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 · 2013-04-17 · — Pensei que seus pais haviam conversado com a ... e mirou-se num grande espelho ... O cheiro de incenso, madeira velha,

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Copyright © 2013 Nanuka Andrade

Impresso no Brasil.ISBN 978-85-61843-57-1

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Capa e ilustrações:Nanuka Andrade

Diagramação e revisão:Lorran Feital

Todos os direitos desta edição reservados à

Oficina de Livros / SubtítuloRua Desembargador Isidro 156 loja A 20512-160 - TijucaRio de Janeiro - RJTel./Fax: (21) 2268-3497www.subtitulo.com.brwww.oficinadelivros.com.br

Andrade, Nanuka

A553l O ladrão de destinos / Nanuka Andrade. – Rio de Janeiro: Oficina de Livros-Subtítulo, 2013. 280p. il ; 21cm.

1. Literatura infanto-juvenil. 2. Literatura infanto-juvenil - Ficção. 3. Ficção da língua portuguesa. I. Título.

CDD-028.5 Índice para catálogo sistemático:

1. Ficção da língua portuguesa: 869.93

Embora aparentemente adormecidos e incons-cientes do mundo ao nosso redor, nossa “essência

imaterial” viaja para outros lugares, no mundo real ou alhures, onde Fadas finalmente se revelam.

— Lewis Carroll

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Por muito tempo mayumi tentou explicar às freiras porque andava e falava enquanto dormia, e, embora fosse da natureza da menina jamais faltar com a verdade, parecia simplesmente impossível definir os estranhos acontecimentos que envolviam aquelas rondas. A me-nina simplesmente não sabia. Mas o que a levava a agir deste modo acontecia desde que era apenas uma garotinha; ora descendo as es-cadas do sobradinho, ora andando pelo quarto dos pais, conversando com eles como se estivesse acordada.

No colégio as coisas só fizeram piorar.Mayumi arrancava rolos de papel higiênico dos banheiros, e en-

rolava os tapetes da sala da diretoria. Matilde Stern, uma grandalhona do sexto ano, costumava ter uma

opinião muito peculiar a respeito. — Se esta sonâmbula não for tratada longe daqui, vai causar

sérios danos à segurança pública! Apesar de tudo, Mayumi dizia que as rondas aconteciam porque

as aulas, chatas e pouco interessantes, causavam sono. O que, de um modo geral, não era uma mentira. Mas isso, pode-se imaginar, jamais convenceria as meninas “normais” de sua inocência. Especialmente para aquelas que desaprovavam completamente que a menina pe-rambulasse pelo telhado do colégio.

Quando nossa história começa, por exemplo, Mayumi acabava de despertar no altar da capela. Vê-la ali, como uma morta viva, fez a faxineira Lurdes pular a dois palmos do chão. Mayumi também se assustou, mas não teve tempo de correr, porque instantes depois apareceu a Irmã Dorília, que a levou direto para a sala da Madre Superiora. A menina, que já estava bem acostumada a receber o sermão de sempre, ficou detida na salinha até escutar o último si-nal. Ela sabia, no entanto, que Matilde e suas amigas estariam à sua espera na saída, prontas para lhe dar uma boa surra. E quando pôs os pés no saguão do colégio, teve a derradeira certeza: catorze me-

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ninas – algumas delas sem motivações maiores do que apenas puxar cabelos –, estavam preparadas para a perseguição.

Ao deixar o portão do colégio, lamentando não poder esconder--se no banheiro (como da vez em que ficou trancada ali até as três da tarde), Mayumi correu para a Rua dos Estudantes. Entre descer a rua para casa e subir em direção à lojinha de antiguidades de Lao Pengyou, decidiu-se pelo segundo destino, para onde sabia que Ma-tilde e as meninas jamais fariam arruaça.

A lojinha ficava a uma quadra do colégio, no Beco dos Aflitos. Uma portinha estreita e vermelha, com caracteres chineses. Apesar de ser uma loja de antiguidades, como sugeria a fachada, vendia-se tudo. De papéis de dobradura – que a Sra. Chen adorava –, até por-celana falsificada da Dinastia Ming.

Ao vê-la, o velho chinês levantou-se e dirigiu-se às meninas que a perseguiam, espantando-as como se fossem pombos impertinentes.

— Mayumi! — ele exclamou em seguida, assim que fechou a porta atrás de si. — Pensei que seus pais haviam conversado com a diretora sobre estas predadoras!

Ela limpou o suor do rosto, estreitou os olhos que afinaram como delicadas pinceladas de sumi, e mirou-se num grande espelho que pontuava os locais do Feng Shui. O cheiro de incenso, madeira velha, cola e tecido trouxeram segurança aos sentidos da menina. À frente de um balcão abarrotado de dragões de ferro fundido, cami-nhava a figura robusta, triangular e barbuda de Lao Pengyou. Era sempre assim que o encontrava, mas daquela vez havia um porta--retratos novo sobre o balcão, ao lado de uma estatueta de um tigre. Lao parecia estar polindo o metal da moldura quando ela apareceu.

— Pareço verde — observou a menina. E, talvez como se não quisesse tocar no assunto da perseguição, murmurou: — Será fome?

O velho estreitou ainda mais os olhinhos negros e não respondeu àquela pergunta como esperava a menina. Em vez disso, fez outra.

— Xiau nuhai, seus pais não foram à reunião mais uma vez?A menina suspendeu a respiração. Ficou na dúvida se deveria

responder àquela pergunta. O velho Pengyou tinha um jeito muito especial de chamá-la de “pequena menina”, mas apenas quando queria começar algum discurso. E ela temia que sua pequena e ne-cessária omissão da verdade viesse à tona. Afinal, há algumas sema-nas havia contado ao velho que os pais estavam atolados de trabalho e que, portanto, sequer tinham tempo de ler os bilhetes da escola.

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— Ahn… Acho que eles já conversaram com a madre superiora — mentiu ela, embora não lhe agradasse nem um pouco faltar com a verdade.

— Hum. Então tenho certeza de que vão tomar uma providên-cia — concluiu o velho. — Quer uns guiozás?

Mayumi anuiu. Retirou a mochila das costas e depositou-a numa cadeira que ficava ao lado da janela pintada. Avaliou a camisa branca encardida, com o bolso bordado “Chen”, e a saia, caindo acima dos joelhos, plissada como forminha de brigadeiro de cabeça para baixo.

— Estes guiozás parecem ótimos — observou ela diante do si-lêncio que se instalou na lojinha.

O velho Pengyou cruzou o estabelecimento até a portinha ver-melha e pendurou a plaquinha bilíngue “volto depois do almoço” na maçaneta pelo lado de fora. Depois voltou-se para Mayumi, ofe-recendo-lhe um lugar no balcão onde pudessem fazer a refeição.

— Então aconteceu novamente… — murmurejou ele.Mayumi suspirou desconsolada. Pengyou a conhecia mais do

que ninguém. Sabia mais até do que a sua própria família. Também não culpava os pais por isso. A Sra. Chen esperava um novo meni-no, e só existiam olhos para ele: roupinhas novas, quarto reformado, e até um lindo nome – uma escolha entre o chinês e o japonês, já que Mayumi advinha, em porções iguais, destas duas nações do extremo oriente.

— É. Aconteceu — respondeu. — Desta vez acordei na capela.O velho deixou escapar um murmúrio grave, e voltou a masti-

gar o guiozá.Pelo menos Lao não a repreenderia como faria a Sra. Chen. Ela

era muito austera e rigorosa; filha de imigrantes japoneses, cuja ética e bom senso vinham acima de qualquer coisa. Diferente dela, o Sr. Chen era alegre e descontraído, e filho de imigrantes chineses. Todos sabiam a grande conquista que fora realizar o casamento, uma vez que ambas as famílias desaprovavam o enlace. Lao Pengyou costumava di-zer que o destino era capaz de superar até rusgas entre países inimigos.

Mayumi lamentava que os pais não enfrentassem o problema da menina com a mesma determinação com a qual enfrentaram os pais. Mas não pensem que eles não se preocupassem com ela, porque isso não era verdade. Mas, para eles, como também para a maioria das pessoas comuns, sonambulismo não passava de um mal passageiro que pudesse ser curado facilmente como gripe.

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Gripe? Ora, estamos falando de sonambulismo! Uma palavra que, por

sinal, Mayumi odiava. Qualquer um que saiba, ou conheça alguém que sofre deste pro-

blema, entende o quanto é terrível perambular inconsciente por aí. E, ainda por cima, entregar o próprio destino a quem quer seja.

Para Mayumi, significava ter a liberdade roubada.Ironia ou não, Liberdade era o nome do bairro onde a menina

morava. Neste ponto as aulas de História não eram chatas e cumpriam

com o seu papel. O professor, que pouco se importava de ter uma aluna sonâmbula em classe, contava que, antes de ser um bairro oriental, a Liberdade servira de palco para mortes na forca, e que, não à toa, recebera este nome depois de que um de seus condena-dos resolvesse, após ter a corda partida por duas vezes, clamar pela própria liberdade (embora o pedido não houvesse sido atendido, evidentemente).

Seja como for, e porque as aulas de geografia eram chatas mes-mo, insistindo em falar apenas de relevos, planícies e bacias hi-drográficas, Mayumi sabia que o bairro era, no aspecto geográfico, grande o suficiente para abarcar o externato, a sua casinha, e as centenas de lojinhas comerciais japonesas e chinesas.

— Acho que deve aprender a controlar suas crises — murmu-rou subitamente Pengyou, despertando a menina de seu devaneio. — É uma menina de espírito livre, mas isso não significa que pre-cise ser selvagem.

Os guiozás pareciam deliciosos. Mayumi colocou o maior de-les inteiro na boca, o que a impossibilitou de se pronunciar por meio minuto, embora estivesse inclinada a perguntar coisas sobre os sonhos que ocorriam durante estas andanças. Perguntou, enfim, quando engoliu o segundo bolinho, encontrando aí um meio de desviar Pengyou de seu sermão.

— Sonhos… — sussurrou o velho. Ele, como todo bom chinês – e Mayumi conhecia bem o próprio pai –, acreditava existir algo de fantástico e proveitoso nos sonhos, pois, segundo dizia, habitava neles o “verdadeiro eu”. Alguns chineses podiam até receber men-sagens de ancestrais. Mas o que despertava verdadeiro interesse em Mayumi era escutar que muitos destes dorminhocos eram capazes de vislumbrar pessoas que viriam a encontrar realmente quando

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acordadas, de modo que tais experiências, como aquelas de ter a sensação de já se conhecer certas pessoas sem jamais ter travado contato algum com elas, eram bem reais.

— Assim como eu e você, xiau nuhai — murmurou ele. — Ou você acha que nosso encontro foi por acaso?

A menina sorriu. Era verdade. A primeira vez em que entrou na lojinha foi pelo mesmo motivo que a fizera esconder-se ali na-quele dia. Mayumi conhecia Pengyou apenas porque a mãe pedia para que ela comprasse os papéis de origami, mas ela sabia que o conhecia há muito tempo.

— Ainda assim não lembro de qual sonho nos encontramos — revelou ela. — Sonhos quase sempre não tão obscuros…

— É natural — concordou o velho. — Mas tem uma coisa que venho sonhando nos últimos tem-

pos — ela afirmou, pensativamente —, que não esqueço jamais. E pode muito bem justificar minhas andanças pelo colégio.

Pengyou voltou-se para ela com o rosto enrugado e impassível.— O que seria?— Um fusca vermelho — revelou ela.— Um fusca? — perguntou Lao Pengyou, enrugando a testa.— Sim. Vermelho. Desgovernado, é o que penso. Correndo a

toda por uma avenida. E o motorista, ao que parece, gritando por socorro — completou a menina.

Lao escutava tudo com muito atenção, é claro (porque era um velho muito indulgente), mas conduzia os pensamentos em silêncio.

Depois de algum tempo, murmurou, sem mostrar-se surpreso.— Talvez seu espírito esteja voejando por lugares reais. — Você acha que meu espírito faz isso porque é atraído por este

tipo de coisa? — indagou ela.— Talvez — respondeu o velho chinês, ajustando os hashis nos

dedos. — Pode ser que goste de perigos.Mayumi fitava as prateleiras sobre as quais depositavam-se ca-

beças de macacos, porcos e galos.— Não é à toa que ando por aí derrubando tudo — concluiu ela. O velho ainda mastigava seu guiozá, e olhava para o calendário

chinês preso à parede de frente ao balcão: 1985, Ano do Boi, dizia ali. Depois de bom tempo mastigando, virou-se para a menina.

— Já experimentou domar o próprio corpo? A menina engasgou.

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O velho sorriu diante daquela reação.— Sim. Domar. Da próxima vez que sair de si, procure dizer

“não” ao corpo. Talvez assim ele desista de lhe seguir. — E ao dizer isso, criou círculos imaginários com os dedos, indicando o curto espaço da lojinha. — Tenho certeza de que ele a está seguindo com medo de perdê-la por aí.

Aquele conselho soou tão esquisito e curioso, que mais nada foi falado durante toda a refeição. E, embora houvesse mais a ser dito, o velho calou-se por todo o resto daquela estranha entrevista.

A lojinha já ganhava sombras por todos os cantos com o aproxi-mar da tarde. Mayumi sabia que a mãe estava em casa preparando o almoço e depois sairia para levar encomendas de origamis para as vitri-nes das lojas da Liberdade. A Sra. Chen trabalhava neste ofício desde muito jovem, e era muito disciplinada. Acreditava que com o dinheiro ganho com as dobraduras de papel poderia dar uma vida melhor ao novo Chen, já que o trabalho do Sr. Chen na fábrica de celulose não parecia contribuir o suficiente. Sabendo muito bem disso, Mayumi pouco se importou quando o velho Pengyou encerrou aquela reunião.

— Talvez tenha de descansar. Em vista do que pode lhe esperar lá fora, faço questão de levá-la para casa.

Mayumi não gostou nada da ideia. E se Matilde ainda estivesse espreitando no quarteirão? Iria pensar que a menina estava usando o velho como guarda-costas, e isso só faria piorar as coisas.

Como gostaria que nada disso estivesse acontecendo!Mas estava.O céu de outono, azul, sem nuvens, soprava uma brisa fria que

farfalhava as aroeiras pelo caminho. O trajeto entre a pengyou anti-guidades e a casa de Mayumi era um percurso curto, de no máximo um quarto de hora. Mas agora, o tempo discorrido de um ponto a ou-tro parecia ser longo e incerto. Mesmo com os passos curtos e ligeiros do velho, a menina não deixava de esquadrinhar os becos e as vielas, e até mesmo os postes de luminárias japonesas, em busca de Matilde.

Talvez porque achasse que aquele momento parecesse ideal para voltarem ao assunto dos sonhos, Mayumi ciciou:

— Quando saberei que estou pronta para domar o meu corpo?— É uma resposta que você mesma terá de responder — falou

o velho.— Hum. Talvez meu corpo jamais desista de me seguir, pen-

sando melhor — lamentou ela.

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O velho sorriu.— Isso é o que você pensa, xiau nuhai.E os dois desceram mais uma quadra da Rua dos Estudantes,

até chegarem à rua da casa da menina.Enquanto faziam o percurso em silêncio, Mayumi pensava

em como poderia domar a si mesma. Não lhe parecia comum dar ordens a um corpo adormecido, e tampouco em quais condições deveria praticar. Quando enfim chegaram à casa de Mayumi, bem no final da Rua Anita, aos pés da escadaria que levava à íngreme Rua do Conde, o velho, muito satisfeito, regozijou-se de chegar ali sem resfolegar.

Mayumi já pegava a chave de casa na mochila, quando Lao Pengyou fez menção de tocar a campainha.

O sobrado, espremido entre duas outras casas, com a porta da rua se abrindo para uma calçada estreita, parecia tão apertado quanto seria um livro numa estante abarrotada. Curioso, Pengyou inclinou a cabeça para o lado, com os olhos ainda mais espremidos, e não notou quando a porta se abriu. Ao perceber que a mãe de Mayumi já estava ali – espantada por vê-lo acompanhado da filha –, empertigou-se imediatamente.

— Trouxe a sua filha, Sra. Chen — explicou ele, ao que pare-cia óbvio. E fez uma reverência.

A Sra. Chen alisou a barriga protuberante, relanceou para a filha e depois para o velho, e enrugou a testa. Era reservada como todos os imigrantes japoneses.

— O que houve? — indagou ela.— Como deve saber, a pequena Chen passa algumas horinhas

em minha loja antes de voltar para casa, porque diz que a senhora não está — respondeu o velho, hesitante.

Mayumi lamentava não ter encontrado desculpa melhor.— Obrigada — replicou a mulher. — Deseja entrar?— Oh, não, não! Estou aqui apenas para garantir a chegada de

Mayumi. Agora, se a senhora me permite…Antes que a Sra. Chen lhe dissesse coisa alguma, Mayumi viu

quando os lábios de Pengyou lhe segredaram quase como o sopro daquela brisa de outono: “você já está preparada.”

Mayumi abaixou a cabeça e entrou sem se despedir.O que mais precisava mesmo, naquele momento, era estar pre-

parada para domar a Sra. Chen.