93
PANORAMA DO DESENVOLVIMENTO DO CULTIVO E DO PROCESSAMENTO DA CANA-DE-AÇÚCAR NO BRASIL Vittorio Pastelli História Cronologia Referências o Livros o Sites o Vídeos o Softwares Glossário 2014

Cana-de-Açúcar No Brasil

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Panorama do desenvolvimento do cultivo de cana no Brasil e, em especial, no Estado de São Paulo.

Citation preview

  • PANORAMA

    DO DESENVOLVIMENTO

    DO CULTIVO E DO PROCESSAMENTO

    DA CANA-DE-ACAR

    NO BRASIL

    Vittorio Pastelli

    Histria

    Cronologia

    Referncias

    o Livros o Sites o Vdeos o Softwares

    Glossrio

    2014

  • 2

    HISTRIA

    INTRODUO

    O Brasil um dom do acar Caio Prado Jr.

    Formao do Brasil contemporneo

    Caio Prado Jnior parafraseia o historiador grego Herdoto, que disse o

    mesmo do Egito em relao ao Nilo. O imenso rio, com suas enchentes e

    vazas sazonais, foi o que propiciou uma agricultura e, a partir dela, uma

    civilizao. No Brasil, mais que uma cultura para exportao, o cultivo da cana-

    de-acar forjou o pas do ponto de vista cultural, tnico e geogrfico.

    Diferentemente de culturas como a do caf ou do tabaco, o acar exige uma

    indstria associada. No basta colher. preciso moer, cozinhar e purgar. Alm

    disso, tem pouco valor de subsistncia, sendo voltada quase inteiramente para

    exportao, o que implica financiamentos, negociaes com banqueiros,

    acompanhamento de preos em bolsas etc. Assim, desde o incio da histria do

    Brasil esteve presente entre ns um tipo de agricultura com exigncias tcnicas

    especiais, que demandava, alm de agricultores, prticos em carpintaria e em

    uma precria siderurgia, para cuidar de toda a infraestrutura do cozimento.

    Subsidiariamente, era preciso manter uma frota de carros de bois, o que

    implicou o desenvolvimento de uma pecuria. Alm disso, o senhor de

    engenho, mesmo isolado e trabalhando com mtodos primitivos, tinha de se

    embrenhar pelo mundo das finanas, o que fazia dele um proto-empresrio.

    Uma vez que tcnicos podiam ser importados, mas no mantidos, desde cedo

    o trabalhador (o escravo) vai se tornar tambm aprendiz de tcnico, o faz-tudo

    que conserta qualquer coisa, mesmo que de maneira precria. Esse

    trabalhador que no especializado, sendo capaz de exercer inmeras tarefas,

    uma marca do Brasil que chama a ateno de estrangeiros at no sculo 20.

    Quando militares norte-americanos chegam ao Nordeste, na Segunda Guerra

  • 3

    Mundial, descobrem indivduos capazes de aprender rapidamente a fazer

    servios sofisticados. E os fazem bem. Esse homem multifacetado, crioulo e

    cordial vem dessa cultura que desde o incio aliou lavoura e tcnica, sem poder

    se dar ao luxo de pagar por especialistas.

    Para fazer todos esses trabalhos, apelou-se primeiramente para os ndios. Mas

    o empreendimento no funcionou. Uma explicao corrente, e falsa, a

    preguia inerente do ndio. Uma explicao mais correta deve primeiro levar

    em conta que para as vrias naes indgenas brasileiras o trabalho tal como

    concebido por um europeu cristo coisa estranha, pois no h sentido em

    padecer no presente em troca de bens pessoais distantes (e incertos) no

    futuro, uma vez que falta entre os povos que tinham contato com o colonizador

    o senso de propriedade privada da terra. Segundo, e mais importante, que o

    ndio s trabalha na lavoura do europeu se estiver cativo e, com sua terra logo

    ali ao lado, por que ficar? Fugir uma alternativa fcil e sempre aberta. Alm

    do mais, a tribo a que o ndio cativo pertence pode trazer dores de cabea ao

    europeu e no compensa, em uma terra nova e cheia de dificuldades, arcar

    com mais esse problema, o de ter um contencioso com os aborgenes.

    Por outro lado, o negro vem de um lugar distante e a fuga, ainda que possvel,

    nunca ser alimentada pela esperana de voltar a sua terra. Desterrados e

    escravizados, viam-se com menos alternativas de fuga e, assim, sujeitavam-se

    s condies dos canaviais.

    Isso levou a uma macia importao de negros j no sculo 16, o que forjou a

    cor do brasileiro. Proporcionalmente, eram muito mais numerosos nas

    pequenas vilas e nas fazendas do que os elementos branco e indgena.

    Embora distantes de suas origens, trouxeram uma cultura que moldou o Brasil

    e, conforme queiramos aceitar inteiramente a viso de um Gilberto Freyre,

    terminaram por coexistir com o branco em termos dbios mas afetivamente

    prximos. O socilogo de Casa Grande & Senzala fala do negro escravo,

    objeto de uso pela famlia senhorial, mas tambm do negrinho companheiro de

    brincadeiras do menino branco, ou da negrinha cobiada pelo senhor e por

    seus filhos. Essas relaes, embora sempre de subordinao, geraram laos

  • 4

    entre etnias e classes que podem ter reflexos ainda hoje no carter do

    brasileiro.

    Em nmeros, Caio Prado Jnior fala em 7 milhes de negros importados entre

    1550 e 1855. Boris Fausto d 4 milhes. Uma operao que comeou

    modestamente, foi muito incrementada pelo sucesso do empreendimento

    canavieiro e fomentada por fatores secundrios, como por exemplo a bula de

    Urbano 8, de 22 de abril de 1639, que proibia a escravizao de indgenas.

    Em Lisboa, no incio do sculo 16, 10% da populao era negra. J nas Minas

    Gerais do sculo 18, a cifra chegava a 70%.

    Outra conseqncia dessa convivncia sem regras claras o "homem cordial"

    definido por Srgio Buarque de Holanda. A regra a da subordinao do

    escravo ao senhor, do negro ao branco. Mas os subterfgios so tantos, os

    cruzamentos explcitos e escondidos to freqentes e os frutos de unies

    instveis e inaceitveis pelas regras to claras, que a alternativa resolver

    tudo caso a caso, mais guiado pela emoo que pelo apego a leis. Esse o

    homem cordial, o que no tem nada a ver com a acepo de "benevolente".

    Cordial o homem que age guiado pela emoo. Esse brasileiro, que Srgio

    Buarque identifica em toda a histria e que nosso trao comum ainda hoje,

    tem suas razes na convivncia do branco com o negro, colocados juntos pela

    primeira vez nestas terras justamente no empreendimento nacional do plantio

    da cana-de-acar.

    A paisagem brasileira tambm determinada desde o incio pelo plantio da

    cana. Os viajantes sempre relatam o "mar verde" que se estende do litoral at

    o incio das elevaes a oeste, em Pernambuco e na Bahia. Tudo o que era

    terra baixa estava tomado pelo canavial. As terras mais altas iam sendo

    tomadas aos poucos e, antes que servissem ao cultivo, eram desmatadas, para

    obteno de lenha para as fornalhas. Assim, a Zona da Mata pernambucana

    hoje no mais que um nome. A cana foi do litoral at ela, apropriou-se dessa

    zona e empurrou o pecuarista para o interior.

  • 5

    O boi era indispensvel ao empreendimento canavieiro, mas no podia de

    forma alguma ocupar as melhores terras, as mais rentveis. Os pecuaristas

    so empurrados para o Oeste e l que surge uma "cultura do couro", menos

    influenciada pelo negro (pois estes eram muito raros na pecuria), e que define

    at hoje a cultura nordestina do serto. Com o passar dos sculos e com as

    migraes internas, essa cultura se espalha pelo pas, mas permanece

    identificvel como aquele conjunto de prticas e saber cuja origem remota o

    servio cana.

    Socialmente, h um elemento importante que comea na cultura da cana no

    sculo 16 e s efetivamente quebrado no sculo 20: o carter feudal do

    senhor rural. No incio da colonizao, os empreendedores portugueses

    vinham para o Brasil e recebiam grandes extenses de terra para cuidar.

    Deviam trazer insumos para montar seus negcios e poder pagar aos

    financiadores da Metrpole. Esta apenas dava a concesso e cobrava o

    imposto. Cabia ao senhor no apenas cuidar do sucesso do negcio, mas

    cuidar da defesa dele contra invasores de toda espcie, tanto internos, os

    indgenas, quanto externos, que constantemente aportavam, muitos com

    pretenses coloniais. Assim, o senhor era empresrio, juiz, policial e executor.

    Esse poder ilimitado no interessava Metrpole, desde que os rendimentos

    aparecessem. S no caso de o senhor usar essa liberdade de ao para

    negociar diretamente com estrangeiros que Lisboa tentava exercer seu

    poder. De resto, o senhor estava s.

    desse senhor que descende o coronel que figura na poltica brasileira com

    proeminncia at a revoluo de 1930. E esse coronel no outro seno o

    "homem cordial", que manda sem regras claras, que pode ser benevolente ou

    violento para com seus apaniguados. O coronel tem empregados e os paga,

    mas nos laos informais que se decidem propriedades, benesses ou

    punies etc. Os satlites do coronel so uma grande famlia administrada

    discricionariamente. E se isso vale para os trabalhadores, vale ainda mais para

    o ncleo familiar, tanto o restrito como o estendido (a parentela prxima que

    habitava o solar).

  • 6

    O engenho um feudo completo. Tem casa, igreja, fbrica e senzala. Planta o

    que precisa para subsistir e compra no exterior tudo o que no tem. A escola

    praticamente se resume ao padre que freqenta a casa do coronel. De fato,

    muitos padres moram nessas casas e cuidam da educao das crianas e da

    catequizao dos negros e ndios. Ainda que a Igreja vez por outra fizesse

    ditos a respeito dessa relao complexa entre procos e senhores, a regra

    era mesmo o padre quase empregado do senhor.

    Com isso, e com um Estado praticamente ausente nos primeiros dois sculos

    de colonizao, o engenho se tornava um mundo fechado e completo. As

    crianas eram educadas ali mesmo e os senhores s se encontravam em

    razo de festas ou para negcios nos pontos de exportao. Disso resulta a

    cultura das cidades: as casas de alto nvel em Recife e em Salvador pertencem

    aos senhores, que l passam algum tempo do ano. Levam na ocasio famlia e

    criadagem. No engenho, esta fica nas senzalas. Nas casas de cidade, os

    sobrados, ficam nos mocambos, nos pores, em contato ainda mais prximo

    com a famlia senhorial. Sua famlia, no entanto, pode ali permanecer um

    pouco mais que o senhor, mas pouco comum morar nessas casas e dali

    administrar as fazendas. No Brasil, a regra que o senhor e sua famlia morem

    no negcio. E mesmo essa moradia pode ter dois tipos: os engenhos ditos de

    partido aberto e os de partido fechado, mais comuns no incio da colonizao.

    Nestes, a casa senhorial dividia paredes com a fbrica.

    Todo esse estado de coisas, a educao pulverizada, os engenhos autnomos,

    os encontros raros em cidades, de resto precrias, levam aos casamentos

    arranjados, visando continuidade dos negcios, unio de terras. No que diz

    respeito educao da mulher, s mesmo no sculo 19 que ela poder ir a

    escolas, embora muitas famlias rurais ricas tenham mantido um sistema de

    tutoria (ento laica) dentro de casa.

    Se esses traos podem ser vistos como negativos em relao ao propsito de

    formar uma nacionalidade, pois o que impera a disperso e uma certa

    anomia, o fato que a cultura da cana, paradoxalmente, tambm gerou um

    sentimento nacional. Os homens do sculo 16 eram colonos, gente que

  • 7

    esperava ganhar e se aposentar o quanto antes, indo passar o resto da vida na

    Metrpole. Os homens de meados do sculo 17 j eram "brasileiros".

    A historiografia data essa transio no sculo 17, com a expulso dos

    holandeses, de que falaremos mais adiante. Ainda que um pouco desse

    sentimento anti-holands tivesse origem econmica (os proprietrios brasileiros

    estavam endividados com os holandeses, o que tornava sua expulso algo

    vantajoso), o fato que consumada a expulso, o Brasil ganhou novo estatuto

    dentro do imprio portugus, com os senhores das terras em posio de exigir

    de Portugal regalias, visto terem retomado o pas em nome da Coroa, sem

    darem qualquer passo rumo independncia. J no sculo 18, esse

    sentimento se acirra e comea uma brasilidade mesmo antiportuguesa,

    materializada na Guerra dos Mascates, por exemplo, em que a briga era entre

    mascates (portugueses comissrios de acar) e mazombos (portugueses

    senhores de terras e descendentes destes j nascidos no Brasil).

    Mesmo em um mundo que vive a globalizao total j h quase 25 anos, esses

    traos do brasileiro (miscigenado, cordial, informal) permanecem e so

    facilmente identificveis na formao do pas, j em seu primeiro sculo.

    Agora, com a chegada de outros desafios, como crise do petrleo, a

    necessidade de uma mudana de matriz energtica e a questo do

    desenvolvimento sustentvel, a cana-de-acar volta ao centro das atenes.

    A partir dela, formou-se um pas, com todas as suas especializaes e facetas.

    Agora, esse pas forjado na cana volta-se novamente para ela, agregando-lhe

    valor. Com isso, a epgrafe de Caio Prado Jnior, pensada para os quatro

    primeiros sculos de Brasil, dever permanecer verdadeira ainda por muito

    tempo.

  • 8

    O PROJETO COLONIAL PORTUGUS

    Um pequeno pas fsica e economicamente dependia de rotas ultramarinas

    alternativas, para comprar na origem e vender seus produtos na Europa sem

    precisar pagar o que hoje seriam chamados royalties a potncias como os

    Estados italianos. Dessa forma, a poltica colonial portuguesa era basicamente

    comercial e extrativa: chegar, estabelecer uma feitoria (um escritrio

    comercial), fazer escambo com os da terra e voltar com os produtos para

    venda.

    No Brasil, o extrativismo teve um curto perodo: o ciclo do pau-brasil. Madeira

    nobre cuja tintura era muito valorizada na Europa, foi colhida sem um projeto

    de reposio ou de cultivo. O resultado foi a quase extino do bem. De

    qualquer forma, encher navios com pau-brasil no era suficiente para manter

    Portugal dono da terra brasileira. Uma costa muito grande e assediada

    precisava de mais que pontos esparsos, usados apenas como bases para

    incurses de extrao.

    Da vem a poltica das capitanias, que j havia funcionado no arquiplago da

    Madeira. S que o Brasil era mais longe e muito mais extenso e, como

    resultado, apareceram poucos candidatos aptos a arcar com a montagem de

    expedies de colonizao. O jeito foi ceder grandes extenses de costa a

    empreendedores que se dispusessem a pelo menos tomar conta do territrio,

    evitando que fosse predado por outros que no portugueses.

    Com escassez de recursos e de mo-de-obra, optou-se pelo plantio no Brasil

    da mesma cultura que havia funcionado nos Aores e Madeira: a cana das

    ndias. E, assim, a falta de materiais nobres, como o ouro na Amrica

    espanhola, foi contornada pelas extensas plantaes de cana, tomando os

    litorais de norte a sul do pas. Em pouco tempo, no entanto, a lgica do

    mercado fez falharem as culturas ao sul da Bahia, distantes demais da

    Metrpole.

  • 9

    MARTIM AFONSO

    Esse um caso emblemtico do projeto inicial de colonizao. Fora escolhido

    para chefiar uma misso ao Brasil, alm de suas habilidades tcnicas, por ser

    companheiro de infncia do rei d. Joo 3. Seu envio, com uma esquadra de

    cinco navios e 500 homens, mostra que Portugal j pensava em sua colnia

    em termos diferentes dos iniciais. Era preciso mandar gente ligada mais

    diretamente ao Estado (ainda que com financiamento em parte privado) para

    criar no Brasil condies de colonizao e no simplesmente de extrao.

    Antes de chegar a So Vicente, onde realmente fez histria no Brasil, aportou

    em Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Depois disso, sua misso era ir at a

    foz do Prata (ento rio Slis, em homenagem ao navegador espanhol) para

    procurar meios de chegar a um lendrio "rei branco", dono de grandes riquezas

    e que, mais tarde, seria identificado com o imperador inca. Esse ltimo

    propsito falhou, devido s ms condies dos navios e das tripulaes. Assim,

    estabeleceu-se em So Vicente.

    Antes disso, na Bahia, j havia deixado gente com a misso de testar mudas

    de cana, com vistas a plantao extensiva. Mas, estando ele mesmo no litoral

    paulista, e sendo dono de uma capitania com 300 km de costa, iniciou ali uma

    plantao de cana-de-acar e estabeleceu um engenho. (O stio desse

    engenho, de So Jorge dos Erasmos, pertence desde 1958 Universidade de

    So Paulo e ainda tem restos de materiais, datados como provavelmente do

    incio do sculo 17.)

    A capitania de So Vicente cresceu lentamente, tanto que, em 1548, ainda

    eram apenas seis os engenhos, contando com trs mil escravos. Em 1533, um

    ano depois de fundar So Vicente, Martim Afonso volta a Portugal, onde

    destacado para misses coloniais na ndia. L, pde usar a experincia

    brasileira, no s na construo de embarcaes (construiu dois bergantins

    quando aportou no Rio de Janeiro, em 1530), mas tambm na guerra de

    escaramuas. No Brasil, combatera contrabandistas franceses.

  • 10

    Depois de vrias misses na ndia, regressou definitivamente a Portugal em

    1545. Na Brevssima notcia que escreveu Coroa, simplesmente omitiu o

    Brasil. No considerava o que fez em So Vicente digno de contar em seu

    currculo.

    Apesar de constar nos livros de histria (corretamente) como o fundador da

    primeira vila no Brasil, So Vicente, dar a Martim Afonso crdito pela

    introduo da cana-de-acar no Brasil errneo. O que se pode afirmar com

    certeza que ele fez o primeiro estabelecimento slido, dentro de uma poltica

    colonial, com vistas a se estender a partir desse projeto piloto para o resto da

    terra recm-descoberta. Antes disso houve iniciativas, como est em um alvar

    do antecessor de d. Joo 3, d. Manuel, que enviou colnia um prtico de

    engenho devidamente aparelhado, isso em 1516. Provavelmente houve

    tentativas anteriores, mas eram espordicas e no faziam parte de uma poltica

    colonial elaborada especificamente para o Brasil. O protagonismo desse novo

    projeto cabe a Martim Afonso.

    Martim Afonso, assim, mostra que Portugal queria colonizar e plantar no pas,

    de maneira sistemtica, passados mais de 30 anos de seu descobrimento. Mas

    no pde mandar para c pessoas interessadas em se fixar no territrio. S

    contou com gente ligada nobreza, que tinha toda sua vida e aspiraes

    voltadas para realizaes seno na, pelo menos para a Metrpole. (Vale

    lembrar que, antes de Martim Afonso, outro nobre portugus, Fernando de

    Noronha, sequer veio tomar posse da capitania que lhe fora concedida.)

    O empreendimento comeou lentamente, forou a tomada de escravos entre

    os ndios e, no fim, perdeu muito em importncia para a cultura no Nordeste,

    que contava com reas maiores a beira-mar, estava mais perto da Metrpole, o

    que barateava os fretes, e podia contar com frotas regulares para escoltar os

    navios cheios de acar, coisa infreqente no litoral Sul.

    Quando So Paulo iniciar um bem-sucedido ciclo do acar, quase 250 anos

    depois dessa experincia, a capitania era de havia muito deficitria (Mello,

    2006).

  • 11

    O SUCESSO DO ACAR NO NORDESTE

    Mais prximo da Metrpole e contando com frotas de escolta freqentes, o

    Nordeste foi muito favorecido em detrimento das capitanias mais ao Sul. Desde

    Pernambuco, passando por Paraba, Sergipe, as Alagoas, at a regio do

    Recncavo Baiano, tudo a beira-mar eram canaviais.

    A histria comea por Olinda, quando, trs anos depois do empreendimento de

    Martim Afonso em So Vicente, Jernimo de Albuquerque funda um engenho

    em Pernambuco. Nessa poca, muda a forma de governo do territrio, sendo

    nomeado um governador geral. (S depois de 1720, com d. Joo 5 no trono

    portugus, que o Brasil passaria e ter seus governadores gerais investidos

    com o ttulo de vice-reis.)

    Tom de Souza, em 1548, recebe autorizao para dar sesmarias,

    especialmente em regies ribeirinhas, a todos os que apresentem possibilidade

    de levantar engenhos de acar. Baseado em Salvador e contando com um

    posto avanado em Olinda, com o engenho fundado 13 anos antes por

    Albuquerque, essa poltica selou o destino do Sul. O eixo de desenvolvimento

    no territrio ia de Salvador a Recife. As regies costeiras e as ribeirinhas

    ficavam para o acar. O serto, para o gado (cujas primeiras reses chegam

    das Canrias e de Cabo Verde, em 1551), e a mata para provimento de lenha.

    Em 1570, nova poltica colonial posta em prtica por Mem de S: o governo

    concederia iseno de grossa parte dos impostos que incidiam sobre o acar,

    nos dez anos posteriores construo de um novo engenho. O nico imposto

    era o dzimo cobrado na Metrpole. A medida impulsiona ainda mais o

    Nordeste, mas tem como subproduto a fraude. Engenhos, especialmente nos

    sculos 16 e 17, so estruturas frgeis, de madeira, pouco durveis. Eram

    mantidos funcionando com o mnimo possvel de manuteno. Com isso,

    podiam moer por 20 anos talvez, embora caducassem antes, devido ao

    esgotamento das lenhas em seu redor. Mas se o governo dava iseno de

    impostos, por que no deixar os engenhos se estragarem, economizar na

    manuteno e, em dez anos, construir um novo e gozar novamente do

  • 12

    benefcio? Em 1614 a disposio foi revogada e a letra da lei fixou as palavras

    "grandes engenhos". De ali em diante, s estes grandes empreendimentos

    poderiam contar com o benefcio. Mesmo assim, as fraudes continuaram,

    embora a Coroa s tenha reagido, com nova proviso, estabelecendo limites

    para o que se entendia por "grande engenho", em 1655 (Azevedo, 1945).

    Apesar de existir uma capital, Salvador, e um governo geral, o fato que a

    costa brasileira era pouqussimo defendida. Cabia, como se viu, aos senhores

    de engenho cuidar da defesa de sua propriedade. Mas fazer funcionar a

    fbrica, plantar, endividar-se a cada safra para compra de escravos, defender o

    engenho de ataques de indgenas e ainda pagar impostos Metrpole deixava

    pouca folga para montar fortificaes ou financiar algum tipo de milcia estvel.

    A poltica portuguesa no caso de invases era meramente reativa e, mesmo

    assim, contava com o acaso, o que segundo alguns historiadores e socilogos,

    por exemplo Caio Prado Jr., determina mais um trao da administrao

    brasileira que se estende at o presente.

    nesse estado de coisas que uma empresa por aes fundada na Holanda e

    projeta como sua maior meta a dominao de todo esse rico e desprotegido

    litoral. Trata-se da WIC, a Companhia das ndias Ocidentais. Sua misso

    dupla: dar lucro a seus acionistas e enfraquecer a Espanha. Essas duas frentes

    se materializavam em enfoques diferentes: o corso e a colonizao.

    No que diz respeito ao corso, a WIC financiava misses para apresar ouro e

    prata vindos da Amrica espanhola. Suas maiores vitrias nesse setor

    aconteceram em apresamentos no Caribe. Profundamente dependente dessa

    fonte de bens, a Espanha, que tinha uma poltica colonial diferente da

    portuguesa, mais voltada para a extrao de metais, sentia os golpes. Era uma

    guerra econmica e religiosa: as Provncias Unidas do Norte contra a Espanha

    e o calvinismo contra o catolicismo (Lopez, 2002).

    As aes de colonizao eram mais caras e tinham de ser entregues a homens

    com experincia administrativa e militar. Eram tambm operaes de longo

    prazo, diferentes da predao pura e simples representada pelo corso. A

  • 13

    primeira ao da WIC no territrio brasileiro uma invaso de Salvador, que

    acontece a 8 de maio de 1624. Ficariam instalados ali durante um ano, sendo

    expulsos finalmente por uma esquadra espanhola. (Era o tempo da unificao

    de Portugal e Espanha.)

    Mas em 1630 a WIC volta carga, desta vez em Recife. Apesar da reao dos

    colonos, a invaso bem-sucedida. Tentou-se de incio uma ttica de "terra

    arrasada". Logo de sada, o governador Matias de Albuquerque pe fogo em

    24 naus (portuguesas) e destri na ao 8 mil caixas (cerca de 3,2 mil

    toneladas) de acar. O prejuzo era certo para ambos os lados, mas

    Albuquerque esperava mostrar aos holandeses que no seria fcil nem

    colonizar e nem mesmo apresar o acar j processado. Apesar do golpe,

    Recife foi tomada e Albuquerque organizou sua resistncia no interior.

    A partir de ento, a histria dos holandeses no Brasil, que duraria 24 anos,

    uma srie de pequenas vitrias e recessos para ambos os lados. Na maior

    parte do tempo, os holandeses ficavam restritos costa, Recife e Itamarac.

    Mais para o interior, os milicianos de Albuquerque, primeiramente organizados

    no Arraial do Bom Jesus, a 6 km do Recife, ficavam firmes e faziam incurses

    de guerrilha. Quem saa do Recife corria o risco de ser morto por alguma das

    patrulhas. Hortas de produtos de subsistncia eram sistematicamente

    queimadas e plantaes de cana-de-acar viviam sob constante ameaa.

    Embora nominalmente os holandeses tenham dominado 50% da produo de

    acar no Brasil, no quer dizer que ficaram com 50% do produto. Produzir da

    Paraba para baixo era mais seguro e tinha ponto de escoadouro em Salvador,

    embora o transporte devesse passar por mares onde havia sempre o perigo do

    corso holands. Do Recncavo para cima, era a escaramua constante entre

    holandeses e mercenrios (ndios, colonos portugueses e outros) contra os

    milicianos da resistncia. O acar do Brasil holands ia para Amsterd para l

    ser refinado. A cidade chegou a ter 25 refinarias nesse perodo (Lopez, 2002).

    Isso quer dizer que os holandeses eram odiados e que os milicianos eram

    nacionalistas? A historiografia tradicional escrita no sculo 19 afirma que sim,

  • 14

    mas um exame dos dados mostra algo diferente. Negociar com os holandeses

    ou com a Metrpole era indiferente em termos de impostos. Ainda mais, na

    poca, a Metrpole no era sequer Lisboa. Os holandeses eram tolerantes com

    questes religiosas, alm de mais lenientes no que diz respeito a ligaes

    carnais entre etnias. Se havia o fervor calvinista, este era dirigido a uma

    ideologia de lucro, bem diferente do fervor catlico, pautado pela Contra-

    Reforma e pelos intolerantes (e, estes sim, odiados) tribunais inquisitrios.

    Portanto, os milicianos do Arraial no representavam uma comunidade unida

    em torno de uma ideia de expulso de estrangeiros.

    Alm disso, figuras importantes na expulso dos holandeses eram senhores de

    engenho, como por exemplo Andr Vidal de Negreiros. E eles estavam

    seriamente endividados com os comissrios holandeses. Do ponto de vista do

    endividamento, expulsar os holandeses seria cancelar, pelo menos a curto

    prazo, o pagamento de dvidas. Mas o preo dessa soluo era uma cara e

    instvel guerrilha.

    Enquanto esses colonos resistiam, o que fazia exatamente o Estado? Em

    Portugal, estudava-se a possibilidade de pagar pelo resgate do territrio e, para

    essa faco da diplomacia, interessava que as escaramuas continuassem,

    pois isso desvalorizava o empreendimento holands. Enquanto isso, a Coroa ia

    tramando com o governo sediado na Bahia formas de ajudar os

    pernambucanos, embora formalmente essa ajuda fosse negada, com os

    portugueses sempre respondendo que investiam unicamente na soluo

    negociada.

    Nesse impasse, Recife ia ficando mngua. Eram freqentes os surtos de

    doenas, os crimes por alimento, pessoas comendo restos de animais ou

    cozinhando couros em foges improvisados nas ruas (Lopez, 2002; Mello,

    2006). E a WIC tinha de, com esse contingente multinacional, pr ordem na

    produo. Como, se em certos momentos no podia sequer manter a ordem

    dentro de suas casernas? Esse estado de coisas contribuiu um pouco para

    minar a crena que alguns colonos tinham de que seria possvel conviver com

    os holandeses, pois, no aperto, colunas de mercenrios saam em disparada

  • 15

    pelos engenhos, apresando o que pudessem. O colono ficava assim sob dois

    jugos: a resistncia, que constantemente ameaava seu canavial, e os

    mercenrios contratados pela WIC, que tinham fome e estavam desesperados

    e bem armados.

    Nesse intervalo de 24 anos, chega ao Brasil, em 1636 o nobre e militar

    Maurcio de Nassau. Com uma folha de servios extensa prestada s

    Provncias Unidas, com experincia militar e administrativa, esse homem de 32

    anos mandado ao Recife, no sexto ano da invaso. Para as Provncias

    Unidas, era importante que o empreendimento privado financiado pela WIC

    fosse capitaneado in loco por um agente do Estado, e Nassau no s era

    militar como ligado casa de Orange.

    Nassau, no entanto, pensa diferente da WIC. Percorrendo a terra, v que a

    ao da WIC mais predatria que colonizadora e que preciso criar

    condies para o aparecimento de uma classe de senhores pr-holandeses e

    isso no aconteceria sem benefcios para os plantadores e donos de engenho.

    Foi nesse esprito que, em 1642, tentou implantar em Pernambuco a mesma

    regra que valia desde 1636 para o resto do territrio: as dvidas dos senhores

    podiam ser cobradas apenas em termos dos produtos, mas no das mquinas

    ou da terra. Apesar de explicar diretoria da WIC que de nada adiantaria

    confiscar terras, pois elas teriam de ser leiloadas para uma classe

    empobrecida, j que no havia estmulo para que holandeses viessem para c

    fundar engenhos, sua proposta foi rejeitada.

    Em seus oito anos em Pernambuco, Nassau viveu a lgica de escaramuas

    com as milcias de resistentes, as alianas com indgenas, a misria no Recife,

    a difcil administrao do territrio produtivo e, do lado da WIC, a intransigncia

    com respeito implementao no Brasil de uma poltica de mais longo prazo.

    Essa posio da WIC se devia, em parte, s suas origens corsrias e, em

    parte, ao fato de que desde 1638 o acar caa na bolsa de Amsterd. Essa

    queda s estancou em 1642 quando houve uma quebra de safra em

    Pernambuco, devido a enchentes e a uma epidemia de bexiga que afetou

    grande parte da escravaria. Mas em 1643, com a trgua (pelo menos formal)

  • 16

    entre Pernambuco e Bahia, o acar baiano bate recordes de exportao e

    inunda as praas europeias. Com isso, o produto conhece seu valor mais

    baixo. A WIC precisava urgentemente se livrar do Brasil e pagar seus

    acionistas.

    O rigor de Frans Post nos fornece as primeiras imagens do empreendimento canavieiro no Brasil. Este

    leo sobre tela, de 1668, mostra um engenho real (vertical, movido a gua), a secagem, as bocas das

    fornalhas e, ao alto, a casa grande e a capela.

    Apesar das condies da ocupao, Nassau mantinha uma corte no Recife,

    com pintores, cartgrafos e naturalistas. Todos viviam agregados sua casa,

    durante uma poca uma imponente construo de quatro torres na cidade. De

    todos, destaca-se naturalmente o paisagista Frans Post. So dele os registros

    mais antigos e confiveis de como eram os engenhos no Nordeste. Imagens

    supostamente anteriores so sempre baseadas em esteretipos, e existem

    mais para ilustrar "um" empreendimento canavieiro que a situao no Brasil.

  • 17

    Da a importncia de Post. Outro pintor, este retratista, foi Albert Eckhout, que

    legou imagens de todas as etnias que habitavam o territrio holands.

    Com a sada dos holandeses, cinco anos depois das duas Batalhas dos

    Guararapes, o conhecimento acumulado na experincia brasileira se espalha

    pelas Antilhas. O Brasil estava novamente unido e disposto a produzir acar

    para o mercado europeu, mas no arquiplago estabeleceu-se uma cultura mais

    tcnica e planejada, alm de mais prxima dos mercados consumidores na

    Europa. Se o Brasil podia reestruturar sua produo, tambm verdade que o

    faria agora com a presena de um concorrente forte. O sculo seguinte seria

    de riqueza, de grandes casas e capelas, tanto em Pernambuco como na Bahia.

    Mas seria tambm um sculo de rendimentos progressivamente menores.

    Alm dessa concorrncia externa, houve tambm pouco depois o comeo da

    corrida ao ouro das Minas Gerais, que atraiu parte dos investimentos que antes

    se destinavam quase exclusivamente aos empreendimentos aucareiros.

  • 18

    O REINCIO DO ACAR EM SO PAULO

    Aos 43 anos de idade, d. Lus Antnio de Souza Botelho Mouro chegava a

    So Paulo, para ser o governador da provncia recm-restaurada. Um local

    pobre, permanentemente envolvido em conflitos com ndios, devastado pela

    debandada que levou para as Minas Gerais os braos mais fortes e

    empreendedores, a capitania fora incorporada do Rio de Janeiro em 1748.

    Agora, a administrao pombalina queria uma poltica para o Sul do pas, pois

    via que a incorporao ao Rio s piorara as coisas. Afinal, era mais terra para a

    administrao centralizada no Rio. Era preciso ir para o Sul e colonizar So

    Paulo era o primeiro passo.

    Como j dissemos (Mello, 2006), a capitania era deficitria e mudar esse

    panorama exigia algum que aliasse habilidade administrativa e domnio de

    estratgias militares. O homem escolhido tinha ambos os crditos em sua folha

    de servio Coroa e, assim, chega capitania seu novo governador, o

    morgado de Mateus.

    D. Lus devia enfrentar um triplo problema: o interior era pouco povoado, o

    porto de sada de eventuais produtos da capitania era distante demais do

    planalto e havia a concorrncia do porto do Rio. Sua soluo foi apelar para um

    velho conhecido: a cana-de-acar.

    no perodo de seu governo, que se estender at 1775, que o interior de So

    Paulo, em especial as terras vermelhas e frteis do quadriltero determinado

    pelas vilas de Sorocaba, Piracicaba, Itu e Mogi-Guau, conhece uma exploso

    de plantio de cana-de-acar.

    Mas como manter o interior povoado e em desenvolvimento se havia reas

    mais competitivas no litoral, em especial na regio de Ilhabela e Ubatuba e no

    tringulo formado por Lorena, So Lus do Paraitinga e Mogi das Cruzes? A

    ao foi dupla e dbia. Por um lado, a Coroa determinou, em 1765, que

    estavam eliminadas as frotas de comrcio entre a Metrpole e a Bahia e Rio de

    Janeiro. Na prtica, o que acontecia antes disso era que qualquer capitania ao

  • 19

    Sul, So Paulo em primeiro lugar, era forada a mandar seus produtos para o

    Rio, pois s de l podiam sair para a Metrpole. Os impostos ficavam retidos

    no porto e s eram repassados mais tarde. Alm disso, havia a questo do

    frete e do armazenamento, o que tornava o produto da capitania, qualquer que

    fosse, ainda menos competitivo. Com a eliminao das frotas, o produto podia

    ser exportado de qualquer lugar para Lisboa e, assim, o porto de Santos se

    tornou estratgico.

    Quadriltero do acar segundo Petrone (1968), com Sorocaba - Piracicaba - Mogi-Guau - Itu, que inclui

    Porto Feliz, dado como um dos vrtices por Prado Jr. Alm disso, as zonas de Mogi-das Cruzes - So

    Lus do Paraitinga - Lorena e ainda a regio de Ubatuba, estas ltimas prejudicadas pela poltica do

    morgado de Mateus e de Bernardo Lorena

    A entra a parte dbia do projeto do morgado e posteriormente de Bernardo

    Jos de Lorena, seu sucessor. Dbia do ponto de vista tico (tanto um como

    outro seriam questionados a respeito), mas no do ponto de vista estratgico.

    Foi o segundo que determinou que todo produto de exportao da capitania

    tinha de sair pelo porto de Santos. Com isso, o tringulo Lorena - So Lus do

    Paraitinga - Mogi das Cruzes e tambm a regio de Ubatuba no mais podiam

    exportar, como sempre o fizeram, para o Rio. E mandar o acar para Santos

    para s ento este ir para a Metrpole tornava o produto mais caro. Como

  • 20

    resultado, a cultura nessas regies decaiu. Elas, no final das contas, pagaram

    o preo da estratgia de povoar o interior e torn-lo produtivo.

    De fato, seis anos depois de terminado o governo do morgado, em 1781, d.

    Maria 1a ordenou uma sindicncia na capitania, para averiguar as acusaes

    de que ele teria enriquecido ao adquirir terras no planalto para em seguida

    implementar uma poltica que as favorecesse. Nada no entanto se provou e as

    testemunhas foram unnimes a respeito da idoneidade do morgado (Vainfas,

    2000).

    Mas, entre o planalto e o porto, encontra-se uma formidvel barreira: quase

    800 m de altura, mata fechada. A Serra do Mar era um obstculo ao

    escoamento do produto do planalto. Assim, o projeto de povoamento j

    comeava a dar certo e, no entanto, o problema de escoamento prosseguia.

    Das terras pretas ao redor de Itu, a cana se estendeu s terras vermelhas de

    Campinas. Em 1790, Lorena ordena ao capito-mor de Itu que povoe as terras

    em redor de Piracicaba e Porto Feliz, pois Itu j no comportava mais colonos.

    O trabalho de tornar a regio produtiva tinha sido bem-sucedido. Depois de

    mais de sculo de dficit acumulado, So Paulo se erguia.

    Entre 1788 e 1791, um feito de engenharia para a poca revoluciona a

    economia paulista. Trata-se da calada entre o Alto da Serra e Cubato,

    devidamente pavimentada, por onde agora podiam circular com segurana

    tropas de muares com produtos de exportao, sendo o principal, como

    sempre, o acar. Um caminho que antes no era mais que picadas irregulares

    e perigosas agora podia ser cumprido, na subida, em trs horas. Alm disso,

    ranchos espalhados pelas estradas do interior garantiam local de repouso e

    troca de animais. No se tratava de entrepostos especiais, com estrutura de

    bom nvel. Eram apenas ponto de repasto para animais e um galpo para

    proteger a mercadoria enquanto a tropa era trocada e os tropeiros se refaziam.

    Para manter a calada, o governo cobrava um pedgio (Schmidt, 1959):

  • 21

    gnero pedgio

    acar $ 040 por arroba

    fazendas de l $ 080 por arroba

    sedas, cambraias, fustes e fazendas

    finas de algodo e enfeites

    $ 160 por arroba

    outras mercadorias c. $ 020 por arroba

    milho, farinha, frangos e galinhas nada

    Embora a maior barreira tivesse sido vencida, havia outro problema: Cubato

    longe de Santos e o acar que chegava a essa vila tinha de ser embarcado

    em canoas, que deviam vencer o rio Casqueiro, at o porto. Isso custava em

    termos de perdas de produto e de frete. A soluo para isso, no entanto, teria

    de esperar at 1827 (Petrone, 1968).

    Entre o perodo do governo do morgado de Mateus e a finalizao da estrada

    entre Cubato e Santos, vrias medidas favoreceram os engenhos paulistas.

    Entre elas, destacam-se a disposio de 1798 que revogava a restrio

    imposta pelo governo de Lorena com respeito exclusividade de Santos como

    ponto de exportao. Isso voltou a animar a regio de Ubatuba e Lorena, mas

    os nove anos de imposio j tinham feito o suficiente para firmar a supremacia

    do planalto.

    Em 1805, foi tomada a primeira medida com vistas a melhorar a qualidade do

    produto paulista. Como no havia mesa de inspeo em Santos, o governador

    Antnio Jos da Franca e Horta ordena que as caixas de acar vindas do

    planalto devam ser marcadas a fogo, para evitar fraudes. A marca pelo menos

    garantia a origem do produto e permitia, no caso de fraudes (seja m qualidade

    do acar branco, seja adulterao do peso por adio de pedras)

    responsabilizar diretamente um negociante. Antes disso, com as caixas

    annimas, ningum podia ser claramente culpabilizado em caso de fraude.

  • 22

    Em 1807 estendida a So Paulo uma regalia que havia sido conseguida

    quase 50 anos antes do Rio e mais de 150 anos antes, no Nordeste: s podiam

    ser executados para pagamento de dvida os produtos de um engenho, mas

    no as mquinas ou a terra.

    Do ponto de vista tcnico, dois fatos devem ser destacados: a introduo em

    1812 de moendas horizontais, mas produtivas, e o estabelecimento em

    Ipanema de uma siderrgica apta a fornecer cilindros de ferro com rodas

    dentadas para essas novas moendas. Com isso, So Paulo comeava tambm

    a produzir valor agregado e, aos poucos, deixava de depender da importao

    de mquinas e de tcnicos de outros lugares do pas. No seria mais preciso,

    como aconteceu em 1812, que o dono do engenho campineiro que instalou as

    primeiras moendas horizontais na provncia mandasse buscar na Bahia um

    tcnico habilitado.

    Por fim, o ano da finalizao da obra da estrada entre Cubato e Santos

    coincide com o trmino de um ciclo de interveno estatal sobre o acar.

    Cessam as restries sobre a construo de engenhos, ou seja, no era mais

    necessria uma licena para construir um e, ao mesmo tempo, acaba a poltica

    de regulao de preos. Com isso e com as reformas paulistas iniciadas no

    governo do morgado de Mateus, So Paulo conheceu 20 anos de elevada

    produo aucareira, que atingiria seu auge em meados do sculo. As estradas

    de rodagem (a transformao da calada do Lorena em estrada para carros, o

    que aconteceria em 1849, com a inaugurao da Estrada da Maioridade) e as

    linhas frreas viriam na esteira. Mas no mais para transportar acar. Este

    tornara rica a regio e essa riqueza preparou o ciclo do caf.

    No primeiro ano da segunda metade do sculo, a produo de caf j superava

    a de acar e essa nova cultura continuaria se expandindo at 1930. no ciclo

    do caf que se forma a maior parte da riqueza econmica e influncia poltica

    de So Paulo, que se estenderia at 1929. Ento, o acar, como sempre

    acontece na histria do pas, comearia novamente a ocupar a ribalta.

  • 23

    EVOLUO TCNICA DOS ENGENHOS AT O SCULO 19

    At que se criasse a figura jurdica do Engenho Central (independente de

    plantadores e obrigado a moer a cana que lhe fosse dada) no final do Segundo

    Imprio e sua efetiva construo no fim do sculo 19, j na transio para a

    Repblica, os engenhos permaneceram indstrias pequenas e refratrias a

    avanos tcnicos. Engenhos pequenos, apenas suficientes para moer a cana

    de uma fazenda, ou ento outros que podiam dedicar algum tempo ocioso

    moagem de cana de terceiros eram a norma no pas. com os engenhos

    centrais que o negcio da cana passa a uma fase realmente empresarial e o

    avano tcnico passa a ocupar posio mais importante nas decises dos

    envolvidos. Assim, a histria que segue vai da implantao dos primeiros

    engenhos no pas at fins do sculo 19, uma histria de avano tcnico lento,

    apesar de quase 400 anos, 80% da histria do prprio pas.

    Infogrfico baseado nos desenhos de Hamilton Fernandes (1975) mostra os processos em um engenho

    tpico do sculo 17

  • 24

    1. plantio As primeiras canas trazidas para o Brasil foram da espcie crioula, tambm

    conhecida por fina ou merim. Sua origem imediata o arquiplago da Madeira,

    onde era plantada extensivamente pelos colonos portugueses desde fins do

    sculo 15. Sua origem remota indiana.

    Planta tropical, espalhou-se pelo planeta a partir da Indonsia, indo para o sul

    da sia e da ndia no incio da Era Crist. Da, aos poucos foi para a Europa,

    mas no cultura que se possa manter acima do trpico de Cncer e, dessa

    forma, no chegou a ser importante.

    J na Madeira o clima permitia seu plantio e, assim, dessas ilhas ela chegou ao

    Brasil. A data para isso varia conforme o autor, indo de 1502 ou 1504, com

    Fernando de Noronha (Azevedo, 1945), at a data mais corrente entre os

    historiadores, 1532, com Martim Afonso de Souza.

    Essa variedade permaneceu em uso no pas at o incio do sculo 19. De fato,

    devido pouca informao tcnica dos agricultores, julgava-se mesmo ser a

  • 25

    crioula "a" cana. S no incio do sculo 19 que aparece no Brasil a cana

    caiana, que deriva seu nome de Caiena, na Guiana Francesa, de onde foi

    trazida pelos portugueses. Como represlia a Napoleo, a corte portuguesa no

    Rio de Janeiro ordenou, em 1809, a invaso da Guiana Francesa, e foi de l

    que veio a nova variedade de cana. Os portugueses ficariam no territrio

    francs at 1817. Quanto caiana, sua origem remota era o Taiti, da tambm

    ser conhecida no Brasil por "otaiti". Era mais suculenta, mas tambm produzia

    mais bagao que a caiana. At a chegada ao pas da cana riscada ou batava,

    vinda de Java, crioula e caiana continuariam a ser as duas nicas variantes

    cultivadas. De qualquer forma, a caiana j mostrava sinais de desgaste em

    meados do sculo 19, como se pode depreender de uma lei provincial que

    autoriza o governo de So Paulo a comprar no exterior novas mudas dessa

    variedade.

    Quanto ao mtodo de plantio, nem mesmo o arado era usado no pas. De um

    lado, isso pode ter sido devido ao atraso tcnico e falta de informao, mas

    existe o argumento de que no Brasil a cana era plantada em terras novas,

    recentemente ganhas s matas, e que razes impediam o bom uso do arado.

    Seja como for, arar a terra para plantar cana coisa fora de questo pelo

    menos nos primeiros 300 anos da colnia.

    A adubagem era feita ou com esterco ou com o bagao da cana. As cinzas

    provenientes do processo de cozimento eram preciosas demais para isso. O

    caso mais comum era no existir qualquer tratamento da terra. Quando esta se

    cansava, era abandonada e deixada regenerar-se. No havia a ideia de rodzio.

    Essa prtica e outras ligadas ao mau uso de recursos naturais o que leva

    Caio Prado Jnior a escrever que no Brasil o que se exercia era uma

    "agricultura extrativa" (Prado Jr., 1965).

    2. transporte Os meios usados para levar a cana da lavoura ao engenho eram o barco, o

    carro de boi, os muares e o ser humano. Dado o tamanho das primeiras

    propriedades para plantio cana no Brasil, que podiam medir at trs por uma

    lgua (retngulos de 18,6 km por 6,2 km), o transporte preferencial era o rio,

  • 26

    pois no apenas isso dispensava estradas, como dispensava cuidar de muitos

    animais e, ainda, trazia a cana para prximo do engenho, que provavelmente

    funcionava ou beira de um rio ou em algum ponto prximo. A estrutura que

    ligava o rio roda dgua que movia a moenda era chamada "levada". Em um

    engenho m So Paulo, Gama (Gama, 1983) fotografou uma de oito

    quilmetros.

    Os barcos podiam ser canoas, os menores, e, progressivamente maiores,

    saveiros, lanchas e barcos. Todos movidos a vela (Pinho, 1945).

    Para os engenhos menores ou com pouco acesso a gua, o carro de boi era

    preferido, pois tinha maior capacidade de transporte, uma vez que os muares

    tinham de ser carregados um a um, colocando-se em seus dorsos estruturas

    de madeira chamadas cambitos e nelas apoiando os maos de cana.

    O brao humano ficava restrito ao pequeno engenho, ainda mais porque, dado

    o preo de um escravo, era desperdcio tir-lo da colheita, onde

    insubstituvel, e coloc-lo para transportar cana entre a lavoura e a fbrica.

    A tabela abaixo d uma ideia do preo relativo da escravaria dentro das

    propriedades de um senhor de engenho do incio do sculo 19 (Gomes, 2005).

    Com pouca variao, os nmeros valem provavelmente para pocas

    anteriores.

    item percentual do total

    escravos 32,62

    engenhos 28,14

    sobrados na cidade 11,37

    outras propriedades rurais 9,43

    casas na cidade 3,83

    safras de cana 3,82

    bois 3,55

    pes de acar 1,88

  • 27

    cavalos 1,06

    mobilirio 0,6

    Representando quase 1/3 das propriedades do senhor, o escravo tinha de ser

    usado ao mximo e da forma mais eficiente possvel. Alm do mais, o grosso

    do endividamento dos senhores de engenho, desde o sculo 17, sempre

    esteve ligado compra de escravos. No tendo acesso a moeda, deviam

    empenhar a produo com banqueiros das cidades porturias (principalmente

    Recife e Salvador). Tudo isso explica o uso criterioso do escravo, o que no

    impediu a disseminao dos maus tratos, apesar de leis que tentavam coibi-

    los.

    3. moendas Independentemente da fora motriz, as moendas eram de rolos verticais. No

    incio, dois, com o eixo de trao preso a um deles, que ento movimentava o

    outro. A vantagem de construo, muito fcil. A desvantagem que a cana

    s pode seguir em uma direo. E como uma passada em moenda, mesmo em

    moendas mais sofisticadas, pouco para tirar o caldo, era ento preciso

    passar a cana, recolh-la no lado oposto e, em seguida, pass-la de novo. Da

    que a introduo de moendas de trs rolos significou enorme avano tcnico,

    especialmente no que diz respeito produtividade. Com a moenda de trs

    rolos (dita "de entrosa") a alimentao podia acontecer pelos dois lados. Um

    escravo entrava com as canas entre os rolos 1 e 2 e, do outro lado, esta era

    recolhida e imediatamente passada de volta entre os rolos 2 e 3.

    No processo mais primitivo, as moendas eram de madeira. S no sculo 19

    que comeariam a ser fabricados no Brasil cilindros de metal, mas ento j

    para moendas horizontais. A evoluo tcnica nesse meio tempo consistiu no

    revestimento dos rolos de madeira com uma chapa metlica, para aumentar

    vida til dos rolos.

    Em gravuras do sculo 17, supostamente retratando o Brasil, podemos

    encontrar (especialmente iluminando mapas) moendas com uma m vertical de

  • 28

    pedra movida por um homem. Provavelmente, trata-se de esteretipo e esse

    tipo de tcnica no foi de fato usado no Brasil.

    De pouco uso e interesse o mtodo de prensagem de cana, seja com prensa

    acionada por um homem (que se pendurava na ponta de uma longa haste para

    com seu peso esmagar a cana depositada no outro extremo), seja acionada

    por um animal (burro ou boi), que girava em torno de um parafuso onde ficava

    presa a haste da prensa. O movimento do animal faria girar o parafuso e, como

    conseqncia, a haste baixaria e espremeria a cana depositada prxima de

    seu extremo fixo.

    leo sobre tela de Frans Post, de 1651, mostra um raro exemplar de prensa usada em engenho de cana

    Essas primeiras moendas eram movidas ou por homens (o caso menos comum

    em moendas nas fazendas), por animais ou por gua. A farta ilustrao de que

    dispomos feita pelos holandeses, em especial por Frans Post, mostra moendas

    de entrosa (de trs rolos) verticais, movidas a gua. Por isso eram mais

    valorizadas as terras prximas a rios para a instalao de engenhos. O rio no

    s permitia transporte fcil do material bruto e do resultado como tambm

    fornecia energia.

  • 29

    As moendas a gua so melhores que as movidas a bestas? A primeira ideia

    que sim, pois tambm exigem mecanismos mais sofisticados, podem ser

    maiores etc. Mas existe um argumento importante para contrabalanar essa

    viso: os animais podem ser usados o ano todo, o que no o caso da gua,

    que depende da vazo sazonal dos rios. Alm disso, as movidas a gua

    exigem mais requinte na construo, sendo portanto mais caras (Petrone,

    1968). Essa observao importante para ressaltar que a escolha por um

    mtodo mais primitivo nem sempre se deveu a atraso tcnico (uma tnica da

    historiografia que punha a atuao dos portugueses na colnia em termos de

    proveito mximo e investimento mnimo), mas a condies climticas, ao

    tamanho da lavoura etc. De fato, ainda hoje podem ser encontrados no pas

    todos os mtodos de moer: prensas (Gama, 1983, fotografou-as em uso no

    Maranho), moendas de dois ou de trs rolos movidas a animais, a gua ou a

    vapor. Tudo depende do tamanho do negcio, de sua localizao e das

    possibilidades de investimento de seu dono. Mas a viso da moenda a gua

    como tipo mais importante independentemente de outras consideraes ficou

    inclusive fixada na linguagem. Um engenho cuja mquina era movida a gua e

    no por animais recebia o nome de "Engenho Real", o que nada tinha a ver

    com a Coroa, apenas com a suposta superioridade do equipamento. De

    qualquer forma, um censo levado a cabo na Bahia em 1834 atestava ainda a

    prevalncia da trao animal. Os recenseadores encontraram na provncia 46

    engenhos a vapor, 62 a gua e 495 movidos por animais (Petrone, 1968).

    O grande passo na moagem foi dado pela introduo das moendas horizontais,

    isso em 1812. O aparelho fora desenvolvido cerca de 60 anos antes, na

    Jamaica, por John Smeaton. Suas vantagens so muitas.

    Primeiro, rompida uma barreira ergonomtrica (Gama, 1983). Se um homem

    tem, em mdia, 1,70 m, de que adianta fazer rolos verticais de, digamos, 3 m?

    A parte de cima jamais seria usada. Portanto, essa disposio limitava o

    tamanho da moenda e, assim, o quanto podia ser modo por perodo. Com as

    moendas horizontais, chegou-se a fabricar, em meados do sculo 19, rolos de

    at 10 m de comprimento. No entanto, a tcnica de mover mais ternos de

  • 30

    moendas todos eles menores foi a tendncia que se mostrou aquela

    economicamente mais interessante e esses rolos gigantescos so hoje apenas

    curiosidade.

    Segundo, a moenda horizontal permite alimentao por meio de esteira. Na

    moenda vertical, a cana a ser moda tem de ficar empilhada prximo de quem

    vai coloc-la entre os rolos e essa pessoa o faz de pouco em pouco. Na verso

    horizontal, basta que a cana seja alimentada a partir de uma posio mais

    elevada e ela descer diretamente para a moenda, com aumento de eficincia.

    Alm disso, uma esteira colocada do outro lado (depois da primeira moagem)

    permite que o bagao seja ou dispensado ou entre para moagem em um

    segundo terno. a ideia de linha de montagem, impossvel de implementar em

    mquinas de disposio vertical.

    Terceiro, pelo uso de contrapesos, as moendas horizontais podem ser mais

    facilmente reguladas (Velloso, 1800). Regular a presso entre rolos em uma

    moenda vertical ou era impossvel ou era coisa precria, que saa do ponto em

    pouco tempo. Com moendas horizontais, braos com pesos nas pontas podiam

    facilmente ser usados para aumentar ou diminuir a presso entre os rolos e

    essa regulagem no dependia de mexer na moenda, sequer de interromper

    seu funcionamento.

    Quarto, a transmisso de energia de um motor a vapor mais eficiente em

    uma moenda horizontal. Em um arranjo vertical, seria preciso colocar coroas e

    pinhes nos eixos transmissores de energia que vo do pisto ao eixo da

    moenda, pois normalmente os pistes trabalham na horizontal e fazem girar um

    eixo perpendicular a eles, no mesmo plano. Para adaptar esse movimento a

    um arranjo vertical, seria necessria uma mudana de plano, com perda de

    energia e aumento do preo do mecanismo. De qualquer forma, as mquinas a

    vapor so contemporneas das moendas horizontais e o que dissemos se

    refere apenas situao hipottica de ligar essa nova fonte de trao a um

    sistema antiquado. Se isso aconteceu, deixou poucos registros, e nenhum no

    Brasil.

  • 31

    4. cozimento Extrado o caldo, este era recolhido em um recipiente chamado "parol". Nas

    fbricas nas quais a moenda ficava em ponto mais elevado que o dos fornos, o

    caldo descia desse parol de recolha para um primeiro tacho, para iniciar o

    processo de cozimento. No caso de ambos os recintos ficarem no mesmo

    plano, existia a etapa intermediria do "parol de guinda". O caldo era

    transferido para este que, em seguida, era guindado e, da por diante, escorria

    para os tachos. O processo era mais lento, menos eficiente, e dependia de

    ao humana, pois no havia mquina de guinda.

    As casas de cozimento podiam ter de trs a cinco tachos seqenciais. O

    primeiro, mais quente, fazia o papel de no s concentrar a sacarose, mas

    permitir que restos da cana e sujeira fossem retirados por uma escumadeira.

    Conforme o caldo ficava mais limpo, era transportado para o tacho seguinte, e

    assim sucessivamente, at a obteno de um caldo claro e relativamente (para

    os padres da poca) livre de impurezas. Uma casa de cozimento ligada a uma

    moenda grande podia ter mais de um conjunto de ternos (ou quinas) de tachos.

    Ao contedo restante nos tachos anteriores ao final, era acrescentada gua

    para, com posterior cozimento, tentar-se extrair um pouco mais de sacarose.

    Terminada tambm essa segunda extrao, tudo era concentrado no ltimo

    tacho, onde um mestre determinava o ponto em que a mistura devia ser

    retirada do fogo para passar etapa seguinte: a purga.

    Os tachos so feitos de cobre e podem ou no estar presos alvenaria que

    constitui o fogo. Na verdade, at meados do sculo 18, cada tacho ficava

    sobre um fogo diferente, cada um com seu bueiro e boca de alimentao.

    Segundo Antonil, o servio de alimentar as fornalhas era o pior da fbrica, o

    mais desconfortvel e insalubre. Era portanto tarefa para os escravos mais

    rebeldes.

    S no sculo 18 chega ao Brasil, mais uma vez vinda da Jamaica, uma

    inovao: uma fornalha nica, com trs ou, mais normalmente, cinco bocas de

    fogo para os tachos. Isso tornava a alimentao mais fcil (uma boca em lugar

  • 32

    de cinco), a recolha de cinzas tambm era mais fcil e desapareciam os

    bueiros, por onde saa a fumaa das fornalhas. Entra em cena na paisagem a

    chamin. Note-se que nos engenhos mostrados por Frans Post, por exemplo,

    por maiores que fossem, jamais apresentavam essa estrutura. Com a chegada

    desse modelo de disposio das bocas de fogo, a chamin passou a ser ponto

    de referncia na paisagem do interior. Como a inovao veio da Jamaica e

    dizia respeito a uma disposio seqencial de mdulos, ficou conhecida entre

    ns como "trem jamaicano". A economia de lenha trazida pelo trem jamaicano

    poderia ser ainda maior se se usasse no Brasil o bagao como combustvel.

    Mas isso s aconteceria em 1809 e, mesmo assim, em um s engenho de que

    se tenha registro certo, o Filosofia, de Manuel Jacinto de Sampaio e Melo, na

    Bahia. As ideias de Melo, no entanto, custaram a se espalhar e o bagao

    permaneceu sendo subutilizado at meados do sculo 19. O bagao era, em

    parte, destinado fermentao e posterior destilao com vistas produo de

    aguardente, sendo esta usada em parte para consumo no engenho e em parte

    como moeda para compra de negros. As colnias portuguesas eram

    desestimuladas pela Metrpole a usar moeda em transaes comerciais. Toda

    a moeda deveria ficar na Metrpole e as negociaes entre colnias deveriam

    ter como base o escambo. Nessa lgica que entra, nos primeiros dois

    sculos da colnia, a produo de aguardente, mercadoria valorizada nos

    portos de vendas de negros no litoral africano.

    As cinzas das fornalhas eram material precioso para lavar os tachos e as

    formas de po-de-acar. Por isso, eram recolhidas e guardadas em um

    cinzeiro. Passar cinzas pelas frmas era providncia inicial antes de se iniciar a

    purga, para limp-las e facilitar o processo de desenformar o po

    posteriormente.

    5. purga O passo seguinte do xarope clarificado proveniente da ltima etapa de

    cozimento a purga. Esta era feita em grandes frmas cnicas, primeiramente

    de barro e, em ordem cronolgica, de madeira e de ferro. Cada frma era

    inicialmente lavada com cinzas remanescentes das fornalhas, para limpar

    restos da purga anterior e, em seguida, tinha seu orifcio inferior tampado. Caso

  • 33

    ficasse aberto, o xarope altamente viscoso escorreria e no ocorreria

    decantao. S depois de cerca de uma semana na frma que esta tinha seu

    orifcio aberto, para que o melao escorresse aos poucos.

    As frmas, cuja capacidade mdia era para trs arrobas de xarope (cerca de

    45 kg), eram arranjadas sobre mesas compostas de tbuas furadas que as

    acomodavam. Em alguns arranjos, essas tbuas eram suspensas, na forma de

    bancadas (Fernandes, 1975). Noutros arranjos, as tbuas ficavam ao rs do

    cho e, abaixo delas, um tanque servia para recolher o melao, que dali era

    retirado com o auxlio de conchas (Pontual, 2006). No caso das bancadas, uma

    calha ligeiramente inclinada corria por todos os fundos de frma de uma dada

    seo, recolhendo o melao. Essa calhas desembocavam em outras

    progressivamente maiores, de forma que todo o material fosse finalmente

    recolhido em um s recipiente.

    Mas somente a decantao natural no seria em si suficiente para produzir

    acar claro e bom para consumo. Assim, depois de uma semana, as frmas

    eram entaipadas (com bambu ou palha), recebiam uma camada de argila e, por

    sobre a argila era periodicamente aspergida gua. Com isso, a gua, por

    gravidade, ia lavando o bloco dentro da forma, ajudando na decantao.

    Terminado o processo, as formas eram viradas de 180 e o po-de-acar era

    enfim desenformado. A parte inferior do po (superior, se pensarmos na

    posio em que esteve durante a purga) era constituda de acar branco. Isso

    significava cerca de 2/3 do po, ou cerca de 30 kg. Do resto, quase 1/3 era de

    acar mais escuro, ainda um pouco misturado com mel, com mais gosto de

    cana, mas ainda assim utilizvel para consumo humano. Trata-se do mascavo.

    A ponta do po era o cabucho, resto inutilizvel como adoante. Este podia

    voltar para o recipiente onde era recolhido o melao ou ser usado como rao.

    Ao todo, entre o xarope que entra na frma tampada e o po pronto para ser

    fracionado, passavam-se cerca de 20 dias.

    Hoje, todo esse processo, que era deixado inteiramente fora da gravidade,

    substitudo pela ao de cristalizadores e centrfugas e realizado em poucas

  • 34

    horas. As centrfugas (ou turbinas, como tambm eram chamadas) no entanto

    s surgiriam em meados do sculo 19 (a primeira patente de 1849) e ainda

    levariam mais algumas dcadas para chegar ao Brasil.

    6. secagem e encaixamento Depois de passar pela banca de desenformar, o po era fragmentado e as

    caras (a parte nobre) eram levadas em padiolas (que no Brasil receberam o

    nome de bang, de onde veio, por extenso, o nome dos engenhos onde

    eram empregadas) para um local onde deveriam ser espalhadas, esmigalhadas

    e expostas ao Sol. Em pinturas de Frans Post, vemos esses locais como

    mezaninos de madeira, mas podiam tambm ser usados panos colocados

    diretamente sobre o cho. Em ambos os casos, homens passavam rastelos

    sobre o acar, revolvendo-o constantemente.

    Seco o acar, este estava pronto para ser transportado e devia ser

    "encaixado", isto , colocado em caixas, que seguiam ento para os pontos de

    distribuio. Estas podiam ter at 450 kg e, ao chegarem ao porto, em Recife

    ou em Salvador, por exemplo, eram imediatamente embarcadas para a Europa.

    Como no eram abertas no manuseio, isso dava oportunidade a fraudes, seja

    pela presena de acar mal purgado, com grande quantidade de mascavo,

    seja pela presena de pedras, para ganhar peso. S com a criao de mesas

    de inspeo no Brasil, em 1751, que essa prtica diminuiu. Ainda assim, o

    acar brasileiro dos sculos 16 a 19 sempre foi considerado na Europa

    produto de qualidade inferior.

    Quanto aguardente, esta seguia da fbrica para os portos em garrafes,

    normalmente de 24 litros.

    S tardiamente, em fins do sculo 18, que o acar comea a ser ensacado

    para distribuio. Apesar de mais fceis de manusear e passveis de ser

    carregados em muares, os sacos (com mdia de 60 kg) tinham o inconveniente

    de expor o acar s intempries durante a viagem, trazendo para o produtor

    maior perda de produto. No Nordeste brasileiro, isso no era problema, pois o

    terreno era plano e as caixas podiam ser transportadas em carros de bois ou

  • 35

    em barcos. Mas quando o acar comea a ser produzido em grande escala no

    planalto paulista, o transporte em tropas de muares se torna obrigatrio e criar

    as melhores condies para eles (estradas boas, ranchos para descanso de

    tropas etc. e sacos, mais condizentes com a capacidade de um animal) se

    torna o centro dos problemas que devem ser resolvidos pelo Estado a fim de

    dar ao acar a vazo mais rpida e, conseqentemente, com o menor

    desperdcio possvel.

  • 36

    O SCULO 19 E A REPBLICA VELHA

    A primeira metade do sculo de prosperidade para todo o Brasil, no que diz

    respeito ao empreendimento aucareiro. A indstria forte no Nordeste. Em

    So Paulo, as sucessivas administraes tornam vivel plantar no planalto e

    escoar por Santos. No Rio, a cultura da cana chega aos Campos de

    Goitacazes.

    Do ponto de vista tcnico, a evoluo se d em todas as etapas da manufatura.

    Primeiro, o plantio agora conta com pelo menos duas variedades de cana-de-

    acar: a velha crioula e a recente caiana. Esta comea no Norte em 1809 e

    vem descendo, chegando a So Paulo e Rio em 1810.

    Durante o sculo 19, vrios institutos de pesquisa so fundados no pas e

    todos eles tm como motivao inicial o estudo de variedades de cana-de-

    acar. O pioneiro foi o Imperial Instituto de Agricultura, em So Francisco do

    Conde (BA), inaugurado em 1859 com a presena do imperador. O pioneirismo

    tambm era de carter institucional, pois o instituto resultava de uma parceria

    entre a prspera aristocracia aucareira e o governo. Em So Paulo, o marco

    importante a fundao, em 1887, da Imperial Estao Agronmica de

    Campinas que, em 1892, j na Repblica, passa ao governo do Estado de So

    Paulo e toma o nome de Instituto Agronmico de Campinas.

    Na moagem, aparecem os cilindros horizontais, mais eficientes e que permitem

    a serializao do trabalho. Em 1815 ou 1817 aparece a primeira mquina a

    vapor para movimentar essas moendas horizontais, na Bahia. Em 1825 elas j

    esto em Santos e em 1836 a fundio Harrington & Starr, em Pernambuco,

    comea a fabric-las pela primeira vez no Brasil. Antes disso, a empresa

    passou nove anos fornecendo peas de reposio, antes de se aventurar nas

    mquinas completas.

    A revoluo na paisagem fabril enorme. Depois de 300 anos de engenhos

    simples, todos dependentes da proximidade de gua ou de pastos, com suas

  • 37

    fornalhas alimentadas por lenha, vm em poucos anos as chamins, que fazem

    a exausto dos trens jamaicanos, as moendas horizontais, que tornam as

    fbricas algo mais prximo de linhas de produo, e os motores a vapor, que

    liberam os engenhos da necessidade de se localizarem prximos de rios. Alm

    disso, o bagao passa a ser usado como combustvel.

    Na fase de cozimento, a evoluo seguinte viria mais para meados do sculo,

    com o fim dos tachos e a introduo dos evaporadores em srie a vcuo,

    patenteados por Norbert Rillieux, um inventor negro norte-americano que

    revolucionaria essa indstria. A ideia era usar o calor exaurido por um

    evaporador (onde o caldo concentrado) para aquecer um segundo

    evaporador. No fim do processo, um aparelho de vcuo mantm o gs quente

    fluindo de um evaporador para o seguinte, em srie. A patente de 1846.

    O passo seguinte aparece em 1849, com a introduo de centrfugas para

    separar o mel do acar. Pelo menos nas grandes fbricas, as primeiras

    usinas, os evaporadores e as centrfugas aposentaram de vez a purga e, mais,

    tornaram o processo rpido e contnuo. A purga era um gargalo de trs

    semanas. A moenda produzia e o mel ia sendo acumulado, o que tornava a

    casa de purga a maior seo de qualquer fbrica. Com Rillieux, novos

    cristalizadores e as centrfugas, tudo isso acaba. A linha de produo,

    comeada na esteira que leva a cana para o primeiro terno de moenda, agora

    vai at o ensacamento.

    Todo isso chega ao Brasil aos poucos, e no a So Paulo. O Estado, depois de

    um pico de produo em 1846, passa a se dedicar ao caf. J em 1851 a

    produo deste supera a da cana. Dessa forma, a vanguarda industrial no setor

    canavieiro est no Nordeste, especialmente em Pernambuco e na Bahia.

    Quando paulistas decidem montar as primeiras usinas, como o Engenho

    Central, importam mquinas j havia muito sendo usadas no Nordeste.

    Do ponto de vista institucional, o sculo 19 assiste a uma poltica liberalizante,

    que comea em 1827 e s vai terminar completamente em 1930.

  • 38

    Durante a histria do Brasil, podemos distinguir cinco perodos diferentes no

    que diz respeito presena do Estado na economia canavieira. Um perodo

    cooperativo, um de interveno, um liberal, um novo perodo de interveno e

    por fim uma liberalizao completa, iniciada em 1990 com a extino do IAA.

    A primeira fase, cooperativa, vai de 1516 a 1687. A primeira data marcada

    por um alvar do rei de Portugal concedendo suprimentos a um empreendedor.

    A segunda diz respeito primeira iniciativa do governo da Metrpole para

    melhorar a qualidade do acar brasileiro. Durante esse perodo, que mais de

    170 anos, o Estado concedeu terras, descontos em impostos e facilidades para

    aquisio de suprimentos para todos os que provassem ser capazes de

    produzir acar. Sem dvida, funcionou. De colnia que os portugueses de

    incio no sabiam como usar, o Brasil se torna a "jia da Coroa portuguesa".

    Mas esse crescimento no foi acompanhado de qualidade. Na Europa, o

    produto brasileiro era considerado de baixo nvel e, em especial depois que

    houve a dispora holandesa pelas Antilhas, era essencial tornar o acar

    brasileiro mais competitivo. Afinal, este j saa perdendo na questo do

    transporte, visto Salvador ficar mais distante dos centros consumidores. Se

    tambm perdesse (como de fato perdia) em qualidade, no haveria como

    sobreviver. Deixados a si, os senhores pouco fizeram, o que levou a Coroa a

    comear uma poltica de interveno.

    O perodo de interveno vai de 1687 a 1827. A meio caminho, em 1751,

    chega ao auge, com a instalao de mesas de inspeo em Recife e em

    Salvador, que barravam o produto de m qualidade.

    Depois de 140 anos de interveno e agora com um pas independente e j

    fortemente endividado, era chegado o momento de liberar a produo. Em

    1827, revogada a lei que exigia obteno de licena para construo de

    engenhos. O objetivo ento passava a ser plantar e produzir ao mximo. So

    Paulo, j em franco processo de expanso, se beneficia dessa poltica e tem 20

    anos de grande produo.

  • 39

    Em meio a todas essas alteraes na paisagem tcnica e nas relaes entre

    plantadores, donos de engenhos e o Estado, est ainda o pano de fundo da

    escravatura. Comea a ficar evidente em So Paulo que a escravido coisa

    do passado, imoral e, a bem da verdade, principalmente, cara. As leis

    restritivas se sucedem, o trfico mais vigiado, o que torna o "produto" mais

    caro. Os compradores potenciais ficam em um dilema: esto diante de

    escravos cada vez mais caros e ainda correm o risco de, se vier um decreto de

    abolio da escravido, poder acontecer que no haja qualquer compensao

    pela perda dos "bens". Alm disso, os levantes se sucedem, as fugas

    aumentam, tendo em vista um clima cada vez mais favorvel ao abolicionismo.

    O escravo, visto antes como um bem de uso, passa a ser visto tambm como

    potencial inimigo. Em 1830, um boato de levante de escravos paralisa a regio

    de Campinas e tudo permanece tenso at que lderes so presos e a (suposta)

    revolta abortada. nesse clima, especialmente depois da abolio do trfico,

    em 1850, que os empresrios rurais paulistas comeam a pensar seriamente

    em implantar uma poltica de importao de mo-de-obra europeia. Mais para o

    fim do sculo, comeam a chegar a So Paulo as primeiras ondas de

    imigrantes, que teriam papel decisivo no desenvolvimento do Estado.

    O que marca a segunda metade do sculo a criao do Engenho Central. A

    figura jurdica, do engenho que deve moer cana sem impor cotas ou discriminar

    plantadores, comea a ser projetada em 1857, por ordem de d. Pedro 2. A lei

    que permite sua criao s vem em 1875 e, no mesmo dia, aprovada a

    construo do Engenho Central de Quissam, no Rio de Janeiro, Estado que

    mantinha como caracterstica a pequena propriedade. Quissam abre as portas

    dois anos depois.

    No entanto, o que deveria surgir para melhorar as relaes entre plantadores

    apenas e plantadores donos de engenhos, tirando destes a possibilidade de

    competir vantajosamente com os primeiros, impondo-lhes limitaes moagem

    das canas, acabou criando nova tenso, desta vez entre os usineiros, os donos

    de engenhos, e os plantadores.

  • 40

    Embora a Revoluo de 1930 e a criao de um Instituto do Acar e do lcool

    marquem o reincio de uma poltica fortemente intervencionista, o fato que a

    liberalizao de 1827 logo comeou a mostrar que a produo desregrada no

    era saudvel para a economia. J em 1878 um congresso de plantadores em

    Pernambuco termina com a reivindicao para que o governo interviesse na

    questo e definisse claramente quais as relaes entre as duas partes. Na

    Repblica, permite-se a construo de mais engenhos e a situao fica em

    suspenso. S em 1924 que, em So Paulo, a produo aucareira cresce a

    tal ponto que o acar nordestino entra em crise. Estando So Paulo no centro

    dos maiores mercados consumidores (o prprio Estado e o Rio), no havia

    como competir em termos de preo, pois o frete era muito mais baixo. Alm

    disso, a industrializao paulista, somada s sucessivas ondas de imigrao,

    notadamente europeia, tornaram a produo mais eficiente. Eficincia maior e

    fretes mais em conta deixaram os Nordeste com seu produto na mo. Da

    criao, em Pernambuco, de um Instituto de Defesa do Acar, em 1926, foi

    um passo. E, quatro anos depois, com a Revoluo de 1930, esses

    movimentos ganharam fora e o governo passou a instituir polticas de

    subsdios e cotas de produo. Tudo isso se materializa em 1933 com a

    criao do Instituto do Acar e do lcool.

  • 41

    O INSTITUTO DO ACAR E DO LCOOL E DEPOIS

    Um sistema de cotas de produo parecia desde meados dos anos 1920 a

    sada para reequilibrar o empreendimento canavieiro, pendente fortemente em

    relao a So Paulo. Com a crise do caf, decorrente da quebra de 1929, isso

    fica ainda mais evidente. Era certo que os paulistas, sem mercados para caf,

    iriam investir em algo diferente assim que se recuperassem um pouco de suas

    dvidas. E a sada era bvia, plantar a velha cana-de-acar, o que aumentaria

    ainda mais o desequilbrio. E, de qualquer forma, a prpria quebra mostrava

    que produzir demais e sem regras era ruim para todos.

    Com isso, chegamos a 1931, com o primeiro governo Vargas instituindo a

    Comisso de Defesa da Produo do Acar e, no mesmo ano, criando, dentro

    do ministrio da Agricultura, a Comisso de Estudos sobre o lcool Motor.

    Essas iniciativas desembocariam, em 1933, na criao do Instituto do Acar e

    do lcool, que s seria desmontado em 1990.

    Interessante notar que o rgo de 1931 defendia a produo "do acar" e

    que o lcool ficou relegado a um segundo plano, com apenas uma comisso

    dentro de um ministrio. O uso de lcool como carburante (adjuvante da

    gasolina) ainda era considerado irrelevante. Pesquisas j existiam e, na

    verdade, o primeiro carro movido inteiramente a lcool fez uma corrida no Rio

    de Janeiro em 1925. Era um Ford e percorreu um trajeto de 230 km movido

    exclusivamente a lcool 70 GL (Schwartzman e Castro, 1985). Depois disso,

    lcool passou a ser incorporado gasolina, em 1931, mas apenas na pequena

    proporo de 5%.

    Assim, de 1933, data da fundao do IAA, at 1975, ano da criao do

    Prolcool, a nfase do setor (incentivos, cotas, regulaes) sempre privilegiar

    o acar. E, nesse aspecto, a questo mais difcil dizia respeito relao entre

    plantadores e usineiros. Como sempre aconteceu no Brasil, permanecia a

    tenso entre os que tinham as mquinas para moagem e cozimento e aqueles

    que dependiam inteiramente dessas mquinas. Acar e lcool podem ser

    estocados, mas a cana-de-acar, no. Assim, a poca da colheita era ocasio

  • 42

    tambm de conflito, de barganhas por preos melhores, com os usineiros

    pressionando os plantadores, com a ameaa de deixar a cana colhida sem

    beneficiar.

    Os progressos nesse sentido foram lentos. Em 1931, os plantadores de cana-

    de-acar de Pernambuco obtm do governo a definio de uma tabela de

    preos a serem pagos na entrada da usina pela cana crua. Mas s dez anos

    depois disso, j no Estado Novo, em 1941, que o "Estatuto da Lavoura

    Canavieira" fixa que 40% da produo de qualquer usina deveria ser

    proveniente do beneficiamento de cana-de-acar plantada por terceiros. Mas

    esse acerto de curta durao.

    Mal cai Getlio Vargas e o decreto 9.287 diz que as usinas podero usar at

    50% de sua capacidade com cana vinda de lavouras prprias. At a, o

    "Estatuto" ainda poderia valer. Mas um pargrafo alterava profundamente o

    horizonte: se o IAA reconhecesse que faltava capacidade de produo nos

    fornecedores da usina, esta poderia aumentar sua cota at 100% se fosse o

    caso. No havia limite. O resultado disso que os plantadores, perdendo a

    garantia de cota e passando a depender de avaliaes de IAA, comearam a

    vender terras, o que promoveu uma grande concentrao fundiria,

    notadamente em So Paulo.

    Essa sucesso de sistemas de incentivos, polticas de colonizao, cotas etc.

    permite dividir a histria do empreendimento canavieiro no Brasil em trs fases:

    1. de meados do sculo 16 ao fim do 18, os senhores de engenho so os

    principais plantadores;

    2. durante o sculo 19 e primeira metade do 20, e principalmente a partir da

    segunda metade do 19, com a instituio de engenhos centrais, h uma diviso

    de propriedade entre usineiro e plantador;

    3. de 60 anos para c, ocorre grande concentrao fundiria e volta-se

    primeira frmula.

  • 43

    Essa expanso do empreendimento ainda contou com fatores acidentais, como

    a queda dos preos do caf a partir de meados da dcada de 1950. Em 1961,

    o Gerca (Grupo Executivo de Racionalizao da Agricultura) define uma

    poltica de erradicao de caf, com vistas manuteno dos preos de

    exportao. As terras foram preferencialmente para soja e cana-de-acar. Em

    So Paulo, entre 1957 e 1967, o Estado cedeu quase 800 mil hectares de

    reas cafeeiras para a soja e a cana. Alm disso, a Revoluo Cubana abriu o

    mercado norte-americano de acar para o Brasil, pois, criado o embargo dos

    EUA a produtos cubanos, o Brasil era o fornecedor mais prximo. Esse era

    estado de coisas no incio dos anos 1970: o acar prevalecendo sobre o

    lcool no empreendimento canavieiro. Em 1971, o governo cria o Planalsucar,

    futuro brao de pesquisa do IAA e, dois anos depois, o Programa de Apoio

    Indstria Aucareira.

    No ano seguinte viria a primeira crise do petrleo e o balano pende para o

    lado do lcool. a partir da que se pode realmente falar da passagem de uma

    Indstria Aucareira para um Setor Sucroalcooleiro.

    O ento presidente da Repblica Ernesto Geisel cria o Prolcool oficialmente

    em 14 de novembro de 1975, quase dois anos depois da primeira crise do

    petrleo. Nos quatro anos seguintes, a produo passaria de 600 milhes para

    3,4 bilhes de litros por ano. Nessa primeira fase, a nfase na adio de

    lcool anidro gasolina. Mas em 1979 a Fiat lana o 147, primeiro modelo a

    poder rodar inteiramente com lcool e no ano seguinte o Prolcool entra em

    sua segunda fase, de nfase na produo de lcool hidratado para essa frota.

    Em 1984, a produo de carros a lcool em relao aos movidos a outros

    combustveis de 95:5. Isso era mantido devido crena de que os preos do

    lcool jamais seriam superiores a 65% dos da gasolina. Mas isso no se

    manteve e quando, em 1989, a diferena chegou a seu ponto mais baixo, 25%,

    a descrena do consumidor era geral. Nesse contexto que o IAA extinto, na

    mesma poca em que o ento presidente Fernando Collor tachava os

    automveis brasileiros de "carroas", sugerindo a necessidade de avano

    tecnolgico na indstria automobilstica.

  • 44

    Em fins de 1991, cessa toda forma de subsdio ao setor e leis aumentam, de

    22% para 24%, a adio de lcool anidro gasolina. Com a liberalizao,

    ocorreu acomodao do setor, entrada de investimentos, barateamento da

    produo, melhoria da qualidade do produto. Na indstria automobilstica, os

    carros a lcool continuaram a ser produzidos, embora muito abaixo dos nveis

    da dcada de 1980. Apesar disso, a tecnologia deles era constantemente

    melhorada.

    Nessa dcada de conturbado caminho em direo a um mercado globalizado,

    as preocupaes com o meio ambiente tomam cada vez mais corpo e geram

    protestos de setores da sociedade civil no sentido de que as indstrias primem

    pela responsabilidade ambiental. Isso, como vimos, no novidade. Trs

    sculos antes da Eco-92, o governo brasileiro j criava instrumentos para evitar

    o desmatamento acelerado. Mas, naquele caso, tratava-se de preocupao

    imediata. Em fins do sculo 20, trata-se de problema planetrio.

    nesse contexto que a indstria sucroalcooleira, especialmente no que diz

    respeito produo de lcool carburante, ganha novo alento. A Terra est aos

    poucos sendo aquecida, devido ao CO2 lanado na atmosfera, principalmente

    pela queima de combustveis no-renovveis, como o carvo, o xisto ou o

    petrleo. J o lcool hidratado fecha o circuito. Se verdade, como o para

    toda combusto, que ele libera CO2, tambm verdade que a cana, ao crescer

    novamente, retira esse carbono da atmosfera. Ainda antes que a palavra

    ganhasse o relevo que tem hoje, a indstria sucroalcooleira descobria a

    sustentabilidade.

    Agora, o conceito avanou para outras reas desse setor. No s o lcool

    carburante que permite o armazenamento de energia renovvel, tambm os

    resduos das fbricas so reprocessados e totalmente consumidos, seja na

    forma de raes, seja para fazer plsticos, material de construo, ou mesmo

    mais lcool, como ficou provado pelo sucesso da hidrlise do bagao de cana

    mostrado ao pblico por um consrcio de empresas paulistas, em parte

    financiadas pela Fapesp (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So

    Paulo, pertencente ao governo do Estado), em 2003.

  • 45

    HOJE: CANA-DE-ACAR, MEIO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE

    O mesmo Caio Prado Jnior que cunha a expresso "agricultura extrativa" d

    uma medida aproximada de quanta lenha era consumida por dia em uma

    fornalha mdia: de 12 a 16 carros de boi (Prado Jr., 1965). Se se levar em

    conta que pelo menos trs fornalhas alimentavam as casas de cozimento em

    um engenho comum (nos grandes, podiam bem ser 10), e se pensarmos em

    um carro de boi com um metro cbico, vemos que um engenho devia consumir,

    nos perodos de cozimento (quase 9 meses do ano), no mnimo 45 m3 de

    madeira por dia. A est a explicao de como desapareceu quase toda a mata

    que cobria o litoral brasileiro. Srgio Buarque de Holanda sugere que para cada

    quilograma de acar, 15 kg de madeira eram queimados (apud. Acar,

    Projeto Inventrio de Bens Culturais Imveis, 2004).

    O bagao era separado e ia para a bagaceira, prxima fbrica, onde secava

    ou fermentava e era usado para fabrico de aguardente, se bem que o grosso

    desta viesse da destilao do melao resultante do processo de purga, depois

    de fermentado. O uso do bagao nas fornalhas coisa tardia no Brasil: 1809 e

    mesmo assim foi iniciativa isolada. A introduo do vapor no mudou a prtica

    de aquecer as fornalhas com lenha e s mesmo a partir de 1840 que as

    usinas passam a usar regularmente o bagao como parte do combustvel nos

    fornos. Apesar de no pas j ser ento comum a cana caiana, com mais suco e

    tambm mais bagao, a cultura do uso de lenha prevaleceria ainda por muito

    tempo.

    O impacto sobre o meio ambiente foi notado desde cedo no Brasil. de 1681 a

    primeira proviso do governo estabelecendo a distncia mnima de meia lgua

    (aproximadamente 3 km) entre dois engenhos (Petrone, 1968). O motivo era

    preservar os estoques de lenha, se bem que no com vistas a qualquer coisa

    assemelhada a preocupaes ambientais, mas devido ao fato de que a

    proximidade destrua as matas e obrigava os engenhos a se mudarem,

    correndo os coletores de impostos o risco de verem suas fontes de renda

    migrarem para longe. Para fixar um pouco os engenhos em uma comarca

    que se estabeleceram tais regras.

  • 46

    Outra forma de proteger as matas (para uso como lenha) foi proibir a presena

    de gado a menos de 60 km do litoral. Ficavam assim os campos livres para os

    canaviais e para a coleta de combustvel para as fornalhas. Isso foi tema de

    uma proviso da Coroa, de 1710, motivada principalmente pelas necessidades

    de espao no Recncavo Baiano.

    No entanto, uma coisa era promulgar leis e outra era fazer cumpri-las,

    especialmente no Brasil dos sculos 17 e 18. Tanto que, em 1802 vemos o

    governo reeditando a medida de 1681, com a mesma estipulao de meia

    lgua.

    Em So Paulo, a destruio s no foi maior porque o planalto comeou a ser

    plantado tardiamente, em fins do sculo 18 e, pouco mais de 60 anos depois,

    toda essa terra derivava para o caf, que no usa fogo em seu beneficiamento.

    Nos Estados do Nordeste, no entanto, a destruio manteve seu ritmo. Pois

    enquanto o Brasil exportava caf (de So Paulo) e borracha (da Amaznia),

    vindo em terceiro lugar o acar (dados para 1889, em Waak e Neves, 1998),

    este era plantado preferencialmente no Nordeste.

    No sculo 20, com a introduo do uso extensivo do bagao, as questes

    ambientais perderam relevncia na pauta da cana-de-acar e s voltaram

    realmente a ocupar a ribalta na dcada de 1970, mas agora j por outros

    motivos.

    De um lado, o lcool aparecia como fonte de combustvel automotor mais limpa

    que a gasolina e ainda renovvel. De outro, havia o peso das queimadas,

    mtodo usado para facilitar a colheita manual. Desde ento, a melhoria das

    condies ambientais ligada ao empreendimento aucareiro tem se

    materializado em dois pontos. Primeiro, produzir lcool retificado de melhor

    qualidade, com menor produo de molculas nocivas como resultado da

    combusto nos motores. De outro, as leis de regulao das queimadas tm se

    suc