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A escola e as “dificuldades de aprendizagem” Rui Canário Nesta intervenção 1 , tenho como objectivo apresentar a minha perspectiva pessoal sobre um problema enfrentado, e nunca bem resolvido, pelo ensino esco- lar regular, que consiste em proporcionar um adequado acolhimento a crianças que, pelas suas características visuais, auditivas, motoras ou mentais, apelam a cuidados e procedimentos especializados, justificando a existência daquilo que tem sido designado por ensino ou educação especial (com serviços e técnicos próprios). Trata-se de um problema que diz respeito a todos os profissionais do ensino e da educação, com implicações directas na sua acção profissional. Apela, no entanto, a aprofundamentos teóricos e técnicos que eu não possuo e, portanto, a minha conferência é construída a partir do ponto de vista de um não especialista. Tive o privilégio de, ao longo do meu percurso profissional, ter percorrido praticamente todos os níveis de ensino, trabalhando com crianças, jovens e adultos e, natural- mente, confrontei-me com o problema, em relação ao qual vivi vários tipos de (enriquecedoras) experiências, quer pela positiva, quer pela negativa. A Escola Preparatória de Francisco Arruda (escola destinada a acolher a 5ª e 6ª séries), onde iniciei a minha actividade profissional, no final dos anos 60, dirigida pelo saudoso e notável pedagogo Professor Calvet de Magalhães, 2 era uma escola de referência e pioneira a vários títulos, nomeadamente nos processos de “integração” em turmas “normais” de crianças com deficiências várias. Foi assim que, sem qualquer experiência e sem grande consciência do problema, me vi confrontado com turmas em que se incluíam crianças cegas ou surdas. Foi para mim um “choque” com o qual muito aprendi, contando com os apoios específicos, internos e externos à escola. A aprendizagem que fiz com outros professores foi decisiva e lembro-me de ir assistir a aulas de educação física em que os alunos cegos (orientados por colegas seus) faziam corrida ou, por 1 Este texto é uma versão adaptada da conferência proferida na Faculdade de Motricidade Humana (Universidade Técnica de Lisboa), em julho de 2005, no âmbito de um ciclo de conferências su- bordinado ao tema: “Educação inclusiva: estamos a fazer progressos?”. 2 Sobre esta escola e a actividade de Calvet de Magalhães, cf. Carvalho (2000). Psic. da Ed., São Paulo, 21, 2º sem. de 2005, pp. 33-51

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  • A escola e as dificuldades de aprendizagem

    Rui Canrio

    Nesta interveno1, tenho como objectivo apresentar a minha perspectiva pessoal sobre um problema enfrentado, e nunca bem resolvido, pelo ensino esco-lar regular, que consiste em proporcionar um adequado acolhimento a crianas que, pelas suas caractersticas visuais, auditivas, motoras ou mentais, apelam a cuidados e procedimentos especializados, justificando a existncia daquilo que tem sido designado por ensino ou educao especial (com servios e tcnicos prprios). Trata-se de um problema que diz respeito a todos os profissionais do ensino e da educao, com implicaes directas na sua aco profissional. Apela, no entanto, a aprofundamentos tericos e tcnicos que eu no possuo e, portanto, a minha conferncia construda a partir do ponto de vista de um no especialista. Tive o privilgio de, ao longo do meu percurso profissional, ter percorrido praticamente todos os nveis de ensino, trabalhando com crianas, jovens e adultos e, natural-mente, confrontei-me com o problema, em relao ao qual vivi vrios tipos de (enriquecedoras) experincias, quer pela positiva, quer pela negativa.

    A Escola Preparatria de Francisco Arruda (escola destinada a acolher a 5 e 6 sries), onde iniciei a minha actividade profissional, no final dos anos 60, dirigida pelo saudoso e notvel pedagogo Professor Calvet de Magalhes,2 era uma escola de referncia e pioneira a vrios ttulos, nomeadamente nos processos de integrao em turmas normais de crianas com deficincias vrias. Foi assim que, sem qualquer experincia e sem grande conscincia do problema, me vi confrontado com turmas em que se incluam crianas cegas ou surdas. Foi para mim um choque com o qual muito aprendi, contando com os apoios especficos, internos e externos escola. A aprendizagem que fiz com outros professores foi decisiva e lembro-me de ir assistir a aulas de educao fsica em que os alunos cegos (orientados por colegas seus) faziam corrida ou, por

    1 Este texto uma verso adaptada da conferncia proferida na Faculdade de Motricidade Humana (Universidade Tcnica de Lisboa), em julho de 2005, no mbito de um ciclo de conferncias su-bordinado ao tema: Educao inclusiva: estamos a fazer progressos?.

    2 Sobre esta escola e a actividade de Calvet de Magalhes, cf. Carvalho (2000).

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    exemplo, jogavam basquetebol. O carinho e a ateno dedicada a estes alunos faziam parte integrante da cultura da escola e eram permanentemente incenti-vadas pela respectiva direco.

    Mais tarde, tambm tive oportunidade de vivenciar, neste domnio, expe-rincias negativas. Quando, nos anos 80, contactei, no mbito de projectos de formao de professores, com concelhos rurais do interior onde se registavam percentagens altssimas de insucesso escolar (a mdia nacional era, no 1 ciclo do ensino bsico,3 superior a 40%), pude verificar alguns efeitos perversos desenca-deados pela interaco entre as equipas de educao especial e os professores: por um lado a aco dos tcnicos funcionava, por vezes, como uma desresponsabiliza-o dos professores, que tendiam a sinalizar como deficientes (estigmatizando) um nmero totalmente desproporcionado de alunos, transformando em dificul-dades de aprendizagem dos alunos aquilo que eram, de facto, as dificuldades de ensino dos prprios professores. Em muitos casos, a integrao na turma era apenas formal, uma vez que no havia trabalho de equipa entre o tcnico (que dava apoio parte) e o professor da turma. A integrao e isso aprendi-o tambm com a minha experincia no fcil, nem uma soluo mgica. Os mtodos e as tecnologias prprias para apoiar invisuais no so, obviamente, adequadas a crianas surdas que coexistem na mesma turma. No sendo, como j referi, nem um especialista nem um estudioso dessa temtica especfica (a educao especial), a minha abordagem no pode deixar de ser fortemente tributria dessas experincias pessoais de que vos falei muito brevemente. Parto, contudo, da convico de que a questo do acolhimento pela escola aos chamados alunos com necessidades educativas especiais constitui um problema especfico que diz respeito a alunos considerados como portadores de deficincias severas ou profundas, que est muito longe de ser homogneo (Ruela, 2000, pp. 17 e 26) e que corresponde, necessariamente, a uma pequenssima percentagem da populao escolar.

    Vou falar-vos, e tentar dar um contributo para o debate, a partir do pon-to de vista da sociologia da educao, utilizando duas estratgias principais: a primeira a de proceder anlise crtica de alguns conceitos utilizados corrente-mente, procedendo, como aconselhou Pierre Bourdieu, a uma crtica sistemtica da linguagem comum; a segunda consiste em partir dessa anlise crtica para procurar reequacionar o problema. Muitas das nossas principais dificuldades na

    3 O 1 Ciclo do Ensino Bsico corresponde, em Portugal, s quatro primeiras sries.

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    aco social decorrem de problemas mal colocados e tambm da tendncia para centrarmos os nossos debates nas solues, em vez de nos situarmos no modo como interrogamos os fenmenos.

    Assim, a minha interveno ter como finalidade principal contribuir, mesmo que modestamente, para deslindar alguns equvocos ou confuses que, na minha opinio, obscurecem o debate sobre a educao especial e a cons-truo de uma escola inclusiva e que continuam presentes em vrios textos dedicados ao tema:

    Procurarei, por um lado, criticar a pertinncia do uso generalizado do conceito de excluso, bem como, naturalmente, da sua transposio para a realidade educativa e escolar, o que est na origem de raciocnios simplistas e de uma oposio redutora entre escola exclusiva e escola inclusiva.

    Procurarei, por outro lado, esclarecer o efeito negativo da associao do tipo amlgama, de um conjunto de conceitos que tem vindo a ser objecto de um alargamento abusivo do seu mbito. Refiro-me em particular tra-de Educao Especial/Necessidades Educativas Especiais/Dificuldades de Aprendizagem.

    A (no) pertinncia do conceito de excluso

    O uso corrente e indiscriminado da expresso excluso social, acompa-nhado por uma ilimitada amplitude da sua significao semntica corresponde a um facto recente. Se acreditarmos nas afirmaes de muitos investigadores sociais, estaremos na presena de um fenmeno novo que representa uma ameaa real para grupos sociais to ampla e indeterminadamente definidos como: os pequenos agricultores e camponeses; os idosos e pensionistas; os deslocados e refugiados; as minorias tnicas; as crianas, sobretudo rfs e pertencentes a famlias ditas desestruturadas; desempregados; trabalhadores no qualificados e com empre-gos precrios; trabalhadores de mdia idade despedidos no mbito de processos de reestruturao empresarial; analfabetos formais ou funcionais; portadores de doenas socialmente estigmatizadas (como a sida, a tuberculose ou a hepatite B); indivduos com incapacidades mentais ou fsicas; mulheres em situao de monoparentalidade. E a lista poderia continuar de forma interminvel...

    Quando um conceito permite designar tudo, no permite distinguir e discriminar praticamente nada. Provocando um efeito de amlgama, deixa de constituir um utenslio mental til para se transformar num obstculo produo

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    de inteligibilidade. A sua importao acrtica dos terrenos tcnico e poltico para o campo das cincias sociais faz-nos passar, como escreveu Mia Couto, de produtores a consumidores de pensamento. Na realidade, mais do que um fenmeno social novo, a proliferao do uso da expresso excluso social exprime uma novidade de linguagem que designa a impossibilidade de, no perodo subsequente ao breve parntesis dos trinta anos gloriosos, resolver aquilo a que Ralph Dahrendorf (1996) chama a quadratura do crculo, isto , a impossibilidade de articular o bem estar com a liberdade poltica e a coeso social.

    Num ciclo de crescimento sem emprego emerge um conjunto de pro-blemas sociais, essencialmente ligados s mudanas estruturais no mundo do trabalho, que cria um mundo capitalista novo, sem movimento operrio nem capitalismos de estado, associado a um declnio do Estado Providncia e con-sequente fragilizao da legitimidade do compromisso entre o capitalismo e a democracia, caracterstico do perodo ureo do fordismo. O recuo do poltico, traduzido em vrios indicadores (diminuio da participao eleitoral; incre-mento de modalidades de controlo individual dos cidados, institucionalizao da tortura e do terrorismo do estado) permitem que ao modelo de democracia ocidental actualmente dominante seja justificvel acrescentar o qualificativo de totalitria (Bernardo, 2003).

    A dominncia actual da utilizao do conceito de excluso social repre-senta uma proposta de leitura da questo social de hoje, a partir da reabi-litao de concepes funcionalistas do lao social prximas do pensamento de Durkheim, que via na anomia a principal ameaa coeso social. Hoje tende a renascer uma leitura do social fundada na existncia de classes perigosas que apela combinao de polticas repressivas de endurecimento penal (tolerncia zero) com polticas paliativas, sob a forma de novas modalidades de filantropia. Ao equacionar a questo social em termos de opor os que estariam in aos que estariam out (Touraine, 1991), escamoteia-se aquilo que continua a ser central no mundo da produo, a explorao do trabalho e as suas consequncias, em termos de conflitualidade social. Na medida em que descreve, mas no explica, nem se explica a si prpria, a expresso excluso social tem sido objecto de uma utilizao tautolgica que, no caso das cincias sociais, se institui como um obstculo epistemolgico compreenso do mundo social em que vive-mos. Acresce que se trata de uma expresso de sentido paradoxal na medida em que no h nada fora do social. Aquilo que vulgarmente se designa por excluso social corresponde a modalidades simtricas de incluso em grupos,

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    territrios ou dispositivos institucionais, chamados de insero. Trata-se de um conceito a rejeitar no apenas pela sua impreciso, mas pelo seu carcter ilusrio de falsa evidncia (Messu, 2003). Dos pontos de vista epistemolgico e hermenutico, constatvel que o conceito de excluso oscila entre o dfice e o excesso de sentido e, como acrescentam Carvalho e Baptista (2004), este conceito, marcado pela demagogia da sua inflao, chega a tornar obscura a ideia de que o conceito exprime, pelo reverso negativo, o conceito de incluso cujo uso, padece, do meu ponto de vista, das mesmas limitaes: excluso e incluso correspondem s duas faces de uma mesma moeda, a rejeitar enquanto ferramenta de utensilagem mental.

    Se o conceito de excluso, bem como o seu reverso de incluso, no se revelam nem adequados nem pertinentes, para ler os grandes problemas sociais, essa no pertinncia aplica-se logicamente sua transposio para pro-duzir inteligibilidade sobre os grandes problemas da educao e, em particular, da escola. Na minha opinio, estes ganham em ser equacionados por referncia a duas questes de fundo que atravessam toda a histria dos sistemas escolares modernos: por um lado, o modo como a escola produz (ou no) a igualdade e, por outro lado, o modo como a escola lida com a heterogeneidade dos pblicos escolares.

    A escola e a igualdade

    Ao longo de todo o perodo da modernidade, o crescimento e alargamento da escolarizao tm sido acompanhados pela manuteno e acentuao das desi-gualdades sociais, particularmente marcantes nos nossos dias. A gnese da escola inscreve-se no contexto da dupla revoluo liberal e industrial, contribuindo para uma nova ordem social, poltica e econmica em que, no contexto da abolio dos privilgios das classes dominantes do Antigo Regime, o estatuto social deixasse de ser predominantemente herdado e passasse a ser socialmente adquirido. A represso sangrenta de todas as tentativas de transformao social igualitria uma constante da histria da modernidade e tem como exemplo pioneiro, na Revoluo Francesa, a conspirao dos iguais conduzida por Babeuf, seguido, um sculo depois, pelo esmagamento da Comuna de Paris e, posteriormente, a derrota das tentativas de instaurao de uma organizao baseada no modelo democrtico dos sovietes. A vocao de promover a igualdade social no faz parte da origem gentica dos sistemas escolares que permaneceram profunda

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    e assumidamente elitistas at 1945. O tempo das promessas (1945-1975) re-presentou um curto perodo em que a democratizao de acesso escola e a sua massificao contriburam para apresentar a escola como eventual instrumento corrector de desigualdades sociais, mas essa iluso no foi duradoura.

    Com efeito, desde cedo, e ainda nos anos 60, estudos extensivos e a contribuio da chamada sociologia da reproduo permitiram colocar em evidncia processos de produo de desigualdades escolares articuladas com a produo de desigualdades sociais, expressas sob a forma de macro regularidades persistentes (Duru-Bellat, 2000), as quais decorrem da soma do diferencial de valor escolar acumulado (desigualdade de resultados) com os efeitos das esco-lhas feitas ao longo do percurso escolar (estratgias dos actores). A persistncia destas desigualdades sociais perante a escola ganhou um lugar central no debate sociolgico e poltico da poca, na medida em que, como refere Boudon (2001), esta desigualdade era percepcionada no s como persistente e importante, mas, sobretudo, como ilegtima.

    Paradoxalmente, ao mesmo tempo que abre as portas e democratiza o acesso, tornando-se, portanto, menos elitista, a escola, por efeito conjugado das expectativas criadas e da crtica demolidora a que submetida, percepcionada como um aparelho ideolgico do Estado (Althusser, 1970) que, atravs de me-canismos de violncia simblica, assegura a reproduo social das desigualdades sociais. Na medida em que comparticipa na produo de desigualdades sociais, a escola passa a ser percepcionada como produtora de injustia, o que no sucedia quando essas desigualdades sociais se situavam a montante da escola.

    Ao massificar-se, a escola mudou de natureza, mas, como o elitismo no era democratizvel numa sociedade fundada na desigualdade e na relao entre estatuto social e estatuto escolar, a passagem da euforia ao desencanto perante a escola, que marca o perodo posterior ao ltimo quartel do sculo XX, ali-mentou-se da fabricao de uma legio de inadaptados, multiplicada por uma sociedade urbanizada e industrializada, como reconhece Ren Lenoir (1974) na obra que introduziu e popularizou o uso vulgar do conceito de excluso social. Esta multiplicao de inadaptados ou insatisfeitos verifica-se, nomeadamente, no campo dos sistemas escolares e compreensvel luz do conceito de contra produtividade, central no pensamento de um dos mais radicais crticos das modernas sociedades industriais (refiro-me a Ivan Illich que, nos anos 70, ficou clebre pela sua defesa de uma sociedade sem escola). Essa contra produtivi-

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    dade manifesta-se no facto de, ao atingir um limiar crtico no seu processo de crescimento exponencial, os sistemas escolares passarem a funcionar para resolver os problemas criados pelo seu prprio crescimento.

    Entramos, assim, num perodo em que se assiste a uma concomitncia da persistncia e agravamento das desigualdades escolares com um reforo da relao entre as desigualdades escolares e as desigualdades sociais. Este pro-cesso, que reduz a rentabilidade dos diplomas escolares sem que deles se possa prescindir, permite compreender por que que a procura escolar cresce, mas desencantada, segundo a frmula feliz de Srgio Grcio (1986) e como que a escola, depositria durante um perodo breve de todas as esperanas, se torna para muitos um mal necessrio. Esta mutao torna-se compreensvel luz da conjugao de um conjunto de factores:A democratizao do acesso aos sistemas escolares e a procura de vantagens

    comparativas individuais conduziram os actores sociais a apostar em percursos escolares cada vez mais longos, fenmeno favorecido pelas polticas pblicas, orientadas quer pela teoria do capital humano, quer pela retrica da igualdade de oportunidades;

    Esta democratizao de acesso e de permanncia nos sistemas escolares tradu-ziu-se num fenmeno de desvalorizao dos diplomas, agravado por um efeito de regulao divergente, ou seja, mais desvalorizao engendra mais procura;

    Esta desvalorizao atinge de forma mais drstica e acentuada o diploma de-finido como patamar mnimo da escolaridade considerada como obrigatria, o que significa que os sucessivos alargamentos da durao da escolaridade obrigatria no resolvem os problemas da desigualdade, nem ao nvel da escola nem ao nvel da sociedade;

    Paradoxalmente, a escola deixou de funcionar como um seguro ascensor social, promotor de mobilidade social ascendente, precisamente quando se democratizou e aumentou as expectativas. Esse papel era mais claro e perceptvel para grupos minoritrios de origem popular, durante o perodo histrico que precedeu a exploso escolar;

    Os problemas intrnsecos escola combinam-se e agravam-se ao coincidir com mutaes do mundo do trabalho em que o desemprego ganha carcter estrutural e de massas e, sobretudo, o vnculo laboral precrio se torna a regra. A permanncia prolongada da juventude no sistema escolar transforma-se num paliativo para uma situao social em que a transio da escola para o mundo do trabalho se torna cada vez mais difcil;

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    O jogo escolar que era percepcionado, nos anos 60 e 70, como um jogo de soma positiva, em que todos os participantes podiam alimentar legtimas e fundadas esperanas de retirar um benefcio passou a ser vivido e percepcio-nado, nos dias de hoje, como um jogo de soma nula em que aquilo que uns ganham corresponde quilo que outros perdem.

    este conjunto de transformaes que conduz a que muitos se interroguem sobre a possibilidade de se construir uma escola justa. Pergunta ou dvida que pode ser mais precisamente formulada deste modo: possvel uma escola justa, no quadro de uma sociedade injusta (estratificada e fundada na explorao do trabalho)? Relembremos a resposta que, na sequncia de um consistente traba-lho emprico cuja divulgao de resultados data do incio dos anos 70, a equipa liderada pelo investigador americano Jencks props para esta questo. No razovel esperar que seja a escola a resolver a questo social. Se queremos, de facto, uma sociedade que no seja marcada pela desigualdade, em vez de me-didas indirectas (atravs da escola) e cuja ineficcia a experincia j comprovou, necessrio agir directamente sobre a realidade social (regime de propriedade, regime fiscal, salrios, organizao poltica, etc.).

    Este conjunto de transformaes e tendncia no se me afigura como sus-ceptvel de ser elucidado ou esclarecido com base num discurso e em prticas que remetem para uma descrio simplista e para um moralismo estril, baseado na falsa e redutora dicotomia entre excluso social e incluso social. Idntica ausncia de pertinncia se aplica posterior transposio desta dicotomia para a anlise do universo educativo e escolar, sob a forma de uma oposio entre escola exclusiva e escola inclusiva.

    Escola e heterogeneidade

    A inveno histrica dos sistemas escolares modernos correspondeu a instituir e tornar hegemnica uma outra forma de conceber o processo de en-sino/aprendizagem, a partir da criao de uma relao social, at ento indita, a relao pedaggica entre um professor e um grupo homogneo de alunos. Essa relao tende, por um lado, a autonomizar-se das restantes relaes sociais e, por outro lado, a tornar-se hegemnica, relativamente a outras modalidades de pensar e organizar as aprendizagens. Este novo tipo de relao social, de-signada por forma escolar, pode, segundo Vincent (1994), ser, no essencial, caracterizada como:

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    (...) no uma relao de pessoa a pessoa, mas uma submisso do mestre e dos alunos a regras impessoais. Num espao fechado e inteiramente ordenado rea-lizao por cada um dos seus deveres, num tempo to cuidadosamente regulado que no pode dar lugar a nenhum movimento imprevisto, cada um submete a sua actividade aos princpios ou regras que a regem. (pp. 17-18)

    A forma escolar introduz e generaliza, em termos histricos, uma forma de aprender em ruptura com os processos que, at ento, haviam sido dominantes e que privilegiavam a continuidade da experincia individual e social. Baseando-se num princpio de revelao (o mestre que sabe, ensina ao aluno ignorante) e num princpio de cumulatividade (aprende-se acumulando informaes), o modo es-colar prope processos de aprendizagem baseados na exterioridade relativamente aos sujeitos. A memorizao, a abordagem analtica, a penalizao do erro e a aprendizagem de respostas configuram um processo em que a aprendizagem pensada com base na desvalorizao da experincia dos aprendentes.

    Como mostrou Joo Barroso, a partir de uma abordagem emprica evolu-o histrica e funcionamento dos Liceus (1995, 1996), a organizao escolar que conhecemos constituiu-se a partir de uma estrutura nuclear, a classe, entendida como um grupo de alunos que recebe, de forma simultnea, o mesmo ensino. A homogeneidade da turma, em termos etrios e de conhecimentos, exprime um princpio mais geral de homogeneidade que marca a organizao do espao, do tempo, dos saberes, e que representa uma marca distintiva da escola. Uma tipificao dos principais elementos que caracterizam a organizao escolar e uma perspectiva diacrnica sobre a sua evoluo nos dois ltimos sculos permitem pr em evidncia, como faz Perrenoud (2002), por um lado, o modo uniforme e estvel das modalidades organizacionais do trabalho escolar e, por outro lado, verificar como o ncleo central dessa organizao (a tecnologia da classe) tende a instituir-se como algo que no concebvel mudar. As diferenas ou nuances organizacionais, entre diferentes nveis de ensino, diferentes perodos ou diferentes regies no permitem ocultar a universalidade de uma soluo organizacional, claramente aparentada com o modo taylorista de organizar a produo indus-trial. A organizao escolar fundada na classe permite que um professor ensine muitos alunos como se fossem um s (Barroso, 1995), o que, historicamente, tornou possvel a escolarizao em grande escala, mas, ao mesmo tempo, est

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    na origem da indiferena da escola s diferenas dos alunos. A uniformidade de tratamento a regra e a escola funciona como um hospital que desse o mesmo tratamento a todos os pacientes (Perrenoud, 2002, p. 212).

    A dificuldade em ultrapassar esta matriz organizacional da escola, fundada na classe e no ensino simultneo, deriva no apenas da sua comprovada eficcia histrica na construo de uma escola de massas, mas tambm no processo de naturalizao a que foi sujeita e que torna difcil imaginar outros modos de funcionamento. O essencial das crticas dirigidas forma escolar diz respeito, precisamente, subestimao da experincia e do papel central do sujeito na sua prpria aprendizagem, ou seja, remete para lgicas de individualizao, no quadro de uma gramtica organizacional criada para ensinar um aluno mdio. Aqui radicam muitos dos equvocos e fracassos que marcaram as vagas sucessivas de reformas e inovaes dos ltimos 40 anos.

    O crescimento exponencial dos sistemas escolares na segunda metade do sculo XX apenas veio agravar e tornar mais explcito o problema de confrontar a escola com uma crescente heteregoneidade dos seus pblicos, porque se alar-gou a base de recrutamento, se alongaram os percursos escolares e se diferiram as opes por ramos escolares discriminatrios. Esta crescente heteregoneidade conduziu, ainda, a tornar a escola permevel aos problemas sociais que lhe eram exteriores e dos quais se manteve protegida num perodo marcadamente elitista. Como respondeu a escola a esta crescente diversidade de pblicos, uma espcie de doena da heterogeneidade, que est no cerne do que se passou a designar por crise da escola? Da nica maneira que est de acordo com as suas caractersti-cas intrnsecas, ou seja, recriando novas formas de homogeneidade que, muitas vezes em nome do respeito diferena, tendem a juntar em grupo homogneos todos os alunos que se parecem uns com os outros. Estas vrias formas de recriar a homogeneidade incluem frmulas j clssicas como as famosas turmas de re-petentes e um vasto repertrio de frmula e medidas, verificveis em Portugal e em muitos outros pases, em que se incluem muitas inovaes:

    Formas diversas de medidas de apoio, aulas complementares, classes de re-cuperao ou, por exemplo, o estudo acompanhado;4

    4 A rea curricular no disciplinar de estudo acompanhado, transformando-se numa sequncia lectiva, assegurada por um professor a uma turma, permite que alunos com notas positivas e altas nas reas disciplinares possam ser contemplados com um no satisfaz em estudo acompanhado, como pode comprovar-se pela consulta de pautas nas nossas escolas.

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    As experincias dos chamados grupos de nvel, validados por procedimentos tcnicos ou, criados de facto pelos critrios de composio das turmas;

    Diversificao precoce de vias escolares socialmente discriminatrias, incluindo medidas de combate excluso como o caso dos currculos alternativos, ou reabilitando vias profissionalizantes precoces, na perspectiva de restabelecer um elitismo justo;

    Mecanismos de segregao espacial no ordenamento urbano, acompanhadas de prticas de escolha dos alunos pelas escolas que induzem processos de segregao escolar;

    Escolarizao da educao de infncia que, induzindo a deteco precoce de dificuldades de aprendizagem, inicia precocemente a fabricao social do insucesso escolar;5

    Patologizao de dificuldades escolares, lidas como dificuldades de apren-dizagem, e consequente sinalizao de um nmero desproporcionado de crianas, encaminhadas para modalidades especiais de apoio.

    Ora pretender mudar a escola que existe, que no essencial reproduz o modelo herdado do sculo XIX, mantendo as suas invariantes estruturais, no-meadamente a classe, equivale a equacionar um problema de modo a torn-lo irresolvel. Reside aqui, do meu ponto de vista, o ponto essencial do paradoxo que consiste em pugnar por uma escola inclusiva, com base numa sala de aula inclusiva.

    As ambiguidades do paradigma inclusivo

    Se considerarmos que toda aprendizagem um resultado do trabalho de quem aprende e que todos os seres humanos so irredutivelmente diferentes, ento todas as situaes de educao deliberada devero ser consideradas espe-ciais. Tal sentido abrangente retiraria pertinncia luta pela insero de crianas com necessidades educativas especiais nas classes regulares das escolas regulares da sua rea de residncia, bem como existncia de um domnio especializado na educao especial (investigadores, formadores, servios tcnicos de apoio). Pelo contrrio, parece-me lgico admitir que, para alm das crticas mais ou menos radicais que muitos pedagogos sempre exprimiram em relao forma

    5 Numa visita recente a uma IPSS (instituio de utilidade pblica que presta servios de acolhimento de crianas) verifiquei, estupefacto, que crianas em idade pr escolar se encontravam divididas em grupos e espaos diferentes, em funo das suas dificuldades de aprendizagem.

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    e organizao escolares, existe um problema bem delimitado a um pequeno nmero de crianas que se distinguem da maioria e que justifica que se ponha o problema terico e prtico da educao especial. Evidentemente, nenhum destes grupos nem o grande (que corresponde norma), nem o pequeno homogneo, o que conduz a dissociar o debate sobre a educao especial da defesa do direito diferena e da pertinncia de lgicas individualizadas de ensino/aprendizagem.

    A primeira ambiguidade alimentada pelos prprios especialistas na matria: Segundo Miranda Correia se, por um lado, 80% das crianas so capa-zes de aprender sem dificuldades, os restantes 20% tm marcas muitas vezes irreparveis que decorrem das suas lutas dirias pelas aprendizagens (que) so dirias e contnuas, concluindo ser este o mundo das crianas e adolescentes com necessidades especiais (Correia, 2005a, p.3). O mesmo autor, noutro texto, publicado na mesma revista, circunscreve o universo dos alunos com dificulda-des de aprendizagem a nmeros mais razoveis: a percentagem de alunos com Dificuldades de Aprendizagem no sistema escolar portugus ser de cerca de 5 a 10% (p. 13). Apesar desta percentagem ser relativamente baixa, o autor apre-senta, no mesmo texto, o facto de os alunos com dificuldades de aprendizagem serem ignorados como conduzindo a nveis assustadores de insucesso escolar, absentismo e abandono. Esta flutuao, confuso e amlgama de terminologia expressa de uma outra maneira pelo mesmo autor, quando, para justificar a importncia dos servios de educao especial e a insero nas classes regulares das escolas regulares da rea de residncia, define as Necessidades Educativas Especiais como correspondendo a discapacidades dos alunos associando num mesmo grupo o autista, o deficiente mental, o aluno com asma ou infectado pela sida, o que justifica que seja cada vez maior a importncia dos servios de educao especial e se torne imperativo que se integre a educao especial em todos os aspectos da vida escolar (Correia, 2005b, p. 43).

    A distino estabelecida pela Directora dos Servios de Educao Especial6 (Filomena Pereira), entre alunos com necessidades de carcter ligeiro e tempo-rrio que necessitam de apoio por um perodo de tempo limitado e aqueles que apresentam necessidades educativas especiais no contribui para clarificar o problema, mas significativo que, na mesma entrevista, a referida respon-

    6 Entrevista recolhida por Andreia Lobo e publicada na edio especial da revista Educare Hoje, 2005.

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    svel identifique o efeito perverso de um uso abrangente do conceito: O que tem conduzido ora ao encobrimento de problemticas que ficam sem resposta educativa adequada, ora utilizao abusiva do conceito de NEE (p.16). Como reconhece David Rodrigues (2003), a expresso necessidades educativas espe-ciais, que veio substituir-se de deficincia, no conseguiu fugir categoria de rtulo, que no s estigmatiza como contribui para reforar a utopia da homogeneidade. O efeito de estigmatizao que inerente prpria adopo de um rtulo, ganha maior perversidade quanto mais alargada e abusiva for a utilizao desse rtulo.

    Uma segunda ambiguidade da utilizao generalizada e sobreposta das expresses necessidades educativas especiais e dificuldades de aprendizagem a relao que se estabelece ente os atributos individuais dos alunos e fen-menos que a sociologia mostrou, h muito, no serem explicveis por factores individuais. Esta assimilao equivale a ressuscitar a teoria dos dons para ex-plicar fenmenos como o insucesso escolar, cujo carcter massivo e socialmente selectivo um produto histrico e social do crescimento dos sistemas escolares. devido a esta ambiguidade que, numa revista temtica consagrada ao tema das necessidades educativas especiais, se apresenta como um exemplo de boas prticas um processo de combate ao insucesso escolar (Lobo, 2005), numa escola em que 50% do insucesso escolar se deve no identificao dos alunos com dificuldades de aprendizagem e responsabilizao do sistema educativo por essa situao (p. 25). No , portanto, surpreendente que, na mesma linha de raciocnio, uma Escola Secundria da regio de Lisboa (em texto publicado no Notcias da Amadora de 5 de Maio de 2005) possa apresentar-se orgulhosa de um trabalho que, reclamando-se do paradigma da incluso, se explicita desta forma: Aos alunos com maiores dificuldades de aprendizagem ou de condio scio-econmica desfavorecida a escola procurou, desde o incio, oferecer percursos escolares e profissionais alternativos. Tambm no surpreendente que, para responder s necessidades especiais dos alunos de origem cigana, se organizem, em Braga, dois cursos PIEF (Programa Integrado de Educao e Formao) dirigidos a duas turmas de ciganos e a funcionar em duas igrejas evanglicas, frequentadas pela comunidade cigana (conforme noticia o jornal O Pblico, de 12 de Maio de 2005, p. 35).

    Outro efeito perverso da aplicao indiscriminada de apoios a alunos rotulados como apresentando necessidades especiais decorre das prprias modalidades de prestao de apoio e do modo como se combina o factor

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    organizacional com a diviso de trabalho entre os educadores. Uma investigao emprica recente (Martins, 2004) sobre o modo como se processa, na escola e na sala de aula, a construo social das prticas de apoio educativo permite eviden-ciar os vrios constrangimentos e escolhas estratgicas que orientam a aco dos profissionais. O primeiro dilema decorre do duplo constrangimento a que est sujeito o professor que ensina uma turma face dupla exigncia de dar mais aos melhores alunos e simultaneamente fazer progredir os no normais. A investigao confirma, por um lado, a existncia de modalidades de interaco selectiva na sala de aula, por outro lado, uma sinalizao o mais alargada possvel de alunos com dificuldades, a encaminhar para os apoios especiais. A inves-tigao mostra tambm como a integrao do apoio na sala de aula pode dar lugar a substituir uma segregao por fora, por uma segregao por dentro, de carcter espacial e simblico que refora o efeito de estigma:

    Os alunos so ento apoiados ao fundo das salas e separados do funcionamen-to normal da turma e cabe ao professor de apoio trabalhar com os mesmos, enquanto a professora da turma aproveita para avanar com os alunos no rotulados como tendo dificuldades escolares. (p. 343)

    Uma outra escola possvel

    Estou certo de que todos partilhamos o desejo de construir um servio pblico de educao justo, democrtico, que acolha todos, sem discriminao e que no seja gerador, directo, de desigualdades escolares, nem as amplifique ou reproduza ao nvel social. duvidoso que a educao entendida dessa maneira possa ser dissociada de um projecto social tambm ele fundado na igualdade e na justia. A escola e a sociedade que temos no correspondem a estes ideais nem sequer parecem estar a aproximar-se deles. Como no queremos ficar refns de nenhum determinismo, estamos condenados a agir no presente para influenciar a escolha do futuro entre os vrios futuros possveis. Relativamente aos problemas que estive a abordar convosco, minha convico que eles no so resolveis se permanecermos prisioneiros do modelo escolar e no encetarmos uma crtica radical aos fundamentos da escola que conhecemos, que tomamos como natural, o que nos dificulta um exerccio de lucidez sobre a nossa maneira

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    de pensar as nossas prticas e as nossas tentativas de mudana. Por isso, atribuo tanta importncia crtica e clarificao dos conceitos. Eles so ferramentas com as quais lemos e tentamos transformar o mundo.

    No plano da aco imediata, gostaria de trazer para o debate uma noo, retirada de textos de Dufourmantelle e Derrida (1997), que nos pode ajudar a orientar a nossa interveno e a pensar, noutros termos, o problema de uma escola para todos. Refiro-me ao conceito e prtica da hospitalidade. Num sentido pleno, a prtica da hospitalidade corresponderia plena aceitao do outro que, embora sujeito a regras, passaria da condio de estrangeiro con-dio de hspede. Aquele a quem negada a hospitalidade sentir-se- como se definia o famoso compositor Mahler (citado pelo historiador Hobsbawn): Sou aptrida por trs razes: como nativo da Bomia na Astria; como austraco na Alemanha e como judeu no mundo inteiro. Sou um intruso em todo o lado e nunca desejado. Quantas crianas, como alunos, experimentaro na pele este sentimento de serem intrusas e indesejadas. Como tornar hospitaleiras as nossas escolas?

    Na impossibilidade de desenvolver o tema, gostaria de vos falar de um trabalho concreto, bem documentado, que, desde h anos, vem sendo desen-volvido por Mirna Montenegro, em particular com comunidades ciganas, e que teve incio num Centro de Animao Infantil e Comunitria (CAIC), no Bairro da Bela Vista (um bairro particularmente problemtico), em Setbal. Vou dar-lhe a palavra. A citao longa, mas vale a pena:

    (...) nunca como neste CAIC foi to forte a presena da heterogeneidade, no s pela mistura de idades que iam dos 3 aos 16 anos, passando pelos adultos, como tambm pela mistura de hbitos e valores culturais incluindo grupos sociais africanos, timorenses, ciganos e os chamados lusos.

    Para lidar com a constante presena de diferenas to dspares e dos conflitos internos que me provocavam, tive que despir-me de tudo o que me tinham en-sinado na escola de formao inicial e vestir-me, de novo, com o que o dia a dia me ia ensinando.

    (...) resolvi adoptar a postura das gentes do povo que tanta sabedoria de vida tem e sentei-me soleira da porta da sala esperando que os acontecimentos se desenrolassem. Perante o desconhecido, o estranho e o inslito, procurei fazer o que o provrbio Somali nos ensina: antes de me odiar, conhece-me!

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    na maneira como tratamos os alunos que reside a chave do problema e tambm esse o nosso principal territrio de autonomia. Para construir uma escola baseada na hospitalidade, o que precisamos no de mais reformas, nem de mais formao, precisamos, sobretudo, de ter a capacidade de de-saprender para construir alguma coisa de novo. Quando me dirigia de carro, para este local, ouvia uma obra musical de um autor, Ravel, que muito aprecio. Entre outras obras mais conhecidas, ele foi autor de um concerto para a mo esquerda, destinado a alimentar o repertrio de um amigo, pianista, que perdera a mo direita durante a Primeira Guerra Mundial. Poderemos ns transpor esta postura para a relao com os nossos alunos? Ou seja, alm da capacidade de desaprender, estaremos, tambm, disponveis para compor concertos para a mo esquerda para que nenhum aluno se sinta intruso ou indesejado?

    Resumo

    A construo da escola de massas e a exploso escolar coincidem com o

    crescimento exponencial dos alunos ditos com dificuldades de aprendizagem. Esta

    estigmatizao remete para o domnio da patologia individual um fenmeno social que

    selectivo, massivo e precoce. Por outro lado, confunde-o com um outro fenmeno,

    de mbito muito restrito, relacionado com atributos individuais de alunos que apelam

    a um atendimento especfico, sob a forma do que se designa por educao especial.

    Ambos os fenmenos tm vindo a ser lidos luz do conceito de excluso. Neste

    artigo pretende-se, por um lado, criticar a pertinncia do uso generalizado do conceito

    de excluso, bem como, naturalmente, da sua transposio para a realidade educativa e

    escolar, o que est na origem de raciocnios simplistas e de uma oposio redutora entre

    escola exclusiva e escola inclusiva. Pretende-se, por outro lado, esclarecer o efeito

    negativo da associao do tipo amlgama, de um conjunto de conceitos que tm vindo

    a ser objecto de um alargamento abusivo do seu mbito. Refiro-me em particular aos

    conceitos de Educao Especial, Necessidades Educativas Especiais e Dificuldades

    de Aprendizagem.

    Palavras-chaves: dificuldades de aprendizagem; necessidades educativas especiais; escola inclusiva.

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    Resumen

    La construccin de la escuela de masas y la explosin escolar coinciden con el crescimiento exponencial de los alumnos denominados con dificultades de aprendizaje. Esta estigmatizacin nos remite al dominio de la patologa individual un fenmeno social que es selectivo, masivo y precoz. Por otro lado, lo confunde con otro fenmeno de mbito muy restricto, relacionado con atributos individuales de alumnos que necesitan un atendimiento especfico bajo la forma que se denomina educacin especial. Ambos fenmenos han sido interpretados bajo la luz del concepto de exclusin. En este artculo se pretende por un lado criticar la pertinencia del uso generalizado de este concepto de exclusin, as como naturalmente, si su transposicin a la realidad educativa y escolar, est en el origen de raciocinios simplistas y de una oposicin reductora entre escuela exclusiva y escuela inclusiva; por otro lado se pretende aclarar el efecto negativo de la asociacin del tipo amlgama de un conjunto de conceptos que ha devenido a ser objeto de un alargamiento abusivo de su mbi-to. Me refiero en particular a los conceptos de Educacin Especial, Necesidades Educativas Especiales y Dificultades de Aprendizaje.

    Palabras claves: dificultades de aprendizaje; necesidades educativas especiales; escuela inclusiva.

    Abstract

    The growing of school population was followed by an amplification of the number of stu-dents labeled as having learning difficulties. This stigma brings to the context of individual pathology a phenomenon which nature is social. At the same time mix it with a more restrictive idea related to individual characteristcs which call for a specific consideration under the name of special education. Both phenomena have been included under the concept of exclusion. The article intends, for one side, to criticize the generalized use of the concept exclusion, as well as its transposition to the educacional context. The result is a simple and reductive opposition between exclusive school and inclusive school. It has also the intent of clarifyng the negative effects of the application of a group of concepts such as special education, special education needs and learning difficulties. to different contexts.

    Key-words: learning difficulties; special learning difficulties; inclusive school.

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    Recebido em outubro de 2005.Aprovado em dezembro de 2005.

    Rui CanrioProfessor da Universidade de Lisboa

    E-mail: [email protected]