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cap. I D Ferido por todo o corpo, um velho alto, de faces esbranquiçadas, barba e cabelos compridos e cor de fogo, vestido com um manto negro, se apressa para terminar a travessia do longo deserto de Tamuz. Está muito fraco, o peso do saco cinzento que traz nas costas e do denso cajado retorcido facilitam a aproximação de seu perseguidor. O ancião quase pode ouvi-lo, agora deve estar a menos de meio quilômetro de distância. À sua frente, em direção ao sul, uma larga planície o separa de Savedra. O povoa- do esquecido por Deus é circundado por uma formação rochosa repleta de grutas, Zarel pretende esconder-se lá. Já na planície, está a menos de uma hora das cavernas quando estaca. – Maldição! – arquejou. – Ele vai me alcançar em poucos instantes. Não há outra saída, preciso concentrar o resto das forças naquilo. Na escura noite de agosto, apenas os grilos se faziam ouvir. O ar gelado entrava sofregamente na garganta de Zarel que, sob o céu repleto de estrelas, sentou na relva, descansou o cajado sobre as pernas cruzadas e respirou fundo. De olhos cerrados recitou algo em uma língua estranha. Amicus certus in re incerta cernitur! Devagar, uma energia quente envolveu o ar ao seu redor. Pequenas partículas de poeira ergueram-se brilhantes sobre a grama fresca fazendo com que até os insetos silenciassem. Amicus certus in re incerta cernitur! Seus longos e amarfanhados cabelos ergueram-se como se soprados por uma brisa vinda do solo. Zarel entrou em transe absoluto; ele próprio começou a emitir uma luz prateada crescente. Antes de terminar o feitiço, calculou que o perseguidor deveria estar à distância de uma flechada. 01 Fuga

cap. I DFuga€¦ · transformar em um poderoso chacal. Zarel mirou-o de cima para baixo e bateu o cajado firme no chão. – Jamais permitirei que o leve – decretou. Sua voz reverberou

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Page 1: cap. I DFuga€¦ · transformar em um poderoso chacal. Zarel mirou-o de cima para baixo e bateu o cajado firme no chão. – Jamais permitirei que o leve – decretou. Sua voz reverberou

cap. I

DFerido por todo o corpo, um velho alto, de faces esbranquiçadas, barba e cabelos

compridos e cor de fogo, vestido com um manto negro, se apressa para terminar a

travessia do longo deserto de Tamuz. Está muito fraco, o peso do saco cinzento

que traz nas costas e do denso cajado retorcido facilitam a aproximação de seu

perseguidor. O ancião quase pode ouvi-lo, agora deve estar a menos de meio

quilômetro de distância.

À sua frente, em direção ao sul, uma larga planície o separa de Savedra. O povoa-

do esquecido por Deus é circundado por uma formação rochosa repleta de grutas,

Zarel pretende esconder-se lá.

Já na planície, está a menos de uma hora das cavernas quando estaca.

– Maldição! – arquejou. – Ele vai me alcançar em poucos instantes. Não há outra

saída, preciso concentrar o resto das forças naquilo.

Na escura noite de agosto, apenas os grilos se faziam ouvir. O ar gelado entrava

sofregamente na garganta de Zarel que, sob o céu repleto de estrelas, sentou na

relva, descansou o cajado sobre as pernas cruzadas e respirou fundo. De olhos

cerrados recitou algo em uma língua estranha.

Amicus certus in re incerta cernitur!

Devagar, uma energia quente envolveu o ar ao seu redor. Pequenas partículas de

poeira ergueram-se brilhantes sobre a grama fresca fazendo com que até os

insetos silenciassem.

Amicus certus in re incerta cernitur!

Seus longos e amarfanhados cabelos ergueram-se como se soprados por

uma brisa vinda do solo. Zarel entrou em transe absoluto; ele próprio

começou a emitir uma luz prateada crescente. Antes de terminar o feitiço,

calculou que o perseguidor deveria estar à distância de uma flechada.

01

Fuga

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Voltou a se concentrar.

AMICUS CERTUS IN RE INCERTA CERNITUR!

Um intenso flash iluminou a noite provocando um ruído surdo.

Fzzzzzzzzzzzzzzz...

Uma boa quantidade de energia abandonou o ancião, que estremeceu. Estava no limite,

se o feitiço falhasse, a morte era coisa certa. De pé, livrou-se do saco, virou de frente para

o deserto, de onde vinha o inimigo, sacudiu a poeira do longo manto; cansado, escorou-

se outra vez no cajado para esperar.

Poucos imaginariam tal cena, pensou ele. O grande e temido Zarel estava quase sem

forças, intimidado por um oponente muito mais fraco e inexperiente, o qual, até pouco

tempo, cumpria até a menor de suas ordens. Agora, entretanto, isso de nada serviria,

seria preciso usar a inteligência e contar com a sorte para sobreviver e, quem sabe,

recomeçar outra vez a jornada.

Não demorou muito para o animal aparecer. Era um cão selvagem marrom-sujo muito

magro, o pêlo era grosso, os dentes fortes. Ainda possuía trejeitos desajeitados de

filhote. O rosto, onde havia um olhar de garoto, mostrava certa ingenuidade. Aliviado por

ter sido perseguido somente por aquela criança, e não um oponente mais experiente,

Zarel planejou uma estratégia para ganhar tempo até que o encanto conjurado a pouco

surtisse efeito.

No negror da noite, sua grande estatura impunha respeito, além disso, tal como nos

animais venenosos, a combinação do vermelho-sangue, do seu cabelo e barba, com o

negror do manto, desenhavam nele uma figura perigosa.

– O que pretendes jovem Ojibe? – indagou Zarel. – Sabes que não tem vocação para a

carnificina como teu pai, mesmo assim tens me perseguido implacavelmente nos

últimos três dias. Deixe de bobagens, parta agora e não lhe farei mal algum.

Ao ouvir a ameaça, o cão instintivamente recuou e encolheu levemente a cauda. Aquela

voz sonora que tantas vezes o tinha imposto castigos violentos sem motivo, aquela voz

ardilosa de quem vê através das fraquezas de todos, aquela voz retumbante que

emanava auto-suficiência, era para ele sinônimo de poder. Ojibe estava acostumado a

tremer só de lembrar daquele som. Mas dessa vez, a voz tinha algo diferente. Notou que

o velho tremia levemente ao pronunciar as palavras e trazia o rosto pálido, como se

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estivesse prestes a desmaiar.

– O arco – começou num grunhido –, entregue-me e mentirei a todos que você está

morto, seria nosso segredo.

Rodeando o ancião a uma distância considerável, o cão tentava descobrir algo que o

ajudasse a combatê-lo. Ojibe, embora contasse com uma determinação incomum, era

jovem e afobado. Além disso, como todos os homens que adquirem o poder da

transformação animal, almejava evoluir ao próximo nível, e tal como o pai, se

transformar em um poderoso chacal.

Zarel mirou-o de cima para baixo e bateu o cajado firme no chão.

– Jamais permitirei que o leve – decretou.

Sua voz reverberou grave pela noite assustando uma coruja amarelada que voava ali

perto.

Após estudar o velho de novo, Ojibe ainda continuava indeciso. Por sua vez, Zarel notou

que a luz prateada ainda não acendera na testa do adversário. Enquanto isso não

acontecesse poderia manter as esperanças de escapar.

– Isso significa que um de nós ficará para sempre nesta planície – falou Ojibe. – Para o

seu próprio bem, espero que tenha valido a pena abdicar dos poderes de demônio. Ao

que parece, sua transformação custou caro. De minha parte, se morrer aqui, honrarei o

nome de meu pai, que, aliás, deve nos alcançar em algumas horas.

Os grandes olhos escuros traíram Zarel por um segundo. Há muito tempo não tinha

medo, estava tão desacostumado a isso que agora padecia para mascarar o pavor que

lhe transbordava incontido.

Percebendo a hesitação, Ojibe resolveu avançar. Cravou as garras no chão, e de um

único impulso lançou-se ao ataque. Corria de um lado ao outro com grande agilidade.

Tentava arranjar uma brecha onde passar a guarda de Zarel sem sofrer o peso do cajado

ou ser alvo de uma magia mortal. Mas o cajado o afastava sobre a ameaça de golpe

justamente quando estava prestes a alcançar o corpo do ancião.

Ficaram longos dez minutos assim, sem que um conseguisse ferir o outro. Em dado

momento, Ojibe, que tinha vantagem por ser mais jovem, passou a guarda de Zarel e

esteve prestes a desfechar-lhe uma terrível mordida. Porém, o ancião mostrou bom

reflexo ao bater-lhe com o cajado na cabeça, que instantaneamente abriu uma pequena

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vertente de sangue escuro.

O cão afastou-se um pouco. Zonzo, verificou a extensão do dano. A cabeça doía muito.

Apesar de o osso estar visivelmente fraturado, ainda podia lutar. Incrível, estava mesmo

vivo depois de receber o golpe de Zarel!

A uma distância segura deste, desatou a rir prazerosamente. Era aquela pura

gargalhada comum ao adolescente que, apesar de estar a meio caminho de ser adulto,

ainda conserva o frescor da infância.

– Há, há, há! você está fraco, velho – zombou. – Em outra situação o golpe teria acabado

comigo. Não me surpreenderia se você estivesse incapaz até mesmo de lançar feitiços.

– Esca canis – recitou Zarel.

Uma pequena circunferência vermelha piscou e desapareceu no chão em torno do

mago. “Aconteceu muito rápido para ter sido um feitiço poderoso”, pensou Ojibe, cuja

sagacidade era grande apesar da juventude.

– Agora, cão miserável – disse Zarel quase desfalecendo –, ouse atravessar este

perímetro e vai sentir o sangue entrar em combustão e queimá-lo vivo!

É verdade que Zarel fazia coisas horríveis aos seus subordinados. Às vezes, por pura

diversão, passava horas torturando o próprio Ojibe. Nessas ocasiões tinha a capacidade

de dizer que aquilo era para que ficasse mais forte e se transformasse logo em chacal

como tanto queria.

– Hoje, não – pensou o cão. – Dessa vez ele vai pagar. Está fraco e amedrontado, é a

chance perfeita.

Certo de que o velho blefava, Ojibe engoliu em seco e lançou novo ataque. Dessa vez

Zarel estava cansado demais até mesmo para usar o cajado, a muito custo mantinha-se

em pé. Reagiu tarde demais a entrada do inimigo no perímetro. Depois, tudo aconteceu

rápido. Primeiro, resultado do encantamento recém lançado, minúsculos pontinhos

vermelhos foram de encontro ao corpo de Ojibe; não se importando com o que pudesse

lhe acontecer, o cão afobado apenas continuou. Leve e ágil, cravou os dentes fundo na

coxa esquerda de Zarel deixando-o derrubado no chão.

Um forte comichão quente por todo o corpo, de certo causado pela magia que protegia o

círculo, fez com que Ojibe estremecesse. E, embora aquele ferimento que infligia ao

velho tivesse sido muito sonhado, se viu obrigado a desistir da mordida para cuidar de si.

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– Ahhhh! – ganiu. – O que você fez comigo? Por favor, não me mate Zarel, por favor. Me

liberte do feitiço.

Apesar do forte sangramento na perna, o ancião ainda procurava manter o controle da

situação. O cão estava no chão se contorcendo de agonia. No pêlo castanho fervilhavam

milhares de pontinhos vermelhos que se mexiam o tempo todo. Ojibe rolava no chão, se

mordia, uivava, parecia louco.

– Parta agora e prometo que o liberarei do feitiço – ofegou Zarel.

O cão, indeciso, refletiu: poderia finalmente concluir sua transformação, conquistar o

arco e ganhar o orgulho do pai. Porém, a morte por combustão sanguínea não era uma

ideia que o agradasse. Melhor mesmo seria esperar a chegada de Féron para atacar

novamente em outra oportunidade.

– Eu aceito, mas, por favor, faça isso parar. Você agora é um mago. Magos devem ser

bons, não é?! Não me torture mais, parece que estou sendo devorado!

Outra vez o medo estampou-se na fisionomia do ancião e outra vez o cão percebeu.

Quando Ojibe disse devorado, Zarel piscou duas vezes. O cão percebeu. Aliás, havia algo

estranho, não era propriamente o sangue que estava queimando, mas a pele. Será

que...?

– Espere! – urrou Ojibe. – Você me colocou sarna-rubra, não é, maldito mentiroso?

Admita, vamos, já descobri tudo.

Um brilho prateado surgiu-lhe na cabeça intenso como a raiva que sentia. Agora tudo

estava perdido. O mago sabia que a marca só aparecia em um transformado na hora de

sua evolução e que, para chegar a chacal, um cão selvagem precisava executar um ato

de carnificina.

– Eu juro, você nunca mais irá me fazer de idiota novamente – prometeu Ojibe.

Era o fim. O ancião sentiu o corpo no limite, prestes a desmaiar. Ainda pôde ver Ojibe se

levantar e lentamente caminhar até ele. Se coçava o tempo todo, é verdade, mas isso

não evitaria o ataque. Teve certeza de que dessa vez a mordida acertaria o pescoço. Pelo

menos seria rápido, tudo terminaria em alguns segundos, pensou. Então suas têmporas

latejaram pela perda de sangue na perna e ele desfaleceu.

A luz aumentava na testa do cão enquanto avançava raivoso através da escuridão. Uma

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runa antiga refulgia nele, logo Ojibe seria forte como o pai.

Se estivesse em si, o mago teria visto isto, e teria notado um cavalo de velocidade

surgindo atrás do cão para defendê-lo. Era de um negro profundo, esguio, tinha boa

estatura e grande agilidade. Apesar de a força bruta não ser exatamente a principal

característica dos cavalos de velocidade, estes possuíam um coice considerável.

Por outro lado, o cão estava irado demais para perceber o novo oponente. Assim, o

cavalo aproveitou a escuridão, aproximou-se de surpresa e desferiu-lhe um golpe com a

pata dianteira. Certamente Ojibe não morreria tão fácil. Faltava aos cavalos de

velocidade força suficiente para matar de um único coice, mas quis o destino que o

casco atingisse o crânio no mesmo lugar antes enfraquecido pelo golpe de Zarel.

Ojibe tombou agonizante. Naquele instante, seu cérebro, a despeito do corpo,

funcionava mais rápido que nunca. Revisitou a vida difícil de menino de rua nas cidades

do reino. Precisava mudar muito, roubava para sobreviver e isso requeria estar em

constante movimento para que não fosse reconhecido.

Lembrou do encontro com seu pai, Féron, a família que sempre quis. A vida difícil sob as

ordens dela e de Zarel. As torturas, a promessa que fez de se tornar forte, as mortes –

tantas mortes.

Repassou muitos outros acontecimentos. Relembrou, por fim, uma tarde ensolarada em

que viu pela primeira e única vez, durante uma caçada, o sorriso riscar o rosto bruto de

seu pai por um instante. Afinal, tudo que fazia, era de certa forma por ele, ou antes, para

ser como ele.

– Valeu a pena – concluiu Ojibe. – Valeu, sim.

Antes de morrer, o brilho da runa em sua testa inundou-lhe todo o corpo numa espécie

de lençol de luz. Pouco a pouco, os traços humanos tornaram-se evidentes até sua

fisionomia mudar por completo. Ao fim da transformação já não era mais um cão

selvagem, mas sim um jovem de traços afoitos, rosto corajoso, braços e pernas repletos

de pequenas escoriações e hematomas. Aparentava 16 anos, embora algo no rosto

demonstrasse que precocemente tinha sido apresentado às agruras da vida.

– Pai... – disse debilmente o rapaz nu. – Escolho ser como o senhor.

Encolhido na relva fresca, suspirou. Atendendo-lhe o desejo, a magia voltou a operar;

uma última vez a luz cobriu o corpo do adolescente como um lençol.

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O cavalo de velocidade observava o rito aturdido, não entendia de fato o que estava

acontecendo, entretanto, sabia pelo instinto que era uma ocasião muito especial. E

triste. Único espectador da insólita cena, chorou grossas lágrimas que penetraram o

solo.

De volta a si, Zarel pôde observar o ato final da transformação que Ojibe tanto desejava.

– Seu tolo – estremeceu sem conter as lágrimas. – Não tinha de ser assim, Féron

precisava de você para libertar-se do ódio. Agora nada vai deter a fúria dentro dele,

acumularei a culpa de outra vida perdida em vão.

A luz abandonou o rapaz por completo. Em seu lugar estava um vigoroso animal cinzento

que, se alguém passasse por ali, diria estar dormindo. Possuía as orelhas astutas dos

chacais, animais guiados pelo ódio, mas os olhos e a cauda eram de lobo selvagem, que

indubitavelmente são bons e protetores.

– Parece que nem ao tornar-se chacal conseguiste ser verdadeiramente mal, menino –

falou um pesaroso Zarel. – Que os deuses o protejam em sua nova jornada.

Escorado no esplêndido cavalo negro que ao seu lado continuava chorando, Zarel

ergueu-se. Acariciou o animal com gratidão. Viu que era de fato um bicho selvagem, e

não um homem transformado. Quando emitiu o chamado antes da chegada de Ojibe, ao

usar o resto das forças, não sabia se o pedido de socorro seria atendido ou mesmo quem

o ouviria.

– O destino teima em manter-me vivo para saldar as dívidas que acumulei nesse mundo

– comentou consigo.

– E você, meu amigo – disse ao montar –, prevejo que sua coragem terá uma

importância fundamental na libertação do reino. Te chamarei de Bizet, pelas lágrimas

sinceras que derramas.

***

Naquela madrugada, no interior de uma das altas grutas que circundam Savedra, Zarel,

cuja perna já estava devidamente enfaixada, meditava em frente a uma cálida chama

amarelada. Sua respiração era lenta, o rosto branco estava impassível. Próximo ao

grande saco cinzento do ancião, Bizet procurava impaciente alguma planta para aplacar

a fome. Alheio à tudo que acontecia, um estranho diálogo tomava a atenção de Zarel no

interior de seu espírito.

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– Velho burro! – dizia um enfurecido demônio-vermelho.

Sua pele tinha o mesmo tom de sangue da barba do mago, era careca, ossudo nos

ombros e balançava a longa calda cabeluda como o faria um gato selvagem enjaulado.

As pernas de bode e os pequenos chifres brancos davam-lhe um toque nada amistoso.

– Por que dividir nosso poder agora que estávamos tão fortes! – disparou. –Não

precisamos desse, desse... – parou de andar por um instante e questionou Zarel. –

Afinal, o que diabos é aquilo?!

Flutuando ali perto, uma espécie de criança parecia não se importar com o que era dito a

seu respeito. Possuía asas de compridas penas brancas e cabelos ruivos até as orelhas

que eram tão embaraçados quanto os de Zarel. A face trazia a candidez dos doze anos,

mas os olhos, pretos e profundos, transbordavam uma sabedoria misteriosa. Estava nu,

e embora não fosse possível ver-lhe o sexo, a falta de seios demonstrava ser um menino.

– Aquilo – começou Zarel – é o seu antípoda. O oposto que trouxe equilíbrio ao nosso

poder. Por acaso não estarias com medo, estarias diabinho?

– Medo?

– Sim.

– Eu?

– Exato.

– Absolutamente! – respondeu por fim o demônio.

Sem jamais olhar ou falar diretamente com o novo companheiro, o demônio andava

surtado em frente ao ancião, que, por sua vez, só tinha olhos para o menino.

– Estávamos muito bem sem ele – disse o demônio. – O ódio fluía livre e aumentava

nosso poder a cada dia. Éramos invencíveis! E agora, Zarel, olhe para si próprio! Você

quase nos matou para despertar aquele guri e o que ganhamos? Estamos um trapo, isso

sim. Até mesmo o imbecil do Ojibe pôde nos ferir...

De repente, o demônio empalideceu. À sua frente, mirando-o direto nos olhos,

materializou-se o menino-anjo. Ao mesmo tempo, Zarel sentia o medo do demônio e a

severidade do menino. Era óbvio, pensou, os dois são partes de meu espírito.

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– Já é findo o tempo da escuridão – decretou a criança. – A partir de agora, nosso

objetivo será proteger seres puros como Ojibe. Não haverá mais sangue maculando

nossas mãos.

Voltou-se para Zarel com serenidade.

– Velho – prosseguiu –, começaremos a saldar nossas dívidas. Precisamos entregar a

arma, como você mesmo previu.

– O quê! – gritou o demônio refazendo-se do choque – O arco-vivo é nosso!

Conquistamos o direito de possuí-lo.

– Destruímos muitas existências para obter aquela arma – disse o menino. – Você já

percebeu que somos indignos dele, Zarel. Amanhã, entregue-o para a primeira pessoa

que o desejar.

– Sim, meu amigo, assim o faremos – assentiu o ancião. – Seremos um novo homem.

Antes que o demônio iniciasse uma nova onda de impropérios, Zarel foi se libertando do

transe. Ao despertar, sentiu uma paz incrível. Há muito tempo, quando começou a lutar

contra a própria escuridão, buscava essa tranqüilidade. Agora havia entendido, ela

chegou junto da sabedoria que só tem quem sofreu e superou os próprios males.

Olhou em volta. A caverna estava cheia de sombras projetadas pela pequena fogueira.

Bizet continuava fuçando no saco cinzento.

Foi então que o ancião percebeu o perigo. Dentro do saco, que era uma mala

improvisada, estava guardado o último pedaço de um certo fruto mágico. Comido por

uma pessoa, tinha o poder de desatar as amarras que prendem o espírito e libertar o ser

interior; engolido por animais, fazia efeito contrário. Estes adquiriam o dom da razão e,

assim como os humanos, podiam evoluir de acordo com seus atos.

Tal fruto era muito raro e perigoso, o próprio Zarel provou na pele o custo de ingeri-lo.

Somente agora, depois de quase dois séculos, aprendera a dominar o próprio espírito.

Levantou de pronto, ainda mancando da perna esquerda, e retirou o saco do alcance de

Bizet. Assustado por não encontrar o fruto, despejou tudo no chão.

– Sumiu! – desesperou-se – Não me diga que você o comeu, Bizet?!

O cavalo estava quieto. Aproximando-se, Zarel olhou em seus grandes olhos castanhos

tentando surpreender algum pensamento escondido. Ficou um longo tempo dedicado a

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esta tarefa, olhos nos olhos com o eqüino.

Quando estava prestes a desistir, o bicho relinchou alto. O velho tomou um susto,

sentindo-se um tanto ridículo.

– Desculpe desconfiar de você, companheiro. Estou ficando caduco, o fruto deve ter se

perdido quando larguei o saco no chão para realizar a invocação na planície – desabafou

Zarel.

– Tudo bem – respondeu o cavalo –, mas me roncam as tripas. Tem alguma coisa pra

comer aí?

Os olhos negros do mago por pouco não saltaram das órbitas. O cavalo falou! E animais

não falam! Isso só podia significar que o fruto, um dos sete elementos mágicos mais

poderosos do mundo, agora habitava seu estômago.

– Maldito seja! – esbravejou Zarel causando eco na caverna.

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cap. II

D Savedra

Qualquer um que estivesse em Savedra naquela limpa manhã de inverno poderia

jurar que nada estava acontecendo. O acanhado povoado onde viviam algumas

centenas de camponeses, pedreiros, ferreiros e uns poucos comerciantes era

circundado por uma formação rochosa e, adiante, separado do deserto de Tamuz

por uma larga planície. Contando com apenas uma estrada de acesso, recebia

poucos forasteiros e mantinha-se longe das confusões do resto do mundo.

Talvez por isso, até ao esperto Henri escapou uma estranha brisa que soprava

entre as velhas casas de pedra e teto de feno. O vento anunciava os acontecimen-

tos que em breve agitariam os moradores do lugar.

Trabalhando como ajudante do ferreiro Ancêu, Henri ganhava pouco e passava

muitas horas tostando-se no calor da fornalha para produzir ferramentas, flechas,

espadas e utensílios domésticos. Estava satisfeito com a própria vida, recebia

duas refeições por dia e, aos sábados, um dobrão de prata que sempre guardava.

Tinha 19 anos, ombros fortes de trabalhador braçal, era um moreno claro de

bonitos cabelos ondulados que possuíam um palmo de comprimento. Apesar de

órfão, o que lhe obrigou a lutar pelo sustento desde criança, considerava-se feliz.

Um único sonho habitava o coração do rapaz, queria construir uma casa e pedir a

mão de Llúvia à seu pai, Próctor, o mais rico comerciante de Savedra.

– Está pensando em contos de fada novamente meu rapaz – disse um senhor por

volta dos cinqüenta, feições duras e cabelos rentes na metade do caminho de

serem totalmente grisalhos. As maçãs do rosto eram salientes e vermelhas,

característica clássica dos bonachões, a barriga protuberante, denunciava uma

provável inclinação ao álcool.

– Meu querido Ancêu! – respondeu contente. – Que bom que chegou. Terminei o

conserto do escudo que encomendaram hoje cedo. Vou aproveitar o resto do

sábado no mercado, quero ver se acho algum presente digno de Llúvia.

Perscrutando o rapaz, o homem percebeu que estava diante de um legítimo

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apaixonado. O brilho nos olhos cor de mel lhe dava uma aura de pureza, seu

sorriso franco saía fácil e contrastava com a aparência bruta. Era desengonçado,

tinha braços e costas largas num corpo franzino sustentado por pernas finas. Isso

tudo somado infundia nele uma verdadeira imagem de bom moço.

– Cada dia me convenço mais de que está perdido – disse Ancêu. – Leva teu soldo

e some daqui, vá antes que me arrependa de te dar folga tão cedo.

Guardando a moeda no bolso da velha calça desbotada, despediu-se do patrão e

foi para casa. Bem, casa era um nome pomposo demais para o canto do celeiro

que Ancêu lhe cedia por piedade. Dormia sobre uma cama que ele mesmo fizera

com estopa, tomava banho gelado no riacho que corria ao longo da propriedade

e, quando queria se distrair, como hoje, cruzava o povoado até o mercado, onde

podia ver Llúvia.

Aos sábados, a cidade inteira se dirigia às tendas e barracas que os caixeiros

viajantes montavam junto aos toscos armazéns de madeira mantidos pelos

comerciantes locais. O mercado não passava de uma longa avenida pavimentada

de pedras. Por ser muito estreito, ficava abarrotado fácil mal podendo suportar o

público curioso que andava de lá para cá.

Henri passeava devagar. Ofereceram-lhe coisas esquisitas como uma luneta

capaz de mostrar o humor das pessoas, elmos esculpidos a partir de rochas,

especiarias medicinais e todo tipo de bugigangas. Ao aproximar-se das tendas,

um tecido azul pálido chamou sua atenção. Talvez agradasse a Llúvia.

– Vejam a fina seda produzida pelas famosas tecelãs de Vilar – gritava um velho

alto, magro, de longa barba e cabelos ruivos.

O mercado borbulhava num caos de cores e vozes. Desconfiado, Henri se aproxi-

mou da barraca onde a tal seda era oferecida.

– Posso tocar o tecido? – perguntou tímido.

– E por acaso tens dinheiro para pagar? – disparou Zarel. – Olha criança, não

tenho tempo a perder. Preciso vender esse material e partir em uma longa via-

gem.

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Dito isso, continuou anunciando os produtos. Dizia que os preços eram inigualá-

veis, prometia descontos incríveis.

– Arco de carvalho com propriedades mágicas. Uma raridade! Apenas dez moe-

das de prata.

– Se você quer saber – começou a irritar-se Henri–, tenho dinheiro suficiente para

comprar qualquer uma dessas porcarias que você vende mentindo serem mági-

cas. Todos sabem que um arco assim valeria pelo menos cinco vezes mais.

O vendedor olhou surpreso o rapaz jogar cinco dobrões sobre as caixas que usava

à moda de balcão.

– Obrigado – agradeceu entregando o arco. – Desculpe as maneiras de um velho

cansado, mas saiba de uma coisa, a arma realmente possui magia. Entretanto, é

preciso usá-la com a flecha feita de um material específico para ativar-lhe os

poderes.

– Ha, ha! E que tipo de material seria esse, senhor vendedor?

– Um que você encontra ao libertar-se das amarras que prendem o espírito –

confidenciou à meia voz.

Henri começava a estranhar o comportamento do ancião. Achou que os longos

cabelos cheios de nós lhe conferiam uma aparência de maluco. Mancava da

perna esquerda, cheirava a álcool e mexia-se muito depressa, como se temesse

um ataque pelas costas a qualquer momento.

– Se o arco realmente tivesse magia seria burrice vendê-lo tão barato. Não estaria

o senhor querendo me iludir?

– Não ouse me insultar fedelho! – rugiu Zarel. – Pegue, leve-o, é de graça.

Empurrou o pesado arco nas mãos calejadas de Henri e devolveu-lhe as moedas

num gesto abrupto.

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– Talvez ele traga mais sorte a você do que a mim.

Envergonhado pela reação de algumas pessoas que os olhavam atraídas pelos

gritos, o rapaz resolveu aceitar o presente e sair depressa dali. Antes de se afastar

o bastante, o comerciante lhe puxou pelo braço.

– Antes de ir, me prometa uma coisa – falou com olhar mortiço. – Não contes a

ninguém sobre os poderes do arco, ou tentarão roubá-lo.

– Essas histórias malucas de novo...

– Escute-me! É a única coisa que peço em troca desse fabuloso presente.

Prometa e vá.

Percebendo que não se livraria do estranho facilmente, Henri deu de ombros.

– Ok, prometo. Agora me solte.

– Um último conselho – manteve a mão apertada no braço do rapaz. – Venda tudo

que tiver e saia do povoado o quanto antes.

A espinha de Henri gelou ao ouvir as palavras ditas por aquela voz retumbante. As

coisas que o velho dizia só poderiam ser fruto de alguma enfermidade mental,

entretanto, movido por uma convicção íntima, o rapaz acreditou.

– Enquanto falamos, um grande mal se aproxima das cidades próximas e logo se

espalhará por todo o reino. Pegue seus pertences, venda o que for impossível

carregar e fuja com as pessoas que lhe são caras – alertou Zarel.

Dito isso, o velho mudou completamente de humor. Riu como se estivesse possuí-

do, continuou a ofertar seus produtos a preços baixíssimos. Henri, que acreditava

estar tratando com um louco, aproveitou para se afastar.

Andou pensativo por 20 minutos entre a pequena multidão que se debatia na rua.

Uma mulher alta de nariz fino provava um casaco de pele de chacal que um

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vendedor afirmava ter matado com as próprias mãos no caminho até Savedra.

Ele se chamava Santiago. Era moreno, bonito, por volta dos 21 anos, de estatura

média, trejeitos galantes e grandes olhos amendoados que pareciam dizer mil

poemas a cada instante. Olhos que, aliás, não tirava nem por um minuto de sua

formosa cliente, mesmo estando acompanhada de um corpulento homenzarrão.

O brutamonte chamava-se Quirino, capitão dos guardas do povoado.

– Este é uma pele que faria jus à sua beleza, senhorita... – disse Santiago.

– Desidéria – apressou-se em socorrê-lo.

– Senhorita uma ova – declarou Quirino. – Mais respeito com a senhora minha

mulher se não quiser provar o fio desta espada.

Para ilustrar a veracidade da própria frase, Quirino desnudou alguns centímetros

da lâmina larga que sempre trazia na bainha. Desde criança se fazia conhecer

pelas brincadeiras violentas que aprontava nas velhas ruas de Savedra. Na

adolescência, cresceu antes dos meninos da sua idade e aproveitou-se disso

para aplicar-lhes surras históricas. Mais tarde, a carreira de guarda lhe pareceu

uma escolha lógica. Contava cerca de 40 anos e se orgulhava de duas coisas na

vida: ter alcançado o maior posto possível na carreira militar; e o casamento com

Desidéria, moça de incrível beleza.

– Como queira senhor – assentiu Santiago. – Mas, como ia dizendo, é um produto

muito raro pelo qual tive de arriscar a vida. Impossível vendê-lo por menos de dois

dobrões...

–... de prata! – interrompeu o guarda.

– Naturalmente que de ouro – respondeu Santiago.

– E com certeza meu marido aceitará pagar o preço que a peça merece, senhor

vendedor – decretou Desidéria voltando-se para Quirino. – Ou acha que não valho

uma simples pele?

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De longas pernas sinuosas, que desenhavam curvas arrojadas do bumbum até

os calcanhares sob a saia florida, Desidéria emanava intensa beleza. Mesmo

vestida com uma simples blusa branca, um par de brincos leves adornando as

delicadas orelhas, o cabelo preso em uma mecha para trás, evitando que ficasse

em frente aos olhos verdes, seria capaz de encantar qualquer homem.

– Claro que vale, meu amor, e como! – anunciou Quirino. – Vendedor, passe a pele

para cá, tome o pagamento.

A despeito do resultado daquela conversa, Henri voltou ao seu caminho. Estava

chegando ao centro do mercado, onde ficava a cabana de Próctor.

Abriu a porta de cedro procurando ser discreto. No caixa avistou o pai de Llúvia. O

homem era careca e extremamente gordo, raramente levantava-se do banquinho

em frente à gaveta onde contava e recontava o lucro do dia. Cabia à filha atender

os clientes que chegavam à procura de armamentos. A moça de 17 anos agia com

destreza, tinha mãos hábeis e delicadas, o rosto claro era de uma beleza sincera,

os cachos castanhos escuros escorriam-lhe livres pelos ombros emoldurando um

par de olhos inquietos.

– Precisamos conversar – sussurrou Henri à moda de cumprimento.

– Tem de ser agora? – respondeu Llúvia docemente. – Meu pai pode desconfiar

de alguma coisa.

Neste mesmo instante Próctor, que como pai era um ótimo comerciante, perce-

beu algo estranho.

– Se não vai comprar nada, dê o fora – soou uma voz abjeta que lembrava nitida-

mente um porco mastigando. – Aqui não fazemos caridade.

– Este rapaz deseja comprar uma aljava e flechas para seu belo arco, pai. Trate

bem o cliente.

O comerciante observou a sólida arma que Henri trazia encaixada no ombro.

Esplendidamente desenhada, tinha cor de tabaco e trazia pequenas inscrições

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em ambas as extremidades, além de um pequeno símbolo no centro. Achando

que a história batia, resmungou e voltou a contar o dinheiro.

– Onde conseguiu esta coisa? – perguntou Llúvia soerguendo as finas sobrance-

lhas.

– É sobre isso que quero falar – começou Henri. – Estou preocupado com nossa

segurança, sinto que algo de muito ruim está prestes a acontecer.

– E o que seria? – aborreceu-se ela. – Espero que não esteja procurando uma

desculpa para desistir do juramento que fizemos, e que também continue guar-

dando dinheiro para construir nossa casa ao invés de gastar em arcos estranhos.

– Nada disso, nossos planos continuam de pé. É só que...

– Decida-se logo menino! – interrompeu Próctor. – Llúvia precisa atender os

outros fregueses.

De fato, aquele era o principal armazém bélico de Savedra, estava sempre cheio.

A espécie de cabana administrada por Próctor continha toda sorte de armamen-

tos, escudos, couraças, armaduras, elmos e especiarias medicinais. Um velho

corcunda que queria uma espada leve ameaçava sair quando a moça disse que já

iria atendê-lo. Uma menina de cabelos pretos aparentando uns 16 anos estava

interessada em um pesado escudo de bronze, Henri achou que deveria ser para

presente.

– Leve esta aljava e flechas. Elas têm pena de pássaro negro, são precisas e

velozes; assim meu pai não desconfiará. Nos encontraremos mais tarde na hora

de sempre.

– Vou contar cada minuto – sorriu Henri.

Deixou Llúvia tentando disfarçar o rubor das faces, pagou a aljava e a dúzia de

flechas sem se importar com a absurda quantia cobrada, foi para casa. Queria

tomar banho antes de anoitecer e pedir um conselho ao bom Ancêu.

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cap. III

DA decisão de Féron

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Perto da meia noite, um estranho adentrou Savedra. De serviço com outros dois

guardas, Quirino nada percebeu; o invasor pulou sobre um ponto do muro que

ficava longe da entrada e era pouco vigiado por contar dois metros de altura. O

povoado não era atacado há duas décadas e ninguém esperava uma invasão.

Andava silencioso na escuridão. Seus pelos cinzentos eram eriçados como se

estivessem em constante arrepio, tinha olhos caídos, dentes estreitos, patas

grandes; era pelo menos duas vezes maior que um chacal comum. Embora a

aparência fosse extremamente feroz, algo nele lembrava um homem cansado.

Ergueu o focinho em direção ao céu e farejou. Decididamente era daquele povoa-

do que vinha o cheiro de Ojibe. Não o via desde que, há quatro dias, pararam para

descansar algumas horas. Fatigado pelo peso do próprio corpo, Féron adorme-

ceu, então Ojibe resolveu prosseguir sozinho.

– Imbecil! – rosnou. – Você vai se arrepender de ter me desobedecido. De nada

adianta ser ágil se na hora do combate faltam os poderes necessários para

enfrentar um mago, ainda mais se tratando de Zarel!

Esquivou-se das lamparinas passando sob as sombras de velhas casas construí-

das em pedra maciça, dobrou à esquerda perto de uma estalagem. Depois de

caminhar quinze minutos viu-se em meio a uma rua pavimentada que era suja e

comrpida. Sentiu que ali a pista de Ojibe estava forte, assim como a de Zarel.

Percorreu o lugar até chegar ao lado de uma tosca cabana. No espaço onde horas

antes havia uma tenda, Féron percebeu algo estranho. O cheiro de Ojibe estava

um tanto limpo, além disso, se misturava com perfume de mulher. Que teria

acontecido?

Também farejara Zarel, poderia seguir a pista que ia direto para a floresta de

Alawara. Com certeza ainda estava enfraquecido pela transformação, seria fácil

atacá-lo agora, contudo, as duas opções eram uma encruzilhada. Seguindo o filho

perderia o cheiro de Zarel na floresta e, caso fosse atrás do mago, Ojibe também

se perderia dele na densa mata. Sendo impossível fazer as duas coisas, optou

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pela que lhe pareceu mais acertada.

– Vou te encontrar Ojibe, depois iremos atrás de Zarel. Eu, somente, temo ser

insuficiente para derrotar o velho, mas, juntos, a vitória é certa.

Mirando a lua cheia, Féron uivou longamente. Se estivesse perto, Ojibe deveria

responder com um segundo uivo combinado entre eles.

Auuuuuuu...

– Estranho! Nenhuma resposta! O que deu nesse menino?

Um pressentimento ruim assaltava Féron, e ele costumava prestar atenção

nesses augúrios. Por isso resolveu seguir depressa o perfume da mulher que

estava misturado ao cheiro do filho, em último caso poderia tirar boas informa-

ções dela. Sem demora se pôs a caminho pelas ruas do povoado.

Na parte nobre de Savedra, um rapaz atirava pedrinhas na janela da sacada de

Llúvia quando ouviu o uivo de gelar a alma. Aquilo o lembrou do gemido do infeliz

que viu ser enforcado na praça de Savedra anos atrás, expressão de desespero

que causou nele uma angústia quase física que jamais esqueceria.

– Está atrasado – disse uma voz às suas costas.

No susto, Henri instintivamente pulou para frente, as pernas bambeando. A

coragem era abundante no jovem, mas, em certos momentos, quando a pessoa

está perdida nos próprios devaneios, ser tocado nas costas é como receber um

balde de água fria enquanto dorme.

– Ai! – deu um gritinho fino. – Llúvia, nunca mais faça isso! Quase me separa o

coração do peito, mulher.

– Deixe de tanto barulho! Alguém pode nos ouvir.

Sem perder tempo, Henri aninhou a namorada entre os braços. Quando fazia

isso, o nariz roçava de leve o suave pescoço que ela lhe oferecia, adorava sentir

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aquela fragrância. Ao descrever as aventuras noturnas para Ancêu sempre

ressaltava essa parte: “Ela tem cheiro de casa, de lar, meu amigo”.

– Agora está tudo certo – falou o apaixonado. – O mundo gira no devido lugar

quando te guardo debaixo das asas assim.

Feliz, Llúvia encostou o rosto no peito de Henri olhando-o de baixo para cima. Nos

espertos olhos cor de esmeralda da moça, Henri acreditava enxergar a própria

alma refletida. Tal amor era difícil de suportar, ficou tão embevecido que se

esqueceu da razão de arriscarem encontrar-se àquela hora. Curiosa por nature-

za, Llúvia lembrava.

– Aquele arco estranho, de onde você tirou? – questionou ela. – Quis perguntar na

loja, mas com meu pai interrompendo o tempo todo... Percebi que se trata de uma

arma antiga, deve ter custado caro, nunca vi coisa igual.

– Muito pelo contrário – rebateu Henri –, acreditaria se eu dissesse que foi de

graça? Que não paguei absolutamente nada por ele?

– De graça! – duvidou Llúvia.

– Isso mesmo. Um velho maluco me deu de presente hoje cedo no mercado. Não

queria aceitar, mas ele insistiu.

– E este velho, como era?

A história foi contada por Henri nos mínimos detalhes. Não que visse grande

importância nela, mas sim para prolongar ao máximo a estadia com Llúvia. Ela,

por sua vez, ouvia tudo atentamente interrompendo a narrativa de vez em quan-

do para fazer perguntas. Quando ouviu o relato completo, fez cara de dúvida.

– E o que Ancêu pensa disso?

– Estranhou também – respondeu Henri. – Mas disse que “à cavalo dado não se

olha os dentes”. Sugeriu que guardasse o arco num lugar seguro, já que ser

prudente não traria mal nenhum, e que caso fosse preciso fugir estaria pronto.

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A moça mordeu os lábios quando Henri disse fugir. Atirou-se a ele num longo

beijo, sentia medo de perdê-lo, queria que ficassem juntos eternamente. Já Henri

mal cabia em si de tanta alegria porque Llúvia em seu temor mostrava o amor que

ele adorava saber que existia. Pensou que hoje era seu dia de sorte. Bendito

arco! Bendito velhote!

– Jure que se acontecer alguma coisa você volta para me buscar – pediu ela.

– Nem que leve dez anos, ou que tenha de atravessar mil oceanos e enfrentar

duzentas bestas, prometo que voltarei. Agora, acalme-se. Tenho certeza de que

eram excentricidades sem sentido, lorotas de velho.

Enquanto o casal matava a saudade, sentimento que ataca com tanta freqüência

no alvorecer dos amores, outras coisas aconteciam no povoado. O capitão

Quirino tirava guarda na entrada de Savedra. Desidéria, sua mulher, extrema-

mente ativa, também se dedicava a uma atividade na ausência do cônjuge.

Não é segredo que o ser humano sempre deseja aquilo que não tem. Para perdi-

ção do marido, Desidéria, além de humana, era mulher – e fogosa. Logo, além

das fraquezas do espírito, a tentação da carne a assaltava de tempos em tempos.

O capitão dos guardas tinha a seu favor, e por esse único motivo continuava ileso,

o medo que infundia em cada homem de Savedra. Mesmo os mais ousados

conquistadores tinham o bom-senso de evitar sua esposa.

Entretanto, Santiago, como forasteiro, ignorava a fama do guarda. E, caso conhe-

cesse, nada mudaria, pois nunca teve nem sombra de bom-senso. De maneira

que Santiago e Desidéria estavam um na companhia do outro no quarto dela.

– Meu marido pode chegar a qualquer momento – advertiu. – Isso te assusta, ó

matador de chacais?

– Estar contigo infundiria coragem até no pior dos covardes – disse ele.

Deitou Desidéria gentilmente sobre os finos lençóis de linho e beijou-a ternamen-

te. Embora a boca da moça dissesse “não” sempre que as mãos de Santiago a

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tocavam, o corpo teimava que “sim” com todas as letras.

– Me respeite – disse sem convicção. – Só porque gosto um pouco do senhor não

quer dizer que permitirei tais liberdades. Sou casada!

Acostumado à demagogia dos discursos femininos, que fingem manter as virtu-

des que o corpo entrega, o caixeiro viajante nada disse com palavras, preferiu a

linguagem dos gestos. Deixou os dedos trabalharem na abertura dos inúmeros

botões da blusinha branca que tinha diante de si. Desidéria respirava sofrega-

mente, mordia os lábios de Santiago roçando o rosto no bigode de pêlos finos.

Possuído pelo desejo, ele se despiu por completo e estava pronto para amá-la

quando um ruído vindo da entrada da casa o fez parar. Um amante menos hábil

não teria notado o barulho característico da porta abrindo no meio daquela

situação, mas, Santiago, acostumado às aventuras extraconjugais desde cedo,

tinha ouvidos treinadíssimos. Perdeu a conta de quantas esposas amou desde os

15 anos, sabia apenas que passavam de quinhentas com folga.

– Sinto que é hora de partir! – disse ele.

– Partir! Agora?!

– Isso mesmo – respondeu saindo da cama e abrindo a janela.

O som de passos fez Desidéria entender tudo. Nesse momento, Santiago, nu, já

estava com uma perna para fora da janela. Como era uma casa pequena, de

poucos cômodos, não havia tempo a perder, a qualquer momento o marido

entraria pela porta do quarto.

– Sim, vá! – concordou a mulher. – Se formos pegos ambos morreremos. Vá, eu

escondo suas roupas. Rápido! Fuja!

Desperdiçando segundos preciosos, Santiago permitiu-se beijar a amante uma

última vez. Depois, saltou para a rua, correu com força total por cem metros,

encontrou um espaço minúsculo entre duas casas onde se enfiou para observar

o que aconteceria com Desidéria. Por mais desmiolado que fosse, e era, sempre

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ficava por perto depois de uma fuga para o caso do marido querer espancar a

mulher. Até hoje, graças a Deus, isso nunca tinha acontecido. Estava tudo em

silêncio. Decerto Desidéria tinha conseguido esconder as roupas.

Por uma estranha coincidência, Henri, alheio à tudo isso, vinha descendo a rua

distraído. Caminhava olhando para dentro, repassava mentalmente os felizes

momentos que acabara de desfrutar ao lado da namorada.

Aihhh...!

Um grito de mulher fez com que caísse das nuvens. Vinha da casa de Quirino, será

que o valentão agora também batia na esposa?

– Ei! Você! – chamou uma voz.

Henri procurou na rua, mas como não enxergou ninguém achou que estava

variando.

– Aqui! Estou me escondendo do guardinha!

No espaço entre duas casas viu um rapaz pelado com cara de pavor. Savedra era

um povoado tranqüilo, pouco acontecia lá de inusitado, de maneira que a cena

despertou vivamente o interesse do rapaz. Ele decidiu se aproximar para saber o

que significava aquilo.

– Escute! Preciso das suas roupas emprestadas – pediu Santiago.

– Minhas roupas! – respondeu Henri divertindo-se. – E que foi feito das suas,

forasteiro?

– Provavelmente estão escondidas embaixo da cama de Quirino.

– E como foram parar lá?

– Deixe de ser burro! – exasperou-se Santiago, que tinha pressa. – Digamos que

na atividade que eu desempenhava roupas só atrapalhariam.

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– Você é louco! Nunca ninguém tinha se atrevido a assediar Desidéria, Quirino te

mata se for lá.

Socorro! Acudam! Para trás monstro! Afaste-se de mim!

– Rápido! Se não por mim, faça por Desidéria, o guarda vai matá-la!

Como qualquer outro habitante de Savedra, Henri tinha medo de Quirino.

Ninguém o culparia por evitar aquela confusão que nada tinha a ver com ele.

Porém, anos atrás, também sofrera com a violência do valentão. Das vezes que

tentou revidar, a única coisa que conseguiu foi apanhar mais, assim, não é de se

estranhar a atitude magnânima para com o único homem que teve coragem de

colocar-lhe chifres.

– Tudo bem – concordou despindo-se. – Mas volte para me devolver, não preten-

do ficar escondido aqui para sempre.

– Obrigado, nobre rapaz! Vejo que tens um coração de ouro, estou em dívida

contigo, no momento certo saberei devolver o favor. A propósito, me chamo

Santiago.

– Vá logo, me agradeça depois.

De cuecas, Henri tomou o esconderijo e foi a sua vez de espiar o que acontecia. Se

alguém tivesse lhe contado o que viu a seguir, certamente teria duvidado.

Depois que Santiago entrou, o barulho inconfundível de luta e móveis quebrando

tomou conta da rua. Ficou claro que os brigões apostavam as próprias vidas,

eram tantos estalidos que mais parecia uma batalha entre dez soldados armados

até os dentes.

Passados quinze minutos, alertados pela barulheira infernal, os guardas de

Savedra acorreram para ver o que acontecia.

– Vamos molengas, a confusão vem daqui – gritou Quirino vindo da entrada da

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cidade.

Após os gritos do capitão, a balbúrdia cessou instantaneamente. Henri observou

um vulto sair da casa correndo. Mal pôde entrever aquela silhueta, viu apenas

que carregava algo e era enorme.

“Como isso?!”, pensou. “Se Quirino está chegando só agora, quem estava maltra-

tando Desidéria?”. A história ficava cada vez mais bizarra. Encolheu-se um pouco

para não ser visto pelos guardas.

O capitão empalideceu ao perceber que a sua casa era o local da bagunça.

– Desidéria! Meu amor! Estou chegando! Vamos imbecis, minha mulher está em

perigo!

O silêncio reinou por minutos que se arrastaram quando os três entraram na

casa. Pensando no que poderia estar acontecendo, Henri imaginou Santiago

sendo torturado de mil formas diferentes. Um marido traído geralmente cobra

caro o empréstimo involuntário da mulher, Quirino seria mil vezes pior. Por

momentos viu as unhas do rapaz sendo arrancadas uma a uma; preso para

sempre em Savedra, nunca tornaria a ver outra mulher.

Mas quando a porta da casa abriu, Henri, surpreso, descobriu justamente o

contrário. Como pode?! Santiago, ensangüentado dos pés à cabeça, saiu ampa-

rado gentilmente nos ombros de Quirino, estava ferido de tal forma que mal podia

andar.

– Vasculhem tudo! – gritou o guarda fora de si. – Encontrem o monstro que fez

isso, vamos suas bestas, andem!

Percebendo o perigo, Henri se encolheu entre as casas como o faz uma lesma ao

ser atacada com sal. Ficou em silêncio por mais de meia hora, sem coragem de

olhar para fora do vão, até que, para seu azar, um dos guardas o encontrou.

– Está aqui, vejam só! Quem diria, o ajudante de ferreiro, por que fez isso rapaz?!

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– Eu não fiz nada! – exasperou-se do fundo do vão.

– E o que faz escondido aqui, e sem roupas ainda?! Vamos saia logo, garanto que

terá um julgamento justo.

– Julgamento! Eu!? – apavorou-se Henri cada vez mais decidido fugir daquela

situação.

Mas estava numa posição complicada demais para se libertar facilmente. Por

mais que tentasse, era impossível escapar do guarda, o estreito esconderijo

restringia seus movimentos, e, de qualquer forma, teria de derrubar o homem

para fugir. Para piorar, os companheiros dele já chegavam e uma pequena con-

centração de curiosos aglomerava-se na rua.

Chegando em frente ao vão, Quirino empurrou o guarda, que voou longe, e falou

palavras de extrema eloqüência, como era seu custume.

– Miserável! – disse. – Saia daí agora mesmo ou te mato sem piedade!

Henri, que nunca foi burro, deixou-se convencer pela retórica do guarda. Além

disso, possuía a tranqüilidade dos inocentes a quem a esperança da justiça

nunca abandona. Respirou fundo e moveu as canelas finas em frente pensando

no ridículo da situação. Ser acusado de criminoso, de cuecas, na frente de meia

Savedra, que vexame!

Antes de sair ainda tentou se explicar, mas de nada adiantou porque, assim que

as mãos de Quirino o alcançaram, iniciou seu suplício público. Apanhou muito, foi

sumariamente golpeado, recebeu incontáveis pontapés, socos e xingamentos.

Sofria como um cachorro, sem entender nada.

– Encontramos suas roupas, animal nojento. Foi você que torturou Desidéria,

reconheça!

– Me deixem em paz! – tentava argumentar Henri.

– Fez sim, e vai confessar. Aposto minha patente nisso, moleque.

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As pessoas na rua aprovavam o tratamento que Quirino dispensava ao acusado.

Ficaram sabendo que Desidéria fora atacada no meio da noite e que, tendo

ouvido os gritos, um forasteiro tentou ajudar e quase terminou morto.

Encontraram roupas no quarto da mulher, e logo depois acharam Henri, que ficou

escondido semi-nu ali perto. Todos os fatos estavam contra ele.

Vendo que a surra poderia acabar com a presa, o capitão mandou que o levassem

para a prisão. Era cedo para matar Henri, queria vê-lo sofrer muito antes da

execução. Zonzo, Santiago nada podia fazer, mal entendia o que estava aconte-

cendo, precisava de cuidados médicos urgentes.

Longe dali, na planície que circunda o povoado, o ser que só não tirou a vida de

Desidéria por causa da intromissão de Santiago, e que apenas não matou este

último em função da iminente chegada dos guardas, terminava de enterrar o

casaco que um dia foi o couro de seu filho.

Fora ter braços, pernas e rosto, nada no homem de quase dois metros de altura

lembrava um humano. Em frente à cova, sua expressão de ódio exprimia a calma

decisão da pessoa que planeja devotar a vida à vingança, e que por isso mesmo

sabe que vai alcançá-la.

Sem chorar, Féron olhou uma última vez para o túmulo de Ojibe. O cheiro de terra

preta inundava o ar gelado da madrugada, a lua brilhava pálida e assustada no

céu, mas ele sentia que nada disso importava. Era como se cada objeto, cada um

dos infinitos elementos da criação tivessem perdido o significado, bem como a

própria vida.

Então Féron, permitindo que a selvageria tomasse conta dele, sentiu um calor

intenso. O sangue era bombeado em grande velocidade pelas veias, a vibração

do espírito animal que despertara há tanto tempo foi mais uma vez liberta. Seu

paladar, olfato e audição ficaram repentinamente aguçados; tato e visão sofre-

ram efeito contrário. Diminuiu de altura até estar a um metro e meio do chão.

Só a lua testemunhou o momento em que o chacal deixou a cova para penetrar a

densa Alawara.

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cap. IV

DRecompensa

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Na manhã seguinte ao incidente na casa de Quirino, Savedra despertou em

completo alvoroço. As pessoas comentavam a bravura do forasteiro que salvou a

pobre Desidéria das mãos do ajudante de ferreiro. De todos os habitantes do

povoado, apenas dois, Ancêu e Llúvia, acreditavam na inocência de Henri. De

resto, mais ninguém colocaria a mão no fogo por ele, que já estava condenado

pela opinião pública antes mesmo do julgamento.

Próctor, na condição de prefeito, viu no crime uma oportunidade de engrandeci-

mento, coisa que nenhum político que se preze deixa passar em branco.

Convocou os moradores para uma proclamação oficial na praça da igreja ao meio

dia. Às onze e meia, centenas de curiosos se acotovelavam impacientes.

Assim como a maioria dos povoados do reino, Savedra foi planejada urbanistica-

mente a partir da igreja. Ao seu redor surgia a praça, a prefeitura, o mercado, e as

principais ruas que afluíam em ruas menores até desaguarem nos campos onde

as famílias trabalhavam a terra. Nessa capela havia espaço para trezentos fiéis

acomodarem-se confortavelmente, e, apesar de pequena, tomava ares de cate-

dral por ter um teto alto ladeado por duas torres brancas, onde ficavam os sinos.

A praça defronte à igreja era um local de encontro costumeiro para jovens apaixo-

nados, velhos contadores de histórias, cães vadios, vendedores de guloseimas e

músicos que, passando por ali, resolviam deitar o chapéu em busca de alguns

trocados. Sendo domingo, nada mais natural que estivesse abarrotada pelas

quase mil almas que esperavam o pronunciamento do prefeito sobre o escândalo

da noite passada. Só não se fizeram presentes alguns enfermos e umas poucas

famílias de lavradores.

– Você ficou sabendo do que houve? – fofocava uma senhora baixa de meia

idade. – Desidéria foi encontrada desmaiada, semi-nua, cheia de mordidas e

sangrando. Aquele Henri deve ser um maníaco, que mais teria feito se o forasteiro

não tivesse chegado!

A outra senhora, muito magra, rosto expressivo excessivamente maquiado, se

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limitava a emitir exclamações depois das frases da amiga.

– Ouvi falar também – continuou a primeira – que foi ele o responsável pelo roubo

das galinhas do velho Artigas no mês passado.

– Nossa!

– Sempre desconfiei dele. Andava por aí com aquela cara de bestalhão, podia até

enganar os outros, mas a mim não. Sabia que era mau-caráter.

– Sim! Eu também!

– O capitão Quirino o encontrou pelado perto daqui, disseram que estava... bem,

você sabe.

– Então é verdade mesmo?! – respondeu fingindo que sabia do que se tratava.

– Pois é, os guardas pegaram ele espiando a casa de Quirino com a mão na

massa. Um tarado! Eu nunca contei para o meu marido, porque se contasse ele

mataria o rapaz, e quis evitar o escândalo, mas uma vez, no mercado, ele me

passou a mão nas partes baixas.

– Comigo foi o mesmo!

– Eu não disse, um tarado! Agora vai ter o que merece. Esse é o lugar onde mais

hora menos hora todos os sodomitas vão parar: a forca.

– Amém! – assentiu a amiga revirando os olhos.

Minutos depois, o prefeito apareceu elegantemente trajado em frente ao púlpito.

Vestia um enorme casaco de botões, uma enorme camisa amarela, e uma enor-

me calça bege. Como na loja de armamentos, um banco o esperava para que não

cansasse demais, sustentar o próprio peso consistia um desafio de que ele há

muito tinha desistido.

Sentou no banco escorando os cotovelos no púlpito, olhou o público com ar grave,

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e ficou satisfeito ao ver que a cidade inteira esperava ansiosa para ouvi-lo.

Pigarreou fazendo um barulho parecido à um porco fuçando na lavagem, todos se

calaram.

– Povo de Savedra – começou lentamente –, ontem à noite, como vocês devem

saber, um crime perturbou a paz que reinava neste povoado. A santidade do lar de

um de nossos mais respeitados cidadãos, o honrado capitão Quirino, foi agredi-

da. Sua mulher, a bela Desidéria, talvez tivesse morrido se um forasteiro não a

salvasse. Aliás – fez uma pausa –, onde está o bravo herói? Forasteiro, rápido,

apresente-se aqui na frente para conhecer a gratidão do prefeito.

Enfiado bem no meio da multidão, Santiago ouvia o discurso como um sonâmbu-

lo ouve apelos para acordar. Aquilo estava virando uma bola de neve, queria sair

de Savedra o mais rápido possível, só continuava ali por que precisava desfazer a

confusão em que metera o rapaz que o ajudou.

Antes que pudesse tomar qualquer atitude por si próprio, Quirino o puxou pelo

braço e foi abrindo caminho entre a multidão. As pessoas olhavam-no como se

fosse um bicho em extinção, alguns cochichavam comentários dos quais ele

apenas podia ouvir palavras esparsas.

– Pois bem – comentou Próctor virando a cabeça rechonchuda para eles –, então

você é o famoso... Como é seu nome mesmo?

– Santiago.

– Sim, Santiago, o heróico. Vejo que já está refeito dos ferimentos, muito bem.

Amado povo – voltou a discursar –, como ia dizendo, este nobre homem arriscou

a própria vida para salvar uma pessoa que jamais tinha visto antes, e sem esperar

nada em troca, não é mesmo? – virou-se brevemente para Santiago. – Mas eis

que não cabe a ele, caríssima população, decidir se receberá ou não a nossa

gratidão. Cabe a mim, investido do poder que vocês me concederam, retribuir os

serviços prestados à Savedra.

O povo aplaudiu fervorosamente as palavras do prefeito. Ninguém esperava

menos, queriam ver o herói recompensado. Só Santiago parecia não gostar do

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que ouvia, ficou muito pálido e, sem conseguir se conter, achegou-se no púlpito

para falar, o que fez de repente, sem aviso.

– Não precisa!

– Como não precisa? – interveio Quirino. – Fique quieto e aceite humildemente a

gratidão de Savedra homem!

– Calado capitão, ninguém lhe chamou na conversa – asseverou Próctor. – E

você, rapaz, não fará a desfeita de recusar o posto de tenente dos guardas...

A cabeça de Santiago já balançava da direita para a esquerda em sinal de recusa

quando parou no meio do movimento.

–... e receber o soldo semanal de cinco dobrões de ouro – completou Próctor.

– Cinco dobrões! – embasbacou-se Santiago.

– Cinco dobrões! – amedrontou-se Quirino, que começava a entender onde o

avarento prefeito queria chegar. – Mas excelência, isso é o mesmo que eu ganho

no posto de capitão!

– Pois não ganha mais, Quirino. Pelo menos por um mês. Estou lhe concedendo

aquelas férias que você vinha solicitando há tempos. Naturalmente, enquanto

estiver no repouso, o qual necessitará para cuidar de Desidéria, não fará jus ao

soldo de comandante dos guardas.

E então – Próctor inquiriu Santiago –, ousará recusar minha generosidade?

Por um breve momento pesou os prós e contras da proposta. Se permanecesse

em Savedra acumularia uma pequena fortuna. O posto de tenente permitiria que

libertasse o rapaz que o ajudou na noite passada, pelo qual sentia-se irremedia-

velmente responsável e, com um pouco de sorte, talvez pudesse terminar os

negócios que deixara inacabados nos lençóis de Desidéria. A decisão foi fácil.

– Já que o povo faz tanta questão, eu aceito sim – abriu o largo sorriso para a

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multidão delirante.

Dessa vez quem não gostou foi Quirino, que perdeu o ótimo soldo que recebia. Ao

menos ainda poderia torturar o ajudante de ferreiro, já que seus homens lhe

garantiriam a passagem para a cela do maldito.

A raposa velha do prefeito conhecia bem a têmpera de Quirino. E, não por cuidado

ao preso, mas sim para prolongar os efeitos da sua recém adquirida popularida-

de, ressaltou para a multidão que a integridade física de Henri deveria ser manti-

da até o dia do julgamento, dali a duas semanas.

– Somente depois de julgado – disse à todos, mas em especial ao capitão – é que

o braço da justiça, se os juízes assim decidirem, deverá cair sobre a cabeça do

preso. Até lá, que ele fique bem guardado pelo bravo Santiago, tenente dos

guardas de Savedra!

Era o que faltava para a multidão na praça explodir em uma profusão de gritos

estonteantes. Ouviam-se urras, “Próctor, o justo”, “salve o prefeito” e muitos

vivas. Sabendo que acertou na mosca, o gordo saiu do banco e tratou dar uma

última recomendação à Quirino.

– Capitão, não quero que nenhum acidente desagradável se abata sobre o prisio-

neiro. Durante suas férias está proibido de entrar no recinto dos guardas, quanto

mais nas celas, do contrário retiro sua insígnia. Estamos entendidos?

– Sim excelência, como sempre, cumprirei as ordens que me forem dadas –

respondeu desanimado.

– Ótimo. E você rapaz, passe na prefeitura amanhã de manhã para pegar o unifor-

me e a insígnia de guarda. Te receberei durante o desejum, esteja no meu gabine-

te ás dez em ponto.

– Sim excelência – disse Santiago imitando o tratamento servil de Quirino. –

Cumprirei as ordens que me forem dadas.

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