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6 Conclusão Em sua reconstrução da teoria cantoriana dos números transfinitos, Shaughan Lavine enfatizou que a intenção de Cantor, com sua teoria, era a de contar ou bem ordenar os conjuntos infinitos. Tal contar o infinito teria de ser feito de uma forma intuitiva, a ponto que a distinção que há entre números finitos e transfinitos fosse razoavelmente pequena. Sob tal perspectiva, os números transfinitos de Cantor consistem em uma idealização dos números naturais finitos para o âmbito do infinito. A fim de que tenhamos um tratamento aritmético do infinito tão próximo quanto possível da aritmética ordinária dos números finitos, surge a aritmética transfinita de Cantor, com leis e princípios o mais finitistas possível. Lavine nos diz: A teoria original de Cantor não era nem ingênua nem sujeita a paradoxos. Ela cresceu sem remendos de uma única e coerente idéia: conjuntos são coleções que podem ser contadas. Ele tratou as coleções infinitas como se elas fossem finitas, a tal ponto que o mais sensível historiador do trabalho de Cantor, Michael Hallett, escreveu sobre o “finitismo” de Cantor (LAVINE, [1997], p.3). Lavine, na citação acima, remete-se a Michael Hallett e à sua interpretação da teoria de Cantor como finitista. Segundo Hallett, Há dois sentidos em podemos tomar a obra de Cantor como ‘finitista’. Em primeiro lugar, [a teoria de Cantor] expressa uma certa atitude ‘finitista’em relação aos conjuntos (objetos matemáticos), a qual dá unidade a teoria. Claramente, conjuntos são tratados como simples objetos, não importando se são finitos ou infinitos. Em segunda lugar, todos os conjuntos têm [as mesmas propriedades básicas] dos conjuntos finitos (HALLETT, [1997], p.32). Hallett chama a atenção para dois aspectos essenciais do pensamento de Cantor que autoriza o uso do adjetivo finitista para designá-lo. Primeiramente, Cantor não faz distinção entre finito e infinito quanto ao caráter objetual dos conjuntos. Tanto os conjuntos finitos ou infinitos são objetos determinados, passíveis de ser tratados matematicamente. Dito de outra maneira, os conjuntos finitos ou infinitos, em Cantor, são tratados como objetos completos, atuais. Eis então um dos pontos mais originais e controversos da teoria cantoriana: os conjuntos

Cantor e Os Transfinitos

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  • 6 Concluso

    Em sua reconstruo da teoria cantoriana dos nmeros transfinitos, Shaughan Lavine enfatizou que a inteno de Cantor, com sua teoria, era a de contar ou bem ordenar os conjuntos infinitos. Tal contar o infinito teria de ser feito de uma forma intuitiva, a ponto que a distino que h entre nmeros finitos e transfinitos fosse razoavelmente pequena. Sob tal perspectiva, os nmeros transfinitos de Cantor consistem em uma idealizao dos nmeros naturais finitos para o mbito do infinito. A fim de que tenhamos um tratamento aritmtico do infinito to prximo quanto possvel da aritmtica ordinria dos nmeros finitos, surge a aritmtica transfinita de Cantor, com leis e princpios o mais finitistas possvel. Lavine nos diz:

    A teoria original de Cantor no era nem ingnua nem sujeita a paradoxos. Ela cresceu sem remendos de uma nica e coerente idia: conjuntos so colees que podem ser contadas. Ele tratou as colees infinitas como se elas fossem finitas, a tal ponto que o mais sensvel historiador do trabalho de Cantor, Michael Hallett, escreveu sobre o finitismo de Cantor (LAVINE, [1997], p.3).

    Lavine, na citao acima, remete-se a Michael Hallett e sua interpretao da teoria de Cantor como finitista. Segundo Hallett, H dois sentidos em podemos tomar a obra de Cantor como finitista. Em primeiro

    lugar, [a teoria de Cantor] expressa uma certa atitude finitistaem relao aos conjuntos (objetos matemticos), a qual d unidade a teoria. Claramente, conjuntos so tratados como simples objetos, no importando se so finitos ou infinitos. Em segunda lugar, todos os conjuntos tm [as mesmas propriedades bsicas] dos conjuntos finitos (HALLETT, [1997], p.32).

    Hallett chama a ateno para dois aspectos essenciais do pensamento de Cantor que autoriza o uso do adjetivo finitista para design-lo. Primeiramente, Cantor no faz distino entre finito e infinito quanto ao carter objetual dos conjuntos. Tanto os conjuntos finitos ou infinitos so objetos determinados, passveis de ser tratados matematicamente. Dito de outra maneira, os conjuntos finitos ou infinitos, em Cantor, so tratados como objetos completos, atuais. Eis ento um dos pontos mais originais e controversos da teoria cantoriana: os conjuntos

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    infinitos podem ser intudos como um todo completo. Em segundo lugar, Hallett acentua que o infinito em Cantor tem as mesmas propriedades bsicas do finito que se quer dizer com isto que, para Cantor, os conjuntos finitos e infinitos so aumentveis, no sentido de que sempre admitem que elementos novos possam ser adicionados a eles, formando-se conjuntos maiores. A possibilidade de aumento como propriedade essencial dos conjuntos finitos claramente expressa por Cantor em uma carta a Hilbert de 2 de outubro de 1897. Nesta carta, Cantor diz quais seriam, em seu entendimento, os axiomas fundamentais da aritmtica finita: [Dois] axiomas so fundamentos necessrios e suficientes para [...] a teoria dos

    nmeros finitos: I. Existem coisas (isto , objetos de nosso pensamento). (Sem este axioma, o

    conceito de 1 seria impossvel. [...]. II. Se V uma multiplicidade consistente de coisas e d uma coisa no includa

    como parte de V, ento a multiplicidade V + d uma multiplicidade tambm consistente.

    Estes dois axiomas fornecem-me a seqncia ilimitada de nmeros cardinais 1,2,3,4,... e todas as suas leis podem ser provadas sem o auxlio de axiomas adicionais

    (CANTOR, [2000], p.930).

    Os axiomas de Cantor para a aritmtica dos cardinais finitos so notveis pela simplicidade. Para que a aritmtica do finito surja em todo o seu alcance, Cantor acredita que somente basta a tese de que h objetos de nosso pensamento, assim como o princpio de que os conjuntos finitos so consistentemente aumentveis.Entretanto, por trs destes dois axiomas to simples, h um compromisso implcito com os nmeros naturais em sentido ordinal, vistos como objetos propiciadores da prpria boa ordem dos cardinais finitos. Se analisarmos o axioma I, v-se que ele afirma que h uma correspondncia entre qualquer objeto que tomemos arbitrariamente em nosso pensamento e o nmero 1, a tal ponto que tal objeto pode ser indexado ou marcado com o ndice 1; sem a especificao de um primeiro objeto, no h como surgir os cardinais sucessivos, compostos de dois, trs,...,etc, objetos. O segundo axioma de Cantor diz que, sendo dado um conjunto consistentemente reunido em um todo finito de unidades, ento podemos adicionar mais um objeto neste conjunto, formando-se um novo conjunto

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    consistentemente reunido de unidades1. O que est sendo dito aqui, por meio da idia de multiplicidade consistente, que dado um conjunto com n objetos, sempre possvel estender tal conjunto pela introduo de (n + 1) simo objeto, distinto dos demais objetos presentes no conjunto; a totalidade dos nmeros ordinais finitos infindvel, o que implica que o processo de formao de conjuntos a partir de uma bijeo com tais ordinais ilimitado. Neste sentido, pode-se afirmar que o enfoque cantoriano, mesmo que implicitamente, privilegia os ordinais em detrimento dos cardinais. O conjunto dos nmeros naturais, condio de boa ordenao de qualquer conjunto finito, foi detidamente estudado por Dedekind, que percebeu que o fundamental para a caracterizao precisa dos naturais precisar condies sobre o ato de associar objetos. Para Dedekind, o pensamento humano dispe da faculdade de associar objetos: dado um objeto qualquer a, posso faz-lo corresponder a outro objeto b. O ato de associar objetos traduzido na matemtica pelo conceito de funo ou transformao. Determinar as condies que devem ser impostas ao ato de associar objetos a fim de que esta associao identifique-se com a contagem dos conjuntos finitos foi a tarefa a que se props Dedekind no Was sind und was sollen die Zahlen? Traduzido matematicamente, o ato contar

    uma funo similar (para quaisquer a e b, se a b, ento (a) (b)), definida em um conjunto S, de tal forma que (S) S e que exista somente um elemento de S que no pertence ao conjunto-imagem de S isto , (S). Estas definies, por si ss, j determinam que o conjunto S tem de ser infinito; isto implica que o ato de contar no tem fim. Mas falta ainda garantir que o ato de contar se limite a contar as colees finitas, isto , que qualquer subconjunto de S seja finito. Para tanto, Dedekind imps a condio de que S = 0, isto , S o menor conjunto ao qual pertence e no qual (S) S. Se tudo isto satisfeito, S denominado um sistema simplesmente infinito. Mas no s isto. necessrio ainda demonstrar que existem sistemas simplesmente infinitos. Dedekind faz isto utilizando-se da totalidade de todas as

    1 Em uma carta a Dedekind de 28 de agosto de 1899, Cantor afirma que mesmo para as

    multiplicidades finitas, uma prova de sua consistncia no pode ser dada. Em outras palavras, a consistncia das multiplicidades uma verdade simples e que no se demonstra; o O axioma da aritmtica (no velho sentido da palavra [axioma])(CANTOR, ibid, p.937). O axioma de que as multiplicidades finitas so consistentes , de fato, um corolrio do princpio de que ser conjunto ser contvel, no caso em que a contagem restringe-se ao que finito.

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    coisas pensveis, demonstrando, de uma forma polmica, que existe um sistema simplesmente infinito como subconjunto da classe das coisas pensveis. Este sistema simplesmente infinito que faz parte do rol dos pensamentos, visto abstratamente, se identifica com o conjunto dos nmeros naturais. Por conseguinte, os nmeros naturais so um domnio a priori de objetos, pertencendo razo humana na qualidade de responsveis pela contagem dos conjuntos finitos: contar um conjunto finito nada mais seria do que indexar os seus elementos com os nmeros sucessivos, iniciando-se tal processo com o nmero 1. Em Dedekind, o ato de contar fica restrito ao que finito, sendo que o domnio dos nmeros naturais o expediente racional elaborao dos conjuntos finitos. Fica ento a pergunta: a funo sucessor, como definida por Dedekind, de fato serve a contento para a ordenar os conjuntos finitos? No poderia haver um nmero finito que tivesse um comportamento desviante do que esperado para um nmero finito, isto , um nmero x tal que o sucessor de x fosse igual a x? Para demonstrar que isto nunca o caso, Dedekind demonstra no Was sind und was sollen die Zahlen? Um teorema que garante que todo nmero finito sempre distinto do seu sucessor (DEDEKIND, ibid, p.79). A demonstrao de Dedekind se faz pelo princpio de induo completa2. O princpio de induo completa afirma que, se uma propriedade qualquer vale para o nmero 1 e se da afirmao de que tal propriedade vale para o nmero n, inferimos que ela tambm vale para o sucessor de n, ento todos os nmeros tm a propriedade em questo. Partindo deste princpio, que em Dedekind um teorema geral da teoria das cadeias, Dedekind primeiramente verifica que para n = 1, a proposio que se quer

    demonstrar se verifica, posto que 1 (N). Admitindo-se um nmero k, tal que (k) k, ento, uma vez que similar, ento para nmeros distintos a e b, temos que (a) (b). Como (k) k, ento ((k)) (k). Ento, por induo completa, prova-se que todo nmero natural finito diferente de seu sucessor.

    2 O princpio de induo completa em Dedekind tem o estatuto de um teorema. A induo

    completa o teorema 59 do Was sind und was sollen die Zahlen?, sendo uma condio que assegura que uma cadeia A0 esteja contida em um sistema S. Segundo Dedekind, para que tal incluso ocorra, suficiente mostrar que (DEDEKIND, ibid, p.61).

    a) A S b) Para todo x, se x {A0, S}, ento (x) S.

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    Coube a Cantor com seus nmeros ordinais transfinitos estender a contagem para os domnios infinitos. Assim como na anlise de Dedekind, o pensamento humano dispe dos nmeros inteiros para contar o finito, Cantor postula a seqncia W de todos os ordinais como acervo de nmeros que contam as colees infinitas. Tais nmeros se dispem na mente de Deus, e com eles que o intelecto divino pode bem ordenar o infinito. Entretanto, os nmeros ordinais transfinitos so introduzidos com as propriedades mais prximas possveis das propriedades dos nmeros finitos. Portanto, tambm em Cantor h um compromisso com a contagem, por assim dizer, intuitiva dos conjuntos. Na teoria dos nmeros transfinitos, o mesmo ato de contar intuitivo adaptado s exigncias do infinito; admite-se mais de um elemento sem antecessor imediato, justamente para indicar o ato intelectivo de Deus de intuir como um todo completo um nmero infinito de elementos. Mas h um elemento distintivo do pensamento de Cantor: o princpio de boa ordem. Para os conjuntos finitos, o princpio de boa ordem reduz-se a um teorema a cuja demonstrao so suficientes as noes de sucessor e de cadeia.3. Entretanto, somente com tais noes, no se demonstra o princpio em geral para quaisquer conjuntos. O que Cantor fez para tornar o infinito o mais parecido possvel com o finito foi expandir a boa ordenao - que para os nmeros naturais uma conseqncia lgica do comportamento da funo sucessor - para os conjuntos infinitos. O princpio de boa ordem, em Cantor, fruto da prpria perspectiva teolgica que perpassa a obra de Cantor: os conjuntos, quaisquer que estes sejam, esto bem ordenados no pensamento de Deus e, mesmo que a razo humana no compreenda como se d tal boa ordenao, ela existe desde sempre na mente divina. Apesar desta nfase no princpio de boa ordem no se encontrar em Dedekind, h um ncleo comum nas abordagens cantoriana e dedekindiana sobre os nmeros inteiros finitos, para Dedekind; transfinitos, para Cantor - que vale a pena realar. Assim como Dedekind, Cantor introduziu em sua teoria dos nmeros transfinitos a funo sucessor como fundamental para a compreenso dos nmeros

    3 O princpio de boa ordenao, para os nmeros finitos no contexto dedekindiano, equivalente

    ao teorema de que, dado qualquer subconjunto A dos nmeros naturais, existe um m A, tal que, para todo x A, ento x0 m0 . No Was sind und was sollen die Zahlen?, o princpio da boa ordem aparece como o teorema 96 (DEDEKIND, ibid, p.74-75).

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    transfinitos. As mesmas propriedades bsicas que a funo sucessor tem na abordagem de Dedekind sobre os nmeros naturais preserva-se em Cantor. De fato, como se viu em Dedekind, so as propriedades bsicas da funo sucessor que garantem a infinitude dos nmeros naturais. Da mesma forma, por meio destas mesmas propriedades que se tem a garantia da infinitude de qualquer segmento determinado por um ordinal limite. Mas o que mais importante: tambm em Cantor a funo sucessor se comporta de maneira intuitiva, isto , todo nmero transfinito distinto de seu sucessor. Em Dedekind, isto um teorema, como aqui foi mostrado; em Cantor, isto um postulado tacito. Para os nmeros finitos, esta propriedade bsica da funo sucessor intuitiva, isto , quando contamos uma coleo finita, de se esperar que o (n + 1)-simo elemento contado seja distinto de todos os n elementos contados anteriormente. Dedekind, com seu aguado esprito de lgico4, demonstrou que tal expectativa de fato se realiza na aritmtica dos nmeros finitos por fora de uma demonstrao que tem por base o princpio de induo completa. Mas para os conjuntos infinitos, tal comportamento intuitivo ou normal da funo poderia no se dar. No entanto, Cantor estendeu este comportamento intuitivo da funo sucessor para o infinito, e neste sentido que sua teoria dos nmeros transfinitos se revela essencialmente finitista, como bem observou Hallett. Este finitismo de Cantor explica-se quando temos em vista que os nmeros transfinitos ordinais so o expediente para contar os conjuntos infinitos, sendo que estes, tal qual os conjuntos finitos, podem ser indefinidamente aumentados; ao se postular um conjunto que no pode ser aumentado como a totalidade de todos os conjuntos, ou a totalidade de todas as coisas pensveis - a teoria de Cantor convive com a contradio, j que ela no foi elaborada para lidar com conjuntos que no podem aumentar de tamanho. Multiplicidades absolutamente infinitas pressupem o esgotamento da capacidade enumeradora de Deus, o que, para Cantor, s pode levar a paradoxos. Devido as semelhanas entre os pensamentos de Dedekind e de Cantor, torna-se vivel uma interpretao dos conceitos cantorianos na teoria de Dedekind sobre os nmeros naturais Quando se faz tal interpretao, fica claro o compromisso de

    4 Este aguado esprito de lgico em Dedekind superlativamente expresso na mxima que inicia

    o prefcio da primeira edio do Was sind und was sollen die Zahlen?, de 1888: Na cincia, tudo que provvel no deve ser aceito sem uma prova (DEDEKIND, ibid, p.31).

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    Cantor com aspectos intuitivos do ato de contar, aspectos estes que so derivados das relaes existentes entre os conjuntos finitos. A prpria contradio a que se chega na teoria de Cantor quando se postula a compleio de todos os ordinais, uma vez traduzida para o universo de conceitos dedekindianos, revela o seu carter essencial: no possvel, em Cantor, concebermos um conjunto que no possa ser ordinalmente aumentado pela funo sucessor. Em sntese, o finitismo de Cantor, mencionado por Hallett, torna-se bem mais claro quando o conceito de nmero ordinal transfinito interpretado, dentro do que possvel, como uma extenso dos nmeros naturais, tal como estes foram definidos por Dedekind.

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