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Capítulo 32 Prezado Agricultor, Sua importância é tanta Que um velho sábio dizia: Quem cuida, semeia ou planta, Aos céus faz uma poesia. Meu caro e bom inventor, Desde a hóstia sacrossanta Ao pão que o ancestral comia Vem do teu labor que encanta Com frutos que nos sacia. Geovane Alves de Andrade

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Capítulo 32Prezado Agricultor,

Sua importância é tantaQue um velho sábio dizia:

Quem cuida, semeia ou planta,Aos céus faz uma poesia.

Meu caro e bom inventor,Desde a hóstia sacrossanta

Ao pão que o ancestral comiaVem do teu labor que encanta

Com frutos que nos sacia.

Geovane Alves de Andrade

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Agricultura Familiar e Teoria Social: adiversidade das formas familiares deprodução na agricultura

Sergio Schneider

Paulo André Niederle

Abstract

The article discusses the family farming in social theory from a neo Marxist and political

economy perspectives and introduces the contribution of actor-oriented theory to the topic.

The main focus is the issue of diversity and heterogeneity of family forms of working and

producing. The essay shows that the local and regional designations in Brazil such as

colono, sitiante, posseiro, morador, ribeirinho, are on the basis of what is currently called the

family farming, which appears as a political category which intends to summarize the

current social diversity in rural areas. As a conclusion, the paper suggest that the family

farms can be distinguished from peasants, even though both belong to a same social group

and have between them elements of a common identity. To develop this distinction, the key

variable examined in the study was the commoditization, which makes that the involvement

of family farmers with the market can make them, at the same time, more integrated and

more dependent.

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Savanas: desafios e estratégias para o equilíbrio entre sociedade , agronegócio e recursos naturais990

Introdução

Não é tarefa fácil definir e situar o lugar da discussão sobre agricultura familiar em

meio à teoria social contemporânea. Para encurtar caminho, em geral os cientistas

sociais optam por mecanismos de fundamentação epistemológica para dizer, afinal, que a

construção do conhecimento científico nesse campo disciplinar decorre, em larga medida,

dos princípios teóricos e metodológicos que guiam as opções e convicções dos autores.

Esse será também o caminho perseguido neste texto. Pretende-se focalizar o lugar da

agricultura familiar a partir das contribuições da teoria social marxista e neomarxista,

numa tentativa de resgatar as perspectivas analíticas que se situam no campo da

economia política da agricultura e da teoria orientada aos atores.

Antes de explicitar os fundamentos dessa perspectiva analítica, vale a pena

comentar sobre o interesse recente e cada vez mais freqüente no Brasil em torno da

agricultura familiar. Afinal, ainda que não se tenha uma definição rigorosa e consensual

sobre o estatuto conceitual da agricultura familiar, há uma certa generalização em torno da

idéia de que o agricultor familiar é todo aquele sujeito que vive no meio rural e trabalha na

agricultura juntamente com sua família. Assim definido pelo senso comum, o agricultor

familiar abarca uma diversidade de formas de fazer agricultura que se diferencia segundo

tipos diferentes de famílias, o contexto social, a interação com os diferentes ecossistemas,

sua origem histórica, entre outras. Tomando-se o Brasil de norte a sul, é possível encontrar

uma diversidade muito grande de agricultores familiares, muitos deles obedecendo a

denominações locais e regionais, como as de colono, sitiante, posseiro, morador, ribeirinho,

entre outras.

A rigor, antes da década de 1990, a própria referência à agricultura familiar no

Brasil era quase inexistente, uma vez que os termos usualmente utilizados para qualificar

essas categorias sociais eram os de pequeno produtor, produtor de subsistência ou

produtor de baixa renda. Em decorrência das lutas do movimento sindical por crédito,

melhoria de preços, formas de comercialização diferenciadas, implementação da

regulamentação constitucional da previdência social rural, entre outras, essas

denominações foram cedendo espaço para a de agricultura familiar, que deslocou

igualmente a própria identidade sindical em torno da noção de trabalhador rural. Além

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Agricultura Familiar e Teoria Social: a diversidade das formas... 991

disso, vale lembrar que o início da década de 1990 foi um período particularmente fértil e

estimulante, em que aparecerem vários estudos, livros e pesquisas que contribuíram para

afirmação e reconhecimento da agricultura familiar no meio acadêmico.

Atualmente, o que há de novo no cenário, desde que a agricultura familiar

reafirmou sua legitimidade social, política e acadêmica, é o aparecimento de clivagens e

argumentos que defendem a necessidade e a pertinência de se caracterizar os

agricultores familiares como camponeses, o que às vezes resulta na criação de termos

como agricultura familiar camponesa. Mas em oposição a essa perspectiva, está

igualmente na ordem do dia a discussão sobre as relações da agricultura familiar com o

agronegócio, o que não raro resulta no uso de terminologias, tais como agronegócio

familiar, contrapondo-se ao agronegócio empresarial ou patronal.

Por detrás desses termos, há notáveis interesses políticos, sendo necessário que

os estudiosos e analistas sejam capazes de distinguir entre o que é propriamente uma

construção política com sentido ideológico daquilo que é um sinal da existência de uma

nova categoria na estratificação social do meio rural brasileiro. Esse é precisamente odesafio e a intenção principal deste capítulo, cujo objetivo consistirá na tentativa de

apresentar elementos analíticos que possam ser úteis para problematizar e compreender

a diversidade das formas familiares de trabalho e produção presentes no meio rural

brasileiro nos dias atuais.

Com o intuito de dar uma pequena contribuição a esse debate, este capítulo

focalizará a questão da diversidade e da heterogeneidade das formas familiares de

trabalho e produção, procurando mostrar as diferentes possibilidades de abordá-las. De

um lado, trabalha-se com a perspectiva de que no Brasil a origem das formas familiares

está diretamente relacionada à própria ocupação do território nacional. Esse processo se

iniciou no final do século XVIII, mas intensificou-se sobremaneira a partir da primeira

metade do século XIX, com a promulgação da Lei de Terras, em 1850. De outro lado,

acredita-se que a compreensão da evolução e da reprodução das formas familiares requer

o estudo dos sistemas de produção e do modo de organização social do trabalho. Nesse

sentido, entende-se que a forma de acesso à terra e os modos de organização do trabalho

e da produção são dimensões fundamentais à compreensão da evolução das formas

familiares ao longo do tempo bem como dos processos que respondem por sua

diferenciação e interação social.

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Savanas: desafios e estratégias para o equilíbrio entre sociedade , agronegócio e recursos naturais992

Camponeses e Agricultores Familiares: para além dosmaniqueísmos

A rigor, tanto em termos históricos como analíticos, é difícil distinguircamponeses de agricultores familiares. Existem vários elementos comuns a essas duasformas sociais e, não raro, na literatura especializada, aparecem posições que

sustentam que não há diferenças substantivas entre ambas. Embora não sejamcategorias antípodas, é mister reconhecer que as diferenças de significado de ambos seasseveram à medida que se amplia a polarização política que lhe é subjacente. Nessesentido, as polarizações a que se tem assistido no Brasil no período recente são menosde natureza conceitual e analítica do que de fundo político e ideológico, caracterizando oembate em torno de perspectivas e concepções distintas sobre as bases e diretrizes do

desenvolvimento rural.

Mas, para fugir do maniqueísmo que em geral caracteriza essas polarizações,acredita-se ser mais profícuo situar a discussão sobre campesinato e agricultura familiarno debate sobre as formas sociais que se organizam sob relações de trabalho e daprodução familiares. O que há de comum entre ambas noções é que trabalho, produção efamília formam um conjunto que opera de forma unificada e sistêmica, cultivandoorganismos vivos e gerenciando processos biológicos por meio dos quais busca criarcondições materiais que visam garantir sua reprodução enquanto um grupo social. Isso

significa que a organização social e econômica, o processo de trabalho e de produção, asrelações com os mercados e as formas de transmissão patrimonial são fortementeinfluenciadas por relações de consangüinidade e parentesco que são tributárias tanto domodo como as famílias gerenciam os seus recursos materiais como dos valores culturaise simbólicos que definem sua identidade.

De modo geral, os estudiosos da agricultura e do mundo rural acabam optando pordeterminados enfoques teóricos, alguns enfatizando os aspectos econômicos,

relacionados ao modo como as unidades familiares lidam com os fatores de produção,terra, trabalho e capital. Esses enfoques buscam discutir o significado econômico e acontribuição produtiva que as formas familiares aportam à criação da riqueza material.Mas há também as abordagens que colocam em plano secundário as questõeseconômicas e materiais e ressaltam a análise dos aspectos culturais, políticos e

identitários que caracterizam os grupos e os indivíduos organizados em unidades

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Agricultura Familiar e Teoria Social: a diversidade das formas... 993

familiares. Nessa abordagem, a esfera produtiva é analisada como o resultado material

que decorre do modo como um determinado coletivo social se organiza para viver e

reproduzir aspectos de sua cultura e de sua identidade.

As formas sociais familiares que se organizaram e desenvolveram no meio rural

brasileiro a partir do século XIX surgiram por meio dos processos de ocupação do

território interiorano pela entrada dos imigrantes de origem européia, especialmente no

Sul do País. Mas é preciso lembrar que ao lado desses e, sobretudo antes desses, havia,

no meio rural, grupos sociais formados por descendentes de indígenas que se

miscigenaram com os primeiros colonizadores espanhóis e portugueses e de escravos

negros de origem africana, muitos deles organizados em quilombos. Em seu trabalho

sobre o papel do campesinato na política brasileira, Martins (1981) mostrou que, para as

classes dominantes e as elites agrárias, esse grupo social permaneceu “excluído e

invisível”, somente vindo a despertar atenção nos momentos de crise, contestação e

revolta, como no caso de Canudos, Contestado, Muckers, das ligas camponesas

nordestinas, entre outros.

Para os estudiosos interessados em entender as formas familiares de trabalho e

suas estratégias de reprodução ao longo da história, a primeira questão que se apresenta

refere-se à comparação entre a configuração atual da agricultura familiar (ou dos grupos

sociais assim identificados) em relação àquelas formas sociais que se implantaram no

passado por meio dos processos de ocupação e colonização. Objetivamente, a indagação

é sobre a possibilidade de se afirmar que os colonos, sitiantes, caipiras, posseiros,

moradores, ribeirinhos e tantas outras categorias do senso comum estão nas origens e

formam a base social da agricultura familiar atual.

Segundo o entendimento aqui adotado, embora trabalhem sobre um pequeno lote

de terra, mobilizando e utilizando basicamente a força trabalho do grupo doméstico, os

distintos grupos sociais espalhadas pelo Brasil formados pelas diversas categorias de

habitantes do espaço rural podem ser denominados de agricultores familiares. Em termos

empíricos e do senso comum, os indivíduos e as famílias denominados de camponeses,

ou designados pelas corriqueiras terminologias, como colonos, sitiantes, caipiras,

posseiros, moradores e ribeirinhos, fazem parte de um mesmo grupo social ou de uma

mesma classe.

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O que lhes confere essa identidade social está assentado no fato de que

constituem um vasto contingente social que possui acesso precário, parcial ouinsuficiente a meios de produção, como terra e capital produtivo, assim comoinformações e canais de escoamento de sua produção excedentária. A força de trabalhoda família é seu principal fator produtivo abundante, mas, enquanto um núcleo familiar,trabalho e produção fazem parte de um todo indivisível, em que as relações deconsangüinidade e parentesco funcionam como cimento e fator de coesão do grupo social.

Embora produzam excedentes destinados aos consumidores dos núcleos urbanos maispróximos ou mesmo aos mercados mais longínquos, essas famílias de agricultoresraramente abandonam a produção para o auto-aprovisionamento ou autoconsumo, o quelhes permite um jogo permanente entre vender, trocar ou consumir, que é o fatorpreponderante de sua autonomia cultural, social e econômica em relação à sociedadecapitalista em que estão inseridos.

Não obstante, ainda que pertençam a um mesmo grupo social, para efeito de sua

compreensão teórica e conceitual, é preciso distinguir camponeses e agricultoresfamiliares e mostrar que suas características, seu modo de existência e sua forma dereprodução obedecem a características socioculturais e a uma racionalidade econômicaque não são análogas. Embora mantenham semelhanças entre si, como a propriedade deum pequeno lote de terra, o uso predominante do trabalho da família na execução dastarefas produtivas, o acesso à terra mediante a herança, a manutenção dos vínculossociais assentados em relações de parentesco, entre outras; o traço fundamental que

distingue os agricultores familiares dos camponeses assenta-se no caráter dos vínculosmercantis e das relações sociais que estabelecem à medida que se intensifica e se tornamais complexa a sua inserção na divisão social do trabalho. Ou seja, é o maiorenvolvimento social, econômico e mercantil que torna o agricultor familiar, ao mesmotempo, mais integrado e mais dependente em relação à sociedade que lhe engloba.

Nesse sentido, a análise de situações e processos sociais concretos deveprocurar identificar como se dá essa diferenciação, mostrando em que consiste a

transformação com a manutenção de determinadas características e a superação deoutras. A tarefa que se impõem, portanto, é analisar a evolução ao longo do tempo eestudar quais são os fatores causais que determinam as mudanças e/ou alteraçõesfundamentais e de que modo os agentes (os indivíduos e as famílias) envolvidos

integram-se ou reagem a elas.

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Sobre as Origens das Formas Familiares de Produção

Como ponto de partida, a abordagem interpretativa sobre as origens das formas

familiares pode começar pela análise dos aspectos sociais, econômicos e culturais que

caracterizam o grupo social identificado pelas noções do senso comum, tais como

colonos, sitiantes, caipiras, posseiros, moradores, ribeirinhos, entre outras. Em geral,

essas categorias sociais se originaram por meio dos processos de expansão da fronteira

agrícola, via frentes de ocupação territorial, mas também por meio do assentamento dos

imigrantes de origem européia. Cada uma das categorias referidas configura uma

determinada formação social que pode ser caracterizada como um modo de vida. A noção

de modo de vida inspira-se na idéia originalmente desenvolvida por Antônio Candido, em

seu clássico estudo sobre os caipiras paulistas, em que indica que o funcionamento de

um determinado grupo social sempre está assentado em uma forma de organização da

produção e uma forma de sociabilidade.

Nas unidades familiares de produção, o sistema produtivo em geral se assenta

no trabalho da terra, realizado por uma família, e na produção primária, destinada

prioritariamente à satisfação das necessidades internas da propriedade e do grupo

doméstico (composto pelos membros da família). Nessa forma de organização do

trabalho e da produção, as atividades agrícolas quase sempre coexistem e se

complementam com outras atividades não-agrícolas, como o artesanato e o comércio,

tornando as unidades pluriativas. À medida que o sistema produtivo passa a ser

submetido a um conjunto variado de pressões sociais e econômicas externas, ocorre um

processo de transformação que, aos poucos, vai comprometendo várias de suas

características originais. Essas mudanças na forma de produção também afetam

aspectos da cultura e da sociabilidade, o que acaba transformando e metamorfoseando o

próprio modo de vida. O processo de mercantilização crescente da vida social e

econômica leva a uma crescente interação e integração das famílias aos mercados.

Como resultado, reduz-se consideravelmente a sua autonomia, já que passam a

depender da compra de insumos e ferramentas para produzir e da venda da produção

para arrecadar dinheiro que lhes permita reiniciar e reproduzir o ciclo. Nesse contexto, as

estratégias de reprodução social das famílias rurais tornaram-se cada vez mais

subordinadas e dependentes do exterior, quer seja dos mercados de produtos ou mesmo

dos valores e da cultura.

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Esse processo avança à medida que a produção começa a operar nos marcos das

relações de troca de mercadorias, ocorrendo, portanto, uma mercantilização. Na agricultura, o

processo de mercantilização refere-se a uma situação de crescente interação dos indivíduos

com a divisão social do trabalho em que estão inseridos. Existem vários graus e estágios na

mercantilização, que não é um processo linear e previsível. A mercantilização não ocorre de

forma homogênea porque cada indivíduo ou, nesse caso, cada agricultor, tende a estabelecer

distintas formas de relações com os mercados. Por isso, a mercantilização leva também à

diferenciação social e econômica dos agricultores.

O processo de mercantilização das relações sociais de trabalho e produção também

tende a alterar o ambiente social e econômico – o território – em que estão situadas as

unidades familiares. Portanto, quanto maior for o grau de mercantilização em um determinado

território, mais forte tenderá a ser a pressão para que o conjunto das relações sociais ali

existentes também siga esse mesmo padrão de ordenamento e funcionamento.

Nesses termos, a discussão teórica sobre a agricultura familiar situa-se no debate

mais amplo sobre a persistência das formas familiares de trabalho e de produção no

interior do capitalismo. A dinâmica socioeconômica dessas formas sociais no meio rural

configura-se como uma projeção particular do conjunto das relações de produção e

trabalho que existem e se reproduzem nos marcos de uma sociedade em que imperam

relações sociais de caráter capitalista. O modo pelo qual a forma familiar interage com o

capitalismo pode variar e assumir feições heterogêneas e até mesmo muito particulares.

Em alguns casos históricos, as formas sociais identificadas com o trabalho familiar

acabaram sucumbindo em outras foram absorvidas pelo próprio capitalismo. Entretanto,

em muitas situações, a presença do trabalho familiar em unidades produtivas agrícolas

pôde desenvolver relações estáveis e duradouras com as formas sociais e econômicas

predominantes, como é o caso, só para dar um exemplo, da integração dos agricultores

familiares às empresas agroindustriais que operam no regime de integração.

Isso permite afirmar que, em várias situações e contextos, as unidades familiares

podem subsistir com uma relativa autonomia em relação ao capital e se reproduzir

nessas condições. A sua permanência ao longo do tempo não é estática nem tende a um

equilíbrio. O certo é que sua manutenção e persistência dependerá das distintas e

heterogêneas formas de interação social, cultural e econômica com o capitalismo e de

sua capacidade de afirmação em circunstâncias de espaço e de contexto histórico.

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Agricultura Familiar e Teoria Social: a diversidade das formas... 997

Teorizando sobre as “Metamorfoses” das FormasFamiliares

Assim posta, a questão da viabilidade social e econômica das formas familiaresde trabalho e produção leva a uma discussão analítica sobre as condições e possibilidade

de sua reprodução. Nos marcos de uma sociedade de mercado, em que as relaçõessociais não podem prescindir das relações de troca e intercâmbio, compreender oprocesso social pelo qual indivíduos e famílias ingressam nesse universo e entender seusmecanismos de funcionamento é uma tarefa de primeira ordem. Essas questões podemser apanhadas e analisadas nos marcos do que, na literatura especializada, é denominadode mercantilização das relações sociais. A mercantilização se apresenta como uma

noção-chave para compreender como o processo de complexificação da divisão social dotrabalho ocorre pela ampliação das relações de troca em uma sociedade crescentementeorganizada sob o predomínio da produção de bens para intercâmbio mercantil.

Na tradição dos estudos rurais, desde a década de 1980, a vertente dos analistasidentificados com a perspectiva neomarxista passou a se preocupar com a extensão e osefeitos do processo de mercantilização na agricultura e no espaço rural. O debate damercantilização se desenvolveu especialmente no interior da chamada “Sociologia daAgricultura”, abordagem teórica que, desde meados dos anos 1970, se apresentava como

a principal expressão de oposição à rural sociology e ao funcionalismo dos estudosagrários (BUTTEL et al., 1991; BUTTEL, 2001; SCHNEIDER, 1997). Um dos enfoques maisproeminentes no interior da Sociologia da Agricultura desenvolveu-se a partir do debateentre Friedmann e Bernstein acerca da “produção simples de mercadorias” (PSM) ou“pequena produção de mercadorias” (PPM). Em face da incapacidade de as categoriasmarxistas clássicas (produtores parcelários, camponeses, pequenos proprietários)

refletirem adequadamente sobre as condições das formas de produção contemporâneas,esses autores propuseram o conceito de “produção simples de mercadorias” comoalternativa ao conjunto de formas sociais não-capitalistas presentes na agricultura.

O conceito de produção simples de mercadorias foi utilizado pioneiramente porMarx (1982) para caracterizar as formas pré-capitalistas que não estavamcompletamente inseridas nos processos de reprodução ampliada do capital, que seriamfruto de uma integração parcial à divisão social do trabalho. Dessa forma, as bases da

teoria do valor de Marx distinguem a produção capitalista entre a produção simples e a

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Savanas: desafios e estratégias para o equilíbrio entre sociedade , agronegócio e recursos naturais998

produção ampliada, havendo uma trajetória histórica em que as formas simples são

transitórias e vão sendo suplantadas pelo próprio desenvolvimento do capitalismo ou

subordinadas a este. De acordo com Friedmann (1978a,b), a análise de Marx não havia

considerado as possibilidades de persistência dessas unidades de produção nas sociedades

modernas, em que o capitalismo se torna o sistema social dominante regido pelas trocas

mercantis. Friedmann argumenta que, em vez de desaparecerem, as formas de produção

simples de mercadorias subsistiram ao ambiente crescentemente marcado pelas trocas e o

intercâmbio de mercadorias demonstrando não haver incompatibilidade entre as unidades

sociais que se assentam no trabalho familiar e a produção e reprodução capitalista.

Segundo a autora, as unidades familiares de produtores simples de mercadorias se

assentam em “relações sociais específicas”, tais como o uso do trabalho familiar não-

remunerado, as relações de parentesco e o acesso à propriedade da terra via herança, que

fazem com que os custos e as relações de produção dessas unidades as tornem mais

competitivas em relação às empresas capitalistas. Na produção simples de mercadorias,

o produtor vende a mercadoria produzida com o seu trabalho e consegue o dinheiro para

repor o estritamente necessário para renovar o processo produtivo, do que consta

inclusive reproduzir a força de trabalho, comprando os meios de vida indispensáveis a sua

família. O fato de não haver expropriação de excedente torna essa forma de produção

completamente diferente da produção capitalista. Desse modo, segundo Bernstein (1979,

1986), essa forma de produção adquire “vantagens competitivas sobre a produção

capitalista”, as quais são derivadas do não requerimento estrutural de lucro, da

flexibilidade de consumo pessoal, da auto-exploração pela intensificação do trabalho

familiar, da redução dos níveis de consumo, do endividamento ou mesmo da entrega de

meios de produção.

Aparentemente, é difícil aceitar que a forma social que tem sido denominada de

agricultura familiar no Brasil seja representada por unidades de produção “completamente

mercantilizadas”, ainda que, em muitas regiões, essa forma social esteja amplamente

integrada aos circuitos mercantis. Tampouco parece razoável assumir que a

mercantilização possa ser concebida pelo nível de desenvolvimento dos mercados

nacionais, mesmo considerando o atual estágio de globalização da economia. Assim, o

potencial analítico desse enfoque perde força em virtude de ter reproduzido análises

centradas em modelos estruturais e lineares, nos quais a mudança social é vista,

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primeiramente, a partir da intervenção de forças externas (fundamentalmente, o Estado) eexcluindo a capacidade dos atores sociais de intervir no curso do desenvolvimento1.

Um contraponto interessante a essa perspectiva neomarxista surge de autorespreocupados em sair tanto dos esquemas estruturalistas de análise quanto das perspectivasmicroeconômicas. Nessa direção, encontram-se os trabalhos de Van der Ploeg e Long. Aomesmo tempo em que mantêm uma afinidade com os marxistas, esses autores procuraramacrescentar às noções chayanovianas a idéia de que era preciso pensar as interfaces dosprodutores com as estruturas e dispositivos das sociedades dominadas pelas regrasimpostas pelo mercado, sem cair num determinismo ex ante. Nesse sentido, vão articular oque denominam de uma “perspectiva orientada aos atores”, que focaliza as respostasdiferenciais produzidas em circunstâncias estruturais similares. Enfatizando a capacidade deagência dos agricultores, essa perspectiva opera uma ressignificação das categorias quesustentam o enfoque da produção simples de mercadorias. Os mercados deixam de serpercebidos como estruturas rígidas e externas e passam a ser vistos como arenas sociaisresultantes das interações entre os próprios agricultores e outros atores. A mercantilizaçãotorna-se o resultado de um amplo processo de negociação e disputa entre os atores sociais(individuais e coletivos; locais e externos) que envolve o controle dos recursos utilizados nosprocessos produtivos e, dessa forma, o domínio dos mercados.

Segundo Ploeg (2003), cotidianamente os agricultores desenvolvem uma série deestratégias para modificar, neutralizar, resistir e, por vezes, até acelerar os resultados damercantilização, de acordo com a condição socioeconômica da unidade familiar. Trata-sede um processo não-linear, com avanços e reveses e, fundamentalmente, expresso nainserção diferencial das unidades de produção nos mercados. Desse modo, o fato de osagricultores mobilizarem um amplo repertório de recursos fora dos mercados cria“espaços de manobra” e estratégias para manter e ampliar sua autonomia. Porconseguinte, é equivocada tanto a percepção de que a mercantilização induz à perda total

da autonomia quanto de que esse processo esteja concluído2.

1 Nesse sentido, segundo Long, o referencial marxista da Sociologia da Agricultura, mesmo apontando olado perverso e desigual do processo de reestruturação da economia capitalista, não se diferenciou da“teoria da modernização” de cunho neoclássico (LONG, 2001; LONG; PLOEG, 1994).

2 Nos termos em que opera o debate, Ploeg (1990) propõe a possibilidade de mensurar distintos “graus demercantilização” a partir da proporção entre a quantidade de mercadorias mobilizadas pelos agricultoresnos diversos mercados (insumos e fatores de produção, trabalho, crédito, terra, etc.) e aqueles valores deuso reproduzidos endogenamente à unidade de produção nos ciclos precedentes.

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Savanas: desafios e estratégias para o equilíbrio entre sociedade , agronegócio e recursos naturais1000

Desde essa perspectiva, Ploeg (2006a) opera uma redefinição das categorias

utilizadas por Friedmann (1978b) e Bernstein (1986) e traz uma contribuição que interessa

ao debate brasileiro sobre as formas familiares de produção. A nosso ver, essa

perspectiva possibilita superar a oposição clássica entre agricultura familiar e

campesinato, dando substância analítica para estudar essas categorias sociais. Em um

esforço para compreender a heterogeneidade estrutural das formas de produção no meio

rural, o autor sustenta a existência de duas distintas formações sociais que seriam

abarcadas pela chamada agricultura familiar, que denomina de “forma camponesa” e

“forma empresarial”:

[...] a agricultura familiar abrange duas constelações contrastantes: a

forma camponesa e a forma empresarial de se fazer a agricultura. [...] A

essência e as principais diferenças entre esses dois contrastantes modos de

produção não residem tanto nas relações de propriedade; elas situam-se

principalmente nas (diferentes) formas através das quais a produção, a

distribuição e a apropriação de valor são ordenadas (PLOEG, 2006a, p. 14, grifo

nosso).

Segundo o autor, enquanto a “forma familiar empresarial” de agricultura opera

conforme uma “produção simples de mercadorias”, a “forma camponesa” representa uma

“pequena produção de mercadorias”. Para que isso seja minimamente aceitável, é

necessário rever os conceitos de produção simples de mercadorias (PSM) e pequena

produção mercantil (PPM). Na Tabela 1, estão resumidas as principais características de

quatro distintas formas sociais de produção diferenciadas por Ploeg (2006a): produção

doméstica, PPM, PSM e produção capitalista. As principais diferenças entre as quatro

formas residem, fundamentalmente, nas relações estabelecidas com os mercados,

embora estas estejam também intimamente associadas a relações específicas que

ocorrem em domínios distintos. Enquanto a produção capitalista e a produção doméstica

refletem extremos em termos de dependência dos processos produtivos e reprodutivos

aos mercados, a PPM e a PSM configuram formas intermediárias resultantes de múltiplas

configurações produtivas e sociais. Na PPM, somente o resultado da produção é

comercializado (e apenas parte dele) e se torna mercadoria. A força de trabalho e os

demais recursos essenciais ao processo produtivo não entram no processo de trabalho

como mercadorias, uma vez que são reproduzidos pelos ciclos precedentes da produção.

Na PSM, com exceção do trabalho, o restante passa pelos mercados. Nesse caso,

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Agricultura Familiar e Teoria Social: a diversidade das formas... 1001

introduzem-se não apenas as relações mercantis gerais com todos seus efeitos

imediatos, mas também “a lógica do mercado” no interior das unidades de produção

(PLOEG, 2006a).

Tabela 1. Diferentes formas de produção de mercadorias.

Doméstica(PD) Pequena(PPM) Simples(PSM) Capitalista(PCM)

Resultado da produção - + + +

Outros recursos - - + +

Força de trabalho - - - +

Objetivo auto-abastecimento sobrevivência renda mais-valia

Fonte: Ploeg (2006a, p. 18).Nota: Os elementos que constituem o processo de produção entram como mercadorias/valores de troca (+)ou como não-mercadorias/valores de uso (-).

Diferentemente dos neomarxistas, o que está sendo proposto pelos holandeses éuma ferramenta analítica para a compreensão de distintas lógicas de organização dosprocessos de produção e trabalho. Em certo sentido, trata-se do que Ploeg (1990) chamade uma via histórica de “reprodução relativamente autônoma”, em que a força detrabalho, os objetos e os meios necessários para cada ciclo de produção são resultadosdo ciclo precedente. Em outro, uma “reprodução dependente do mercado” em que osfatores de produção e inputs são mobilizados como mercadorias, por meio dos mercados.

Numa via de “reprodução dependente do mercado” (forma empresarial), tem-se,por exemplo, o caso de agricultores integrados ao regime sociotécnico sustentado pelosmercados globais de commodities agrícolas. Esses mercados procuram impor umagramática de relações produtivas e sociais caracterizada pelo aumento davulnerabilidade econômica dos agricultores; pela reestruturação da noção de custos eaumento da importância do fator “risco” e dos elementos de previsão nos processos detomada de decisão; pela preponderância da lógica da eficiência econômica (eleger entreos fatores de produção aqueles que possuem o menor preço e/ou que propiciem maiorrenda ) sobre a da eficiência técnica (máximo rendimento por unidade de trabalho); e pela

alteração do significado e da qualidade do trabalho3 “ dissociação entre o trabalho

3 Nos termos de Woortmann (1990), o trabalho deixa de ser uma “arte” para tornar-se um “negócio”, ouainda, segundo Abramovay (1992, p. 127): “aquilo que antes de tudo era um modo de vida converte-senuma profissão, numa forma de trabalho.”

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Savanas: desafios e estratégias para o equilíbrio entre sociedade , agronegócio e recursos naturais1002

manual e o trabalho mental (PLOEG, 2006a, 1990). Desse modo, introduzem-se nãoapenas transformações produtivas, mas também outra forma de pensar, outra lógica queorienta os processos produtivos.

Na forma empresarial, o que assume maior centralidade são os recursos externos,as tecnologias mecânicas, o aumento de escala e a eficiência econômica. Diferentementeda preocupação com a artesanalidade, que é a capacidade da força de trabalho dedesenvolver o potencial dos objetos de trabalho, o essencial passa a ser a capacidade deadaptar o processo de produção às relações mercantis externas que impõem limites decustos e níveis mínimos de lucratividade – empresarialidade (PLOEG, 1992, 1990). Nessalógica, o agricultor passa a raciocinar muito mais em termos de capital do que em termosde propriedade (MARTINS, 1975). Terra e trabalho perdem gradativamente seu significadomoral para se tornarem meios de produção. As relações sociais são continuamentetransformadas pela individualização, e o sentido da ação econômica passa a estarassociado ao máximo rendimento econômico. Da mesma forma, a profissionalização e alinguagem do contrato assumem maior importância, imprimindo caráter cada vez maisdespersonalizado às relações sociais.

Nesse caso, a mercantilização é acompanhada por uma crescente “externalização”de etapas do processo de produção, que é dada pela transferência do controle de recursosprodutivos e tarefas, até então exercido pelos próprios agricultores, para atores externos(bancos, empresas, cooperativas, técnicos, indústrias). O resultado final desse processo é aseparação do controle da unidade de produção dos próprios agricultores, fazendo com que agestão fique sob a direção de um sistema de relações técnico-administrativas coordenadasexogenamente. Da mesma forma, também ocorre uma alteração substancial dos parâmetrossobre os quais os agricultores planejam e executam suas estratégias e uma transformaçãocompleta do processo de reprodução (PLOEG, 1992,1990, 1985).

Junto à externalização, outros dois processos completam a trajetória de“incorporação institucional” dessa forma empresarial (LONG, 2001; PLOEG, 1990). Oprimeiro refere-se ao que Ploeg denomina de “cientificação” dos processos produtivos,caracterizado pela geração de tecnologias que aumentam o controle dos atores externossobre o processo de trabalho agrícola e sobre a natureza. O segundo diz respeito a maior“centralização estatal” da agricultura, no sentido que Ploeg (1990) e Long (2001) atribuemao papel do Estado na coordenação das inter-relações entre várias instituições e atores

para resolução de conflitos e para a garantia da reprodução dessa forma social.

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Agricultura Familiar e Teoria Social: a diversidade das formas... 1003

Em outro sentido, numa via de “reprodução relativamente autônoma”, encontra-se

a “forma camponesa”. Segundo Ploeg (2006a), em várias partes do mundo tem-se

assistido a um processo de “recampesinização”, que implica uma revalorização da

“condição camponesa”. A ressemantização acerca de uma “condição camponesa”

proposta por Ploeg refere-se fundamentalmente à busca por “autonomia” e controle dos

processos de produção e de trabalho. Segundo o autor:

...central para a condição camponesa é luta por autonomia, sobrevivênciae progresso em um contexto hostil que é caracterizado por relações dedependência, privação e marginalização. Esta luta aspira a criação edesenvolvimento de uma base de recursos auto-controlada, que leva em contaformas de co-produção entre o homem e a natureza viva, que interage com omercado, permitindo sobreviver e que positivamente realimenta, e fortalece, abase de recursos, assim melhorando o processo de co-produção e aumentando aautonomia requerida. A mesma luta geralmente implica também estar engajado em

outras atividades para sustentar este ciclo (PLOEG, 2006b, p. 9).

Para compreender adequadamente o que Ploeg denomina de condição camponesa,

talvez valha a pena destacar e analisar alguns elementos de sua definição. O primeiro

deles sugere que a forma camponesa não implica aversão aos mercados, embora um

afastamento estratégico de determinados circuitos de comércio seja necessário. A forma

camponesa representa uma espécie de “co-produção”4 que busca internalizar recursos e

sustentar alguma autonomia dos meios de produção. Isso faz com que a base de recursos

seja composta prioritariamente por não-mercadorias, levando a um distanciamento de

determinados circuitos de troca (internalização e desmercantilização). Não obstante, esse

distanciamento é relativo. Mantém-se distância dos mercados de insumos

industrializados, mas uma vinculação crescente a novos mercados, buscando a geração

de valor agregado e empregos produtivos (PLOEG, 2006b). Esses processos são

evidentes, por exemplo, no desenvolvimento da agricultura de poucos insumos externos

(low external input agriculture), da agroecologia, da transformação agroindustrial para

venda, da produção para autoconsumo e de alguns tipos de pluriatividade (NIEDERLE,

2007; SCHNEIDER; NIEDERLE, 2007).

4 “Co-produção é o incessante encontro e interação mútua entre homem e natureza viva e, de forma geral,entre o social e o material. Na co-produção e através da dela, o social e o material são mutuamentetransformados. Eles são moldados e remodelados de forma a tornarem-se recursos úteis, adequados epromissores, que compõem um padrão coerente: o modo de produção camponês”. (PLOEG, 2006a, p. 22).

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Savanas: desafios e estratégias para o equilíbrio entre sociedade , agronegócio e recursos naturais1004

Outro componente essencial diz respeito à idéia de Ellis (2000) de que os

camponeses são apenas parcialmente inseridos aos mercados5. Parcialidade não se

refere, todavia, ao grau de mercantilização, mas à possibilidade de reproduzir os meios de

produção sem precisar acessar os mercados e, fundamentalmente, à flexibilidade entre

consumo e venda que permite, estratégica e temporariamente, se retirar dos mercados

sem comprometer a reprodução social (PLOEG, 2006a)6.

Um terceiro elemento de diferenciação diz respeito ao trabalho. Segundo Ploeg

(2006a), uma vez que à condição camponesa corresponde a escassez de meios de

produção e capital, mas “excesso” de mão-de-obra (comumente, nem sempre é assim), o

processo produtivo tende a se caracterizar pela eficiência técnica e intensificação. Nesse

sentido, torna-se fundamental explorar sua capacidade de desenvolver o potencial

produtivo dos objetos de trabalho e a unidade entre trabalho mental e trabalho manual.

Devem ser acrescentados ainda elementos não essencialmente relacionados ao

domínio produtivo. É o caso de focalizar as características morais, sociais e culturais que

levaram Woortmann (1990) a falar de “campesinidade”, que permitem entender a

existência e o significado do que Scott (1987) chamou de “economia moral”. Não é raro

encontrar mecanismos de contraposição à mercantilização, como é o caso, por exemplo,

do sentido e significado que assumem a terra e o trabalho. Para além de um meio de

produção e uma mercadoria, a terra é a expressão de uma moralidade vinculada ao

repertório cultural das famílias e da comunidade local, assim como o trabalho é um valor

ético associado a um “ethos camponês” (TEDESCO, 1999).

O que Long e Ploeg (1994) procuraram destacar, enfim, é a necessidade de

apreender as respostas diferenciais (estratégias, práticas e razões) que levam os

agricultores a estabelecerem trajetórias distintas em contextos estruturais relativamente

similares. Respostas diferenciais que decorrem do fato de a mercantilização ser um

processo multifacetado e heterogêneo. Um amplo processo social que, como nota

5 Ellis acrescenta a essa definição a idéia de mercados incompletos (“integração parcial a mercadosincompletos”). Essa idéia, todavia, pode sugerir a existência de mercados completos (ou perfeitos), o quenão parece ser o caso mesmo para ambientes econômicos “essencialmente capitalistas”.

6 Nos trabalhos Garcia Júnior (1989) e Herédia (1979), essa parcialidade foi descrita pela noção de“alternatividade” da produção, que ocorre quando um determinado produto pode ser destinada tanto àvenda quanto ao autoconsumo.

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Agricultura Familiar e Teoria Social: a diversidade das formas... 1005

Marsden (1995), não se limita a afetar somente o conjunto das relações de produção e

trabalho na agricultura. Um processo que alcança distintas dimensões e cria o que

Navarro (2002) chamou de “nova atmosfera” de relações sociais, culturais e simbólicas,

materializada em uma nova sociabilidade.

A Diversidade Produtiva e a Heterogeneidade Socialdas Formas Familiares: os estilos de agricultura

A partir desses elementos, torna-se possível indagar sobre como analisar adiversidade da agricultura familiar sem cair em maniqueísmos e falsas dualidades.Novamente, a proposta de Ploeg, de analisar os diferentes “estilos de agricultura”, parecepertinente. Originalmente, o conceito de “estilos de agricultura” foi desenvolvido porHofstee (1946) como tentativa de compreender as diferenças inter-regionais daagricultura européia. Articulado às dimensões da cultura e localidade, o conceitoprocurava representar “um complexo e integrado conjunto de noções, normas,conhecimentos, experiências, etc., portados por um grupo de agricultores em uma regiãoespecífica, que descreve o modo com que a farming práxis é levada adiante” (PLOEG,1994, p. 17).

Não obstante, à medida que se tornou cada vez mais evidente que aheterogeneidade também é uma característica dos contextos e das regiões, “os estilosde agricultura tornaram-se principalmente um fenômeno intra-regional” (PLOEG, 1993, p.243). Mas, de fato, Ploeg acabou não problematizando o componente territorial doconceito, mantendo-se mais restrito à lógica produtiva e social das unidades familiares.Dessa forma, tornou-se uma perspectiva mais diretamente orientada aos atores, seusprojetos e suas estratégias, em que o fundamental passou a ser perceber a capacidade deagência sob condições estruturais relativamente similares.

Entretanto, a noção de estilos de agricultura é relativamente ubíqua e assumediferentes significados nos trabalhos de Ploeg. No livro Labour, markets and agriculturalproduction (1990), o conceito, ainda nascente, aparecia conectado fundamentalmente aoprocesso produtivo agrícola: “estilos de agricultura (ou uso do solo) podem ser definidoscomo uma estrutura válida de relações entre produtores, objetos de trabalho e meios, [...],é o produto de uma estruturação específica do trabalho agrícola” (PLOEG, 1990, p. 11). Em

um artigo posterior (PLOEG, 1992), o autor busca dar conta da discussão sobre as

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Savanas: desafios e estratégias para o equilíbrio entre sociedade , agronegócio e recursos naturais1006

trajetórias diferenciais dos agricultores em termos de “graus de mercantilização”. Isso faz

com que Sevilla Guzmán e Molina (2005, p. 70) afirmem que o conceito configura-se como

uma “proposta para definir operativamente a natureza da agricultura familiar por meio do

tipo de tecnologia utilizada e do grau de implicação no mercado que esta possui”;

constituindo um elemento teórico central para “medir o grau de mercantilização das

explorações familiares”.

Em outros trabalhos, Ploeg (1993,1994) acentua outras dimensões envolvidas,

afirmando que há uma dialética de relações entre a prática concreta dos processos

produtivos e a cultura enquanto elementos de jogo incessante de influência mútua. Desse

modo, ao mesmo tempo em que se reaproxima da dimensão da cultura presente na

definição original de Hofstee, Ploeg traz para o centro do debate a definição de “repertório

cultural” de Norman Long. Essa noção pretende dar conta “das maneiras com que vários

elementos culturais (noções de valor, tipos e fragmentos de discursos, idéias de

organização, símbolos e procedimentos rituais) são usados e recombinados na prática

social, conscientemente ou de outra maneira” (LONG, 2001, p. 56). Assim, resulta que a

definição mais acabada de estilo de agricultura refere-se:

...a um repertório cultural, uma composição de idéias normativas e

estratégicas sobre como a agricultura (farming) será feita. Um estilo envolve um

modo específico de organização da empresa agrícola: prática agrícola e

desenvolvimento são definidos pelo repertório cultural, o qual por sua vez é

testado, afirmado e, se necessário, ajustado pela prática. Por conseguinte, um

estilo de agricultura é uma forma concreta da práxis, uma unidade particular de

pensamento e ação, de teoria e prática (PLOEG, 1993, p. 241).

Percebendo o caráter multidimensional do conceito, Ploeg (1995) propõe então

uma síntese a partir de três elementos interconectados: (a) um conjunto de noções

estratégicas, valores e percepções que um grupo particular de agricultores utiliza para

organizar sua unidade de produção em um determinado caminho; (b) uma estruturação

específica da prática agrícola que corresponde a uma noção estratégica de repertório

cultural; e (c) um conjunto específico de inter-relações entre a unidade de produção e os

mercados. Desde então, esses três componentes (normas, práticas e relações com os

mercados) têm estado presentes em praticamente todas as suas proposições referentes

a estilos de agricultura.

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Agricultura Familiar e Teoria Social: a diversidade das formas... 1007

Esse complexo e intricado jogo entre normas, práticas e relações com os

mercados está relacionado ao conjunto de estratégias (projetos) que os agricultores

desenvolvem. Como argumentam Long e Ploeg (1994), “diferentes estilos de agricultura

representam projetos que os agricultores construíram de forma diferente”. Por isso, os

autores sustentam que o conceito de estratégia assume uma posição central porque

permite interpretar a mudança social a partir das disputas e negociações entre atores que

possuem interesses diferentes e, não raramente, conflitantes7.

De acordo com Ploeg (2003), as estratégias estão intimamente associadas à

existência de diferentes lógicas reprodutivas, as quais podem ser investigadas em

termos de um “calculus” que expressa uma estrutura conceitual com a qual se lê e

interpreta a realidade empírica. “Um calculus é a ‘gramática’ do processo de tomada de

decisão” (PLOEG, 2003, p. 137). Esse calculus também se refere a um “discurso prático”

ou um “raciocínio estratégico” condicionado por relações sociais particulares.

Em face de seu pluralismo metodológico, Ploeg (1994, 2003) se empenha em

construir tipologias de estilos de agricultura em uma perspectiva hermenêutica, partindo

das categorias que focalizam os discursos e representações dos agricultores em relação

a si mesmos e aos demais. Esse tipo de opção metodológica parece estar relacionado ao

argumento desenvolvido por Long (2001) de que os discursos dos atores sociais não são

separados de suas práticas e que, quando solicitados, esses atores são capazes de

delimitar discursivamente os elementos (elaborar um “mapa cognitivo”) que expressam a

existência de um estilo de agricultura.

Mais recentemente, Ploeg (2003) optou por discutir os estilos de agricultura a

partir da perspectiva das redes sociotécnicas, buscando apoio na teoria ator-rede (actor

network theory). Entretanto, nesse trabalho, não fica evidente se o autor realmente está

propondo uma construção diferenciada ou uma alternativa metodológica complementar,

uma vez que as tipologias baseadas em categorias folk continuam presentes. Seja como

for, a questão central gira em torno da compreensão da multiplicidade de dimensões que

estão envolvidas na diferenciação entre os estilos de agricultura sem perder de vista os

7 Os autores também fazem referência à importância de enfocar as estratégias enquanto forma de analisarcomo os agricultores e outros atores sociais resolvem seus problemas de “sustento” ou de “meios devida” “ livelihoods (LONG; PLOEG, 1994; LONG, 2001). Aqui nos interessa destacar as interfaces com osestudos sobre livelihood diversification de Ellis (2000).

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Savanas: desafios e estratégias para o equilíbrio entre sociedade , agronegócio e recursos naturais1008

processos dinâmicos e, por vezes, contraditórios imbricados. Vale notar que Long e Ploeg(1994, p. 76) já haviam explicitado que, “embora claras interrelações entre estilos deagricultura e conjuntos específicos de relações sociais de produção possam serdistinguidas, é impossível construir uma tendência causal unilinear na qual estes estilosemergem como ‘efeitos’ diretos de causas particulares”. Desse modo, é difícil afirmarque existe uma associação linear e causal entre o nível de inserção nos mercados e aformatação dos diferentes estilos ou estratégias. Para esclarecer melhor essa questão, a

passagem a seguir recortada parece ilustrativa:

O desenvolvimento de unidades de produção altamente mercantilizadas

não é condicionado somente pelas relações de mercado, mas também emerge

imediatamente determinado por estas relações. Assim, estilos específicos são

inseridos na lógica do mercado. Mas isto implica que os mercados sejam

compreendidos como causas destes estilos específicos? E devem estes estilos

ser compreendidos como produtos unilineares daqueles mercados?

Evidentemente, este não é o caso [...] (LONG; PLOEG, 1994, p. 76).

A natureza dos processos de mercantilização e incorporação institucional, bemcomo a forma e a intensidade com que esses afetam e são afetados pelas estratégias dasfamílias rurais, possui ampla variabilidade, que depende do contexto específico dedesenvolvimento histórico das relações entre os agricultores e os mercados. As relaçõesdos agricultores com a dinâmica dos mercados globais de commodities agrícolas podemser tomadas como exemplos do que há de mais representativo na existência de“estruturas ou forças exteriores” que tentam subordinar as práticas e discursos dosagricultores a uma gramática de relações sociotécnicas ditada por atores externos egeograficamente distantes (PLOEG, 2006b).

Desde uma perspectiva orientada aos atores, é fundamental elucidar “as estratégiasinternamente geradas e processos de mudança e de disputas entre os “pequenos” mundosdos atores locais e os fenômenos “globais” e atores em grande escala” (LONG, 2001, p. 15).Trata-se de compreender as interfaces entre as estratégias ou projetos dos distintos atores,ou seja, os pontos de união ou confrontação entre diferenças de interesse social,interpretação cultural, conhecimento e poder; entender como a ação de um mercado global,que reflete o projeto de atores agindo à distância, é transformada e ressignificada no mundoda vida dos atores locais, o que se torna um dos fatores determinantes da diversidade

produtiva e da heterogeneidade social (LONG, 2001, p. 45).

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Agricultura Familiar e Teoria Social: a diversidade das formas... 1009

Muitos estilos de agricultura têm internalizado as relações características desse

mercado, colocando em curso um processo de inserção no regime de produçãosustentado pelo paradigma da modernização. Aproximando-se de uma forma empresarialde agricultura familiar, esses estilos têm se mostrado cada vez mais dependentes daespecialização produtiva, do uso de recursos externos, das flutuações dos preçosinternacionais e dos custos de produção e transação.

Entretanto, em outro sentido, existem estilos que operam um distanciamento emrelação a esse modelo. Esses agricultores constroem novas e múltiplas formas de

diversificar os circuitos de troca em que estão inseridos, criando alternativas que lhespermitem contrapor a dominação de cooperativas, empresas, bancos e agentes quecontrolam o mercado de commodities. Nesse sentido, novos estilos de agricultura têmemergido da capacidade de resistência dos agricultores familiares, em que “osagricultores usam a maleabilidade do processo de produção e o espaço de manobracontido nos mercados e tecnologia, para construir novas respostas congruentes para o

projeto dominante de modernização” (PLOEG, 2003, p.115). Trata-se de um esforço porautonomia que é característico da forma camponesa de produção, em que os agricultoresprocuram liberdade em relação às obrigações impostas pelos agentes externos com ointuito de organizar sua propriedade e o processo de trabalho de acordo com suas própriaspossibilidades e necessidades.

São variados os casos e mecanismos pelos quais os agricultores conseguem seafastar do modelo agrícola dominante. E as causas são igualmente distintas e difíceis deserem determinadas. Mas, poder-se-ia começar pelo que Scott (1987) denominou de

“resistência camponesa”, que remete à capacidade dos agricultores de se oporem aosprincípios estruturantes que guiam as mutações da agricultura e do mundo rural,especialmente no período do após-guerra. Em segundo lugar, é importante reconhecer asoportunidades mais recentes de desenvolvimento abertas pela reestruturação capitalista,muitas das quais possibilitaram aos agricultores articularem meios alternativos dereprodução inserindo-se em atividades emergentes no “novo” espaço rural

mercantilizado. Nesse caso, o recurso à pluriatividade tem se apresentado como uma dassituações mais recorrentes. Em terceiro lugar, é necessário considerar o fato de que acrescente mercantilização não retirou a centralidade da família como unificadora doconjunto das estratégias reprodutivas. Dessa maneira, a dinâmica interna da família éespecialmente importante na compreensão das relações que esta estabelece com o

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Savanas: desafios e estratégias para o equilíbrio entre sociedade , agronegócio e recursos naturais1010

universo de instituições externas (inclusive o mercado) e na formatação das distintasestratégias levadas à cabo individual e coletivamente pelos seus membros. Por último, émister reconhecer a existência de um conjunto de instituições sociais (regras e valores)sustentadas por relações comunitárias que estabelecem condicionantes, limites epossibilidades ao avanço da mercantilização.

Não obstante, o que faz com que as unidades produtivas se transformem em umaou outra modo ou direção é o conjunto de estratégias, ações e reações que os membrosque as integram forem capazes de articular e colocar em prática. Essas estratégiasrelacionam-se às mudanças nos processos de trabalho, investimentos de capital, cicloprodutivo, reprodução do grupo familiar, e mesmo ao universo de relações sociaisprioritárias, criando alternativas que se refletem em aumento ou diminuição do grau dedependência aos mercados. Por isso, é possível afirmar que não há uma associaçãocausal e linear entre o grau ou tipo de mercantilização e os diferentes estilos deagricultura construídos, o que torna a situação ainda mais complexa porque não hácorrelação entre um determinado tipo de unidade familiar e uma única estratégia a serseguida. As estratégias se interconectam, podendo cada unidade de produção apresentarum conjunto variado delas. Além do que, da mesma forma que os agricultores migram deum estilo para outro, com o tempo, o repertório de estratégias vai sendo substituído pormodificações nas condições internas da família e das características e condicionantes do

contexto social e econômico.

Considerações Finais

O objetivo deste ensaio consistiu em discutir os elementos conceituais que

permitem elaborar uma distinção operacional e analítica entre as formas familiares de

trabalho e produção a partir das distintas categorias sociais que operam sob a égide do

trabalho de uma família (ou um grupo doméstico, quando envolve mais de uma família

nuclear) sobre um pequeno lote de terra. O ensaio mostra que as denominações locais e

regionais, como as de colono, sitiante, posseiro, morador, ribeirinho, estão na base do que

se denomina atualmente de agricultura familiar, que aparece como uma categoria política

com pretensões a sintetizar a diversidade social presente no meio rural brasileiro.

Não obstante, ainda que pertençam a um mesmo grupo social e possuam entre si

elementos de identificação, as condições sociais e econômicas que caracterizam o modo

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Agricultura Familiar e Teoria Social: a diversidade das formas... 1011

pelo qual se dá sua inserção e interação com a sociedade mais ampla fazem com que os

agricultores familiares possam ser distinguidos dos camponeses. Nesse sentido, a

variável fundamental a ser observada e analisada é o processo de mercantilização, que faz

com que o maior envolvimento do agricultor familiar com o mercado o torne, ao mesmo

tempo, mais integrado e mais dependente.

Mas, ao contrário do que é sustentado pelas perspectivas teóricas estruturalistas

e deterministas, a mercantilização não é concebida como um processo linear e

homogêneo. Estribando-se nas contribuições teóricas dos neomarxistas e da abordagem

orientada aos atores, o trabalho mostra que a mercantilização pode ser entendida como

um processo de criação de diversidade econômica e produtiva e emulador da

heterogeneidade social. Isso é possível porque os agricultores são entendidos como

agentes que podem interferir e mesmo alterar o processo a seu favor, quer seja por meio

da diversificação dos canais mercantis, quando expandem o portofólio de produtos e

serviços que trocam e vendem, ou por meio de estratégias que fortalecem sua autonomia

sobre os fatores de produção, terra e trabalho, os quais passam a usar de forma mais

parcimoniosa e inteligente.

Nesse sentido, o trabalho indica que, embora a mercantilização seja uma

tendência em sociedades que se organizam sob a hegemonia das relações de mercado, a

agricultura familiar apresenta plenas condições de se integrar e reproduzir sem se

desintegrar ou decompor, como esperavam os marxistas. Mas isso não significa que sua

reprodução social e econômica possa ser pensada fora dos marcos das relações de

mercado, o que, por outro lado, coloca em cheque a perspectivas dos analistas que

pensavam na persistência da agricultura familiar enquanto uma forma social plenamente

autônoma.

O que as pesquisas mais recentes demonstraram a esse respeito é que a

permanência e reprodução dos agricultores familiares em sociedades que funcionam sob

o regime capitalista não possui uma regra universal ou um modelo passível de imitação.

Nesse sentido, a perspectiva dos estilos de agricultura proposta pela abordagem

orientada ao ator aporta uma contribuição inovadora ao chamar a atenção para o fato de

que é preciso observar as condições locais tanto quanto a trajetória histórica e social

para compreender como os agricultores fazem para interagir e integrar-se aos mercados

sem deixar que esses definam e comandem integralmente o modo pelo qual agem e

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Savanas: desafios e estratégias para o equilíbrio entre sociedade , agronegócio e recursos naturais1012

decidem trabalhar e viver no meio rural.

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Agricultura Familiar e Teoria Social: a diversidade das formas... 1013

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