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Capa Medicina v9 quarta-feira, 14 de junho de 2017 17:31:05 · 2018. 8. 17. · do século XiX e as primeiras décadas do século XX. nesse sentido, no sétimo capítulo, A Boia e

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  • 9788565212663

    Capa_Medicina_v9

    quarta-feira, 14 de junho de 2017 17:31:05

  • Medicina e contextos de exceção:

    histórias, tensões e continuidades

    Coleção Medicina, Saúde & História9

  • André MotAMAriA GAbrielA S. M. C. MArinho

    AnA neMi(Organizadores)

    Ana nemiAndré Mota

    beatriz VersollaCarlos botazzo

    ewerton luiz Figueiredo Moura da SilvaFábio de oliveira Almeida

    Gustavo AlarcãoJanaína de Almeida teles

    Maria Amélia de Almeida telesMaria do rosário dias de oliveira latorreMariana Carvalho nico de rezendeMariana de Carvalho dolciPaulo Silvino ribeiroPriscila Vitalino Severo Paisrenata Geraissati Castro de Almeida

    (Colaboradores)

    Santo André - SP2017

    Medicina e contextos de exceção:

    histórias, tensões e continuidades

    Coleção Medicina, Saúde & História9

  • Sumário

    apresentação .......................................................................................7

    Percursos da memória, da verdade e da (improvável) reparação, ou a Justiça de transição inacabada ...........................................13Carlos botazzo

    Profissionais da psique no golpe militar de 1964: recorte historiográfico do contexto da Clínica Psiquiátrica da FMUSP ..........39Gustavo Gil Alarcão André Mota

    a escola Paulista de Medicina e o Hospital são Paulo entre os anos de 1960 e 1980: o tempo vivido, o tempo rememorado e o tempo narrado ....................................................................63Ana nemi

    A participação dos médicos na repressão política .........................87Maria Amélia de Almeida teles Janaína de Almeida teles

    Medicina e saúde nos anos 60 e 70: ditadura militar e centralização política, desenvolvimento urbano-industrial, elites e redes de poder em são carlos ......................................115Fabio de oliveira Almeida

    considerações históricas sobre os intentos das conferências Nacionais de Saúde: projetos políticos em transição na edição de 1977 ................................................................................141Priscila Vitalino Severo Pais

  • Memória do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo: os anos 1969 a 1982 ......187Mariana de Carvalho dolci Mariana Carvalho nico de rezende Maria do rosário dias de oliveira latorre

    do tema relevante à irrelevância da presença: a saúde e a medicina por entre os registros da história da FESP ..................213Paulo Silvino

    A boia e a salubridade: o comércio de equipamentos sanitários em São Paulo na passagem do século XIX para o XX ...................231renata Geraissati Castro de Almeida

    Imigração e loucura em São Paulo: presença portuguesa no Hospital do Juquery, anos 30 ..................................................259ewerton luiz Figueiredo Moura da Silva

    Eugenia e educação: o olhar médico sobre o contexto educacional a partir das teses doutorais da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (1920 a 1934) ................................281beatriz lopes Porto Verzolla

    sobre os autores....................................................................313

  • 7

    Apresentação

    o nono volume da coleção Medicina, saúde e história reúne um conjunto de reflexões sobre as práticas e instituições médicas e de atendimento à saúde em contextos de exceção, notadamente o período da ditadura militar no brasil. o recorte é bastante relevante nos tempos que vivemos, quando a fragi-lidade das políticas de memória e verdade dos governos brasi-leiros, além das limitações do processo de justiça de transição que nos trouxe da ditadura para a Constituição Cidadã de 1988, deixa evidente o quanto flertamos com o perigo ao não apro-fundar o debate sobre os sentidos e conteúdos de contextos de exceção jurídica e política. Se, entre o final do século XiX e o início do século XX, as teorias de eugenia, de saneamento urba-no e de isolamento de pessoas diagnosticadas como “desvian-tes” implicavam ações de exceção contra populações pobres em relação aos seus lugares de moradia e às suas possibilidades de sobrevivência e convivência pública, durante a ditadura militar, parte das instituições médicas, sejam hospitais, universidades ou institutos Médicos legais, ofereceu suporte para as ações de exceção que incluíam tortura, desaparecimento e nenhuma transparência em relação à realidade da saúde da população, como se pode verificar pelas dificuldades para publicitar o sur-to de meningite que acometeu o país nos anos de 1970.

    em uma visada mais geral, é possível afirmar o desen-volvimento de um conjunto de direitos sociais ao longo do sé-culo XX brasileiro, como a definição das oito horas de trabalho diárias, as férias remuneradas, a proteção da infância em rela-ção ao trabalho, a carteira de trabalho assinada, o atendimen-to à saúde, o direito à escolarização, entre muitos outros. tais direitos, no entanto, nem sempre vieram acompanhados de

  • 8 André Mota, Maria Gabriela S. M. C. Marinho (Org.)

    direitos civis e políticos; ao contrário, a articulação entre os di-reitos civis, políticos e sociais, assim como a efetivação de polí-ticas públicas de proteção aos direitos humanos, parece ser uma longa história de avanços e retrocessos. Se na chamada Primei-ra república os brasileiros iniciaram sua longa luta pela cons-trução de sindicatos e pela transformação de direitos em leis, a era Vargas significou retrocesso nas liberdades políticas e civis. o curto interregno liberal-democrático localizado entre os anos de 1945 e 1964, se de um lado pareceu acolher as demandas po-pulares pela articulação entre liberdades e conquistas sociais, de outro lado, tendo tido como desfecho o golpe de 1964, evi-denciou o quanto seria difícil unir liberdades e níveis maiores de inclusão e justiça social. A ditadura militar, para além de su-focar movimentos sociais e grupos políticos, promoveu fortíssi-ma concentração de renda e, no que diz respeito ao atendimen-to à saúde, enraizou o modelo previdenciário cujos primeiros passos haviam sido dados no início do século XX, com as caixas de aposentadoria por setores de trabalho. A derrota da ditadura e promulgação da Constituição Cidadã de 1988 deu-nos a im-pressão de finalmente podermos articular todos os direitos dos cidadãos enunciados desde o final do século XViii e construir políticas efetivas de direitos humanos e proteção social.

    bem, leitor, os tempos em que vivemos nestas terras cha-madas de brasílicas pelos colonizadores portugueses falam por si: o Sistema Único de Saúde (SUS), grande conquista da demo-cracia brasileira, cujas origens se encontram nas lutas contra a ditadura, vem sofrendo fortíssima pressão pelo seu desmonte. nossa justiça de transição não foi capaz de encontrar mecanis-mos para punir violadores de direitos humanos da época da ditadura e, pior, ainda muitos acreditam que a violência do es-tado é a solução para os problemas de segurança. este volume, portanto, convida a pensar as relações entre práticas médicas e regimes de exceção, seja pela ação direta do estado, seja pelas propostas dos médicos e suas instituições. Que as leituras nos inspirem a democracia!

  • Medicina e contextos de exceção – volume 9 9

    no primeiro capítulo, Percursos da memória, da verda-de e da (improvável) reparação, ou a Justiça de Transição ina-cabada, Carlos botazzo apresenta uma discussão sobre os con-teúdos de uma justiça de transição e suas possibilidades para efetivamente promover reconciliação, reparação ou justiça por meio da condenação de responsáveis por violações de direitos humanos. o autor estuda diferentes circunstâncias de justiça de transição e, comparativamente, destaca a morosidade e os limi-tes do processo brasileiro de recuperação da memória e da ver-dade e de produção de justiça, além de especificar a experiência de colaboração com a ditadura do complexo de faculdades e hospitais localizado entre a rua teodoro Sampaio, a avenida rebouças e a avenida doutor Arnaldo.

    André Mota e Gustavo Alarcão, no capítulo Profissionais da psique no golpe militar de 1964: recorte historiográfico do con-texto da Clínica Psiquiátrica da FMUSP, reconstituem os em-bates, as tramas e os caminhos construídos por conservadores, apoiadores do golpe, e progressistas, ligados à esquerda médica e sanitária, no âmbito da Clínica Psiquiátrica da FMUSP, mar-cada pela presença do médico Antonio Carlos Pacheco e Silva.

    no terceiro capítulo, intitulado A Escola Paulista de Me-dicina e o Hospital São Paulo entre os anos de 1960 e 1980: o tem-po vivido, o tempo rememorado e o tempo narrado, Ana nemi se ancora nos conceitos de história e tempo do historiador ale-mão reinhart Koselleck para discutir a experiência da escola Paulista de Medicina e seu hospital universitário entre os anos de 1960 e 1980, destacando o departamento de medicina pre-ventiva, a frustrada tentativa de fundação de uma universidade federal abortada pelo golpe de 1964 e as tensões entre apoiado-res e críticos da ditadura que se instalava.

    em A participação dos médicos na repressão política, o quarto capítulo deste volume, Maria Amélia de Almeida teles e Janaína de Almeida teles perscrutam a participação dos mé-dicos no aparato repressivo da ditadura, apontando as denún-cias que apareceram ainda durante o regime militar, o trabalho reunido no livro Brasil Nunca Mais, os resultados obtidos pela

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    Comissão nacional da Verdade, as ações de Conselhos regio-nais de Medicina, do Grupo tortura nunca Mais e da Comis-são de Familiares de Mortos e desaparecidos, além de apontar os difíceis caminhos da luta por memória, verdade e justiça até os dias de hoje.

    Fábio de oliveira Almeida, no quinto capítulo, Medicina e saúde nos anos 1960 e 1970: ditadura militar e centralização política, desenvolvimento urbano-industrial, elites e redes de po-der em São Carlos, articula documentação institucional, de hos-pitais e da Sociedade Médica de São Carlos, e entrevistas com médicos e cidadãos/pacientes de São Carlos, para reconstituir a experiência desses personagens durante os anos de 1960 e 1970, no contexto de implantação violenta e de fortalecimento da di-tadura militar.

    no sexto capítulo, Considerações históricas sobre os in-tentos das Conferências Nacionais de Saúde: projetos políticos em transição na edição de 1977, Priscila Vitalino Severo Pais analisa o papel das conferências nacionais de saúde e destaca os conteúdos e propostas da sexta conferência, que teve lugar em 1977, em meio à crise do regime militar e ao crescimento dos movimentos sociais em saúde e de oposição à ditadura.

    em Memória do Departamento de Epidemiologia da Fa-culdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo: os anos de 1969 a 1982, sétimo capítulo desta coletânea, Mariana de Carvalho dolci, Mariana Carvalho nico de rezende e Maria do rosário dias de oliveira latorre, apoiando-se em farta do-cumentação institucional, historiam o departamento de epi-demiologia da FSP/USP, destacando os debates para a definição de suas disciplinas, a montagem dos laboratórios e o desenvol-vimento da pesquisa.

    Paulo Silvino, no oitavo capítulo, Do tema relevante à ir-relevância da presença: a saúde e a medicina por entre os regis-tros da história da FESP, investiga o processo por meio do qual as aproximações entre a medicina e as ciências sociais, presen-tes nos primeiros momentos da escola de Sociologia e Políti-ca de São Paulo, foram se esvaecendo especialmente nos anos

  • Medicina e contextos de exceção – volume 9 11

    da ditadura, não apenas nas grades curriculares que se foram sucedendo, como também nas teses defendidas na instituição.

    os três últimos capítulos desta coletânea, embora não lo-calizados no período da ditadura militar, dialogam com os ou-tros na medida em que sugerem ações políticas e/ou médicas de intervenção nos espaços públicos e em instituições hospitalares e universitárias que produzem efeitos de exclusão e exceção para as populações afetadas. trata-se de observar a presença das teses sanitaristas de organização dos espaços públicos, eugenistas e de internação de pessoas diagnosticadas como “loucas” entre o final do século XiX e as primeiras décadas do século XX.

    nesse sentido, no sétimo capítulo, A Boia e a salubri-dade: o comércio de equipamentos sanitários em São Paulo na passagem do século XIX para o XX, renata Geraissati Castro de Almeida estuda as relações entre as propostas sanitaristas da São Paulo na passagem do século XiX para o XX, a imigração e a comercialização de equipamentos sanitários empreendida pelo imigrante rizkallah Jorge tahan.

    em Imigração e loucura em São Paulo: presença portugue-sa no Hospital do Juquery, anos 1930, ewerton luiz Figueiredo Moura da Silva apresenta a fundação do Asilo do Juquery no contexto da modernização da cidade de São Paulo promovida por suas elites. os imigrantes portugueses internados no noso-cômio são o objeto de sua pesquisa, na qual é possível perceber as singularidades do tratamento a eles oferecido: uma exceção em meio à exceção que o isolamento hospitalar impunha.

    Por último, no capítulo 11, intitulado Eugenia e educa-ção: o olhar médico sobre o contexto educacional a partir das teses doutorais da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (1920 a 1934), beatriz lopes Porto Verzolla estuda a presença de ideias eugenistas, bastante em voga entre 1924 e 1934, nas teses doutorais que marcaram os primeiros anos do desenvolvimento da pesquisa na FMUSP.

    Ana NemiProfessora de história Contemporânea

    da Universidade Federal de São Paulo

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    Percursos da memória, da verdade e da (improvável) reparação, ou a Justiça de Transição inacabada

    Carlos botazzo

    a transição inacabada, um caso brasileiro

    Atividades relacionadas à Justiça de transição têm sido relatadas em países que viveram processos mais ou menos pro-longados de conflitos internos, envolvendo parte significativa da sociedade, ou mesmo em países que se envolveram em guer-ras e que, por variados motivos, acabaram por instituir siste-mas jurídicos ou repressores que culminaram com a violação de direitos de grupos étnicos ou populações localizados em seu território ou área de influência militar. no primeiro caso, po-demos identificar a África do Sul, sob o regime do apartheid, e países da América do Sul; no segundo caso, e talvez por isso mesmo emblemático dessas situações, encontramos a Alema-nha após a Segunda Guerra Mundial.

    Cessadas as hostilidades e recuperados ou refeitos os pressupostos político-jurídicos de ordenamento da nova rea-lidade, são estabelecidos dispositivos ou processos que buscam esclarecer fatos ocorridos, motivações, eventos, circunstâncias e certos outros modos de proceder que, lançando luz sobre o passado, ajudam a construir as ligações com o presente e o reencontro de povos e sociedades consigo mesmas. tais pres-supostos tornam-se perfeitamente claros quando se está diante da possibilidade inescapável de que todo esse processo anterior

  • 14 André Mota, Maria Gabriela S. M. C. Marinho (Org.)

    tenha sido construído por meio de sistemática violação de di-reitos.

    A transição de um estado anterior de beligerância ou violento dissenso visa reorganizar as bases sociais a partir de novos pressupostos e propiciar a criação de suporte para a ex-pressão das novas subjetividades, ou seja, novos imaginários, novas narrativas, novas possibilidades de produção cultural e de trocas intersubjetivas em povos e sociedades. isso pode ser obtido primeiro pelo esclarecimento dos eventos que foram su-portados como violação, pelo uso de violência sistemática por agentes do estado e, no caso de guerras civis, pelas partes em contenda, alternativamente. o esclarecimento restabelece a ver-dade porque, por meio de depoimentos e provas documentais e circunstanciais, permite a reconstrução dos fatos ocorridos, que estavam ocultados da população em geral. Por isso, as co-missões criadas com essa finalidade são em geral denominadas “da verdade”. elas podem se conduzir segundo três orientações distintas: pensar a reconciliação entre os membros dos grupos opostos e destes com a sociedade e a sociedade com ela mesma; propor a reparação às vítimas; fornecer subsídios para os tribu-nais que, eventualmente, poderão sancionar os casos compro-vados de violação e punir seus executores.1

    especialistas concordam que

    os conflitos internos prolongados e profundamente en-raizados na sociedade têm levantado importantes ques-tões ao nível da resolução de conflitos e da construção da paz. Coloca-se então a questão de como quebrar os ciclos de violência alargada, que corroeram o tecido

    1 Atendendo a esses objetivos, observa-se a ocorrência de Comissões da Verdade em quarenta países, dos quais quatro tiveram duas comissões em épocas distintas. A mais antiga comissão instalada foi em 1974, em Uganda, onde, posteriormente, em 1984, outra comissão foi instalada. há ocorrência de uma comissão no Canadá e outra na Carolina do norte, talvez inesperadas. A comissão mais recente é a brasileira (disponível em: ).

  • Medicina e contextos de exceção – volume 9 15

    social dum país em conflito, onde as comunidades es-tão fortemente polarizadas. o fim da guerra ou a nego-ciação dum acordo de paz marcam o final do conflito, mas não significam, necessariamente, a criação de paz. A paz, definida em termos positivos, integra um pro-cesso social dinâmico de transformação das relações entre comunidades profundamente divididas designa-do por reconciliação. (FiliPe, s/d, p. 1).

    Para tornar prática a compreensão desse fato, basta ima-ginar situações de conflito distintas em países como Chile, Co-lômbia e África do Sul. no caso chileno, um violento golpe de estado elimina as instituições políticas que garantiam o funcio-namento democrático da sociedade e do Governo, ou seja, des-trói as estruturas sociais básicas que eram identitárias e consti-tuidoras da cidadania chilena, tal como o povo se via e também como outros povos o viam. no caso colombiano, ocorreu como fato histórico profunda clivagem no arcabouço social, com a divisão do estado – e por decorrência também na política – em duas grandes vertentes opostas e em beligerância: o Governo Central e suas instituições e as Forças Armadas revolucionárias da Colômbia (FArC) e o que elas podiam articular de “alterna-tivo” ao poder central, incluindo a administração de territórios “liberados”. Já no caso sul-africano, a minoria branca institui um regime de apartação da maioria da população autóctone, constituída por povos africanos que estavam radicados no mes-mo território, com história e cultura próprios, e os submete a um sistema declaradamente racista e escravocrata.

    essas três experiências históricas tiveram resoluções dis-tintas enquanto processo e encaminhamento dos numerosos problemas gerados ao longo de décadas de conflitos e violações. A Colômbia promissoramente aguarda por encaminhamentos que conduzam as partes a um novo concerto, enquanto Chile e África do Sul resolveram a trama sensível da sociedade violen-tada, uma pela superação da ditadura e a outra pela queda do apartheid. “nos países marcados por longos períodos de con-

  • 16 André Mota, Maria Gabriela S. M. C. Marinho (Org.)

    flito”, quando a situação anterior é ultrapassada, “há uma ne-cessidade de reconstrução do tecido social para que a transição política pós-conflito se dê de forma pacífica” (FiliPe, s/d, p. 4). há medo e há trauma, há ressentimento e há, na maior parte dos casos, esperança de que as coisas encontrem apaziguamen-to e que uma imagem de futuro se instale e aponte com clareza caminhos para as gerações que virão. A tarefa que se tem por diante, nestes casos, é a edificação de meios que permitam a superação do trauma e da cultura de violência e que criem as bases da reconstrução psicológica que permita novas formas de subjetividade. isso é política e exige vontade política para sua realização, pois,

    nas sociedades de transição democrática ou pós-con-flito, as principais opções que se colocam ao regime su-cessor para lidar com o legado de violência e o passado dependem, então, das condições em que se encontra e do valor que coloca em cada uma daquelas energias so-ciais. (FiliPe, s/d, p. 6).

    Como fazer, como lidar com os fantasmas do passado (presentificados, no caso brasileiro, e hoje mais do que antes), como lidar com o peso da história? duas têm sido as vias apon-tadas: uma, a do esquecimento, e a outra, a do reconhecimento do passado. esquecer: amnésia, amnesty, anistia. Foi o caminho encontrado por Portugal após a revolução dos Cravos de abril de 1974. o que fazer com os incontáveis e conhecidos casos de violação no território continental e nas colônias, o que fazer com os agentes da Polícia internacional e de defesa do estado (Pide/dGS)? Por meio de plebiscito, os portugueses optaram por “esquecer” o passado, e assim nada foi feito. nos países africanos liberados, todavia, os novos dirigentes “justiçaram” um certo número de colaboradores, após julgamentos formais, cujos crimes eram por demais conhecidos, e impuseram programas de reeducação a milhares de outros sujeitos. eles permaneceram nos seus postos de trabalho, porém tinham

  • Medicina e contextos de exceção – volume 9 17

    sua situação publicamente conhecida, com direito a um “per-fil” editorado em cartolina e exibido, com foto e breve históri-co das falcatruas cometidas, em painéis afixados na entrada de ministérios, fábricas e escolas. em Moçambique, por exemplo, os últimos “reeducandos” foram reabilitados entre 1982 e 1983, sete anos após a independência, muitas vezes sob o protesto de colegas e ex-alunos que os consideravam quintas-colunas e fal-samente “arrependidos”.2

    A outra via seria a do reconhecimento do passado. Para isso, a experiência tem indicado três formas de atuação: 1) as Comissões da Verdade incumbidas de conhecer e sistemati-zar os casos de violações; 2) as comissões de reparação; e 3) os tribunais. As Comissões da Verdade podem também propor e funcionar no sentido de promover a reconciliação, enquanto as Comissões de reparação visam estabelecer dispositivos que garantam a recuperação de direitos suprimidos, em geral de tipo trabalhista ou previdenciário, e de medidas pecuniárias. os tribunais, finalmente, são incumbidos de tratar, na forma da lei, dos crimes imputados, dar curso ao julgamento e proferir sentenças – inocentando ou condenando os acusados.

    estas Comissões estão incumbidas de conduzir uma investigação sobre os abusos do passado dando reco-nhecimento às vítimas e propondo também formas de reparação e de prevenção de abusos no futuro. Assim, há um reconhecimento público e social em que se re-conciliam memórias e versões do passado. Para as po-pulações afetadas pela violência, essa recuperação de memória tem, também, um valor terapêutico e de re-conhecimento social e de justiça, acabando por ter um papel preventivo. (FiliPe, s/d, p. 7).

    2 o processo sul-africano foi estruturado com base no conceito de ubuntu, da língua xhosa, que exprime a consciência entre o indivíduo e a comunida-de. em outras palavras, ubuntu significa reconhecer a minha humanidade na humanidade do outro e vem ligada à ideia de tolerância e compaixão, pilares da reconciliação pós-apartheid. Ubuntu é parte da identidade pan-africana e adotada por numerosos países, incluindo Moçambique.

  • 18 André Mota, Maria Gabriela S. M. C. Marinho (Org.)

    Qualquer que seja a opção adotada, são exigidos dis-posição política e correlação de forças favorável no interior da sociedade e das instituições para que algo aconteça, pois é possível prever que, dependendo das condições objetivas que orientaram a transição, forças contrárias oponham obstáculos ao conhecimento da verdade. esse é exatamente o caso brasilei-ro, que se distingue do verificado em países da América latina e de outras partes do mundo. de fato, com pequenas variações, o desenho que se implantou nos países do Cone Sul, para ficar num caso geograficamente mais próximo, significou a identi-ficação e o julgamento de responsáveis por violações, mesmo quando se tratava de militares com alta patente e outros funcio-nários graduados. é assim que acusados como o general Videla, na Argentina, e o mais famoso de todos, o próprio Augusto Pi-nochet, do Chile, acabaram condenados por violações e rece-beram penas expressivas. Um dos aspectos mais comentados nessas e em outras condenações é a jurisprudência internacio-nal que assegura a imprescritibilidade dos crimes de tortura, as-sociados ou não a sequestros, assassinatos e desaparecimentos forçados. A esse respeito, é claro o posicionamento dos tribu-nais internacionais, tornando-se capitular a seguinte referência:

    [...] a Corte interamericana considerou claramente que: leis de autoanistia constituem ilícito internacional; perpetuam a impunidade; e propiciam uma injustiça continuada, impedindo às vítimas e a seus familiares o acesso à justiça, em direta afronta ao dever do estado de investigar, processar, julgar e reparar graves viola-ções de direitos humanos (CnV, p. 967).

    no brasil, esse processo teve outro ritmo, embora tenha mantido semelhanças, e três distintos momentos marcaram a trajetória no caminho da recuperação da Memória, em busca da Verdade e da Justiça: 1) a lei da Anistia de 1979; 2) a Co-missão de Anistia em 2002; e 3) a Comissão da Verdade em 2011. observemos que esses eventos distam muito fortemente

  • Medicina e contextos de exceção – volume 9 19

    entre si, com intervalo de 23 anos entre o primeiro e o segun-do e mais de trinta anos entre o primeiro e o último. esse tem sido o tempo político no brasil quando se trata de recupera-ção da memória e de reparação a todos os que foram atingidos pela repressão, o qual não pode ser interpretado senão como articulado à baixa capacidade de mobilização social que o tema suscita tanto quanto à capacidade de expressão de forças con-servadoras na manutenção do status quo.

    Assim, de um lado, observam-se as associações em defe-sa dos direitos humanos e as comissões de familiares de mor-tos e desaparecidos; por outro lado, não apenas grupos ligados aos setores militares, mas também parcela expressiva no parla-mento e tribunais de justiça em instância superior. enquanto os primeiros lutaram pelo resgate da memória e pela verdade, reivindicaram o acesso aos corpos dos seus mortos e insistiram em saber o que aconteceu com seus desaparecidos, o stablish-ment fez vistas grossas aos pedidos de abertura de inquéritos, recusou a abertura de arquivos oficiais e decretou a imobilidade das interpretações sobre a “anistia recíproca”, garantindo dessa forma a inimputabilidade dos agentes do estado que comete-ram crimes durante os anos de ditadura.

    essa posição está em desacordo com a legislação brasi-leira e com os pactos internacionais dos quais o brasil é signa-tário. na verdade, o que teria acontecido nessa transição? em primeiro lugar, é preciso notar que a correlação de forças no final da década de 70 apontava para certo equilíbrio político entre os apoiadores da ditadura e o campo democrático. Mas é preciso notar outra vez que os apoiadores se encontravam nos quartéis – falamos em força, neste caso – e num parlamento eleito por regras eleitorais casuísticas que visaram dar aparên-cia de legalidade à ditadura, com a formação de “maioria” ne-cessária ao estado de exceção. eram cada vez maiores e mais contundentes as manifestações pelas liberdades democráticas e se havia ampliado o movimento social que reivindicava anis-tia geral e irrestrita aos brasileiros e a volta dos exilados. Mas o regime fincou pé, e um projeto de lei, com as propostas do

  • 20 André Mota, Maria Gabriela S. M. C. Marinho (Org.)

    último governo militar, foi enviado ao Congresso nacional e terminou aprovado com poucas emendas, nenhuma das quais alterava a redação do primeiro artigo. Justamente esse artigo continha em seu enunciado a definição que iria impedir pelas décadas seguintes todas as tentativas de recuperação de memó-ria, de reconhecimento social e de justiça e todos os esforços de reparação para os que foram afetados pela violência do estado.

    de fato, o enunciado de 1979 dizia claramente:

    Art. 1º é concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direi-tos políticos suspensos e aos servidores da Adminis-tração direta e indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representan-tes sindicais, punidos com fundamento em Atos insti-tucionais e Complementares.§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. (brASil, 1988, grifo nosso).

    embora o parágrafo segundo inicialmente fosse consi-derado o mais problemático, pois excluía dos efeitos da lei os que haviam praticado “atos de terrorismo”, o que veio a travar a possibilidade de torturadores conhecidos serem denunciados e conduzidos aos tribunais foi a interpretação dada ao conceito de crime conexo, expresso no caput do artigo e em seu primei-ro parágrafo. de fato, o entendimento dominante foi o de que, com essa redação, a ditadura teria “passado uma borracha” no seu passado e, em tese reconhecendo que agentes do estado – seus agentes! – teriam cometido crimes, fez com que fossem anistiados, tornando-os conexos aos supostos crimes cometi-dos pelos opositores do regime. Por isso, ademais de parcial e restrita, essa lei foi conhecida como autoanistia, uma anistia

  • Medicina e contextos de exceção – volume 9 21

    que os militares, outorgantes da lei, concediam a si mesmos e aos numerosos crimes que eles próprios haviam cometido: golpe de estado, violação da Constituição em vigor, cassação de mandatos e cassação ampla de direitos, censura, prisão ar-bitrária de opositores, desaparecimentos forçados e sequestro, assassinatos, tortura sistemática, estado de terror.

    Jamais na história do direito o conceito jurídico de cone-xão entre crimes havia sofrido tamanho giro. Crime conexo, na definição clássica, liga o sujeito imputado a dois ou mais crimes cometidos em ligação uns com outros ou derivados, como seria assassinar alguém e desaparecer com o cadáver (assassinato e ocultação), estuprar e posteriormente matar a vítima (atentado ao pudor e assassinato), roubo de veículo seguido de infrações graves no trânsito etc. ou seja, crimes ligados entre si e prati-cados por um mesmo sujeito, que, embora distintos, poderão ser juntados e ser objeto de um mesmo julgamento ou de um mesmo rito, numa única jurisdição. A despeito de que essa defi-nição seja líquida e certa, o entendimento do Supremo tribunal Federal (StF), em julgamento realizado em 2010, foi outro e manteve a interpretação anterior que estabelecia essa espécie de anistia recíproca, fruto de acordo político, em desacordo com a legislação brasileira e a internacional. A consequência de tal ato – uma violação a mais – foi a de estender o manto da impuni-dade sobre torturadores e tantos assassinatos estatais cometidos no período. Ainda neste momento, passados trinta anos, conti-nuou sendo conveniente não mexer com assuntos “de estado”. Cabe uma pergunta: pode o estado, por meio dos seus agen-tes, ser considerado delinquente ou criminoso? A pergunta é pertinente pelo fato de os agentes estatais, acima de tudo os da Polícia, serem obrigados ao estrito cumprimento da lei. A inda-gação encontra acolhida no seguinte comentário:

    e se os guardiões da lei e os detentores do poder políti-co cometessem crimes de forma deliberada e sistemáti-ca, criando assim uma identificação do próprio apare-lho estatal com a criminalidade? o que aconteceria se o

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    estado fosse efetivamente um delinquente? [...] de fato, vários estados apresentaram-se ao longo do século XX como verdadeiros bandos de criminosos, devido às ações cometidas por seus governos. Vários países, dos mais diversos continentes, que viveram ou ainda vivem sob regimes ditatoriais, foram ou são marcados pela excessiva violência e crueldade com que seus governos consolidam o poder e esmagam a contestação vinda de opositores políticos. daí dizer-se desses países que seus estados foram ou são delinquentes, foram ou são criminosos. daí então se utilizar a expressão ‘crimina-lidade estatal’ ou ‘criminalidade política estatal’. Nesse sentido, também a ditadura militar brasileira, entre tan-tos outros exemplos, pode ser vista como um caso de in-vasão da criminalidade nas esferas jurídica e política do país, ou seja, como um exemplo de delinquência estatal. (SwenSSon Jr., 2007, p. 30, grifo nosso).

    Sem que os princípios que teriam por efeito lançar luz sobre os fatos do passado fossem atingidos, também não foi possível promover a reconciliação e nenhuma das metas que poderiam ter conduzido a sociedade brasileira no caminho da cicatrização das feridas abertas, dotadas, portanto, de valor te-rapêutico, foi alcançada.

    o segundo ato cumpriu-se em 13 de novembro de 2002, com a instituição do regime do Anistiado Político (lei nº 10.559), que regulamentou o Artigo 8º do Ato das disposi-ções transitórias da Constituição de 1988. Aquando do pro-cesso constituinte, foi firmado como ato a concessão de anistia

    aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares [...] asseguradas as promoções, na inatividade, ao car-go, emprego, posto ou graduação a que teriam direi-to se estivessem em serviço ativo, obedecidos os pra-zos de permanência em atividade previstos nas leis e

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    regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes ju-rídicos (brASil, 1988).

    Passaram-se, portanto, 14 anos até que medida provisó-ria, posteriormente convertida em lei, instituísse um processo claro de reparações aos atingidos pela repressão.

    Como ato central, o regime do Anistiado Político resta-belecia direitos, abarcando desde a simples declaração da con-dição de anistiado político até o direito à reparação econômica, a contagem do tempo que o anistiado esteve afastado de suas atividades, a possibilidade de conclusão dos estudos interrom-pidos, a reintegração dos servidores públicos civis e militares em decorrência de greves e a reintegração dos punidos nos cargos que ocupavam. Como forma de dar materialidade a es-sas deliberações, a lei nº 10.559 previa a constituição de uma Comissão de Anistia no Ministério da Justiça. A despeito de que tenha concedido reparações milionárias a alguns dos que tiveram seus direitos atingidos, o trabalho da comissão sempre se pautou pelas boas práticas, tendo recebido mais de 70 mil reclamações indenizatórias. no entanto, algumas críticas apon-tam limites que dificultaram o acesso de requerentes aos pos-síveis benefícios: impossibilidade de sujeitos que não tinham emprego formal reivindicarem o ressarcimento dos prejuízos decorrentes de prisões ou perseguições; produção de provas ou meios, nem sempre compatíveis com a vigência de repressão; impossibilidade indenizatória nos casos em que o perseguido não perdeu o emprego; no caso de falecimento do parente per-seguido, dificuldade dos herdeiros em conseguirem fazer prova das ocorrências; contratação de serviços advocatícios.

    Mesmo sendo criada num governo de centro-direita, a Comissão da Anistia esteve sob ataque de grupos conservado-res de apoio à “causa dos militares” (apresentados como injus-tiçados e vítimas dos que lutaram pela democracia) e não con-tou com a simpatia da grande imprensa, uma mídia também

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    conservadora que frequentemente fazia eco a tais posiciona-mentos e que amplificava os julgamentos por vezes equivoca-dos da comissão. não apenas isso, posto que se manifestava abertamente não sobre o encontro da sociedade com seu pas-sado, a recuperação da memória e a cicatrização das feridas, mas incidia na propaganda acerca dos supostos “privilégios” dos perseguidos.

    o terceiro e último ato deu-se com a criação da Comis-são nacional da Verdade (CnV) por meio da lei nº 12.528, de 13 de novembro de 2011, e instituída em 16 de maio de 2012, ou seja, quase 33 anos depois da anistia de 1979. tinha por finalidade

    examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das disposições Constitucionais transitórias [18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988], a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e pro-mover a reconciliação nacional (brASil, 2011).

    Além disso, a lei tinha como alguns objetivos os seguintes:

    Art. 3º – São objetivos da Comissão nacional da Ver-dade:[...]ii – promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de tortura, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorri-dos no exterior [...] (CnV, p. 842).[...]Vi – recomendar a adoção de medidas e políticas pú-blicas para prevenir violação de direitos humanos, as-segurar sua não repetição e promover a efetiva reconci-liação nacional (CnV, p. 962).

    Veja-se que esse ato de instalação da CnV acontece se-gundo tempos políticos extremamente prolatados, de modo a

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    dificultar a formação de opinião pública consistente e com ca-pacidade de influenciar posições inclusive no parlamento. Se já a Comissão de Anistia esteve sob ataque, a CnV foi alvo das mais grosseiras deformações a que uma sociedade pode chegar no tema da violação de direitos. bombardeada pela imprensa e pelo ativismo político de grupos de extrema direita, inclusive no parlamento, os trabalhos da CnV foram sabotados e per-manentemente apontados como inclinados à prática da cisão, devotada que seria ao acirramento dos ânimos e ao fomento do ódio “entre irmãos” pela teimosia em mexer nos assuntos que “a lei e o tempo já haviam enterrado”. deliberada a batalhar pela abertura dos arquivos das Forças Armadas e em esclarecer as circunstâncias do desaparecimento ou morte de milhares de opositores do regime, os membros da CnV viram seu esforço cingido à tomada de depoimentos e na realização de diligências em centros de tortura, alguns dos quais haviam se tornado lu-gares de extermínio, como a Casa da Morte em Petrópolis/rJ ou o destacamento de operações de informações/Centros de operação de defesa interna (doi/Codi) da Vila Mariana/SP.3 também suas conclusões e recomendações vieram a conformar uma pauta substantiva quando se pensa a sociedade democráti-ca ou tempos futuros mais promissores para o tema dos direitos humanos no brasil.

    Se, de um lado, a CnV viu-se tolhida nas numerosas ten-tativas e no seu esforço em produzir clareamento das situações experenciadas, nem por isso seu trabalho pode ser considera-do “desprezível”. não foi de pequena monta e relevância o que produziu nos três anos de trabalho ininterrupto. Foram esclare-cidos o modo de funcionamento do aparato repressivo, sobre-tudo o dos centros de informação das Forças Armadas, e as táti-cas de interrogatório utilizadas; foram localizados e claramente

    3 Somente pelo doi-Codi da Vila Mariana teriam passado mais de 8 mil pessoas e, em suas instalações, ocorreram dezenas de assassinatos. em todo o brasil, entre 1964 e 1985, mais de 1 milhão de pessoas foram investigadas e aproximadamente 100 mil foram presas, praticamente todas submetidas às mais variadas formas de tortura.

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    tipificados 273 centros de tortura e violações em todo o brasil; foram caracterizados 434 opositores mortos em dependências oficiais ou desaparecidos quando já se encontravam sob custó-dia da autoridade ou que desapareceram sem que a autoridade informasse seu paradeiro; muitos desaparecimentos foram es-clarecidos, entre os quais o do deputado federal rubens Paiva e o da professora rosa Maria Kucinski; outros desaparecimen-tos também acabaram esclarecidos, com a revelação terrível de técnicas para a ocultação dos cadáveres, desde a mutilação ou esquartejamento até o uso de fornos industriais para cremação de presos mortos sob tortura; foi tornado público o organo-grama dos doi/Codi; foi revelada a articulação internacional que culminou com o golpe de 1964, expondo a participação de funcionários da embaixada dos estados Unidos da América, incluindo o próprio embaixador, lincoln Gordon; foi desvelada a operação Condor, articulação intergovernamental (classifi-cada) que coordenava os esforços de inteligência e repressão das ditaduras do Cone Sul ‒ brasil, Uruguai, Paraguai, Argen-tina e Chile; ficaram escancarados o apoio de entidades patro-nais (do tipo Federação das indústrias – Fiesp ‒ e congêneres)4 ao regime e o esquema de financiamento do aparelho repressi-vo, inicialmente em São Paulo com a operação bandeirantes e posteriormente com os doi/Codi; foram ouvidos oficiais das Forças Armadas e outros agentes do estado, alguns com nível de comando, como foi o caso do coronel brilhante Ustra e do capitão Malhães, e investigadores com responsabilidade opera-cional da equipe do delegado Sérgio Fleury do departamento de ordem Política e Social (doPS) paulista. enfim, a CnV se encerrou em 2014 com a entrega do seu relatório à presidenta

    4 A Fiesp teve papel destacado na montagem e financiamento dos órgãos de repressão, inicialmente em São Paulo e depois em todo o brasil. Seu principal mentor foi henning Albert boilesen, dinamarquês naturalizado brasileiro, que presidiu o Grupo Ultra. Montadoras forneciam veículos, o mais famoso a C-10, da GM. também a Folha de S. Paulo esteve implicada com o forne-cimento de veículos e a veiculação de matérias de encobrimento de prisões e assassinatos.

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    da república e nesse mesmo ato fez recomendações das quais cabem registrar as seguintes:

    [1] reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua res-ponsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura mili-tar (1964 a 1985)[2] determinação, pelos órgãos competentes, da res-ponsabilidade jurídica – criminal, civil e administrati-va – dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período[4] Proibição da realização de eventos oficiais em co-memoração ao golpe militar de 1964[6] Modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais, para promoção da democracia e dos direitos humanos[7] retificação da anotação da causa de morte no as-sento de óbito de pessoas mortas em decorrência de graves violações de direitos humanos[9] Criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura[10] desvinculação dos institutos médicos legais, bem como dos órgãos de perícia criminal, das secretarias de segurança pública e das polícias civis[12] dignificação do sistema prisional e do tratamento dado ao preso[15] Garantia de atendimento médico e psicossocial permanente às vítimas de graves violações de direitos humanos[18] revogação da lei de Segurança nacional[20] desmilitarização das polícias militares estaduais[24] Alteração da legislação processual penal para eli-minação da figura do auto de resistência à prisão[25] introdução da audiência de custódia, para preven-ção da prática da tortura e de prisão ilegal[27] Prosseguimento das atividades voltadas à locali-zação, identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento digno, dos restos mor-tais dos desaparecidos políticos

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    [28] Preservação da memória das graves violações de direitos humanos[29] Prosseguimento e fortalecimento da política de lo-calização e abertura dos arquivos da ditadura militar (CnV, p. 962 et seq.).

    nenhuma dessas recomendações teve ocasião de ser im-plementada, ainda que parcialmente. Como parte da Justiça de transição, elas se constituiriam na oportunidade que o brasil teria de se reencontrar com seu passado, promover a reconci-liação, propiciar o reencontro de familiares e amigos com seus parentes mortos, buscar a recuperação psicológica dos afeta-dos pelas violações, desarmar os espíritos e contribuir para tornar nossa sociedade mais fraterna e justa. inacabada ou frustrada essa transição, restaram essas recomendações como esperança histórica.

    Um pequeno quadrilátero no olho do furacão

    há uma área no início do bairro de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, entre a rua teodoro Sampaio, a avenida doutor Arnaldo e a avenida rebouças, que ostenta alta con-centração semântica e histórica. Abriga em poucos milhares de metros quadrados a Faculdade de Medicina (FMUSP), a es-cola de enfermagem (eeUSP) e a Faculdade de Saúde Pública (FSP), todas da Universidade de São Paulo. no mesmo terri-tório, funcionam os cursos de Fonoaudiologia, Fisioterapia e terapia ocupacional (FoFito), na Faculdade de Medicina, e os cursos de nutrição e Saúde Pública, ambos na FSP. nas proxi-midades, ainda se localizam a sede da Secretaria de estado da Saúde (cujo prédio abrigou até 1988 o instituto de Saúde), o instituto Adolpho lutz, o instituto de infectologia emilio ribas e, contemporaneamente, o instituto do Câncer. esse quadrilá-tero (melhor diria, um paralelogramo) abriga ainda o hospital de Clínicas (hC), o maior complexo hospitalar e de ensino da

  • Medicina e contextos de exceção – volume 9 29

    América latina, e também o instituto oscar Freire, contendo em seu interior o instituto Médico-legal (iMl).

    Abundância de acontecimentos num pequeno território. Professores da FMUSP e da FSP foram afastados ou presos, o mesmo acontecendo com estudantes. Se numa ponta o regime instaurado agia no sentido de produzir o terror, implantando um verdadeiro estado Policial, na outra ponta seu modus ope-randi contou com a colaboração de docentes e pesquisadores que se alinhavam com os propósitos mais conservadores do golpe e com o clima de “guerra fria” que um anticomunismo retrógrado trazia em seu bojo. Sem dúvida, os militares, como artífices do golpe, não conseguiriam implantar seu regime sem contar com a decidida participação dos civis, dos partidos po-líticos e associações, da cúpula da igreja católica e de parcela expressiva do empresariado.

    o tempo se encarregou de desvelar como alguns profes-sores atuaram. A “caça às bruxas” teve início poucos dias depois do golpe, quando circularam listas de docentes apontados como “vermelhos”, dos quais se pedia a cabeça por suas “inclinações esquerdizantes”. Uma das listas, elaborada aproximadamente em maio de 1964, apontava o nome de 22 docentes, distribuí-dos por departamentos, entre os quais Maurício rocha e Silva Filho, luiz rey e Senhora, luiz hildebrando Pereira da Silva, Victor e rute nussenzweig, Kurt e Judite Kloetzel.5 equivoca-damente, apontava os nomes de professores da FSP (Faculdade de Higiene e Saúde Pública, como consta no documento) como pertencendo à FMUSP, caso da professora elza berquó. berquó, da FSP, foi aposentada compulsoriamente em dezembro de

    5 “todos comunistas ativos antes, durante e depois da revolução de 31 de Março de 1964. [...] o grupo – pequeno talvez – de acadêmicos democratas e verdadeiramente cristãos desta Faculdade pedem ao Senhor Govenador do estado e às autoridades competentes uma intervenção urgente e eficaz, capaz de dissolver o núcleo poderoso sino-soviético aqui existente” (Carta Anôni-ma encaminhada ao governador Adhemar de barros. MorAno, 2014, p. 6, grifo do original).

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    1968.6 todavia, outros professores foram afastados já em 1964, alguns foram presos ou buscaram o caminho do exílio. Ainda que não fossem presos, o fato de aparecerem em listas já criava o ambiente necessário para a discriminação e afastamento de funções administrativas, coordenação de projetos, orientação de alunos etc. linhas de pesquisa foram interrompidas. Como afirma Morano (2014),

    [...] a intensificação da violência repressiva com o Ai-5, de 13 de dezembro de 1968, provocou o recrudescimen-to da perseguição a alunos e professores. o famigerado decreto 477, de fevereiro de 1969, foi uma de suas mais representativas expressões, logo ganhando notoriedade internacional pela crueza; e abril de 69 assistiu à rea-bertura da cassação de professores, incluindo o próprio reitor hélio lourenço de oliveira. da FMUSP, foram cassados isaías raw e Alberto Carvalho da Silva, além de quatro já demitidos em 1964 e nunca readmitidos: luiz hildebrando, luiz rey, reinaldo Chiaverini e Jú-lio Pudles (MorAno, 2014, p. 7).

    tais eventos não se limitaram ao “quadrilátero” da saúde. Prisões de estudantes e ameaça a professores também ocorre-ram na Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo e também na escola Paulista de Medicina, hoje Unifesp. Além de prisões, ameaças, cassações e afastamentos, registram-se alu-nos mortos e desaparecidos. São emblemáticos Chael Charles Schreier, da Santa Casa, morto sob tortura no rio de Janeiro em 1970, Antônio Carlos nogueira Cabral, morto em 1969, e Gelson reicher, morto em 1972, ambos da FMUSP.

    embora não fazendo parte do “quadrilátero”, nem mes-mo os pesquisadores do instituto butantã foram poupados. em manifesto tardio, posto que foi enviado às autoridades do ii

    6 “[...] soube que havia sido atingida pelo Ai-5 quando ouvi o programa A Hora do Brasil, no rádio do carro. divulgaram a lista dos cassados pelo Ai-5 e meu nome estava entre eles” (CoStA, p. 52).

  • Medicina e contextos de exceção – volume 9 31

    exército em junho de 1964, o diretor do hospital Vital brazil assegura sua estima aos militares e aos princípios da “revolu-ção”, pedindo desculpas pelo fato de que seu gesto poderia ser interpretado como oportunismo (havia dois meses que a re-volução era vitoriosa!), mas, declarando-se um entusiasta do golpe, passa a fazer a denúncia, na longa correspondência, de todos os pesquisadores com os quais não simpatizava e segue apontando nomes e áreas de atuação dos que então denomina de “inimigos da revolução”, concluindo que a “obra saneadora” que os militares empreendiam não se completaria se homens como aqueles permanecessem atuando e influenciando colegas e pesquisadores mais jovens (APSP, 2014).

    o hC tornou-se “área de segurança nacional”, funcionando como retaguarda para o encaminhamento de pre-sos políticos feridos no momento da prisão, em tortura (quan-do não havia intenção de eliminação física) ou dos presos sub judice e também de policiais. Mesmo mantendo um superin-tendente, um oficial do exército fazia as vezes de interventor ou de governador militar das instalações. há relatos de práticas de tortura (ameaças, dores prolongadas e mantidas sem analgesia, protelação de atendimento mesmo em caso de traumatismos graves etc.) (CnV, 2014; MorAno, 2014).

    o iMl, todavia, que já integrava o organograma da Polí-cia Civil, passou a funcionar como “linha auxiliar” dos serviços militares de repressão. A investigação conduzida pela Comissão da Verdade da Saúde, da Associação Paulista de Saúde Pública, conseguiu caracterizar claramente o papel fundamental de um grupo bastante expressivo de médicos legistas na ocultação dos casos de morte de presos sob custódia do aparelho repressivo em São Paulo. no período entre 1969 e 1976, foram descritos 51 casos de opositores assassinados, a maioria absoluta sob tor-tura. trinta e três legistas assinaram laudos necroscópicos fal-sos, sendo que 11 desses legistas assinaram mais de um laudo, sete deles assinaram entre cinco e 22 laudos e, no topo da lista, apenas três legistas ‒ isaac Abramovich, orlando José bastos brandão e Abeylard Queiroz orsini ‒ concentram 44 laudos

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    cadavéricos. harry Shibata, o mais famoso dos legistas frauda-dores, pelo caso wladimir herzog, assinou oito laudos falsos. isso indica que o esquema funcionava contando com a presença de legistas que eram fiéis ao regime e que compareciam quando necessário para dar cobertura e respaldo como segundo legista, eventualmente como primeiro legista.

    ao modo de uma (in)conclusão necessária

    em O direito à verdade e à memória, foi possível refletir sobre esses eventos trágicos e estimar, no tempo em que o re-latório foi oferecido ao público, que um outro mundo, outras portas poderiam se abrir e que essa abertura viesse carregada de novos e alvissareiros significados. Por isso, afirmava-se o otimismo com as primeiras investigações sobre o destino dos mortos e desaparecidos que chegavam a bom termo:

    A elucidação das informações referentes às circunstân-cias de prisão, tortura e morte de opositores permiti-ram que o estado brasileiro assumisse sua responsabili-dade histórica e administrativa sobre a integridade dos presos e o destino dado a eles. (brASil, 2007, p. 18).

    Mais adiante:

    não poderiam seguir coexistindo versões colidentes como a de inúmeros comunicados farsantes sobre fu-gas, atropelamentos e suicídios, emitidos naqueles tem-pos sombrios pelos órgãos de segurança, e a dos autores das denúncias sobre violação de direitos humanos, que infelizmente terminaram se comprovando verdadeiras. (brASil, 2007, p. 17).

    Passados quase dez anos desde que essas palavras foram escritas, podemos pensar e nos perguntar por quais caminhos andamos e que frutos colhemos pelo caminho.

  • Medicina e contextos de exceção – volume 9 33

    os efeitos da ditadura civil-militar se acham presentes no cotidiano da sociedade brasileira. A violência estatal gene-ralizada, os assassinatos de “suspeitos”, as prisões sem mandado judicial, as invasões de domicílios ou a vigilância nas vilas e bairros de trabalhadores pobres da periferia são constantes em nossas cidades. A prática da tortura é generalizada, e o sistema prisional é mais uma das formas da violência do estado contra pessoas pobres, pardas e negras. Por essas práticas abusivas, por essas violações que nunca são reparadas nem coibidas, o brasil acumula um número expressivo de condenações em organis-mos internacionais. em outras palavras, os métodos de repres-são da ditadura não foram superados nem o esquema repressi-vo foi desmontado. Ao contrário, a força policial continuou a ser recrutada e formada dentro do mesmo espírito de combate ao “inimigo interno”, o encarceramento atingiu patamares iné-ditos, com aumento exponencial da população carcerária, hoje a terceira do planeta, e criamos uma cultura de discriminação e ódio pela diferença e pelo diferente que por vezes acaba em explosões de irracionalidade, inclusive com recrudescimento de episódios de linchamento em plena luz do dia. Acerca dessas questões, todas de natureza ética e política, hoje é possível notar um terrível silêncio e uma incômoda naturalização, uma acei-tação cômoda da morte pela parte majoritária da sociedade. de fato, maioria significativa apoia a redução da idade penal, o encarceramento forçado, a aplicação da pena de morte; aceita e legitima a eliminação de suspeitos; não se incomoda com os tiroteios da polícia; e mesmo linchamentos e tortura acabam justificados. desse ponto de vista, a sociedade piorou.

    é legítimo perguntar se um processo de reconhecimento do passado, que pudesse significar a exposição dos métodos da ditadura, que contasse com a remoção do arcabouço que deu legitimidade às práticas repressivas, inclusive alguns dispositi-vos jurídicos, não permitiria estarmos hoje num outro patamar civilizatório.

    tomemos o caso da tortura, essa chaga que permanece viva entre nós. devemos ter em conta que, antes da ditadura de

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    1964, a tortura era praticada contra presos comuns e espanca-mentos eram praticados nas carceragens e penitenciárias, mas não na escala que veio a atingir depois de 1964 e ainda mais adiante, com sua generalização. A tortura permanece entranha-da no corpo e no espírito das forças policiais e militares, pois hoje, tanto quanto durante a ditadura, soldados e aspirantes continuam a ser treinados em sessões de tortura nos quartéis e acampamentos, e eles próprios são submetidos a sevícias. não por acaso, entre as recomendações da Comissão nacional da Verdade, encontra-se a que advoga a mudança curricular na formação militar:

    [6] Modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais, para promoção da democracia e dos direitos humanos22. o conteúdo curricular dos cursos ministrados nas academias militares e de polícia deve ser alterado, con-siderando parâmetros estabelecidos pelo Ministério da educação (MeC), a fim de enfatizar o necessário res-peito dos integrantes das Forças Armadas e dos órgãos de segurança pública aos princípios e preceitos ineren-tes à democracia e aos direitos humanos. tal recomen-dação é necessária para que, nos processos de formação e capacitação dos respectivos efetivos, haja o pleno ali-nhamento das Forças Armadas e das polícias ao estado democrático de direito, com a supressão das referências à doutrina de segurança nacional. (CnV, 2014, p. 968).

    Como dito em outra parte do mesmo relatório, concor-da-se que a tortura não foi um episódio isolado nas estratégias do aparato repressivo, e sim constituidor do estado de terror implantado e forma de controle social,7 como explicitamente

    7 “Um dos aspectos mais perversos da tortura é o fato de tornar bastante difícil às suas vítimas falar sobre ela, pela dor envolvida nessa memória, bem como pelo medo das ameaças feitas pelos torturadores, relativas à pró-pria pessoa torturada e a pessoas próximas, um medo que pode perdurar. Mas narrar uma experiência de tortura é também difícil por serem os seus

  • Medicina e contextos de exceção – volume 9 35

    afirmava o general Paul Aussaresses (2001), do Serviço especial do exército francês na Argélia. devemos aqui expressar clara concordância com o enunciado que afirma seu caráter pedagó-gico, pois durante a ditadura

    a metodologia da tortura se tornou um objeto de saber, um campo de conhecimento produzido e transmiti-do entre os militares. Suas técnicas eram uma matéria ensinada aos membros das Forças Armadas, inclusive com demonstrações práticas, como declarado por pre-sos políticos usados como cobaias nessas aulas (CnV, 2014, p. 351).

    Queremos encerrar estas notas com uma citação, mais uma vez, do relatório da CnV. Apesar de longa, é emblemática e vale a pena considerar, mesmo em vista da conjuntura brasi-leira contemporânea (mutável todo dia e, às vezes, em questão de horas):

    considerando a extrema gravidade dos crimes contra a humanidade, a jurisprudência internacional endossa a total impossibilidade de lei interna afastar a obriga-ção jurídica do estado de investigar, processar, punir e reparar tais crimes, ofendendo normas peremptórias de direitos humanos. A proibição da tortura, das exe-cuções, dos desaparecimentos forçados e da ocultação de cadáveres é absoluta e inderrogável. na qualidade de preceito de jus cogens, não pode sofrer nenhuma ex-ceção, suspensão ou derrogação: nenhuma circunstân-cia excepcional – seja estado de guerra ou ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra

    procedimentos extremamente humilhantes e porque a violência infligida, muitas vezes, é insuportável – a ponto de levar a vítima a falar aquilo que jamais diria em condições diferentes... A tortura, como enfatiza o relatório da Anistia internacional de 1972, tornou-se um instrumento de poder e de pre-servação do governo – com destinação de recursos, organização de centros e de instrumentos e uso de pessoal próprio.” (CnV, 2014, p. 350).

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    emergência pública – poderá ser invocada como justifi-cativa para a prática de tortura, desaparecimento força-do ou homicídio. A CnV considerou que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimen-tos forçados e ocultação de cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacio-nal, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que foram cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis de anistia (CnV, 2014, p. 966).

    Referências

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  • Medicina e contextos de exceção – volume 9 37

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    Profissionais da psique no golpe militar de 1964: recorte historiográfico do contexto da Clínica Psiquiátrica da FMUSP

    Gustavo Gil AlarcãoAndré Mota

    o golpe militar de 1964 foi um acontecimento na histó-ria política brasileira de ruptura radical com a frágil estrutura democrática que buscava, durante todo o século XX, mudanças por meio de reformas de base que pudessem alterar o status quo nacional, quer no campo econômico e social, quer no campo científico e cultural, envolvendo, por isso, instituições universi-tárias e de formação profissional. Um deles diz respeito ao “cam-po psi”,1 que, mesmo tendo estudos realizados (MezAn, 2014; oliVeirA, 2005; MoKreJS, 2002), ainda carece de outros que possam correlacionar contextos ainda pouco pesquisados.

    exemplarmente, a relação de psiquiatras e psicanalistas que atuaram na Clínica Psiquiátrica e no então criado Servi-ço de Psicoterapia do hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) ainda foi pouco explorada, cabendo apresentar como a demanda crescente por atendimentos individuais e grupais em psicoterapia e a conso-lidação da prática psicoterápica em São Paulo, influenciadas teoricamente pela psicanálise e psicodrama, redundaram num campo de disputas profissionais tensionadas pela conjuntura trazida nos “anos de chumbo”, matéria deste estudo. Mais que

    1 Campo psi é uma expressão usada para designar o conjunto formado pelas profissões da psique: psiquiatria, psicanálise, psicologia e psicoterapia. A ex-pressão não tem caráter conceitual neste texto.

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    isso, cabe também apontar para a Faculdade de Medicina como um lócus de diversos grupos apoiadores e contrários ao regime, redundando em tensões pouco conhecidas pelos analistas de sua história.

    A posição da Faculdade de Medicina (FMUSP) frente à ditadura militar: alguns apontamentos

    Markun e hamilton (2011) nos mostram que, já em 1961, a situação política do país era imprevisível. A vitória de Jânio Quadros nas eleições presidenciais, mas, sobretudo, sua velocíssima renúncia teriam deixado o país em clima de impre-visibilidade. A figura de Jango, vice-presidente que assumiria o cargo, era vista como uma ameaça à estrutura política e so-cial das elites brasileiras, sofrendo acusações sobre os temores alicerçados na temática do onipresente medo do comunismo, abafando as várias ações que impediriam quaisquer mudanças sociais no país, como as elaboradas em suas reformas de base2 (de MorAeS FerreirA, 2006).

    A expressão “operação limpeza” passou a ser utilizada por certos agentes do estado com a intenção de expressar a de-terminação de afastar do cenário público os adversários recém--derrotados comunistas, socialistas, trabalhistas e nacionalis-tas de esquerda, entre outros. napolitano (2014, p. 43-44) nos lembra que a implantação da ditadura militar não se restringiu

    2 Segundo reis (2014), as reformas de base incluíam propostas de refor-ma agrária que romperia com o monopólio do latifúndio; reforma urbana combatendo a especulação imobiliária; reforma bancária com a finalidade de maior controle estatal para garantir autonomia nacional; reforma eleitoral, que incorporaria, principalmente, o voto dos analfabetos (metade da popu-lação brasileira na época); reforma do estatuto do capital estrangeiro no país; e reforma universitária. esse processo configurou-se como um movimento amplo de discussões heterogêneas, que estavam longe de contar com a unani-midade da população. o acirramento das diferenças e a crescente propaganda frente ao temor comunista acirraram as disputas e polarizaram o país.

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    ao círculo de ações militares, constituindo-se como um conjun-to heterogêneo de novos e velhos conspiradores contra o gover-no de Jango e também contra o trabalhismo: “civis e militares, liberais e autoritários, empresários e políticos, classe média e burguesia: todos unidos pelo anticomunismo, a doença infantil do antirreformismo dos conservadores”.

    nas palavras de Mota (2014, p. 10), “o golpe militar foi resultado de uma profunda divisão na sociedade brasileira, marcada pelo embate de projetos distintos para o país, os quais faziam leituras diferenciadas do que deveria ser o processo de modernização e de reformas sociais”. Mota também reitera que o golpe de 1964 não foi essencialmente antirreformista, mas sobretudo anticomunista. Focando seus estudos sobre as reper-cussões do golpe nas universidades, o autor propõe a existência ao mesmo tempo de movimentos construtivos e destrutivos, cujo processo modernizador se viabilizou às custas de grande repressão intelectual e perseguição. Sobretudo nos primeiros momentos do regime miliar, o que se observou foi um verda-deiro processo de expurgo, cujos movimentos de investigação, denúncia, vigilância, expulsão e tortura estiveram presentes.

    o processo de repressão incide sobre as universidades principalmente pelo poder disseminador das temidas ideolo-gias que não estivessem alinhadas com a ditadura. obviamente, as universidades representavam locais de circulação de ideias, tendo a agenda reformista um tema profundamente tratado, impactadas pela revolução em Cuba e na China e pelas guerras de libertação na Ásia e África (hobSbAwM, 2013).

    em contraposição, o movimento conservador nascido com a chamada Guerra Fria também tinha espaço para alocar seus pressupostos, principalmente aquele que dizia respeito ao perigo do avanço comunista, abrangendo setores do militaris-mo e de instâncias civis. no brasil e, particularmente, em São Paulo, surgia um território de muitas tensões, tendo grande parte da população endossado a tese do perigo comunista e apoiado o movimento antijanguista, conforme notícia da Folha

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    de S. Paulo de 19 de março de 1964, intitulada “Marcha da Fa-mília com deus pela liberdade”:

    A disposição de São Paulo e dos brasileiros de todos os recantos da patria para defender a Constituição e os princípios democráticos, dentro do mesmo espirito que ditou a revolução de 32, originou ontem o maior movimento cívico já observado em nosso estado: a Marcha da Família com deus, pela liberdade.Com bandas de musica, bandeiras de todos os esta-dos, centenas de faixas e cartazes, numa cidade com ar festivo de feriado, a ‘Marcha’ começou na praça da republica e terminou na praça da Sé, que viveu um dos seus maiores dias. Meio milhão de homens, mulheres e jovens ‒ sem preconceitos de cor, credo religioso ou po-sição social ‒ foram mobilizados pelo acontecimento. Com ‘vivas’ à democracia e à Constituição, mas vaian-do os que consideram ‘traidores da pátria’, concentra-ram-se defronte da catedral e nas ruas próximas.Ali, oraram pelos destinos do país. e, através de di-versas mensagens, dirigiram palavras de fé no deus de todas as religiões e de confiança nos homens de boa-vontade. Mas, também de disposição para lutar, em todas as frentes, pelos princípios que já exigiram o sangue dos paulistas para se firmarem.3

    Quando houve o golpe em 31 de março de 1964, desti-tuindo Jango do poder, logo se pôde acompanhar uma série de movimentações de apoio ao regime que se instalava, entre eles os universitários. em São Paulo, a USP logo sofreu seus revezes. A magnitude foi, atualmente, revista pela Comissão da Verda-de, por meio da Portaria Gr nº 6.172, e instalada em 25 de ju-lho de 2013. Conforme relatado, haviam sido identificados 664

    3 Acervo eletrônico do jornal Folha de S. Paulo. edição do dia 20/03/1964. disponível em: .

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    perseguidos, entre professores, alunos e funcionários. no caso da sua Faculdade de Medicina (FMUSP), era previsível que os embates fossem de grande monta, quer porque ali se encontra-va um dos mais fortes núcleos conservadores da USP (MotA, 2014), quer porque também ali se localizava um polo impor-tante da esquerda médica e sanitária, colocando em posições frontalmente opostas tais grupos. A Congregação da FMUSP, formada em sua maioria pelo primeiro grupo, logo apoiou inte-gralmente a tomada de poder dos militares, conforme indicado em suas atas:

    A congregação da Faculdade de Medicina da Universi-dade de São Paulo, reunida em sessão aos três de abril de mil novecentos e sessenta e quatro vem deixar claro diante de todos os colegas da Universidade, corpo do-cente e discente, bem como ao povo deste grande es-tado de São Paulo a comunhão integral das suas ideias e ideais consubstanciados em 1- total e irrestrito apoio à obediência à ordem, à disciplina, à hierarquia e às li-berdades democráticas dentro da constituição vigente dentro da Universidade, como no ambiente social; 2- o seu repúdio a todos os extremismos quer da direita ou da esquerda disfarçados ou abertamente declara-dos; 3- Apoia por esta ata os bravos civis e as gloriosas Forças Armadas que, por um movimento irreprimível da opinião pública, fizeram retornar o país à ordem, à obediência às leis, ao repúdio a ideologias estranhas e comunistas e trouxeram ao brasil o caminho cristão da Paz Social, dos direitos básicos do homem, do respei-to às leis e da dignidade hierárquica de comandante e comandados, dirigentes e dirigidos em todos os seto-res e atividades do trabalho, quer intelectual, quer ma-nual. A Faculdade de Medicina da USP solidariza-se com o atual governo do seu país e do seu estado com a alta direção da universidade, com a direção das nos-sas forças armadas e todo o povo de São Paulo e do brasil. Assinaram o manifestado todos os professores

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    catedráticos em número de vinte e dois. (Atas da Con-gregação da FMUSP. Acervo do Museu Carlos Silva lacaz da FMUSP, 1964, p. 54).

    Ainda,

    na sessão do dia oito de abril de mil novecentos e ses-senta e quatro em continuação a sessão anterior, após verificação de presença dos senhores membros da Congregação feita pelo 1º secretário, o prof. João Alves Meira, diretor e presidente, declara aberta a sessão. no expediente, o Sr. Presidente informa que, após três de abril, uma Comissão de Professores esteve na reitoria e logo em seguida no Palácio do Governo, entregando na presença do Magnífico reitor, ao Governador do estado, a moção que a Congregação desta Faculdade aprovou, de inteira solidariedade ao movimento políti-co militar publicado nos jornais da Capital e no diário oficial. (Atas da Congregação da FMUSP. Acervo do Museu Carlos Silva lacaz da FMUSP, 1964, p. 22-23).

    Ficaria claro que o apoio dado tinha, entre seus objeti-vos, trazer o país a determinada ordem, obediência e leis, com-batendo as fileiras comunistas e recolocando o país no caminho do liberalismo cristão. Para isso, não haveria outra alternativa que não fosse a do alinhamento à política militar e de anulação de sua oposição. tal disposição logo se materializou, no primei-ro ano do golpe, na cassação de oito professores, na desarticula-ção do departamento de Parasitologia formado pelo grupo de Samuel Pessoa e dois alunos, Gelson reicher e Antônio Carlos nogueira Cabral, que foram declarados desaparecidos e mor-tos. nos próximos anos, as delações, as perseguições e o uso de parte da instituição, como o hospital das Clínicas, onde presos políticos torturados eram levados, davam mostra do clima de terror que se estabeleceu contra aqueles que ficaram na escola médica, mesmo que em situação oposicionista.

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    Antonio Carlos Pacheco e Silva: um psiquiatra anticomunista visceral

    o conservadorismo institucional não era apenas um mito. Pudemos acompanhar as ideias e ações do catedrático de psiquiatria Antonio Carlos Pacheco e Silva, com nítidas indica-ções de sua orientação e atuação políticas, dentro da Faculdade de Medicina, no apoio ao golpe a partir de sua defesa de cunho moral, religioso e de defesa à hierarquia militar (ASSUMPção Jr., 2003). é interessante notar que seu nome não figura nas principais referências sobre o período. Maria rita Kehl, psica-nalista e componente da Comissão nacional da Verdade, infor-mou-nos, em comunicação pessoal, que não havia escutado o nome de Pacheco e Silva durante os trabalhos dessa comissão. tampouco encontramos na Comissão estadual da Verdade qualquer referência à sua pessoa e atuação, demonstrando o quanto tal comissão, se já conseguiu grandes conquistas em seu trabalho, ainda se ressente de desdobramentos futuros.

    inicialmente, encontramos em Silva (2014)4 um capítulo intitulado “o papel do empresariado” e, por ele, é destacada a participação do estado de São Paulo em 1964, com menção, na página 192, à presença de Pacheco e Silva em um encontro5 que

    4 rocha (2014) analisa o discurso de hélio Silva sobre o golpe militar em texto intitulado “Caio Prado Júnior e hélio Silva: discursos sobre o golpe de 1964”. o texto foi apresentado no iV Congresso Sergipano de história & iV encontro estadual de história da Anpuh/Se o Cinquentenário do Golpe. rocha relembra que reis opunha-se reconhecidamente às políticas trabalhis-tas, bem como era um dos fundadores do Partido democrata Cristão. Segun-do rocha, o discurso de reis gera a interpretação de que o país vivia sob um processo de comunização em marcha, nas mãos de João Goulart.5 no conhecido trabalho de dreifuss (1981) sobre a formação da elite bra-sileira entre os anos de 1961 e 1964, também encontramos uma menção a Pacheco e Silva, como um dos integrantes da Fiesp no ano de 1964, como representante da empresa Armações de Aço Probel S.A. (p. 126). Além disso, na mesma tese, aparece o nome de Pacheco e Silva como um dos responsáveis por divulgar as ideias da escola Superior de Guerra, na página 166, como nota de rodapé referente ao item 55.

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    celebraria o movimento de 1932 e que incumbia os presentes a angariar apoio e ajuda ao movimento de 1964. essas ações seriam relatadas para Júlio Mesquita Filho, dono do jornal O Estado de São Paulo:

    herman de Morais barros foi convocado pelos coronéis Cid osório e rubens restel, como resultado de uma re-união em casa de Paulo Quartim barbosa, para a com-posição de um estado-Maior que cuidasse do planeja-mento da mobilização de São Paulo. As altas decisões caberiam à cúpula constituída por Júlio de Mesquita Filho, otávio Marcondes Ferraz, teodoro Quartim barbosa e Antônio Carlos Pacheco e Silva. em resu-mo, o que competia aos membros desse estado-Maior era: 1) realizar o levantamento de recursos financeiros necessários. 2) coordenar, mediante prioridades a esta-belecer, a mobilização industrial para atendimento dos propósitos da organização; 3) contribuir para atender às necessidades previstas para cada operação a realizar; 4) formular um esquema de trabalho a realizar.

    representante da cúpula do poder paulista e apoiador do regime, logo se encontra Pacheco e Silva em sua posição firme a favor da legitimidade do governo militar e da luta contra os inimigos da ordem:

    Vitoriosa uma revolução, os seus chefes procuram sempre justifica-la e demonstrar sua legitimidade. recorrem, para tanto, a uma série de provas testemu-nhais, farta documentação e, até mesmo, a confissão dos vencidos. tal providência com inteira justificação, dado que os derrotados nunca se conformam, aguar-dando a primeira oportunidade para uma revanche. Procuram, para tanto, desvirtuar os fatos, distorcê-los e negá-los, usando para isso de uma série de recursos, nem sempre válidos e admissíveis. no caso específico da revolução de 64, a sua legitimidade foi tão patente, às provas tão cabais, os fatos tão flagrantes, a dispensar

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    maiores justificativas e argumentos. entretanto, os que dela participaram devem recordar, tudo quando realmente ocorreu, quando mais não seja por amor a verdade histórica. outro motivo, quiçá não de menor importância, a importa a rememoração dos fatos, é de ordem profilática. o de prevenir e alertar as novas gerações, porquanto o inimigo é solerte e persistente, não abandonando facilmente seus intuitos. e por isso, dever dos mais velhos e experimentados o de recordar os acontecimentos, analisando-os cuidadosamente. São os marxistas habilíssimos mistificadores e dissimulado-res, dotado de fina e persuasiva dialética, não perden-do vasa para captar novos prosélitos. (PACheCo e SilVA, 1981).

    em outro texto, intitulado “A república Socialista brasi-leira”, Pacheco e Silva fez o seguinte balanço da “necessidade de tomada de poder” pelas forças militares:

    nos últimos meses dos idos de 1963, os comunistas instalados no poder alimentavam o firme propósito de proclamar, no mais curto prazo possível, uma re-pública Sindicalista no brasil, como fase de transição, para depois transformá-la numa república Socialista, nos moldes das nações onde impera o credo marxista. o presidente João Goulart, pressionado pelos verme-lhos, já então inteiramente dominado pelos subversivos que cercavam, deixara-se envolver na trama. Chegou até mesmo a dar conhecimento das suas intenções ao Governo Adhemar de barros, convidando-o a partici-par do movimento, que já ia adiantado. este, não só se recusou a tomar parte do conluio, como ainda denun-ciou o que se articulava a alguns oficiais seus amigos, os quais, por sua vez, se encarregaram de divulgar o que então ocorria a outros militares e civis investidos em postos de responsabilidade no país, para que se preca-vessem ante o perigo a vista. Goulart já não passava, nessa altura dos acontecimentos, de um mero e dócil

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    instrumento nas mãos dos comunistas, que se valiam do seu prestígio junto às massas para nelas penetrar cada vez mais e manobrar a seu talento.

    diante de tais textos, percebemos sua vasta gama de ideias sobre política e sociedade, afinada ao temor comunis-ta. o psiquiatra se posicionou como uma espécie de vigilan-te da sociedade, inclusive e principalmente em seu ambiente. os psiquiatras que entrevistamos informaram que o ambiente conservador no instituto de Psiquitaria era tão conhecido que ninguém ousaria desafiar ou dar demonstrações de opiniões di-ferentes. Arruda (2015, p. 17) nos conta que:

    o Pacheco era mão forte. extrema, extrema direita. re-cebeu o Castelo branco aqui. Único que Castelo branco visitou quando esteve em São Paulo. e foi, justamen-te, logo depois que tentou suicídio de tanta briga com a mulher por causa disso. Uma briga feia. Assim que houve a revolução, todo mundo mudou. Ali da esquer-da, dentro do instituto, tinha eu que tinha ideias de esquerda. Apenas brincadeiras. de esquerda mesmo, não tinha ninguém. o Pacheco era de extrema direita. A faculdade de medicina, de modo geral, era quase toda extrema direita.6

    nesse contexto, é importante registrar que profissionais, mesmo sob o poder de Pacheco e Silva, como Antônio Carlos Cesarino, Aníbal Mezher, leopold nosek, Márcio Giovannetti e Paulo Vaz de Arruda, atuaram efetivamente contra a ditadu-ra. Um caso emblemático seria o de iara ialveberg, psicóloga da USP, frequentadora da instituição e morta no período. esses dados tecem uma teia interessante de pequenos acontecimen-tos de extremo significado, pois, se houve pouco enfrentamento ao establishment psiquiátrico, também havia vida crítica insti-tucional e silenciamentos:

    6 ArrUdA, P. V. de. Departamento de Psiquiatria FMUSP. entrevista conce-dida em 13/01/2015, p. 17.

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    Até hoje eu fico emocionado de lembrar isso. A gente continuou, não deu certo, acabou a greve, mas foram as primeiras greves que tiveram no brasil pós Ai-5, depois a gente fez uma segunda greve, aí já era o Maluf e ele fez o seguinte, ele falou, ‘nem vou negociar’, a gente ficou um mês, sei lá, ficou um tempão e não vinha ninguém, nem reprimia, parece que não se importa com o hC, o atendimento, a população, aí nessa época eu resolvi sair do hC, ‘isso aqui vai afundar’, e na verdade foi de-pois disso que se criaram os institutos, eu ainda peguei as propostas, eu fui o autor de uma proposta que não pegou, mas já que vai setorizar em coisas, eu proponho que a gente faça o instituto dos elevadores, então pega todos os elevadores e faz o prédio dos elevadores, quem quiser pegar elevador já sabe que instituto da mulher, instituto da criança e faz o instituto do elevador, não pegou, mas é uma grande ideia, fala a verdade.eu estava envolvido porque durante a minha época do hC, a gente conseguiu criar um movimento chamado renovação e a gente ganhou o sindicato, depois o CrM, aí a gente colocou a nossa turma de fachada, que era o Gabriel Celpa, o Cesarino, toda essa turma foi pro CrM e pro sindicato foi um quadro do partidão, o pri-meiro sindicato, isso em plena ditadura a gente conse-guiu ganhar e começaram os processos contra os médi-cos. Quando eu estava na obAn, teve um médico que me examinou pra ser torturado ou não e ele falou, ‘olha, você desculpa, você é colega, mas eu estou aqui traba-lhando’, eu nunca consegui identificar quem foi esse médico, mas ele vinha de branco, examinava todos.7

    Sobre a criação do Serviço de Psicoterapia do IPq/FMUSP

    o público atendido por psicanalistas era restrito nos anos de 1960, havendo poucos profissionais, e a circulação da

    7 noSeK, l. SBPSP. entrevista concedida em 09/11/2015.

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    psicanálise como prática profissional estava em fase de implan-tação em São Paulo. Com sua difusão, outro fator de dificuldade passou a ser observado: o preço dos atendimentos. os honorá-rios profissionais eram caros, o que restringia o serviço presta-do à pequena parcela da população que poderia pagar, não ha-vendo a possibilidade de atendimentos gratuitos (FiGUeirA, 1991). A organização dos primeiros serviços de psicoterapia na década de 60 possibilitou a ampliação do acesso a outras pes-soas, sobretudo àquelas que circulavam em ambientes de maior presença psicanalítica: universidades, hospitais psiquiátricos e instituições culturais (oliVeirA, 2005).

    Quando o Serviço de Psicoterapia foi criado no insti-tuto de Psiquiatria (iPq), ele era frequentado por muitos alu-nos da USP, de vários cursos, principalmente de Medicina e da recém-criada Faculdade de Psicologia. entre as pessoas que procuraram o serviço na época, Amaro nos informa que:

    em 1963 eu fiz um grupo com vários pacientes esquer-distas militantes, um deles era a iara ialveberg,8 já ouviu falar? A iara era uma esquerdista militante, junto com uma colega dela que era filha de um assistente lá da psiquiatria. Só que ela não era esquerdista festiva, ela era militante e de repente a moça some e eu não sabia qual era a história, depois fiquei sabendo.ela fazia parte do grupo. inclusive eu tenho até um li-vro que cita ela, que lá diz que ela fazia grupo com o prof. Amaro, está escrito. Um grupo lá no hospital, na psiquiatria, não no consultório. ela e a filha de um dos

    8 iara ialveberg (1944-1971), psicólo