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Câmpus Universitários: um Compêndio de Idéias para seu Planejamento Neste trabalho, repercorrem-se algumas etapas da história do câmpus universitário – que se consolidou como modelo privilegiado de implantação das instituições de educação superior tanto nos Estados Unidos como no Brasil – destacando-se as idéias: questões, teorias, instrumentos e procedimentos, que vêm orientando as práticas de seu planejamento. A narração desenrola-se desde os alvores do modelo às tendências mais recentes para a incorporação da sustentabilidade a essas mesmas práticas, traçando paralelismos com a história do planejamento urbano e indicando perspectivas para reconduzir o planejamento de campi às funções primordiais da universidade. alvores de um modelo O termo “câmpus” designa a extensão de terreno – isolado da trama urbana ou nela inserido – no qual se levantam os edifícios das instituições de educação superior; sua configuração atende, portanto, a suas funções específicas (ensino e pesquisa) ou, como precisa Calvo-Sotelo (2007), preocupado em sublinhar a relação entre qualidade da educação superior e qualidade dos espaços físicos nos quais se realiza, ao “papel transcendental da universidade”, qual seja, “a educação integral do ser humano”. Dober (1963), em seu trabalho pioneiro de sistematização das práticas históricas de planejamento e desenho de câmpus universitários americanos, observa que à renovação das concepções educacionais de uma época sempre correspondeu uma renovação das estruturas físicas nas quais se concretizavam. Além disto, as instituições de educação superior em seu ordenamento espacial tornaram-se parte da origem e da evolução da cidade, incorporando os ideais e as formas que remetem às teorias urbanísticas que se sucederam ou coexistiram no tempo. Como modelo espacial, o câmpus tem origem no final do século XVIII, com a fundação das primeiras universidades americanas que se inspiravam no college britânico, sobretudo na idéia de educação em comunidades acadêmicas. A própria representação da Universidade de Virgínia como “academical village”, epíteto cunhado por seu criador Thomas Jefferson, expressa a concepção de aprendizagem como processo vitalício e compartilhado, resultante do convívio entre mestres e aprendizes. Os colleges britânicos tradicionais e os primeiros câmpus americanos assemelhavam-se também nas relações sociais que se estabeleceram no seio das comunidades urbanas, marcadas pelo antagonismo e pela segregação. Se no primeiro caso essa era favorecida pelo arranjo monástico dos edifícios, dispostos em torno de um claustro com uma única porta de acesso, no caso dos câmpus americanos era garantida mediante sua localização na área rural, tendência reforçada no século XIX por um sentimento difuso, particularmente entre as vanguardas intelectuais da época, de desencanto com a cidade, percebida como lugar de corrupção moral, e pela confiança no

Câmpus Universitários

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Câmpus Universitários: um Compêndio de Idéias para seu Planejamento

Neste trabalho, repercorrem-se algumas etapas da história do câmpus universitário – que se

consolidou como modelo privilegiado de implantação das instituições de educação superior tanto

nos Estados Unidos como no Brasil – destacando-se as idéias: questões, teorias, instrumentos e

procedimentos, que vêm orientando as práticas de seu planejamento. A narração desenrola-se

desde os alvores do modelo às tendências mais recentes para a incorporação da sustentabilidade

a essas mesmas práticas, traçando paralelismos com a história do planejamento urbano e

indicando perspectivas para reconduzir o planejamento de campi às funções primordiais da

universidade.

alvores de um modelo

O termo “câmpus” designa a extensão de terreno – isolado da trama urbana ou nela inserido – no

qual se levantam os edifícios das instituições de educação superior; sua configuração atende,

portanto, a suas funções específicas (ensino e pesquisa) ou, como precisa Calvo-Sotelo (2007),

preocupado em sublinhar a relação entre qualidade da educação superior e qualidade dos

espaços físicos nos quais se realiza, ao “papel transcendental da universidade”, qual seja, “a

educação integral do ser humano”.

Dober (1963), em seu trabalho pioneiro de sistematização das práticas históricas de planejamento

e desenho de câmpus universitários americanos, observa que à renovação das concepções

educacionais de uma época sempre correspondeu uma renovação das estruturas físicas nas

quais se concretizavam. Além disto, as instituições de educação superior em seu ordenamento

espacial tornaram-se parte da origem e da evolução da cidade, incorporando os ideais e as

formas que remetem às teorias urbanísticas que se sucederam ou coexistiram no tempo.

Como modelo espacial, o câmpus tem origem no final do século XVIII, com a fundação das

primeiras universidades americanas que se inspiravam no college britânico, sobretudo na idéia de

educação em comunidades acadêmicas. A própria representação da Universidade de Virgínia

como “academical village”, epíteto cunhado por seu criador Thomas Jefferson, expressa a

concepção de aprendizagem como processo vitalício e compartilhado, resultante do convívio entre

mestres e aprendizes.

Os colleges britânicos tradicionais e os primeiros câmpus americanos assemelhavam-se também

nas relações sociais que se estabeleceram no seio das comunidades urbanas, marcadas pelo

antagonismo e pela segregação. Se no primeiro caso essa era favorecida pelo arranjo monástico

dos edifícios, dispostos em torno de um claustro com uma única porta de acesso, no caso dos

câmpus americanos era garantida mediante sua localização na área rural, tendência reforçada no

século XIX por um sentimento difuso, particularmente entre as vanguardas intelectuais da época,

de desencanto com a cidade, percebida como lugar de corrupção moral, e pela confiança no

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poder purificador da natureza.

O ideal romântico do college imerso na natureza e, portanto, ao seguro das influências nefastas

da civilização persiste até hoje e, juntamente com outros fatores econômicos e culturais1,

determinou a localização periférica de incontáveis instituições de educação superior (não apenas

nos Estados Unidos), bem como a exuberância de suas áreas verdes (mesmo nos colleges mais

centrais) que tanto impressionou os visitantes estrangeiros (desde Dickens até Le Corbusier).

Particularmente no século XIX, a crença nas qualidades espiritualmente edificantes da natureza

desbaratou os argumentos dos educadores que defendiam os colleges urbanos, clamando pelo

“saudável controle exercido pela observação pública” (TURNER, 1995).

da idealização de câmpus a seu planejamento

Segundo Dober (1963), com poucas exceções, os câmpus americanos “coloniais” merecem

atenção mais por sua tipologia construtiva do que por qualquer plano que, por ventura, estivesse

por trás de sua configuração física. Teríamos de esperar até o início do século XIX para nos

depararmo-nos com alguma evidência de composição arquitetônica orientada pela análise do

sítio, por uma intenção de desenho integradora e, sobretudo, por um programa claramente

explicitado que levasse em consideração o futuro da instituição. Tal atraso não é de se estranhar,

se considerarmos que, até pelo menos a segunda metade do século XIX, a educação superior

permaneceu uma prerrogativa da elite, contando um número exíguo de inscritos. Em muitos

casos, o corpo docente consistia de um clérigo com sua esposa e a planta dos câmpus limitava-se

a um ou dois edifícios.

O planejamento dos câmpus sofreu um grande avanço com a institucionalização da profissão do

arquiteto, produto do acréscimo de estudos científicos e técnicos aos clássicos tradicionais.

Escolas começaram a promover concursos arquitetônicos e, paulatinamente, aquela que

tradicionalmente havia sido uma função do corpo administrativo, foi assumida por especialistas, os

quais, além de ocupar-se da arquitetura de edifícios que deveriam abrigar funções sempre mais

diversificadas, passaram a decidir sobre aspectos do planejamento do sítio, lançando as bases

dos primeiros planos diretores.

Neste trajeto, destacam-se dois marcos históricos: o primeiro é a democratização da educação

superior, favorecida pelo Land Grant College Act2, regulamentado em 1862; a segunda é a

hibridização do tradicional modelo “colegiado” com o modelo alemão de universidade, que

começou a ser emulado nos Estados Unidos a partir da segunda metade do século XIX.

1 Na Espanha, por exemplo, o fenômeno que Calvo-Sotelo (2006) define como “neoperiferización” não só guardaria uma relação estreita com as dificuldades de se encontrar solo disponível nos centros metropolitanos, mas representaria também uma evidência de que as instituições de educação superior vêm sendo relegadas a uma posição secundária na escala de valores socioeconômicos.2 O Land Grant College Act previa a distribuição de terras do governo federal entre os estados. Os lotes eram então vendidos e com os fundos arrecadados criavam-se colleges para a educação em agronomia e mecânica. As escolas fundadas em conseqüência dessa lei compartilhavam algumas metas, como promover um tipo de educação voltado para a prática, e estender a todas as classes sociais o acesso à educação superior.

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O profissional que mais se destacou no planejamento físico dos land-grant colleges foi Frederick

Law Olmsted, cujas idéias sobre educação teriam ido ao encontro do novo modelo, que se

propunha como alternativa ao currículo tradicional obrigatório das artes liberais, sendo que uma

das primeiras oportunidades para colocar em prática suas idéias sobre a organização espacial do

land-grant college foi a criação da Universidade da Califórnia (Berkeley), em 1862.

Entre suas propostas inovadoras, em uma época na qual se costumava erguer as universidades

no ambiente rural, destaca-se a localização do câmpus em uma posição intermediária entre o

centro da cidade e o campo aberto, para promover a proximidade com a vida urbana sem, porém

incorrer em suas mazelas e distrações.

Coerentemente com suas convicções quanto ao ambiente ideal para a formação dos estudantes,

Olmsted dedicou boa parte do plano para Berkeley ao ordenamento espacial da vizinhança do

college, com a finalidade principal de induzir sua ocupação por residencias “refinadas e

elegantes”. Planejou, por exemplo, um traçado hierarquizado de vias públicas apto a ligar os

vários pontos de interesse social e paisagístico da região circunstante ao college, e que

propiciasse, mediante o desenho dos percursos e o arranjo da vegetação, o conforto, a

tranqüilidade e o prazer estético dos moradores. Pode-se enxergar na preocupação de Olmsted

com certo modo de inserção da universidade no espaço da cidade um preanuncio daquela que se

tornaria uma tendência moderna para reconhecer os câmpus como porção efetiva da cidade,

sujeita aos efeitos de seu desenvolvimento e planejamento3 (DOBER, 1963).

O plano de Olmsted, Vaux & Co. para Berkeley distingue-se também pela importância atribuída

aos elementos da paisagem (clima, relevo, vegetação, etc.) como forças condicionantes para o

seu desenho. O relatório cativa pelo conteúdo poético das descrições da geografia local, e revela

a prática de leitura e interpretação das feições e dos fenômenos naturais que fizeram de Olmsted

uma referência no campo da arquitetura da paisagem e do planejamento de câmpus.

Olmsted vislumbrou em um desenho mais “solto”, que imita um parque, a possibilidade para

acomodar mais eficientemente futuras construções. No entanto, quando de fato as instituições

sofreram uma expansão sem precedentes, devida, sobretudo, à hibridização do modelo colegiado

com o sistema alemão de educação superior, e à conseqüente diversificação dos cursos

oferecidos, impôs-se um estilo caracterizado, ao contrário, pela formalidade, ou seja, pela

simetria, a axialidade, os pontos focais e uma clareza geométrica global. Por volta de 1900, as

diretrizes formais (ou partis) do movimento City Beautiful, com suas raízes no estilo Beaux-Arts,

impuseram-se como uma solução para acomodar o novo tipo de universidade, caracterizada por

maiores dimensões e complexidade – uma multiplicidade de departamentos com suas estruturas

de apoio (museus, bibliotecas, laboratórios, ginásios, etc.) – que se espelhava em uma nova

3 Nas primeiras décadas do século XX, acalentava-se a proposta de uma maior integração entre câmpus e serviços urbanos, tanto para facilitar o acesso dos estudantes aos locais onde poderiam exercitar-se (fábricas, hospitais, etc.) como para promover o acesso da população a serviços até então de uso exclusivo da comunidade acadêmica (teatros, museus, etc.) (DOBER, 1963).

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metáfora: de “Academical Village” a “City of Learning” (cidade do conhecimento) (TURNER, 1995,

p. 167).

As teorias de planejamento de câmpus que se desenvolveram nessa época elegeram o plano

diretor como instrumento privilegiado para criar uma “unidade geral de efeito” (HAMLIN, 1903,

apud TURNER, 1995, p. 186), ou seja, para promover a harmonia visual de elementos

heterogêneos. Após a Segunda Guerra, tal propósito, bem como suas justificativas (baseadas,

não raro, nos gostos e caprichos dos arquitetos), revelou-se anacrônico e ineficaz diante do

crescimento da comunidade acadêmica. Muitas universidades adquiriram, efetivamente (e não

apenas metaforicamente), o estatuto de cidades não só por sua escala e complexidade, mas

também por vivenciar os mesmo problemas (aumento da densidade populacional, conflitos entre

diferentes demandas e usos do solo, congestionamento das vias de trânsito...) cujo

equacionamento passou a demandar novas abordagens de planejamento, não mais limitadas a

argumentos formais e estéticos.

Já a partir da década de 1940, os câmpus americanos contavam com um setor responsável pelo

planejamento, eventualmente subdividido em subsetores de especialistas, entre os quais os

“especialistas do espaço” (MUTHESIUS, 2000). Logo, esses novos profissionais organizaram-se

em associações e grupos de pesquisa/consultoria – como o Educational Facilities Laboratories

(EFL)4, a Society for College and University Planning (SCUP)5 e a Dober Lidsky Mathey (DLM)6 –

que tiveram o mérito de consolidar um campo de produção de teorias, modelos, práticas e

instrumentos voltados para equacionar as novas demandas no âmbito da educação superior.

limites e possibilidades do plano como instrumento para o planejamento de câmpus

Se, por um lado, o planejamento de câmpus universitários firmava-se como prática regida por uma

racionalidade própria7, os principais instrumentos utilizados para responder ao crescimento

acelerado e enfrentar novas demandas de diversa natureza, entre as quais a expansão física dos

câmpus (DOBER, 1963; RUDDEN, 2008) provêm da tradição do planejamento urbano. O plano

diretor é o exemplo mais claro.

Adotado até hoje para racionalizar as opções de alocação e utilização do espaço e de outros

recursos tendo em vista as aspirações e metas institucionais, o plano diretor foi objeto de reservas

e questionamentos, particularmente após a Segunda Guerra, quando os responsáveis pelo

4 Organização independente fundada em 1958 pela Ford Foundation, promove a pesquisa e a disseminação de informações úteis para aqueles que escolhem o lugar, planejam, desenham, constroem, modernizam, equipam e financiam as estruturas educacionais.5 Fundada em 1965, sua função principal consiste em prover subsídios para integrar as várias modalidades de planejamento, entre as quais o planejamento físico, que oferecem suporte aos “planos acadêmicos” das instituições de educação superior (http://www.scup.org/page/about/basicfacts).6 Escritório de consultoria que atua desde 1958 na área específica do planejamento de câmpus (http://www.dlmplanners.com/about.htm).7 De fato, a diferenças da maioria das cidades, de desenvolvimento mais “livre” e sujeito à especulação, a implantação e expansão de câmpus obedece a planos que definem uma ordem artificial (PINTO e BUFFA, 2009)

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planejamento de campûs começaram a abandonar a cultura dominante do plano diretor mais

formal e rígido – pouco realista e impossível de ser plenamente executado – em favor de

abordagens que privilegiavam a definição de princípios para o crescimento orgânico (TURNER,

1995).

Tal proposta movia o foco do produto (a configuração final) para o processo, com o argumento de

que, “para uma instituição em fluxo, feita de constituintes individuais em conflito, unidos apenas

pela 'obediência à planta de aquecimento central', não faria sentido um plano diretor unificador

nem qualquer conformidade estilística” (ibid., p. 264). O argumento, defendido na década de 1960

pelo então Presidente de Yale, seria reiterado por Mitchell em 2007, o qual, ao introduzir o

programa bilionário de renovação arquitetônica do Massachusetts Institute of Technology (MIT)

nos anos 1990, concluía que os câmpus desenvolvem continua e inevitavelmente representações

contestadas das comunidades que hospedam.

O questionamento do plano diretor expresso em esquemas rígidos reflete as controvérsias que

agitaram o campo do planejamento urbano desde a década de 1920 nos Estados Unidos, e que

culminaram na década de 1960, quando a esta concepção de plano, sucedeu o plano baseado

nas leis e nos conceitos de zoneamento e uso do solo (NEUMAN, 1998).

Nos anos 1960, os planos produzidos distanciaram-se dos planos físicos anteriores. Eram planos baseados em políticas [policy plan] repletos de metas, objetivos, diretrizes, critérios, padrões, e programas, gráficos, tabelas, projeções e matrizes. Geralmente desprovidos de imagens gráficas ou propostas de formas urbanas. [...] O Planejamento empregava paradigmas de sistemas e métodos quantitativos que tratavam a política, as instituições, e outros fatores como exógenos (idem, p. 211).

No campo mais restrito do planejamento de câmpus, foi Richard P. Dober o principal expoente

desta nova tendência (TURNER, 1995), que, em seu caso teria sido paradoxalmente depurada de

qualquer preocupação com aspectos educacionais: “seu interesse recai no funcionamento prático

da instituição. Para ele, são poucas as relações entre 'fenômenos sociais', programas

educacionais, ou currículo e planejamento” (MUTHESIUS, 2000, p. 28). Embora Muthesius se

referisse ao livro Campus Plannig, publicado em 1963, é possível constatar a mesma lacuna em

uma versão revisitada e aprofundada de suas teorias sobre o planejamento de câmpus, publicada

em 20008. Para Muthesius, tal abordagem, marcada por uma racionalidade exacerbada,

contrapõe-se a visões notadamente orientadas por um ideário social e pedagógico. Em particular,

atribui a Ralph Adams Cram9 e a Walter Gropius10 as experiências mais brilhantes de integração

8 Em Campus Landscape: functions, forms, features, Dober propõe uma “taxonomia de oportunidade” que consiste de 30 elementos específicos da paisagem do câmpus, cujas características resultam de 13 determinantes de desenho. Nenhum destes determinantes contempla reflexões sobre as funções primas das instituições de educação superior, ou seja, a pesquisa, o ensino e a extensão (public outreach); assim como seu predecessor, Campus Landscape “não declara qualquer interesse por uma idéia da instituição como um todo” (MUTHESIUS, 2000, p. 28).9 Ralph Adams Cram (1863-1942), conhecido por seus projetos de colleges e edifícios eclesiásticos, foi Arquiteto Supervisor (Supervising Architect) na Universidade de Princeton de 1907 a 1929.10 Walter Gropius (1883-1969) foi fundador da Bauhaus e diretor do curso de arquitetura da Universidade de Harvard. Autor de inúmeros projetos arquitetônicos de universidades e escolas (entre as quais, o Village College de Impington – Cambridge, e a Universidade de Baghdad) é lembrado por Muthesius (2000) por seu discurso bem articulado sobre a relação entre fatores socioculturais e arquitetura.

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entre filosofia socioeducacional e arquitetura, no marco das teorias da “aprendizagem pelo fazer”

que teriam motivado as trocas entre colleges americanos reformistas e o novo modernismo

europeu.

Um segundo efeito daquela que Neuman define como “burocratização” do planejamento é a

substituição do profissional generalista pelo especialista e a correspondente perda de uma visão

ecológica do ambiente em favor de programas separados – obras, transporte, uso do solo (mais

recentemente meio ambiente). A transposição dessa tendência para o planejamento de câmpus

fez com que, particularmente no pós-guerra, a demanda premente por um sistema de circulação

eficiente contribuísse para monopolizar as preocupações dos profissionais responsáveis – já

fascinados pelas possibilidades oferecidas pelos modelos de interação espacial baseados no

processamento de dados do computador (HALL, 1998) – chegando a inspirar uma nova

abordagem global ao desenho de câmpus (TURNER, 1995).

A setorização do planejamento trouxe também como conseqüência a exacerbação da

racionalidade técnica (consubstanciada em intervenções baseadas no cálculo, na adequação de

meios e fins, nos conceitos de eficiência e otimização) em detrimento de considerações éticas, e a

exclusão da comunidade acadêmica em geral do debate sobre os valores que deveriam orientar o

desenvolvimento físico da instituição.

Foi justamente no período entre os anos 1950-60, no qual as tendências da modernização

brasileira assimilavam os paradigmas ditados pelos Estados Unidos, tanto em matéria de

educação, como de organização dos espaços para a sua prática, que se introduziu no país o

câmpus, como modelo praticamente indisputado11 de implantação das instituições públicas de

educação superior.

A Universidade de Brasília foi a primeira do país a ser concebida, em 1960, de acordo com o

modelo tecnocrático norte-americano. Inaugurada antes mesmo que se completasse a construção

dos primeiros blocos de salas de aula, a UnB deveria servir como referência, em sua “estrutura e

alma”12 para os campi das universidades que seriam constituídas em seguida13, ex novo ou a

partir da agregação de faculdades dispersas.

Embora já na época da implantação da UnB se enxergasse com certa inquietude a proximidade

física entre a universidade e o centro do poder, seria simplista atribuir exclusivamente a este fator

a opção por campi isolados da cidade (bem como pela segregação das unidades acadêmicas em

seu interior). Talvez seja mais apropriado dizer que esse modelo, procedente da tradição norte-

11 Segundo Rodrigues (2001), as tentativas esparsas de contrastar o modelo de campus segregado da cidade não saíram do papel.12 Discurso inaugural proferido pelo então Ministro de Educação e Cultura Antonio de Oliveira Britto (RODRIGUES, 2001, p. 112).13 Entre 1965 e 1988 foram firmados entre Ministério de Educação e Cultura (MEC) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) acordos financeiros vultuosos, dos quais se beneficiaram tanto universidades federais como estaduais (RODRIGUES, 2001).

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americana e em plena sintonia com a concepção urbanística funcionalista (que se firmava então

no país), a partir de 1964 passou a oferecer suporte à doutrina da segurança nacional14.

Cabe dizer, porém, que o golpe militar veio a instaurar uma nova abordagem aos problemas da

universidade, marcada pela “paulatina e decisiva transformação de questões políticas em

questões técnicas” (BOMENY, s.d.). A própria reforma universitária, empreendida no momento

mais duro da ditadura, foi levada a efeito por técnicos, não obstante tenha sido precedida pela

ampla mobilização da comunidade acadêmica. Segundo Bomeny, a legislação do período

referente ao ensino superior teria padronizado, após depredar, uma experiência singular e

fortemente politizada – o projeto de modernização da universidade empreendido pela UnB.

O planejamento do espaço físico de campi universitários não fugiu a essa determinação, a ponto

que, entre os anos 1960-70, Atcon, técnico da equipe de consultores da United States Agency for

International Development (USAID), propunha, em seu Manual de planejamento integral de campi,

um modelo único de ordenamento espacial. Os anos seguintes seriam marcados por grandes

investimentos em instalações universitárias, cuja realização em tempos acelerados teria

favorecido as práticas da reprodução de projetos e da repetição de elementos construtivos, para

promover economias de escala e facilitar as obras (MACEDO, 1986a). Até mesmo o ordenamento

espacial dos campi implantados nesse período teria seguido principalmente dois modelos: do

zoneamento concêntrico, em torno de um núcleo que teria uma função agregadora – como no

plano proposto pelo arquiteto Helio Duarte para o câmpus da USP (PINTO e BUFFA, 2009) ou

naquele de Lucio Costa para a UnB (RODRIGUES, 2001) – e da “coordenação modular”, onde

módulos arquitetônicos são “apoiados” sobre uma malha teórica lançada no terreno (BERNINI,

1978), como no projeto de Mies van der Rohe para o Instituto Tecnológico de Illinois.

Independentemente da opção, o que teria acomunado os projetos de campi universitários a partir

da década de 1970 é uma forte ênfase em sistemas de racionalização da construção15 e a

centralização das decisões de projeto – induzida também pelo ritmo vorticoso de sua realização –

que teriam passado ao longe de considerações referentes à qualidade dos espaços, às

necessidades de seus futuros ocupantes e a conteúdos locais e individualizados (MACEDO,

1986b).

Deste ponto de vista, o planejamento de campi no Brasil caminhava na contramão das tendências

que despontavam no horizonte do planejamento urbano, particularmente nos Estados Unidos,

onde os processos de planejamento passaram a incluir sujeitos e interesses até então ignorados

(NEUMAN, 1998).

É justamente nesse momento que Christopher Alexander propõe para a Universidade de Oregon

14 A preocupação da classe dirigente com as manifestações estudantis culmina em 1969, ano da promulgação do Decreto-lei 477, que dispõe sobre as sanções a serem aplicadas em caso de infrações disciplinares praticadas por professores, funcionários, alunos, empregados dos estabelecimentos públicos ou privados.15 O Primeiro Seminário Nacional sobre Planejamento de Campi Universitários, promovido pelo MEC/PREMESU em 1975, testemunha como, naquele momento, a ênfase recaísse em questões puramente técnicas.

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uma cartilha de seis princípios16, em lugar do Plano Diretor convencional com suas premissas

tradicionais, com o propósito principal de obter, “desta forma, [...] os meios administrativos

necessários para garantir às pessoas o direito ao desenho que escolherem, e o princípio dos

processos democráticos de gestão que assegurem um desenvolvimento dinâmico desse direito”

(ALEXANDER, 1978, p. 12).

O modelo proposto por Alexander subverte os papeis dos atores envolvidos no planejamento,

responsabilizando os usuários, organizados em grupos, pelo desenho dos edifícios, e relegando

arquitetos e construtores, ou seja, os técnicos a um papel de suporte e assessoria que consistiria

em “fornecer aos membros das equipes de desenho os padrões, os métodos de diagnóstico e

toda a ajuda adicional de que precisem para desenhar” (p. 42). Quanto aos padrões, por ele

definidos “imperativos empíricos” – pois serviriam para “formular problemas concretos e

recorrentes em qualquer processo de desenho” (p. 66), trata-se de princípios gerais de desenho e

planejamento que expressam “as condições mínimas necessárias para obter a saúde individual e

coletiva de uma comunidade”, conceito a ser construído também comunitariamente17.

A despeito das mudanças paradigmáticas ocorridas no campo do planejamento urbano,

particularmente entre as décadas de 1960-8018, uma incursão nas páginas eletrônicas das

principais universidades americanas permite concluir que o plano diretor expresso em desenhos,

imagens, visões de lugar, nunca chegou a ser suplantado por “palavras e números”. De fato, até

mesmo o modelo de Alexander limita-se a contestar a idéia do plano diretor como imagem estática

ou, parafraseando Luigi Mazza19, como “desenho complexivo” congelado em um desenho rígido.

Para o arquiteto, a única possibilidade de equacionar a contradição entre a pretensa estabilidade

do desenho e as inevitáveis transformações produzidas pela dinâmica de intervenções setoriais e

interesses individuais reside em uma nova concepção do plano como “constructo social, metáfora

espacial de um programa político que se torna um quadro de referência, continuamente

reconstruído e reinterpretado com a contribuição dos projetos parciais”.

16 Ao longo do livro “Urbanismo y participación”, Alexander define os seis princípios com detalhes, mas resumidamente são eles: o princípio da ordem orgânica, que prevê a configuração de um todo a partir de intervenções locais; o princípio da participação, que confere aos usuários o poder decisório; o princípio do crescimento em pequenas doses (projetos); o princípio dos padrões, ou seja, dos princípios de planejamento adotados comunitariamente que orientarão o crescimento; o princípio de diagnóstico, a partir do qual se distinguem os espaços “vivos” daqueles “mortos”; e o princípio da coordenação, o qual prevê um processo de financiamento que “canalize” a corrente de projetos individuais prevista pelos usuários.17 Em um trabalho precedente, A pattern language (New York: Oxford University Press, 1977), Alexander já havia desenvolvido um repertório de 250 padrões independentes um do outro, que podem, assim, serem recombinados em diferentes arranjos de acordo com as necessidades dos usuários. No caso específico da Universidade de Oregon, foram selecionados 160 padrões, dos quais 37 referem-se a uma escala maior e, portanto, à inter-relação entre projetos individuais; são exemplos: área de transporte local; rede de relações de ensino; acesso à água; caminhos e destinações; ciclovias; conexões entre edifícios, etc. A esses 37 padrões foram acrescentados “padrões específicos para a universidade”, alguns dos quais dizem respeito às oportunidades de socialização no âmbito do câmpus, bem como às relações entre câmpus e cidade.18 Hall (1998) caricaturiza tais mudanças da seguinte maneira: “em 1955, o planejador recém-formado típico debruçava-se sobre a prancheta para produzir um diagrama sobre usos do solo desejados; em 1965, ele analisava os dados de saída do computador sobre modelos de tráfego; em 1975, a mesma pessoa ficava conversando até tarde da noite com grupos comunitários, [...]” (p. 396).19 Entrevista concedida ao jornal italiano “La Repubblica”, publicada no dia 8 abril 2004 e disponível em: http://ricerca.repubblica.it/repubblica/archivio/repubblica/2004/04/08/nuove-regole-piu-trasparenti.141nuove.html

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sustentabilidade e comunicação: novas perspectivas para o planejamento

A abordagem inovada por Alexander (com suas variações procedimentais) vem sendo adotada por

outras universidades americanas, em consonância com a vertente comunicativa ou colaborativa,

que, a partir dos anos 1990, se tornaria a base dominante da teoria do planejamento

(ALLMENDINGER, 2001). Considera-se, de fato, que, não obstante suas limitações referentes a

aplicabilidade e eficácia (ibid.), é somente dentro desta concepção que o plano pode responder a

demandas emergentes ou acolher novos conteúdos culturais, tornando-se, por sua vez,

deflagrador de mudanças.

Entre as justificativas para a popularidade do planejamento comunicativo, Allmendiger menciona a

repercussão da questão ambiental e a ênfase que a Agenda 21 coloca em processos conduzidos

localmente, de baixo para cima (bottom-up), enquanto Campbell (1996) esclarece as razões deste

importante pressuposto. Ele nos lembra que os conflitos entre as metas do crescimento

econômico, da proteção ambiental e da justiça social não se constituem apenas em um embate

conceitual (entre as lógicas econômica, ambiental e política), mas se expressam em situações

concretas (que envolvem sujeitos concretos) atingindo, por isso, o âmago histórico do

planejamento. Por sua vez, a sustentabilidade – que passou a representar uma promessa de

reconciliação dessas três esferas de interesses – poderia, de fato, tornar-se um poderoso e útil

princípio organizador somente se redefinida (para não se incorrer em visões mistificadas de uma

pacífica “ecotopia”) e incorporada à compreensão dos conflitos inerentes à sociedade industrial.

Em um contexto no qual tendem a prevalecer soluções técnicas (e paliativas) caracterizadas por

certa fixidez (NEUMAN, 2005; ALEXANDER, 2008), a visão de Campbell abre novas perspectivas

de atuação cujo êxito depende de competências e instrumentos para gerir conflitos. Deste ponto

de vista, aqueles que ele denomina “vias procedimentais para o desenvolvimento sustentável” –

tais como a negociação, a busca por uma linguagem compartilhada e o debate político/votação –

adquirem a mesma importância das “vias substantivas”, ou seja, dos instrumentos tradicionais do

planejamento: projetuais, normativos, econômicos, etc. Espera-se, ainda, que o esclarecimento da

natureza dos conflitos, dos sujeitos/grupos envolvidos, de seus valores, interesses e

conhecimentos inove o repertório das estratégias “substantivas” para a sua resolução.

A visão de Campbell sugere uma base metodológica também para a inserção da questão

ambiental nos regimentos e nas operações de planejamento e gestão das instituições de

educação superior, freqüentemente marcadas por conflitos que envolvem a ocupação do solo e o

uso de recursos naturais, e que tendem a culminar em impactos ambientais por vezes

irreversíveis (invasões e degradação de áreas naturais protegidas, depauperação da base de

recursos ambientais, destruição da paisagem, etc.). As iniciativas discretas que confluem no

movimento para a chamada “ambientalização” da educação superior (PAVESI e FREITAS, 2008),

atualmente focadas, particularmente no Brasil, na busca de indicadores quantitativos de

sustentabilidade (tais como o consumo de recursos e a produção de resíduos e emissões)

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poderiam, de fato, fortalecer-se mediante a adoção de procedimentos mais apropriados para

desvendar e questionar valores e interesses que estão na base de atitudes e intervenções

ambientalmente insustentáveis, e para indicar possibilidades concretas para redirecionar também

o desenvolvimento físico das instituições.

No caso particular de câmpus universitários, tais instrumentos de planejamento revestem-se de

uma vantagem adicional, propiciando oportunidades para o exercício da cidadania e

reconduzindo, assim, as práticas de planejamento às funções primordiais das instituições de

educação superior.

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