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A veneração às almas do Purgatório: um contraponto entre Portugal e a Colônia (Dra. Adalgisa Arantes Campos, Depto. de História/UFMG) O estudo contempla a crença e produção iconográfica alusiva às almas do Purgatório em Portugal e no Brasil-Colônia com ênfase no exemplo mineiro. Aponta o distanciamento operado em relação à mentalidade e iconografia portuguesas verificado durante a segunda metade do setecentos. 1. A Devoção às almas do Purgatório Portugal produziu um expressivo acervo artístico alusivo ao culto às almas do Purgatório, formado, sobretudo, a partir dos quinhentos 1 . A proliferação dessas obras da piedade popular decorre, em grande parte, do acatamento das deliberações tridentinas (1545-1563) que, neste aspecto específico, reaproveitou e ordenou uma manifestação devocional bem enraizada socialmente. No período colonial a orientação tridentina foi oficialmente recebida através das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). Até fins do século XVII existiam apenas quatro bispados e no término da era colonial somente sete 2 . A imensidão do território, a escassez de dioceses, aliada às longas vacâncias ocorridas entre um bispado e outro, o número

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A veneração às almas do Purgatório: um contraponto entre Portugal e a Colônia

(Dra. Adalgisa Arantes Campos, Depto. de História/UFMG)

O estudo contempla a crença e produção iconográfica alusiva às almas do Purgatório em Portugal e no Brasil-Colônia com ênfase no exemplo mineiro. Aponta o distanciamento operado em relação à mentalidade e iconografia portuguesas verificado durante a segunda metade do setecentos.

1. A Devoção às almas do Purgatório

Portugal produziu um expressivo acervo artístico alusivo ao culto às almas do

Purgatório, formado, sobretudo, a partir dos quinhentos 1. A proliferação dessas obras da piedade

popular decorre, em grande parte, do acatamento das deliberações tridentinas (1545-1563) que,

neste aspecto específico, reaproveitou e ordenou uma manifestação devocional bem enraizada

socialmente.

No período colonial a orientação tridentina foi oficialmente recebida através das

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). Até fins do século XVII existiam

apenas quatro bispados e no término da era colonial somente sete 2. A imensidão do território, a

escassez de dioceses, aliada às longas vacâncias ocorridas entre um bispado e outro, o número

reduzido de paróquias, a diversidade das culturas locais, tudo contribuía para a efetivação tardia

do ideal tridentino no Brasil Colonial. Daí as diferenças de mentalidade religiosa entre metrópole

e colônia e também no interior desta.

Entre os lusitanos a devoção às almas do Purgatório contou com uma vitalidade ímpar.

Tal pujança foi exteriorizada através da confecção de altares das almas nos templos do clero

regular e secular, e principalmente através da edificação das “alminhas”, isto é, de pequenos

oratórios levantados isoladamente ao ar livre e nas encruzilhadas ou, ainda, incrustados nas

residências. Diante do significativo acervo metropolitano, observamos que o culto às almas não se

restringia ao recinto religioso, atingindo literalmente o espaço público. Não foi a instituição

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Igreja, através de suas deliberações conciliares, ou mesmo as irmandades leigas que mandaram

erigir as alminhas, mas o próprio devoto, imbuído de tradição religiosa, no intuito de suscitar

oração pelas almas sofredoras. E se assim o fazia é porque acreditava, em absoluto, que a reza dos

vivos e o apelo aos santos contribuíam para reduzir a expiação no Purgatório 3. Dentro dessa

lógica traduzida na crença na comunhão dos santos existe a reciprocidade: aquele que se apieda e

recorre às almas pode ser beneficiado com seus prodígios.

Trata-se de crença que não agrada muito às elites clericais, pouco afeitas aos milagres

das almas santas, mas inequivocadamente de grande eficácia popular. O Concilio de Trento zelou

para que as almas recebessem as orações dos vivos, preconizando a existência de altares de almas

dentro das igrejas paroquiais, os quais, no entanto, teriam no trono uma invocação oficialmente

santificada (São Miguel, Nossa Senhora do Carmo, São Francisco...) 4. A solidariedade dos vivos

não deveria perder de vista as hierarquias celestes, restringindo-se assim o grande poder conferido

às almas santas pela religiosidade popular. Por outro lado, a mentalidade popular enfatizava a

santidade das almas em expiação no Purgatório, destacando por isso os seus milagres.

Em Portugal observa-se um número dilatado de devoções intercessoras das almas: o

Cristo Crucificado, a Santíssima Trindade, São Miguel, N. Sra. do Carmo, São Francisco, Santo

Antônio, São Tolentino etc... No acervo iconográfico ressalta, sem sombra de dúvida, São Miguel

e Almas, invocação que denomina inúmeras capelas e freguesias.

Comparado ao exemplo lusitano, o culto às almas na Colônia se manifesta de forma mais

acanhada. Não se tem na colônia a transplantação dos oratórios (alminhas). No Brasil colônia

foram freqüentes as cruzes de almas (popularmente “cruz das armas”), cruzeiros em morros, em

adros e cemitérios, servindo de suportes à realização da cerimônia de encomendação de almas.

Assim sendo, ocasionalmente o cruzeiro acaba tendo a função de alminhas. Entretanto, tais cruzes

são na maioria toscas, carentes de representações artísticas, enquanto nos oratórios portugueses o

nicho abriga painel com almas no fogo do Purgatório. Deste modo, na Colônia a veneração às

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almas alcançou o espaço público tão somente em virtude das manifestações rituais e das cruzes de

almas.

Do mesmo modo, não se observa na Capitania das Minas a ampliação das devoções

protetoras das almas do Purgatório. A defesa destas permanece como uma exclusividade quase

absoluta de São Miguel e Almas. Não foram transplantadas invocações como N. Sra. das Almas,

São Francisco e Almas...

A veneração aos mortos, sobretudo desconhecidos, é considerada verdadeira obra de

misericórdia espiritual. Por que essa devoção não se propagou na Colônia com aquela vitalidade

de origem?

Devemos lembrar que houve um longo hiato entre a descoberta (1500) e a vontade

política de povoar o Brasil, verificada mormente após 1534, ocasião da instalação das Capitanias

Donatárias. Para a ocupação desta terra de índios vieram elementos da pequena nobreza lusitana,

desclassificados de toda sorte - degredados, criminosos, marginais - e os escravos africanos. Por

mais que tentasse reproduzir no novo mundo as instituições, costumes e crenças próprias de sua

cultura, o colonizador contava, então, com a grandeza do território, os poucos núcleos urbanos e a

ausência de tradição cristã autóctone. Do ponto de vista europeu um verdadeiro caos, uma

conspiração contra a preservação do imaginário católico e também dos valores da religiosidade

popular de matriz medieval.

Por sua vez, o território das Gerais foi desbravado apenas em fins do seiscentos. Devido

à ocupação de bandeirantes paulistas, baianos e reinóis, contou em 1711 com suas primeiras vilas.

Portanto, entre o descobrimento do Brasil e o povoamento da Capitania houve um hiato de 200

anos. E para a região veio todo tipo de gente aventureira que, movida pela vontade de enriquecer

e de retomar ao lugar de origem, muitas vezes criava arraiais de vida muito efêmera.

Em relação ao Brasil litorâneo, a Capitania conta com outra especificidade: nela é

proibida a presença de ordens regulares. Dessa forma, a evangelização ocorre às custas dos

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próprios leigos que, assentando-se socialmente erigem as irmandades, responsáveis pelo culto e

pela edificação dos templos mineiros 5. Considerando estes aspectos singulares, destacamos a

fragilidade do culto às almas do Purgatório nas Gerais. Naquela rude sociedade teve grande

pujança a sociabilidade confrarial, voltada para as obras de misericórdia entre os próprios irmãos.

Trata-se da caridade entre os pares. Apenas as irmandades de São Miguel e Almas reservavam

parte das esmolas recebidas - as bacias das almas - para a celebração de missas para as almas do

Purgatório. Todas as demais oravam apenas na intenção dos próprios irmãos, “vivos e defuntos”6.

Deste modo percebe-se uma mutação significativa na mentalidade religiosa tradicional, dirigida

doravante para a misericórdia horizontal, isto é, voltada aos próprios confrades. Isso explica, por

exemplo, o aparecimento tardio e a atuação pouco expressiva das irmandades das Misericórdias

na Capitania das Minas, se comparadas com as congêneres litorâneas 7.

2. As Irmandades de São Miguel e Almas na Capitania das Minas

No cômputo geral das irmandades do setecentos mineiro, São Miguel e Almas ocupa

posição de destaque, superada apenas pelas irmandades do Santíssimo Sacramento e pelas do

Rosário dos Pretos 8. Na mentalidade religiosa dos portugueses, o Arcanjo Miguel apresenta

tradição bem remota, atraindo a veneração dos governantes, do clero regular e secular, dos leigos,

do campo e da cidade. Por ocasião do Concilio Tridentino, o culto foi reavivado reiterando-se a

devoção aos coros angélicos e às almas do Purgatório 9. Na colônia divulgaram-se as deliberações

tridentinas:

“(...) encomendamos muito que tratem desta devoção das Confrarias; e de

servirem, e venerarem nellas aos Santos, principalmente á do Santíssimo, e

do nome de Jesus, á de N. Senhora, e das Almas do Purgatório.., porque

estas Confrarias he bem as haja em todas as Igrejas.” 10

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Nas Minas a devoção também é partilhada de forma irrestrita, tal como se pode perceber

nos testamentos do setecentos 11 Contudo, quando se chegava a constituir irmandades, estes eram

geralmente de brancos com ênfase no português, raramente se abrindo à presença de mulatos e

negros 12 . Na ausência das Misericórdias, as irmandades do Glorioso Arcanjo alugavam sua

“tumba” (esquife) a preços módicos ou até mesmo faziam o funeral daqueles que não tinham

recursos para isso 13. Supomos que essa particularidade tenha atraído a veneração dos negros e

pardos e daqueles que eram pobres em geral.

Tais irmandades erigiam seus altares preferencialmente na igreja matriz, geralmente

próximo ao arco cruzeiro (lado Epístola), raramente constituindo templo próprio. Elas surgiram

sobretudo no primeiro terço do setecentos mineiro, como resultado da transplantação imediata da

crença do colonizador. Levantamos mais de cinqüenta localidades detentoras de irmandades e/ou

da devoção a São Miguel e Almas, comprovada pela existência de obras artísticas, capelas ou

denominação de sítios.

3. A Portada do templo de São Miguel e Almas de Ouro Preto

A partir do terceiro quartel do XVIII as fachadas dos novos templos mineiros

abandonaram a austeridade e o despojamento, recebendo, para isso, uma portada decorativa em

pedra sabão. Até então, a preocupação artística concentrava-se na talha do interior, geralmente

subordinada aos modelos lusitanos 14 . A partir daí, tem-se o uso freqüente dessa pedra, macia e

abundante no território, que, introduzida pelo artesão nativo, gerou soluções originais,

distanciadas dos modelos metropolitanos. Ressalta-se que o uso da pedra com fim ornamental

coincide também com a introdução das ondulações nas fachadas, possibilitando formas

harmoniosas como, por exemplo, os frontispícios dos templos das ordens terceiras de São

Francisco em São João del Rei e Ouro Preto.

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Um montante expressivo de templos edificados durante a segunda metade do século

XVIII apresenta essa inovação no exterior, enquanto os interiores vão assimilando o estilo rococó

(1760-1830) 15. Trata-se de um movimento ao inverso, na medida em que a talha da nave e

capela-mor assume uma feição mais arquitetural: as fachadas são revestidas de medalhões,

nichos, guirlandas, fitas falantes e às vezes adquirem o formato de um verdadeiro retábulo

barroco. Elas tratam de episódios da vida do padroeiro, de visões celestiais e da emblemática

sagrada.

Data do último terço do setecentos a edificação do templo de São Miguel e Almas,

Santíssimos Corações e Senhor Bom Jesus de Matozinhos, situado no Alto das Cabeças, em Ouro

Preto (1761-1797) 16. Trata-se da única capela brasileira dotada de uma portada monumental, com

a iconografia das almas do Purgatório.

As representações alusivas às almas santas foram mais freqüentes na primeira metade do

setecentos mineiro, ainda que quase sempre em papel secundário, geralmente como um atributo

exclusivo das irmandades de São Miguel e Almas, colocado nos frontais de mesas de altares,

livros de compromissos, alfaias e objetos. Em meados do século XVIII já não era muito comum

representar as almas do purgatório, salvo raras exceções. Uma delas é a pintura do forro,

representativa de um rococó tardio, em cômodo lateral na igreja matriz de N. Sra. do Pilar, em

São João del Rei, que data certamente de princípios do oitocentos. Podemos considerar que a

cultura artística da segunda metade do setecentos é refratária à representação dessa iconografia

eminentemente escatológica.

A portada das almas de Ouro Preto é atribuída a Antônio Francisco Lisboa, o

Aleijadinho, e foi feita provavelmente após 1778, pois nesse ano lavrava-se a pedra para as

janelas, o óculo, a cruz...17 Considerando o presente estilo, nitidamente barroco, o Aleijadinho e

seus oficiais teriam elaborado esta obra antes da portada de São Francisco de Assis, de feição

rococó 18. A solução dada à fachada de São Miguel é mais arcaica, semelhante ao frontispício da

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matriz de São João Batista, em Morro Grande, também atribuído ao artista (1763-1785). Na

fachada franciscana não há arcaísmo algum, as formas muito leves se espraiam com harmonia

dentro de uma concepção madura, plenamente rococó, o que leva a supor uma datação mais tardia

para o projeto executado. O Purgatório da capela de São Miguel, tal como o de Dante Alighieri,

situa-se em uma montanha, símbolo da ascensão espiritual, obtida formalmente através da suave

ondulação da sobreporta. Nele, homens e mulheres, com feições tranqüilas e suaves, purificam-se

sem externalizar aflição ou sofrimento. Trata-se sem dúvida do cárcere divino, onde o fogo pune,

purifica e santifica 19. Ao contrário dos modelos tradicionais, o artista descobre o peito de algumas

almas, enquanto destaca ao centro, representada de corpo inteiro, um homem inteiramente nu, o

que é uma raridade na iconografia existente na Capitania. A talha monumental alusiva ao

Purgatório já é em si uma novidade e parece uma transposição, para o espaço externo, dos altares

de almas do barroco lusitano. A representação inova também quando introduz o corpo inteiro, a

nudez, as feições individualizadas, distantes dos tipos ingênuos e anônimos da primeira metade do

setecentos mineiro.

Nessa concepção, há intenção de diferenciar rigorosamente os tipos humanos

(masculino/feminino) ainda que não se distingam plenamente os tipos sociais, estes mais

freqüentes na iconografia portuguesa. Ainda assim, o Aleijadinho representou um frade (com o

tonsura), como também a visão frontal de uma mulher com cabelos longos e soltos, seios

expostos, denunciando a profissão e.ou o pecado da luxúria. No Purgatório de Vila Rica e nas

demais representações das Minas, não ocorrem sinais distintivos - coroa, tiara, mitra... Domina

uma iconografia avessa às hierarquias tradicionais, afinada assim com a realidade colonial,

particularmente a mineira, onde as condições especificas da colonização tanto contribuíram para a

diluição do modelo baseado em uma sociedade estamental. Por sua vez, as almas não são dotadas

da feição genericamente infantil que caracteriza, via de regra, as obras populares. Aleijadinho as

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representou adultas e, outrossim, com fisionomia particular, individualização aliás também

afirmada na pintura da matriz de São João del Rei.

Nas Minas o colonizador tenta reproduzir através da legislação, do reconhecimento de

níveis sociais diferenciados, obras culturais e ritos, o seu universo de valores. Mas tudo é muito

difícil onde o demasiado cuidado de adquirir bens temporais diverte os homens. Diante dessa

particularidade histórica, não prevaleceu uma visão infernalizada do Purgatório. Tomou-se

necessário apresentar uma alternativa mais branda, conformada aos homens daquele tempo.

Encimando o Purgatório, em um nicho em forma de concha, São Miguel não perde sua

imponência, ao contrário dos “Miguéis” da talha portuguesa, que descem até as chamas,

inclinando-se muito para, com as próprias mãos, retirar dali as “benditas”. No acervo lusitano

percebe-se uma convivência íntima de graus distintos de santidade, que, ao contrário, não se

verifica na portada de Vila Rica, onde se materializa a nítida distinção entre as formas de

existência no além, mais ou menos santificadas. Coroando o mencionado nicho, a presença dos

sagrados corações, circundados por coroa de espinhos e por uma chama irradiante. E finalmente,

o Divino Espírito Santo, ladeado de raios. A portada é severamente dividida em registros que

representam um momento específico da rota espiritual.

No último quartel do setecentos mineiro, a representação de São Miguel e das Almas do

Purgatório encontrava-se bem assimilada nos diversos níveis culturais, considerando que, durante

décadas a fio, as irmandades do Glorioso Arcanjo cuidaram daquele culto no âmbito da igreja

matriz. Trata-se então, de uma representação do Purgatório bem contextualizada socialmente.

Nesse sentido verificamos que não prevalece uma visão infernalizada das penas; ao contrário, na

topografia do além o Purgatório tende para o alto.

A colocação dessa cena no lado externo é tardia, seria mais sincronizada com a primeira

metade do setecentos, posto que neste momento (último quartel) a escatologia de orientação

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barroca já havia sido plenamente interiorizada, não carecendo de ser objetivada através de obras

culturais.

Tendo em vista que o templo de São Miguel e Almas e Santíssimos Corações

incorporou, já em fins do setecentos, a invocação do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, o lugar

vai se destacar como centro de peregrinação, à semelhança do santuário de Congonhas. Nesse

caso, a portada acaba convocando o devoto viandante para se solidarizar com as padecentes do

Purgatório, seja com uma oração mental ou através de missas. É uma maneira de sensibilizar e de

suscitar a fé que unifica o mundo dos vivos, dos mortos em expiação e das hierarquias sagradas.

Ainda neste aspecto é uma obra singular, para não dizer fora de lugar, pois, em fins do setecentos,

a sociabilidade confrarial não se encontra nos melhores tempos. O conteúdo espiritual da obra é

inegavelmente de matriz barroca!

Reconhecemos que a fatura da portada não é de concepção ingênua. Apresenta formas

harmoniosas, um pouco contidas, indicando o trânsito das formas do barroco para as do rococó.

Mantém a divisão em registros horizontais, segundo o aprimoramento espiritual: do menos para o

mais sagrado, do impuro para o sublime. Momento alto da criação local, sintetiza (e

simultaneamente renova) representações no momento dispersas e em franca extinção,

imortalizando-as através dessa talha monumental. Uma obra singular para suscitar a veneração às

almas e, ao mesmo tempo, materializar e documentar, através da pedra sabão e do trabalho do

mulato, uma grande devoção barroca - o culto a São Miguel e Almas.

Em que tipo de estampas o artista teria se baseado? Não conseguimos apurar as fontes

iconográficas empregadas. Sem dúvida, a composição assemelha-se muito aos retábulos do

barroco português. Com a diferença, reiteramos, de que essas obras são mais populares na

concepção e na confecção. Nelas não há uma separação rígida entre o espaço do Purgatório e do

Céu, visto que os santos intercessores saem das alturas para se aproximar piedosamente das almas

supliciadas pelo fogo. Ainda que as obras exibam o alto como sublime e o baixo como um estágio

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ainda impuro da rota purgativa não há uma visão rigidamente hierarquizada. Nos retábulos

lusitanos, a crença na comunhão dos santos é retratada de forma tão popular, que tende a misturar

amistosamente a igreja triunfante e a padecente.

Ainda que feita por mulato e auxiliares escravos a portada de São Miguel e Almas não

goza do mesmo nível de popularidade da talha dos altares portugueses. O tratamento formal, as

feições diferenciadas, a distribuição dos volumes obedecem a uma racionalização mais complexa.

A abordagem escatológica vigente não é tão popular já que separa incisivamente os graus de

santificação, com vistas a uma visão mais clerical da experiência religiosa. Por essa razão,

verificamos que, embora a temática retratada fosse tardia, isto é, em declínio nas artes de fins do

setecentos, pela leitura escatológica apresentada é bem atual, sintonizada com uma visão mais

racionalizada, empreendida pelo Concílio Tridentino.

Notas:

1 Cf. Flávio GONÇALVES, “Os painéis do Purgatório e as origens das Alminhas populares”, Separata do Boletim da Biblioteca Pública de Matosinhos, 6 (1959):l-37; do mesmo autor “O ‘privilégio sabatino’ na arte alentejana”, in: Separata de A Cidade de Évora, 45-46 (l963):l-l2.2 Cf. Eduardo HOORNAERT et alii, História da Igreja no Brasil, Petrópolis, Vozes, 1979, p. 174.3 Cf. J. LE GOFF, La Naissance du Purgatoire, Paris, Gallimard, 1981, pp. 23-24.4 Cf. Constituiçoens Primeiras do Arcebispado da Bahia Feitas, e ordenadas pelo Ilustríssimo, e reverendíssimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide..., anno, 1707, (...), XX-699, LX-869.5 Cf. Caio C. BOSCHI, Os leigos e o poder (irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais), São Paulo, Ática, 1986.6 Cf. Adalgisa A. CAMPOS, “Devoção e representação do Arcanjo Miguel e das Almas do Purgatório na Capitania das Minas”, Revista do Instituto de Artes e CuItura/UFOP,1 (1994): 61-69.7 Cf. A. J. R RUSSELL-WOOD, Fidalgos e Filantropos - a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755, Brasília, UNB, 1981.8 Cf. Caio C. BOSCHI, op. cit., pp. 187-8. Em estudo voltado para uma micro região portuguesa envolvendo 32 freguesias, constata-se a seguinte Classificação: 24 irmandades do SS Sacramento, 23 de N. Sa. do Rosário, 21 das Almas do Purgatório; a mesma ordenação foi encontrada para o exemplo francês: “Il y a presque partout des autels et des chapelles des Ames du Purgatoire, mais leur succès est inégal suivant les lieux.” (Cf. Isaias da R PEREIRA, “As visitações paroquiais como fonte histórica - uma visitação de 1760”, in: Revista da Faculdade de Letras, Lisboa, 15(1973): 11-71; Michel VOVELLE, Pieté Baroque et déchristianisation en Provence au XVIIIe siècle, Paris, Seuil, 1978, p. 160.9Cf. Emile MALE, L’art religieux du XVIIe siècle Italie-France-Espagne, Flandres, Paris, Armand Colin Éditeur, 1984, pp. 259-93.10 Constituiçoens Primeiras do Arcebispado da Bahia... op. cit., LX-869.

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11 Cf. Alexandre DAVIS, “Últimas vontades: a distribuição de sufrágios para as almas. Traço cultural das Minas ao tempo da Inconfidência”,in: Anuário do Museu da Inconfidência, Ouro Preto, IX (1993):197-201.

12 Exceções encontradas foram as irmandades de São Miguel e Almas da Sé de Mariana e de Santa Rita Durão, cf. ARQUIVO ECFESIASTICO DA ARQUIDIOCESE DE MARIANA, Missas, ofícios na Cathedral e nas igrejas de São Francisco, Santa Ana, São Gonçalo e Seminário - 1751-1791, fl . 105; Compromisso da irmandade de São Miguel e Almas de Santa Rita Durão, 1765, cap. 18.13 Cf. Adalgisa A. CAMPOS, op. cit. n0 6; Caio C. BOSCHI, “O assistencialismo na Capitania do Ouro”, Revista de História, 116 (1984):21-41.14 Cf. Myriam A. R de OLIVEIRA, “Escultura colonial brasileira: um estudo preliminar” in: Barroco, 13(1984/5):7-32.15 Cf. Germain BAZ1N, A arquitetura religiosa barroca no Brasil, Rio de Janeiro, Record, 1983, pp. 227-39.16 Em 1771 José Simões Borges, morador em Congonhas, legaliza a doação de um terreno para a edificação da Capela dos Santíssimos Corações e São Miguel e Almas cf. Arquivo Paroquial da igreja Matriz do Pilar, “Patrimonio da Capela do Smo. Corassam de Jesus, São Miguel e Almas do Alto das Cabeças (...) da matriz do Ouro Preto”, 1766.17 Cf. Germain BAZIN, op. cit., v. 2, p. 86.18 Há dificuldades para se aceitar 1766 como datação para o frontispício de São Francisco de Assis de Ouro Preto, visto que a obra é muito erudita e madura. Como seria possível a mesma equipe ter realizado antes as portadas de Morro Grande e do Alto das Cabeças?19 Cf. J. LE GOFF, op. cit. pp. 181-240.