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Miguel Trefaut Rodrigues Departamento de Zoologia Universidade de São Paulo, São Paulo, SP Capítulo 13 Capítulo 13 Capítulo 13 Capítulo 13 Capítulo 13 A biodiversidade dos Cerrados: conhecimento atual e perspectivas, com uma hipótese sobre o papel das matas galerias na troca faunística durante ciclos climáticos. Capítulo 13 Capítulo 13 Capítulo 13 Capítulo 13 Capítulo 13 A biodiversidade dos Cerrados: conhecimento atual e perspectivas, com uma hipótese sobre o papel das matas galerias na troca faunística durante ciclos climáticos. Miguel Trefaut Rodrigues Departamento de Zoologia Universidade de São Paulo, São Paulo, SP FOTO: MARIA LUIZA S. PARCA FOTO: MARIA LUIZA S. PARCA

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Miguel Trefaut RodriguesDepartamento de ZoologiaUniversidade de São Paulo,

São Paulo, SP

Capítulo 13Capítulo 13Capítulo 13Capítulo 13Capítulo 13

A biodiversidade dosCerrados:

conhecimento atual eperspectivas, com umahipótese sobre o papeldas matas galerias na

troca faunísticadurante ciclos

climáticos.

Capítulo 13Capítulo 13Capítulo 13Capítulo 13Capítulo 13

A biodiversidade dosCerrados:

conhecimento atual eperspectivas, com umahipótese sobre o papeldas matas galerias na

troca faunísticadurante ciclos

climáticos.Miguel Trefaut Rodrigues

Departamento de ZoologiaUniversidade de São Paulo,

São Paulo, SP

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Silva & Santos

Biogeografia e avifauna

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INTRODUÇÃO

O domínio morfoclimático doscerrados brasileiros abrange uma área de2.000.000 km2; é o segundo em ordemde grandeza espacial do país (Ab’Saber,1981). Desta área, apenas cerca de 20%permanecem intocados e um total deaproximadamente 1,5 % estão prote-gidos em áreas de conservação(Mittermeier et al., 1999). Este capítuloapresenta reflexões sobre algumasquestões que a este autor parecemimportantes para melhor compreendera história e a diversidade da fauna dosCerrados. Assim, inicia-se comentandoalguns dos problemas operacionais quelevam à definição do número de espéciese dos endemismos do bioma, apre-sentando a seguir, e em linhas gerais, asituação atual do conhecimento sobre abiodiversidade dos Cerrados e as razõespara incentivar esses estudos. Procu-rando contribuir para tal, este estudoapresenta uma hipótese sobre um dospossíveis papéis históricos das matas degaleria na diferenciação da faunaneotropical. O texto se encerra comconsiderações de caráter estratégico quepedem ação urgente no que respeita aosdestinos da pesquisa futura e à adequada

preservação da diversidade biológica daárea. Embora faça algumas conside-rações de caráter mais geral, estetrabalho baseia-se principalmente naherpetofauna, grupo ao qual o autor temse dedicado e lhe é mais familiar.

RIQUEZA DE ESPÉCIES EENDEMISMOS

Vários trabalhos apresentados nodecorrer deste encontro mostraramnúmeros aproximados de espécies paraalguns grupos da biota dos Cerrados;geralmente, os valores absolutosfornecidos estiveram acompanhados daporcentagem de espécies endêmicas. Hános Cerrados cerca de 10.000 espéciesde plantas lenhosas (4.400 ou 44%endêmicas); 837 espécies de Aves (29ou 3,4% endêmicas); 161 de mamíferos(19 ou 11% endêmicas); 120 de répteis(24 ou 20% endêmicas) e 150 espéciesde anfíbios (45 delas ou 30%endêmicas). Ou seja, considerandoapenas as plantas e os vertebradosterrestres, a taxa de endemismo dosCerrados estaria entre os 3% e os 50%.Os dados acima, extraídos de Mittermeieret al. (1999), concordam parcialmente

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com números mais detalhados paraalguns grupos que vêm sendoapresentados, mas há diferençasimportantes com outros e, obviamente,entre grupos (Marinho-Filho; Colli,2003). Em alguns casos as diferenças sãoconsideráveis. Comparações quanti-tativas como estas, buscando explicaçõespara a diversidade entre faunas, têm sidofreqüentes e servem de exemplo paramostrar que é preciso, inicialmente,compreender as razões destasdiscrepâncias. Deixando, por ora, de ladoas fontes de variação devidas aosprocessos diretamente responsáveis pelaorigem da diversidade, três fatores sãorelevantes para explicá-las: (1) o níveltaxonômico de conhecimento; (2) aunidade básica de trabalho; e, (3) aqualidade da amostragem.

As taxas de endemismo do Cerradovariam de grupo para grupo e entregrupos, pois dependem muito do níveldo conhecimento taxonômico. Avariação devida a este fator, estádiretamente relacionada ao número depesquisadores envolvidos no estudo eao nível de refinamento taxonômicoatingido pela sistemática do grupo emquestão, mas não se restringe apenas aestas fontes. Parte dela deve-se tambémà tradição taxonômica em voga no grupo.Muitas vezes a predominância de escolassistemáticas de classificação distintas emgrupos diferentes (por exemplo, entreAves e Squamata), resulta em númerosfinais de espécies que, por não estarembaseados nos mesmos critérios, tornadifícil a comparação direta entreindicadores de diversidade. Outravariável importante que afeta as taxasde endemismo está na unidade escolhidapara estudo, ou seja, nos diferentesconceitos de Cerrado empregados. Paraalguns, as matas-galeria não fazem partedo Cerrado, para outros, sim. Algunsconsideram a fauna dos campos

rupestres como pertencentes aosCerrados; outros incluem, entre a faunados Cerrados, espécies tipicamenteamazônicas, ou de outros biomas, quepenetram marginalmente nos Cerrados.Não é possível proceder a comparaçõesadequadas sem definições precisas. Umterceiro fator complicador ao analisar astaxas de endemismo é a qualidade dacobertura geográfica da área estudada.Não há dois grupos que tenham sidoigualmente amostrados. Todos estesfatores afetam profundamente osnúmeros e devemos estar cientes de suaimportância quando realizamoscomparações entre faunas de biomasdistintos ou entre a diversidade ou a taxade endemismo de grupos diferentesdentro do mesmo bioma. O número, porsi só, não diz nada se não for calcadoem base qualitativa sólida que permitacomparações confiáveis.

Ainda que idealmente todos estesproblemas estejam equacionados deforma adequada, as taxas de endemismopara o Cerrado serão bastante distintasentre grupos (por exemplo, entre osgrupos de vertebrados), pois cada umtem suas próprias peculiaridadeshistóricas e ecológicas. O que se deveressaltar é que a presença de espéciesendêmicas mostra que, ao contrário doque se assumiu por algum tempo(Vanzolini, 1974, 1976), o Cerradopossui fauna própria, distinta daquelapresente nas Caatingas e no Chaco(Rodrigues, 1988; Colli, 2003). Ela resultade uma história bastante complexa,associada ao soerguimento dos PlanaltosBrasileiro e das Guianas no final doCretáceo e durante o Terciário, e àinstalação na área de uma vegetaçãooriginal e sua modificação desde então(Colli, 2003). Uma das tarefasimportantes a realizar é tentar resgataresta história a partir do estudo da faunae flora dos Cerrados atuais para que se

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Matas de Galeria e trocas faunísticas

possa melhor conhecer as causas que lhederam origem e, assim, obter orientaçãoadequada para conservá-la de modomais eficaz.

A SITUAÇÃO ATUAL DOCONHECIMENTO

Embora as pesquisas sobre a faunae flora dos Cerrados tenham avançadomuito, é necessário admitir que adiversidade biológica do bioma ainda émuito pouco conhecida. Imensas áreasnão foram sequer inventariadas, numaépoca em que ainda existem sériosproblemas taxonômicos em grupos deespécies que, se melhor conhecidos,poderiam auxiliar a compreender melhoros principais padrões de distribuição desua fauna e flora.

Apesar do imenso esforço dedicadopela comunidade científica alevantamentos, ao longo da últimadécada, os cerrados ainda permanecemmuito mal inventariados. Deixando delado os peculiares e complexos camposrupestres que apresentam uma biotacaracterística (Heyer, 1999), não se sabedizer ainda quais são as principais áreasde endemismo dos Cerrados brasileiros.Este conhecimento é fundamental paratentar compreender sua história e assimestabelecer uma lista de áreas prioritáriaspara a conservação. Ao contrário do queocorre para os demais domíniosmorfoclimáticos brasileiros, também nãose dispõe de modelos de aplicabilidadegeral que permitam explicar a especiaçãoe a diversidade nos Cerrados.

O nível do estado atual deconhecimento atingido sobre osCerrados, insuficiente e grave por si só,torna-se mais crítico quando contrapostocomparativamente ao que se dispõe paraa Amazônia e para a Mata Atlântica. Nos

dois casos, apesar do conhecimentoinsuficiente que também há sobreaqueles biomas, sabe-se, pelo menos,dizer algo a respeito das áreas deendemismo mais importantes daquelesdomínios. Ainda que se desconheçaprofundamente a diversidade daAmazônia, já se dispõe de váriosmodelos para explicar a especiação e,conseqüentemente, parte da diversidadede sua fauna e flora (Haffer, 2001). Taishipóteses têm dado margem a amplosdebates, gerado controvérsias, e assimestimulado exponencialmente aelaboração de projetos procurando testá-las. Estes, aprimorando a qualidade e acobertura geográfica dos levantamentos,têm acarretado avanços substanciais nonosso conhecimento sobre a área. Omodelo clássico dos refúgios, porexemplo, é um dos que se dispõe paraexplicar a diversidade da faunaamazônica (Haffer, 1969; Vanzolini &Williams, 1970 ); há muitos outros, comoo modelo dos rios atuando comobarreiras (Wallace, 1852) e o dosgradientes (Endler, 1982); (veja Vieiraet al., 2001). É importante lembrar queem face da realidade das flutuaçõesclimáticas que afetaram a distribuiçãoespacial das florestas amazônicas aolongo do tempo, dispõe-se também dosrequisitos mínimos, em termos decenários geográficos e fisionômicos, paratestar a aplicabilidade dos vários dosmodelos de diferenciação propostos.Assim, ainda permanecem na Amazôniagrandes áreas naturais de matascontínuas, seja na planície seja em terrasaltas, manchas de florestas isoladas foradela (por exemplo, os “brejos” nasCaatingas) e enclaves de vários tipos depaisagens abertas no próprio domínioamazônico. Estas áreas são aquelas quenos permitem resgatar a informaçãonecessária para testar os principaismodelos invocados para explicar a

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Rodrigues

diversidade biológica do mais ricoecossistema brasileiro. O quadro geral ésimilar para a Mata Atlântica, apesar dea devastação ter reduzido sua áreaintocada a apenas cerca de 7%. Dispõe-se de modelos de especiação paraexplicar a diversidade de espécies da área(o dos refúgios e o da diferenciação emilhas da plataforma continental, porexemplo) e ainda se dispõe dos cenárioscom suas paisagens naturais quepermitem testá-los: áreas contínuas demata em regiões de baixos e altosrelevos; os brejos nordestinos e as ilhasflorestadas na plataforma continental.Nos dois casos, a disponibilidade demodelos que procuram explicar adiversidade destes biomas temconstantemente estimulado a pesquisae ajudado a delinear áreas prioritáriaspara estudo e conservação. No caso deáreas abertas, a situação é similar paraa fauna das Caatingas: falta conhecermuito, mas já se sabe onde estãoalgumas das áreas de endemismo e sedispõe de hipóteses para compreenderparte de sua diversidade, o que tempermitido políticas científicas e deconservação mais adequadas (Rodrigues,2002).

Este estudo chama a atenção para ofato de que, sob este contexto, a situaçãodos cerrados é gravíssima. Muitas dasáreas naturais que permitiriam resgatarinformação da maior relevância paratraçar com certa precisão alguns dospadrões de distribuição ou das áreas deendemismo do Cerrado, já foramcompletamente destruídas. Assim,provavelmente como conseqüência deamostragens insuficientes e de estudosdesacompanhados de filogeniasconfiáveis, não apenas não se pode dizeronde estão as áreas de endemismo dodomínio, como não se dispõe de modelosde diferenciação adequados para explicarao menos parte da história de sua

complexa fauna e flora. Apesar de tudo,deve-se dizer que, há algumas hipótesesbiogeográficas para a fauna de algunsgrupos que vivem nos Cerradosbrasileiros. Por exemplo, os trabalhos deCartelle (2000) e Fonseca et al. (2000)apresentam hipóteses para explicar adistribuição atual e pretérita e acomposição da mastofauna das áreasabertas do continente. De modo similar,há hipóteses biogeográficas para explicaros padrões gerais de distribuição daavifauna dos Cerrados (Silva, 1995a,1995b) e evidências sobre a importânciadas florestas de galeria na dispersão deaves amazônicas e da Floresta Atlânticanos Cerrados (Silva,1996, Willis, 1992).Faltam, contudo, estudos maisdetalhados, baseados em inventáriosrepresentativos para outros grupos, quepossibilitem uma visão comparativa euma definição mais precisa das áreas deendemismo dos Cerrados.

Embora o modelo dos refúgiosassuma que a fase de expansão dasflorestas e das áreas abertas foramcomplementares ao longo do Terciário eQuaternário, a aplicação do modelo aosCerrados nunca foi efetivamente testada.Ainda que se assuma sua comple-mentaridade para explicar a diferen-ciação de algumas espécies, a imensamaioria dos cenários geográficos quepermitiriam testar a hipótese foidestruída. Grandes extensões de áreascontínuas de Cerrados já foram quaseque totalmente eliminadas; as poucasainda intocadas, situadas nos chapadõesdo Piauí, Bahia e Maranhão, estão sobintensa pressão antrópica. De modosimilar, os enclaves de Cerradosrelictuais no domínio das Caatingas ouda Mata Atlântica estão praticamentedestruídos. Restam quase que apenas asmanchas isoladas, atualmente, aindaencerradas em áreas de difícil acesso naFloresta Amazônica. Deve haver

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empenho para preservá-las urgen-temente, assim como procurarmaximizar a preservação das regiões daárea nuclear que ainda permanecem comcobertura original.

Sabe-se que há endemismos nosCerrados, que as matas de galeria dodomínio - no caso da herpetofauna, emparticular, e no de muitas espécies deoutros grupos - não constituem barreirapara a fauna adaptada aos ambientesabertos dos Cerrados. A mata de galeria,tão característica do domínio, nãoapresenta fauna própria expressiva,sendo utilizada pela maioria das espéciesencontradas nos Cerrados abertos, talvezcom mais freqüência no período seco(Marinho & Gastal, 2000; Silva &Viellard, 2000). Quais foram as barreirase os mecanismos que levaram àcomplexificação progressiva da faunados Cerrados? Quais foram os quadrosde paisagens que dominaram o espaçodos Cerrados à altura dos períodosúmidos? Que tipos de vegetação abertaestavam instalados no alto doschapadões e nos vales ao longo dosperíodos glaciais? Como ocorreu atransição para o cenário atual? Apesarde haver muitos avanços no domínio doconhecimento palinológico e nareconstrução de paleoambientes(Laboriau, Ledru, 2003), ainda não sesabe muito sobre a composição, apermanência e a extensão geográfica daspaleopaisagens que ocuparam a área dosCerrados ao longo do Quaternário.Perceber e tentar compreender aspequenas diferenças na organizaçãoestrutural e biótica da paisagem, quecoletivamente é denominada de Cerrado,é fundamental para entender o passado(Ab’Saber, 2000).

O desconhecimento sobre osprocessos ecológico-evolutivos quelevaram à origem e diferenciação da

fauna dos Cerrados é de tal ordem quenão podemos nos dar ao luxo deconsiderar uma ou outra área como não-merecedora de investigação prioritária.Absolutamente tudo deve serconsiderado prioritário. No estado atualdo conhecimento, não se pode dizer seum chapadão ou um vale isolados eesquecidos no meio da paisagem,idênticos a muitos outros, foram ou nãocenários de processos histórico-evolutivos que levaram à divergência departe da fauna que abrigam. Somente umtrabalho intenso no campo pode eliminaressas dúvidas. A descoberta surpre-endente de áreas de endemismo nasCaatingas, que possuem herpetofaunamuito melhor conhecida que a dosCerrados, apóia esta linha depensamento (Rodrigues, 1991, 1996,2002).

É no contexto do cenário geográficoainda oferecido pelos enclaves deCerrados isolados da Amazônia que sepode testar a aplicabilidade do modelodos refúgios aos Cerrados. É nestas áreasisoladas, com áreas de ordem degrandeza muito diversa, que a fauna dosCerrados vem passando por diferen-ciação. No estudo destes experimentosnaturais, está a chave para acompreensão de alguns dos mecanismosque permitem explicar a diversidadeatual e a origem da fauna do bioma. Éali também que se deve buscar asexplicações para o papel das florestasde galeria na evolução da fauna dosCerrados.

ESPECIAÇÃO DURANTE CICLOSCLIMÁTICOS E A IMPORTÂNCIADAS MATAS DE GALERIA.

Atualmente, admitem-se doismecanismos alopátricos de especiaçãopara explicar a origem de novas espécies

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durante fases alternantes dos ciclosclimáticos: o modelo clássico dosrefúgios (Haffer, 1969, Vieira et al. 2001;Vanzolini, 1981; Vanzolini & Williams,1970) e o do refúgio evanescente(Vanzolini & Williams, 1981). Sob omodelo dos refúgios, a expansão dasformações abertas na fase seca do cicloprovocaria o isolamento e a diferenciaçãode espécies de floresta; de modo similar,durante as fases úmidas, corresponderiaà expansão das matas que isolariapopulações de áreas abertas provocandosua diferenciação específica. Sob omodelo do refúgio evanescente,originalmente proposto para áreasflorestadas, espécies umbrófilas de mata,isoladas em refúgios que desapareceriamdurante períodos secos, poderiam setornar espécies vicariantes de ambientesabertos e vice-versa: espécies vivendoem ambientes abertos isolados porflorestas, poderiam, desaparecendo asáreas abertas, tornarem-se espéciesvicariantes de áreas florestadas. Paraespécies de requisitos ecológicos rígidos,nos dois casos, os modelos sãoteoricamente simétricos e comple-mentares. Estes dois mecanismos têmsido, ao menos em teoria, utilizados paratentar explicar parte da origem dadiversidade neotropical. Nenhum deles,contudo, considera o papel das matasde galeria.

Apresenta-se aqui, a título dehipótese de trabalho, um modelosugerindo que as florestas de galeriapodem contribuir substancialmente aoaumento da diversidade de espécies.Mais uma vez, este estudo atém-se àherpetofauna. A Figura 1 mostra asprincipais seqüências de eventos domodelo apresentado. Postula-se aqui queas matas de galeria, ao longo do tempoe durante ciclos climáticos alternados,desempenharam um papel assimétricono que respeita a sua contribuição à

diferenciação e ao enriquecimento dafauna dos Cerrados e das áreasflorestadas. Elas forneceram, diferen-cialmente, muito mais espécies àsflorestas do que aos Cerrados. A hipóteseparte da premissa de que, com rarasexceções, as espécies do Cerradofreqüentam livremente ou toleram a matade galeria, possuindo assim pré-adaptações mínimas para permanecerem áreas florestadas. A fauna de floresta,ao contrário, é estritamente umbrófila e,praticamente, não tolera ambientesabertos.

Nas fases úmidas dos ciclosclimáticos, quando manchas de Cerrados(ou paisagens abertas similares) commatas de galeria perdem espaço para asflorestas, as matas de galeria poderiamdesempenhar o papel de provedoras deespécies para as áreas florestadas. Nestasituação, espécies de Cerrado envolvidaspor ambientes florestados em expansão,poderiam invadir a floresta através dasmatas de galeria e ali se manter. Sob estahipótese, caso a expansão e acoalescência das florestas, durante umafase úmida, levassem ao totaldesaparecimento do Cerrado rema-nescente nas áreas próximas, as espéciesdo Cerrado original estariam capturadaspela mata, permanecendo ali isoladas.Nesta fase populações isoladas dosestoques parentais poderiam sediferenciar. Vale lembrar que estemecanismo é muito similar ao do refúgioevanescente, diferindo dele porque éassimétrico e se aplica a praticamentetoda a fauna que transita entre dois tiposde ambientes contrastantes. Suaassimetria deve-se não apenas ao fatoda fauna de floresta não tolerar osambientes abertos. Mas também porque,ainda que se admitisse a comple-mentaridade do processo em fase seca,o desaparecimento da ilha-de-mata,tornaria a estreita área de floresta-galeria

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disponível, incapaz de manter aspopulações ali presentes, sujeitando-asà deriva genética e à extinção. Estaparece ser uma das possíveis explicaçõespara a presença disjunta de animaistipicamente de Cerrado em matas hojeincorporadas ao corpo principal defloresta da Amazônia. Há exemplos.Entre os lagartos, os gimnoftalmídeosColobosaura modesta e as formas docomplexo Cercosaura servem para

exemplificar isolamentos mais recentes.Em alguns locais da Amazônia, algumasdas populações destas espécies seencontram em ambientes florestaistípicos, possivelmente, porquehabitavam matas-galeria que já foramincorporadas ao corpo principal defloresta, exatamente como prevê ahipótese de trabalho apresentada. Emtese, a assimetria deste mecanismotambém ajudaria a explicar a maior

Figura 1

Esquema hipotéticopara explicar opossível papel

assimétricodesempenhado pelas

matas de galeria noenriquecimento

faunístico de áreasflorestadas durante

ciclos climáticos.

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diversidade local e espacial daAmazônia, quando comparada aosCerrados. Filogenias adequadas quepossibilitassem verificar o número e aposição relativa dos clados associados avicariâncias ecológicas em linhagensmonofiléticas, permitiriam testar ahipótese. Casos como o dos geconídeosdo gênero Coleodactylus, dos scincídeosdo gênero Mabuya, teídeos do gêneroKentropyx, policrotídeos do gêneroAnolis, e de muitos outros, com espéciestanto na mata como nos Cerrados,poderiam também ser alvo deinvestigação para testar o modelo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há muito por fazer no que respeitaao estudo da biodiversidade e àconservação dos Cerrados e deve-se agirrapidamente, pois a situação do biomaé crítica. Mal inventariado e altamenteameaçado o Cerrado ainda tem poucasunidades de conservação regula-mentadas. A falta de conhecimentobásico impede a delimitação mais precisadas áreas potenciais de conservação enão tem permitido frear a ocupação daspaisagens naturais que ainda restam. Oecossistema deve ser alvo prioritário depolíticas públicas voltadas à conservaçãoe educação ambiental. Não se trata deparar o desenvolvimento, mas derepensá-lo criticamente.

A enorme expressão espacial dosCerrados e sua história de ocupaçãoeconômica produziram uma diversidadecultural de tal ordem que as ações deconservação precisam ser muito bemplanejadas. O processo educativo quepermite perceber a importância depreservar o Cerrado com sustenta-bilidade não é o mesmo para um índiodos Parecis, do Araguaia, ou para ainfinidade de grupos com educação

cultural muito diversa que hoje ali vivem:gaúchos, paranaenses, mato-grossenses,paulistas, nordestinos, mineiros e muitosoutros, entre eles, imigrantes de diversasprocedências. A diversidade de culturasexige estratégias elaboradas queenvolvem investimentos em tempo,energia e recursos financeiros que sãodiferentes para cada um destes gruposculturais. Não é através de uma receitasimples, muitas vezes eficiente nospaíses de primeiro mundo, onde hámuito existe certa homogeneidadecultural, que obteremos o retornonecessário para estancar a erosão daspaisagens naturais do Cerrado. As açõesaqui devem envolver um planejamentoespecífico, integrado, uma visão maisestratégica do que temos hoje parapreservar nossa diversidade biológica.

Sabemos que a sensibilização dasociedade será lenta e, em face daurgência que se impõe, ela deve serprocurada com todos os meios queestiverem ao alcance. Isto exige aparticipação de jornalistas, escolas,zoológicos, e a produção de abundantematerial educativo. Exige que se mudemconceitos antigos, estagnados, sobre opapel social de algumas instituições. Oszoológicos, por exemplo, têm umenorme potencial de sensibilizaçãocultural da sociedade que é poucoaproveitado. É preciso valorizar nossafauna e mostrar sua importância: dospequenos roedores e marsupiais à onça,dos invertebrados às pererecas. Esteestudo cita, como exemplo, aimportância conferida mundialmente àfauna australiana, fato que só acontece,pois eles souberam valorizá-la.

As tarefas acima só poderão sercumpridas a tempo se a comunidadecientífica sair do seu imobilismo. Oscientistas devem sair de suas salas etambém assumir a responsabilidade, que

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têm, de ajudar a sensibilizar a sociedade,aumentando sua inserção social. Amídia, os zoológicos, ou os jardinsbotânicos, por exemplo, só poderãomostrar adequadamente a importânciado patrimônio biológico do país se foreminformados por eles, aqueles que geramo conhecimento. Embora seja acomunidade científica, por intermédio doseu esforço, quem dá a conhecer aomundo as plantas e os animaisdesconhecidos, a transposição para asociedade destas descobertas, por meioda sua divulgação, em parte, tambémlhe cabe. É preciso tomar consciênciadisso.

Neste complexo processo deconscientização que conduz àpreservação das áreas remanescentes deCerrado, visando salvar a informaçãoainda disponível, é também altamentedesejável que a relação entre a agência

ambiental e a comunidade científicaevolua. O Brasil é líder mundial emdiversidade biológica, os Cerrados osegundo maior domínio morfoclimáticobrasileiro e, como foi visto, estádesaparecendo sem que se possarecuperar informações valiosas sobre suahistória e diversidade. É preciso umaestrutura mais ágil, por parte dos órgãosambientais, que facilite o trabalhodaqueles que se ocupam da descriçãoda diversidade biológica. É tambémnecessário que a comunidade científicacompreenda a importância de repassarao IBAMA as informações de que dispõe,para que este possa traçar políticas cadavez mais eficientes de fiscalização,manejo e utilização das paisagensnaturais. É necessário sentar à mesa paraconversar, de modo a maximizar autilização das melhores capacidades domeio científico.

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