casamento; da divisão do trabalho à repartição das
riquezas. E era sobre a base desta realidade complexa que o Partido Africano pela
Independência de Guiné Bissau e Cabo Verde – PAIGC – tinha o projeto de construir uma
identidade e consciência nacional.
A definição do corte cronológico desta pesquisa foi não foi simples, na medida em que
não temos uma definição precisa do término da experiência. Assim sendo, trabalhamos com o
período de 1975 – ano do início da consultoria de Paulo Freire – a 1979, período final do
governo do PAIGC, que é retirado do poder por um golpe de estado em 1980.
O começo deste período foi de extrema euforia e de tentativa da implementação dos
planos do partido para o país, elaborados ainda no período da luta por Amílcar Cabral e pelos
líderes do partido. O PAIGC no governo pretendia continuar a experiência que tinha vivido
durante a luta pela independência que durou cerca de quinze anos. Podemos destacar desse
período os avanços no âmbito educacional e na consolidação das diretrizes que deveriam ser
seguidas pós-independência.
9
Amílcar Cabral foi um dos fundadores do PAIGC e uma peça fundamental para a luta
pela independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde. Ele nasceu em Guiné-Bissau, estudou em
Cabo Verde e Portugal e retornou a sua terra natal como funcionário do governo colonial para
fazer o recenseamento agrícola, o que lhe proporcionou grande conhecimento do território,
muito importante para a luta armada que ocorreu anos depois deste trabalho.
Nas zonas libertadas do domínio colonial, o PAIGC consolidou sua ação, a partir de
uma organização até então nunca utilizada nessas regiões, baseada na vida comunitária, um
dos princípios tradicionais africanos. As escolas floresceram no mato e os hospitais de
campanha recolhiam os doentes, não só os guerrilheiros feridos, mas também os velhos, as
mulheres e as crianças vítimas dos bombardeios dos exércitos coloniais. Amílcar Cabral foi a
personalidade de maior destaque desse período, por ter conseguido mobilizar um grande
número de guineenses para auxiliar na luta contra o domínio colonial.
A guerra avançou rapidamente, deixando as tropas portuguesas em sérias dificuldades,
apesar das estratégias de bombardeamento com armas químicas e de divisionismo étnico, o
que o limitou a atuação deles aos centros urbanos e as fortificações dispersas pelo território.
A educação no período da luta teve um papel importante e isso se deve à forma como
o partido, e mais especificamente, Amílcar Cabral, entendia esse processo. A frase mais
célebre deste militante, que se transformou em uma palavra de ordem, constitui a base para o
entendimento da importância da educação: Cabral dizia que a luta de libertação era, acima de
tudo, um ato de cultura. E foi por causa deste princípio que as tarefas educacionais logo
apareceram nas primeiras regiões livres do domínio colonial. Cabe ressaltar que a educação
implementada nas zonas libertadas estava integrada às outras atividades cotidianas, sendo
vista como um aspecto da luta global (Cf. CARDOSO, 1993, ANDRADE, 1974).
10
A escola era assumida pela população que a sustentava da mesma maneira que sustentava os guerrilheiros. Os alunos não eram retirados do seu ambiente, nem separados da comunidade, mas trabalhavam e viviam, lutavam e sofriam, em conjunto com todo o povo (OLIVEIRA, 1980).
Essa educação atrelada ao cotidiano da comunidade se apresenta como um ponto
fundamental para o nosso estudo, pois se aproxima de uma das assertivas de Freire: a
educação deveria partir da realidade do educando e estar atrelada à vida cotidiana da
comunidade.
Portugal não queria entrar em acordo com Guiné por ter interesse nas ilhas de Cabo
Verde e ter a preocupação de se formar um efeito dominó sobre as outras colônias. Para
dividir o PAIGC e o separar de sua base principal, o general Spínola – governador militar de
Guiné-Bissau nos anos que antecederam a independência – preparou um plano de invasão da
Guiné-Conakri, país vizinho ao território guineense que auxiliou na luta pela independência
de Guiné-Bissau.
O plano foi posto em prática em novembro de 1970 e fracassou. Em 1972, uma missão
especial da ONU foi visitar as zonas libertadas de Guiné-Bissau e apesar das tentativas dos
portugueses de mostrar domínio sobre as áreas, constatou-se que o PAIGC tinha o controle
territorial. Um ano mais tarde, o PAIGC decidiu proclamar o Estado da Guiné-Bissau, mesmo
que parcialmente dominado por Portugal. Esta proclamação tinha o objetivo de gerar uma
situação de ilegalidade da permanência portuguesa no território guineense, pois um Estado
reconhecido por outros Estados demonstra, como é exigido pelos princípios que regem a
ONU, que controla o seu território e a maioria da população, colocando o ocupante em uma
situação ilegal do ponto de vista jurídico.
O governo português estava convencido de que para a manutenção de sua colônia seria
necessário o aprisionamento ou a morte do principal dirigente do PAIGC, acreditando que isto
ocasionaria o fim do partido e conseqüentemente da luta. Cabral foi assassinado em janeiro de
1973, mas, antes de sua morte, delimitou os princípios da criação da Assembléia Popular e
11
elaborou em grande parte o tipo de organização do novo Estado – principais órgãos de poder,
método eleitoral, entre outros.
Mais de um ano separou a morte do líder do movimento de libertação de Guiné e o
reconhecimento da independência daquele país, que ocorreu em setembro de 1974. O PAIGC,
no papel de Estado para colocar em prática os planos elaborados no período da luta, tentou
construir uma identidade nacional, a partir da conjugação interétnica. Assim como cada etnia
possui seus próprios costumes e maneira diferente de ver e de se relacionar no mundo e com o
mundo, o Estado é uma instituição que possui a sua própria forma de lidar com essas questões
e foi no encontro dessas diferentes visões que surgiram diversos problemas.
Após a independência, a Guiné-Bissau optou por um modelo de desenvolvimento
inspirado no socialismo. Podemos citar duas razões que motivaram esta escolha: a primeira é
que o país receberia o auxílio da União Soviética e dos países socialistas, tendo em vista o
período da Guerra Fria e a segunda é que outros países africanos recém-libertos que tinham
ensaiado um modelo de desenvolvimento do tipo liberal tinham fracassado (CARDOSO, nº
17, jan 94, p. 7). Além disso, não podemos esquecer que a formação da elite que liderou o
partido e a luta pela independência e assumiu o poder posteriormente, denominada por Mário
Cabral de “geração Cabral”, foi formada em Portugal e teve contato com os referenciais e
modelos político-econômicos do marxismo.
O paradoxo de pretender uma construção social baseada na igualdade e a prática
firmada em outras bases acompanhou este período histórico de transição da Guiné-Bissau. O
PAIGC tinha o propósito de construir uma nação, deixando a herança colonial de lado, e gerar
o crescimento do país. O partido, no Estado, utilizou diversas estratégias para criar um
sentimento de unidade entre os guineenses, entre as quais podemos destacar a educação e,
mais especificamente, a alfabetização de adultos.
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O PAIGC acreditava que seria possível romper totalmente com a estrutura colonial e
se deparou na prática com a falta de infra-estrutura e de verbas, levando o partido a optar pela
manutenção do aparato colonial, diferentemente do previsto antes de assumirem o governo e
do confronto com os problemas. Na educação, por exemplo, foco principal desta dissertação,
foram alterados os conteúdos das disciplinas humanas como História e Geografia, já que são
matérias que poderiam auxiliar na construção da identidade e da consciência nacional.
Nosso principal objetivo é analisar a implantação do projeto de alfabetização de
adultos, verificando como se deu a participação de Paulo Freire, através de um estudo
exegético das cartas que o educador brasileiro enviou ao comissariado daquele país.
Investigaremos também se a escolha do português como a língua a ser utilizada na
alfabetização atrapalhou na consecução do plano, visto que Freire defendia a alfabetização em
língua africana e o governo defendia a alfabetização em português. Da mesma forma,
verificaremos se, após a independência, formou-se uma elite reprodutora da herança colonial
e do modo de vida ocidental, visto que o projeto de desenvolvimento sócio-econômico
daquele país previa o rompimento com a forma de vida anterior, ou seja, o projeto da nova
sociedade elaborado pelo PAIGC visava uma transformação social, por isso, interessa-nos
também investigar em que medida isso foi alcançado.
Partimos do princípio de que a escolha da língua portuguesa para a alfabetização e a
centralização da campanha foram fatores decisivos para que a metodologia freireana não
correspondesse às expectativas esperadas. Também partimos da premissa de que apesar do
projeto de desenvolvimento sócio-econômico, pós-independência, prever o rompimento com a
herança colonial, se formou uma elite reprodutora do modo vida ocidental.
Esta pesquisa utilizou como fonte principal o livro de Paulo Freire Cartas à Guiné-
Bissau: registros de uma experiência em processo. Foram usados também um documento do
Comissariado de Estado da Educação Nacional e Cultura da República de Guiné Bissau, de
13
julho de 1976, o discurso de Luis Cabral Guiné-Bissau: O estado da nação, proferido em 9 de
maio de 1978, durante a abertura da primeira sessão ordinária da II Legislatura da Assembléia
Nacional Popular, uma carta enviada por Freire à Mário Cabral publicada no livro escrito por
Paulo Freire em conjunto com Antonio Faundez intitulado Por uma pedagogia da pergunta e
textos de Amílcar Cabral publicados no livro A arma da teoria: Unidade e Luta I.
Em nossa principal fonte de análise são descritas as experiências vivenciadas por
Paulo Freire não só em Guiné, mas também nos outros países onde trabalhou – Brasil e Chile.
Ao ser consultado para participar do projeto de alfabetização pensado pelo PAIGC, sua
principal preocupação era mostrar que a proposta de alfabetização só seria viável se fosse
elaborada pelos guineenses, pois somente eles entenderiam as necessidades e dificuldades de
seu povo. Mesmo assim Freire se dispõe a auxiliar, descrevendo o trabalho teórico
desenvolvido por ele e sua equipe em Genebra. Após as visitas à Guiné, conhecendo melhor o
país e seus problemas, propôs soluções que ele gostaria que fossem pensadas, discutidas e não
simplesmente aceitas pela equipe, afirmando que o projeto de alfabetização proposto pelo
governo teria que estar de acordo com o projeto de nação que eles estavam pretendendo
construir, servindo a alfabetização como uma ferramenta para concretização do projeto de
nação. Neste livro, estão contidas 17 cartas que Paulo Freire enviou ao Comissariado de
Educação de Guiné Bissau. Estas são endereçadas principalmente a Mário Cabral. Como o
próprio título do livro aponta, registros de uma experiência em processo, ele foi publicado
antes do fim da consultoria, assim sendo, cartas publicadas neste livro são de janeiro de 1975
à primavera de 1976, maneira pela qual Paulo Freire datou a última carta. A análise exegética
dessas fontes proporcionou uma visão panorâmica sobre as atividades na alfabetização de
adultos.
No livro Por uma pedagogia da pergunta Freire publicou uma carta que enviou em
julho de 1977 à Mario Cabral em que sistematiza as discussões que tiveram sobre a questão
14
da escolha da língua do sistema educativo e da alfabetização de adultos em Guiné-Bissau.
Nesta carta está evidente o desacordo que ambos tinham sobre este aspecto. Freire defendia
primordialmente que a língua do colonizador não poderia mediar a formação do povo, ao
contrário do PAIGC, que defendia a língua como um instrumento de relacionamento, sem
considerar a natureza ideológica da linguagem.
Para análise das cartas de P. Freire nos detemos sobre as seguintes questões propostas
por Ângela de Castro Gomes para o estudo de epístolas: quem escreveu e quem leu as cartas,
em que condições e locais foram escritas, quais seus objetivos, qual o seu ritmo e volume, que
assuntos e temas envolvem e como são explorados os vocabulários, enfim, qual o tipo de
linguagem utilizada. O valor das epístolas reside no fato de que, apesar de serem cartas
institucionais, apresentam a maneira pela qual Freire via o mundo e interagia com ele. Assim
sendo, nas cartas relativas ao trabalho de Freire desenvolvido em Guiné, a linguagem utilizada
é mais formal, se distanciando um pouco da escrita íntima, mas não deixando de ser uma
escrita pessoal ou como sugere Ângela de Castro Gomes, uma escrita de si.
O educador escreveu doze cartas para Mário Cabral, Comissário da Educação no
período em que foi consultor, e seis para a equipe de alfabetização de adultos, integrante do
Comissariado. Elas foram redigidas em Genebra e serviam como um relatório das atividades
promovidas pelo educador juntamente com a equipe do IDAC – Instituto de Ação Cultural,
que também participou desta experiência. Não há uma periodicidade constante (ritmo e
volume) no envio das cartas nem em suas respostas. Pelo contrário, Mário Cabral afirmou, na
entrevista concedida a Sérgio Guimarães, publicada no livro A África ensinando a gente, que
não respondeu as cartas enviadas por Paulo Freire. O Instituto Paulo Freire não tem o
manuscrito das cartas, nem os documentos que Freire ali menciona ter enviado à Guiné por
Miguel Darcy de Oliveira, nem as cartas ou a carta que a Comissão de Alfabetização enviou a
Freire. Os assuntos e temas que envolvem este corpus documental são concernentes à
15
temática da alfabetização de adultos, na qual são descritas as atividades efetuadas e as
indicações propostas por Freire para o prosseguimento do trabalho.
O documento do Comissariado de Estado da Educação Nacional e Cultura da
República de Guiné Bissau, de julho de 1976, faz uma retrospectiva das ações que já haviam
sido tomadas, desde a educação nas zonas libertadas no tempo da luta até a educação do
período de transição, de 1974 a 1976, terminando com as perspectivas de atuações futuras. A
partir das diretrizes delineadas neste documento discutimos as medidas tomadas pelo partido e
suas implicações.
Entre os documentos do partido, temos o discurso de Luis Cabral proferido, em 1978
na Assembléia Nacional Popular, em que o presidente fez um balanço das condições do
Estado guineense. Debruçamo-nos sobre o trecho do discurso referente à educação em que o
então presidente do país mostra que ainda naquele ano, o governo estava se esforçando para
colocar em prática o programa do partido. Paralelamente, os textos de Amílcar Cabral
auxiliaram na medida em que delineiam os princípios do PAIGC.
A partir do corpus documental aqui descrito fizemos algumas comparações com o
intuito de melhor trabalhar nossas hipóteses. Comparamos os pensamentos de Paulo Freire e
do PAIGC com o intuito de verificar as semelhanças e diferenças entre ambos, assim como
comparamos o sistema de ensino guineense com o sistema de ensino no período colonial e o
discurso do partido e sua prática efetiva com o mesmo fim de verificar as semelhanças e
diferenças para vermos as permanências e rupturas que foram de fato efetuadas.
O método comparativo tem o mérito de possibilitar ao observador afastar-se de seu
próprio ponto de observação e, ao ultrapassar o caráter individual e único do que está sendo
observado, permitir a passagem da descrição para a explicação dos processos históricos,
sistematizando, assim, conhecimentos. É através da comparação que podemos perceber a
importância de uma ausência específica (CARDOSO, 1983, 409-419).
16
Nossa pesquisa não se baseou em um trabalho exaustivo de comparação entre os
sistemas de ensino colonial, período da luta pela independência e pós-independência, nem
entre os pensamentos de Paulo Freire e do PAIGC, mas os paralelos efetuados entre tais
sistemas e pensamentos buscaram evidências das rupturas e permanências entre os modelos e
conseqüentemente, a partir de tais comparações, conseguimos agrupar dados que fossem
capazes de confirmar ou refutar nossas hipóteses.
Ciro Cardoso aponta que uma das vantagens do método comparativo é justamente a
possibilidade de um controle efetivo sobre as hipóteses. (CARDOSO,1983,409-419) A
abordagem comparativa enfatiza e torna visível o caráter seletivo e construtivo do trabalho
histórico, que muitas vezes fica implícito no uso de outras metodologias.
Heiz-Gerhardt Haupt no artigo O lento surgimento de uma História Comparada
aponta que algumas questões devem estar presentes ao se utilizar esta metodologia, quais
sejam, 1 – como decidir que objetos são comparáveis; 2 – como compará-los, e, 3 – por que
comparar. Debruçamo-nos sobre estas questões e entendemos que comparar os três sistemas
de ensino e os pensamentos de Freire e do PAIGC era possível na medida em que a partir
destas comparações verificaríamos a atuação na prática do Estado guineense evidenciando os
limites de sua atuação, assim como tornaríamos evidente as concordâncias e discordâncias
entre os dois pensamentos que ao mesmo tempo promoveram o início da experiência e
geraram o seu fim. A comparação foi efetuada a partir de temáticas emergentes dos
documentos do partido, do governo colonial e das cartas de Paulo Freire. Por fim, por que
comparar? Apesar desta resposta já estar implícita nas outras questões, vale ressaltar que
comparamos, pois queríamos trazer à tona as permanências do governo colonial no governo
do PAIGC (HAUPT, 1998, 205-216).
Comparamos o comparável na medida em que comparamos aspectos entre períodos
diferentes de um mesmo grupo social, ou seja, trabalhamos com sociedades contemporâneas,
17
mas comparamos também o incomparável, já que a tônica desta metodologia é trabalhar com
a interdisciplinaridade. Promovemos um diálogo constante com conceitos da educação, assim
como utilizamos também noções sociológicas (THELM, BUSTAMENTE, PHOINIX 10,
2004).
O debate realizado em cada capítulo foi construído a partir de um conceito. Assim
sendo, no primeiro capítulo trabalhamos com a noção de projeto político, no segundo, são
trabalhados os conceitos liberdade e nação e no terceiro, identidade nacional.
No primeiro capítulo, intitulado “Educação como ato político”, investigamos questões
relativas ao sistema de ensino guineense, verificando a relação entre projeto político e
educação, assim como analisamos a partir deste contexto do sistema educativo o papel
desempenhado pela alfabetização de adultos.
No segundo capítulo, chamado “Educação para liberdade?”, discutimos a
possibilidade da libertação do povo guineense pela educação a partir da articulação entre os
objetivos políticos e pedagógicos de Paulo Freire e os objetivos políticos do PAIGC para a
construção do Estado e da nação pós-independência, refletindo sobre o papel do socialismo no
pensamento de ambos.
Já no terceiro capítulo, cujo título é “O múltiplo e o uno: tensões de um novo país”,
abordamos o debate sobre a criação da unidade na diversidade, idéia defendida por Amílcar
Cabral, verificando a maneira pela qual o PAIGC no governo buscou criar a identidade
nacional. A partir desta discussão trabalhamos a questão da dominação via aparato lingüístico,
uma vez que a escolha da língua em que se processaria a alfabetização foi senão o único, o
principal desacordo entre os pensamentos de Paulo Freire e Amílcar Cabral e a principal fonte
para o fim da consultoria prestada pelo educador àquele país do continente africano.
18
CAPÍTULO 1 – EDUCAÇÃO COMO PROJETO POLÍTICO
Neste capítulo, abordaremos questões concernentes ao sistema educativo guineense e
apontaremos a relação entre projeto político e educação, assim como o papel desempenhado
pela alfabetização de adultos dentro deste contexto. Trabalharemos primordialmente o período
de 1975 a 1979, tendo em vista em que nele foi realizada a consultoria de Paulo Freire e da
equipe do Instituto de Ação Cultural – IDAC –, coordenada pelo educador brasileiro, para a
realização da Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos. A definição do corte
cronológico da pesquisa foi complicado devido à dificuldade de encontrar registro do término
da experiência. O livro Cartas à Guiné-Bissau, escrito por Paulo Freire, foi publicado no
período em que ele e sua equipe ainda estavam vivendo a experiência, em 1977. O artigo de
Rosiska Darcy de Oliveira, integrante do IDAC, no qual nos baseamos para delimitar a
temporalidade, diz que a experiência foi encerrada após 4 anos de contribuição. Assim sendo,
partimos do princípio que a consultoria foi encerrada em 1979. Mesmo não podendo precisar
com certeza o término da experiência, essa não chegou a 1980, já que neste ano houve um
golpe de Estado e a política governamental foi reformulada.
A educação teve um papel de destaque nos primeiros anos de independência,
denominado pelo Partido Africano pela Independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde –
PAIGC – de período de transição (1974-1976)1, pois o intuito desse era que o país progredisse
rapidamente. Para tanto, era necessário o desenvolvimento tanto de ordem quantitativa, tendo
em vista que era necessário dotar o país de um grande número de pessoas qualificadas, quanto
1 Esta denominação de período de transição aparece no documento do Comissariado de Educação e Cultura da República da Guiné-Bissau, de 1976, em que tratam do sistema educação desde o período colonial até o período de transição – 1974 a 1976 e são traçadas as perspectivas para os anos subseqüentes.
19
de ordem qualitativa posto que a instauração do novo modelo cultural proposto dependia
diretamente de uma formação de qualidade.
Faremos uma breve contextualização do período logo após a independência de Guiné-
Bissau, pois é relevante que se compreenda a maneira pela qual o PAIGC, ao assumir o
governo, encontrou o território. O conhecimento da estrutura social da Guiné-Bissau é
fundamental na medida em que a compreensão entre as relações sociais e os nexos
explicativos, que delas poderemos retirar, ajudarão no entendimento das questões aqui
propostas.
Mapa nº 1 – Localização Geográfica Guiné-Bissau2
Guiné-Bissau é um pequeno país localizado na costa ocidental da África entre Senegal
e a República da Guiné3. Sua superfície é formada por uma zona continental, que é coberta
por rios caudalosos e pelo arquipélago de Bijagós. Na década de 1970, o país tinha cerca de
2 Mapa retirado da página http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:LocationGuineaBissau.svg. Acesso em 8 de outubro de 2008 3 Conakry é a capital desse país que é popularmente designado de Guiné-Conakry.
20
800.000 habitantes que viviam majoritariamente da agricultura. A produção de arroz era a
principal fonte de alimentação, mas as produções de caju e amendoim também eram
substanciais (Cf. LOPES, 1982, p. 17, AUGEL, 2007, p. 50).
Esta região, que fora colônia portuguesa, teve sua independência unilateralmente
proclamada pelo PAIGC, em 24 de setembro de 1973, após mais de dez anos de luta armada.
A independência foi totalmente efetivada, ou seja, reconhecida também por Portugal, em 10
de agosto de 1974 (Cf. LOPES, 1982, p. 17, AUGEL, 2007, p. 50, CABRITA, 1999, p. 16).
A Conferência de Berlim, em 1885, partilhou o continente Africano entre as potências
coloniais européias. Nesse momento, Portugal que já estava presente em Guiné desde o século
XV teve que promover a ocupação efetiva do território, tendo em vista que se não cumprisse
essa condição poderia perdê-lo para outras potências coloniais. Apesar disso, o contorno
geográfico hoje existente só ficou definitivamente firmado após o acordo entre França e
Portugal (1902-1905), que ratificou o acordo de 1886 entre os dois países que determinava
que Portugal deixaria para França a região de Casamansa4; e, após violentas guerras de
conquista que duraram cerca de 30 anos, chamadas pelos portugueses de “campanha de
pacificação”. O último território dominado foi o arquipélago de Bijagós em 1936 (Cf. CÁ,
2004, p. 23, ALMEIDA, 1981, p. 31, LOPES, 1982, p. 21). Esse contorno geográfico
arbitrariamente determinado juntou naquele território diversos grupos sociais, assim sendo, lá
coabitam, ainda hoje, mais de 20 povos com mais de 20 línguas diferentes.
As etnias Fula e Balanta são as maiores e somam respectivamente cerca de 20% e 30%
da população. Os Manjanco, Mandinga e Pepéis5 correspondem cada a cerca de 10% da
população e as demais etnias somadas perfazem os 20% restante.
4 Esta região que passou a fazer parte do território senegalês era considerado o “coração da região” pela sua importância política, uma vez que lá era um bom ancoradouro para os vapores de alto mar que podiam aportar em segurança. 5 Esta etnia é conhecida como papéis ou pepéis, nome dado pelos portugueses.
21
Na bibliografia consultada sobre a composição das etnias em Guiné-Bissau, os dados
estatísticos sobre o percentual que cada uma corresponde varia bastante. O consenso se dá na
maneira pela qual estes grupos se organizam. O número de etnias e de línguas em Guiné-
Bissau é controverso, pois varia de acordo com os critérios criados pelo pesquisador que
contabiliza. Alguns sub-grupos étnicos são considerados por alguns etnias diferentes. Além
disso, provavelmente essa flutuação nos dados ocorra pela análise quantitativa desses grupos
em períodos diferentes, entretanto, não há como afirmar isso com certeza. O mapa abaixo se
refere a composição atual dessas etnias, na medida em que não foi possível encontrar mapa
etnográfico da Guiné-Bissau na década de 1970, mas acreditamos que o espaço geográfico ao
qual cada etnia está situada não teve uma alteração expressiva.
A sociedade guineense, apesar da quantidade de etnias que a compõe, pode ser divida
em 3 grandes grupos formados pela afinidade cultural, histórica e religiosa.6 O primeiro grupo
é composto pela maior parte da população, que compõe 55% e agrupa etnias que mantém as
práticas ancestrais, conhecidas como animistas. Este grupo é subdividido. Um subgrupo é
formado pelos Balantas, Bijagós e Felupes que tem uma organização social do tipo
comunitária e estratificada pelo sexo e idade, por isso, as funções são determinadas de acordo
com o sexo e a idade e a gestão administrativa judiciária e religiosa fica a cargo do conselho
de idosos. Já o subgrupo que congrega as etnias Manjacas, Pepéis e Mancanhas tem sua
organização social do tipo tributária e sua organização é considerada intermediária entre uma
estrutura vertical e horizontal, uma vez que já se encontra divisão social não baseada nas
divisões naturais, como por exemplo, sexo e idade, como é o caso da organização horizontal,
mas a divisão não é tão nítida como em uma estrutura vertical.
6 Essa divisão foi proposta pelos investigadores do INEP – Instituto Nacional de Estudo e Pesquisa.
22
Mapa nº 2 – Divisão das etnias no território guineense
7
O segundo grupo que compõe 40% da população é denominado de islamizados e é
formado primordialmente pelas etnias Malinké e Fula. Eles possuem escrita própria, posto
que utilizam o alfabeto árabe e a religião e os direitos consuetudinários se alicerçam no direito
corânico. A organização social é verticalmente organizada e os grupos são divididos em bases
familiares, políticas, religiosas e profissionais.
7 Mapa retirado da página www.tchando.com/gui4.html. Acesso em dia 8 de outubro de 2008.
23
O terceiro grupo compõe a menor parte da população soma 5% da população e foi
formado durante o período colonial. São os chamados luso-africanos que residem nos centros
urbanos, principalmente na capital e tem como língua materna o crioulo e a língua portuguesa
e são normalmente integrantes da religião católica (JAUARÁ, 2003, p. 8). É importante
ressaltar que mesmo esse grupo sendo minoritário, foi dele que saiu as principais lideranças
do país, após sua independência.
Amílcar Cabral8, sobre a organização dos grupos étnicos que viviam na Guiné-Bissau,
afirmava que os mandingas empurraram para junto do mar os grupos que eram do interior
como os balantas, papel, mancanha, entre outros. Além disso, ele afirmou que os balantas
aderiram a luta pela independência, posto que sua sociedade era horizontal e os homens que
faziam parte desse grupo queriam ser livres já que não tinham opressão interna, mas somente
dos portugueses. Cabral defendia que os balantas eram uma sociedade horizontal que não
tinham um grupo no comando e que os portugueses colocaram chefes mandingas ou antigos
cipaios para comandar esse grupo. Já os fulas ou manjancos tinham seus próprios chefes e
eram grupos hierarquizados (CABRAL,1978, p.125).
Em cima há o chefe, a seguir os religiosos, a gente grande da religião que, com os chefes, formam uma classe, a seguir vêm outros de profissões diversas (sapateiros, ferreiros, ourives) que, em qualquer outra sociedade, não têm direitos iguais aos de cima. [...] Depois então vem a grande massa da gente que lavra o chão. Lavra para comer e viver, lavra o chão para os chefes, como é costume (CABRAL, 1978, p. 125).
Carlos Cardoso, pesquisador do Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em
Ciências Sociais de Guiné-Bissau afirma que existiam entre 70 e 80 chefes tradicionais no
território guineense no século XVIII e cada qual administrava politicamente seu grupo étnico,
entretanto, todos estavam de alguma maneira submetidos ao reino mandinga, que atualmente
8 Como foi mostrado na introdução Amílcar Cabral foi um dos fundadores do PAIGC. Sua relação estreita com Guiné-Bissau e Cabo Verde, por ter nascido em Guiné e vivido em Cabo Verde o fez trabalhar pela independência de ambos, além de desejar a união dos dois território acreditando que seria possível a formação de uma única nação.
24
possui cerca de 13% da população, os fulas e os balantas são as etnias majoritárias com 20% e
30% da população, respectivamente. Provavelmente era embasado neste dado que Amílcar
Cabral defendia a existência da aproximação das culturas africanas. Amílcar Cabral defendia
que existiam muitas culturas na Guiné, mas que todas tinham uma base em comum.
Na Guiné, a cultura do nosso povo é produto de muitas culturas da África: cada etnia tem a sua cultura própria, mas todas tem um fundo igual de cultura, a sua interpretação do mundo e as suas relações na sociedade. E sabemos que embora haja populações muçulmanas, no fundo eles também são animistas, como os balantas e os outros. Acreditam em Ala, mas também acreditam no ‘iran’ e nos ‘djambacosses’. Tem alcorão, mas também têm o seu ‘gri-gri’ no braço e outras coisas. E o sucesso do Islamismo na nossa terra, como na África em geral, é que o Islam é capaz de compreender isso, de aceitar a cultura dos outros, enquanto os católicos querem acabar com isso tudo rapidamente para crerem na Virgem Maria, na Nossa Senhora de Fátima e em Deus Nosso Senhor Jesus Cristo (CABRAL, 1978, p.140).
Amílcar Cabral utilizava a idéia de um fundo comum das culturas africanas como
justificativa da existência de uma cultura guineense, ou seja, de uma unidade que no período
da luta se transformaria na consciência nacional.
A colonização da Guiné-Bissau, feita pelos portugueses, não alterou
significativamente as estruturas tradicionais existentes. Eram raras as propriedades agrícolas
que estavam nas mãos dos brancos e a presença militar e administrativa tinha o intuito de
explorar o comércio, gerar a imposição da monocultura e cobrar impostos, ou seja, a
economia da colônia estava integralmente subordinada aos interesses de Portugal.
O colonialismo provocou o aparecimento de uma pequena burguesia urbana composta
pelos funcionários do governo, comerciantes e professores, e o aparecimento de um reduzido
número de profissionais que trabalhavam no porto, na construção civil ou eram assalariados
rurais.9
9 CIDAC – 3 anos de independência
25
A colonização efetiva portuguesa durou cerca de 60 anos (1915-1973), mas foi
somente após a 2ª Guerra Mundial que este território foi verdadeiramente submetido à política
colonial (Cf. KOUDAWO, 1995, p. 69, AUGEL, 2007, p. 54).
A ocupação territorial se deu primordialmente na zona costeira, local em que foram
organizados centros urbanos cuja influência cultural colonial estava bem presente. Na década
de 1950, a infra-estrutura naquele território era precária, quase não havia estrada, as
telecomunicações não funcionavam direito, inclusive em Bissau, principal centro urbano. Não
havia escolas no interior e a assistência sanitária só estava presente nos entrepostos comerciais
(Cf. LOPES, 1982, p. 22).
No âmbito educacional, importante ferramenta para a assimilação da cultura européia
pelos guineenses, os portugueses procuraram descaracterizar as culturas autóctone e introduzir
novos valores. A educação escolar, que tinha o intuito de formar quadros administrativos para
o Estado colonial, era tida como uma forma de ascensão social para os africanos (ALMEIDA,
1981, p. 22-3).
O ensino colonial era funcional em relação às necessidades metropolitanas, inclusive quando não era implantado em algumas áreas (por ser considerado desnecessário): o saber transmitido foi sempre à cultura, os valores, a religião, os hábitos, a língua e até mesmo a geografia e a história dos povos da Europa (a história da África começava com a sua descoberta e colonização pelos europeus). Promovia-se assim a distinção entre aqueles que tinham acesso a esse conhecimento desligado da vida dos povos africanos (e que por isso podiam ser admitidos como aliados dos colonizadores) e aqueles que permaneciam ligados à sua cultura considerada inferior, resistindo ao aniquilamento de seus valores (e que, por não se tornarem civilizados, não tinham direito a uma vida melhor que a do trabalho forçado) (ALMEIDA, 1981, p. 22).
Até 1966, era feita uma grande comemoração quando um estudante de uma aldeia
terminasse o ensino primário. A partir de então, ele tinha duas possibilidades: ou o ingresso
no funcionalismo público ou a continuidade do estudo no liceu (JAUARÁ, 2003, 39).
A política educacional portuguesa em suas colônias objetivava, como o governo
português apontava, “formar cidadãos capazes de compreender plenamente os imperativos da
26
vida portuguesa, interpretá-los e transformá-los numa realidade constante, a fim de assegurar
a continuidade da nação” (SILVA CUNHA apud CABRITA, 1999, p. 26). Vemos aí uma
tentativa clara de Portugal de controlar todas as instâncias da cultura africana. Os livros
escolares eram um reflexo desse propósito e, até a década de 1960, o material utilizado na
colônia era o mesmo utilizado na metrópole. Somente em 1964, os livros começaram a ser
“africanizados” e continham ilustrações que mostravam uma convivência harmônica entre
brancos e negros. Ainda assim, as questões morais continuaram a ser tratadas do ponto de
vista português. (CABRITA, 1999, p. 27, ALMEIDA, 1981, p. 42) É evidente que essa
mudança de postura no ensino era uma tentativa de maior assimilação e aceitação da
população da manutenção dos portugueses em seus territórios ultramarinos. Vale lembrar que
o PAIGC se formou em 1956 e, já na década de 1960, iniciava a luta pela independência.
O fim do colonialismo tornava-se cada vez mais uma realidade para os movimentos emancipacionistas, principalmente com a independência de Gana em março de 1957. Esse fato influiu muito no crescimento da resistência contra a presença colonial na África (JAUARÁ, 2003, p. 227).
Além do acesso à educação ser restrito a um pequeno número de pessoas, estas
mantinham-se com dificuldade no sistema educativo. A educação dos guineenses se restringia
praticamente ao curso primário, para os poucos que conseguiram ir à escola. O baixo
aproveitamento dos alunos ocorria não só pela falta de preparo dos professores como também
pela exigência do aprendizado ser em português, que apesar de uma lei autorizar o uso de
idiomas nativos, esses não eram usados, uma vez que os professores não tinham domínio dos
mesmos (CABRITA, 1999, p. 29). Nenhum africano era legalmente impedido de freqüentar
as escolas primárias oficiais, desde que possuíssem cidadania portuguesa, ou seja, desde que
fossem assimilados. Como este grupo era formado por um número restrito de pessoas, uma
vez que eram muitos os requisitos necessários para conseguir a cidadania, a maior parte da
27
população estava excluída do sistema de ensino colonial (ALMEIDA, 1981, p. 48). Amílcar
Cabral a esse respeito dizia que
Na Guiné, 99% da população não podia ir à escola. A escola era só para os assimilados, ou filho dos assimilados, vocês conhecem a história toda, não vou contá-la outra vez. Mas é uma desgraça que o tuga causou na nossa terra, não deixar os nossos filhos avançarem, aprender, entender a realidade da nossa vida, da nossa terra, da nossa sociedade, entender a realidade da África, do mundo de hoje (CABRAL, 1978, p. 139).
Com a independência, o partido assumiu a responsabilidade do governo. Ao assumir
essa função o PAIGC poderia optar prioritariamente entre dois modelos políticos bem
diferentes, quais sejam: o da antiga metrópole ou inspirar as estruturas organizacionais na
África ancestral. Os dois modelos bem distintos em suas concepções possuem prós e contras.
A adoção do modelo da herdado da ex-metrópole facilitaria a implantação do novo governo,
na medida em que poderiam ser aproveitados os técnicos e funcionários herdados do antigo
governo colonial e a estrutura já estaria montada. Entretanto, haveria dificuldade de expandir
essa estrutura organizacional de acordo com as novas necessidades uma vez que seria
demorado formar novos profissionais com tal perfil e criaria-se um fosso entre a elite
urbanizada e a população etnorrural, maior parte da população. Já a inspiração organizacional
nos moldes da África ancestral basearia-se na descentralização das estruturas, formando-se
autogestões locais e a educação seria ministrada nas línguas nacionais e não em idiomas
estrangeiros (JAUARÁ, 2003, p. 53-4).
O partido, agora, responsável pelo governo do país, acreditava que ao disseminar as
idéias revolucionárias socialistas nas escolas, nos trabalhos, nas organizações de massas, as
comunidades etnorrurais iriam formar uma consciência nacional em detrimento de suas
consciências étnicas (JAUARÁ, 2003, p. 10). Nesse ideal está intrínseco o entendimento de
que o homem ao se despojar de sua identidade étnica ou regional iria assumir uma nova
identidade nacional de cunho socialista através do engajamento político e que essa seria capaz
28
de acabar com a exploração do homem pelo próprio homem. Daí resulta a defesa do PAIGC
da formação de um novo homem e de uma nova mulher para a construção da nação
guineense.
Entretanto, o governo optou pela manutenção de grande parte da estrutura colonial. No
plano externo foi demonstrada uma grande capacidade diplomática, posto que foram firmados
inúmeros projetos de cooperação técnica e financeira (JAUARÁ, 2003, p. 9).
“Na sociedade guineense, os critérios de estratificação social foram profundamente marcados pela política e interesses do poder colonial, e consequentemente herdados a nível do aparelho de estado e de outras instituições sociais pelo partido que conquistou a independência, o PAIGC. Como explica nosso colega Carlos Lopes (1988:57), ‘[...] após a independência, a prática social desenvolvida durante a luta armada foi-se esmorecendo face a capacidade de recuperação do estado colonial, entretanto herdado e posteriormente salvaguardado, no seu contexto político” (MONTEIRO, 1996, p. 350).
Como Carlos Lopes, aponta a prática desenvolvida durante a luta armada foi se
esmorecendo e o modelo de administração coletiva, tentado no início da administração –
período que Paulo Freire foi consultor do projeto de alfabetização de adultos – foi
abandonado antes mesmo de se consolidar devido a resistência da classe média urbana e dos
antigos funcionários coloniais, que estavam adaptados ao modelo administrativo anterior e
tiveram a seu favor a falta de profissionais qualificados e a complacência de alguns dirigentes
do PAIGC (JAUARÁ, 2003, p. 9).
A manutenção de grande parte da estrutura burocrática colonial evidencia o relevo
desta contextualização e traz à tona consigo a reflexão que os dirigentes guineenses se
confrontaram naquele período: como romper com a herança colonial mantendo sua estrutura?
Era premente a introdução do sistema educativo do PAIGC nas zonas que tinham
permanecido sob o controle da administração colonial até 1974, particularmente, os centros
urbanos como Bissau, Bafatá e Gabu, que tiveram grande influência dos colonizadores cuja
herança cultural estava fortemente presente. Aristides Pereira, secretário-geral do PAIGC, em
29
seu discurso na primeira sessão pós-independência da Assembléia Nacional Popular – ANP –
falou sobre a dificuldade que enfrentariam, tendo em vista que ele considerava que a batalha
mais dura era descolonizar as cabeças. Aristides Pereira declarou: “a batalha mais dura que
teremos talvez de travar será a descolonizar as cabeças, pois é uma tarefa urgente, como factor
determinante para assentarmos a nossa administração e a nossa economia em bases sãs e
abertas ao progresso e justiça para todos” (KOUDAWO, 1995, p. 109).
Foi proposto por alguns dirigentes do partido o fechamento provisório de todas as
escolas coloniais, no entanto, optou-se iniciar o ano letivo de 1974/75 utilizando a estrutura
colonial existente, introduzindo-se novos programas e materiais didáticos nesses
estabelecimentos. A falta de infra-estrutura, a escassez de material didático e a má-
qualificação dos professores foram obstáculos encontrados para consecução do plano de
utilização da educação como ferramenta para a libertação. Além disso, outro problema, o da
língua, talvez de amplitude ainda maior, assolava o projeto educativo de Guiné (Cf.
OLIVEIRA, 1980, CÁ, 2005).
Projeto Educacional Guineense
O PAIGC no governo procurou seguir os planos traçados pelo partido para construção
do Estado Nacional no período da luta pela libertação. Utilizaremos PAIGC, governo e Estado
como sinônimos, tendo em vista que nesse período o partido assumiu a liderança do Estado
guineense e os interesses do Estado e do partido foram, de certo modo, amalgamados. Os
projetos implementados foram os traçados pelo partido na luta pela independência, os líderes
do partido que assumiram os cargos de chefia e a escolha dos cargos era efetuada a partir da
militância e não necessariamente do preparo técnico e intelectual.
O documento de julho de 1976 do Comissariado de Estado da Educação Nacional e
Cultura da República de Guiné-Bissau denota a visão que o partido tinha sobre a educação no
30
período colonial, no período de luta pela independência e de transição definido por eles como
os anos de 1974 a 1976. Os primeiros anos após a independência foram chamados de período
de transição, posto que representavam a passagem do período colonial para o período em que
teriam, ou pelo menos desejavam ter, uma sociedade igualitária. Foram traçadas, também no
documento, as perspectivas para os anos seguintes.
A consultoria de Paulo Freire foi iniciada no período de transição, já que as
correspondências entre o educador e o Comissariado de Educação começaram em janeiro de
1975. Assim sendo, é fundamental demonstramos o projeto educacional do PAIGC neste
período para identificarmos o papel desempenhado pela alfabetização de adultos.
Nos objetivos gerais foi apontado que a finalidade do sistema educativo da República
da Guiné-Bissau era formar todo o povo desenvolvendo as capacidades intelectuais e
espirituais das novas gerações. Foi também reafirmada a necessidade da formação da
concepção científica do mundo para que “os alunos formados nas escolas sejam capazes de
interpretar, impulsionar e desfrutar os progressos da ciência, da técnica e da cultura e se
tornem jovens dotados duma educação integral” (DOCUMENTO: Comissariado da Educação,
1976, p. 54).
Além disso, foi mostrado no documento que os princípios gerais adotados na educação
tinham sido retirados das palavras de ordem gerais do PAIGC de 1965. Daremos especial
atenção a dois objetivos gerais e a conclusão que ilustram bem qual era o projeto educativo
daquele país.
Educar-nos a nós próprios, educar os outros e a população em geral para combater o medo e a ignorância, para eliminar pouco a pouco a submissão diante da natureza e das forças naturais que a nossa economia ainda não dominou. Lutar sem violências desnecessárias contra todos aspectos negativos, prejudiciais ao homem, que ainda fazem parte de nossas crenças e tradições. (...) Convencer cada um de que ninguém pode saber sem aprender e que a pessoa mais ignorante é aquela que sabe sem ter aprendido. Aprender na vida,
31
aprender junto do nosso povo, aprender nos livros e na experiência dos outros. Aprender sempre. (...) Portanto, o ensino no país tem por finalidade criar uma educação de massas que permita a integração do povo no mundo atual. O ensino, a todos os níveis deve ser orientado mediante a integração unitária de um sistema educacional que responda cabalmente às necessidades culturais, técnicas e sociais que o desenvolvimento da nação impõe.
Fica evidente que o PAIGC pretendia universalizar a educação, com o intuito de gerar
uma nova mentalidade calcada na concepção científica de mundo em detrimento de certos
aspectos tradicionais das culturas africanas. Esta perspectiva foi delineada ainda no período da
luta e se baseava na crítica às crenças que atrapalhavam a luta como, por exemplo, a crença
que amuletos não permitiriam que os corpos se ferissem, ou seja, o partido acreditava que
certas práticas das culturas africanas atrapalhariam o progresso do país e por isso precisavam
ser repensadas. Percebemos presente uma racionalidade ocidental no pensamento da elite
política guineense.
Amílcar Cabral, apesar de defender hábitos africanos antes da penetração colonial não
queria retornar as relações existentes antes da penetração dos portugueses no território. Pelo
contrário, Cabral pretendia criar o “novo homem” cujo fim era lucrar a partir da
industrialização do arroz e do amendoim. Daí a noção de progresso ser tão mencionada nos
documentos do partido.
A nossa luta é baseada na nossa cultura, porque a cultura é fruto da história e ela é uma força. Mas a nossa cultura é cheia de fraqueza diante da natureza. [...] Mas como já ultrapassámos isso, sabemos que na floresta, no mato, nós é que mandamos, nós, os homens, não é nenhum bicho, nenhum espírito que está lá metido. Isso é muito importante. Mas a realidade cultural da nossa terra é essa. Vários camaradas que estão aqui sentados têm o mesinho na cintura, convencidos de que isso pode evitar-lhes as balas dos tugas. Mas nenhum de vocês pode dizer-me que qualquer dos camaradas que morreram já na nossa luta não tinham mesinho na cintura. [...] Mas os camaradas devem compreender que tudo isso é também um obstáculo para a luta (CABRAL, 1978, p.142, grifo nosso).
Nos objetivos específicos do sistema educativo, vemos que algumas das metas eram:
ensino básico universal em seis anos, formação profissional pós-primária de 3 anos para
32
formação de quadros profissionais que auxiliassem no desenvolvimento do país como
professores para o 1º ciclo do ensino básico, auxiliares de enfermagem, práticos agrícolas e
profissionais destinados ao comissariado de energia, indústria e obras públicas, urbanismo e
construção, e, após esta formação geral era prevista uma formação pré-universitária de 2 ou 3
anos em institutos de ensino médio politécnico.
Existem dois pontos de destaque nos objetivos específicos, quais sejam, ligação
trabalho/estudo – escola e trabalho produtivo – e educação formal e não-formal. A defesa da
relação entre trabalho produtivo e escola se baseava na idéia de que os trabalhos manual e
intelectual deveriam ser atrelados, uma vez que o PAIGC entendia que a “fonte principal da
vida está na terra, na qual todos devem trabalhar para a produção de bens materiais”
(DOCUMENTO: Comissariado da Educação, 1976, p. 55). Vale lembrar que Guiné-Bissau era
um país agrário e a base da sua economia era a produção, principalmente do arroz
(OLIVEIRA, 1980, p. 73). O governo receava que a formação escolar afastasse a população
do trabalho agrícola e superlotasse os centros urbanos que não teria oferta suficiente de
trabalho. Para se evitar este problema do êxodo do campo para a cidade, o projeto
educacional, que tinha como intuito formar “novos” cidadãos, buscou amalgamar estes dois
aspectos. Era utilizada a expressão unir a escola à vida, ou seja, um dos pilares que embasava
a concepção educacional era a tentativa de aproximação da educação das realidades do país.
Quanto à educação formal e não formal é apontado que as metodologias seriam diferentes,
mas os objetivos eram os mesmo. Eles visavam a formação de pessoas que pudessem
trabalhar na cidade ou no campo de acordo com suas aptidões e vontades e queriam combater
a idéia de formação de escolas urbanas e escolas rurais, ou seja, era visado formar um único
sistema educativo em que em todos os níveis a educação estaria ligada necessariamente ao
trabalho produtivo. “Ora, um dos objetivos do ensino, agora, quer no sistema formal quer no
não-formal, quer na educação de jovens quer na educação de adultos, quer nas escolas
33
primárias quer nas secundárias, é ligar a escola a produção, de forma que a escola seja o local
onde se formem os quadros necessários para encarar o desenvolvimento sócio-econômico do
país” (DOCUMENTO: Comissariado da Educação, 1976, p. 56).
O Estado da Guiné-Bissau não quer um ensino seletivo, mas sim um ensino destinado a todo o povo, um ensino de massas. Quer métodos adaptados às realidades do país, adaptados a cada situação concreta. Quer levar a todo o povo, em todos os cantos do país, mais conhecimento e meios de melhor desenvolver as suas capacidades de trabalho, para o bem-estar de cada um e para o progresso do país. Desta forma, o povo não será objeto só, mas também sujeito das transformações sociais (DOCUMENTO: Comissariado da Educação, 1976, p.56).
Esse era o desejo do partido, mas não se efetivou na realidade. Além da reafirmação
constante do ensino estar adaptado às realidades do país é também dito com veemência que a
educação auxiliaria no desenvolvimento do mesmo. A educação estaria a serviço do progresso
daquele Estado Nacional.
As nossas escolas devem preparar esse homem de amanhã, ensinando-lhe não só a ler, a escrever e a fazer contas, mas também prepara-lo para participar na criação do mundo novo, de trabalho racional, aberto à técnica moderna, às conquistas da humanidade, para o desenvolvimento da qual ele deve contribuir (DOCUMENTO: Comissariado da Educação, 1976, p.56).
A pedagogia freireana estava de acordo com esse princípio do partido, na medida em
que ela não abarcava somente o aprendizado da leitura e da escrita dos signos lingüísticos,
mas primava principalmente pela reflexão do indivíduo sobre o seu meio social.
Segundo Paulo Freire, Mário Cabral, Comissário da Educação e Cultura do país,
quando Freire foi consultor do Projeto de Alfabetização de Adultos entendia a educação como
“expressão supra-estrutural, em suas relações dialéticas e não mecânicas com a infra-estrutura
da sociedade” (FREIRE, 1977, p. 45). Freire defendia a postura adotada pelo Comissariado e
afirmava que esta maneira de pensar a educação era bem eficaz, na medida em que as etapas
do ensino não eram só preparatórias para a próxima, mas estavam atreladas às necessidades
34
do país. Ao final de cada “nível de ensino”, o aluno teria desenvolvido competências
fundamentais para o desenvolvimento do mesmo, possibilitando, assim, o engajamento de
todos os alunos na luta pela “reconstrução” nacional.
O Comissariado considerava a educação como uma ferramenta para sedimentação da
transformação social que havia começado durante o período da luta pela independência.
O “novo homem” e a “nova mulher” tão almejados pelo PAIGC também seriam formados
pelo sistema de ensino, mas o Comissariado tinha consciência de que só a educação não seria
capaz de propiciar tal mudança. A educação poderia e lançaria o desafio, mas este deveria ser
adotado por todos os setores para que se concretizasse (FREIRE, 1977, p. 49).
Portanto, a grande tarefa da educação era esta, de acordo com Cabral: ‘temos que preparar nosso povo para aceitar este desafio que fazemos, o desafio da transformação da nossa terra.’ Segundo Cabral, o conceito de transformação da terra impede que se entenda a educação como mera transmissão estática de conhecimentos, antes compreendê-la como uma atividade dinâmica e criadora ao serviço da revolução social (CÁ, 2005, p. 73).
Freire em conversa com Sérgio Guimarães10 afirmou que Luis Cabral, irmão de
Amílcar Cabral e Presidente do Conselho de Estado da República da Guiné-Bissau, no
período em que ele foi consultor, afirmou que Amílcar conhecia o trabalho desenvolvido pelo
educador e durante a luta afirmara que chegaria o dia em que eles iriam chamar Paulo Freire
para trabalhar com eles lá (FREIRE, GUIMARÃES, 2008, p. 48). O pensamento de Freire
coadunava com as diretrizes do PAIGC formuladas por Amílcar Cabral durante a luta pela
independência da Guiné e que o líder da luta guineense almejava a concretização da
alfabetização de adultos com o auxílio do educador brasileiro.
Como vimos o sistema educativo guineense tinha como fim criar uma educação de
massas que permitisse a integração do povo no mundo moderno socialista. Isso significa dizer
10 Conversa publicada no livro FREIRE, PAULO, GUIMARÃES, Sérgio. Sobre educação: lições de casa. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2008
35
que era desejado igualdade de oportunidades a todos os cidadãos. Luis Cabral, no discurso
proferido em maio de 1978, durante a primeira sessão ordinária da II Legislatura da
Assembléia Nacional Popular, apontou que “a Educação é um dos domínios em que mais nos
temos esforçado para satisfazer os objectivos constantes do programa do Partido” (CABRAL,
1978, p. 123). A educação nesse período tinha 18% do orçamento e o Comissariado recebia
mais de um terço das receitas efetivas do Estado. Cabral aponta que mesmo com a maior
parcela do orçamento destinada ao sistema educativo a demanda educacional era ainda
enorme, entretanto, o presidente salientou a impossibilidade de destinar mais recursos além
dos que já eram consumidos neste setor. O percentual do orçamento destinado ao sistema de
ensino é reflexo do empenho e da crença que o governo tinha de que a educação era um dos
aparatos fundamentais para concretização dos seus planos. Vemos aí duas possibilidades,
quais sejam, ou a pobreza daquele país e os problemas de infra-estrutura eram realmente
gritantes, já que nem com a maior parcela do orçamento foi possível sanar os problemas do
sistema de ensino ou naquele período houve mais discurso do que a implantação na prática
das propostas.
No ano letivo de outubro 1974 a setembro de 1975, o PAIGC manteve a estrutura
existente, ou seja, nesse ano vigorou a estrutura da educação colonial, mas aumentou o
número de alunos nas escolas. “Este primeiro ano, quase experimental, permitiu também a
estruturação, a nível nacional, do Ministério da Educação e a recolha de dados indispensáveis
a uma planificação mais rigorosa do ensino” (OLIVEIRA, 1980, p. 84). A decisão entre a
manutenção do sistema educativo colonial ou seu fechamento foi bem difícil. O Comissariado
de Educação chegou a pensar em fechar as escolas no início do governo, até que
organizassem o ensino de acordo com os novos objetivos propostos pelo PAIGC. Com
relação a possibilidade do fechamento das escolas Mário Cabral disse: “Isso era um sonho.
Contudo, ainda hoje (1976) não estaríamos em condições de começar nossas aulas porque não
36
conseguimos ter, até agora, os meios que um tal ensino precisa” (FREIRE, 1977, p. 50). O
risco dessa manutenção seria a entrada em choque do sistema de ensino com o projeto de
desenvolvimento do país. A educação era nitidamente pensada como uma arma para a
transformação da sociedade e a permanência das estruturas coloniais poderiam configurar um
entrave neste intento.
Os anos letivos 1974-1975 e 1975-1976 serviram de base para que se delineasse um
novo sistema educativo que começou a ser implantado progressivamente a partir de 1976-
1977, denominado de ano II da Organização do sistema de ensino de Guiné-Bissau com as
seguintes limitações: falta de equipamentos, infra-estrutura e recursos financeiros. O ano
letivo de 1975-1976 foi denominado de ano I da organização do sistema de ensino, tendo em
vista que o contato com os problemas no sistema educativo no ano anterior viabilizaram a
organização do Comissariado com a criação de diversos conselhos, como o consultivo,
administrativo, etc. Vale lembrar que em 1974-1975 este departamento era ainda sub-
comissariado (CÁ, 2005, p. 87, ALMEIDA, 1981, p. 88, 157).
Nesse novo sistema educativo, o intuito era oferecer um ensino básico cujo fim era
escolarizar todos os jovens em seis anos. O Ensino Básico era dividido em dois ciclos, quais
sejam: 1º ciclo de quatro anos em que os alunos adquiririam conhecimentos de base e os
hábitos necessários para convivência na vida coletiva como solidariedade, responsabilidade,
amor ao trabalho, ao povo, à sua terra; 2º ciclo de dois anos em que os alunos completariam a
formação de base recebida no primeiro ciclo. Neste último ciclo, era dada, no entendimento
deles, a oportunidade ao jovem, através do aprendizado de uma língua de grande difusão, de
se abrir ao mundo exterior. Além disso, seriam desenvolvidos o espírito de iniciativa, o
sentido das responsabilidades individuais e o espírito crítico. As alterações nas disciplinas
foram: a introdução da Química e da Física (noções básicas para a compreensão dos processos
da natureza); Biologia em substituição as Ciências Naturais; união da formação militante,
37
História e Geografia em uma única disciplina denominada Ciências Sociais. Foi introduzido
Educação Sanitária e o francês – a língua dos países vizinhos da Guiné-Bissau que tinha um
bom número de falantes na capital – foi retirado para não sobrecarregar o ensino básico
(ALMEIDA, 1981, p. 159). A educação sanitária foi um dos focos da educação, já que na
Guiné existiam problemas de saúde, como, por exemplo, doenças causadas por insetos,
devido à falta de saneamento básico.
Após a formação básica, o aluno ingressaria em uma formação profissional pós-
primária de três anos ou seria admitido no ensino secundário (ensino Geral Polivalente)
também com três anos de duração. Terminado esta etapa o novo sistema nacional de educação
previa a existência de uma formação pré-universitária de dois ou três anos (CÁ, 2005, p. 83).
ESTRUTURA DO NOVO SISTEMA EDUCATIVO GUINEENSE
EDUCAÇÃO BÁSICA
6 anos
ENSINO GERAL
POLIVALENTE
3 anos
7ª a 9ª séries
1º CICLO
4 anos
2º CICLO
2 anos
FORMAÇÃO
PROFISSIONAL
PÓS-PRIMÁRIA
3 anos
ENSINO MÉDIO
POLITÉCNICO
mínimo de 2 anos
10ª classe em
diante
Um dos objetivos principais desse novo sistema de ensino se embasava no
desaparecimento das diferenças entre trabalho manual e trabalho intelectual. Por conseguinte,
em todas as escolas que o Comissariado projetava construir tinha espaços destinados às
38
granjas agrícolas. “O trabalho produtivo, além de contribuir para a união entre a comunidade
escolar e a comunidade trabalhadora no campo, ia ao encontro do desenvolvimento das
faculdades morais, físicas e culturais de todos os estudantes, levando estes a terem amor ao
trabalho e aos trabalhadores” (CÁ, 2005, p. 84-5).
Freire destinou a parte inicial do post scriptum do livro, nossa principal fonte de
pesquisa que relata o trabalho desenvolvido em Guiné-Bissau, para falar da relação entre
educação e trabalho e inicia a discussão mencionando a dificuldade na implementação desta
junção em Bissau. Ele diz que o Comissariado estimulou a permanência desta relação nas
antigas zonas libertadas e pacientemente foi implementando essa nova política nas escolas de
Bissau (FREIRE, 1977, p. 71).
Esta preocupação – a de jamais dicotomizar educação de produção – sempre caracterizou o PAIGC, marcando decisivamente toda a experiência educativa que se desenvolveu nas chamadas zonas libertadas, durante a luta, não poderia deixar de constituir-se num dado central, numa espécie de ‘tema gerador’ sobre que se fundaria o novo sistema educacional do país (FREIRE, 1977, p. 71).
Carlos Dias, que era o funcionário do Departamento de Educação de Adultos,
responsável por promover as relações entre trabalho e estudo, disse que a ligação entre esses,
neste período de transição, que tinha o intuito de consolidar a nação e a autodeterminação do
país, tinha dois objetivos, quais sejam: superação da contradição entre trabalho manual e
intelectual e possibilitar o autofinanciamento gradativo da educação (FREIRE, 1977, p. 72).
Evidencia-se neste discurso que objetivo de autofinanciamento gradativo da educação não era
somente ideológico, mas também financeiro, o que reforça o empenho em superar as
dificuldades inerentes a pobreza existente naquela região.
A dificuldade para a aceitação dos alunos do liceu em atrelar o trabalho manual ao
intelectual foi demonstrada por Freire. Entretanto, ele mostrou que este receio foi sendo
superado aos poucos, tendo em vista que de 1975 quando a experiência começou para 1977,
39
ou seja, dois anos depois, 800 jovens do liceu estavam organizados em comitês engajados no
trabalho produtivo ora no campo do hospital Simão Mendes, ora em outro campo agrícola
numa área urbana de Bissau (FREIRE, 1977, p. 73). Além disso, Freire mostrou que, no
interior do país, os resultados eram ainda melhores e que a região de Bafatá era considerada a
mais engajada, posto que se, em 1975/6, 96 das 106 escolas tinham seu campo agrícola, em
1977, todas as escolas já tinham seu próprio campo. Por conseguinte, faltava nessa região
somente o esforço de juntar a produção da escola com o da comunidade.
Mapa nº 3 – Divisão das regiões de Guiné-Bissau
11
O principal objetivo da educação no novo sistema de ensino foi publicado no Jornal
Nô Pintcha, na edição de 30 de setembro de 1976. Este foi um importante veículo de
comunicação no período desta pesquisa. Temos ciência da existência de textos relacionados à
alfabetização de adultos nele, mas, infelizmente, só tivemos acesso indireto ao conteúdo
11 Mapa retirado da página http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:GW-regions.png. Acesso em 7 de outubro de 2008
40
dessas publicações através da bibliografia consultada. O principal objetivo da educação no
novo sistema de ensino era:
Criar um trabalhador consciente de suas responsabilidades históricas e da sua participação efetiva e criadora e nas transformações sociais. Esperamos concretizar esse desejo através do conhecimento cada vez mais real das necessidades concretas do país, da definição do nosso projeto de desenvolvimento e do próprio trabalho realizado a nível das instituições escolares, através de discussões nos órgãos coletivos (Nô Pintcha apud ALMEIDA, 1981, p. 162-3).
Devido aos problemas mencionados, as reformas no ensino foram implantadas
lentamente. Mário Cabral, em um discurso-relatório proferido a Freire e sua equipe falou
sobre as principais tarefas para o ano letivo 1976-77, ano II de Organização do sistema de
ensino, após o PAIGC ter assumido o governo do Estado guineense. Três eram consideradas
fundamentais, quais sejam: 1º – a participação de todas as escolas no 3º congresso do Partido;
2º – a organização da Campanha Nacional de Alfabetização e 3º – ênfase nas relações entre
escola e trabalho produtivo (FREIRE, 1977, p. 50). Sobre a alfabetização de adultos, Mário
Cabral referiu-se aos trabalhos realizados em várias regiões do país através das “Brigadas”
capacitadas e supervisionadas pela Comissão Coordenadora de Alfabetização. As brigadas
eram grupos de estudantes que davam aulas aos demais. Isso possibilitava a disseminação da
educação, uma vez que os recursos financeiros não eram suficientes para as necessidades
(DOCUMENTO: discurso Luis Cabral 1978). Além disso, foi projetado um encontro ainda
para o ano II (1976-1977), que seria realizado em Bissau, em que participariam delegações
coordenadas pelos Ministros de Educação de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e
Moçambique. Seminário em que se avaliaria a prática que estava se realizando nesses países,
discutindo a educação em geral, mas dando ênfase na alfabetização de adultos. Luis Cabral,
ainda no discurso proferido na Assembléia Nacional Popular, disse que o encontro foi bem
satisfatório e o deixou orgulhoso, posto que foram discutidos muitos problemas comuns,
41
como por exemplo, a questão das línguas africanas nacionais e entre elas o crioulo
(DOCUMENTO: discurso Luis Cabral 1978).
Educação como projeto político
Vimos até o momento que o PAIGC acreditava que a educação era uma importante
ferramenta para a construção do Estado Nacional, uma vez que formaria pessoas para se
engajarem neste projeto, denominado por eles de luta pela “reconstrução nacional”.
A nação pressupõe uma cultura nacional que contribui para a criação de padrões de
alfabetização universais e de instituições culturais nacionais, como por exemplo, um sistema
educacional nacional (HALL, 2005, p. 50). A educação nesta perspectiva não é só um sistema
de instrução, mas um instrumento de divulgação da cultura e conformação dos indivíduos. A
educação, portanto, é um projeto político. E era desta forma entendida pelo governo
guineense.
Além disso, a educação é um sistema social e de socialização, na medida em que,
como Paulo Freire indicava, o ser humano é um ser inacabado e sua formação é produzida
através de um processo educacional que o ensinará a maneira de ser e atuar no mundo. Vale
lembrar que existe uma multiplicidade de sistemas educativos e estes que são elaborados de
acordo com as diversas concepções de mundo.
Todo e qualquer processo educativo é um ato político, na medida em que possui
alguma intenção. Para Freire não existe educação neutra, já que esta simplesmente velaria sua
intencionalidade, mas não a isentaria.
A educação como projeto político corresponde a uma determinada maneira de nos
relacionarmos e de exercemos o poder nesta relação. Em outras palavras, a maneira pela qual
nos relacionamos e como o poder é exercido configuram um projeto político. A educação
viabiliza um projeto político, sendo ela mesma parte deste.
42
No projeto político estão inscritas duas questões primordiais, quais sejam: que
sociedade queremos construir e que tipo de seres humanos queremos formar. São em torno
dessas questões que as sociedades mobilizam seus projetos e poderes são viabilizados por
meio de diferentes processos. Evidencia-se no documento do Comissariado de Educação de
1978 que o governo de Guiné-Bissau tinha clareza sobre o papel que a educação deveria
desempenhar na construção da nação e qual era o seu projeto político. “A orientação para a
educação também seria forçosamente escolhida em função do modelo da sociedade que se
pretendia construir. De igual modo, o tipo de escola que se criar e o tipo de quadros que se
formariam condicionariam grandemente essa mesma sociedade do futuro” (DOCUMENTO:
A Educação na Guiné-Bissau 1978 apud CÁ, 2005, 72).
Indubitavelmente, Paulo Freire foi quem mais trabalhou a dimensão política da
educação e a necessidade de fazê-la um processo mais consciente. Freire defendia que uma
educação crítica e reflexiva pode desvendar objetivos e pretensões não explicitados, mas
presentes nos projetos educacionais. Ele entendia que na tarefa educativa é fulcral a clareza
sobre o tipo de sociedade e seres humanos que se deseja formar. Em uma das cartas que Freire
enviou a Mário Cabral ele aponta a politicidade do ato educativo e afirma que
É nesse sentido que um Ministério de Educação, não importa em que sociedade, é sempre um ministério eminentemente político. Político, se serve aos interesses da classe dirigente, numa sociedade de classes; político, se serve aos interesses do povo, numa sociedade revolucionária (FREIRE, 1977, p.97).
Nesse sentido, a relação de Freire com PAIGC era de concordância na medida em que
o projeto de sociedade pós-independência estava bem delineado. O intuito da educação, nesse
momento, era não só formar pessoas tecnicamente capazes de construir o país, mas também
politicamente engajadas.
43
O Estado da Guiné-Bissau está consciente de que a educação é um dos fatores fundamentais da evolução dos indivíduos e das sociedades e que os seus efeitos são inumeráveis para o avanço técnico e para a elevação de nível de conhecimentos dos seus cidadãos (DOCUMENTO: Comissariado da Educação, 1976, p. 57)
Na terceira carta que Freire enviou ao Comissário Mário Cabral, se evidencia a clareza
no entendimento de que a educação é um projeto político e que a alfabetização faz parte deste
projeto global. Freire aponta que a alfabetização deve contribuir para o aclaramento da
consciência política da população e que esta não deve de forma alguma ser pensada
isoladamente como um conjunto de técnicas e métodos, mas, ao contrário, esta deve estar
inserida no projeto cultural que por sua vez está atrelado a objetivos políticos e econômicos.
Em outras palavras, a alfabetização, assim como o projeto cultural devem estar de acordo com
o projeto de sociedade que se deseja viver.
A alfabetização de adultos em Guiné-Bissau tinha papel de destaque na medida em
que em mais de 90% da população guineense era analfabeta, 95% pelo levantamento feito pro
Freire e pela equipe do IDAC (OLIVEIRA, 1980, p. 93) em 1975 e 90% dos 800.000
habitantes que viviam naquele território habitavam a zona rural. Assim sendo, torna-se de
fácil compreensão porque uma das mais importantes tarefas da educação expostas no
documento de 1976 era o combate ao analfabetismo. Os objetivos para a alfabetização de
adultos foram expostos no documento do Comissariado de Educação de 1978, quais sejam:
a) transmitir o máximo de conhecimentos a todo o povo, de forma a torná-lo elemento ativo das transformações sociais; b) levar as massas populares a compreender o que devem fazer para sua terra e quais os objetivos que ele já conhece na prática; c) valorizar o trabalho do povo, levando-o ao conhecimento no papel daquelas coisas que ele já conhece na prática; d) valorizar o homem e aproveitar as suas capacidades criadoras, de maneira que o nível de todo o povo seja modificado e gradualmente melhorado; e) criar uma sociedade em que os homens possam exercer verdadeiramente a sua personalidade e criar um desenvolvimento em que toda a potencialidade do povo seja posta a serviço do homem (DOCUMENTO: A educação na Guiné-Bissau, 1978 apud CÁ, 2005, p. 92).
44
A alfabetização englobaria alguns aspectos fundamentais para a “reconstrução
nacional”. No âmbito da saúde, em que estava sendo trabalhada a prevenção, se discutiria, por
exemplo, o combate ao mosquito e partiria-se da realidade da Guiné e se expandiria para
outros países africanos, também de colonização portuguesa, para enfatizar que este era um
problema comum. Além disso, enfatizaria-se a importância do trabalho coletivo em
contraposição ao trabalho individual para auxiliar no estímulo de formação de cooperativas
feita pelo comissariado da agricultura (FREIRE, 1977, p. 35). A educação guineense, que era
uma das formas de introduzir o socialismo, estava sendo voltada para o campo, uma vez que
90% ou mais da população daquele país era camponesa e essa pautava-se, fundamentalmente,
na transformação da realidade social.
Para concretização deste intento, o Comissariado criou o Departamento de Educação
de Adultos (Alfabetização), cujo trabalho foi desenvolvido com Paulo Freire e a equipe do
IDAC. “Alfabetizar é aprender a construir, é levar ao alfabetizando os instrumentos que são
necessários para que ele possa servir-se da sua capacidade para transformar o país”
(DOCUMENTO: Educação na Guiné-Bissau, 1978 apud CÁ, 2005, 91).
Freire e sua equipe fizeram algumas visitas à Guiné-Bissau. A primeira consistiu na
aprovação das bases do convênio entre o Conselho Mundial de Igrejas e o Governo daquele
país e para pensar como seriam efetivados os seminários de avaliação do trabalho que seria
desenvolvido primordialmente por Freire e sua equipe em Genebra e a implantação seria
administrada pelo Comissariado de Estado da Educação e Cultura, junto com um membro do
IDAC que se instalaria naquele país.
O entendimento de que se não partissem deste principio o projeto se configuraria
como uma invasão cultural confirma a coerência entre o pensamento e a prática deste
educador e sua equipe.
45
Partíamos, pois de uma posição radical: a da recusa a qualquer tipo de solução ‘empacotada’ ou pré-fabricadas; a qualquer tipo de invasão cultural, clara ou manhosamente escondidas. A nossa opção política e a nossa prática em coerência com ela nos proibiam, também, de pensar sequer que nos seria possível ensinar aos educadores e educandos da Guiné-Bissau sem com eles aprender (FREIRE, 1977, p. 17).
Freire aponta que primeiramente eles buscaram entrar em contato com todos os
departamentos do Comissariado de Educação com o intuito de conhecer os problemas e a
maneira pela qual estes estavam sendo confrontados no ensino primário e secundário. Freire
pretendia verificar como estava sendo elaborado o processo de transformação do sistema de
ensino e como estava sendo criada uma nova prática educativa em consonância com o projeto
de nova sociedade que o governo pretendia criar (FREIRE, 1977, p. 20-1).
O educador defendia a idéia de que a educação do colonizador não prestava em
nenhum sentido e que nada dela poderia ser aproveitado. Esta idéia bem radical era o reflexo
do seu pensamento naquele momento, e, por conseguinte, no projeto que buscava o
rompimento total com a herança colonial. Freire ignorava, portanto, a idéia de que a
convivência entre africanos e europeus teria modificado aquele povo e aquela cultura, da
mesma maneira que os africanos modificaram os hábitos dos europeus.
Nos termos de cooperação foram marcadas algumas das visitas que Freire e sua equipe
fariam ao país assim como a fixação em Bissau de um membro da equipe, sem custeio para o
governo guineense, que trabalharia junto a Comissão Coordenadora dos Trabalhos de
Alfabetização de Adultos, criada na mesma reunião em foi acertada o acordo (FREIRE, 1977,
p. 42). Nos intervalos das visitas, caberia a Freire e sua equipe, em diálogo com a Comissão,
fazer avaliação da prática, assim como elaborar as bases das futuras visitas, através das cartas
relatórios que foram publicados no livro Cartas à Guiné-Bissau: experiência em processo.
Freire assinala que em Genebra além dele e sua equipe continuarem pensando a
questão da educação em Guiné, particularmente no campo da alfabetização de adultos, eles
46
também elaborariam os materiais didáticos que fossem solicitados e que ao serem enviados à
Bissau seriam aprovados pela Comissão antes que seu uso fosse generalizado.
Freire conclui a síntese que fez das diretrizes do convênio afirmando que:
Dessa forma, nasceu o projeto que põe juntos, hoje, de um lado, o Comissariado de Educação da Guiné-Bissau, de outro a Commission on Churces’ Participation in Development, que o financia, o Instituto de Ação Cultural e o Departamento de educação do Conselho Mundial de Igrejas.
Há um ano que, sempre em diálogo com os nacionais, prestamos a mínima contribuição que podemos, e de que vem resultando um aprendizado que nos enriquece a todos (FREIRE, 1977, p. 42).
O trabalho da alfabetização partiria da estaca zero, ou seja, toda a estrutura
organizacional seria criada na medida em que fossem se realizando as experiências-piloto. A
falta do conhecimento do português pela população rural, a maioria no país, era um grande
obstáculo para a consecução do projeto. Assim sendo, optou-se pela implantação desse em
etapas. As premissas e as metodologias de trabalho iam sendo testadas gradativamente e
sendo repensadas conforme fosse necessário. “Na realidade, querer iniciar imediatamente uma
campanha massiva de alfabetização a nível nacional seria recair na perspectiva errônea que
consiste em reduzir a aquisição da leitura e da escrita a um esforço isolado, como se fossem
um fim em si mesmos” (OLIVEIRA, 1980, p. 93). Ao contrário, a conduta de Freire e sua
equipe baseava-se na idéia de que a alfabetização é a primeira etapa de um processo em
aberto e permanente de educação, que só tem sentido se for atrelado ao trabalho e à vida
cotidiana da população. A alfabetização tornava-se um instrumento que permitiria aos recém
letrados elaborar o conhecimento de sua própria realidade, visando aumentar seu poder de
transformação desta realidade.
Na carta nº 6, Freire informa ao Comissariado que conseguiram o financiamento e
marca nova visita à Guiné em fevereiro de 1976. Ele aponta a organização de sua equipe em
relação ao desenvolvimento do trabalho, afirmando eles faziam duas reuniões semanais para o
47
andamento do projeto, além do tempo que estudavam e trabalhavam sozinhos. Além disso, ele
disse que estavam coletando documentação sobre alfabetização de adultos que iriam remeter
ao Comissariado. Freire diz ainda que estava enviando uma carta em anexo e pedia que a
equipe acelerasse os estudos sobre o manual do animador e se dedicassem a fundo na
preparação deste, objeto da carta anexa (FREIRE, 1977, p. 106-7). Não foi publicado no livro
o material contido na carta em anexo e infelizmente não conseguimos durante o período desta
pesquisa acessar este material, de fato, não descobrimos se este material ainda existe.
Antes do trabalho desenvolvido com Freire e antes mesmo da entrada em Bissau
foram realizadas algumas atividades de alfabetização. A primeira campanha de alfabetização
foi realizada nas FARP e teve início em 1975. Para alfabetizar a população civil, o
Comissariado criou a Comissão Nacional de Coordenação de Alfabetização que era
encarregada pela orientação política e a Comissão Nacional de Alfabetização – CNA – que
era responsável pelos aspectos técnicos. Essas duas comissões foram responsáveis pelas
campanhas até 1978, momento em que foi criado o Departamento de Educação de Adultos.
(CÁ, 2005, 196)
Antes da participação de Freire na alfabetização de adultos, já tinham sido iniciadas
em Guiné-Bissau duas iniciativas e estas estavam de acordo com a perspectiva freireana de
educação. O esforço se centrava na unificação das experiências, respeitando-se as
especificidades de cada uma, para maior eficiência do Programa Nacional (FREIRE, 1977, p.
29). O chamado para a colaboração de Freire tinha o intuito de homogeneizar as iniciativas,
respeitando, como apontou o educador, as especificidades de cada um deles. “Assim,
enquanto que, no momento da primeira visita, havia 82 círculos de Cultura funcionando nos
quartéis de Bissau, nos bairros populares da cidade tudo estava por fazer ou refazer”
(FREIRE, 1977, p. 34).
48
Em 1976, foi elaborado um curso de formação de animadores dirigido pela equipe da
CNA. Dos 120 inscritos, apenas 60 terminaram o curso e somente 30 círculos de alfabetização
foram abertos, em Bissau. O projeto de alfabetização de adultos no campo civil, segundo
Freire, deveria estar diretamente ligada à política de governo, logo seria implementada em
regiões cujas relações sociais de produção estivessem em processo de mudança e no interior
de órgãos da administração do Estado, como hospitais, correios e telégrafos. Daí a
importância da estreita relação que o comissariado de Educação deveria manter com os
comissariados do Planejamento e Agricultura. Na primeira visita de Freire ao país, esta idéia
começou a ser esboçada, mas somente na segunda, em fevereiro de 1976, que isto ficou
definido claramente (FREIRE, 1977, p. 34). Estes círculos foram sendo fechados pela falta de
motivação das pessoas em se alfabetizar, diferentemente do que havia acontecido nas FARP,
em que os círculos tiveram grande êxito. Podemos perceber nas cartas e no texto de Rosiska
Darcy Oliveira, integrante da equipe do IDAC, os motivos para o êxito da campanha nas
FARP e a falta deste nos centros urbanos. Oliveira mostra que os anos de 1976 e 1977
marcaram “o início de um trabalho sistemático de alfabetização na região de Bissau, tanto no
seio das FARP como em alguns bairros periféricos da capital, bem como algumas
comunidades da zona rural” (OLIVEIRA, 1980, p. 94).
Freire, na carta nº 14, afirma o relevo do trabalho da comissão de alfabetização e diz
que “a dinâmica do trabalho na área civil dependerá muito do que se possa fazer no seio dessa
comissão que, por sua vez, deve ainda fornecer materiais à Comissão Nacional à qual cabe
pensar as linhas mais gerais da política da campanha” (FREIRE, 1977, p. 148).
Na carta nº 17, Freire aponta os possíveis motivos para os problemas enfrentados em
Bissau e para a concretização dos trabalhos realizados nas FARP.
Refiro-me ainda ao nível incipiente do trabalho de alfabetização de adultos nas áreas populares de Bissau. Em todos os depoimentos em torno do
49
andamento deste trabalho notava-se quão distantes se achavam os seus resultados, dos alcançados no mesmo esforço, no interior das FARP. (...) Parece evidente que uma das razões fundamentais que esclarecem o avanço se verifica nas atividades de alfabetização e pós-alfabetização no seio das FARP é o alto nível de consciência política de seus militantes, Consciência política forjada na luta de libertação. (...) Não é de se estranhar, por isso mesmo, que esses militantes, percebendo a luta pela reconstrução nacional como uma continuação necessária daquela, percebam, também, em termos críticos, a necessidade de aprenderem a ler e escrever como uma forma de melhor servirem à reconstrução do país e não como um meio de instrumentar-se no sentido de satisfazer a interesses individuais (FREIRE, 1977, p. 167).
Oliveira complementa a reflexão de Freire apontando que os componentes das FARP,
em sua grande maioria, foram combatentes na luta e, por conseguinte, eles já tinham o
engajamento necessário para a compreensão da necessidade da alfabetização e do trabalho
que estava sendo desenvolvido no setor educacional. A alfabetização não só forneceria
conhecimentos necessários para o desempenho das novas tarefas, mas também ajudaria na
elaboração das experiências passadas. A autora mostra que a experiência educativa na FARP
tinha duplo objetivo:
permitir a redescoberta e a elaboração teórica de toda a experiência política e cultural acumulada pelos combatentes na sua prática de luta;
Favorecer uma aquisição de conhecimentos e instrumentos que os qualifiquem para as novas tarefas a desempenhar, seja ainda no interior das Forças Armadas, seja na perspectiva de sua reinserção no meio rural (OLIVEIRA, 1980, p. 95).
Além disso, Oliveira defende que conhecimento do crioulo por todos os combatentes,
já que esta foi a língua utilizada na comunicação entre os membros das diferentes etnias
durante a luta, gerou as condições mínimas para o ensino do português, mesmo que este
processo tenha sido lento e gradual (OLIVEIRA, 1980, p. 95). O conhecimento do crioulo
facilitava o aprendizado do português, na medida em que esta língua é uma mistura das
línguas étnicas com a língua portuguesa. As FARP eram um organismo militar ligado ao
governo, e a disciplina, marca das forças armadas, foi um aspecto importante para a
disseminação do aprendizado da língua do colonizador em seu interior. O governo guineense
também pretendia utilizar as forças armadas como instrumento de difusão da língua
50
portuguesa, posto que os militares seriam animadores culturais dos círculos de cultura que
seriam implementados em todo o país na Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos.
Em Bissau, o estímulo para o aprendizado da leitura e da escrita não era coletivo como
o visto nas FARP. Ao invés de pensarem a maneira pela qual aquele conhecimento
corroboraria para a construção da nova sociedade, o intuito dos educandos que se inscreveram
nos círculos de culturas na capital do país era a espera da obtenção de uma melhoria na
situação profissional, ambicionando inclusive uma colocação no aparelho burocrático estatal.
O Estado não tinha condição de empregar o número de pessoas que almejavam fazer parte do
aparelho estatal e os estudantes foram aos poucos abandonando o curso e gradativamente os
círculos de cultura foram se fechando. A justificativa da equipe do IDAC para este abandono
foi a demora no processo de ensino-aprendizagem. “No momento em que o conteúdo da
alfabetização deixa de estar ligado à realidade cotidiana, o progresso é mais difícil e cai-se na
memorização mecânica. Pouco a pouco as pessoas desanimam, o esforço aparece como inútil
e desprovido de sentido, e o grupo acaba por desfazer-se no desinteresse geral” (OLIVEIRA,
1980, p. 96).
Ainda em 1976, mesmo diante do fracasso da tentativa de alfabetizar em Bissau, o
governo decidiu lançar a campanha nacional de alfabetização focando na população rural, que
era majoritária no país. Duzentos jovens, estudantes de diversas regiões, foram recrutados
para tal tarefa. Estes foram durante as férias participar do trabalho no campo e conviver com
os camponeses. A experiência foi realizada em 5 regiões, quais sejam: Buba, Cacheu, Gabu,
Oio e Tombali.12
12 Mapa retirado da página http://www.who.int/sysmedia/pdf/countries/gnb.pdf. Acesso em 7 de outubro de 2008.
51
Mapa nº 4 – Guiné-Bissau
No período da tarde, eles ensinavam os adultos a ler e escrever, assim como noções de
educação sanitária, higiene e agricultura, que tinham aprendido no curso de formação
ministrado na capital. Outra tarefa, primordial para a consecução da campanha era a formação
de novos animadores nas aldeias que deveriam continuar com o trabalho educativo após o
retorno dos estudantes (CÁ, 2005, p. 197). Assim como na capital, a campanha nas zonas
rurais também fracassou e decidiu-se, então, mudar o foco da campanha centrando o trabalho
na aprendizagem de técnicas ligadas ao desenvolvimento, à agricultura, a noções de saúde e
52
de higiene no lugar do aprendizado da leitura e da escrita. Por conseguinte, não foi empregada
nesta campanha comunicação escrita e sim a comunicação visual e oral (CÁ, 2005, p. 198).
A justificativa para falta de êxito nas zonas rurais foi o período escolhido para
campanha, pois como estava na época das chuvas as famílias estavam ocupadas com a lavoura
e em algumas áreas muçulmanas a prática do jejum dificultou a participação de alguns
alfabetizandos, além da falta de material e infra-estrutura que não era só um problema para a
alfabetização, mas sim para todo o sistema de ensino guineense. Contudo, o principal
problema apontado foi a escolha da língua.
A impossibilidade da alfabetização em português que já tinha sido evidenciada em
Bissau confirmou-se nas experiências nas zonas rurais. Freire aponta que mesmo não obtendo
o resultado esperado o projeto foi válido na medida em que surgiram experiências frutíferas
que inclusive ajudaram na reformulação da perspectiva adotada no projeto de alfabetização
(FREIRE, 1977, p. 76). A experiência altamente interessante que Paulo Freire se refere foi
vivenciada na aldeia de Sedengal, situada na região de Cacheu13.
Sedengal é uma aldeia em que coexistiam, no período da campanha, diversos grupos
étnicos que viviam da agricultura de subsistência. Era considerada como um ponto estratégico
para ser uma experiência-piloto, posto que a população que lá vivia tinha se engajada
ativamente na luta contra o colonialismo (OLIVEIRA, 1980, p. 97; ALMEIDA, 1981, p. 202).
Assim como na guerra, a população de Sedengal se empenhou no trabalho da
alfabetização tanto que, durante a discussão dos temas geradores, eles decidiram produzir
coletivamente para que a produção excedente pagasse as despesas do estudo. “E todos
resolveram cultivar bananas num campo agrícola (terreno do Estado) nos arredores da
tabanca14, em regime de trabalho voluntário coletivo, para produzir um excedente
13 Ver mapa na página anterior. Sedengal é uma aldeia que fica próxima a São Domingo, perto da fronteira com o Senegal. 14 Aldeia.
53
comercializável que financiasse as despesas do ensino” (OLIVEIRA, 1980, 101; ALMEIDA,
1981, p. 203). Este trabalho gerou a necessidade do aprofundamento de temas ‘relacionados
às técnicas do cultivo e de sua comercialização. Na horta coletiva, foi vivenciada a leitura e a
escrita da realidade, apesar da dificuldade no aprendizado da leitura e da escrita da palavra.
Sedengal se afirma, cada vez mais, hoje, a nível nacional na Guiné-Bissau, não porque os participantes dos círculos de cultura tivessem chegado a poder escrever e ler pequenas frases em língua portuguesa, mas porque em certo momento, da inviável aprendizagem daquela língua, descobriram o possível: o trabalho coletivo. E foi dando-se a esta forma de trabalho, com o qual começaram a ‘reescrever’ sua realidade e a ‘relê-la’ que se tocaram e despertaram a comunidade toda. Nenhum texto, nenhuma leitura mais correta poderiam ter sido apresentados do que a horta coletiva, do que a presença atuante de uma população engajada na reconstrução nacional (OLIVEIRA, 1980, p. 102).
O trabalho desenvolvido em Sedengal desencadeou a reformulação da campanha de
alfabetização e levou Freire a considerar que, em determinados casos, é necessário
primeiramente a implantação da pós-alfabetização para que a alfabetização aconteça em sua
plenitude num segundo momento.
A impressão que me fica sem nenhum dogmatismo, refletindo sobre a experiência de Sedengal, é que o dinamismo entre os círculos de cultura e a atividade produtivo-coletiva continuará, mas, em certo momento em face das dificuldades encontradas, o interesse pelo aprendizado do português diminuirá mais e mais. Se isto ocorrer, o que não significará nenhum desastre, não há, por que a Comissão Coordenadora diga um ‘até logo’ triste, de quem se sentisse frustrado, a Sedengal. A sua tarefa de Ação Cultural continuará. O domínio da linguagem enquanto linguagem total, da expressividade, permanecerá. A experiência de Sedengal simplesmente se afirmará noutro sentido, já evidente hoje: no da ‘leitura’ e no da ‘re-escritura’ da realizada, sem o aprendizado da escrita e da leitura dos signos lingüísticos (FREIRE, 1977, p. 79).
Após a passada em revista das experiências relativas a alfabetização de adultos e o
apontamento do principal problema que foi a escolha da língua para o desenvolvimento do
projeto, é importante denotar as estratégias que foram utilizadas ao longo deste percurso que
durou cerca de 4 anos. Vale lembrar que a discussão sobre a escolha da língua será
aprofundada no terceiro capítulo.
54
Freire faz uma síntese na introdução do livro, fonte desta pesquisa, das atividades que
foram realizadas no ano I da organização do sistema de ensino guineense – 1975/1976 – e
mostra que estratégia utilizada na alfabetização de adultos era a “linha de massas”. Nesse
ponto, ele deixa bem evidente o caráter político da alfabetização que se pretendia ter na Guiné
e aponta que os programas de alfabetização de adultos, independente de onde fossem
iniciados, decisão que dependia do partido e do governo, deveriam ser assumidos pela
população local. Podemos perceber aí que Freire buscou conciliar sua metodologia de
trabalho com as determinações do partido/governo (FREIRE, 1977, p. 64). O educador
buscou fazer o programa nacional de alfabetização a partir das necessidades locais, apesar de
existir uma uniformidade nas ações.
O projeto foi implementado a partir da definição de zonas prioritárias que estariam na
concepção do partido prontas para participar da “luta pela reconstrução nacional”. Freire
entendia que se as condições não existiam para tal ou ainda estavam muito longe de existir, a
alfabetização não tinha sentido, posto que seria feito somente o esforço do conhecimento do
signos lingüísticos sem a reflexão necessária que estes demandam. Assim sendo, a
alfabetização seria iniciada nos locais de maior engajamento político para que posteriormente
fosse disseminada pelo resto do país. “Por isso é que, sendo nacional a sua campanha, parte,
como antes salientei, daquelas zonas e daqueles setores que, propiciando uma prática válida,
oferecem aos quadros que dela participam um rico e indispensável aprendizado com que se
preparam para estender e aprofundar a ação” (FREIRE, 1977, p. 66).
Era baseado nesta perspectiva de alastramento após a criação das condições
necessárias para tal que Freire não defendia a massificação da alfabetização, mas sim estas em
linha de massas, que significavam a implantação do projeto por etapas. A crença neste ponto
de vista fica evidente no seguinte trecho publicado no livro: “De uma coisa estamos certos:
marchando na paciente impaciência, por isso com segurança, os trabalhos de alfabetização de
55
adultos, na Guiné-Bissau, mais que uma promessa são uma realidade” (FREIRE, 1977, p. 68).
Temos que lembrar que o educador escreveu o livro enquanto ainda vivenciava a experiência
e no período em que este foi publicado o programa nacional de alfabetização de adultos estava
no auge de sua implantação, daí ser coerente seu discurso repleto de expectativas.
A tática desenvolvida por Freire para alfabetizar consiste em um primeiro momento
em que são discutidas situações denominadas pelo educador de existenciais, tendo em vista
que refletem o cotidiano dos educandos para que os problemas sociais existentes na
comunidade sejam debatidos conjuntamente com a definição do que é cultura e do que é
natureza. É fundamental nesses primeiros debates que os educandos compreendam que o que
o homem transforma é cultura e que, por conseguinte, as situações cotidianas podem ser
transformadas, posto que são produtos das interações humanas. Após esta fase se iniciam as
discussões acerca das palavras geradoras que no caso da Guiné-Bissau foram escolhidas, ao
invés de localmente, pelo governo e estavam ligadas em sua maioria ao período da luta. Vale
ressaltar que os animadores culturais tinham autonomia para adaptar as palavras aos
educandos dos círculos. É interessante perceber que a resistência da população na campanha
de alfabetização provavelmente foi fruto da distância entre os objetivos desta e dos reais
interesses da população. Cá diz que a oposição entre a cultura oral e escrita teve um papel
fundamental nessa resistência (CÁ, 2005, p. 203).
Freire e a equipe do IDAC propuseram ao Comissariado de Educação o uso de
audiovisual como estratégia para discussão da realidade guineense. Mário Cabral gostou tanto
da idéia que esta foi apresentada em uma reunião de base do partido, que foi feita no bairro de
Pilon de Cima, na periferia de Bissau. O uso do audiovisual foi à alternativa encontrada, pela
equipe, para tornar acessível à população sua história, uma vez que a taxa de analfabetismo
naquele país era elevada. Claudius Ceccon, integrante da equipe do IDAC, disse sobre o uso
do audiovisual:
56
[...] era preciso encontrar um modo de transmitir uma série de dados que haviam sido recolhidos, para que toda a população tivesse acesso à sua própria história. Como fazer? Era preciso encontrar um meio que permitisse uma ‘leitura’ (...) um meio que fosse suficientemente flexível para permitir que o conteúdo fosse discutido, criticado, completado e incorporado à própria experiência e conhecimento (CECCON, 1980, p. 108).
A opção pelo uso de desenhos de humor veio do entendimento de que a leitura das
informações contidas neste tipo de representação só é possível se o conteúdo for familiar,
assim sendo, parte-se do local para o universal, princípio defendido por Paulo Freire e sua
equipe. Além disso, o humor ajuda nesse processo de apreensão, na medida em que ele
justamente não é sério nem sisudo, como costuma ser, infelizmente, a educação (CECCON,
1980, 109). Vemos neste ponto um retorno à prática da oralidade africana, devido à
impossibilidade do aprendizado da leitura da escrita na língua portuguesa.
Depois do não funcionamento da campanha de alfabetização com a consultoria de
Paulo Freire, em 1979 foi desencadeada uma nova ofensiva, organizada pelo Departamento de
Educação de Adultos – DEA – criado nesse mesmo ano. Essa nova iniciativa tinha previsão
de duração de 5 anos e se fundava em um método de alfabetização funcional, em que
diferentemente do ocorrera anteriormente os alfabetizadores seriam assalariados. No período
de elaboração deste projeto culpabilizaram Freire pelo fracasso das tentativas anteriores.
O projeto-piloto para a definição de que metodologia adotar na alfabetização e pós-alfabetização teve origem na constatação e avaliação negativa do fracasso das campanhas anteriores. Não era possível realizar um programa de alfabetização inspirado no método de Paulo Freire, em que os alfabetizandos aprendessem a ler e escrever a partir do descobrimento e da compreensão crítica de sua realidade e das palavras geradoras a que estavam ligadas como povo, luta, trabalho, disciplina. Essa metodologia não deu os resultados previamente esperados. Ademais, a campanha tinha como língua o português, falado apenas por 10 a 12% da população. Era necessário, portanto, propor uma nova metodologia e testa-la na prática (CÁ, 2005, 199).
Realmente não é possível alfabetizar na metodologia freireana em um língua
estrangeira e menos ainda com palavras que não faziam parte do universo vocabular dos
57
educandos. O que é contraditório nessa crítica feita pelo governo ao educador é que este
defendeu veementemente a necessidade do uso de outra língua que não a portuguesa no
projeto, entretanto, o comissariado sempre rejeitou sua idéia.
Até o momento foi demonstrada a visão do PAIGC, no próximo capítulo será discutida
a relação entre a teoria e sua implantação na prática. Já evidenciamos o principal ponto de
discordância entre Freire e o governo, é importante que reflitamos, agora, de forma breve,
uma vez que esta temática também será aprofundada no capítulo que se segue, sobre o projeto
guineense, norteado pelas seguintes questões: este era um projeto socialista? Como o Estado
via e se relacionava com as sociedades tradicionais locais?
Considero fulcral começar este debate com uma citação de Carlos Lopes:
De uma forma geral, quase todos os MLN adoptaram como suas as teses soviéticas sobre a libertação nacional e a construção do socialismo. Quase todos estimam que a luta de libertação nacional conduz à revolução social, e atribuem um caráter concomitante e de reacção em cadeia a estas duas vertentes da contestação política. Quase todos falam do novo homem que nascerá das lutas de libertação nacional sem dar um grande conteúdo ao que tal significa (LOPES, dezembro 1986 ano X nº 69/70, p. 102).
Vemos, pela afirmativa de Lopes, que a filiação ao socialismo e ao marxismo-leninista
não foi só uma iniciativa de Guiné-Bissau. Pelo contrário, Angola e Moçambique declararam
seu posicionamento oficialmente, ao contrário do PAIGC que não se dizia socialista, mas
refletia em seus documentos e programas fidelidade aos princípios da democracia nacional
(LOPES, dezembro 1986, ano X nº 69/70, p. 103). O autor aponta que confundimos, muitas
vezes, o socialismo com a mudança para qualquer novo modo de produção que pretenda
acabar com a herança colonial e criar um fortalecimento econômico e remodelamento social a
fim de consolidar a nação. Ele diz que esquecemos que estes objetivos podem ser de uma
revolução burguesa. Mesmo que algumas medidas sejam tomadas com o fim da socialização
dos meios de produção, estas podem rapidamente serem transformadas (LOPES, dezembro
1986, ano X nº 69/70, p. 104).
58
De facto assiste-se, nos países escolhidos, as duas fases de evolução política. Uma que se situa até 1977, na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, em que a dinâmica da luta de libertação nacional ainda encobre muitos fracassos de concepção e onde os mitos ainda não estão destruídos. Nesse período consolidam-se as estruturas do movimento em partido de vanguarda no modelo leninista adaptado aos condicionalismos locais. Os Congressos de 77 declararam acabar com o subdesenvolvimento na década seguinte, ou acabar com o inimigo, ou vencer o analfabetismo, etc. Enfim, o optismo. E a partir de 1980 é que se inicia a consciência da catástrofe iminente e inicia-se a procura dos meios para a conjurar. Esse processo foi mais transparente na Guiné-Bissau, com o 14 de novembro de 1980 (LOPES, dezembro 1986, ano X nº 69/70, p. 105).
Esse período do otimismo apontado por Lopes foi o período da tentativa da
reformulação das relações existentes com Portugal e busca pelo que denominavam de
autodeterminação. O PAIGC acreditava que era necessária uma vanguarda formada por
intelectuais para a consolidação da nação guineense. Essa vanguarda deveria ser formada pelo
grupo que Amílcar Cabral defendia que deveria se suicidar como classe para renascer como
membro do povo. Freire definiu que o intelectual deveria ser de um novo tipo e que este
surgiria dentro desta nova sociedade que estava sendo criada, no ponto de vista deles
reconstruída. Este intelectual seria forjado na unidade entre o trabalho manual e o trabalho
intelectual (FREIRE, 1977, p. 59). Esse grupo que deveria se suicidar e ser de um “novo tipo”
foi o grupo que lutou na guerrilha e era formado pelos quadros urbanos do partido, que
algumas vezes passou por cima da luta campesina.
A busca pela “reconstrução da nação” foi empreendida através da articulação entre o
partido e o Estado. Apesar de Amílcar Cabral defender que a criação nação deveria ser feita a
partir da diversidade na unidade, o discurso nacionalista, após a independência, se colocava
acima das etnias. Raul Mendes Fernandes apontou que os chefes tradicionais que não
apoiavam o governo de Luis Cabral foram julgados no Tribunal Popular e punidos
exemplarmente. A justificativa para a pena de morte, inclusive, era de crime contra a nação
(FERNANDES, nº 16 jul 1993, p. 44).
“Este discurso ‘nacional’, elaborado pela direcção intelectual do PAIGC, justificava a violência legítima contra os obstáculos à edificação do Estado-
59
nação, isto é um aparelho de Estado centralizado sob o controle de uma burocracia política constituída pela aliança entre as direcções intelectual e militar do PAIGC reforçada pelos funcionários da antiga administração colonial” (FERNANDES, nº 16 jul 1993, p. 44).
Podemos perceber que existia certa confusão entre os interesses do partido e os
interesses do governo e a tentativa da formação da nação e da criação de uma identidade
nacional foi promovida até mesmo através do uso da força. Vemos que no interior do Estado
coexistiam os interesses da direção militar, intelectual e dos antigos funcionários da antiga
administração colonial. Como os interesses dos grupos étnicos eram conjugados nesse
mosaico? Vale lembrar que as etnias tinham interesses muitas vezes distintos e que habitavam
naquele território mais de 20 grupos diferentes. A Guiné-Bissau surgiu dividia entre cristãos e
muçulmanos, mais claros e mais escuros, cabo-verdianos e guineenses, quem estudou fora ou
não, entre guerrilheiros e quem ficou em Bissau. Essa complexidade nas relações sociais
existentes no território guineense fazem com que seja difícil pensar em uma nação igualitária.
No próximo capítulo veremos com maior profundidade as relações estabelecidas entre o
partido/governo e os chefes tradicionais, assim como analisaremos a importância do
desenvolvimento nacional e da educação para a concretização da autodeterminação. Em
outras palavras a educação e o desenvolvimento econômico libertariam o povo guineense?
Para finalizar este capítulo consideramos fundamental citar um trecho do artigo de Fernandes
que sintetiza a relação entre os chefes tradicionais com sistema colonial, em seguida com o
movimento de libertação nacional, no primeiro momento após a independência, em que é
tentando suplantar os interesses étnicos, para culminar na crise do Estado-nação, em que as
identidades étnicas passam a ser “respeitadas”.
O sistema político colonial, baseado na aliança entre o poder colonial e os poderes tradicionais, foi posto em causa pelo movimento de libertação nacional, que gerou novas formas de poder centradas nas noções de partido, estado e nação. Após a independência, a construção de um Estado nacional centralizado, sob o controle de uma burocracia política, esmaga os ‘etnismos’, acusados de serem os geradores de tribalismos e de práticas antinacionais. A crise do Estado-nação e a gestão monolítica do Partido
60
fizeram renascer as afirmações de identidade de caráter étnico e com elas os novos poderes tradicionais. Os combates políticos que se abrem com o processo de democratização valorizam este novo campo, que é investido de múltiplas estratégias das quais algumas são apenas versões adaptadas da estratégia colonial, com o objectivo de se manter no poder ou de substituir a antiga classe dirigente. No entanto, a dinâmica das sociedades tradicionais não se deixa fixar no quadro de uma dicotomia monopartidarismo VS pluripartidarismo. Esta dinâmica procura integrar os novos factores econômicos e políticos em função do desenvolvimento dos seus próprios conflitos (FERNANDES, nº 16 jul 1993, p. 49-50).
61
CAPÍTULO 2 – EDUCAÇÃO PARA LIBERDADE?
Como vimos no capítulo 1, a educação era pensada como ferramenta para a libertação
do povo guineense. Neste capítulo articularemos os objetivos pedagógicos políticos de Freire
com os objetivos políticos na construção do Estado e da nação pós-independência, pensando o
papel do socialismo neste contexto.
O PAIGC, ao assumir o governo, tinha a tarefa de construir um Estado independente,
economicamente auto-sustentável baseado prioritariamente na agricultura, e para tanto,
desejava criar uma consciência nacional em detrimento da regional ou étnica (JAUARÁ,
2003, p.14). A questão central para a concretização da autodeterminação era como construir
essa nação e desenvolvê-la. O esforço pela coesão e o agregamento dos indivíduos na fase do
estabelecimento estatal foi enorme. A estratégia era criar um vínculo entre o período da luta e
o pós-independência através da chamada do povo para a luta da “reconstrução” nacional. A
palavra construção, apesar de ser mais adequada, entrava em contradição com o discurso do
PAIGC, na medida em que era defendido que não se podia construir o que já existia, daí o uso
freqüente do termo reconstrução. A alfabetização tinha a função de, como Freire dizia,
reinventar a educação e ressignificar os símbolos sociais com o fim da construção de uma
consciência e identidade nacionais. Vale lembrar que Freire, assim como os integrantes do
PAIGC, utilizava o termo “reconstrução” nacional.
A reflexão sobre a relação entre ensinar e libertar é premente, posto que essas noções
eram diretamente associadas tanto por Freire quanto pelo partido. Amílcar Cabral partia do
princípio de que só um povo culto é um povo livre e, por conseguinte, desde a fundação do
PAIGC a educação era considerada como essencial. O líder da luta pela libertação guineense,
em um de seus últimos discursos, insistiu na importância desta para a formação do povo da
Guiné-Bissau, iniciando a educação, sobretudo, com a alfabetização (CÁ, 2005, p.190-5).
62
Para Amílcar Cabral, como apontamos no 1º capítulo, a cultura tinha um peso muito grande e
esse seu entendimento se aproximava de um socialismo primitivo que foi muito valorizado
em Guiné-Bissau.
Assim como para Cabral, para Freire as noções de liberdade e cultura eram essenciais
em seu pensamento. Freire partia do princípio de que não podemos libertar o outro. A
libertação só acontece através da iniciativa do libertado e para que ocorra a mudança é
necessário que o sujeito a deseje, percebendo a sua condição de oprimido. Paulo Freire
entendia que a incumbência da educação era propiciar a transformação social através da
formação crítica e reflexiva dos educandos. É de fácil compreensão, nesse sentido, o motivo
pelo qual Freire considerava a educação como ato político, já que esta pode transformar ou
manter a ordem vigente, dependendo do projeto com o qual ela está comprometida.
Para o educador brasileiro existiam duas formas principais de educar. Uma era a
educação bancária, na qual o professor era considerado o detentor do conhecimento e sua
função era “doar” este aos seus alunos; e a outra era a educação libertadora, na qual educador
e educando em conjunto construiriam o conhecimento a partir de suas vivências. A educação
libertadora defendida por Freire apresenta duas dimensões, quais sejam: política – leitura do
mundo – e gnosiológica – leitura da palavra (SARTORI In: REDIN, ZITKOSKI, 2008, p.
152).
A concepção de educação freireana propõe um fim maior do que o aprendizado da
leitura e da escrita, ela propõe a construção do conhecimento a partir do questionamento dos
educandos sobre sua atuação no mundo. Na educação como prática da liberdade estão
inscritas a política, a economia, saúde, a cultura e as necessidades que aquele grupo possui em
todas essas esferas.
A libertação, para o educador brasileiro, estava ligada, como ele mencionava, à
conquista da palavra. Para Freire, o direito de pronunciar a palavra é o direito do sujeito de se
63
expressar no mundo e de poder modificá-lo. Através da palavra, o homem participa do
processo histórico de sua sociedade (FREIRE apud LIMA, 1981, p.66). A defesa deste princípio
está evidente na primeira carta que Freire enviou ao Comissário de Educação de Guiné, como
podemos perceber no trecho a seguir:
Na perspectiva libertadora, que é a de Guiné-Bissau, que é a nossa, a alfabetização de adultos, pelo contrário, é a continuidade do esforço formidável que seu povo começou a fazer, há muito, irmanado com seus líderes, para a conquista de sua palavra. Daí que, numa tal perspectiva, a alfabetização não possa escapar do seio mesmo do povo, de sua atividade produtiva, de sua cultura, para esclerosar-se na frieza sem alma de escolas burocratizadas em que cartilhas elaboradas por intelectuais distantes do povo – em que pese às vezes sua boa intenção – enfatizam a memorização mecânica a que antes me referi (FREIRE, 1977, p.91).
Na concepção freireana, a pronúncia da palavra tinha o poder de transformar a
realidade. Vale lembrar que para o educador brasileiro a pronúncia da palavra não estava só
no âmbito do discurso, mas sim na inter-relação entre discurso e prática. Na educação
denominada por Freire de bancária, a palavra não está vinculada a ação e promove a ‘cultura
do silêncio’. Já na educação libertadora, palavra e ação estão interligadas e possibilitam a
criação e recriação do mundo (ALMEIDA, STREK, 2008, p. 306).
Nesse sentido, o povo guineense ao conseguir a independência estava trilhando o
caminho para a conquista de sua palavra que seria alcançada através da concretização do
projeto nacional delineado pelo PAIGC. Freire não entendia a educação como transmissão de
saber, mas sim como uma ação cultural capaz de interferir na prática social vigente. A ação
cultural tinha como fim a libertação, razão pela qual educação é pensada por ele como uma
prática para a liberdade. Mas o que significa, então, ação cultural e como viabilizá-la?
Para analisarmos a questão, é importante lembrar que Freire entendia cultura como
toda criação humana e, exatamente por ser fruto de um ato humano, esta poderia ser
modificada de acordo com a vontade e o entendimento dos homens. O educador defendia que
os homens viviam na “cultura do silêncio”, fruto da dominação de uns homens sobre os
64
outros. Esta consistiria na naturalização das práticas sem a reflexão sobre as mesmas. A falta
de reflexão sobre a atuação dos homens levaria a exploração de um grupo sobre o outro e a
idéia da neutralidade na educação camuflaria este princípio, mantendo a ordem de acordo com
os interesses do grupo que estaria no poder. A conquista da palavra representaria a tomada de
decisão da população sobre sua vida e seu futuro. “Freire entende a cultura como uma
totalidade de produtos significativos criados pelos homens através de sua práxis e seu trabalho
(ação). Esta totalidade compreende o universo simbólico e ‘abrangente’ em que os homens
atuam como seres conscientes” (LIMA, 1981, p.107). Clarifica-se a partir da definição de
Lima porque Freire entendia a educação como ação cultural. O homem ao refletir sobre sua
prática poderia transformá-la através de sua ação.
A meditação sobre a prática cotidiana seria realizada nos círculos de cultura, que
poderiam ter conjuntamente a alfabetização, mas não necessariamente, e esta se fundava no
diálogo. Freire aponta que em determinados casos a pós-alfabetização pode preceder a
alfabetização. Esta decisão só pode ser tomada a partir da experiência vivenciada no círculo
de cultura e, conseqüentemente, da demanda das pessoas que o freqüentam.
Para melhor compreensão do tema faremos um pequeno parêntese para explicar o que
eram os círculos de cultura, como estes funcionavam, o que é a alfabetização e a pós-
alfabetização e porque a pós, no entendimento deste educador, poderia preceder a
alfabetização.
Na fotografia abaixo15 vemos parcialmente um círculo de cultura na zona de Có.
Podemos perceber que a organização do círculo de cultura é, como o próprio nome indica,
circular. O animador de debates senta-se ao lado dos educandos denotando que todos têm a
mesma importância no ato de aprendizagem.
15 (FREIRE, 1977, p. 98)
65
Foto 1 – Vista parcial do Círculo de Cultura na Zona do Có
Freire entendia que a língua também era um instrumento de dominação, por isso,
como defendia que a educação tradicional, visava à manutenção da ordem vigente e o intuito
de sua teoria do conhecimento era o rompimento desta ordem, o educador procurou em seu
trabalho utilizar outros vocábulos, evidenciando que nos espaços de produção de
conhecimento por ele compartilhado, a prática existente era outra. Assim sendo, as salas de
aula, que não precisavam ser necessariamente dentro de um prédio, era por ele denominada
círculo de cultura. Círculo de Cultura é um nome sugestivo uma vez que traz a tona o objetivo
principal dessa metodologia de ensino que era a reflexão acerca da cultura do povo para a
partir da análise de sua prática cotidiana poder transformar a sociedade. Vemos aí a
importância da noção de cultura no pensamento deste educador. O espaço físico em que se
processaria a relação de ensino-aprendizagem podia ser diverso, como no caso de Guiné-
Bissau, que no período da luta a alfabetização acontecia nas florestas ou como no caso do
66
próprio educador que foi alfabetizado por sua mãe, no quintal de casa embaixo de uma
mangueira com gravetos para escrever na terra. Os alunos e professores eram chamados de
educando e educador, já que seus papéis seriam diferentes de uma sala de aula tradicional.
Nos círculos de cultura educadores e educandos construiriam conjuntamente o conhecimento,
no lugar dos alunos serem considerados receptáculos de conhecimento e o professor o
detentor do mesmo.
A alfabetização consistia no aprendizado da leitura e da escrita das palavras que
faziam parte do cotidiano dos educandos. Estas palavras denominadas de palavras geradoras
eram discutidas e a partir de suas famílias fonéticas novas palavras eram escritas. O nome
palavras geradoras tinha o intuito de evidenciar que estas palavras além de gerar o debate,
gera a formação de novas palavras e, conseqüentemente, de novos conceitos. Para tornar mais
palpável esta definição, usaremos a palavra geradora luta, utilizada na experiência guineense,
como exemplo. Após o debate no círculo sobre o que significa luta, para que luta, contra
quem e a favor de que se luta, os educandos aprenderiam a escrever esta palavra e a partir das
famílias fonéticas LA-LE-LI-LO-LU e TA-TE-TI-TO-TU, os educandos formariam novas
palavras e, posteriormente, formariam frases. A pós-alfabetização era o momento em que se
aprofundaria o debate sobre a realidade. Freire partia do principio que nem sempre os
educandos estavam preparados para o aprendizado da leitura e da escrita, mas eram
politicamente alfabetizados, motivo pelo qual a pós-alfabetização poderia e deveria preceder a
alfabetização. Posteriormente veremos que isto aconteceu em Guiné-Bissau.
Nem sempre, porém, é necessária a coincidência entre o aprofundamento crítico da ‘leitura’ da realidade com o aprendizado da leitura e escrita dos signos lingüísticos, isto é, com a alfabetização no sentido que é geralmente entendida. Em certas circunstâncias é possível que uma comunidade se engaje, durante algum tempo, numa séria prática reflexiva sobre sua realidade, discutindo uma temática geradora significativa, ligada a seus interesses concretos, indagando-se em torno, por exemplo, de sua experiência produtiva, de caráter coletivo; de como produzir melhor, perguntando-se sobre seu papel no esforço da ‘reconstrução nacional’, envolta, enfim, num programa que poderíamos chamar de pós-alfabetização, sem que, porém, se tivesse iniciado no aprendizado da leitura e da escrita dos
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signos lingüísticos. Seria, no caso, a prática de ‘re-leitura’ crítica de sua realidade, associada a uma forma de ação sobre ela, a que poderia despertar a comunidade para o aprendizado da leitura e da escrita dos signos lingüísticos. O oposto, numa perspectiva revolucionária, é que seria inviável, isto é, o aprendizado da língua sem o aprofundamento da ‘leitura’ e da ‘re-leitura’ da realidade (FREIRE, 1977, p.75).
Para o educador brasileiro, a educação é comunicação e se funda no diálogo, já que é
um encontro entre sujeitos interlocutores que buscam os sentidos dos significados (FREIRE,
2002, p. 69). Para ele, a educação não era de forma alguma transferência de conhecimento,
pelo contrário, esta é um ato gnosiológico, no qual educador e educando se deparam com
objeto cognoscível a fim de admirá-lo e neste processo construírem conhecimento em
conjunto. Notamos assim a importância dos círculos de cultura, que no próprio nome já
contém uma proposta diversa da organização tradicional da sala de aula.
Um dos pontos mais abordados nos livros de Paulo Freire se refere a politicidade do
ato educativo. O educador defendia de maneira categórica a impossibilidade da educação ser
neutra e ser entendida como transmissão ou extensão de um saber. Correlata a esta temática
está a sua visão sobre a importância da comunicação, que posteriormente passou a chamar de
diálogo, para o sistema de ensino. Freire discutiu de forma aprofundada no livro Extensão ou
Comunicação?16 este assunto e apontou algo simples e aparentemente óbvio, mas que é de
extrema importância para sua teoria do conhecimento. Para ele uma comunicação eficiente
consiste na expressão de signos lingüísticos pertencentes aos universos dos sujeitos
interlocutores. Em outras palavras, a condição sine qua non para a concretização do diálogo
está no universo vocabular utilizado.
O papel do educador nesta concepção deveria ser a de inventor dos caminhos que
possibilitassem e facilitassem a problematização do objeto de estudo, como podemos perceber
no trecho a seguir de nossa fonte de pesquisa.
16 FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação?. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002
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Sua tarefa não é a de servir-se desses meios e desses caminhos para desnudar, ele mesmo, o objeto e depois entregá-lo, paternalisticamente, aos educandos, a quem negasse o esforço da busca, indispensável ao ato de conhecer. Na verdade, nas relações entre o educador e os educandos, mediatizados pelo objeto a ser desvelado, o importante é o exercício de atitude crítica em que face do objeto e não o discurso do educador em torno do objeto (FREIRE, 1977, p.18).
Isso não significa dizer que o educando deve ser privado de informações que solicite
enquanto analisa o objeto, posto que a educação não é um ato de adivinhação. A informação é
fundamental para que o objeto possa ser analisado criticamente, entretanto, o educador não
deve privar o educando da reflexão entregando-lhe o conhecimento pronto e acabado. É nesse
sentido que Freire tece uma crítica ao uso de cartilhas e defende o uso de materiais que
estimulem a autonomia na produção do conhecimento.
Criatividade e autonomia são duas palavras de ordem na teoria do conhecimento deste
educador e foi partindo desta ampla concepção sobre a maneira pela qual o conhecimento é
construído que Freire pensou o papel que a alfabetização desempenharia na Guiné-Bissau.
Uma das primeiras reflexões com que se defrontou dizia respeito ao público que a campanha
abrangeria. Freire acreditava que o alto índice de analfabetismo era de natureza lingüística, ou
seja, mais de noventa por cento da população não sabia ler e escrever, já que do ponto de vista
político ele considerava o povo guineense altamente letrado, pelo fato de considerar que
tinham uma grande reflexão sobre a prática cotidiana (FREIRE, 1977, p.18). E partindo desse
entendimento ele reafirmava a necessidade da alfabetização estar diretamente ligada à opção
política.
Nesse sentido, se a opção do educador é revolucionária e se sua prática é coerente com sua opção, a alfabetização de adultos, como ato de conhecimento, tem, no alfabetizando um sujeito deste ato. Dessa forma, o que se coloca a tal educador é a procura dos melhores caminhos, das melhores ajudas que possibilitem ao alfabetizando exercer o papel de sujeito de conhecimento no processo de sua alfabetização (FREIRE, 1977, p.18).
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Essa concepção educativa ia ao encontro da visão do PAIGC, que pretendia usar a educação e
a alfabetização de adultos como ferramenta para o recrutamento de pessoas para a construção
de uma nova sociedade.
Vimos que a educação era enxergada como uma engrenagem importante para a
construção da nação e para o desenvolvimento do país tanto no ponto de vista de Freire,
quanto do PAIGC. Para melhor abordar, então, a idéia da educação como prática da liberdade
é fundamental que compreendamos as noções que alicerçavam o pensamento do PAIGC,
como unidade e desenvolvimento, por exemplo. Em outras palavras, analisaremos a maneira
pela qual o PAIGC, enquanto Estado e não mais como partido, implementou medidas que
visavam consolidar sua autodeterminação.
A vontade de construir uma nação
O desejo de se construir uma nação em Guiné-Bissau é notório em todos os
documentos do PAIGC. Procuraremos traçar aqui um panorama do que era almejado pelo
partido em seus documentos e comparar com a prática efetivada nos primeiros anos após a
independência.
Para discutirmos o esforço de tornar Guiné-Bissau uma nação é relevante uma breve
reflexão sobre este conceito, que é polissêmico. Nação deriva do latim, de um verbo que
significa nascer. Originalmente, este conceito faz referência a um grupo de pessoas
provenientes de um mesmo lugar (GRAÇA, 2005, p.19). Como o intuito desta pesquisa não é
especificamente o debate acerca deste termo, definiremos a maneira pela qual este será aqui
utilizado. Partimos das definições de Stuart Hall e Montsserat Guibernau para construção de
nossas ponderações. Hall aponta que “uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que
explica seu poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade” (HALL, 2005, 48) e
Guibernau define nação como um grupo humano consciente de formar uma comunidade e
70
partilhar uma cultura comum, ligado a um território claramente demarcado, tendo um passado
e um projeto comuns e a exigência do direito de se governar. Desse modo, a nação inclui
cinco dimensões, quais sejam: psicológica (consciência de pertencimento a um grupo),
cultural, territorial, política e histórica. Vale lembrar que Guibernau diferencia a nação do
Estado Nacional apontando que o segundo é um fenômeno moderno, caracterizado pela
formação de um tipo de estado que possui o monopólio do que afirma ser o uso legítimo da
força dentro de um território demarcado, e que procura unir o povo submetido a seu governo
por meio da homogeneização, criando uma cultura, símbolos e valores comuns, revivendo
tradições e mitos de origem ou, às vezes, inventando-os (GUIBERNAU, 1997).
Guibernau mostra ainda que as principais diferenças entre uma nação e um estado
nacional, quando estes não coincidem, são que, enquanto os membros de uma nação têm
consciência de formar uma comunidade, o estado nacional procura criar uma nação e
desenvolver um senso de comunidade dela proveniente. Enquanto a nação compartilha uma
mesma cultura, valores e símbolos, o estado nacional tem como objetivo a criação de uma
cultura, símbolo e valores comuns. Os membros de uma nação podem relembrar seu passado
comum; se os membros de um estado nacional fazem o mesmo, podem se defrontar com um
quadro em branco – porque simplesmente o estado nacional não existia no passado – ou,
então, fragmentado e diversificado, por terem antes pertencido a diferentes etnias. Enquanto o
povo que forma uma nação tem um senso de pátria e se sente ligado a um território, o estado
nacional pode ser o resultado de um tratado ou da vontade de políticos que decidiram onde
traçar o limite entre os estados.
A consideração sobre diferenciação entre a nação e estado nacional no caso guineense
é muito pertinente, na medida em que era o PAIGC, no papel do Estado, que estava buscando
criar o sentimento de pertencimento das diversas etnias, sob a denominação de “luta pela
reconstrução nacional”. É possível afirmar que em Guiné-Bissau foi o Estado quem fomentou
71
a formação da Nação, cuja consolidação ainda não é plenamente observada até dias atuais. Os
limites geográficos da Guiné foram marcados a partir de acordos entre Portugal e os demais
países com aspirações imperialistas e, devido a esta marcação aleatória, mais de vinte culturas
diferentes viviam e ainda vivem neste mesmo território. Nesse sentido, podemos dizer que o
movimento anticolonial foi um movimento nacional sem nação (GRAÇA, 2005, p.21), isso
porque até a luta não havia na Guiné uma consciência nacional formada. O sentimento de
unidade e pertencimento começou a ser criado neste período e este foi utilizado como o
símbolo do nascimento da nação.
O conceito de nação em África está assim intimamente ligado aos movimentos nacionalistas que, ao terem decidido lutar pela independência, agendaram na ordem do dia a libertação nacional. Este termo não deixava de encerrar ambivalências e, mais do que expressão de uma realidade, reflectia uma ideologia, um sonho (CARDOSO, 1998, 92).
A historiografia sobre Guiné no debate acerca da existência ou não da nação neste
território aponta que o Estado guineense ainda está construindo a nação e que aos próprios
políticos ainda falta consciência de Estado (Cf. LOPES, 1982, 102-5; AUGEL, 2007, 266,
CÁ, CARDOSO, 1998, 93). “A Guiné-Bissau como Estado ainda está buscando uma
identidade amalgamadora para cimentar definitivamente as muitas pedras do seu mosaico
étnico, fortuitamente ligadas pela argamassa das fronteiras arbitrárias levantadas pelas
potências imperialistas.” (AUGEL, 2007, 266)
Amílcar Cabral entendia que a nação (unidade nacional) surgiria a partir do momento
em que os problemas e as aspirações das pessoas que viviam no mesmo território fossem
comuns. Para ele, a união entre as pessoas seria fruto dos seus interesses comuns.
Não é a existência duma raça ou dum grupo étnico ou seja o que for que define ou condiciona o comportamento dum agregado humano. Não. São, sim, o meio social e os problemas resultantes da reacção desse meio e das reacções dos próprios homens em questão. Tudo isso define o seu comportamento. Por outras palavras: um grupo de homens – seres humanos – constituirá uma raça ou um grupo étnico ou outra coisa, na me medida em que enfrentem problemas comuns e lutem pelas mesmas aspirações (CABRAL, 1978).
72
É consenso que no período da luta pela independência a mobilização e a união entre as
etnias predominaram (LOPES, 1982, p.103). Entretanto, não podemos afirmar o que o mesmo
ocorreu após a independência.
O PAIGC, enquanto Estado Nacional, pretendia formar uma nação a partir da criação
de uma identidade comum fundamentando seu posicionamento nas idéias defendidas por
Amílcar Cabral. Partindo da afirmativa de Hall de que a nação é uma comunidade simbólica,
procuraremos evidenciar que o partido procurou criar um conjunto de significados que
representasse a guineidade. A construção da identidade nacional se promove a partir de
matéria-prima retirada da história, da geografia, da memória coletiva e de fantasias pessoais.
Os grupos sociais elaboram e ordenam essas matérias-primas de acordo com determinantes
sociais e seus projetos. Vale lembrar que as matérias-primas também podem ser tradições
inventadas (AUGEL, 2007, p. 237). A construção da narrativa da nação guineense remete à
luta de libertação e ao mito fundador da mesma. A história que localiza a origem da nação em
Guiné é o massacre de Pidiguiti, realizado no cais do porto em 1959. Podemos perceber isso
no artigo de Wilson Trajano, da Universidade de Brasília, que trata sobre a questão dos
rumores para a criação da identidade nacional. Ele diz:
Finalmente, o porto pertence também à simbólica da nacionalidade. Foi no cais do Pidiguiti que, a 3 de agosto de 1959, os portuários de Bissau, os grumetes de então, entraram numa greve fatídica. A polícia colonial interveio imediatamente e, com uma violência inusitada, atirou e matou dezenas de trabalhadores. Este incidente, conhecido como o "massacre do Pidiguiti", aparece com uma tal freqüência nos documentos do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e nos discursos dos líderes políticos que pode ser tratado como um dos mitos fundadores da nacionalidade. Diz a mitologia política da nação que a decisão de se opor ao regime colonial fazendo uso de todos os meios, inclusive a luta armada, só foi tomada depois dos acontecimentos trágicos daquele início de agosto. Com toda esta carga associativa, o porto continua sendo um poderoso símbolo para pensar as relações entre guineenses e europeus. Ele não representa somente o local em que se desenrolam as atividades do comércio de longa distância que liga Bissau a outros lugares do mundo. Evoca com forte apelo emocional a violência da relação entre europeus e africanos, a brutal mercantilização humana dos séculos de tráfico atlântico e
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representa com grande carga de afetividade o berçário da sociedade crioula e de seus membros prototípicos: os grumetes.17
O compartilhamento dessas experiências, que representam tanto o triunfo quanto as
perdas respectivamente, produzem sentido para a nação. Nesta perspectiva, a nação, assim
como os indivíduos, é formada na relação entre o que foi e o que está projetado para ser. A
representação que se tem do passado e a formulação do que deve ser no futuro apontam o
caminho a ser trilhado pela mesma. No caso daquele país, a representação do passado estava
moldada a partir da interação entre a cultura européia – em especial portuguesa, a partir do
legado colonial – e as culturas africanas e a projeção futura era um país no qual a igualdade
social seria a tônica. No discurso literário, por exemplo, a narração da nação foi feita
primeiramente na literatura de combate em que era encenado o mito fundador com
manifestações de dor e repúdio referentes ao período colonial e grande nostalgia ao período
anterior à chegada dos portugueses. Era constantemente exaltado o herói revolucionário e
estimulada a união a partir desses símbolos (AUGEL, 2007, p.269).
A “reconstrução nacional”, sinônimo de construção de uma nova sociedade, tornou-se
palavra de ordem do partido. O uso deste termo evidencia que era defendida a valorização dos
costumes tradicionais, entretanto, alguns desses também deviam ser combatidos em prol do
que eles consideravam como progresso.
O Estado, na tentativa de construir a nação, buscou teoricamente a congregação dos
interesses étnicos. Esses interesses são também políticos, econômicos e não só culturais
(GRAÇA, 2005, p.22). A etnicidade está inscrita nas relações sociais e nas relações de poder
existentes na sociedade.
17 Cf.TRAJANO, Wilson. Outros Rumores de Identidade na Guiné-Bissau. Este texto é uma versão modificada da conferência apresentada com o título Rumores Crioulos de Identidade em Guiné-Bissau no Seminário "Análise Antropológica de Rituais" promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UnB nos dias 26, 27 e 28 de julho de 2000, publicado no site http://www.didinho.org/Serie279empdf%20outros%20rumores%20de%20identidade%20wtf.pdf , visitado em 23/05/2007
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O PAIGC falava em nome da nação e do povo, reafirmando ininterruptamente a
unidade nacional em seus discursos. Consolidar as idéias de unidade e nação no imaginário
social foi uma importante ferramenta de controle a fim de transformar o conglomerado de
etnias guineenses em uma comunidade nacional.
Para Amílcar Cabral a idéia de unidade estava diretamente ligada à noção de
transformação da realidade.
Podemos evidentemente tomar unidade num sentido que se pode chamar de estático, parado, que não é mais que uma questão de número; por exemplo, se considerarmos o conjunto de garrafas que há no mundo, uma garrafa é uma unidade. Se considerarmos o conjunto de homens reunidos nesta sala, o camarada Daniel Barreto é uma unidade. E por aí fora. Essa é a unidade que nos interessa considerar no nosso trabalho, de que falamos nos nossos princípios do Partido. É e não é. É na medida que queremos transformar um conjunto diverso de pessoas num conjunto bem definido, buscando um caminho. E não é, porque aqui não podemos esquecer que dentro desse conjunto há elementos diversos. Pelo contrário, o sentido de unidade que vemos no nosso princípio é o seguinte: quaisquer que sejam as diferenças que existem, é preciso ser um só, um conjunto, para realizar um dado objectivo. Quer dizer, no nosso princípio, unidade é tomada no sentido dinâmico, de movimento (CABRAL, 1978, p.117).
Podemos perceber que Cabral defendia a diversidade na unidade. Uma reflexão que é
suscitada por este entendimento é como consolidar isso, na medida em que é necessário
“apaziguar” os interesses díspares dos diversos grupos. Como o Estado se relacionaria com os
interesses divergentes dos grupos étnicos, sem beneficiar um em detrimento dos outros? Ou
seja, como lidar com as relações de poder existentes naquela sociedade, transformando-as de
maneira que se concretizasse o plano da construção e consolidação de uma sociedade
igualitária?
O Estado na Guiné-Bissau ao tentar modernizar o país e consolidar uma entidade
nacional, na prática, tentou subordinar as identidades étnicas (Cardoso, 1998, p.95) ao
contrário do que era pretendido por Amílcar Cabral.
Antes de aprofundarmos a maneira pela qual o PAIGC implementou o programa
desenvolvido no período da luta, delinearemos a concordância entre o pensamento teórico do
75
partido e Freire, para posteriormente analisar os problemas que eles enfrentaram na execução
do projeto de desenvolvimento nacional e no projeto de alfabetização.
Afinidades teóricas:
No início deste capítulo, apontamos algumas convergências entre os pensamentos de
Paulo Freire e do PAIGC. O ponto principal de concordância entre ambos se fundava no tipo
de educação que se pretendia trabalhar, uma vez que tanto Freire quanto o PAIGC pensavam
a educação como prática da liberdade. Freire e a equipe do IDAC – Instituto de Ação Cultural
–, nos trabalhos que desenvolveram em conjunto com os governos dos países africanos
tiveram como princípio basilar a noção de autodeterminação (RIBEIRO In: STRECK,
REDIN, ZITKOSKI, 2008, p.101).
Freire acreditava que a educação era uma importante ferramenta para a transformação
social que seria efetuada a partir da prática dos homens no mundo. Assim como Freire,
Amílcar Cabral, que foi o grande idealizador das noções que alicerçaram o pensamento do
PAIGC, acreditava que o homem poderia transformar o mundo, como podemos perceber no
trecho a seguir:
O homem é parte da realidade, a realidade existe independente da vontade do homem, e o homem, na medida em que a realidade influencia a sua consciência, cria a sua consciência, ele pode adquirir a possibilidade de transformar a realidade a pouco e pouco. Esta que é a nossa opinião, digamos, o princípio do nosso Partido, sobre a relação entre o homem e a realidade (CABRAL, 1978, p.130).
Pretendemos, agora, retomar a discussão que já foi iniciada no primeiro capítulo
mostrando que ambos concordavam em três pontos primordiais para o desenvolvimento da
educação guineense, quais sejam: a conexão entre educação e trabalho produtivo; a relação
“dinâmica” entre teoria e prática e a educação como ato político, uma vez que estes são a base
de sustentação do trabalho desenvolvido por eles. Assim sendo, esses aspectos serão aqui
76
trabalhados com o intuito de evidenciar a complementaridade do pensamento teórico entre
Freire e o PAIGC. Apesar de já termos debatido acerca da educação como ato político, é
indispensável retomar algumas questões por se tratar de um ponto principal para o
entendimento das duas respectivas concepções de educação.
Na primeira carta enviada a Mário Cabral – Comissário da Educação de Guiné-Bissau
– Freire explica a razão pela qual aceitou o convite para trabalhar em Guiné. Ele diz: “Como
homem do terceiro mundo, como educador com este mundo comprometido, outra não pode
ser minha posição, como a dos companheiros com quem trabalho, senão a de oferecer a
contribuição mínima que possamos dar ao povo de Guiné” (FREIRE, 1977, p.91). Para além
de se afirmar como pertencente à nação brasileira, Freire se classifica como 3º mundista
aproximando-se assim da condição sócio-econômica e política da África e complementa,
fazendo uma reflexão acerca da alfabetização, ao mostrar que o projeto de Guiné-Bissau tem a
perspectiva libertadora de seu trabalho, pois eles – guineenses – estariam trabalhando para a
conquista de sua palavra.
Na publicação do CIDA-C18, que analisa a situação de Guiné pós-independência é
constatado que a educação pretendida pelo PAIGC é eminentemente política. “Fazer uma
educação politizada é certamente uma das primeiras preocupações do PAIGC na Guiné-
Bissau. Nos internatos e nos liceus, no trabalho da JAAC – Juventude Africana Amílcar
Cabral – e nas unidades das FARP, enfim um pouco por toda a parte faz-se formação política
(grifo do autor)” (CIDA-C, s.d, p.13). Freire, na carta nº 3, faz referência à politicidade do ato
educativo. O educador diz que a luta após a independência muda de perspectiva, pois não é
mais para a expulsão “física” do colonizador. É a luta pela consolidação da libertação e a
concretização de um modelo de sociedade já desenhado na etapa anterior:
Este modelo, que é eminentemente político, deve envolver, necessariamente um projeto cultural global em que a educação, nele incluída a alfabetização
18 CIDA-C. Guiné-Bissau: 3 anos de independência.s.d.
77
de adultos, se insere. Projeto cultural, que sendo fiel, de um lado, às matrizes populares, sem contudo, idealiza-las, seja fiel, de outro, ao esforço de produção do país. [...][A alfabetização] Deve ser uma contribuição fundamental ao aclaramento dos níveis da consciência política do povo. [...]
Se percebemos a alfabetização numa tal perspectiva, compreendemos como jamais pode ser ela sequer pensada isoladamente ou reduzida a um conjunto de técnicas e de métodos. Isso não significa que métodos e técnicas não sejam importantes. Significa que aqueles e estes estão a serviço de objetivos contidos no projeto cultural que, por sua vez, se encontra envolvido e envolvendo os objetivos políticos e econômicos do modelo de sociedade a ser concretizado (FREIRE, 1977, p. 97, 99).
Luís Cabral, presidente da Guiné-Bissau, num discurso proferido em outubro de 1975,
no Centro de Preparação de monitores Escolares no Gabú19, disse que a primeira coisa que
deveria ser ensinada era o amor à terra, o orgulho a história e a luta e o amor ao partido, pois
essas eram criações do povo que consolidariam a unidade e a consciência nacional.
Orgulhosos de cada grupo a que pertencemos, de cada cultura, para valorizarmos essa cultura, para a enriquecer, mas devemos pôr acima dessa cultura o amor pela nossa terra no seu conjunto, para termos consciência de que somos cidadãos da nossa República da Guiné-Bissau acima de todas as culturas e particularidades que os grupos étnicos possam ter (CIDA-C, s.d., p.114).
Cabral aponta que o amor a terra, o orgulho a história e a luta e o amor ao partido são criações
do povo. Se fossem criações do povo de fato, não seria necessário ensiná-las ao povo.
Percebemos com isso o esforço das autoridades guineenses em consolidar a nação e a unidade
nacional a partir da subordinação dos grupos étnicos.
A questão da unidade nacional aparece constantemente nos textos referentes ao
PAIGC, por ser a função prioritária do partido consolidar a consciência nacional. Freire não
faz menção explícita à questão da unidade e não discute a importância da questão nacional,
entretanto, sempre reafirmava que o projeto de alfabetização deveria estar de acordo com o
projeto da nova sociedade, deixando subentendido que concordava com a abordagem do
PAIGC em relação a essas questões, já que o que não concordava foi amplamente informado.
Na carta nº 5, Freire declarou: “Sabemos todos, vocês e nós, que tal empenho, que não resulta 19 Gabú era dos grandes centros de Guiné-Bissau. Ver mapa 4 na página 49 do capítulo 1.
78
de um ato mecânico, implica na radical transformação do sistema de educação colonial, sem o
que se frustrará o projeto da nova sociedade.” Nesta epístola, é defendida a importância do
rompimento com a educação do colonizador para a construção de uma nova sociedade. Na
carta 12, o educador demonstra sua preocupação constante com a relação da educação com o
novo projeto: “Creio indispensável debater com ela [Comissão Nacional] alguns aspectos,
pelo menos, da problemática geral da alfabetização, da pós-alfabetização e de suas necessárias
conexões com o sistema educacional do país, bem como as relações desse sistema com o
projeto global da sociedade que se busca criar.” Vale lembrar que independente da insistência
de Freire de relacionar o projeto educacional ao projeto de construção do país a falta de
recurso e de infra-estrutura atrapalhou a consecução do plano.
A defesa incessante da educação para formação de uma nova sociedade traz consigo a
discussão de que nova sociedade se pretende, e no caso da Guiné, a discussão da relação entre
educação e trabalho produtivo. “O desejo de ultrapassar a separação entre o trabalho
intelectual e manual é também uma constante, traduzida concretamente em ligar a escola à
produção” (CIDA-C, s.d., p.117). Esta frase da publicação do CIDA-C demonstra mais uma
semelhança entre o pensamento freireano e o do PAIGC. Freire a esse respeito diz na primeira
carta que a educação teria que estar vinculada à atividade produtiva e à cultura20 do povo e
não a escolas burocratizadas com cartilhas elaboradas por intelectuais (FREIRE, 1977, p.92).
No documento sobre educação, escrito pelo Comissariado de Estado da Educação Nacional e
Cultura da República de Guiné-Bissau, em julho de 1976, está colocada a importância de a
escola estar atrelada ao trabalho produtivo. O PAIGC defendia que um dos objetivos do
Comissariado de Educação Nacional e Cultura ao reestruturar o sistema de ensino era acabar
com a separação entre o trabalho manual e intelectual incorporando ao cotidiano da escola o
20 É importante ressaltar que Freire assim como o PAIGC utiliza o termo cultura no singular. Ao contrário do entendimento de ambos consideramos que existem culturas que convivem no território guineense.
79
trabalho agrícola, já que a agricultura era a base da economia daquele país (DOCUMENTO:
A educação na Guiné-Bissau, 1976, p.55).
A actividade do campo em nosso país deverá constituir efectivamente um suporte para a pedagogia revolucionária, num método prático de vincular a teoria com a realidade, o ensino com o trabalho produtivo, um processo eficaz a unir o trabalho intelectual com o manual, o do fortalecimento do intercâmbio entre a cidade e o campo, o de que a escola se identifique na prática com a vida (DOCUMENTO: A educação na Guiné-Bissau, 1976, p. 55).
A educação atrelada ao trabalho produtivo ajudaria na resolução do problema do êxodo rural,
posto que o aluno ao sair do sistema de ensino estaria apto a trabalhar na terra e não se sentiria
desvalorizado como acontecia com o aluno no sistema de ensino colonial que não
conseguindo se manter nele voltava se sentindo “humilhado” para o trabalho no campo.
Foto 2 – Estudantes do Liceu de Bissau no trabalho produtivo
80
Na fotografia acima21 vemos estudantes do Liceu de Bissau participando do trabalho
produtivo. Essa iniciativa tinha o intuito de aproximar o aluno da principal fonte de renda do
país que era a agricultura, tentando mostrar que o trabalho manual é tão importante quanto o
intelectual.
O trecho do documento do Comissariado de Educação de 1976 sintetiza a concepção
educativa guineense e evidencia o destaque dado a relação entre trabalho e educação.
Percebemos, também, o que consideramos o terceiro ponto de convergência entre os
pensamentos dos dois, na medida em que tanto para Freire quanto para o PAIGC a teoria
serviria para a melhoria da prática e estas seriam dialeticamente complementares. Assim
sendo, a relação entre teoria e prática e educação e trabalho produtivo são na verdade idéias
complementares, posto que a educação seria a teoria – trabalho intelectual – e o trabalho
produtivo – trabalho manual – a prática.
Na terceira carta que o educador enviou ao Comissário de Educação é enfatizada a
importância da relação dinâmica entre teoria e prática dizendo que “somente na medida em
que os seminários de capacitação promovam a unidade da prática e da teoria, dando ênfase à
análise do condicionamento ideológico de classe e à necessidade daquele suicídio, é que se
convertem em verdadeiros contextos de capacitação” (FREIRE, 1977, p.99). Neste trecho
Freire se refere ao suicídio de classe, tema defendido por Amílcar Cabral, que dizia que era
necessário que os assimilados, impregnadas pelo ideal do colonizador cometessem suicídio de
classe para a construção nacional, ou como chamavam, “reconstrução”. Na carta nº 17, Freire
volta a esta temática e reafirma a necessidade do entrelaçamento entre teoria e prática,
mostrando que essa era também uma das preocupações de Amílcar Cabral, através da citação
de uma frase da obra Unidade e Luta de Cabral que sintetiza essa discussão “Pensar para agir
e agir para pensar melhor” (FREIRE, 1977, p.169). Esse é um dos princípios de Freire, que
21 (FREIRE, 1977, p. 126)
81
acreditava que a teoria serve para orientar a prática e que a prática reorienta a teoria, conforme
observamos na citação que segue: “Daí a insistência com que digo e re-digo que a prática de
pensar a prática é a melhor maneira de pensar certo” (FREIRE, 1977, p.166). Fica nítido a
partir do debate travado acima que as concepções de educação freireana e do PAIGC estão em
consonância com a teoria socialista.
Os três aspectos aqui trabalhados, quais sejam, educação como ato política, relação
entre teoria e prática e relação entre trabalho produtivo e educação, são de grande relevo para
a compreensão do pensamento de ambos por serem as bases que o alicerçam. Consideramos
importante citar mais um ponto fundamental para o entendimento que foi devido a essa
afinidade de conduta e pensamento que o Comissariado de Guiné-Bissau convidou Paulo
Freire para trabalhar em seu país.
Em suma, a grande tarefa da educação é esta: temos de preparar o nosso povo para ele aceitar este desafio que fazemos, o desafio da transformação da nossa terra. O conceito de transformação da terra impede que se entenda a educação como uma mera transmissão estática de conhecimentos, antes faz compreende-la como uma actividade dinâmica e criadora a serviço da revolução social (CIDA-C, s.d., p.115).
Este parágrafo do texto do CIDA-C aponta que o PAIGC entendia educação como um
ato criativo e não como uma transmissão de conhecimento. O PAIGC no governo buscou
colocar em prática o que havia sido delineado na plataforma do partido durante o período da
luta. As idéias de Amílcar Cabral se baseavam no marxismo-leninista e podemos perceber
isso nos termos utilizados nos documentos e pelos integrantes do partido. Freire também
compartilha desta visão de mundo e compreendia o ato educativo de forma similar. Ele
criticava uma educação vista como doação de conhecimento e denominava de “conhecimento
empacotado” o conjunto de ensinamentos que o professor iria “doar” aos seus alunos. Freire
afirma isso em diversas cartas, como por exemplo, na primeira em que diz:
Alfabetização de adultos que, numa perspectiva libertadora, enquanto um ato criador, jamais pode reduzir-se a um quefazer mecânico, no qual o chamado alfabetizador vai depositando suas palavras nos alfabetizandos. Quefazer
82
mecânico e memorizador, no qual os alfabetizandos são levados a repetir, de olhos fechados, vezes inúmeras, sincronizadamente: la, le, li, lo, lu; ba, be, bi, bo, bu; ta, te, ti, to, tu, ladainha monótona que implica sobretudo numa falsa concepção do ato de conhecer. Repete, repete que tu aprendes é um dos princípios desta falsa concepção do ato de conhecer (FREIRE, 1977, p.91).
Pode-se constatar que a visão do PAIGC e Freire sobre educação foi o elemento
motivador para o convite e para sua aceitação. Unir a escola à vida é uma expressão que
designa uma tentativa por parte tanto do Comissariado quanto deste educador de aproximar a
educação à realidade do país, cumprindo a escola não só uma função pedagógica, mas
também política, econômica e social.
Divergências na prática:
Ficou evidente, a partir do que foi acima exposto, a aproximação teórica entre os
pensamentos do PAIGC e do educador brasileiro. Vale lembrar que ambos pensamentos se
fundamentavam nos ideais marxistas. Freire no período do exílio teve um contato mais
próximo com a obra de Gramsci, Kosik, Habermas e outros filósofos marxistas. Moacir
Gadotti diz ter a impressão de que o marxismo de Freire nutre-se, sobretudo, em Gramsci, o
que se reflete nos diálogos que o educador brasileiro manteve com os educadores dos Estados
Unidos como, por exemplo, com Henri Giroux, Donaldo Macedo, Ira Shor, Peter MacLaren e
Carlos Alberto Torres. Este último afirma que o pensamento de Freire na década de 1970
pode ser “claramente percebido como uma expressão da pedagogia socialista” (TORRES,
1996, p.124). Heinz Peter Gerhardt foi o analista freireano que melhor sintetizou o que
poderíamos chamar de mudança no pensamento de Freire. Ele diz que o deslocamento das
teses epistemológicas estão refletidas na escolha bibliográfica do autor. Em Educação como
prática da liberdade, Freire se embasou em Scheler, Ortega y Gasset, Mannheim, Wright
Mills, Whitehead, já na Pedagogia do Oprimido estão presentes Marx, Lenin, Mao e
Marcuse. Isso não significa dizer que suas primeiras fontes tenham se tornado irrelevantes,
83
mas demonstra uma mudança no entendimento de seus conceitos-chave, pois em Educação
como prática da liberdade o conceito de transformação significa participação e integração no
sistema democrático, já na Pedagogia do Oprimido transformação já compreende a
possibilidade de subversão e revolução. Não podemos esquecer que neste período Freire
também teve contato com as obras de Albert Memmi, Frantz Fanon e Amílcar Cabral sendo a
leitura das obras deste último que alicerçaram o trabalho que desenvolveu em Guiné-Bissau.
O PAIGC foi fundado formalmente em Guiné-Bissau por cinco cabo-verdianos e
guineenses e era liderado por Amílcar Cabral. Amílcar Cabral nasceu em Guiné-Bissau,
realizou seus estudos liceais em Cabo Verde e, em 1945, ingressou no Instituto Superior de
Agronomia, em Lisboa. Amílcar foi um dos primeiros africanos a estudar em Portugal e o
precursor do que Mário Cabral denomina “a geração Cabral”.
Amílcar Cabral imprimiu ao partido sua dupla herança cultural, exprimindo-a no
projeto político fundamental do partido que era unidade de Guiné-Bissau e Cabo Verde.
Naturalmente os ideais do período em que estudou em Portugal estavam inscritos no quadro
ideológico do movimento, tornando-se visíveis os referenciais e modelos político-econômicos
do marxismo. Humberto Cardoso22 diz que, num primeiro momento, o PAIGC foi fiel à
estratégia dos partidos marxistas e se aproximou do operariado guineense, particularmente
dos estivadores e recrutou membros da elite – estudantes, funcionários e empregados
comerciais – de Guiné e Cabo Verde. Após o massacre de Pidjiguiti, em 1959, no qual foram
massacrados pelas autoridades coloniais dezenas de trabalhadores, por uma greve organizada
e instigada pelo partido, este optou por uma nova estratégia, que seria a da luta armada. O
PAIGC definiu que a guerrilha seria no território guineense conta das condições geográficas.
Amílcar Cabral conhecia bem a localidade que é repleta de florestas atravessada por rios,
22 CARDOSO, Humberto. O Partido único em Cabo Verde: um assalto à esperança. Imprensa Nacional de Cabo Verde, 1993
84
devido ao trabalho de recenseamento que efetuou enquanto ainda trabalhava para o governo
colonial.
Humberto Cardoso sintetizou os ideais do PAIGC em três pontos:
1 – a questão central da luta de libertação é a eliminação do domínio imperialista e, por conseguinte, o seu papel não termina com a independência nacional;
2 – devido às limitações dos trabalhadores e camponeses há a necessidade de uma vanguarda constituída por uma minoria capaz de consciencializar as massas;
3 – como a burguesia nacional é para se liquidada, porque associada ao imperialismo e às classes trabalhadoras e camponeses, têm limitações econômicas e culturais, elementos da pequena burguesia devem assumir a direcção da luta, na medida em que só eles sabem distinguir a verdadeira independência da independência fictícia. (CARDOSO, 1993, p.16).
Esses princípios foram declarados por A. Cabral, em 1966, na Conferência
Constitutiva da Organização Tricontinental realizada em Havana, Cuba. Evidencia-se nesses
três pontos a adoção por parte de Amílcar Cabral de princípios socialistas, assim como
podemos perceber já a definição da importância da idéia do suicídio de classe, uma vez que
seria necessária a formação de uma vanguarda para conscientizar o povo, que se constituiria a
partir do suicídio da “pequena burguesia”.
Na mesma conferência Amilcar Cabral aprofundando os pontos que balizavam a
conduta do partido defendeu que a luta de classes era o motor da história e que a dominação
imperialista negava o processo histórico do povo dominado, “por meio da usurpação violenta
da liberdade do processo de desenvolvimento das forças produtivas nacionais” (CARDOSO,
1993, 15). Ele defendeu também que a libertação nacional era um fenômeno que consistiria
em um conjunto sócio-econômico de negar a negação do seu processo histórico, ou seja, a luta
de libertação nacional seria a luta contra o neocolonialismo, e, por isso, a pequena burguesia
revolucionária deveria ser capaz de se suicidar como classe, para ressuscitar na condição de
trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do
povo a que pertence. Esses princípios defendidos por Cabral em Havana expressam a base de
85
sustentação do PAIGC, estando a conduta política, econômica, social e cultural do partido
pautada nestes pontos (Cf. CARDOSO, 1993, ANDRADE, 1974).
Vemos que o PAIGC entendia que a independência não seria conquistada só com a
saída dos portugueses, mas sua liberdade estaria consolidada no momento em que a
autodeterminação e a unidade estivessem garantidas.
Mas nós enfrentamos o problema não só da libertação, mas também do progresso do nosso povo. E, nessa base, vemos logo que a nossa luta não pode ser só contra estrangeiros, tem que ser também contra alguma gente da nossa terra. O nosso povo tem que lutar ao mesmo tempo contra os seus inimigos de dentro. Quem? Toda aquela camada social da nossa terra, ou classes da nossa terra, que não querem o progresso do nosso povo, mas querem só o seu progresso, das suas famílias, da sua gente. E por isso que dizemos que a luta do nosso povo é contra tudo quanto seja contrário à sua liberdade e independência, mas também contra tudo quanto seja contrário ao seu progresso e à sua felicidade (CABRAL, 1978, p.156).
É interessante perceber que Amílcar Cabral associava as noções de independência a
progresso e felicidade. E a luta não era só contra os portugueses, mas todos aqueles que não
partilhassem de sua visão de mundo, ou seja, que não concordassem que a implantação do
sistema socialista era o mais adequado. Cabia, então ao Estado a responsabilidade de criar as
bases para que o país não fosse mais dependente. O plano de desenvolvimento calcava-se na
agricultura e na noção de progresso. Faustino Bali23 diz que
A Guiné-Bissau foi um dos raros países da África Ocidental que conquistou sua independência através de uma luta armada. Quando a obteve, em 1974, a palavra progresso era pronunciada por todas as bocas. A nova forma de economia de mercado já tinha conquistado toda a África e encontrava-se solidamente instalada. (...) Na altura, o objectivo era, de facto, a modernização, o crescimento económico da Guiné-Bissau representado pela palavra de ordem ‘reconstrução nacional’. O sentimento de estar atrasado em relação aos outros fez esquecer a questão primordial, muitas vezes exprimidas por Cabral, a saber: como e porquê desenvolver (grifos do autor)” (BALI, nº 8 jul 1989, p.73).
A crítica de Bali denota uma grave disparidade entre o discurso e a prática adotada
pelo Estado na medida em que em seus documentos a agricultura seria o centro do
23 Faustino Bali, em 1989, era investigador do Centro de Estudos de História Contemporânea do INEP.
86
desenvolvimento e o que se efetivou na prática foi a tentativa de desenvolvimento através da
industrialização buscando-se adaptar mundo rural a este impulso (BALI, nº 8 jul 1989, p.73).
Entendemos desenvolvimento como melhoria nas condições de vida e de trabalho das
populações através de mudanças tanto qualitativas como quantitativas na maneira de produzir.
Assim sendo, aperfeiçoar a tecnologia tradicional era tarefa imprescindível para o
desenvolvimento do país (SILÁ, nº 13, jan 1992, p.10). Em 1977, no I Congresso
Extraordinário do PAIGC definiu-se que o setor industrial deveria catalisar o
desenvolvimento da agricultura que era considerada, como vimos, a base da economia (SILÁ,
nº 13, jan 1992, p.13).
A julgar por essas medidas devia-se esperar o desenvolvimento de um sector industrial com uma base rural, quer dizer, uma indústria de transformação de produtos agrícolas a de produção de bens para agricultura, tais como arados, instrumentos de moagem, material de irrigação, bicicletas. A lógica em que se baseava a implantação de tais indústrias é bem simples: ao contribuir par modernização da agricultura, estas indústrias iniciavam ao mesmo tempo o tal movimento de dinamização recíproca que as tornava viáveis (SILÁ, nº 13, jan 1992, p.14).
Ao modernizar a produção agrícola esta estaria apta a produzir excedentes e matérias
primas para as unidades industriais. Entretanto, não foi isso o que aconteceu. Foram criadas,
de 1975 a 1980, diversas fábricas como a de artigos plásticos, que não sobreviveu à sua
inauguração, a de leite e espuma que teve problemas crônicos de abastecimento de matéria-
prima e eram fechadas periodicamente, a de cerâmica que apesar de funcionar com matéria-
prima local fechou as portas e a fábrica de sumo e compotas que por ter sido instalada em
uma ilha isolada com problemas de transporte produzia poucos meses por ano em pequena
quantidade, de forma que os produtos não chegaram a aparecer no mercado nacional (SILÁ,
nº 13, jan 1992, p.19).
Evidencia-se, a partir do quadro acima exposto, que não houve um eficaz
planejamento para a criação da indústria nacional no governo de Luis Cabral. As medidas
87
adotadas não tiveram êxito, não colaborando para o tão almejado desenvolvimento e
autodeterminação. Além disso, as medidas adotadas no campo industrial foram de encontro ao
projeto delineado pelo PAIGC que tinha na terra sua maior preocupação.
Parte da historiografia africana mostra que o problema do desenvolvimento centrou-se
na existência de duas racionalidades. Estado e camponeses constituem essas duas maneiras
distintas de pensar, que se confrontaram e atrapalharam o crescimento do país. A maneira pela
qual o Estado via e pensava a produção agrícola era diferente da forma pela qual os
camponeses a concebiam (Cf. LOPES, 1982, BALI, nº 8 jul 1989). Os anseios dos dirigentes
guineenses não eram compartilhados pela maior parte da população, tendo em vista que os
camponeses somam a maior parte da população que viviam e ainda vive no território
guineense. Rosemary E. Gally discorda da existência de duas racionalidades e aponta que a
falta de investimento no campo não estimulou o desenvolvimento. A autora afirma que a
lógica da acumulação estava presente nas tabancas24 e o que faltou foi a oportunidade para sua
efetivação (GALLI, nº 8 jul 1989).
Lopes questiona se o Estado da maneira pela qual foi erigido atrapalhou a consecução
do plano de desenvolvimento. Será que a burocracia estatal abriu brecha para o florescimento
de uma classe que dominaria a maior parte da população? O autor aponta que a manutenção
da estrutura colonial, apesar de não estar nos planos dos guineenses, precisou ser mantida e
essa manutenção foi um grande problema para o partido se tornando um entrave para o
desenvolvimento (LOPES, 1982, p.89).
Esse debate historiográfico procura explicar os motivos para a não obtenção do
desenvolvimento esperado. É importante buscar o entendimento para tal fato, entretanto, este
não é o objeto desta pesquisa. Assim sendo, o que nos interessa nessa discussão é que ela
evidencia, independente se por rejeição dos camponeses devido à racionalidade diferente do
24 aldeias
88
Estado ou por falta de investimento no campo, que o PAIGC não conseguiu colocar em
prática a plataforma do partido delineada por Amílcar Cabral e os integrantes do partido no
período da luta. Vale ressaltar também que ocorreu uma falta de sintonia entre a educação e o
plano de desenvolvimento do país. Freire defendeu em várias cartas a necessidade da ligação
entre o projeto global de sociedade e o projeto do sistema de ensino. Ao se alterar o projeto de
desenvolvimento, o projeto educacional deveria ser remodelado, mas essa alteração no
sistema de ensino não ocorreu, denotando o distanciamento entre a teoria e a prática
empregada pelo PAIGC no comando do país.
Nos debruçaremos agora sobre as implantação do sistema educativo e mais
especificamente do projeto de alfabetização de adultos apontando, assim como na discussão
sobre o desenvolvimento econômico, as disparidades entre a teoria e a prática. Além disso, é
fundamental salientar que em 1977 houve uma transformação no governo que afetou a
implantação do planejamento anterior. De 1974 a 1977 a organização estatal era composta
por Comissariados e esse nome tinha o intuito de aproximar mais o trabalho desenvolvido
pelo Estado do povo. Nesse período o Comissário de Educação e Cultura da República da
Guiné-Bissau era Mário Cabral. Jauará aponta que a partir de 1977, ano em que foi feita a
primeira remodelação governamental, os comissariados se transformaram em ministérios e o
Ministro da Educação até 1980 foi Filinto Vaz Martins e Mário Cabral virou ministro do
desenvolvimento Rural. Também foi criado o ministério da Informação e da cultura cujo
ministro era Mário de Andrade. Os documentos e a bibliografia consultada referentes ao
sistema educativo não aprofundam esse ponto e os documentos referentes a alfabetização de
adultos não chegam nem a tocar nesta temática, deixando a dúvida se no período do trabalho
desenvolvido em conjunto com Freire o contato que tiveram foi efetivamente só com Mário
Cabral. Paulo Freire no livro Por uma pedagogia da pergunta publicado em conjunto com
Antonio Faundez ao tratar sobre a experiência vivida na Guiné-Bissau não cita esta mudança
89
e chama Mário Cabral de Ministro da Educação, diferentemente da maneira como o trata no
livro Cartas à Guiné-Bissau. Além disso, neste livro foi publicada uma carta que não consta
neste livro endereçada à Mário Cabral de julho de 1977 (FREIRE, FAUNDEZ, 1985, p. 119-
142).
Partimos do princípio que houve um remodelamento, já que Freire muda o tratamento
utilizado com Mário Cabral – de Comissário passa a chamar de Ministro e também menciona
Mário de Andrade, como responsável pela Cultura, o que não acontece no livro Cartas à
Guiné-Bissau. Assim como não conseguimos precisar a data do término da relação de Freire
com aquele país, não conseguimos também precisar a data da saída de Mário Cabral da
educação.
Independente disso a demarcação da mudança no governo é deveras relevante, posto
que ela indica uma alteração no projeto guineense. A opção pelo uso do termo Comissariado
era aproximar o trabalho desenvolvido pelo governo do povo, denotando o cuidado deste na
busca pela construção de uma sociedade igualitária. Além disso, isto traz à tona os problemas
existentes dentro do governo que culminou no golpe de Estado de 14 de novembro de 1980,
liderado por Nino Vieira que se tornou primeiro–ministro na 2ª reformulação governamental
realizada em 1978. Nesta reformulação, as tendências existentes dentro do partido se
evidenciaram e a luta por uma nova partilha do poder se intensificou. “Os princípios do
partido eram constantemente violados em favor de lutas intestinais e de conflitos de interesses
entre militantes de distantes origens sociais e de clivagens diversas. Desde a independência e
da assunção da administração do país pelo PAIGC vêm surgindo graves atentados ao
principio democrático e à gestão da coisa pública” (JAUARÁ, 2003, p.246).
As duas tendências a que Jauará se refere são por ele designadas de luso-africanos e
etnorrurais. Os luso-africanos eram as pessoas influenciadas pela cultura européia,
descendentes, miscigenados ou não, falantes da língua portuguesa e da língua crioulo e,
90
majoritariamente, católicos. Em Angola e Moçambique o grupo que faz a síntese cultural
entre os hábitos africanos e europeus é denominado de crioulo. “É a presença simultânea de
elementos da cultura africana e européia no seu comportamento que irá caracterizá-lo como
crioulo. Ou seja, é a sua capacidade de atuar nesses dois mundos e realizar a interligação entre
eles.” (A crioulidade p. 47) Os luso-africanos tem a mesma matriz crioula, posto que
representam um amálgama cultural entre Europa e África, fazendo surgir com isso novos
hábitos e um “novo tipo de homem” dentro dessa cultura africana. (Cf. THOMAZ, 2008, p.
47, BITTENCOURT, 1996, p. 55) Já os etnorrurais formavam a maior parte da população e
congregam os grupos étnicos islamizados e animistas que possuíam, respectivamente,
organização social verticalmente hierarquizada e estratificada do tipo comunitária (JAUARÁ,
2003, p.7). Jauará defende a existência de duas racionalidades, ou seja, duas maneiras
distintas de pensar, como foi mostrado anteriormente e afirma que estas estavam presentes e
entravam em conflito dentro do próprio governo.
Durante a luta colonial, houve uma aproximação dos grupos étnicos em prol da
expulsão dos colonizadores. A manutenção dessa aproximação, ou seja, a busca pela
sedimentação da consciência nacional foi promovida através da educação e da tentativa da
criação de uma cultura nacional popular.
O partido/governo revolucionário imaginava que a disseminação de idéias revolucionárias (pró-socialistas) nas escolas, nos lugares de trabalho, nas organizações de massas e, por extensão em todas as comunidades etnorrurais iria progressivamente abalar e levar ao descrédito os laços ou tentativas de fortalecimento da consciência étnica e/ou regional, formando, assim, uma nação em que só haja lugar para camaradas guineenses, totalmente desnutridos de ideais étnicos e prontos para assumirem as suas responsabilidades no desenvolvimento harmonioso do país sob a inquestionável liderança da elite governante do partido. Ainda no ardor revolucionário, o partido entendia que só uma filosofia socialista seria capaz de extirpar a exploração do homem pelo homem e eliminar as concepções obscurantistas que impediam os etnorrurais de serem completamente livres das crenças e/ou costumes ancestrais, dos seus lideres manipuladores, para então, como cidadãos revolucionários, integrarem a frente de luta contra o subdesenvolvimento (JAUARÁ, 2003, p.10).
91
Na prática, foi tentada a formação de uma unanimidade na forma de pensar através da
disseminação de idéias revolucionárias, isso pode ser percebido através da escolha das
palavras geradoras “povo”, “trabalho”, “luta”, “disciplina”, mas esta também foi buscada
através do uso da força. Vale lembrar que as palavras geradoras foram escolhidas pelo
governo para todo o território nacional, contudo, os animadores de debate tinham autonomia
para escolher palavras geradoras complementares que melhor se adequassem a realidade da
região.
A idéia da transformação da sociedade a partir da criação de uma nova mentalidade no
entendimento de Freire tinha que partir de uma transformação radical do sistema educacional
herdado do colonizador. Esta é uma decisão política, que segundo o educador, deveria estar
atrelada necessariamente ao projeto de sociedade que se procurava criar. Assim sendo, a
educação serviria para auxiliar na organização do desenvolvimento, tendo em vista que
refletiria sobre o que, como, para que e para quem produzir (FREIRE, 1977, p.22). A idéia de
questionar o como, porque, para que e para quem, Freire pensava em usar não só para a
produção ajudando na orientação do desenvolvimento, mas também na análise das situações
existenciais. O foco desses questionamentos é auxiliar no desnudamento do objeto de estudo e
nos interesses que tem inscritos nele. Daí que ao fazer essa avaliação a transformação social
seja possível, na medida em que torna os sujeitos críticos e conscientes de que são agentes de
sua própria história.
A decisão, ante a impossibilidade de romper, da manutenção da estrutura do sistema
educativo colonial foi um grande entrave para a afirmação do novo sistema de ensino. Freire
era radicalmente contra essa manutenção. Além da herança colonial, o educador apontava que
existia outra herança que era da luta de libertação. Ele elogiava as experiências no período da
luta nas zonas libertadas. Ou seja, Freire fazia uma avaliação muito positiva do trabalho
desenvolvido pelo PAIGC durante o período da luta e dizia que “era preciso saber, sobretudo,
92
como as equipes nacionais, ao preocupar-se com a transformação do sistema herdado do
colonizador, viam a herança da guerra. É que, na verdade, o novo sistema a surgir, não poderá
ser uma síntese feliz das duas heranças, mas o aprofundamento em todos os aspectos
melhorado do que se fez nas zonas libertadas, em que a educação eminentemente popular e
não elitista se desenvolveu” (FREIRE, 1977, p.23).
Foto 3 – Escola na zona libertada
Na fotografia acima25 vemos uma escola na zona libertada, no período da luta pela
independência. Pela imagem vemos que era uma escola improvisada, no meio da floresta,
com os materiais que dela podiam ser retirados. Percebemos que a influência da educação
freireana ainda não estava presente, pelo menos, não em sua plenitude, uma vez que a sala de
aula, mesmo sendo na floresta e não dentro de uma sala reproduz o modelo do sistema de
ensino colonial em que o professor fica em pé e usa um quadro negro e os alunos sentados em
suas carteiras copiam a matéria.
25 (FREIRE, 1977, p.28)
93
Freire era radicalmente contra a manutenção de qualquer estrutura colonial e
acreditava que a transformação educacional deveria partir do que já tinha sido começado pelo
PAIGC na luta. Como vimos o governo guineense, apesar de concordar com Freire, diante das
dificuldades decidiu manter a estrutura escolar colonial. Faremos um comparação, sem nos
aprofundarmos demasiadamente, entre a educação colonial, a educação implementada pelo
PAIGC no período da luta e a educação implementada nos primeiros anos após a
independência pelo governo, posto que a comparação servirá como instrumento de análise da
possibilidade da concretização de uma educação para a liberdade.
Um ponto que diferencia bem os três sistemas educativos se refere ao acesso. A
educação colonial era restrita a um pequeno número de africanos considerados assimilados à
cultura portuguesa. A educação no período da luta promovido pelo PAIGC estava presente
nas zonas libertadas e abrangia um número maior de pessoas do que a educação colonial. Já a
educação nos primeiros anos de independência foi largamente expandida como podemos
verificar no quadro a seguir.
Antes da Independência
1971/1972
Depois da Independência
1974/1975
Áreas
Ocupadas
Áreas
Libertadas
Total Crescimento Total
Escolas
Construídas
297
164
461
238
699
Alunos
Matriculados
3.128
14.531
17.659
52.567
70.226
Professores 661 258 919 571 1.490
94
Logo após a independência houve um crescimento de 238 estabelecimentos de ensino
e se compararmos a educação pós-independência somente com a colonial houve um aumento
de 402 estabelecimentos. Com relação ao número de estudantes se o crescimento somando a
educação anterior à independência já é muito significativo, tendo em vista que quase
cinqüenta e três mil alunos ingressaram no sistema de ensino, na comparação entre educação
colonial e do país independente, o aumento se torna ainda mais gritante, pois o número de
alunos cresceu em mais de sessenta e sete mil. Quanto ao número de professores, o aumento
não é tão significativo se levarmos em conta o número de estudantes, o que reflete que as
salas de aulas no país independente tinham um número elevado de alunos, uma vez que ao
dividirmos o número de educandos pelo número de professores percebemos que tinham cerca
de 47 estudantes por professor. Esse número é melhor do que o PAIGC apresentava no
período da luta já que a média era de 56 educandos por professor. No período colonial a
média de alunos por professor era 5, o que teoricamente poderia promover uma educação de
melhor qualidade. Evidencia-se aí que o acesso ao sistema de ensino era muito caro para o
governo guineense, ao contrário da educação colonial que tinha um número elevado de
professores e um número pequeno de alunos (Cf. CÁ, 2008, p. 135-6).
O período logo após a independência é considerado como o período da revolução
educacional da Guiné-Bissau, tendo em vista que em todo território nacional os guineenses
foram incentivados a se matricularem nas escolas.
A comparação efetuada no quadro se restringe a década de 1970. Neste período os
movimentos de libertação já estavam presentes na África e a educação colonial tinha o intuito
de manter o domínio português sobre o território. Durante o tempo em que a Guiné-Bissau
fora colônia portuguesa, o sistema de ensino passou por diversas mudanças. Restringiremos
aqui nossas observações nas 2 décadas anteriores a independência, pois nelas que se
95
estruturaram o sistema de ensino colonial que foi em alguns aspectos preservados e em outros
rompidos após a independência.
Na década de 1960, houve uma nova orientação nas medidas educacionais nas
colônias portuguesas com o aumento da assimilação e a reforma do ensino primário (Cf.
ALMEIDA, 1981, 41). Essas medidas tinham o objetivo de promover a manutenção de
Portugal em seus territórios ultramarinos e auxiliar na luta contra os movimentos de libertação
das colônias. Portugal mudou sua política de contenção de vagas nas escolas, nos anos que
antecederam a independência, devido à pressão exercida pelo PAIGC. A estratégia era utilizar
a educação como forma de “desafricanizar” as mentes e como propaganda contra a
independência. Em outras palavras, eram ensinados os hábitos europeus e conteúdos da escola
da metrópole, assim como era dito que a história da África só passou a existir com a chegada
dos portugueses (Cf. CÁ, 2004, 43). Apesar do aumento do número de matrículas nas escolas
primárias e no Liceu e do envio de alguns estudantes para universidades portuguesas, as
oportunidades oferecidas eram poucas em relação à população desassistida, além disso,
problemas como a má qualidade do ensino, as dificuldades de acesso à escola para os
africanos, a discriminação e a falta de utilidade do conhecimento escolar no cotidiano não
foram sanados (Cf. ALMEIDA, 1981, 57).
Podemos vislumbrar através do discurso do General Spínola, que naquele momento
era governador militar de Guiné-Bissau, na Cerimônia de inauguração da escola preparatória
do ensino Secundário de Bafatá, em 1973, a estratégia portuguesa para a manutenção de seus
territórios ultramarinos. Spínola defendia fervorosamente que a solução para o problema
colonial português deveria ser resolvido por vias diferentes a da guerra. 26
26 Esta idéia está explicita no livro Portugal e o Futuro publicado em 1974 um pouco antes da Revolução dos Cravos.
96
A inauguração de uma nova escola é sempre motivo de justificado júbilo, para quem detendo um mandato de Governo, encontra na educação e na formação das camadas jovens o mais válido instrumento de construção do progresso e do bem estar social. Alguém afirmou, a este respeito, que o Ensino e a Educação são o melhor investimento. De facto, os grupos humanos progridem ao ritmo da sua capacidade de resposta oportuna à escalada das necessidades do seu bem-estar, sejam elas intrínsecas ou resultantes do contacto com outros grupos cultural e tecnicamente mais evoluídos; e se verifica entre os grupos mais qualificados em termos de engenho criador, capacidade técnica e senso moral. Daí poder concluir-se que, nos tempos que correm, o subdesenvolvimento resulta menos da carência de recursos do que da inaptidão para a superar. E se foi pela constante análise da experiência vivida em clima de complexa laboração intelectiva, cimentada ao longo dos anos, que as sociedades mais evoluídas atingiram o estádio da era espacial, terá de ser pelo aproveitamento de quanto desse processo os meios de difusão não facultam que as sociedades subdesenvolvidas recuperarão o atraso que consentiram. Resulta, assim, que só no estudo e na subseqüente base de investigação e laboração as sociedades encontram adequada ferramenta de aceleração do seu progresso em ordem a esperar a distância que as separa dos grupos mais evoluídos (SPINOLA, 1973, 367-8).
A visão do governo português sobre os africanos está explícita na definição de Spínola
que os caracteriza como povos menos evoluídos ou nas palavras deste general, menos
qualificados em termos de engenho criador, capacidade técnica e senso moral. Evidencia-se
assim a explicação para o ensino guineense ser similar ao da metrópole, visto que com a
educação do povo “mais evoluído” talvez eles (africanos) tivessem a possibilidade de vencer
o subdesenvolvimento. A manutenção de Portugal, naquele território se justificaria, portanto,
como a entrada e permanência do progresso através do contato com um grupo mais
qualificado. Vale lembrar que esse discurso foi proferido no ano em que o PAIGC já tinha
libertado do domínio português a maior do território e alguns meses antes de ser proclamada,
por Amílcar Cabral, a independência unilateralmente. Esse discurso foi publicado com outros
do mesmo general, pela Agência Geral Ultramar, em 1973, provavelmente como uma
tentativa ainda de consolidação da sua permanência em seus territórios no ultramar. O título
da obra “Por uma portugalidade renovada” sinaliza a estratégia daquele país de criação de
uma identificação dos guineenses com os hábitos portugueses pela afirmação de que estes
faziam parte da nação portuguesa.
97
Podemos sintetizar os resultados da educação colonial da seguinte forma:
a) A assimilação: os esforços dos colonizadores para integrar os indígenas à civilização não parecem ter produzido resultados significativos na Guiné-Bissau. O número de assimilados oficialmente reconhecidos não atingiu 1% da população. Após 5 séculos de colonização portuguesa a Guiné tinha 90% de analfabetos, cerca de 20% da população capaz de falar português e 4% da população convertida ao catolicismo.
Apesar do número de assimilados oficialmente ser muito pequeno nos últimos anos da
presença portuguesa em Guiné-Bissau, como tentativa de manutenção do seu poder sobre
aquele território não existia uma grande diferenciação entre os assimilados e a população que
assumira hábitos similares aos portugueses.
b) Formação de mão de obra: a formação profissional de nível médio atingiu um número muito pequeno de estudantes na Guiné-Bissau, dos quais grande parte é constituída de europeus. Não havia escolas de formação de professores nem Universidades. As atividades econômicas estabelecidas pelos colonizadores na Guiné prescindiram de formação técnica e profissional (obtida através da escolarização) da mão de obra africana, em quase sua totalidade. A economia agrícola era baseada no trabalho forçado dos indígenas, a infraestrutura urbana precária e o pequeno número de europeus instalados na colônia não exigiam uma grande quantidade de funcionários de Estado; a inexistência de atividades industriais e extrativas ou outras que pudessem demandar mão de obra especializada e o desinteresse de Portugal pelo desenvolvimento de sua colônia mais pobre são fatores que podem explicar o descaso da administração colonial com a formação profissional dos guineenses.
c) Propaganda contra a independência: esse objetivo orientou algumas mudanças no ensino colonial nos últimos anos da luta pela independência, como o aumento do número de matrículas nas escolas primárias e no Liceu, a criação de escolas primárias ligadas aos quartéis e de centros sanitários e escolares, o envio de alguns estudantes para Universidades portuguesas. No entanto, as novas oportunidades educacionais eram muito poucas em relação ao conjunto da população desassistida e os problemas anteriores permaneceram (ALMEIDA, 1981, p. 56).
Podemos perceber que Portugal procurou usar a educação como elemento de
diferenciação social, formando, em um primeiro momento, somente o número de pessoas
necessárias para o funcionamento do seu quadro administrativo e em um segundo momento a
educação foi utilizada como tentativa de manutenção do seu território. O aumento do número
de matrículas na década de 1970 é o reflexo da tentativa do governo português de preservar
98
seu império ultramarino. O General Spínola que dizia que não venceria a guerra militarmente
promoveu ações que melhoraram os sistemas de ensino e saúde. A Guiné-Bissau que o
PAIGC combateu estava muito diferente da Guiné-Bissau da década de 1940. Mesmo a luta
tendo ocorrido em um panorama diferente do quadro geral do colonialismo, ainda assim a
educação colonial era elitista e excludente e mascarava através do discurso civilizador e do
ideal de que a história daquele país só havia começado com a chegada dos portugueses a
possibilidade de autonomia do pensamento e da ação daquele grupo. Vale ressaltar que o
PAIGC teve dificuldade em entrar em algumas partes de Guiné-Bissau que tiveram acesso ao
projeto “Guiné Melhor” de Spínola.
Outro ponto que diferencia bastante os três tipos de educação dizia respeito ao
caráter/concepção do ensino. Enquanto na educação nas zonas libertadas e no país
independente o ensino era ligado ao trabalho no campo, na educação colonial o aluno tinha
que se dedicar exclusivamente ao ensino e, por conseguinte, era elitista e excludente.
Antes de mostrarmos o bom resultado no atrelamento do ensino ao trabalho produtivo
é fulcral apontarmos que na educação após a independência também existia um critério de
exclusão dos alunos que era o da militância. Apesar do discurso do PAIGC e de Freire afirmar
que a escola dos colonizadores era elitista e excludente, quando nos deparamos com os
critérios para a mudança do aluno de um nível para o outro no sistema de ensino também
ficam claros critérios de seleção, que da mesma maneira, podem ser considerados
excludentes, não elitista na medida em que não é a função que a pessoa ocupa ou a quantidade
de dinheiro ou a cor da pele que possui que garante sua manutenção no ensino, mas sim a sua
crença na luta e nos ideais socialista.
Por outro lado, há critérios também, como não poderia deixar de haver, que regulam a passagem de um nível de ensino a outro. Do ensino básico ao geral polivalente, como deste ao médio politécnico. Os candidatos passarão de um a outro, de acordo com as qualidades reveladas no nível anterior. Impõe-se a comprovação de sua seriedade nos estudos, a sua qualificação
99
científica e técnica, em função do nível de onde vêm, bem como a comprovação de suas qualidades morais e militantes (FREIRE, 1977, p.47).
Fica claro neste trecho que se o aluno não comprovasse suas qualidades morais – o que se há
de convir é bem impalpável – e de militante, este não poderia continuar estudando. Isso no
pensamento de Freire e do PAIGC não se configurava como exclusão, mas na educação
colonial os governantes também não consideravam exclusão manter os africanos não
assimilados fora do sistema de ensino, posto que estes não eram considerados por eles
civilizados. O sistema de ensino guineense após a independência também foi estruturado de
forma a excluir pessoas, mesmo afirmando que o estudo que tinham obtido auxiliaria em sua
vida, ao contrário do ensino do período colonial, que o aluno não podendo continuar os
estudos tinha grande dificuldade em se adaptar ao seu antigo modo de vida.
Apontamos que a manutenção da estrutura escolar colonial atrapalhou a
implementação do sistema educativo guineense após independência. Até a escola de Có que
foi considerada como escola-modelo para o ano letivo de 1976/77, também enfrentava
dificuldades, não com a herança do sistema educativo colonial, mas com a falta de
alojamentos, salas de aula, espaço para a biblioteca, material para o estudo e material
esportivo. A experiência vivida nesta escola mostrava a viabilidade do projeto delineado no
período da luta e como defendido por Paulo Freire de uma educação sem a herança do
colonialismo português.
O centro de preparação de professores Máximo Gorki, que foi instalada em um quartel
português abandonado em Có, região de Cacheu, tinha o ensino atrelado a vida cotidiana da
população circunvizinha do estabelecimento de ensino. O contato dos professores que se
formavam no instituto com a população das tabancas era matéria obrigatória no currículo. A
alfabetização de adultos também era matéria regular do curso. Os professores-estagiários,
orientados pela Comissão Coordenadora da Alfabetização de Adultos, fizeram um
levantamento sócio-econômico e cultural da área para escolher as palavras geradoras que
100
seriam utilizadas na alfabetização de adultos de Có e arredores. Podemos perceber que existia
integração entre a escola e a comunidade e que a relação entre teoria e prática era eficazmente
presente. No centro de formação e capacitação de professores Máximo Gorki, a gestão era
coletiva e as decisões eram tomadas em assembléias. Além disso, a relação entre educação e
trabalho produtivo era mais uma matéria obrigatória e uma prioridade, já que para o PAIGC
não podia existir separação entre trabalho manual e intelectual (ALMEIDA, 1981, 145-6).
Foto 4 – Vista parcial do Centro Máximo Gorki – Escola de Có
Na fotografia acima27 vemos pessoas jogando bola no recreio no Centro de Formação
e Recuperação de Professores Máximo Gorki, na Escola de Có, em 1977. Este centro, apesar
de ter tido breve duração, foi um importante centro de experimentação de metodologias para o
sistema de ensino.
Luis Cabral, presidente do Conselho de Estado disse sobre a educação em Guiné-
Bissau:
27 (FREIRE, 1977, p.70)
101
O problema do ensino é de grande importância. A escola é como uma faca de dois gumes, porque aos alunos deve ser ensinado o que devem fazer quando forem grandes. Se não se fizer assim, acontecerá como dantes, em que cada indivíduo que aprendia a ler até a 3ª ou 4ª classe, já não queria ser lavrador, queria vir para a cidade. Se deixarmos que isso continue a acontecer, as nossas escolas constituirão uma grande fábrica de desempregados, porque não teremos trabalho para dar a toda a gente na cidade. Portanto, temos que criar nova mentalidade nos indivíduos que vão a escola.
Temos que valorizar o trabalho do camponês. Por isso temos que fazer uma revisão total do nosso programa de ensino. Temos de transformar o nosso programa de ensino num programa de acordo com o nosso desenvolvimento. Um programa de ensino que servirá a nossa terra e não um programa de ensino que irá formar indivíduos que irão desprezar o próprio trabalho do seu povo, dos seus pais. Queremos sim que cada indivíduo estude mais para elevar o nível do nosso povo, que cada indivíduo que estudar mais e aprender mais, sirva a sua terra, o seu povo (DOCUMENTO: Comissariado Educação, 1976, 55).
A relação entre o trabalho manual e intelectual era fundamental para o sistema
educativo guineense na medida em que a economia do país estava baseada predominante na
agricultura. A educação, portanto, deveria estar a serviço do desenvolvimento do trabalho
produtivo e a alteração da prática gerada durante o período colonial era premente, posto que,
como Luis Cabral apontou a cidade não tinha condição de aproveitar o número de pessoas que
se formariam no sistema adotado, já que este visava universalizar a educação. O foco era
acabar com a segmentação, não se teriam mais escolas urbanas e escolas rurais, e formar
pessoas que pudessem trabalhar no campo ou na cidade de acordo com o seu próprio
interesse.
Nos dois primeiros anos em que foi relacionada a educação e trabalho agrícola os
resultados foram bem positivos. Na região de Tombali28, por exemplo, foram plantadas pelos
alunos do Ensino Básico 917 bananeiras, foram colhidos 1.020 quilos de arroz e foram
preparados 837 metros quadros de área para o cultivo. Os resultados na região de Bafatá
foram ainda melhores. Noventa e seis das cento e seis escolas existentes naquela região
28 Ver mapas 3 e 4, páginas 38 e 49 respectivamente, no Capítulo 1.
102
produziram 24.516 quilos de batata, 4.823 quilos de arroz, 11.117 quilos de milho, 800 quilos
de amendoim e 250 de feijão (Cf. FREIRE, 1977, p. 123; CÁ, 2008, p. 147). Na imagem
abaixo vemos29 estudantes do Liceu a caminho do campo para participarem de atividades
agrícolas, evidenciando que a relação entre a educação e o trabalho produtivo foi um tema
fortemente trabalhado pelas autoridades guineenses.
Foto 5 – Estudantes do Liceu a caminho do campo
A alfabetização de adultos, apesar de estar relacionada com o sistema de ensino ou,
pelo menos, buscou-se esta interligação, não se confrontou diretamente com uma estrutura
pré-existente, uma vez que sua estrutura foi sendo criada conforme foi se elaborando a
campanha. Freire salientou que o importante no caso de Guiné-Bissau era a busca pela
29 (FREIRE, 1977, p. 112)
103
harmonia entre o que se pretendia com a educação de adultos e o que se buscava realizar com
o sistema regular de ensino do país (FREIRE, 1977, p.43).
É interessante salientar que, quer do ponto de vista das FARP, quer do Comissariado de Educação, a alfabetização era tomada como um ato político, em cujo processo os alfabetizandos se engajam com os alfabetizadores enquanto militantes no aprendizado da leitura e da escrita. Posição, de resto, em total coincidência com a nossa. Os problemas, pois, não se punham ao nível da visão correta do processo, mas ao nível de sua concretização (FREIRE, 1977, 29).
Mas, então, quais foram os problemas enfrentados na concretização? Primeiramente, a
tentativa de usar a euforia da população após a independência para promover uma campanha
de alfabetização em massa, dotando o povo, que era majoritariamente analfabeto, das técnicas
da leitura e da escrita e envolvê-los dentro desse processo que chamavam de “luta pela
reconstrução nacional” acarretou, ao contrário do planejado, uma centralização da campanha
que partia da capital. Acrescido a isso essa centralização levou a escolha das palavras
geradoras para todo território nacional, o podemos considerar uma temeridade em um trabalho
desenvolvido na perspectiva freireana, tendo em vista que nela o aprendizado deve partir do
universo vocabular do educando e não sair de uma resolução dentro de um gabinete. Os
alfabetizadores, que não tiveram o preparo adequado, outro problema na implementação do
programa, tinham autonomia para adaptar as palavras geradoras de acordo com a realidade
que estivessem trabalhando, entretanto, isso não foi suficiente para solucionar o que
consideramos um dos grandes empecilhos na concretização do projeto, a falta de
entendimento da população da necessidade de se aprender a ler e a escrever para o tipo de
vida que levavam (GERHARDT, nº 35 jul/ago 1980, 114). Alterar o projeto de alfabetização
e começar com a pós-alfabetização, como foi proposto por Freire e pela do IDAC, era uma
tentativa, através do retorno à oralidade, costume em que se embasam as práticas dos povos
africanos, de promover através da reflexão o entendimento de que aquele país vivia um novo
104
momento e, portanto, era necessária a adoção de novas práticas e costumes. Práticas e
costumes que formariam uma nova cultura nacional.
Nos objetivos gerais do sistema de ensino educacional guineense definido nas palavras
de ordem gerais do PAIGC, em novembro de 1965; e, reafirmado no III Congresso do
PAIGC, em 1977, vemos que era pretendida a transformação dos princípios do partido em
convicção pessoal e hábito da conduta cotidiana da população, o desenvolvimento de uma
consciência nacional ‘favorável’ ao desenvolvimento do país e a fomentação de “elevados
gostos estéticos” e sentimentos humanos. Esses elementos seriam fundamentais, no
entendimento do PAIGC, para a formação dessa nova cultura nacional. Evidencia-se aí um
excesso de diretividade do partido, o que no nosso entendimento inviabiliza uma educação
para a liberdade.
O desejo de combater o analfabetismo presente desde o período da luta pela
independência na plataforma política do PAIGC não foi concretizado a contento, ou seja, não
chegou ao índice pretendido por falta de uma seqüência na organização no âmbito
governamental. O golpe de Estado de 1980 e da desorganização central, fruto deste golpe,
atrelado a falta de vontade política acarretou uma crise no sistema de ensino (Cf. CÁ, 2008,
149).
O sistema que se impôs de facto depois do acesso à independência revelou ser um compromisso entre a herança colonial e as tentativas de inovação sucedidas nas zonas libertadas. A nova abordagem que dominara os primeiros anos da década de 70 e que via a educação ao serviço de uma nova sociedade, um novo homem, uma nova nação, um novo modelo de desenvolvimento não conseguiu vingar. As experiências que deviam contribuir para uma integração entre a escola e a comunidade tais como a Escola de Formação de Professores Máximo Gorki de Có, que devia servir como um centro de animação sócio-política para a comunidade local e de pesquisa em todos os aspectos da vida económica, social, política e cultural das populações locais, ou o Centro de Educação Popular Integrado, que devia formar professores em estreito contacto com a comunidade, foram sol de pouca dura. A educação que se instituiu foi uma educação baseada em modelos ocidentais que pouco têm a ver com a realidade sócio-cultural do país. A aposta é feita na língua do colonizador em detrimento das línguas
105
locais. A própria política de desenvolvimento é voltada para a ‘recuperação’ do atraso acumulado em relação à Europa (CARDOSO, 1998, p.95).
Apesar do governo guineense também preferir como Freire o rompimento total com a
herança colonial, a falta de verbas e de infra-estrutura impossibilitou a transformação radical
pretendida, posto que, o investimento necessário para se descartar o que já existia era
demasiado alto. A prática desenvolvida no período da luta armada foi se enfraquecendo aos
poucos. Temos que reconhecer que o PAIGC procurou fazer o possível diante da
impossibilidade de se fazer o que se pretendia, mas esta tentativa não foi suficiente para
implantação da educação para liberdade e para formação da nação e da identidade nacional
como fora vislumbrada. Além disso, a vinculação dos interesses políticos partidários à
organização das instituições públicas atrapalhou o funcionamento dos serviços do Estado, na
medida em que tinha que se esperar pelas decisões político-partidárias para implementação
das medidas na prática, o que gerou um caos generalizado (Cf. CÁ, 2008, p. 146).
No próximo capítulo aprofundaremos o debate sobre a criação de uma identidade
nacional e o problema da escolha da língua no sistema de ensino. Amílcar Cabral acreditava
que a língua servia somente para a comunicação e por isso considerava a única herança
positiva deixada pelos colonizadores. Já Paulo Freire via a língua como um instrumento de
dominação e, por conseguinte, considerava inaceitável a determinação do partido de
alfabetizar a população em português. Será a partir deste conflito entre Paulo Freire e o
governo guineense que debateremos a idéia da construção de uma identidade nacional com o
auxílio do sistema de ensino.
106
CAPÍTULO 3 – O MÚLTIPLO E O UNO: TENSÕES DE UM NOVO PAÍS
Neste capítulo, abordaremos o debate acerca da construção de uma identidade nacional
a partir da idéia de Amílcar Cabral que era a criação da unidade na diversidade. Essa
discussão suscita a reflexão sobre a dominação via aparato lingüístico. Este é o único ponto de
divergência entre o pensamento de Freire e o líder da luta pela independência de Guiné-
Bissau e Cabo Verde. Para Amílcar Cabral a língua portuguesa era a única herança positiva
do colonialismo e para o educador brasileiro a manutenção da língua reforçaria a dominação,
uma vez que a linguagem reflete o pensamento dos diferentes grupos sociais. Assim sendo,
trabalharemos a questão da escolha da língua no programa nacional de alfabetização de
adultos e as implicações dessa opção.
Freire, no livro Cartas à Guiné-Bissau, faz um paralelo entre o Brasil e a África e as
aproximações são marcadas a partir dos elementos que o autor aponta sentir saudade em sua
terra natal. Podemos dizer que o educador aponta semelhanças nas identidades e, por isso, diz
se sentir tão a vontade, uma vez que a África quase o faz se sentir em casa. O grifo no termo
quase revela um ponto importante na construção das identidades, posto que por mais
semelhantes que as duas culturas possam ser, elas, necessariamente, têm traços distintivos,
que as tornam únicas.
Freire explicita, no mesmo livro, os motivos da publicação antes do término da
experiência e a razão pelo qual aceitou trabalhar com o governo daquele país. Ao afirmar que
a ajuda só poderia ser firmada a partir da igualdade nas relações, Freire explica porque
defendia que o PAIGC não estava construindo a nação, mas sim reconstruindo-a, uma vez que
em seu entendimento aquele grupo só partia do zero nas condições materiais.“(...) De
reconstrução, digo bem, porque a Guiné-Bissau não parte do zero, mas de suas fontes
107
culturais e históricas, de algo de bem seu, da alma mesma do seu povo, que a violência
colonialista não pode matar” (FREIRE, 1977, p. 16).
Esta negação do passado colonial é típica dos movimentos de independência, uma vez
que a busca pelo rompimento com o modelo europeu era a tônica para formação da nova
identidade. Eles pensavam que a renegação do passado era importante para a construção de
uma nova cultura e não levavam em consideração que era impossível o rompimento total com
a herança colonial, uma vez que traços culturais europeus já tinham sido incorporados ao
cotidiano guineense. Essa postura no período posterior a independência é condizente, já que
estavam no processo de construção da identidade. Aos poucos não só os guineenses, como os
africanos em geral, perceberam a inviabilidade desta proposta e mudaram sua perspectiva.
Podemos fazer um paralelo desta situação com o da historiografia. Carlos Lopes aponta que a
produção historiográfica sobre a África feita pelos não africanos, principalmente antes da
independência, mas também após, dicotomizava esta sociedade criando relações de oposição
como tradicional versus moderno, oral versus escrito, etc. As análises sobre o continente
africano reforçavam a idéia colonial da inferioridade daqueles povos. Em contraposição ao
grupo não africano, logo após as independências naquele continente, a historiografia africana
feita por africanos queria mostrar a superioridade daqueles povos e daquelas culturas. Lopes
chama este movimento de pirâmide invertida e aponta que Ki-Zerbo foi um dos precursores
desse movimento que afirmou que a África também tinha história. O momento seguinte a esta
inversão foi chamada por Lopes de momento em que as “emoções estão controladas” e que a
produção historiográfica da pirâmide invertida seria substituída pela historiografia da nova
escola. Em outras palavras, após delinear os primeiros contornos da historiografia africana a
partir do rompimento com a historiografia tradicional, seria o momento de uma escrita da
história africana mais ‘equilibrada’ (LOPES, n. 18, jul. 94, p. 13). Esse adendo tem uma dupla
função, qual seja, a primeira foi traçar um paralelo com a situação de Guiné-Bissau pós-
108
independência em que o discurso da necessidade de rompimento era exacerbado. A segunda
função também relacionada com a primeira está diretamente ligada a produção textual deste
período que era bem inflamada para mostrar a atuação do partido. Em outras palavras, a
escrita do período logo após a independência pode ser considerado como a pirâmide invertida.
Retornando ao tema central de nossa pesquisa, Paulo Freire parte da premissa de que
as fontes culturais e históricas da Guiné-Bissau não saem do zero. Esta concepção se
sedimentava no que o PAIGC defendia, baseado nas idéias de Amílcar Cabral. Assim sendo,
ambos afirmavam que os portugueses atrapalharam o processo de unificação das etnias, por
isso eles utilizavam o termo reconstrução e não construção, já que acreditavam que os traços
comuns das diversas etnias – denominado por A. Cabral de ‘fundo de cultura comum’, como
vimos no capítulo 2 – se sobreporiam às particularidades, formando-se uma identidade
nacional. A criação de um passado comum e a criação de antecedentes históricos é uma
prática nas construções das nações. Devemos nos interrogar, portanto, se essa aproximação
existia de fato, ou seja, devemos nos interrogar se eles estavam reconstruindo a nação ou
utilizando isso como uma ferramenta para a criação do sentimento de unidade (OLIVEIRA,
1980, p. 77). Como vimos no capítulo 2, a Guiné-Bissau quando se tornou independente
estava bem dividida. Existiam os cristãos e os muçulmanos, além dos grupos de práticas
animistas, os mais claros e mais escuros, os cabo-verdianos e os guineenses, os que estudaram
fora ou não. Vale lembrar que os guineenses tinham uma grande rixa com os cabo-verdianos
por acreditarem que esses estavam com os melhores cargos no governo. Assim sendo, torna-
se bem difícil pensar em uma nação igualitária e em uma identidade nacional, tamanha a
diversidade existente no país.
109
Guineidade
O entendimento das concepções que balizavam a construção da identidade nacional
auxiliará na compreensão do papel da educação e, principalmente da alfabetização de adultos.
Para iniciarmos a discussão sobre a construção da identidade nacional em Guiné-Bissau é
necessário que retrocedamos ao período do movimento de libertação nacional. Além disso, é
fulcral a análise correlata da criação da identidade com a formação da nação, tendo em vista
que para a construção dessa é importante o sentimento de pertencimento ao grupo, ou seja, é
necessária uma identidade comum.
A luta de libertação nacional foi um movimento amalgamador das etnias. A esse
respeito Amílcar Cabral dizia “há 10 anos, nós éramos fulas, manjacos, mandingas, balantas,
papeis e outros... Somos agora uma nação de guineenses” (LOPES, 1987, p. 60). Podemos
perceber que Amílcar Cabral atribui à luta da libertação, a formação de uma consciência
nacional. Este partia da premissa de que “a unidade e a consciência nacionais são essenciais
para o desenvolvimento das estruturas políticas, econômicas, sociais e culturais da nação em
formação” (LOPES, 1987, p. 67). Sua argumentação se balizava no pressuposto de que as
culturas dos africanos eram independentes e autônomas da penetração colonial e isto
legitimava a sua liberdade. Amílcar Cabral dizia que a luta pela libertação nacional era a luta
pela reconquista da dignidade histórica e era a negação histórica imposta pela ocupação
colonial. É importante ressaltar que esse era um discurso político cujo intuito era legitimar a
congregação das étnicas gerando o sentimento de pertencimento a um único grupo e a uma
única entidade que os transcenderia que era a nação.
Neste ponto podemos perceber uma similitude com o pensamento de Paulo Freire que
defendia que era necessário que o povo guineense reconquistasse, nos dizeres deste educador,
sua palavra. A reconquista da palavra, para Freire, era possibilidade da própria definição do
110
povo do seu futuro e o ato educativo requereria o reconhecimento e a assunção da identidade
cultural.
As propostas pedagógicas de Freire partem da identidade e para ela convergem a partir da defesa da autonomia, inaugurando-se como compromisso com dos homens consigo mesmos, com sua identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e a de classe (GUSTSACK IN: STRECK, REDIN, ZITKOSKI, 2008, P. 220).
Freire na experiência guineense não trata de maneira direta da questão da identidade
nacional, mas encontramos em sua obra essa idéia de identidade cultural como necessária para
o ato educativo. Para que acontecesse a alfabetização freireana era premente uma identidade
cultural, até mesmo porque as palavras geradoras e os temas de debate eram retirados da
prática cotidiana do grupo. Nesse sentido, a campanha nacional de alfabetização de Guiné-
Bissau era um desafio, posto que ao mesmo tempo que se procurava alfabetizar se procurava
sedimentar essa identidade cultural ou nacional.
Sobre a formação da identidade, Amílcar Cabral dizia que esta tinha um caráter
dialético e que “consistia no facto de que um indivíduo (ou um grupo) só é semelhante a
certos indivíduos ou grupos se é também diferente de outros indivíduos (ou grupos), o que faz
da estrutura social o grande sustentáculo da cultura” (LOPES, 1987, p. 60).
A identidade diz o que um grupo é em contraposição aos outros. “Quando uma pessoa
tem identidade, está situada, isto é, disposta na forma de um objeto social pelo conhecimento
de sua participação ou filiação nas relações sociais” (GUIBERNAU, 1997, p. 82). Guibernau
aponta que a identidade cumpre três funções principais, quais sejam, ajuda a fazer escolhas,
torna possíveis as relações com os outros e confere força e capacidade de adaptação. A
identidade nacional, segundo a autora, confere força e poder de adaptação aos indivíduos,
porque reflete a identificação deles próprios com uma entidade, a nação, que os transcende. O
PAIGC pretendia a formação da identificação daquele grupo, como forma de demarcação de
seu posicionamento no cenário mundial.
111
Na construção de uma identidade estão implicadas a definição de quem somos em
contraposição de quem não somos, delimitando, assim, critérios de pertencimento ao grupo.
A identidade e a diferença estão estreitamente ligadas a sistemas de significação, posto que a
identidade é um significado culturalmente atribuído (SILVA, 2000, p. 89). Essa determinação
do que faz parte da identidade de um grupo e o que fica de fora significa dividir o mundo
entre nós e os outros, a partir de classificações. “Dividir e classificar significa, neste caso,
também hierarquizar. Deter privilégio de classificar significa também deter o privilégio de
atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados” (SILVA, 2000, p. 82). Woodward
complementa esta idéia afirmando que
todas as práticas de significação que produzem significados envolvem relações de poder, incluindo o poder de definir quem é incluído e quem é excluído. A cultura molda a identidade ao dar sentido a experiência e ao tornar possível optar, entre as várias identidades possíveis, por um modo específico de subjetividade. Somos constrangidos, entretanto, não apenas pela gama de possibilidades que a cultura oferece, isto é, pela variedade de representações simbólicas, mas também pelas relações sociais (WOODWARD, 2000, p. 19).
Para pensar na identidade nacional em Guiné-Bissau é primordial a reflexão sobre o
mosaico étnico que forma aquele país, delimitado por fronteiras arbitrárias definidas pelas
potências imperialistas. Guiné-Bissau é um país heterogêneo e não possui elementos em seu
passado que façam emergir o sentimento de unidade, lealdade e pertencimento. Cada etnia
possui sua própria história, seu próprio passado e não se pode falar de um passado comum
entre as etnias, em termos de ‘país’ (AUGEL, 2007, p. 266). Nesse ponto podemos nos referir
a Eric Hobsbawn que aponta as identidades nacionais como tradições inventadas ou a
Benedict Anderson que chama as nações de comunidades imaginadas. A luta pela
independência foi um dos fortes componentes utilizados para a criação destes sentimentos
fundamentais para a criação da nação. Carlos Lopes chama a atenção para que foi justamente
o Movimento de Libertação Nacional (MLN) que conseguiu essa conjugação étnica que
qualificou de notável. “O MLN conseguiu uma conjugação interétnica notável. Durante a luta
112
armada as diferentes etnias partilharam a causa comum. Desenvolveram a interacção.
Acreditaram nas mesmas palavras de ordem. Descobriram cumplicidades colectivas”
(LOPES, 1987, p. 61). Durante a luta existiu uma conjugação interétnica, o que não significa
dizer que se criou uma identidade comum, na medida em que esta conjugação tinha um fim
muito bem delineado que era a expulsão dos portugueses da Guiné. Lopes afirma que o
movimento de libertação nacional não tinha outro jeito para obter êxito se não fosse através da
formação da consciência nacional. Era preciso que se formasse um quadro teórico que
balizasse a luta. “O PAIGC não adotou pela continuidade e legitimou a ruptura” (LOPES,
1987, p. 62). Durante a luta este foi o posicionamento e este foi o discurso adotado após a
independência, momento em que o PAIGC assumiu o governo e conseqüentemente o papel de
Estado. Entretanto, ao exercer esta função o PAIGC viu a impossibilidade do rompimento
total e manteve a estrutura colonial e como mostramos, na educação foi procurado alterar os
currículos principalmente das disciplinas humanas, como história e geografia, por exemplo.
Em outras palavras, o PAIGC enfatizou a ruptura, mas em sua gestão houve continuidades.
Cabral dizia que um grupo de homens formaria um grupo étnico ou uma raça ou
qualquer outra coisa, na medida em que enfrentassem problemas comuns e tivessem as
mesmas aspirações (LOPES, 1987, p. 62). Nesse sentido, é de fácil compreensão que durante
a luta pela libertação do território guineense tenha existido uma espécie de solidariedade
nacional, posto que a saída dos portugueses era desejada pela maioria da população.
Entretanto, após a saída dos portugueses a manutenção dos laços firmados durante a luta se
tornou mais difícil, na medida em que o objetivo que tinha levado a criação desses laços já
havia sido alcançado. O governo pretendia que a interação entre os grupos étnicos continuasse
após a independência do país para a construção e consolidação da nação guineense. Encontrar
uma maneira pela qual houvesse a interação inter-étnica no território guineense foi a árdua
113
tarefa que o governo daquele país se confrontou durante os primeiros anos após a
independência, ou melhor, que se confronta até os dias atuais.
No entendimento de Amílcar Cabral, a identidade nacional seria criada a partir da
reafricanização da mentalidade dos assimilados. Para ele, a massa popular era depositária da
cultura e no processo de auto-identificação dos assimilados, através do suicídio de classe,
acabaria se construindo a identidade nacional. Esta se formaria a partir do grupo social que
fosse capaz de globalizar a cultura. E como apontamos anteriormente a luta foi feita pelos
quadros urbanos. O grupo que deveria reafricanizar sua mentalidade e que ao contrário em
alguns passou por cima do campesinato.
Resumindo, a consciência nacional serviu sobretudo para lançar um novo peão no jogo: o estado. ‘Ela deixou surgir esse novo sujeito histórico na cena política – diz-no Béji. É uma resposta radical à colonização, mas ele mesmo torna-se uma nova interrogação. Será que é somente uma vítima histórica ou produzirá igualmente o seu próprio sistema de opressão (LOPES, 1987, p. 64).
A questão suscitada por Lopes além de pertinente é fonte de reflexão na medida em
que aponta o cuidado que o partido que assumiu o governo deveria ter para não produzir
situação de dominação semelhante ao período colonial, tendo em vista que tinham lutado
tanto para se libertar.
Após a independência, o PAIGC indicava que a criação de uma identidade nacional
era importante para o recrutamento da população para a participação no projeto de nação que
eles ambicionavam. O Partido pretendia criar um sentimento de unidade na diversidade.
Devemos nos questionar sobre a possibilidade e os limites dessa tentativa. A criação da
identidade é uma demanda de afirmação, ou seja, é a definição dos traços de identificação do
grupo e, para tanto, o governo queria buscar elementos que fossem constitutivos de todas as
etnias para a formação da nação. Como já foi mostrado, remeter ao passado e a busca por
mitos fundadores são parte do processo de construção da identidade nacional.
114
Assim, como não deve considerar a nação somente como uma unidade política, mas sim como um sistema de representação cultural. É verdade que as instâncias culturais, tais como a língua, a religião, o discurso identitário, fazem parte integrante das culturas nacionais, mas igualmente as representações simbólicas são elementos constitutivos e básicos para a arquitetura desse edifício que é a nação. E as culturas nacionais, prossegue Stuart Hall, ‘ao produzir[em] sentidos sobre a nação, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam o seu presente com o passado e imagens que dela são construídas (AUGEL, 2007, p. 273).
A utilização de símbolos e rituais são essenciais para a manutenção da identidade,
além disto, eles mascaram as diferenças existentes naquele grupo societário e colocam em
destaque a comunidade, criando um sentimento de grupo. A dialética da lembrança e do
esquecimento faz parte do processo de criação e da narração da nação. Assim, o que deve ser
lembrado ou esquecido é definido como forma de criação do sentimento de pertencimento. O
sentimento de pertencimento é forjado a partir de diferentes componentes. Um componente de
destaque é a cultura. A cultura foi muito valorizada por Amílcar Cabral e pelos guineenses
após a independência.
A educação é um dos instrumentos utilizados para a criação dessa homogeneidade
cultural. Tomaz Tadeu da Silva aponta a língua, junto com a construção de símbolos
nacionais como hinos, bandeiras e brasões, como um dos elementos centrais para a criação de
laços que ligam as pessoas de um determinado grupo (SILVA, 2000, p. 85). A definição da
língua nacional e, conseqüentemente, da língua em que se processaria a alfabetização, era,
portanto, para Guiné-Bissau, um fator de extrema importância. Apesar da língua ser
considerada um dos elementos amalgamadores, naquele país, ela representava mais uma fator
de insegurança como elemento de auto-identificação dos guineenses. O português, embora
tenha sido adotado como língua oficial não era e ainda não é nem minimamente adotado pela
população. O crioulo é falado pela maioria e, por isso, pode ser considerado um elemento
aglutinador e de identificação, apesar do seu domínio se concentrar mais na capital e nos
centros urbanos.
115
Augel (2007, p. 27) afirma que falta na Guiné-Bissau o “projeto Guiné-Bissau” em
que se desenvolvam mecanismos desencadeadores do sentimento de pertencimento. A autora
diz que a grande preocupação de Amílcar Cabral que se fundava na valorização das diferenças
culturais étnicas, cuja soma seria a cultura nacional, está sendo desvirtuada. O pensamento de
Cabral é usado como um discurso autopromocional, mas na prática não se aplica sua teoria.
Procurou-se, nos primeiros anos de independência, infelizmente sem êxito, promover o gosto
pelo pertencimento ao território e também nutrir o sentimento de coletividade em prol do bem
comum. Apesar do PAIGC colocar que pretendia através da educação buscar elementos que
fossem constitutivos de todas as etnias, vemos na alfabetização de adultos, que foram usadas
palavras geradoras que remetiam a luta pela independência, reforçando o esforço daquele
grupo para sua libertação. Ao mesmo tempo que parece contundente o uso de palavras como
povo, luta, guerra, esse foi um dos fatores de desmobilização e falta de interesse dos
educandos.
Paulo Freire buscou, com a alfabetização de adultos, repensar a história daquele grupo
que há pouco se libertara do colonialismo. O intuito era a formação de um novo homem e
uma nova mulher que através da alfabetização se engajassem na luta pela “reconstrução”
nacional. Este educador visava reinventar a educação para a construção de uma cultura
nacional popular. Freire afirma que a cultura nacional está atrelada a cultura erudita e que esta
se contrapõe à cultura popular, sendo a segunda vista como uma corruptela da linguagem
formal. Para aplacar esta desigualdade o autor defendia a reinvenção da linguagem e a criação
de um projeto de cultura nacional popular em que os antagonismos sociais fossem superados
(FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 95-6). O educador brasileiro defendia que a introjeção de
valores da cultura dominante – no caso de Guiné-Bissau, a dos colonizadores – era um
fenômeno social e cultural e que sua extrojeção demandava uma transformação através de
116
uma ação cultural30 (FREIRE, 1981, p. 44). Para tanto, Freire defendia, como já foi
evidenciado anteriormente, que o povo guineense deveria conquistar sua palavra.
Para este educador a educação é um ato político e serve para a transformação ou para a
manutenção da ordem social.
Veremos mais adiante que a realidade pode ser mudada de modo revolucionário só porque e só na medida em que nós mesmos produzimos a realidade, e na medida em que saibamos que a realidade é produzida por nós. A diferença entre a realidade natural e a realidade humano-social está em que o homem pode mudar e transformar a natureza; enquanto pode mudar de modo revolucionário a realidade humano-social porque ele próprio é o produtor desta última realidade (KOSIK, 1995, p. 23).
Assim sendo, Freire defendia que a teoria deveria orientar a prática e esta deveria
reorientar a teoria num permanente processo de aperfeiçoamento. A metodologia de ensino
deste educador parte da premissa de que o ensino necessariamente está atrelado à melhoria da
vida da comunidade, por conseguinte, uma pessoa que não é da comunidade não pode definir
o que faz parte ou não do processo de ensino-apredizagem do grupo.
A assunção da identidade cultural tomada como pressuposto às práticas educativas remete a educação ao patamar de ação cultural para a transformação, mudança e liberdade. Faz-nos lembrar como propõe Silva ao discutir o conceito de identidade cultural em Stuart Hall, que também a história, em seu passado-presente-futuro, é mutável e fluida porque assumem-se como mutantes os sujeitos. Ou seja, ‘ao ver a identidade como uma que de tornar-se, aqueles que reivindicam a identidade’ não se limitam, não se fixam a ela e por ela com seus valores. Ao contrário, percebem que seus valores se transformam tornam-se capazes de ‘posicionar a si próprio e de construir e transformar as identidades históricas, herdadas de um passado comum (GUSTSACK IN: STRECK, REDIN, ZITKOSKI, 2008, P. 220).
Freire queria com a educação e com a alfabetização de adultos transformar o mundo e
construir novas identidades culturais, por isso ele e o PAIGC defendiam tanto a idéia da
formação de um novo homem e uma nova mulher. Ambos partiam do entendimento que os
membros do PAICG, por serem militantes do período da luta, seriam os intelectuais mais
adequados para a formulação do projeto, uma vez que conheciam, por viverem, a realidade do
30 FREIRE, Paulo. Ação cultural para liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981 p. 44
117
país. Percebemos aí que o projeto da construção da nação guineense estruturava-se no período
da luta e que Freire compartilhava desta compreensão sem refletir sobre as necessidades
peculiares de cada etnia. Outro ponto em comum no pensamento deles, fruto da concepção
marxista que embasava suas posturas de mundo, era a idéia da necessidade de uma vanguarda
para a implantação do projeto. O que ocorreu de fato foi a saída dos portugueses para os luso-
africanos assumirem o lugar.
Além do massacre de Pidiguiti, tradição inventada como marco de origem da nação
guineense pelos luso-africanos, outro fator de identificação do povo era o crioulo.
Vimos o kriol utilizado como factor de auto-identificação, reforçando de algum modo identidade face a um projecto de dominação e aculturação colonial. A interpenetração de tradições orais indígenas no kriol desenvolveu, ainda que em contextos limitados, o potencial de mediar entre grupos e, implicitamente, tornar-se uma fonte de identidade nacional. (...) A tradição kriol oferecia o simbolismo da revolução, fornecia o ‘código secreto’ da comunicação clandestina, e permitia a criação de uma ‘comunidade imaginada’ nacional (KING, 2003, p. 138).
O crioulo foi usado durante o período da luta como língua de mobilização popular, da
coesão social e da reivindicação dos valores africanos (KING, 2003, p. 140). Mais do que
isso, “o crioulo era a síntese cultural elaborada numa situação de opressão” (AUGEL, 2007, p.
289). Podemos perceber a partir disso, que o crioulo se tornou um traço identitário realçado na
luta. A partir disso, torna-se mais difícil compreender os motivos que impulsionaram o
PAIGC a definir o português como língua a ser utilizada no sistema de ensino. O crioulo
como síntese cultural era uma ferramenta fundamental para a criação da identidade nacional,
ao contrário do português que representava o ex-colonizador.
Além deste problema, qual seja, da escolha da língua em que se processaria a
alfabetização, Freire comenta no livro A África ensinando a gente31 a dificuldade e o esforço
que a “reconstrução nacional” requer:
31 GUIMARÃES, Sérgio, FREIRE, Paulo. A África ensinando a gente: Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe. São Paulo: Paz e Terra, 2003
118
Quanto mais eu me meto no esforço da reconstrução nacional, tanto mais eu descubro o óbvio: Quão difícil é realmente reconstruir uma sociedade! Criar uma sociedade nova, que vai gerar um homem novo e uma mulher nova! E aí a gente percebe, na verdade, como isso não tem nada que ver com os mecanicismos, que não tem nada que ver com espontaneímos, nem tampouco com voluntarismo. Mas, pelo contrário, isso demanda uma consciência política clara, que se vai clarificando mais na práxis política, fora da qual não há caminho, eu creio, não há solução. (...) Mas exatamente porque isso não é mecânico, mas sim dialético, em certos casos a educação anuncia o mundo a transformar-se, mas é preciso que esse mundo se transforme realmente para que o anúncio que a educação faz não caia no vazio. Isso tudo exige rigor de estudo, capacitação de quadros, o desenvolvimento econômico e social do país, tudo a um só tempo! Não é fácil (GUIMARÃES, 2003, p. 41-2).
Neste trecho, Freire usa de maneira não crítica o adjetivo nacional, posto que o utiliza
como sinônimo de social. Em outras palavras, Freire não faz uma reflexão profunda acerca do
que significa construir uma nação, talvez esta também tenha sido uma das dificuldades que
impossibilitaram o êxito do projeto da alfabetização, na medida em que talvez o educador não
tenha conseguido compreender algumas motivações do partido e isso tenha influenciado de
maneira negativa na determinação de alguns dos seus posicionamentos.
Freire defendia que a luta da “reconstrução nacional” era a continuidade da luta de
libertação e que o problema da identidade cultural estava presente neste debate. Ele usava a
frase de Amílcar Cabral para ilustrar esse problema, dizendo que “a luta de libertação é um
fato cultural e um fator de cultura.”
A luta de libertação é um fato cultural na medida em que é um produto daquela cultura
– um evento histórico – e é um fator de cultura, posto que induz a transformação, modificando
o ambiente em que emergiu o fato cultural. Ou seja, cria novas configurações culturais.
Podemos perceber que o governo de Guiné-Bissau pretendia utilizar a alfabetização
como ferramenta para a criação de uma identidade nacional do povo guineense. A
alfabetização em massa tinha o objetivo de ressaltar a cultura local32, criando uma identidade
32 A utilização do termo cultura no singular neste trecho tem o intuito de demarcar o posicionamento tanto do Freire quanto do PAIGC, que pretendiam através da homogeneização a criação da identidade nacional. Vale lembrar que não concordamos com esta postura e entendemos que em Guiné-Bissau existem diversas culturas.
119
nacional, para que os ideais do colonizador fossem esquecidos. O partido utilizava o termo
cultura no singular para demarcar seu posicionamento, ou seja, era buscada uma
homogeneização para criação da identidade. É possível homogeneizar respeitando as etnias?
Este posicionamento do governo parece evidenciar uma contradição em seu próprio discurso,
ou pelo menos, uma falta de reflexão aprofundada sobre a maneira pela qual se implantaria a
unidade na diversidade.
Unidade na diversidade: possibilidades e limites
Até o momento, tratamos a questão da unidade na Guiné-Bissau refletindo sobre a
possibilidade da criação da identidade somente no interior do território guineense. É
necessário, entretanto, apesar de não ser o foco desta dissertação, refletir um pouco sobre a
unidade de Guiné-Bissau e Cabo Verde, tendo em vista que até 1980 a tentativa de criação do
sentimento de pertencimento ao grupo era buscado não só no território guineense, mas
também entre os dois países.
A unidade entre Guiné-Bissau e Cabo Verde era pensada a partir das aproximações
históricas e da língua comum – o crioulo. Apesar de existirem correntes guineenses anti cabo-
verdianas, estas não tiveram grande expressão política. Amilcar Cabral defendia que Guiné-
Bissau e Cabo Verde eram um só pela natureza, história, geografia e pela tendência
econômica. Ele fundamentava a união primordialmente nos laços de sangue e nos laços
históricos. O povoamento das ilhas de Cabo Verde começou em 1461 e foi feito
principalmente com escravos vindos da Costa da Guiné. Até 1879, Portugal manteve as duas
colônias sob a mesma organização e administração.
Um resumo que não será abusivo, permitirá dizer que, durante mais de três séculos, sob a autoridade colonial portuguesa, a actual Guiné-Bissau e as ilhas de Cabo Verde, cuja população tem a sua raiz fundamentalmente
120
nessas paragens, estiveram ligadas através de uma união orgânica formal (RIBEIRO, 1983, p. 28).
Geograficamente, Amílcar Cabral defendia que os dois territórios eram complementares,
posto que Guiné-Bissau não tem montanhas e Cabo Verde são ilhas vulcânicas (RIBEIRO,
1983, p. 31).
A noção de complementaridade usada no âmbito geográfico foi pensada também no
âmbito econômico. Após a independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde conquistadas em
1974 e 1975 respectivamente, a unidade política dos dois países foi uma decisão político-
partidária e a integração econômica foi pensada a partir da idéia da complementaridade das
economias, apesar de Aristides Pereira, secretário-geral do PAIGC, em 1978, afirmar que a
definição de uma estratégia bi-nacional de desenvolvimento consistia na aceitação de
situações pontuais de concorrência (RIBEIRO, 1983, p. 47).
A gestão de Luis Cabral foi bem conturbada e nela foram assassinados vários líderes
que participaram da luta. Uma grande crise em 1980 levou a deposição de Luis Cabral, em 14
de novembro, com um golpe que dizia ter o intuito de salvaguardar a unidade nacional e os
ideais revolucionários. Pouco tempo depois da posse de Nino Vieira, líder do Movimento
Reajustador, que executou o golpe, efetuou-se a separação entre Guiné-Bissau e Cabo Verde,
em 1981 (AUGEL, 2007, p. 63).
Voltando a refletir sobre a questão da unidade, para Amílcar Cabral esta só poderia
existir atrelada a noção diferença. Para ele só havia necessidade de unir o que era diferente,
tendo em vista que se fosse igual, já seria uno. “O fundamento principal da unidade reside na
diferença entre as coisas. Se estas não forem diferentes, não é preciso fazer unidade; não há
problema de unidade” (CABRAL, 1978, p. 118). Cabral usou como representação da unidade
um time de futebol. Sua argumentação era de que os onze jogadores mesmo sendo diferentes
tinham uma aspiração comum que era ganhar o jogo e tinham que fazer isso necessariamente
121
em conjunto. Cada um preservaria sua personalidade, idéias, problemas, mas formariam uma
unidade agindo em conjunto para a concretização do objetivo (CABRAL, 1978, 118).
Quer dizer que o problema da unidade surge na nossa terra, repito, não por causa da necessidade de juntar pessoas com pensamentos políticos diferentes, mas sim de juntar pessoas com situação económica diferente, apesar de essa diferença não ser tão grande como noutras terras que possuem uma situação social e culturas diferentes, inclusive a religião (CABRAL, 1978, p. 119).
No interior da Guiné-Bissau, para pensarmos nas possibilidades e limites da criação da
unidade na diversidade é premente não esquecermos o conglomerado de etnias que compunha
e ainda compõe aquele país e as relações de poder que ali foram estabelecidas.
Como vimos, o território guineense é composto por diversas etnias que possuem suas
próprias culturas com suas próprias línguas. É difícil precisar o número de grupos que
convivem naquele território, posto que, existem grupos e subgrupos e os critérios para a
quantificação destes variam bastante, como foi evidenciado no primeiro capítulo. O que se
pode afirmar é que este número é superior a 20. Podemos dizer que as etnias mais numerosas
são os Balantas somando 27% da população, os Fulas somando 22%, os Mandinga com 12%,
os Mandjaco com 11% e os Pepel ou Papel com 10%. É importante ressaltar que há uma
grande diferença entre os povos que vivem no litoral em relação aos que vivem no interior. Os
mandinga e os fulas, por exemplo, são povos que vivem no interior. Estes grupos dedicavam-
se majoritariamente ao comércio. Em contrapartida, os grupos do litoral, como os Balanta e os
Brame33, por exemplo, eram agricultores (AUGEL, 2007, 77). Os grupos islamizados, que
mais negociaram com o governo colonial resistiram mais a tentativa de criação da identidade
comum e da nação, diferentemente dos grupos animistas que participaram da luta e estiveram
mais abertos as incursões do PAIGC. Sedengal é um exemplo de uma área que participou
33 Augel aponta que os Brame são subdivididos em Mandjaco, Pepel e Mancanha (p.77), já Jauará diz que Brames é sinônimo de Mancanhas. (p. 7)
122
ativamente da luta pela independência e após esta ser conquistada participou também
ativamente nas propostas do governo e por isso foi uma experiência piloto considerada de
sucesso na Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos.
Para Amílcar Cabral a unidade era um meio de concretização do plano de
independência e da possibilidade da autodeterminação dos territórios africanos e não a
finalidade do mesmo. Augel aponta que atualmente as relações interétnicas, diferentemente do
período desse estudo, são pacíficas e apesar das culturas serem controladas por um sistema
estatal dominado pelo grupo crioulo da capital (os luso-africanos), há espaço para a
diversidade cultural, principalmente nas atividades religiosas e domésticas (AUGEL, 2007, p.
78).
Como vimos, Amílcar Cabral pontuou que a diferença estava mais na economia do
que na cultura e que a permanência de posições sociais distintas possibilitava a preservação da
dominação de um grupo sobre o outro.
Nós lutamos para libertar o nosso povo, não só do colonialismo, mas de toda a espécie de exploração. Não queremos que ninguém mais explore o nosso povo, nem brancos, nem pretos. Porque a exploração não só os brancos que a fazem, há pretos que querem explorar ainda mais que os brancos (CABRAL, 1978, p. 35).
Amílcar Cabral considerava que o suicídio de classe era primordial para a viabilidade
da construção de uma nação igualitária. Os assimilados à cultura portuguesa tinham aprendido
a administrar o aparelho de Estado por sua condição “semi privilegiada” na sociedade
colonial, mas ao mesmo tempo sentiam a discriminação presente no colonialismo. O suicídio
representava a perda dos privilégios e Cabral sabia que existiria os que não abririam mão e,
em seu entendimento, estes trairiam a revolução. “E se nós, amanhã, trairmos os interesses
dos nossos povos, não será porque não o soubéssemos. Será porque quisemos trair e não
teremos, então, qualquer desculpa” (CABRAL apud CABRITA, 1999, p. 163) Consideramos
importante fazer um parêntese acerca do uso do vocábulo povos no plural. Ribeiro aponta que
123
Amílcar Cabral usava indiscriminadamente o singular e o plural para se referir a cultura,
povo, nação, país e território e que isto não representa uma imprecisão em sua teoria, mas ao
contrário reforçava o enraizamento em seu pensamento da noção de unidade (RIBEIRO,
1983, p. 39).
Mudando um pouco o foco do nosso debate, refletiremos sobre quem são os
analfabetos em Guiné-Bissau para mapear quais foram os grupos ou espaços sociais que
foram “esquecidos” pela escola. Relacionaremos em seguida a argumentação aqui produzida
com a questão da identidade nacional e a campanha de alfabetização de adultos, assim como
trabalharemos de maneira aprofundada a questão da dominação via aparato lingüístico.
Apesar de nos primeiros anos após a independência, através do esforço de se realizar
em pouco tempo o que o colonialismo não havia feito no tempo em que lá esteve, a oferta
educativa ter crescido grandemente, o acesso ao sistema educativo era desigual, não só em
relação ao gênero, mas também as etnias (MONTEIRO, nº 1 jan 1997, 49). O censo de 1979
mostrou que “os recursos do país em indivíduos instruídos ou em vias de o serem incidiam
sobre o sexo masculino e sobre os centros urbanos” (MONTEIRO, nº 1 jan 1997, 35). Em
outras palavras, o investimento era pequeno nas mulheres e nas zonas rurais do país.
Todo esse conjunto de características identificadas em 1979 convergiam na conclusão de que, apesar dos esforço despendidos desde 1974 – a independência total – muito restava ainda por fazer para mudar a face do país relativamente ao nível da instrução dos seus habitantes (MONTEIRO, nº 1 jan 1997, p. 35).
Se os camponeses e as mulheres eram os grupos menos instruídos, entre as etnias
podemos apontar que, ao contrário do que se imaginaria, as etnias animistas, apesar da
resistência à dominação colonial, forneceram o maior número de alunos às escolas oficiais, já
os fulas e os mandingas que eram mais propensos a falar português devido a sua aproximação
com o governo colonial foram mais resistentes ao ingresso nas escolas coloniais, posto que
tinham suas próprias escolas e sua crença muçulmana era diferente das dos portugueses.
124
Assim sendo, os fulas, mandingas, no interior, e os balantas no litoral são os grupos com
maior número de analfabetos, já os brames e os grupos ditos mistos ou sem etnias
(assimilados) são os com maior índice de instrução (MONTEIRO, nº 1 jan 1997, p. 49). É
interessante perceber que o grupo que era o maior produtor da riqueza nacional – os
camponeses – era o que possuía menor instrução e que tinha menor representação no governo,
como vimos no capítulo 2. Se na teoria a economia e a educação seriam voltadas para o
campo, podemos perceber pelos dados que na prática este plano não se efetivou a contento. A
economia se voltou para a industrialização ao invés da agricultura e a educação teve
importantes experiências que relacionavam a educação ao trabalho produtivo, mas não
duraram muito tempo, além disso, faltou sintonia entre o projeto educativo e o projeto global
de sociedade.
Retomando a discussão da formação de uma identidade nacional a partir da educação e
da construção da unidade na diversidade, é preciso resgatar o que fora debatido no início deste
capítulo para aprofundarmos a idéia de que não possível basear a construção da unidade na
diversidade somente na conjugação interétnica.
Com efeito, o homem africano, cuja diferença essas literaturas afirmam e defendem, é um ser, cultural e psicologicamente, dividido. Busca, porém a sua unidade, quando se liberta dos elementos alienantes que a aculturação lhe trouxe, despindo-se dos atavios descaracterizadores, sem rejeitar, todavia, liminarmente toda a ocidentalização. Reconhece-se que o equilíbrio cultural e psicológico do colonizado e do africano é complexo, na medida em que a assimilação dos valores alienígenas a que esteve sujeito não é toda ela negativa. Por outro lado, dos valores culturais negros a que sua conscientização cívica e política lhe impõe que regresse, nem todos são aceitáveis ou desejáveis, por historicamente anacrônicos ou por inadequação a nova realidade constituída pelo contacto colonial. (TRIGO, s.d, p.70)
Vemos, portanto, que a criação da unidade na diversidade tinha que ser pensada a
partir da interação da conjugação interétnica com a herança colonial. Independente do desejo
do partido de extirpar a herança colonial, isto era impossível, tendo em vista que alguns traços
culturais europeus, pela convivência, já tinham sido introjetados, tendo, inclusive, um grupo
125
formado com esses valores dentro da divisão proposta pelos pesquisadores do INEP daquele
país. As identidades são construídas a partir de valores e códigos sociais formados
coletivamente, por isso, a criação da identidade é um ato político, posto que parte da
idealização das relações sociais que instituem a cidadania. Nesse sentido, é necessário tempo
para que o sentimento de pertencimento se sedimente (AUGEL, 2007, 263).
O interessante no discurso de Amílcar Cabral e do PAIGC é que ao mesmo tempo em
que afirmavam de forma radical que era preciso romper com a herança colonial, afirmavam
que o idioma português era umas das melhores coisas que os colonizadores tinham deixado.
O português é uma das melhores coisas que os Tugas nos deixaram, porque a língua não é prova de nada, mas senão instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros; é um instrumento, um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo.” (MACÊDO, humanidades, p. 37)
Essa contradição gerou alguns problemas para o governo, na medida em que a população que
ia ser alfabetizada não conseguia compreender a necessidade do aprendizado do português,
principalmente porque era defendido que o rompimento com o Portugal era fundamental. Foi
criado pelo partido a idéia de que o uso do português, uma língua não africana, diminuiria os
problemas internos. Isso não deixa de ser verdade, mas a escolha do português favorecia um
grupo, dificultando os que não tinham o domínio desse a ter uma ascensão social, de se
relacionar com o Estado e ter um cargo público. Além disso, diferentemente do que afirmava
Amílcar Cabral estão inscritos na língua traços essenciais da cultura. Da mesma maneira que
Freire possivelmente não compreendia de fato os meandros necessários para a construção da
nação, como vimos no capítulo 2, o governo guineense não compreendia em sua plenitude a
teoria do conhecimento freireana que parte do princípio de que a língua segrega, domina e
também liberta, daí o educador defender que o povo deveria conquistar o direito de
pronunciar a sua palavra, ou seja, de nomear o mundo a sua maneira.
126
Freire dizia que a palavra é um elemento importante de uma cultura, pois é ela que
propicia a nomeação e a reinvenção do mundo. “Na verdade, o processo de libertação de um
povo não se dá, em termos profundos e autênticos, se esse povo não reconquista a sua palavra,
o direito de dizê-la, de ‘pronunciar’ e de ‘nomear’ o mundo” (FREIRE, 1977, p. 145). Freire
complementa dizendo que a imposição da língua do colonizador ao colonizado é uma
condição fundamental para a dominação. “Não é por acaso que os colonizadores falam de sua
língua como língua e da língua dos colonizados como dialeto; da superioridade e riqueza da
primeira a que contrapõem a ‘pobreza’ e a ‘inferioridade’ da segunda” (FREIRE, 1977, p.
145). Apesar disso, o PAIGC, optou pela utilização do português como língua oficial e
determinou que a alfabetização deveria ser ensinada neste idioma.
É importante destacar que os indivíduos, independente dos grupos a que pertencem,
estão rodeados de formações discursivas de toda a sociedade. São essas formações que
conformam o comportamento dos indivíduos na realidade cotidiana. Por isso, Freire
acreditava que a educação era eminentemente política, pois esta é capaz de reelaborar os
discursos podendo reproduzi-los, mantendo, desta forma, a ordem vigente, ou transformá-los
(BACCEGA, 1995, p. 55). A educação nesse sentido, para Freire, tem um papel de destaque,
posto que auxilia na reflexão sobre as relações sociais e propicia a transformação.
Paulo Freire entendia que a atuação de cada membro está delimitada por seu discurso e
que a educação poderia transpor essas barreiras, uma vez que ela serviria para ensinar e tornar
disponível aos indivíduos os diversos tipos de discursos existentes na sociedade. Fica claro,
portanto, que a educação constitui fator capaz de gerar tanto igualdade quanto desigualdade
social. No primeiro caso, através do estudo, os indivíduos poderiam apreender os diversos
tipos de discursos sociais e com isso fazer parte dos diferentes grupos sociais, principio
defendido por P. Freire, que censurava a educação utilizada como ferramenta para a
127
segregação, conferindo poder a quem detém certo discurso e excluindo quem não o
compreende.
Na verdade, os participantes de uma situação comunicativa se reconhecem enquanto indivíduos portadores de certas intenções e disposições mentais a partir dos contextos sociais e não fora deles (Marx, 1973). Será portanto a partir de um certo contexto que um determinado texto poderá ser produzido, contexto esse que atribui papéis para os participantes que deverão se portar adequadamente, realizando certo tipo de ações (STEUERMAN, 1981, p. 2).
Ação que trabalha com os símbolos sociais e sua decodificação, a alfabetização de
adultos, defendida por Paulo Freire, proporciona a entrada dessas pessoas em um novo grupo
– o grupo dos letrados.
A palavra, como pronúncia do mundo, não será um dizer no vazio, de efeito sonoro ou semântico. O "dizer a palavra", em Freire, não é modalidade passiva, ela é a própria existência que, sendo humana, não pode ser muda nem desvinculada de uma práxis (José Barbosa da Silva, site visitado em 08/08/08).
Para Freire o direito de dizer a palavra, saber lê-la e escrevê-la estava necessariamente
atrelada ao entendimento do seu significado, significado este que não estava só no âmbito do
discurso, mas diretamente ligado a prática da vida cotidiana. A educação em geral e, mais
especificamente, a alfabetização de adultos tornaria disponível aos educandos os diversos
discursos sociais e suas conseqüentes maneiras de agir no mundo para que este pudesse
participar dos diversos grupos sociais existentes. Steuerman defende que, apesar da intenção
de Freire ser possibilitar a mudança, este reproduz os papéis institucionais existentes na
educação tradicional e conseqüentemente mantêm a instituição de ensino como reprodutora
social (STEUERMAN, 1981, p. 8).
Como o educador defendia cada experiência é única e impossível de ser transplantada,
assim sendo, é possível certamente em determinados círculos houve na prática a reprodução
social ao invés da transformação. Entretanto, não podemos afirmar categoricamente que esta
seja a tônica do pensamento freireano. Mesmo que muitos círculos de cultura não tenham
128
obtido o resultado esperado, os integrantes das FARP e a experiência realizada em Sedengal
mostram que foi possível refletir sobre a prática cotidiana e alterar as relações sociais
existentes em Guiné-Bissau. Em outras palavras, A Campanha não obteve os resultados
esperados, mas alguns círculos tiveram êxito e colocaram em prática tanto os princípios do
PAIGC quanto os de Paulo Freire.
Freire acreditava que as pessoas estavam num processo de aprendizado e
transformação constante e que por isso poderiam, através da educação, melhorar sua condição
de vida. Por isso, Freire tentava atingir o maior número de pessoas, visando transportá-las de
uma realidade a outra, evitando, ou tentando diminuir a exclusão social.
A educação defendida por Paulo Freire pretende desmistificar os símbolos, fazendo
com que o conhecimento seja gerado na integração aluno-professor e que a construção da
realidade que ocorre cotidianamente se dê sob outras bases. Assim, a linguagem tem um papel
preponderante, pois é a partir dela que os símbolos são criados e recriados e que o
conhecimento se produz e reproduz.
Ana Maria Freire, segunda esposa do educador, mostra que:
O convite de Freire ao alfabetizando adulto é, inicialmente, para que ele se veja enquanto homem ou mulher vivendo e produzindo em uma determinada sociedade. Assim, Freire convida o analfabeto a sair da apatia e do conformismo de ‘demitido da vida’ em que quase sempre se encontra e desafia-o a compreender que ele próprio é também um fazedor de cultura. O ser-menos das camadas populares é trabalhado para não ser entendido como desígnio divino ou sina, mas como uma determinação do contexto econômico-político-ideológico da sociedade em que vivem. (...) Quando o homem e a mulher se percebem como fazedores de cultura, está vencido, ou quase vencido, o primeiro passo para sentirem a importância, a necessidade e a possibilidade de se apropriarem da leitura e da escrita. Estão alfabetizando-se, politicamente falando (FREIRE, 1996, p. 37).
Paulo Freire acreditava que o mundo e o homem articulam-se num processo
ininterrupto de construção e reconstrução, ou seja, o mundo e os homens são projetos que se
fazem e se refazem a partir de suas atuações, o que demonstra, que o individuo é, ao mesmo
tempo, fruto e agente de sua história. Ser fruto e agente de sua própria história significa que o
129
homem, concomitantemente, constrói cultura e por ela é moldado. Freire acreditava, portanto,
que como somos agentes e pacientes de nossa própria cultura, podemos transformá-la. Assim
sendo, os temas ou palavras geradoras são escolhidos a partir do universo vocabular do
educando, ou seja, as palavras que serão os temas de discussão dos círculos de cultura são
escolhidos a partir da problematização da prática dos educandos, fazendo com que este recrie
e re-signifique seus significados.
O aprendizado da leitura e da escrita deve ser um ato criador, envolvendo,
necessariamente, a compreensão crítica da realidade. A noção de que existe um conhecimento
anterior, a partir da análise de práticas concretas, abre novas perspectivas aos alfabetizandos,
que passam a vislumbrar a possibilidade de forjar um conhecimento, além dos limites
anteriores. Desmistificam-se, assim, as falsas interpretações dos mesmos, decorrentes de uma
construção social formuladora de verdades acabadas e da naturalização do conhecimento.
O alfabetizando, na metodologia freireana, é desafiado a refletir sobre seu papel na
sociedade enquanto aprende a escrever a palavra sociedade, a repensar a sua história enquanto
aprende a escrever e a decodificar o valor sonoro de cada sílaba desta palavra. O professor,
nesta visão, tem o papel de coordenar o debate, por isso a designação dada de animador de
debates, e problematizar as discussões para que opiniões e relatos surjam. Daí emerge outro
pressuposto do pensamento freireano que se refere à dialogicidade do ato educativo. Para
Freire a educação prima por ampliar a visão de mundo dos educando e isso só pode ser feito a
partir do diálogo. Para ele, “a atitude dialógica é, antes de tudo, uma atitude de amor,
humildade e fé nos homens, no seu poder fazer e refazer, de criar e recriar” (FEITOSA, 1999,
p. 2).
Paulo Freire, no livro Cartas à Guiné-Bissau, desenvolve um pouco a idéia do papel
da alfabetização dizendo que:
130
Daí que jamais nos tenhamos detido no estudo de métodos e de técnicas de alfabetização de adultos em si mesmos, mas no estudo deles e delas enquanto a serviço de, e em coerência com uma certa teoria do conhecimento posta em prática, a qual, por sua vez, deve ser fiel a certa opção política. Nesse sentido, se a opção do educador é revolucionária e se sua prática é coerente com sua opção, a alfabetização de adultos, como ato de conhecimento, tem, no alfabetizando um sujeito deste ato. Dessa forma, o que se coloca a tal educador é a procura dos melhores caminhos, das melhores ajudas que possibilitem ao alfabetizando exercer o papel de sujeito de conhecimento no processo de sua alfabetização (FREIRE, 1977, p. 18).
Freire não discute aprofundadamente, nesta fonte de pesquisa, o ponto que foi o
principal aspecto de desacordo entre ele e o PAIGC. Vemos que ele está de acordo com o
partido de que a educação deve estar atrelada a opção política e, por conseguinte, deve servir
para este fim, mas a questão da autonomia tão prezada por Freire o “obriga” a defender a
educação na língua materna, no caso, o crioulo que era falado por 80% da população em
detrimento do uso do português que era defendido pelo PAIGC. A alfabetização em outra
língua seria uma invasão cultural e iria contra esse princípio fundamental de sua teoria do
conhecimento. Ou seja, o pensamento de Paulo Freire não coadunava com o pensamento do
PAIGC no que era mais essencial. Assim como Freire se preocupava em não invadir as
culturas guineenses levando soluções prontas, ele procurava não invadir a cultura popular
alfabetizando com palavras que eram tidas como estrangeiras para a maior parte da
população.
Freire não propôs nada inovador, se levarmos em conta que na plataforma do partido,
escrito em 1963, antes da emancipação do povo guineense, já estava prevista a criação da
escrita crioula e a alfabetização em massa. Contudo, o governo jamais aceitou a idéia. Para
ele, a alfabetização tinha que ser em português, sob a justificativa de que a adoção de uma
língua africana isolaria Guiné do resto do mundo.
Sobre o problema da escolha da língua, Paulo Freire diz:
131
Pudemos observar que os alfabetizandos, durante os largos meses de esforço, não conseguiram fazer outra coisa senão uma caminhada cansativa em torno das palavras geradoras. Marchavam da primeira à quinta; na quinta, haviam esquecido a terceira. Voltava-se à terceira e se percebia que haviam olvidado a primeira e a segunda. Por outro lado, ao procurarem criar palavras com as combinações silábicas de que dispunham, raramente o faziam em português. Eu mesmo tive oportunidade de ver palavras escritas por alguns deles, cuja grafia coincidia com a de palavras portuguesas, mas cuja significação era outra, completamente, pois era em língua mancanha ou balanta que pensavam. Por que? Porque a língua portuguesa não tem nada que ver com sua prática social. Na sua experiência quotidiana, não há um só momento, sequer, em que a língua portuguesa se faça necessária. Nas conversas em família, nos encontros de vizinhos, no trabalho produtivo, nas compras no mercado, nas festas tradicionais, ao ouvir o camarada presidente, nas lembranças do passado. Nestas, o que deve estar claro é que a língua portuguesa é a língua dos “tugas”, de que se defenderam durante todo o período colonial (ALMEIDA, 1981, p. 205).
A justificativa do governo de que o ensino em uma língua africana isolaria Guiné-
Bissau do resto do mundo é contundente, entretanto, a falta de êxito da alfabetização em uma
língua estrangeira é um fato irrefutável. Como conciliar os interesses, então, para a escolha da
língua? Vale lembrar que esta é ainda uma questão não solucionada na Guiné. Mesmo que o
PAIGC optasse pelo uso do crioulo como língua da alfabetização haveria um outro
impedimento, uma vez que esta não possui escrita. Era necessário, portanto, que o ensino
ocorresse em português não só pela justificativa de fechamento, mas até que se criasse escrita
para esta língua. Em certa medida é compreensível o posicionamento do PAIGC diante da
opção pelo uso do português como a língua do ensino, entretanto, a historiografia aponta que
este posicionamento atravancou a concretização do planejamento educacional.
O pedagogo brasileiro Paulo Freire, logo após a independência, tentou aplicar um plano de alfabetização e escolarização em grande escala na Guiné-Bissau e, depois de uns poucos anos, acabou desistindo, por não conseguir convencer o governo da necessidade de se começar a alfabetização pelas línguas maternas, método usado largamente em muitos países africanos de colonização inglesa ou francesa. (AUGEL, 2007, p. 73)
Augel mostra que a alfabetização nas línguas maternas foi muito utilizado nos países
africanos e que a recusa a adoção desta iniciativa levou Freire a desistir da consultoria que
prestava aquele país. É evidente que a falta de verbas atrapalhava a produção de material
132
didático nas línguas maternas e que essas por não possuírem escritas demandariam maiores
gastos com a contratação de lingüistas para a criação de suas escritas. Entretanto, o aspecto
determinante para a não aceitação do uso do crioulo ou das línguas maternas no ensino se a
concepção de Amílcar Cabral, que ao delinear as diretrizes do PAIGC, defendeu que a única
herança positiva de Portugal foi o português, língua que já tinha vocábulos científicos e por
este motivo não era preciso criá-los, como no caso do crioulo. Além disso, Amílcar Cabral
defendia que a língua portuguesa era um importante fator de unidade (CABRITA, 1999, p.
159). Podemos perceber com isso que os luso-africanos eram um grupo modernizador que na
verdade ao contrário do proclamavam eram ocidentalizados.
Ao afirmar que a língua não é prova de mais nada, senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros, Amílcar Cabral deixava de perceber lamentalvelmente a natureza ideológica da linguagem, que não é algo neutro como lhe pareceu no texto citado. Esta é uma das raras afirmações da obra de Cabral que jamais pude aceitar (FAUNDEZ, FREIRE, 1985, p. 126).
Para Paulo Freire a linguagem expressa o pensamento dos indivíduos e por isso as
relações de poder estão inscritas nela. O educador via a linguagem comprometida com as
classes sociais, daí sua teoria do conhecimento partir do universo vocabular dos educandos. O
objetivo de partir da realidade do educando era confrontar as diferenças de significado que os
vocábulos apresentam, a partir do diálogo. Assim sendo, mudar a linguagem fazia parte do
processo de transformação do mundo (OSOWSKI In: REDIN, ZITKOSKI, 2008, p. 252).
O uso do crioulo ou das línguas maternas na educação auxiliariam no êxito do novo
sistema de ensino e na perspectiva freireana impulsionariam a transformação social, posto que
a educação permitiria a análise, a descrição e o debate em profundidade da realidade social
existente. Além disso, o uso dessas línguas estaria de acordo com os outros princípios do
partido que eram o ensino atrelado a vida cotidiana e ao trabalho produtivo. Como convencer
os educandos sobre a importância da luta pela construção nacional com o rompimento da
133
herança colonial se mantinham a língua do colonizador e sua estrutura de ensino? Talvez uma
alternativa viável fosse a promoção do ensino em mais de uma língua. Assim sendo, não
defendemos que não houvesse o ensino do português, em contrapartida, essa também não
pode ser a única opção, já que dificultava a relação de ensino-aprendizagem. Um dos
problemas decorrente dessa opção era a falta de entendimento do que estava sendo estudado.
“O ensino do português se faz então por métodos usados no ensino de uma segunda língua, de
uma língua estrangeira. Fora da sala de aula, como em Cabo Verde, os alunos só empregam o
crioulo” (CUNHA, 1981, p. 79). Como o ensino em português não é só uma opção, mas uma
falta também de opção pela pouco infra-estrutura, fica evidente que havia uma
incompatibilidade “irreversível” entre o pensamento de Freire e do PAIGC.
A teoria do conhecimento freireana não foi pensada para o ensino em uma língua
estrangeira, uma vez que parte da realidade social e da vida cotidiana. Como escolher palavras
geradoras que não fazem parte da vida dos educandos? Como problematizar as questões
sociais e pedir que os educandos se expressem livremente se não tem o domínio da língua
para tal? Além disso, este educador defendia o rompimento total com a herança colonial,
inclusive o rompimento com a língua. “De fato, o problema da língua não pode deixar de ser
uma das preocupações centrais de uma sociedade que, libertando-se do colonialismo e
recusando o neo-colonialismo, se dá ao esforço de sua re-criação. E neste esforço de re-
criação da sociedade a reconquista pelo Povo de sua Palavra é um dado fundamental”
(FREIRE, 1977, p. 173). É evidente que a postura de Freire parece meio dicotômica, como se
este visse os colonizadores como nefastos e que nada deles pudesse ser aproveitado. Os
colonizados se apropriaram da língua dos colonizadores e promoveram algumas mudanças na
mesma, mudanças essas inerentes ao uso diário de qualquer língua. Entretanto, é importante
fazermos um adendo no caso da alfabetização de adultos. A reflexão sobre o uso do português
como língua da alfabetização é ainda mais complexa do que a reflexão do uso do português na
134
educação em geral, pois a alfabetização se processaria em uma língua estrangeira para a
maioria dos guineenses e não na língua de quem estava sendo alfabetizado. Isso inviabiliza,
como acabamos de mostrar, a alfabetização na metodologia freireana, na medida em que ao
mesmo tempo em que o educando estava aprendendo a ler e escrever estava aprendendo
conjuntamente uma nova língua e um novo vocabulário. Nesse sentido, a escolha do
português impossibilitou o aprendizado da língua portuguesa e alterou o projeto
transformando-o primeiramente em pós-alfabetização, no qual os educandos discutiriam a
vida cotidiana, a realidade do país, para, posteriormente, aprenderem a ler e escrever. Em
outras palavras, a leitura do mundo precederia a leitura dos signos lingüísticos.
A bibliografia aponta que o posicionamento de Freire acerca da escolha da língua era
acertado, uma vez que a orientação dos especialistas, e, inclusive do coordenador do ensino de
línguas do Ministério de Educação, Cultura e Desportos da Guiné-Bissau, de 1986, Francisco
Macêdo, era de que o ensino deveria ser primeiramente em crioulo para que posteriormente se
aprendesse o português, configurando esta como segunda língua no sistema educativo.
Macêdo apontou que no ano escolar 1986/87 42% dos alunos inscritos no sistema de ensino o
abandonaram, 34% ficaram reprovados e somente 24% foram aprovados. A partir desses
dados evidencia-se a continuidade e não a ruptura com o sistema colonial de ensino.
Ao estudar as causas desse fracasso, chegamos a conclusão de que tão baixo índice de aproveitamento é conseqüência não só da falta de instalações escolares, de livros, de materiais didáticos e do baixo nível dos professores, mas também, e sobretudo, da dificuldade da língua (MACÊDO, humanidades, p. 36).
Em 1977, foi realizado no Rio de Janeiro, o XV Congresso Internacional de
Lingüística e Filologia Românica, e neste evento a professora Maria Luíza Buscardini,
licenciada pela Universidade de Lisboa, mostrou a inevitabilidade do ensino em crioulo:
A necessidade, ou melhor, a inevitabilidade de empregar o crioulo na educação será uma imposição do meio sociocultural e terá, por outro lado, o
135
respaldo do pensamento quase unânime dos lingüistas e dos pedagogos contemporâneos: dos lingüistas, que não mais admitem a existência de línguas intrinsecamente superiores a outras; dos educadores, para os quais toda aprendizagem deve iniciar-se na língua materna, a fim de que o educando não se veja diante de duas dificuldades simultâneas: a da disciplina que deve aprender e da forma lingüística em que tem que estudá-la (CUNHA, 1981, p. 81).
O próprio Mário Cabral, no Encontro dos Ministros da Educação das cinco ex-
colônias portuguesas, realizado na Guiné-Bissau em fevereiro de 1978, falou da necessidade
da expressão dos guineenses ser em crioulo, entretanto, este indicou também que o crioulo
não era falado por todos. Mário Pinto de Andrade, no Conselho Nacional de Cultura da
Guiné-Bissau, também em 1978, organizou um Seminário de Lingüística Africana e na
abertura deste evento apontou que:
A realização deste seminário inscreve-se no quadro de uma das prioridades enunciadas pela política cultural do PAIGC, no sentido de reabilitação do patrimônio cultural da nação, isto é: a fixação e transcrição, o ensino e o desenvolvimento das línguas nacionais. Agimos, aliás, em conformidade com o espírito e a letra do Programa Maior do PAIGC que no plano da instrução e da cultura prescreve claramente:
Na Guiné, desenvolvimento das línguas nativas e do dialecto crioulo, com a criação da escrita para essas línguas. Em Cabo Verde, desenvolvimento e escrita do dialecto crioulo.
Mas não se trata apenas de atingir o objetivo técnico de possuir e dominar os dados do conhecimento científico das línguas faladas no espaço nacional, mas sobretudo de estudar e pensar nesses idiomas, e daí tirar todas as implicações operatórias no tocante à alfabetização, ao ensino, à comunicação social e a difusão da cultura. (...)
(...) Repercutindo-se nos setores da educação, da comunicação social, da criatividade literária e artística, uma política lingüística correcta contribui para levar à prática o princípio fundamental da democratização da cultura – criar condições concretas para as massas populares tenham pleno acesso, nos veículos de expressão íntima do seu pensamento, ao saber, à ciência, e às técnicas modernas, na perspectiva do desenvolvimento nacional (CUNHA, 1981, p. 83).
Apesar deles ainda não apontarem explicitamente o uso dessas línguas no ensino já
sinalizavam o entendimento de que isto seria necessário e apesar da resistência da utilização
136
do crioulo nos anos logo após a independência, período desta pesquisa, posteriormente, o
governo guineense percebeu a inevitabilidade no seu uso.
Consideramos importante retomar o debate acerca da escolha da língua em que se
processaria a alfabetização de adultos, apesar da impossibilidade do aprendizado da leitura e
da escrita na metodologia freireana já ter sido largamente defendida. Paulo Freire publicou no
livro Pedagogia da Pergunta uma carta que enviou ao Comissário Mário Cabral, em julho de
1977, abordando exatamente esta temática. Freire, apesar de considerar inviável o uso do
português na maior parte dos casos traça uma estratégia para seu uso em alguns pontos
específicos e diz que nos demais se trabalharia no campo da ação cultural. Freire aponta na
carta o seguinte:
Em primeiro lugar, nos parece urgente concretizar o que você e Mário de Andrade vêm pensando, e a que me referi acima, isto é, a disciplina escrita do crioulo, com o concurso de lingüistas que sejam igualmente militantes. Enquanto este trabalho de disciplina do crioulo se estivesse fazendo, limitaríamos, no campo da ação cultural, a alfabetização em português:
I) à área de Bissau, onde a população, dominando perfeitamente o crioulo, tem familiaridade com o português. Aí sobretudo se faria nas frentes de trabalho, em que ler e escrever esta língua podem significar algo importante para os que aprendem e para o esforço de reconstrução nacional;
II) a certas áreas rurais, quando e se os programas de desenvolvimento econômico social exigirem dos trabalhadores habilidades técnicas que, por sua vez, demandem a leitura e a escrita do português. Neste caso, se o crioulo não é falado fluentemente como se dá em Bissau, impõe-se, ainda, o reestudo da metodologia a ser usada para o ensino da língua portuguesa
Em qualquer dos casos, porém, se faria indispensável discutir com os alfabetizandos as razões que nos levam a realizar a alfabetização em português.
Percebe-se, assim, quão limitada seria a ação no setor da alfabetização de adultos. E que fazer com relação às populações que não se encontram nas
137
hipóteses referidas? Engajá-las, a pouco e pouco, em função das limitações de pessoal e de material, num esforço sério de animação ou ação cultural. Em outras palavras, na ‘leitura’, na ‘releitura’ e na ‘escrita’ da realidade, sem a leitura e a escrita das palavras (FAUNDEZ, FREIRE, 1985, p. 131-2).
No livro Cartas à Guiné-Bissau, Freire descreve o Caderno de Educação Popular
preparado por Claudius Ceccon junto com a Comissão Coordenadora, em Bissau, cujo
objetivo era oferecer suporte aos alfabetizandos facilitando a transição para a pós-
alfabetização, além de auxiliar os animadores de debates em sua tarefa educativa. Terminada
a montagem do caderno este foi submetido ao Comissário de Educação Mário Cabral e a José
Araújo, Secretário para a organização do partido, a quem caberia a decisão final para a
impressão do mesmo. (FREIRE, 1977, p. 81-2) Nesta carta de julho de 1977, percebemos que
até aquela data o material didático que estava sendo preparado, conforme descreveremos
abaixo, ainda não tinha sido usado. O educador considerava que este material era um bom
suporte para o ensino, mas que ele em si não resolvia o problema da língua.
O que queremos dizer é que, mesmo dispondo de um bom material de ajuda, como teremos com o Caderno de Educação Popular, os resultados seriam apenas pouco melhores. É que o Caderno, enquanto material de suporte, em si, não é capaz de superar a razão fundamental, substantiva, da dificuldade: a ausência da língua portuguesa na prática social do povo. E esta língua estrangeira – o português – não faz parte da prática social das grandes massas populares da Guiné-Bissau na medida em que não se insere em nenhum dos níveis daquela prática (FAUNDEZ, FREIRE, 1985, p. 130).
O caderno era dividido em dois momentos. O primeiro continha 20 palavras geradoras
com codificações correspondentes. Da 1ª a 9ª apareciam a palavra, a codificação, a palavra
dividida em sílabas e duas folhas pautadas em branco para que o aluno pudesse formar novas
palavras e sentenças. Da 9ª para a 10ª palavra aparecia o que Freire denominou de 1º livro,
pois os alunos seriam chamados a partir desse momento para a leitura de sua realidade a partir
de textos e não mais de imagens. Da 10ª a 14ª palavras ocorre o mesmo procedimento
138
anterior, ou seja, igual a 1ª a 9ª. Nessa fase o educando deveria ser estimulado a escrever
pequenos textos e não só palavras e sentenças soltas. Entre a 14ª e 15ª palavra geradora
aparecia o 2º texto, um pouco maior e mais complicado, ou, menos simples que o primeiro.
Dois textos de Amílcar Cabral ainda apareciam na primeira parte do caderno. O primeiro
entre a 18ª e 19ª palavra geradora, e, o 2º, sobre a unidade de Guiné-Bissau e Cabo Verde
após a 20ª palavra. Ainda na primeira parte do caderno, por sugestão de Miguel Darcy de
Oliveira, existiam 4 páginas entre as palavras geradoras, apenas com os lugares indicados para
a codificação e as famílias silábicas, cabendo ao animador e aos alfabetizandos preencherem
esse espaço com palavras geradoras adequadas à realidade do grupo, dependendo da
necessidade do círculo de cultura (FREIRE, 1977, p. 85). Fica evidente que a intenção do
partido era a homogeneização dos círculos de cultura e não o respeito ao universo vocabular
dos educandos. A tentativa de permanência desse respeito veio da idéia de Miguel Darcy de
Oliveira.
O segundo momento tinha o intuito de situar o educando claramente no momento de
transição para a pós-alfabetização.
Em síntese a segunda parte do caderno, que é introduzido por um texto curto, dois ou três períodos, objetivo e motivador, consta de oito codificações, sem, obviamente, nenhuma palavra geradora, pois que já não é o caso, às quais se seguem páginas pautadas em branco e quatro textos de Amílcar Cabral, extraído do seu trabalho sobre formas de resistência – a econômica, a política, a armada e a cultural. As oito codificações, fotografias, algumas das quais de real beleza, giram em torno de oito temas geradores nacionais – o da produção, o da defesa, o da educação, sistemática e assistemática, o da saúde, o da cultura, no sentido mais amplo da palavra, o do papel dos trabalhadores, camponeses e urbanos, das mulheres e da juventude no esforço da reconstrução nacional (FREIRE, 1977, p. 85-6).
Freire, na descrição do caderno, apontou a importância da colaboração do jornal Nô
pintcha e da Rádio Nacional no aprendizado desses educandos, afirmando que o material
publicado no jornal poderia ser utilizado nos círculos de cultura como temas de debate. Freire
propunha também que existisse no jornal uma página destinada aos círculos de cultura,
139
noticiando o seu desenvolvimento, publicando, ainda nesse espaço, textos dos alfabetizandos,
assim como as soluções encontradas para eventuais problemas de forma que um círculo
auxiliasse na experiência do outro (FREIRE, 1977, p. 83).
Outro material que não conseguimos ter certeza de sua utilização nos círculos de
cultura e que é bastante interessante, tendo em vista que são desenhos que problematizam a
colonização e propiciam a reflexão sobre a educação colonial e a africana, são os diapositivos
que foram apresentados ao Ministério de Educação e na reunião de base do partido, realizada
no bairro de Pilon de Cima. Ceccon afirma que este poderia ser um bairro na periferia de
qualquer cidade brasileira. Mesmo que os diapositivos não tenham sido utilizados nos
círculos, estes foram vistos e discutidos nesse encontro por um bom número de pessoas –
entre quinhentas e mil. Os diapositivos propiciam não só a reflexão sobre a história da Guiné-
Bissau, mas o debate sobre a identidade.
Diapositivo 1 – Culturas tradicionais africanas
140
Nessa imagem foi trabalhada a idéia da educação nas culturas tradicionais. Esses
homens eram os grandes sábios da aldeia, assim como eram os guardadores da cultura, dos
costumes e das tradições. Em uma das visitas da equipe do IDAC à Guiné-Bissau, em
conversa com desses homens foi dito a eles que “antigamente não havia escola. Mas nem por
isso deixava de haver educação. Aprendia-se fazendo, aprendiam-se coisas úteis, cada adulto
era um professor” (CECCON, 1980, p. 110). Esse diapositivo serviria para discutir o papel
das culturas tradicionais e das práticas dessas culturas que deveriam ser, no entendimento do
PAIGC, superadas em nome do progresso e do desenvolvimento da nação guineense. Assim
sendo, esta imagem suscitaria o debate acerca das práticas ancestrais e das crenças das
culturas guineenses, como vimos por exemplo, no capítulo 1 o uso do mesinho. Além disso,
se debateria a noção da cultura oral em contraposição a cultura escrita e como o aprendizado
da leitura e da escrita para auxiliaria no desenvolvimento do país. Amílcar Cabral defendia
veementemente a supressão de certas práticas culturais para o desenvolvimento do país.
A realidade cultural da nossa terra é essa. Mas devemos pensar bem na nossa cultura: ela é ditada pela nossa condição económica, pela nossa situação de subdesenvolvimento económico. Temos que gostar muito da nossa cultura africana, nós queremo-la muito, as nossas danças, as nossas cantigas, a nossa maneira de fazer estátuas, canoas, os nossos panos, tudo isso é magnífico, mas se esperarmos só pelos nossos panos para vestirmos nossa gente toda, estamos mal. Temos que ser realistas. A nossa terra é muito linda, mas se não lutamos para mudar a nossa terra, estamos mal. [...] Temos que ter coragem para dizer isso claramente. Ninguém pense que a cultura de África, o que é verdadeiramente africano e que, portanto, temos que conservar para a toda vida, para sermos africanos, é a sua fraqueza diante da natureza. Qualquer povo do Mundo, em qualquer estado que esteja, já passou por essas fraquezas, ou há-de passar. Há muita gente que ainda nem chegou aí: passam a sua vida a subir às árvores, comer e dormir, mais nada ainda. E esses, então, quantas crenças tem ainda” Nós não podemos convencer-nos de que ser africano é pensar que o relâmpago é a fúria de Deus (Deus qui panha raiba). Não podemos acreditar que ser africano é pensar que o homem não pode dominar as cheias do rio. Quem dirige uma luta como a nossa, quem tem a responsabilidade duma luta como a nossa, tem que entender, pouco a pouco, que a realidade concreta é essa (CABRAL, 1978, p. 141).
141
Diapositivo 2 – Dominação Colonial
A apresentação da chegada dos portugueses foi feita a partir da montagem de um
navegador do século XV com uma ave de rapina. Esta imagem que tinha uma visão
claramente política sobre a colonização na demonstração dos diapositivos feita no bairro de
Pilon de Cima gerou risos, gritos e palmas como se estivessem comemorando um gol. A
análise dessa imagem mostrou a equipe do IDAC que esta metodologia funcionava bem, ou
seja, a comunicação estava estabelecida e, por conseguinte, poderiam explorar a discussão
sobre a herança colonial e a criação da identidade a partir o uso dos desenhos de humor
(CECCON, 1980, p. 110).
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Diapositivo 3 – Dominação Colonial
Ceccon mostra que a cada imagem relativa ao período colonial e a relação dos
africanos com os portugueses era sentida com sofreguidão, como é o caso, da história em
quadrinho que ilustra bem isto, na medida em que houve uma incrível reação de quem estava
assistindo, posto que remeteu o período em que as famílias mais numerosas tinham que
escolher um filho para estudar. Este era chamado de ‘o branco’ já que renunciaria aos valores
de sua cultura. Outras imagens mostravam os valores da escola criada nas zonas libertadas, e
143
apontava o sistema escolar como um cavalo que não servia mais já que a escola deveria surgir
da participação de todos a partir da discussão dos dados que lhes estavam sendo oferecidos
naquele momento.
Diapositivo 4 – Quadrinho aculturação
Ali estava um instrumento de trabalho do qual os guineenses podiam se apropriar para ajudar-se na tarefa de reconstrução nacional. Era necessário, entretanto, criar os meios para que esses instrumentos de trabalho passassem efetivamente às mãos dos nacionais (CECCON, 1980, p. 112).
Não sabemos de fato se este material chegou a ser usado. Podemos perceber que,
assim como o caderno de educação popular, a discussão era dirigida e definida, ao contrário,
do que indica a proposta de alfabetização freireana. Assim como no caderno, Ceccon aponta
uma alternativa para adaptação do uso deste material a uma realidade especifica, que seria o
144
animador de debates preparar diapositivos de acordo com a necessidade do círculo. Vemos
um esforço de Freire e da equipe do IDAC em adaptar suas estratégias de trabalho e forma de
pensar à Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos de Guiné-Bissau. Ao mesmo tempo
vemos um desvio na conduta pregada discursivamente por Freire e sua equipe. Apesar de
Freire defender respeito a cultura dos educandos e não querer promover uma invasão cultural,
os direcionamentos da Campanha não levaram em consideração a diversidade e sim a
homogeneização. Provavelmente este direcionamento esteja ligado ao que podemos chamar
de inversão da teoria freireana. Ao invés de partir da cultura do povo para discutir as relações
sociais existentes na localidade, as palavras geradoras foram escolhidas com o intuito de gerar
a identificação de um povo a partir de símbolos criados pelo período da luta contra o
colonialismo. Como a alfabetização não estava funcionando optaram pelo uso dos
diapositivos em que foram usados os mesmo símbolos. Fica evidente então que mais
importante que o aprendizado da leitura e da escrita era a visão política a partir da introjeção
da população de determinados ideais.
Apesar disso, determinar que a Campanha não funcionou seria reduzir demais o
trabalho lá desenvolvido. Não responsabilizamos nem Freire nem o governo pela não
obtenção dos resultados esperados. Pelo contrário. Uma série de problemas afetou o
desenvolvimento do projeto, fazendo com que este não chegasse ao resultado pretendido por
todos – PAIGC, Freire e sua equipe. Afirmar com veemência que a experiência fracassou é
como dissemos antes, reduzir demais o trabalho lá desenvolvido, já que mesmo que o índice
de analfabetismo não tenha chegado ao esperado, no seio das FARP o analfabetismo foi
praticamente erradicado e a experiência vivenciada em Sedengal mostraram a viabilidade do
projeto.
145
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos discutir nesta dissertação a adequação do projeto nacional de
alfabetização de adultos, realizado em Guiné-Bissau com a consultoria de Paulo Freire, com o
projeto de desenvolvimento elaborado pelo PAIGC para a construção do Estado Nacional
guineense, tendo em vista que tanto Paulo Freire quanto o partido guineense acreditavam que
a harmonia entre ambos era fundamental para a construção do sentimento de pertencimento a
nação que começava a ser construída. Ao contrário do que defendemos aqui, de que os
guineenses estavam construindo a nação, tanto Freire quanto o PAIGC partilhavam a idéia de
que lutavam pela “reconstrução nacional”. O uso do termo “reconstrução” era uma estratégia
discursiva, utilizada junto com a criação de um mito fundador e de antecedentes históricos,
objetivando criar um sentimento de identificação entre os diversos grupos étnicos que
compunham aquele país a partir de um passado comum. Além disso, o PAIGC partia do
princípio de que para se formar uma consciência nacional, deixando-se de lado as
consciências étnicas, era preciso disseminar os ideais socialistas pelas escolas, trabalhos e
organizações de massas.
Como vimos, a tentativa de criar uma identidade nacional e a criação do sentimento de
unidade na diversidade não obteve o resultado esperado. A população não foi mobilizada a
contento, ou seja, o PAIGC não conseguiu mobilizar a população para participar da maneira
como eles denominavam “da luta pela reconstrução nacional”, uma vez que diferentemente do
que Amílcar Cabral pretendia, o PAIGC tentou subordinar as identidades étnicas no lugar de
respeitar as diferenças, no comando do Estado guineense.
Os primeiros anos após a independência foram de extremo entusiasmo, buscando-se a
implementação do socialismo assim como houve a tentativa de relacionar o projeto de
desenvolvimento nacional à agricultura, tendo em vista que era a principal fonte de renda do
146
país. A falta de recursos foi um grande empecilho para a consecução do plano de
desenvolvimento, posto que Guiné-Bissau era um país pobre e estava em situação ainda pior
devido aos quinze anos de luta armada, o que levou a procura de ajudas externas que em
pouco tempo mostraram suas ambigüidades. Os empréstimos e financiamentos estavam
atrelados a gastos com os países que os cediam, impedindo assim o governo de colocar em
prática o plano da maneira pela qual tinha sido elaborado. Ao invés do governo investir na
agricultura como fora planejado, o investimento foi feito na industrialização do país e em
indústrias que não supriam as necessidades do território nacional. Algumas fábricas estavam
mal localizadas e tiveram problemas de abastecimento de matérias-prima assim como houve
problemas na distribuição dos produtos.
Um outro ponto de entrave na concretização do plano elaborado pelo PAIGC no
período da luta ocorreu pela falta de separação entre as noções de Estado e partido. Ao
assumir o governo, o PAIGC manteve sua estrutura partidária e o comando muitas vezes era
difuso, na medida em que as decisões não partiam necessariamente do governo, mas
precisavam passar pela burocracia do partido.
Podemos perceber que a prática dos dirigentes guineenses realmente não correspondeu
a sua intenção determinada na fase anterior. Uma parte considerável dos investimentos
estrangeiros foi utilizada na modernização de equipamentos, “que não foi acompanhada, ao
mesmo ritmo, pela evolução da capacidade de sua utilização produtiva, da sua gestão e da sua
manutenção” (CARDOSO, 1993, p. 8). A utilização desta estratégia gerou progressiva
diminuição da produção de alimentos, êxodo rural, dependência externa incontrolada, ameaça
permanente de colapso econômico. A determinação das necessidades pela burocracia do
Estado engendrou um estado de penúria generalizado. Os comerciantes privados perderam
sua margem de lucro, por causa das empresas estatais, e o processo de circulação informal
147
lançou as bases de uma acumulação privada pela burocracia do estado, assim, as empresas do
Estado entravam em falência, enquanto as fortunas privadas aumentavam.
A construção do Estado Nacional e a mistificação do partido único foram os elementos
propulsores do processo de acumulação privada:
o discurso populista e revolucionário do partido implicava um recurso constante à ideologia da luta de libertação nacional e ao pensamento de Cabral, que era apresentado de forma doutrinária por meio de citações. O discurso anticolonial, a mistificação do partido e do líder carismático visavam garantir o apoio popular necessário à construção do Estado Nacional, e este, por sua vez, era a base da acumulação privada da burocracia do Estado (FERNANDES, nº 17, jan 94, p.34).
Esta situação levou à criação de um Plano de Desenvolvimento em 1983-84, no qual
foi consagrado o programa de estabilização econômica, cujos objetivos eram: criar bases
sólidas para a situação econômica e financeira; liberalizar o comércio, racionalizar o uso da
ajuda externa; e controlar a economia. Esta orientação foi retomada, posteriormente, em 1986,
com a adoção do Programa de Ajustamento Estrutural.
O problema da infra-estrutura e de verbas afetou não só o plano de desenvolvimento,
mas também todas as áreas do governo. Na educação, o Comissariado diferente do que tinha
decidido anteriormente não fechou o sistema de ensino anterior e manteve a estrutura escolar
colonial, alterando o conteúdo de algumas disciplinas. A prática efetuada no período da luta
aos poucos foi sendo enfraquecida e a experiência da administração coletiva, prática do
período em que Freire foi consultor, foi progressivamente sendo abandonada. A alfabetização
de adultos como não tinha uma estrutura pré-moldada, posto que no período colonial não
existiu esta categoria de ensino, teve o projeto criado concomitantemente à elaboração da
campanha, que buscou a ligação da alfabetização com o sistema global de ensino.
Um aspecto que auxiliou na inviabilização da Campanha de Alfabetização de Adultos
foi a opção do partido de seguir a concepção de Amílcar Cabral, por concordar, obviamente
com este aspecto, tendo em vista que eles faziam parte do mesmo grupo cultural, que
148
considerava a língua portuguesa como a única herança proveitosa da colonização. Vale
lembrar que este foi o único ponto de desacordo entre os pensamentos de Freire e Amílcar
Cabral.
A alfabetização freireana parte da vida cotidiana do educando, por isso, dificilmente
funcionaria em uma língua estrangeira, no caso, o português. Como refletir sobre a prática se
os educandos em questão, os guineenses, nem conhecem a palavra? Como uma teoria do
conhecimento eminentemente política, sua finalidade seria distorcida se implementada de tal
modo.
Amílcar Cabral via língua como um instrumento, não levando em conta que é esta que
media e conforma a cultura. Assim sendo, Freire e Cabral tinham concepções bem diferentes
acerca deste aspecto. Freire defendia o uso do crioulo nas escolas por entender que a língua é
um importante traço da cultura. Até recentemente os guineenses mantiveram o pensamento de
Cabral neste ponto. Insistir no uso do português é insistir no insucesso escolar, já que a
imagem desta língua não só está ligada a dominação colonial como também não faz parte da
vida cotidiana da população. Não há uma incapacidade dos guineenses no aprendizado do
português, pelo contrário, muitas culturas existentes na Guiné-Bissau são bilíngües. O que
existe é uma resistência ao aprendizado do português, resistência essa fruto da falta do
entendimento da necessidade do aprendizado da mesma.
A mudança da tentativa do aprendizado da leitura e da escrita dos signos lingüísticos
para o uso dos diapositivos provavelmente foi a saída encontrada por Freire e sua equipe para
auxiliar no engajamento da população na construção da nação, mantendo a concepção de sua
teoria do conhecimento que é, como já foi dito, explicita e assumidamente política. O uso dos
diapositivos representava um retorno à oralidade, tradição dos grupos societários africanos,
cujo intuito era aproximar a alfabetização dessas culturas. Os diapositivos foram fruto da
decisão da antecipação da pós-alfabetização. Em outras palavras, a pós-alfabetização
149
precederia o aprendizado dos signos lingüísticos e se basearia primordialmente no debate de
questões políticas, o que reafirma a idéia de que a alteração na campanha foi feita com o
objetivo de recrutar pessoas para a construção da nação. A pós-alfabetização assim como a
alfabetização pretendia mostrar aos educandos que Guiné-Bissau vivia um novo momento e
que era necessária a adoção de novas práticas e costumes que formariam, como eles
denominavam, o “novo homem” e a “nova mulher”, partícipes de uma nova cultural nacional.
A educação como ato político, para Paulo Freire, era a engrenagem necessária para a
aquisição da liberdade e o educador entendia que esta não seria vivenciada na superação da
dicotomia opressor-oprimido e sim na prática cotidiana. Para Paulo Freire não se é livre e sim
se está livre, sendo a manutenção da liberdade efetuada na relação cotidiana entre os agentes
sociais. Em outras palavras, a liberdade é construída diariamente, não sendo possível adquirir
liberdade e estar permanentemente nesta condição.
Clarifica-se, assim, por que para este educador liberdade e transformação social são
conceitos interligados, tendo em vista que para se estar livre precisa-se transformar
cotidianamente. E é nesse sentido que a pronúncia da palavra se destaca em seu pensamento.
Ter o direito de pronunciar, para Freire, não era um ato puramente discursivo e sim a prática
de análise do mundo pelo sujeito, e, é justamente esta prática que possibilita a mudança
social.
Além da questão da língua, problemas estruturais e falta de verba também foram
fatores preponderantes para a interrupção da campanha assim como a centralização na capital
atrapalhou a implementação do projeto. A escolha das palavras geradoras para todo o
território nacional ia de encontro a perspectiva educativa freireana e os animadores de debate,
apesar de terem autonomia para adaptar as palavras para a realidade com a qual estivessem
trabalhando, não tiveram o preparo adequado para atuarem nos círculos de cultura. A escolha
do período das chuvas para a realização dos círculos na zona rural, por exemplo,
150
impossibilitou a participação de muitos adultos que estavam lavrando a terra. Tanto no
PAIGC quanto em Paulo Freire o discurso foi muito mais eficaz do que a implantação na
prática de suas teorias. Freire defendia a não invasão cultural, mas orientou e aceitou que as
palavras geradoras fossem nacionais e tivessem ligação com o período da luta. O excesso de
diretividade de ambas as partes inviabilizou a concretização da almejada educação para a
liberdade.
Apesar de todos os pontos acima citados, entendemos que adjetivar de fracassada a
Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos em Guiné-Bissau é certamente uma visão
reducionista. O número de educandos que aprenderam a ler e escrever não chegou ao índice
previsto pelo Comissariado de Educação, mas algumas experiências foram bem-sucedidas,
como por exemplo, os alunos do Liceu de Bissau que trabalharam no campo ou a experiência
de Sedengal que serviu como um dos projetos-piloto para a alfabetização de adultos. Paulo
Freire esteve presente não só na educação de adultos, em que participou ativamente, mas
influenciou o sistema educativo como um todo, ainda que seu projeto educacional não tenha
prevalecido posteriormente.
Assim como Amílcar Cabral dizia que a luta pela libertação nacional era um fato
cultural e um fator de cultura, na medida em que ao mesmo tempo que é um produto da
cultura induz a transformação dessa, podemos dizer que Freire entendia o conhecimento desta
mesma maneira, posto que o conhecimento é simultaneamente um produto social e um fator
na transformação social. Para Paulo Freire, a
revolução não pressupõe uma inversão nos pólos oprimido-opressor, antes, pretende re-inventar, em comunhão, uma sociedade onde não haja a exploração e a verticalidade do mando, onde não haja a exclusão ou a interdição da leitura do mundo aos segmentos desprivilegiados da sociedade (FREIRE, 1996, p.40).
Logo, o projeto educacional de Paulo Freire consiste em questionar a naturalização do
conhecimento e buscar, através do debate nos Círculos de Cultura, concluir que embora
151
objetivado, o mundo social foi feito pelos homens e, portanto, pode ser refeito, ou seja,
transformado.
Nos detemos bastante nos princípios defendidos na teoria do conhecimento freireana
por acreditar que foi a defesa de princípios semelhantes e da condição similar de 3º mundo
que levou Guiné-Bissau a chamar Paulo Freire para a consultoria e esta foi a motivação
para que esse aceitasse o convite.
Mais importante que a metodologia freireana em si, ou seja, a maneira pela qual se
operaria a aquisição do conhecimento, é o símbolo que Paulo Freire representa. Freire
representa a adequação de um pensamento com uma época. O educador brasileiro, junto
com o PAIGC, reinventou sua teoria do conhecimento na tentativa da formação da
identidade nacional. Ao invés de partir da cultura do povo para alfabetizar, eles tentaram
criar uma cultura do povo e disseminar essa a partir da educação. Mais do que a aquisição
do aprendizado dos signos lingüísticos o que era pretendido por Paulo Freire e pelo PAIGC
era o engajamento político de um povo para a luta de ideais específicos.
152
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