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A crítica literária diante da Literatura digital contemporânea
Alckmar Luiz dos Santos – UFSC/NuPILL/CNPq
Cristiano de Sales – Fiam-FMU/NuPILL
I. Introdução
Quando propomos investigar a escrita e a reflexão crítica sobre as literaturas
digitais, deve ficar claro que não se trata aqui de uma produção crítica que
esteja apenas disponibilizada no meio digital, mas de crítica a criações digitais,
podendo ser ela publicada ou não na internete. Dessa maneira, em princípio,
revistas como Cronópios ou Sibila1 estão fora de nosso interesse, pois se
dedicam a obras literárias ainda produzidas dentro das lógicas e das condições
de contorno da tradição impressa, embora estejam em meio digital.
Voltando, então, o olhar para essa crítica às criações digitais, pode-se constatar
com relativa facilidade que ela seguiu por uma trajetória contrária à da crítica
literária na tradição impressa. Nesta, diferentemente do que se vê hoje, a
entrada da reflexão teórica foi posterior à análise das obras individuais. Isso só
ocorreu quando se tornou necessário instalar um campo de reflexão que
permitisse estabelecer critérios de avaliação dos critérios de avaliação das
obras. Em outras palavras, a tomada de consciência de diferenças
metodológicas, sobretudo a partir do esgotamento das perspectivas historicistas
como as de Gustave Lanson, propiciaram justamente as condições para a
aparição em cena da teoria, essa metalinguagem segunda de uma
metalinguagem primeira (a própria crítica literária).
Ora, no caso das literaturas digitais, é inegável que há ainda um predomínio da
reflexão teórica sobre a análise crítica. Se é evidente que uma é inseparável da
outra, há grande diferença, contudo, entre desenvolver reflexões teóricas para
fazer avançar o campo conceitual em questão (ou seja, esse da criação digital) e
enveredar por uma análise que aprofunde sobretudo o conhecimento de um
determinado objeto literário digital. Em resumo, ainda quando a leitura se
debruça sobre objetos específicos, o esforço é feito no sentido de ampliar e
fundamentar o melhor possível o campo conceitual, em detrimento de uma
1 Respectivamente http://cronopios.com.br/site/default.asp e http://sibila.com.br/. Acesso em 18/05/2014.
descrição mais detalhada e de um conhecimento mais aprofundado de uma
criação digital específica.
Propor uma hipótese que explique esse procedimento não parece coisa simples,
pois ele envolve uma série de fatores. Primeiramente, como já afirmado acima,
as literaturas digitais surgem num momento em que ainda há um evidente
predomínio da teoria sobre a crítica, herança que vem diretamente da tradição
impressa. Isso faz com que os leitores das literaturas digitais estejam bem mais
afeitos à visada teórica do que à exploração individual das criações literárias.
Também é importante não esquecer que, do lado dos criadores, a grande
maioria provém do ambiente acadêmico, o que vale dizer que estão submetidos
a essa pretensa primazia da visada teórica (sempre tendendo a ser generalista)
sobre a crítica (necessariamente individual). Ignoram um fato importante: é
certo que, no início do século XX, se atribuiu à teoria o papel de liquidar a
historiografia romântica do século XIX, tomada então como procedimento de
valoração das obras; esquecem, porém, que isso já está superado e que a
emissão de um juízo de valor, ou seja, crítico, hoje em dia, não retoma essa
crítica de outrora.
De outro lado, a dificuldade de nossa análise aumenta, se pensamos nas
peculiaridades das literaturas digitais no Brasil. Fomos um dos primeiros países a
desenvolver criações computacionais e, mais tarde, digitais, com Erthos Albino
de Souza, Pedro Xisto, Bernardo Kamergorodski (em 1966) e Waldemar Cordeiro
(em 1968); posteriormente, a partir da disseminação do uso da WWW em 1995,
vale citar nossos trabalhos com Gilbertto Prado2. Ora, esse pioneirismo não se
traduziu numa leitura mais ampla das criações digitais e, em decorrência, num
desenvolvimento das leituras críticas. De fato, a construção de ferramentas e
estratégias de análise crítica se dá não em contato direto com as obras
específicas, mas com as teorias do texto que vêm dando o rumo e o ritmo das
reflexões sobre o fenômeno literário. Nisso, não nos distanciamos um milímetro
dos hábitos e dos modismos que vicejam na Europa e nos Estados Unidos.
Assim, para falar sobre a crítica literária à criação digital, vamos ter que cavar
fundo em trabalhos teóricos, tentando discernir alguns momentos em que o
crítico da obra literária se deixa ver, em meio a suas preocupações de base
conceitual e fundo teórico (que não deixam de ser legítimas!). Pode ajudar, se
2 Vide http://www.nupill.ufsc.br/hiper01/hiper01.html. Acesso em 18/05/2014.
tentamos ver o que está sendo feito em outros países, sobretudo na França. De
fato, nossa colaboração intelectual com pensadores e criadores franceses das
literaturas digitais tem sido frequente, já há muitos anos, sem deixar de
mencionar a influência evidente dos norte-americanos. De outro lado, temos,
bem próximo, um exemplo que vale a pena investigar no detalhe. Trata-se da
obra de Rui Torres. Rui é professor, pesquisador e criador português. Tem tido
contatos frequentes com seus homólogos brasileiros e faz seus trabalhos
literários em Português. E, mais importante, ao revés do que ocorre aqui, já se
pode falar de uma fortuna crítica dos trabalhos de Rui Torres, ou seja, já existe
uma quantidade razoável de trabalhos de crítica a suas criações literárias
digitais. Assim, para entender como pode estar-se formando uma crítica a obras
literárias digitais brasileiras, vai ser preciso buscar sua descrição também em
outras perspectivas (os trabalhos de nossos teóricos) e em outros países. É o que
se tenta desenvolver na sequência destas reflexões e análises.
2. Alguma crítica de literatura digital
Toda vez que nos lançamos em uma pesquisa que visa a chegar o mais próximo
possível de um dado objeto, partimos, claro, com alguma hipótese em mente. No
nosso caso — a produção crítica atual sobre a literatura digital brasileira —, mais
do que hipótese, houve mesmo uma constatação: pouco, ou quase nada tem
sido produzido no que respeita a leituras profundas e específicas das obras
digitais, para que se atribuam valores aos objetos literários produzidos para esse
meio. Buscamos, então, em literaturas de outras línguas, possíveis exemplos que
poderiam servir de indicação, não do que ocorre, mas do que poderá aparecer
no sistema das literaturas digitais brasileiras. Se a influência estrangeira, em
maior ou menor grau, sempre teve importância no cena literária brasileira, agora
não seria diferente. Basta considerar a enorme facilidade com que informações
são trocadas na internete, não importando muito se elas vêm em línguas
diferentes ou não.
Percorrendo alguns sítios (blogues, páginas pessoais, revistas eletrônicas etc.)
em que o debate sobre a literatura digital deveria ocorrer, comprovamos que
poucos têm-se arriscado a analisar ou mesmo a emitir juízos de valor a partir da
leitura de objetos literários digitais específicos. Vamos a alguns exemplos. O
projeto francês intitulado Café de lecture numérique3 não faz mais do que
disponibilizar materiais para serem lidos em e-books. São dicas de leituras que, à
exceção do suporte, que é digital, não oferece uma experiência literária
obrigatória e intrinsicamente associada ao meio digital. Logo, nem se trata de
literatura digital. Em outro sítio, que se pretende um salão de discussões acerca
da literatura contemporânea, o Salon double4, estranha-se que nem sequer
mencionem a literatura feita no e para o computador.
Mas não fiquemos apenas com esses casos, em que não se encontra nenhuma
reflexão sobre a escrita literária específica do meio digital. Em alguns casos,
mesmo que ainda não sejam de crítica literária, nota-se ao menos um esforço de
compreender outro tipo de impacto que os meios digitais causam no consumo e
no tratamento da literatura. Falamos de trabalhos como La construction de la
médiation littéraire sur internet : vers un changement de paradigme des
pratiques d’écriture, de Karel Soumagnac 5. Esse ensaio mostra uma perspectiva
editorial do tratamento da literatura na internete, a partir de uma preocupação
com as diferentes intermediações que as ferramentas digitais e hipertextuais
oferecem.
Já num esboço mais próximo à crítica às literaturas digitais, mas ainda
percorrendo os caminhos de um aprofundamento do campo conceitual, ou seja,
teórico, John Zuern, em Figures in the Interface6, propõe uma aproximação da
literatura digital com o método da literatura comparada. Para ele, olhar para as
escritas digitais implicaria uma comparação, ao menos de início, com a literatura
impressa, método nada original, pois é justamente o que tem sido feito desde
que se começou a falar de literaturas digitais (ou eletrônicas, como se dizia ao
início). Mas o crítico não se limita nisso, ele sugere também a necessidade de
que se tenha certa fluência na leitura de linguagens de programação, o que
demonstra alguma consciência de que as escritas digitais não podem ser 3 Disponível em http://www.facebook.com/pages/Cafe-de-lecture-numerique/194531215341?v=wall. Acesso em 02/06/2014.
4 Disponível em http://salondouble.contemporain.info/. Acesso em 02/06/2014.
5 Disponível em http://edc.revues.org/796?lang=en. Acessado em 02/06/2014.
6 In: Journal of Literary Theory, que pode ser visto em http://www.jltonline.de/index.php/reviews/article/view/273/839. Acesso em 02/06/2014.
compreendidas apenas a partir dos paradigmas tradicionais, e que novas
habilidades podem ser exigidas de quem quiser analisar esses objetos.
O periódico Digital Humanities reserva também espaço para esboços que
ajudam a construir não exatamente uma crítica de obras literárias digitais, mas
um campo epistemológico para essas experiências. Contudo, uma vez mais,
estamos na perspectiva de uma teoria e não de uma crítica. De qualquer forma,
vale a pena mencionarmos dois trabalhos. O primeiro é de Stephen Ramsay, um
ensaio chamado Algorithmic Criticism7. Ele diz aí que a revolução digital não
penetrou, por suas maravilhas e alumbramentos, na principal atividade dos
estudos literários, que seria a de repensar epistemologias e conceitos, pois o
entusiasmo acaba fazendo com que se preocupem mais com as análises de
artefatos e mudanças culturais. Trata-se do predomínio da tecnofilia, assunto já
amplamente discutido por nós em trabalhos anteriores8. Há também, nesse
mesmo Digital Humanities, um estudo comparativo entre as técnicas de
composição textual analógicas e digitais, ou mais precisamente de seus
sistemas e como eles produzem sentido em suas interfaces. Proposto por John
Lavagnino9, essa análise se empenha em compreender algumas diferenças entre
os dois universos. Porém, não se trata mais de ficarmos delimitando as
diferenças e possíveis vantagens e desvantagens entre os dois meios, impresso
e digital, mas sim de compreendermos como ambos convivem, e o quanto o
digital incorporou a lógica impressa.
Um curso bastante interessante foi proposto por Jessica Pressman em 2008, em
Digital Literature10. Nele se nota a compreensão de que não se pode ficar apenas
nas análises de experimentalismos pensados para colocar em xeque o meio
7 Disponível em http://www.digitalhumanities.org/companion/view?docId=blackwell/9781405148641/9781405148641.xml&chunk.id=ss1-6-7. Acesso em 02/06/2014. Acesso em 02/06/2014.
8 Vide LUIZ DOS SANTOS, Alckmar . “Novos processos de criação literária?”. Revista da ANPOLL (Online), v. 1, p. 77-98, 2014; LUIZ DOS SANTOS, Alckmar . “Os acervos, o meio digital, o intelectual das letras”. Manuscrítica (São Paulo), v. 24, p. 129-136, 2013; LUIZ DOS SANTOS, Alckmar . “O que a literatura poderia ensinar a ela própria e à cultura digital”. In: Monteiro, Maria Conceição; Giucci, Guillermo; Besner, Neil. (Org.). Além dos limites. Ensaios para o século XXI. 1ed.Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013, v. 1, p. 11-22.
9 Disponível em http://nora.lis.uiuc.edu:3030/companion/view?docId=blackwell/9781405148641/9781405148641.xml&chunk.id=ss1-6-3&toc.depth=1&toc.id=ss1-6-3&brand=9781405148641_brand. Acesso 02/06/2014.
10 Em http://engl391_fall2008_01.commons.yale.edu/syllabus/. Acesso em 02/06/2014.
impresso (como os diferentes concretismos poéticos, ou a produção de grupos
como o Oulipo etc), mas que devemos, sim, procurar entender as diferentes
dinâmicas das experiências de leituras poéticas elaboradas em computador para
serem lidas apenas em computador, com respeito às estratégias empregadas no
meio impresso. Cabe também um destaque para Taylor Alan Campbell, que, num
projeto intitulado LSBA 390 Final Project11, foi bastante seguro ao afirmar que a
literatura digital já se constitui como um gênero literário. De fato, mais do que
uma teoria acabada, trata-se do que, para ele, é mesmo uma certeza, fundada
no dado multimodal presente em todo objeto a que ele chama de literário digital,
e esses múltiplos modos seriam o verbo, o som e a imagem. O que ele faz, em
suma, é ainda tratar as literaturas digitais a partir de perspectivas próprias à
tradição impressa. Se esta é o inevitável ponto de partida, isso não implica que
se eternize como caminho adiante. Começar por elementos do impresso não
exclui que possamos, logo adiante, coloca-los em xeque; talvez seja mesmo
necessário, o que não parece estar no horizonte de cogitações de Campbell. Para
além dessas iniciativas e ensaios, vale mencionar que um campo de reflexão
também se firma a partir da institucionalização de um discurso e de uma prática.
Entram em cena, nesse caso, os prêmios e concursos. Por exemplo, a Eletronic
Literature Organization, ELO, premia este ano as melhores intervenções em
crítica para a literatura eletrônica12.
De toda maneira, para não nos limitarmos às tentativas de críticas propostas por
norte-americanos e franceses (que parecem ainda contribuir mais para a
construção do campo teórico da literatura digital), pensemos um pouco no caso
do Brasil. À exceção, talvez, de Jorge Luiz Antônio13, que se propôs a garimpar
pesquisadores, críticos e artistas que têm se dedicado a refletir as experiência
literárias em meio digital (embora seu próprio trabalho de historiador das
literaturas digitais não avance nem em reflexões teóricas, nem na análise crítica
das obras digitais), o que mais se pode notar em relação a uma efetiva produção
crítica é que as principais investidas nessa compreensão da literatura digital têm
vindo das universidades, mais precisamente de alguns grupos de pesquisas
dentro de departamentos de letras, comunicação ou artes. Ainda assim, essas
11 Disponível em http://scalar.usc.edu/works/lsba-390-final-project/index. Acesso em 02/06/2014.
12 Vide http://eliterature.org/2014/04/announcing-elo-prizes-for-best-literary-and-critical-works/. Acesso em 02/06/2014.
13 Vide ANTONIO, Jorge Luiz. Poesia digital: teoria, história, antologias. São Paulo, SP; Columbus, EUA: Navegar; Luna Bisontes Prods; Fapesp, 2010. v. 1. 80p.
empreitadas são pouco disseminadas ou insuficientemente compreendidas, o
que fica evidente diante da resistência e do conservadorismo que muitas vezes
se manifestam nos próprios pares.
De outro lado, a reunião desses pesquisadores acadêmicos com criadores
(poetas e programadores), tem resultado na elaboração de certas publicações
em forma de revistas criadas especificamente para esse fim, ou seja, fomentar o
debate em torno da literatura e do meio digital. Consequentemente, se estamos
falando em produção acadêmica, estamos, claro, afirmando que essa crítica têm
surgido, timidamente, em meio às teses e dissertações dos grupos de pesquisa
interessados direta ou indiretamente nesse campo de estudos. Contudo, ainda
assim, tais trabalhos parecem apontar mais para a consolidação do campo
teórico do que para uma possível fortuna crítica. Haja vista a produção de nosso
próprio grupo, o Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística14. E
dos artigos que conseguimos recuperar numa busca simples, no principal sítio de
buscas da internete, a maioria consiste em resultados parciais de reflexões que
esses mestrandos e doutorandos estão propondo em congressos e revistas
acadêmicas. Fora isso, temos os próprios artistas e poetas que hoje criam a
partir de programações digitais, mas estes também estão inseridos nesses
Núcleos acadêmicos. É o nosso caso. A fortuna crítica que gostaríamos de ver
acontecer para a produção literária digital parece se esboçar melhor, por
enquanto, em trabalhos sobre autores portugueses, como veremos a seguir.
III. Críticas a obras de Rui Torres
14 http://www.nupill.org. Acesso em 02/06/2014.
Aqui, vamos tomar de exemplo algumas análises críticas feitas a obras de Rui
Torres15. Comecemos por Húmus poema contínuo, cujo subtítulo indica A partir
de textos de Herberto Helder e Raul Brandão. Nela, o criador português recria, a
seu modo, o livro Húmus de Raul Brandão, no ambiente digital. Evidentemente,
não foi essa sua primeira tentativa de pôr em diálogo o papel e o computador.
Entre outras iniciativas, vale mencionar Amor de Clarice, baseado no conto
homônimo de Clarice Lispector. Contudo, para ir diretamente ao ponto, é preciso
descrever Húmus poema contínuo. Trata-se de uma criação feita a partir de
pequenos trechos da obra de Raul Brandão. Nesta, por exemplo, aparece:
Uma villa encardida — ruas desertas — pateos de lages soerguidas pelo unico esforço da erva — o castelo — restos intactos de muralha que não teem serventia: uma escada encravada nos alveolos das paredes não conduz a nenhures.
..........................................................
Tudo isto parece que fluctua debaixo d'agua, que esverdeia debaixo d'agua.
.........................................................
Ouvel-os? ouves o grito dos mortos?... 16
O que está logo ao início da criação digital de Rui Torres é:
Pátios de lajes soerguidas pelo únicoesforço da erva: o castelo –a escada, a torre, a porta
a praçaTudo isto flutua debaixode água, debaixo de água- Ouveso grito dos mortos ?
As palavras pátios, lajes, soerguidas, único, esforço, erva, castelo, escada, torre,
porta, praça, flutua, água, ouves, grito, mortos, quando clicadas, vão sendo
substituídas por outras sintática e morfologicamente equivalentes. Ao fundo,
ouve-se a voz de Rui Torres, declamando trechos de Húmus, assim como trechos
que não estão nessa obra, o que pode explicar o subtítulo acima mencionado,
com o que teríamos também trechos de poemas de Herberto Helder dialogando
com os escritos de Raul Brandão. Esse procedimento vai se repetindo com outros
15 Vide http://telepoesis.net/. Acesso em 02/06/2014.
16 http://www.gutenberg.org/files/39618/39618-h/39618-h.htm. Acesso em 18/05/2014.
trechos-montagens de Húmus, que vão aparecendo à medida que o leitor vai
avançando pela página, e permitem ao leitor o mesmo processo de leitura
interativa.
Tomemos a crítica feita a essa obra por Andrea Vale e publicada no sítio
DIGLITMEDIA, em 30/12/200817. O ponto de partida de Vale é o caráter de
“antecipatório” e de “reinvenção” das obras de Raul Brandão e de Herberto
Helder. A partir daí, seria fácil para o crítico estender uma linha de continuidade
entre o autor da obra de 1917, o poeta hipertextual nos anos 60 e o criador
digital, isto é, Brandão, Helder e Torres. Com isso, se cairia imediata e facilmente
no que apontei acima, isto é, a crítica se dobrando aos interesses ou, talvez
melhor, às necessidades da reflexão teórica, no que a leitura específica de um
dado objeto cede a vez à exploração mais generalista e de maior fôlego da
teoria.
A partir daí, então, a crítica se debruça inicialmente sobre as especificidades da
criação de Rui Torres e faz dela uma descrição que parte diretamente das
estratégias, ferramentas e possibilidades de leitura. Ou seja, num primeiro
momento, busca-se descrever a obra não como ela é pensada ou explicada
previamente, mas tal como ela é lida, vale dizer manipulada, percorrida,
experimentada pelo leitor. Contudo, alguns de nossos leitores poderão objetar,
trazendo à baila o trecho em que a crítica afirma que “esta característica,
presente na obra, demonstra, na íntegra, toda a capacidade interactiva e
inovadora que esta nova arte de conceber a literatura mundial oferece a uma
sociedade que se apresenta, profundamente, unida às novas tecnologias e às
funcionalidades que estas oferecem”. Contudo, é apenas nesta passagem que o
afã mais generalizante se mostra, o que não rebaixa, de modo algum, o esforço
de leitura crítica da obra em sua individualidade. Não é por não se submeter aos
interesses de uma pretensa teoria pura que a crítica deva se reduzir a um
indutivismo interrompido! Essas visadas mais abertas, dialogando diretamente
com uma perspectiva teórica são importantes sempre, em qualquer leitura
crítica. O que deve ser enfatizado aqui é justamente o fato de a visada crítica,
embora procure o aporte da teoria (talvez busque até mesmo desenvolver a
própria teoria), coloca claramente como prioritária a leitura da obra, a análise
crítica desta que se propõe fazer.
17 http://diglitmedia.blogspot.com.br/2008/12/hmus-poema-contnuo-de-rui-torres.html. Acesso em 19/05/2014.
É evidente que não temos aí uma crítica de fôlego, pois ela não vai muito além
dos 4.000 caracteres. De fato, é mais um comentário breve, do que uma análise
aprofundada. Contudo, o que vale ressaltar aqui é justamente a perspectiva de
se estar fazendo leitura crítica, e não uma fundamentação teórica de um campo
de estudos.
Em posição diversa está o comentário de Pedro Reis, Amor de Clarice — Poema
Hipermédia, feito à criação de Rui Torres, disponível no repositório institucional
da Universidade Fernando Pessoa18. Ao contrário daquele trabalho de crítica e de
análise encetada por Andrea Vale, este outro não tenta descrever a criação
digital em linhas gerais, ainda que ambos os escritos sejam equivalentes em
tamanho. Se há uma linha de continuidade na análise de Reis, ela não é dada
pela própria criação sobre a qual se debruça, mas está mais propriamente num
elenco de conceitos teóricos que vão sendo mapeados: instabilidade e
dinamismo do texto digital; produção combinatória ou aleatória (vale dizer,
interativa) de sentidos; procedimentos experimentais na criação e na leitura;
deslocamento dos papéis de autor e de leitor; dimensão verbivocovisual do
texto; alargamento das fronteiras do literário; multimedialidade da criação
digital; etc.
Há um trecho que sintetiza bastante bem os processos de leitura do crítico. Ele
afirma que “uma prática como a que esta obra reflecte pressupõe que a crítica
procure uma adequação conceptual ao espaço que a escrita electrónica agora
nos oferece. São, de facto, necessários novos conceitos que possibilitem abarcar
compreensivamente uma nova realidade literária, não analisável com base em
conceitos que não a previam”. Assim se define, então, nesse caso, o alcance, a
perspectiva, o sentido da crítica: buscar entender e fundamentar novos
conceitos para uma nova literatura, ação que deve ser priorizada, em detrimento
da descrição e da leitura direta da própria obra específica de que ela se ocupa. E
não se trata de problema de perspectiva, mas de uma estratégia que nós
próprios, em nossa produção, também temos desenvolvido.
“Amor(es) de Clarice e Rui Torres” é outro trabalho de análise crítica dessa obra
digital19. Nele, sua autora propõe, conforme consta no resumo do artigo, pôr em
diálogo o conto de Clarice e a criação de Rui, ou seja, fazer uma leitura 18 http://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/874/1/352-354FCHS2005-4.pdf. Acesso em 19/05/2014.
19 Da autoria de Keilla Conceição Petrin Grande, disponível em http://dx.doi.org/10.5007/2175-7917.2013v18n2p139. Acesso em 19/05/2014.
específica e dialogada de dois objetos literários. Para isso, ela parte de
perspectivas teóricas já especificadas de antemão (Gérard Genette, Julio Plaza e
Klaus Clüver), o que lhe permite tratar mais detalhadamente dos elementos
próprios das obras analisadas. Isso explica por que não há aí necessidade de
transformar imediatamente todo elemento de leitura em reflexão teórica ou, em
outras palavras, de fazer com que a crítica praticamente se desvaneça, pois seu
sentido mais premente da crítica seria a expansão e o fortalecimento do campo
teórico. É claro que a autora da crítica poderia ter utilizado seus elementos
teóricos de modo mais dinâmico, fazendo com que, a partir da criação literária,
os sentidos dos conceitos teóricos de que lança mão se deslocassem e se
ampliassem. De toda maneira, o fio condutor de sua leitura é mesmo aquilo que
é especifico à criação digital e ao conto de Clarice (que também é explorado no
artigo). E a análise que faz do objeto digital apoia-se tanto em conceitos da
tradição impressa, quanto em conceitos mais próprios ao meio digital e que são
propostos a partir daqueles primeiros (muito embora a autora não se ocupe com
sua descrição de forma explícita).
IV. Conclusão
A quantidade de obras literárias digitais, em sítios brasileiros, é bastante
considerável. Uma busca por “literatura digital”, no sítio de buscas Bing, traz
177.000 respostas apenas em endereços brasileiros, o que é um número
considerável, ainda que a maioria seja apenas de literatura digitalizada. Com
isso, existe material de sobra para que se exerça uma crítica literária digital
digna do nome. O problema de não encontrarmos, praticamente, essa crítica não
está na falta de objetos, mas de uma consistência mínima que o sistema literário
digital ainda não atingiu. Alguns motivos foram discutidos nos parágrafos acima,
mas nos parece que o principal é mesmo o vezo teórico que ainda atinge a maior
parte das reflexões sobre essas literaturas. De fato, em vez de esforçar-se em
fazer literatura digital, o que se busca primeiramente é definir ou entender o que
seria a literatura digital. Como apontado acima, ao contrário do que ocorreu com
a tradição literária impressa, a abordagem do objeto literário digital se dá pelo
viés da teorização, e não da leitura direta. Em outras palavras, busca-se
constituir a metalinguagem segunda, a teoria, antes mesmo de estabilizar a
metalinguagem primeira, a crítica. O problema não é meramente uma questão
de precedência cronológica, mas o fato de que, fazendo assim, aprofunda-se de
fato a distância entre teoria e objeto e essa cisão é fatal para ambos, assim
como é fatal para o leitor. A consolidação de um sistema literário digital, seja no
Brasil, seja em qualquer lugar, não pode abrir mão de nenhum desses
elementos. Relegar a crítica a segunda plano representa, assim, uma quebra no
elo que os mantém a todos unidos e implica o enfraquecimento de todo o
sistema. Sem uma descrição crítica que dê relevo aos objetos literários, a teoria
produzida acerca deles gira em falso; a produção literária digital não se articula
de modo convincente e o que se vê, no mais das vezes, são tentativas isoladas e
fracas de produzir uma obra digital digna desse nome; o leitor se vê às voltas
não com objetos específicos, mas sobre discursos teóricos a respeito de noções,
não de objetos. Podemos chegar, no limite, à situação absurda de estarmos
tentando definir literatura digital, sem que ninguém se ocupe de fazer literatura
digital. É claro que a visada a todo objeto implica necessariamente uma
perspectiva teórica, ainda que ela seja subjacente. Não estamos defendendo
aqui uma postura anti-teórica, muito ao contrário! Estamos postulando uma
teoria que nasça do contato com verdadeiros objetos literários digitais, e não
objetos teóricos criados ad hoc apenas para confirmar hipóteses de leitura já
preestabelecidas. É preciso deixar que as criações literárias digitais venham
transtornar e transformar as teoria que se produzem em torno deles.