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O que significa o riso? O que há no fundo do ri- sível? O que haveria de comum entre uma careta de palhaço, um jogo de palavras, um qüiproquó de vau- deville, uma cena de comédia fina? Que destilação nos dará a essência, sempre a mesma, da qual tantos diferentes produtos extraem indiscreto odor ou deli- cado perfume? Os maiores pensadores, desde Aristó- teles, estiveram às voltas com esse probleminha, que sempre se esquiva aos esforços, escorrega, escapa e ressurge, impertinente desafio lançado à especulação filosófica. Nossa escusa, para abordar o problema, é que não teremos em vista encerrar a invenção cômica numa definição. Vemos nela, acima de tudo, algo vivo. Por mais ligeira que seja, nós a trataremos com o respei- to que se deve à vida. Nós nos limitaremos a vê-la crescer e desabrochar. De forma em forma, por grada- CAPÍTULO I DA COMICIDADE EM GERAL/ A COMICIDADE DAS FORMAS E A COMICIDADE DOS MOVIMENTOS/ FORÇA DE EXPANSÃO DA COMICIDADE RISO002 2/1/08 11:09 AM Page 1

CAPÍTULO I DA COMICIDADE EM GERAL/ A COMICIDADE DAS FORMAS E A COMICIDADE DOS MOVIMENTOS/ FORÇA DE … · passo que almas invariavelmente sensíveis, harmoniza-das em uníssono

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O que significa o riso? O que há no fundo do ri-sível? O que haveria de comum entre uma careta depalhaço, um jogo de palavras, um qüiproquó de vau-deville, uma cena de comédia fina? Que destilaçãonos dará a essência, sempre a mesma, da qual tantosdiferentes produtos extraem indiscreto odor ou deli-cado perfume? Os maiores pensadores, desde Aristó-teles, estiveram às voltas com esse probleminha, quesempre se esquiva aos esforços, escorrega, escapa eressurge, impertinente desafio lançado à especulaçãofilosófica.

Nossa escusa, para abordar o problema, é que nãoteremos em vista encerrar a invenção cômica numadefinição. Vemos nela, acima de tudo, algo vivo. Pormais ligeira que seja, nós a trataremos com o respei-to que se deve à vida. Nós nos limitaremos a vê-lacrescer e desabrochar. De forma em forma, por grada-

CAPÍTULO IDA COMICIDADE EM GERAL/A COMICIDADE DAS FORMASE A COMICIDADE DOS MOVIMENTOS/FORÇA DE EXPANSÃO DA COMICIDADE

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ções insensíveis, diante de nossos olhos ela realizarásingulares metamorfoses. Não desprezaremos nada doque virmos. Talvez, aliás, com esse contato assíduoganhemos alguma coisa mais flexível que uma defi-nição teórica: um conhecimento prático e íntimo, co-mo o que nasce de longa camaradagem. E talvez des-cubramos também que, sem querer, travamos um co-nhecimento útil. Razoável, a seu modo, até em seusmaiores desvios, metódica em sua loucura, sonhadora,se me permitem, mas capaz de evocar em sonhos vi-sões que são prontamente aceitas e compreendidas portoda uma sociedade, por que a invenção cômica nãonos daria informações sobre os procedimentos de tra-balho da imaginação humana e, mais particularmente,da imaginação social, coletiva, popular? Oriunda davida real, aparentada com a arte, como não nos diriaela também uma palavra sua acerca da arte e da vida?

Faremos de início três observações que considera-mos fundamentais. Referem-se menos à comicidadeem si do que ao lugar onde esta deve ser procurada.

I

Vejamos agora o primeiro ponto para o qual cha-maremos a atenção. Não há comicidade fora daqui-lo que é propriamente humano. Uma paisagem pode-rá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia;nunca será risível. Rimos de um animal, mas por ter-

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mos surpreendido nele uma atitude humana ou umaexpressão humana. Rimos de um chapéu; mas entãonão estamos gracejando com o pedaço de feltro ou depalha, mas com a forma que os homens lhe deram,com o capricho humano que lhe serviu de molde. Co-mo um fato tão importante, em sua simplicidade, nãochamou mais a atenção dos filósofos? Vários defi-niram o homem como “um animal que sabe rir”.Poderiam também tê-lo definido como um animal quefaz rir, pois, se algum outro animal ou um objetoinanimado consegue fazer rir, é devido a uma seme-lhança com o homem, à marca que o homem lheimprime ou ao uso que o homem lhe dá.

Cabe ressaltar agora, como sintoma não menosdigno de nota, a insensibilidade que ordinariamenteacompanha o riso. Parece que a comicidade só po-derá produzir comoção se cair sobre uma superfícied’alma serena e tranqüila. A indiferença é seu meionatural. O riso não tem maior inimigo que a emoção.Não quero com isso dizer que não podemos rir de umapessoa que nos inspire piedade, por exemplo, ou mes-mo afeição: é que então, por alguns instantes, serápreciso esquecer essa afeição, calar essa piedade. Nu-ma sociedade de puras inteligências provavelmentenão mais se choraria, mas talvez ainda se risse; aopasso que almas invariavelmente sensíveis, harmoniza-das em uníssono com a vida, nas quais qualquer acon-tecimento se prolongasse em ressonância sentimental,não conheceriam nem compreenderiam o riso. Que o

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leitor tente, por um momento, interessar-se por tudoo que é dito e tudo o que é feito, agindo, em imagi-nação, com os que agem, sentindo com os que sentem,dando enfim à simpatia a mais irrestrita expressão:como num passe de mágica os objetos mais leves lheparecerão ganhar peso, e uma coloração grave inci-dirá sobre todas as coisas. Que o leitor agora se afas-te, assistindo à vida como espectador indiferente:muitos dramas se transformarão em comédia. Bastataparmos os ouvidos ao som da música, num salãode baile, para que os dançarinos logo nos pareçam ri-dículos. Quantas ações humanas resistiriam a umaprova desse gênero? E não veríamos muitas delas pas-sar de chofre do grave ao jocoso, se as isolássemosda música de sentimento que as acompanha? Por-tanto, para produzir efeito pleno, a comicidade exigeenfim algo como uma anestesia momentânea docoração. Ela se dirige à inteligência pura.

Mas essa inteligência deve permanecer em con-tato com outras inteligências. Esse é o terceiro fatopara o qual desejamos chamar a atenção. Não sabo-rearíamos a comicidade se nos sentíssemos isolados.Parece que o riso precisa de eco. Ouçamo-lo: não éum som articulado, nítido, terminado; é algo que gos-taria de prolongar-se repercutindo de um ponto aooutro, algo que começa com um estrépito para con-tinuar em ribombo, assim como o trovão na monta-nha. E no entanto essa repercussão não deve ir ao in-finito. Ela pode caminhar no interior de um círculo

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tão amplo quanto se queira; nem por isso o círculodeixa de ser fechado. Nosso riso é sempre o riso deum grupo. Ao leitor talvez já tenha ocorrido ouvir,em viagem de trem ou à mesa de hospedarias, histó-rias que deviam ser cômicas para os viajantes que ascontavam, pois que os faziam rir com muito gosto.O leitor teria rido como eles se pertencesse à socie-dade deles. Mas, não pertencendo, não tinha vonta-de alguma de rir. Um homem, a quem perguntarampor que não chorava num sermão em que todos der-ramavam muitas lágrimas, respondeu: “Não sou destaparóquia.” O que esse homem pensava das lágrimasseria ainda mais aplicável ao riso. Por mais franco queo suponham, o riso esconde uma segunda intenção deentendimento, eu diria quase de cumplicidade, comoutros ridentes, reais ou imaginários. Quantas vezesjá não se disse que o riso do espectador, no teatro, étanto mais largo quanto mais cheia está a sala; quan-tas vezes não se notou, por outro lado, que muitosefeitos cômicos são intraduzíveis de uma língua pa-ra outra, sendo portanto relativos aos costumes e àsidéias de uma sociedade em particular? Mas foi pornão se ter entendido a importância desses dois fatosque se viu na comicidade uma simples curiosidadeem que o espírito se diverte, e no próprio riso um fe-nômeno estranho, isolado, sem relação com o restoda atividade humana. Donde as definições que ten-dem a fazer da comicidade uma relação abstrata en-tre idéias percebida pelo espírito, “contraste intelec-

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tual”, “absurdidade sensível” etc., definições que,mesmo convindo realmente a todas as formas da co-micidade, não explicariam de modo algum por que oque é cômico nos faz rir. Por que motivo, com efei-to, essa relação lógica particular, tão logo percebida,nos contrai, nos dilata, nos sacode, enquanto todas asoutras deixam nosso corpo indiferente? Não é por es-se lado que abordaremos o problema. Para compreen-der o riso, é preciso colocá-lo em seu meio natural,que é a sociedade; é preciso, sobretudo, determinarsua função útil, que é uma função social. Essa será –convém dizer desde já – a idéia diretiva de todas asnossas investigações. O riso deve corresponder a cer-tas exigências da vida em comum. O riso deve ter umasignificação social.

Marquemos nitidamente o ponto para o qual con-vergem nossas três observações preliminares. A co-micidade nascerá, ao que parece, quando alguns ho-mens reunidos em grupo dirigirem todos a atençãopara um deles, calando a própria sensibilidade e exer-cendo apenas a inteligência. Qual é então o ponto emparticular para o qual deverá dirigir-se a atenção de-les? Em que será empregada a inteligência? Respon-der a essas perguntas será já cercar mais o problema.Mas é indispensável dar alguns exemplos.

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II

Um homem, correndo pela rua, tropeça e cai: ostranseuntes riem. Não ririam dele, acredito, se fossepossível supor que de repente lhe deu na veneta desentar-se no chão. Riem porque ele se sentou no chãoinvoluntariamente. Portanto, não é sua mudança brus-ca de atitude que provoca o riso, é o que há de invo-luntário na mudança, é o mau jeito. Talvez houvesseuma pedra no caminho. Teria sido preciso mudar opasso ou contornar o obstáculo. Mas, por falta de fle-xibilidade, por distração ou obstinação do corpo, porum efeito de rigidez ou de velocidade adquirida, osmúsculos continuaram realizando o mesmo movimen-to quando as circunstâncias exigiam outra coisa. Porisso o homem caiu, e disso riem os transeuntes.

Temos agora uma pessoa que cuida de seus pe-quenos afazeres com uma regularidade matemática.Acontece que os objetos que a cercam foram troca-dos por algum zombeteiro. Vai molhar a pena no tin-teiro e lá encontra lama, pensa que está sentando nu-ma cadeira firme e acaba deitada no assoalho; enfim,age na contramarcha ou funciona no vazio, semprepor um efeito de velocidade adquirida. O hábitoimprimira um impulso. Teria sido preciso deter omovimento ou desviá-lo. Mas qual nada: continuou-se maquinalmente em linha reta. A vítima de umafarsa de gabinete está, portanto, em situação análo-ga à de quem corre e cai. É cômica pela mesma ra-

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zão. O que há de risível num caso e noutro é certarigidez mecânica quando seria de se esperar a ma-leabilidade atenta e a flexibilidade vívida de uma pes-soa. Há entre os dois casos uma única diferença: oprimeiro ocorreu sozinho, enquanto o segundo foi obti-do artificialmente. O transeunte de há pouco apenasobservava; aqui, o zombeteiro experimenta.

Contudo, nos dois casos, é uma circunstância ex-terior que determinou o efeito. A comicidade é, por-tanto, acidental; está, por assim dizer, na superfície dapessoa. Como penetrará no interior? Será necessárioque, para revelar-se, a rigidez mecânica já não pre-cise de um obstáculo colocado diante dela pelo aca-so das circunstâncias ou pela malícia do homem. Se-rá preciso que ela extraia de seu próprio fundo, poruma operação natural, a ocasião incessantemente re-novada de manifestar-se exteriormente. Imaginemos,pois, um espírito sempre voltado para o que acabade fazer, jamais para o que faz, como uma melodiaatrasada em relação ao acompanhamento. Imagine-mos certa falta de elasticidade inata dos sentidos eda inteligência, em virtude da qual se continua a vero que já não existe, a ouvir o que já não ressoa, a di-zer o que já não convém, enfim a adaptar-se a umasituação passada e imaginária quando seria precisomoldar-se pela realidade presente. A comicidade sesituará, dessa vez, na própria pessoa: é a pessoa quelhe fornecerá tudo, matéria e forma, causa e ocasião.Será de surpreender que o distraído (pois essa é a per-

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sonagem que acabamos de descrever) tenha tentadocom freqüência a verve dos autores cômicos? Quandoencontrou esse caráter em seu caminho, La Bruyèrecompreendeu, analisando-o, que tinha em seu poderuma receita para a fabricação a granel de efeitos di-vertidos. E abusou. Fez de Ménalque a mais longa eminuciosa das descrições, recorrendo, insistindo e tei-mando além da medida. A facilidade do tema o reti-nha. Com a distração, de fato, talvez não estejamos nafonte mesma da comicidade, mas com certeza esta-mos dentro de certa corrente de fatos e idéias que pro-vém diretamente da fonte. Estamos numa das gran-des vertentes naturais do riso.

Mas o efeito da distração, por sua vez, pode serreforçado. Há uma lei geral – e acabamos de encon-trar uma primeira aplicação sua – que assim formu-laremos: quando certo efeito cômico deriva de certacausa, o efeito nos parece tanto mais cômico quantomais natural consideramos a causa. Rimos já da dis-tração que nos é apresentada como simples fato. Maisrisível será a distração que tivermos visto nascer ecrescer diante de nossos olhos, cuja origem conhe-ceremos e cuja história poderemos reconstituir. Su-ponhamos, pois, para tomar um exemplo preciso, queum indivíduo tenha feito dos romances de amor oude cavalaria sua leitura habitual. Atraído, fascinadopor seus heróis, vai aos poucos destinando apenas aeles pensamento e vontade. Ei-lo a circular entre nóscomo um sonâmbulo. Suas ações são distrações. Só

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que todas essas distrações se vinculam a uma causaconhecida e positiva. Já não são, pura e simplesmen-te, ausências; são explicadas pela presença do indi-víduo num meio bem definido, embora imaginário.Sem dúvida uma queda é sempre uma queda, mas ou-tra coisa é deixar-se cair num poço por estar olhan-do sabe-se lá para onde, outra coisa é cair por estarcom o olhar fixo numa estrela. Era exatamente umaestrela que Dom Quixote contemplava. Que profun-da comicidade a do romanesco e do espírito quimé-rico! E no entanto, se restabelecermos a idéia de dis-tração que deve servir de intermediária, veremosessa profundíssima comicidade vincular-se à comi-cidade mais superficial. Sim, esses espíritos quimé-ricos, esses exaltados, esses loucos tão estranhamenterazoáveis fazem-nos rir tocando as mesmas cordasem nós, acionando o mesmo mecanismo interior queera acionado pela vítima de uma farsa de gabinete oupelo transeunte a escorregar na rua. São eles tambémcorredores que caem e ingênuos que são mistifica-dos, corredores do ideal que tropeçam nas realidades,sonhadores cândidos que a vida espreita maliciosa-mente. Mas são sobretudo grandes distraídos, supe-riores aos outros porque sua distração é sistemática,organizada em torno de uma idéia central, porquesuas desditas também são bem conexas, conexas pelainexorável lógica que a realidade aplica para corrigiro sonho, e porque assim provocam em torno de si,

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por meio de efeitos capazes de sempre somar-se unsaos outros, um riso indefinidamente crescente.

Vamos agora dar mais um passo. Aquilo que arigidez da idéia fixa é para o espírito, não serão cer-tos vícios para o caráter? Mau pendor da natureza oucontratura da vontade, o vício muitas vezes se asse-melha a uma curvidade da alma. Sem dúvida há ví-cios nos quais a alma se instala profundamente comtudo o que traz em si de pujança fecundante, carre-gando-os, vivificados, num círculo móvel de transfi-gurações. Esses são vícios trágicos. Mas o vício quenos tornará cômicos é, ao contrário, aquele que nosé trazido de fora como uma moldura pronta na qualnos inseriremos. Ele nos impõe sua rigidez, em vezde tomar-nos a maleabilidade. Não o complicamos:é ele, ao contrário, que nos simplifica. Aí precisamen-te parece estar – como tentaremos mostrar com por-menores na última parte deste estudo – a diferençaessencial entre a comédia e o drama. Um drama, mes-mo quando retrata paixões ou vícios que têm nome,incorpora-os tão bem na personagem que esses no-mes são esquecidos, que suas características geraisse apagam, e que já não pensamos neles, mas sim napessoa que os absorve; por isso é que o título de umdrama quase não pode deixar de ser um nome pró-prio. Ao contrário, muitas comédias têm como nomeum substantivo comum: O avarento, O jogador etc.Se eu pedir ao leitor que imagine uma peça chama-da O ciumento, por exemplo, ao seu espírito acudirá

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Sganarelle, ou George Dandin, mas não Otelo; O ciu-mento só pode ser título de comédia. É que o víciocômico pode unir-se às pessoas tão intimamente quan-to se queira, mas nunca deixará de conservar existên-cia independente e simples; continua sendo persona-gem central, invisível e presente, do qual as perso-nagens de carne e osso ficam suspensas em cena. Àsvezes ele se diverte a arrojá-las com seu peso e fazê-las rolar consigo ladeira abaixo. Mas na maioria dasvezes as irá tangendo como se tange um instrumen-to, ou as irá manobrando como títeres. Olhando-se deperto, ver-se-á que a arte do poeta cômico consiste emfazer-nos conhecer tão bem esse vício, em introdu-zir-nos, a nós, espectadores, a tal ponto em sua inti-midade, que acabamos por obter dele alguns fios damarionete que ele movimenta; é então nossa vez demovimentá-la; uma parte de nosso prazer vem daí.Portanto, também nesse caso, é uma espécie de auto-matismo que nos faz rir. E é ainda um automatismomuito próximo da simples distração. Para conven-cer-se, basta notar que uma personagem cômica ge-ralmente é cômica na exata medida em que ela se igno-ra. O cômico é inconsciente. Como se usasse ao con-trário o anel de Giges, torna-se invisível para si mesmoao tornar-se visível para todos. Uma personagem detragédia não mudará em nada a sua conduta ao saberque a julgamos; poderá perseverar nela, mesmo coma plena consciência do que é, mesmo com o senti-mento nítido do horror que nos inspira. Mas um de-

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feito ridículo, ao sentir-se ridículo, procura modifi-car-se, pelo menos exteriormente. Se Harpagon nosvisse rir de sua avareza, eu não digo que se corrigiria,mas a mostraria menos, ou a mostraria de outro modo.Podemos dizer desde já: é nesse sentido, sobretudo,que o riso “castiga os costumes”. Ele nos faz tentarimediatamente parecer o que deveríamos ser, o quesem dúvida acabaremos um dia por ser de verdade.

É supérfluo por ora levar adiante esta análise.Daquele que corre e cai ao ingênuo mistificado, damistificação à distração, da distração à exaltação, daexaltação às diversas deformações da vontade e docaráter, acabamos de acompanhar o progresso peloqual a comicidade se instala cada vez mais profun-damente na pessoa, sem cessar porém de nos lembrar,em suas manifestações mais sutis, alguma coisa doque percebíamos em suas formas mais grosseiras, umefeito de automatismo e rigidez. Podemos agora teruma primeira visão – bem de longe, é verdade, vagae confusa ainda – do lado risível da natureza humanae da função comum do riso.

O que a vida e a sociedade exigem de cada umde nós é uma atenção constantemente vigilante, a dis-cernir os contornos da situação presente, é tambémcerta elasticidade do corpo e do espírito, que nos dêcondições de adaptar-nos a ela. Tensão e elasticida-de, aí estão duas forças complementares entre si quea vida põe em jogo. Estão elas gravemente em faltano corpo? Temos acidentes de todo tipo, deformida-

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des, doença. No espírito? Temos todos os graus de po-breza psicológica, todas as variedades da loucura. Nocaráter? Temos as inadaptações profundas à vida so-cial, fontes de miséria, às vezes ensejo para o crime.Uma vez afastadas essas inferioridades que dizem res-peito ao lado sério da existência (e tendem a elimi-nar-se por si mesmas naquilo a que se deu o nomede luta pela vida), a pessoa pode viver, e viver emcomum com outras pessoas. Mas a sociedade exigeoutra coisa ainda. Não lhe basta viver; ela faz ques-tão de viver bem. O que tem agora por temer é quecada um de nós, satisfeito em dar atenção àquilo queconcerne ao essencial da vida, se entregue quanto atodo o resto ao automatismo fácil dos hábitos adqui-ridos. O que ela deve temer também é que os mem-bros de que se compõe, em vez de visarem a um equi-líbrio cada vez mais delicado de vontades que se in-siram cada vez mais exatamente umas nas outras, secontentem com respeitar as condições fundamentaisdesse equilíbrio: um acordo prévio entre as pessoasnão lhe basta, ela desejaria um esforço constante deadaptação recíproca. Toda rigidez do caráter, do es-pírito e mesmo do corpo será então suspeita para asociedade, por ser o possível sinal de uma atividadeadormecida e também de uma atividade que se iso-la, que tende a afastar-se do centro comum em tornodo qual a sociedade gravita, de uma excentricidadeenfim. E no entanto a sociedade não pode intervir nis-so por meio de alguma repressão material, pois ela não

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está sendo materialmente afetada. Ela está em pre-sença de algo que a preocupa, mas somente como sin-toma – apenas uma ameaça, no máximo um gesto.Será, portanto, com um simples gesto que ela res-ponderá. O riso deve ser alguma coisa desse tipo, umaespécie de gesto social. Pelo medo que inspira, o ri-so reprime as excentricidades, mantém constantemen-te vigilantes e em contato recíproco certas atividadesde ordem acessória que correriam o risco de isolar-see adormecer; flexibiliza enfim tudo o que pode res-tar de rigidez mecânica na superfície do corpo social.O riso, portanto, não é da alçada da estética pura, poispersegue (de modo inconsciente e até imoral em mui-tos casos particulares) um objetivo útil de aperfeiçoa-mento geral. Tem algo de estético, todavia, visto quea comicidade nasce no momento preciso em que a so-ciedade e a pessoa, libertas do zelo da conservação,começam a tratar-se como obras de arte. Em suma,se traçarmos um círculo em torno das ações e dispo-sições que comprometem a vida individual ou sociale que punem a si mesmas através de suas conseqüên-cias naturais, fica fora desse terreno de emoção e deluta, numa zona neutra em que o homem serve sim-plesmente de espetáculo ao homem, uma certa rigi-dez do corpo, do espírito e do caráter, que a sociedadegostaria ainda de eliminar para obter de seus mem-bros a maior elasticidade e a mais elevada sociabili-dade possíveis. Essa rigidez é a comicidade, e o risoé seu castigo.

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Abstenhamo-nos, porém, de esperar dessa fór-mula simples uma explicação imediata de todos osefeitos cômicos. Ela convém por certo a casos ele-mentares, teóricos, perfeitos, em que a comicidade épura, sem mistura alguma. Mas desejamos, acima detudo, transformá-la no leitmotiv que acompanhará to-das as nossas explicações. Cumprirá pensar semprenela, mas sem excessiva obstinação – mais ou me-nos como o bom esgrimista deve pensar nos movi-mentos descontínuos da lição enquanto seu corpo seentrega à continuidade do assalto. Agora, é a própriacontinuidade das formas cômicas que tentaremos res-tabelecer, retomando o fio que vai das facécias do pa-lhaço aos jogos mais refinados da comédia, seguin-do esse fio em meandros muitas vezes imprevistos,parando a intervalos para olhar ao redor, remontan-do, enfim, se possível, ao ponto em que o fio está sus-penso e de onde se nos mostrará talvez – pois a co-micidade se equilibra entre a vida e a arte – o nexogeral entre arte e vida.

III

Comecemos pelo mais simples. O que é uma fi-sionomia cômica? O que origina a expressão ridículado rosto? E o que distingue comicidade e fealdade?Assim formulada, a pergunta só pode ter sido respon-dida arbitrariamente. Por mais simples que pareça, é

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já sutil demais para deixar-se abordar de frente. Se-ria preciso começar definindo a fealdade e depoisprocurar o que a comicidade lhe acrescenta: ora, afealdade não é muito mais fácil de analisar que a be-leza. Mas vamos experimentar um artifício que nosservirá amiúde. Vamos espessar o problema, por as-sim dizer, engordando o efeito até tornar visível a cau-sa. Agravemos a fealdade, levando-a até a deformida-de, e vejamos como se passa do disforme ao ridículo.

É incontestável que certas deformidades têm emrelação às outras o triste privilégio de, em certos ca-sos, poder provocar o riso. É ocioso entrar em por-menores. Pedimos apenas ao leitor que passe em re-vista as deformidades diversas e que depois as dividaem dois grupos: de um lado as que a natureza orien-tou para o risível e de outro as que fogem absoluta-mente a ele. Acreditamos que acabará por depreen-der a seguinte lei: pode tornar-se cômica toda defor-midade que uma pessoa bem-feita consiga imitar.

Porventura o corcunda não dará a impressão deportar-se mal? De alguém cujas costas tivessem con-traído um mau costume? Por obstinação material, porrigidez, ele persistiria no hábito contraído. Que o lei-tor tente apenas ver com os olhos. Que não reflita e, so-bretudo, não raciocine. Que, apagando o que é apren-dido, saia em busca da impressão primária, imediata,original. Obterá uma visão desse tipo. De um homemque quis enrijecer-se em certa atitude e, se nos for per-

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mitido, de um homem que quis fazer uma careta como corpo.

Voltemos agora ao ponto que queríamos esclare-cer. Atenuando a deformidade risível, deveremos obtera fealdade cômica. Portanto, uma expressão risível dorosto será aquela que nos leve a pensar em algo rígi-do, congelado, por assim dizer, na mobilidade ordi-nária da fisionomia. Um cacoete consolidado, um es-gar fixado, eis o que veremos. Alguém dirá que todaexpressão habitual do rosto, mesmo sendo graciosa ebela, nos dá essa mesma impressão de vezo contraí-do para sempre. Mas há que se fazer aí uma distinçãoimportante. Quando falamos de beleza e mesmo defealdade expressivas, quando dizemos que um rostotem expressão, trata-se de uma expressão estável tal-vez, mas que adivinhamos móvel. Ela conserva, emsua fixidez, uma indecisão na qual se desenham con-fusamente todos os matizes possíveis do estado d’almaque exprime, tal como as cálidas promessas do dia jásão respiradas em certas manhãs vaporosas de pri-mavera. Mas uma expressão cômica do rosto é a quenão promete nada mais que aquilo que dá. É um es-gar único e definitivo. Parece que toda a vida moralda pessoa se cristalizou em tal sistema. Por isso éque um rosto é tanto mais cômico quanto mais nossugere a idéia de alguma ação simples, mecânica, emque a personalidade estaria absorvida para todo o sem-pre. Há rostos que parecem ocupados a chorar o tem-po todo; outros, a rir ou a assobiar; outros a assoprar

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eternamente uma trombeta imaginária. São os maiscômicos de todos. Também aí se verifica a lei segun-do a qual o efeito é mais cômico quando podemos ex-plicar de modo mais natural a sua causa. Automatis-mo, rigidez, vezo contraído e mantido: aí está por queuma fisionomia nos faz rir. Mas esse efeito ganhaintensidade quando podemos vincular tais caracte-rísticas a uma causa profunda, a certa distração fun-damental da pessoa, como se a alma se tivesse dei-xado fascinar, hipnotizar, pela materialidade de umaação simples.

Entende-se agora a comicidade da caricatura. Pormais regular que seja uma fisionomia, por mais har-moniosa que suponhamos serem suas linhas, por maisgraciosos os movimentos, seu equilíbrio nunca é abso-lutamente perfeito. Nela sempre se discernirá o indí-cio de um vezo que se anuncia, o esboço de um esgarpossível, enfim uma deformação preferida na qual secontorceria a natureza. A arte do caricaturista é cap-tar esse movimento às vezes imperceptível e, am-pliando-o, torná-lo visível para todos os olhos. Faz ca-retear seus modelos como eles mesmos o fariam sechegassem até o extremo de seu esgar. Adivinha, portrás das harmonias superficiais da forma, as revoltasprofundas da matéria. Realiza desproporções e defor-mações que deveriam existir na natureza em estadode veleidade, mas que não puderam concretizar-se,porque reprimidas por uma força melhor. Sua arte,que tem algo de diabólico, reergue o demônio que o

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anjo subjugara. Sem dúvida é uma arte que exagera,mas define-a muito mal quem lhe atribui o exageropor objetivo, pois há caricaturas mais parecidas como modelo do que o são os retratos, caricaturas nasquais o exagero mal é perceptível; e, ao contrário, po-de-se exagerar ao extremo sem obter um verdadeiroefeito de caricatura. Para ser cômico, o exagero nãopode aparecer como o objetivo, mas como um sim-ples meio utilizado pelo desenhista para manifestaraos nossos olhos as contorções que ele vê preparar-sena natureza. É essa contorção que importa, é ela queinteressa. Por isso será procurada até nos elementosda fisionomia que são incapazes de movimento, nacurvatura de um nariz e mesmo na forma de uma ore-lha. É que a forma é, para nós, o desenho de um mo-vimento. O caricaturista que altera a dimensão de umnariz, mas que respeita seu formato, que o prolonga,por exemplo, no mesmo sentido em que já o prolon-gava a natureza, de fato está fazendo esse nariz care-tear: a partir de então nos parecerá que o original tam-bém quis prolongar-se e fazer a careta. Nesse senti-do, pode-se dizer que a própria natureza tem muitasvezes o sucesso de um caricaturista. No movimentocom que fendeu certa boca, estreitou um queixo, in-chou uma bochecha, parece que conseguiu ir até oextremo de seu esgar, iludindo a vigilância modera-dora de uma força mais racional. Rimos então de umrosto que é em si mesmo, por assim dizer, sua pró-pria caricatura.

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Em resumo, seja qual for a doutrina à qual nos-sa razão adira, nossa imaginação tem sua filosofiainabalável: em toda forma humana ela percebe o es-forço de uma alma a modelar a matéria, alma infini-tamente maleável, eternamente móvel, livre da gra-vidade porque não é a terra que a atrai. De sua leve-za alada essa alma comunica alguma coisa ao corpoque anima: a imaterialidade que passa assim para amatéria é aquilo a que se dá o nome de graça. Masa matéria resiste e obstina-se. Puxa tudo para si, gos-taria de converter à sua própria inércia e fazer dege-nerar em automatismo a atividade sempre despertadesse princípio superior. Gostaria de fixar os movi-mentos inteligentemente variados do corpo em vezosestupidamente incorporados, solidificar em esgaresduradouros as expressões móveis da fisionomia, im-primir enfim a toda a pessoa uma atitude tal que afaça parecer imersa e absorvida na materialidade dealguma ocupação mecânica, em vez de se renovar in-cessantemente em contato com um ideal vivo. Quan-do a matéria consegue espessar assim exteriormentea vida da alma, congelar seu movimento e contrariarsua graça, obtém um efeito cômico do corpo. Se, pois,quiséssemos definir aqui a comicidade aproximando-ade seu contrário, caberia opô-la à graça, mais do queà beleza. É mais rigidez que fealdade.

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IV

Vamos passar do cômico das formas ao dos ges-tos e movimentos. Enunciaremos desde já a lei quenos parece governar os fatos desse gênero. Ela é dedu-zida sem dificuldade das considerações que acaba-mos de ler.

As atitudes, os gestos e os movimentos do corpohumano são risíveis na exata medida em que esse cor-po nos faz pensar numa simples mecânica.

Não seguiremos essa lei nas minúcias de suasaplicações imediatas. Elas são inúmeras. Para verifi-cá-la diretamente, bastaria estudar de perto a obra dosdesenhistas cômicos, sem considerar a caricatura, àqual dedicamos uma explicação especial, e deixandode lado também a parcela de comicidade que não se-ja inerente ao desenho em si. Pois não nos enganemos:a comicidade do desenho é muitas vezes uma comi-cidade de empréstimo, cujo principal cabedal está naliteratura. Queremos dizer que o desenhista pode serao mesmo tempo um autor satírico e até um autor devaudeville, e que rimos bem menos dos desenhos emsi do que da sátira ou da cena de comédia que ali es-tá representada. Mas, se nos ativermos ao desenho coma firme vontade de só pensar no desenho, descobri-remos, assim nos parece, que o desenho geralmente écômico na medida da nitidez e também da discriçãocom que nos leva a ver no homem um fantoche arti-culado. É preciso que essa sugestão seja nítida, e que

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percebamos claramente, como por transparência, ummecanismo desmontável dentro da pessoa. Mas tam-bém é preciso que a sugestão seja discreta, e que oconjunto da pessoa, na qual cada membro foi enrije-cido em peça mecânica, continue a nos dar a impres-são de um ser que está vivo. O efeito cômico será maismarcante, a arte do desenhista será mais consumadaquanto mais inseridas estas duas imagens estiveremuma na outra: a imagem de pessoa e a de mecanismo.E a originalidade de um desenhista cômico poderiaser definida pelo tipo específico de vida que ele co-munique a um simples fantoche.

Mas deixaremos de lado as aplicações imediatasdo princípio e aqui só insistiremos em conseqüênciasmais remotas. A visão de um mecanismo a funcio-nar dentro da pessoa é coisa que abre para uma mul-tidão de efeitos engraçados; no mais das vezes, po-rém, é visão fugaz, que se perde logo em seguida noriso que provoca. É preciso um esforço de análise ereflexão para fixá-la.

Vejamos por exemplo, num orador, o gesto a ri-valizar com a palavra. Com ciúme da palavra, o ges-to corre atrás do pensamento e exige servir tambémde intérprete. Vá lá; mas que se restrinja então a se-guir o pensamento nas minúcias de suas evoluções.Idéia é coisa que cresce, brota, floresce, amadurece, docomeço ao fim do discurso. Nunca pára, nunca se re-pete. Precisa mudar a todo instante, pois parar de mu-dar seria parar de viver. Que o gesto, pois, se anime

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como ela! Que aceite a lei fundamental da vida, queé jamais se repetir! Mas eis que certo movimento dobraço ou da cabeça, sempre o mesmo, parece-me vol-tar periodicamente. Se observar se ele basta para medistrair, se o espero e se ele chega quando o espero, rioinvoluntariamente. Por quê? Porque tenho agora dian-te de mim um mecanismo que funciona automatica-mente. Já não é vida, é automatismo instalado na vi-da, imitando a vida. É comicidade.

Por isso certos gestos, dos quais não pensamosem rir, tornam-se risíveis quando alguém os imita.Houve quem buscasse explicações bem complicadaspara esse fato simplíssimo. Por menos que se reflita,ver-se-á que nossos estados d’alma mudam a todo ins-tante, e que, se nossos gestos seguissem fielmentenossos movimentos interiores, se vivessem como vi-vemos, não se repetiriam: por isso, desafiariam qual-quer imitação. Portanto, só começamos a ser imitáveisquando deixamos de ser nós mesmos. Quero dizer quede nossos gestos só pode ser imitado o que eles têmde mecanicamente uniforme e, por isso mesmo, de es-tranho à nossa personalidade viva. Imitar uma pessoaé depreender a parcela de automatismo que esta dei-xou introduzir-se em si. Logo, por definição mesmo,é torná-la cômica, e não é de surpreender que a imi-tação provoque o riso.

Mas, se já é risível por si mesma, a imitação dosgestos provoca ainda mais riso quando se empenhaem inflectir os gestos, sem os deformar, no sentido de

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alguma operação mecânica, como por exemplo de ser-rar madeira, bater numa bigorna ou puxar incansavel-mente um cordão de campainha imaginária. Não quea vulgaridade seja a essência da comicidade (embo-ra certamente faça parte dela), mas é que o gesto per-cebido parece mais francamente maquinal quando po-de ser vinculado a uma operação simples, como seestivesse destinado a ser mecânico. Sugerir essa in-terpretação mecânica deve ser um dos procedimentosfavoritos da paródia. Acabamos de fazer uma dedu-ção a priori, mas os cômicos certamente têm intuiçãodisso há muito tempo.

Assim se resolve o pequeno enigma proposto porPascal num trecho de seus Pensamentos: “Dois ros-tos semelhantes, que não provocam riso separadamen-te, fazem rir quando juntos, devido à sua semelhança.”Diríamos também: “Os gestos de um orador, que nãoprovocam riso separadamente, fazem rir devido à suarepetição.” É que a vida bem viva não deveria repe-tir-se. Quando há repetição, similitude completa, sus-peitamos do mecanismo a funcionar por trás do queestá vivo. Que o leitor analise sua impressão diantede dois rostos que se assemelhem demais: pensaráem dois exemplares tirados de um mesmo molde,ou em duas impressões do mesmo cunho, ou em duasreproduções do mesmo clichê; enfim, num procedi-mento de fabricação industrial. Essa inflexão da vidana direção da mecânica é a verdadeira causa do riso.

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E o riso será bem mais intenso ainda se não nosforem apresentadas em cena apenas duas persona-gens, como no exemplo de Pascal, porém várias, omaior número possível, todas semelhantes, persona-gens que vão e vêm, dançam, mexem-se juntas, assu-mindo ao mesmo tempo as mesmas atitudes, gesti-culando da mesma maneira. Aí pensaremos distinta-mente em marionetes. Fios invisíveis nos parecerãointerligar os braços de uma aos de outra, as pernas deuma às de outra, cada músculo de uma fisionomia aomúsculo análogo da outra: a inflexibilidade da corres-pondência faz que a maleabilidade das formas se soli-difique por si mesma diante de nossos olhos e quetudo endureça em mecanismos. Tal é o artifício des-se divertimento um tanto grosseiro. Os que o executamtalvez não tenham lido Pascal, mas com certeza o quefazem é tão-somente levar ao extremo uma idéia que otexto de Pascal sugere. E, se no segundo caso a causado riso é a visão de um efeito mecânico, ela já deve-ria sê-lo, porém mais sutilmente, no primeiro.

Continuando agora por essa via, percebemos con-fusamente conseqüências cada vez mais remotas, ca-da vez mais importantes também, da lei que acabamosde formular. Pressentimos visões ainda mais fugazesde efeitos mecânicos, visões sugeridas pelas açõescomplexas do homem e não já simplesmente por seusgestos. Adivinhamos que os artifícios usuais da co-média, a repetição periódica de uma palavra ou de umacena, a inversão simétrica dos papéis, o desenvolvi-

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mento geométrico dos qüiproquós e muitos outros jo-gos poderão extrair força cômica da mesma fonte, con-sistindo talvez a arte do autor de vaudeville em nosapresentar uma articulação visivelmente mecânica deacontecimentos humanos ao mesmo tempo que con-serva seu aspecto exterior de verossimilhança, ou se-ja, a flexibilidade aparente da vida. Mas não anteci-pemos resultados que o progresso da análise deverá irdepreendendo metodicamente.

V

Antes de irmos mais longe, convém descansar porum momento e olhar ao redor. Já pressentíamos noinício deste trabalho: seria quimérico querer extrairtodos os efeitos cômicos de uma única fórmula sim-ples. A fórmula existe, sim, em certo sentido; mas nãose desenrola regularmente. Queremos dizer que a de-dução deve deter-se de vez em quando em alguns efei-tos dominantes, e que esses efeitos aparecem, cadaum deles, como modelos em torno dos quais se dis-põem, em círculo, novos efeitos que se lhes asseme-lham. Estes últimos não se deduzem da fórmula, massão cômicos por terem parentesco com os que delasão deduzidos. Para citar Pascal mais uma vez, defi-niremos aqui a marcha do espírito com a curva queesse geômetra estudou com o nome de roleta, a curvadescrita por um ponto da circunferência de uma ro-

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da quando o carro avança em linha reta: esse pontogira como a roda, mas também avança como o car-ro. Ou então pensaremos numa grande estrada a cor-tar florestas, com cruzamentos ou encruzilhadas quea demarcam a espaços: a cada encruzilhada daremosuma volta no cruzamento, faremos um reconhecimen-to dos caminhos que se abrem, e após isso voltaremosà direção inicial. Estamos numa dessas encruzilhadas.Mecânico sobreposto ao vivo, eis um cruzamento on-de é preciso parar, imagem central a partir da qual aimaginação irradia em direções divergentes. Quais sãoessas direções? Percebemos três principais. Vamos se-gui-las uma após a outra, e depois retomaremos nossocaminho em linha reta.

I. Em primeiro lugar, essa visão de mecânica evida inseridas uma na outra nos faz tomar um cami-nho oblíquo rumo à imagem mais vaga de uma rigi-dez qualquer aplicada sobre a mobilidade da vida,tentando desajeitadamente seguir suas linhas e imitarsua flexibilidade. Adivinhamos então como é fácilque um traje se torne ridículo. Poderíamos quase di-zer que toda moda é risível por algum motivo. Mas,quando se trata da moda atual, estamos tão habitua-dos a ela que o traje nos parece formar um corpo sócom os corpos que o vestem. Nossa imaginação nãodestaca um do outro. Já não nos ocorre a idéia de opora rigidez inerte do envoltório à flexibilidade viva doobjeto envolvido. Portanto, aí a comicidade está em

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estado latente. No máximo conseguirá emergir quan-do a incompatibilidade natural for tão profunda entreo que envolve e o que é envolvido que uma aproxi-mação, ainda que secular, não conseguirá consolidarsua união: esse é o caso da cartola, por exemplo. Massuponhamos um originalão que se vista hoje de acor-do com a moda de antigamente: nossa atenção recaisobre o traje, nós o distinguimos absolutamente dapessoa, dizemos que a pessoa está fantasiada (comose toda roupa não fosse uma fantasia), e o lado risívelda moda passa da sombra à luz.

Começamos a entrever aqui algumas das grandesdificuldades de detalhe que o problema da comici-dade suscita. Uma das razões que devem ter inspira-do muitas teorias errôneas ou insuficientes acerca doriso é que muitas coisas são cômicas de direito semo serem de fato, uma vez que a continuidade do usoextinguiu nelas a virtude cômica. É preciso uma so-lução brusca de continuidade, uma ruptura com amoda, para que essa virtude ressurja. Acredita-se en-tão que essa solução de continuidade dá origem à co-micidade, ao passo que ela se limita a nos fazer no-tá-la. O riso é então explicado pela surpresa, pelo con-traste etc., definições que se aplicariam também auma infinidade de casos diante dos quais não temosnenhuma vontade de rir. A verdade não é tão simples.

Mas eis que chegamos à idéia de fantasia ou dis-farce. Como acabamos de mostrar, ela tem de pleno

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direito o poder de fazer rir. Não será em vão que pro-curaremos saber como o utiliza.

Por que rimos de uma cabeleira que passou docastanho ao loiro? De onde provém a comicidade deum nariz rubicundo? E por que se ri de um negro?Pergunta difícil, parece, pois psicólogos como Hecker,Kraepelin e Lipps a formularam e a responderam demaneiras diferentes. Não sei, porém, se ela não foirespondida certo dia diante de mim, na rua, por umsimples cocheiro, que tachava de “mal lavado” o clien-te negro sentado em sua carruagem. Mal lavado! Umrosto negro seria portanto, para nossa imaginação,um rosto lambuzado de tinta ou de fuligem. E, con-seqüentemente, um nariz vermelho só pode ser umnariz sobre o qual foi passada uma camada de ver-melhão. Portanto, o disfarce passou algo de sua vir-tude cômica para outros casos em que não há disfar-ce, mas poderia haver. Há pouco, o traje habitual nãoconseguia distinguir-se da pessoa; parecia formar umsó corpo com ela, porque estávamos acostumados avê-lo. Agora, a coloração negra ou vermelha não con-segue ser inerente à pele: nós a consideramos sobre-posta artificialmente, porque nos surpreende.

Donde, é verdade, uma nova série de dificuldadespara a teoria da comicidade. Uma frase como esta:“minhas roupas habituais fazem parte do meu cor-po”, é absurda para a razão. No entanto, a imagina-ção a tem por verdadeira. “Um nariz vermelho é umnariz pintado”, “um negro é um branco disfarçado”,

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absurdos também para a razão que raciocina, mas ver-dades certíssimas para a simples imaginação. Há, pois,uma lógica da imaginação que não é a lógica da ra-zão, que até se opõe a ela às vezes, mas com a quala filosofia precisará contar, não só para o estudo dacomicidade como também para outras investigaçõesda mesma ordem. É algo como a lógica do sonho, masde um sonho que não estaria entregue ao capricho dafantasia individual, visto ser o sonho sonhado pela so-ciedade inteira. Para reconstituí-la, é necessário umesforço de um gênero particular, graças ao qual ergue-remos a crosta exterior de juízos bem firmados e deidéias solidamente assentadas, para vermos escoar nofundo de nós mesmos, qual lençol de água subterrâ-nea, certa continuidade fluida de imagens que entramumas nas outras. Essa interpenetração das imagensnão ocorre a esmo. Obedece a leis, ou melhor, a há-bitos, que estão para a imaginação assim como a ló-gica está para o pensamento.

Sigamos, pois, essa lógica da imaginação no ca-so particular que nos ocupa. Um homem que se fan-tasia é cômico. Um homem que parece fantasiado écômico também. Por extensão, todo disfarce será cô-mico, não só o do homem, mas também o da socieda-de, e até o da natureza.

Comecemos pela natureza. Rimos de um cão to-sado pela metade, de um canteiro de flores artificial-mente coloridas, de um bosque cujas árvores estãoforradas de cartazes eleitorais etc. Busquemos a ra-

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zão e veremos que pensamos numa mascarada. Masa comicidade, aqui, está bem atenuada. Está por de-mais distante da fonte. Queremos reforçá-la? Serápreciso remontar à fonte, reconduzir a imagem deri-vada, de mascarada, à imagem primitiva, que era, sebem nos lembramos, a de arremedo mecânico da vi-da. Uma natureza arremedada mecanicamente: esseé então um motivo francamente cômico, sobre o quala imaginação poderá executar variações com a cer-teza de obter grande sucesso em matéria de riso. To-dos se lembram do trecho tão engraçado de Tartarinsur les Alpes1, em que Bompard leva Tartarin (e por-tanto, de certa forma, o leitor também) a acreditar naidéia de que a Suíça é movida por maquinismos, co-mo os porões da Ópera, explorada por uma compa-nhia que ali mantém cascatas, geleiras e falsas fen-das. O mesmo motivo outra vez, mas transposto pa-ra outro tom bem diferente, está em Novel Notes dohumorista inglês Jerome K. Jerome. Uma velha cas-telã, não querendo que suas boas obras lhe dêem tra-balho demais, manda alojar nas proximidades de suamorada, para serem convertidos, ateus fabricados ex-pressamente para ela, bem como uma gente boa quefora transformada num bando de bêbados para queela pudesse curar-lhes o vício etc. Há palavras cômi-cas nas quais esse motivo se encontra em estado de

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1. Um dos romances da trilogia Tartarin de Tarascon, de AlphonseDaudet. (N. da T.)

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distante ressonância, misturado a uma ingenuidade,sincera ou fingida, que lhe serve de acompanhamen-to. Por exemplo, as palavras de uma dama que, con-vidada pelo astrônomo Cassini para ir ver um eclipseda lua, chegou tarde e disse: “O senhor de Cassinibem poderia recomeçar para mim.” Ou ainda esta ex-clamação de uma personagem de Gondinet, ao che-gar a uma cidade e ficar sabendo que existia um vul-cão extinto nas redondezas: “Tinham um vulcão, e odeixaram apagar-se!”

Passemos à sociedade. Vivendo nela, vivendo porela, não podemos abster-nos de tratá-la como um servivo. Risível será, portanto, uma imagem que nos su-gira a idéia de uma sociedade fantasiada e, por as-sim dizer, de uma mascarada social. Ora, essa idéiase forma logo que percebemos o que há de inerte, depronto, de confeccionado enfim, na superfície da so-ciedade viva. É rigidez outra vez, e que destoa da fle-xibilidade interior da vida. O lado cerimonioso da vidasocial deverá, pois, conter uma comicidade latente, quesó precisará de uma oportunidade para vir à luz. Po-de-se dizer que as cerimônias estão para o corpo socialcomo o traje está para o corpo individual: sua gravi-dade se deve ao fato de se identificarem, para nós,com o objeto sério ao qual o uso as vincula, e per-dem essa gravidade assim que nossa imaginação asisola dele. Desse modo, para que uma cerimônia setorne cômica, basta que nossa atenção se concentreno que ela tem de cerimonioso, e que desprezemos

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sua matéria, como dizem os filósofos, para só pensarem sua forma. É ocioso insistir nesse ponto. Todossabem com que facilidade a invenção cômica é exer-cida sobre os atos sociais que têm forma imutável,desde a simples distribuição de condecorações até umasessão de tribunal. São formas e fórmulas, moldurasprontas onde a comicidade se inserirá.

Mas ainda aqui cabe acentuar a comicidade apro-ximando-a de sua fonte. Da idéia de fantasia ou dis-farce, que é derivada, será preciso remontar então àidéia primitiva, de um mecanismo sobreposto à vi-da. A própria forma compassada de todo cerimonialnos sugere uma imagem desse tipo. Assim que es-quecemos a seriedade do objeto de uma solenidadeou de uma cerimônia, os que tomam parte dela pro-duzem em nós efeito de marionetes. Sua mobilidadese regra pela imobilidade de uma fórmula. É auto-matismo. Mas automatismo perfeito será, por exem-plo, o do funcionário que funciona como simples má-quina, ou ainda a inconsciência de um regulamentoadministrativo que se aplica com fatalidade inexorá-vel e é tido por lei da natureza. Há já alguns anos, umpaquete naufragou nas proximidades de Dieppe. Al-guns passageiros foram resgatados com grande difi-culdade por uma embarcação. Alguns inspetores dealfândega, que se haviam comportado bravamente noresgate, começaram por perguntar “se não tinham na-da que declarar”. Vejo certa analogia, embora a idéiaseja mais sutil, nestas palavras de um deputado que in-

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terpelava o ministro no dia seguinte a um crime co-metido na ferrovia: “O assassino, depois de matar avítima, deve ter descido do trem pelo lado contrário aoda estação, violando os regulamentos administrativos.”

Um mecanismo inserido na natureza, uma regu-lamentação automática da sociedade, esses são, emsuma, os dois tipos de efeitos engraçados aos quaischegamos. Resta-nos, para concluir, combiná-los e vero que resulta.

O resultado da combinação será, evidentemente,a idéia de regulamentação humana a substituir as leisda natureza. Lembramos a resposta de Sganarelle aGéronte, quando este lhe observa que o coração ficado lado esquerdo, e o fígado, do lado direito: “Sim,antigamente era assim, mas nós mudamos tudo isso,e agora praticamos a medicina segundo um métodototalmente novo.” E o conselho dos dois médicos dePourceaugnac2: “O seu raciocínio é tão douto e bo-nito que é impossível que o doente não seja melan-cólico hipocondríaco; e, mesmo que não fosse, seriapreciso que se tornasse, pela beleza das coisas que osenhor disse e a justeza do raciocínio que teceu.” Po-deríamos multiplicar os exemplos; bastaria pôr a des-filar diante de nós, um após outro, todos os médicosde Molière. Por mais longe, aliás, que aqui pareça ira invenção cômica, a realidade às vezes se encarre-

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2. Monsieur de Pourceaugnac, comédia de Molière. (N. da T.)

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ga de ultrapassá-la. Um filósofo contemporâneo, ar-gumentador extremado, a quem alguém lembrava queseus raciocínios irrepreensivelmente deduzidos tinhamcontra si a experiência, pôs fim à discussão com es-ta simples frase: “A experiência está errada.” É quea idéia de regrar administrativamente a vida é maisdifundida do que se pensa; ela é natural à sua manei-ra, embora tenhamos acabado de obtê-la por um pro-cedimento de reconstituição. Poderíamos dizer queela nos apresenta a quintessência mesma do pedan-tismo, que no fundo outra coisa não é senão a arteque pretende dar lições à natureza.

Assim, em resumo, o mesmo efeito vai semprese sutilizando, desde a idéia de mecanização artifi-cial do corpo humano, se assim pudermos nos ex-pressar, até a de uma substituição qualquer do natu-ral pelo artificial. Uma lógica cada vez menos rigo-rosa, que se assemelha cada vez mais à lógica dossonhos, transporta a mesma relação para esferas ca-da vez mais altas, entre termos cada vez mais imate-riais, e um regulamento administrativo acaba sendopara uma lei natural ou moral, por exemplo, o que aroupa confeccionada é para o corpo vivo. Das trêsdireções pelas quais devíamos enveredar, seguimosagora a primeira até o fim. Passemos à segunda evejamos aonde nos conduz.

II. O mecânico sobreposto ao vivo: esse é aindanosso ponto de partida. De onde provém a comici-

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dade? Do fato de o corpo vivo enrijecer-se como má-quina. Parecia-nos, portanto, que o corpo vivo deve-ria ser a flexibilidade perfeita, a atividade sempre aler-ta de um princípio sempre em ação. Mas essa ativi-dade pertenceria realmente à alma, e não ao corpo.Seria a própria chama da vida, iluminada em nós porum princípio superior e entrevista através do corpopor um efeito de transparência. Quando no corpo vi-vo só vemos graça e flexibilidade, é porque despre-zamos o que nele há de pesado, de resistente, de ma-terial enfim; esquecemos sua materialidade para sópensar em sua vitalidade, vitalidade que nossa ima-ginação atribui ao princípio mesmo da vida intelec-tual e moral. Suponhamos que nos chamem a aten-ção para essa materialidade do corpo. Suponhamosque, em vez de participar da leveza do princípio queo anima, o corpo não passe, para nós, de um envol-tório pesado e enleante, lastro importuno que pren-de ao chão uma alma impaciente por deixar o solo.Então o corpo se tornará para a alma o que a roupaera há pouco para o próprio corpo: matéria inerte pos-ta sobre uma energia viva. E a impressão de comici-dade ocorrerá tão logo tenhamos o claro sentimentodessa superposição. E a teremos sobretudo quandonos mostrarem a alma atenazada pelas necessidadesdo corpo – de um lado a personalidade moral com suaenergia inteligentemente variada; de outro, o corpoestupidamente monótono, a intervir e interromper comsua obstinação de máquina. Quanto mais mesquinhas

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e uniformemente repetidas forem essas exigências docorpo, mais impressionante será o efeito. Mas é ape-nas uma questão de grau, e a lei geral desses fenôme-nos poderia ser assim formulada: É cômico todo inci-dente que chame nossa atenção para o físico de umapessoa quando o que está em questão é o moral.

Por que se ri de um orador que espirra no momen-to mais patético de seu discurso? De onde provém acomicidade desta frase de oração fúnebre, citada porum filósofo alemão: “Ele era virtuoso e reto”? Do fa-to de nossa atenção ser bruscamente levada da almapara o corpo. Abundam exemplos na vida cotidiana.Mas quem não quiser se dar ao trabalho de procurá-los, poderá abrir ao acaso um volume de Labiche.Topará freqüentemente com efeitos desse tipo. Umavez é um orador cujos mais belos períodos são cor-tados pelas alfinetadas de um dente enfermo; de ou-tra é alguém que nunca toma a palavra sem interrom-per-se para queixar-se dos sapatos apertados demaisou do cinto muito justo etc. Uma pessoa estorvadapelo próprio corpo, essa é a imagem que nos sugeremesses exemplos. Se a retidão excessiva é risível, issoocorre por trazer à mente uma imagem desse tipo. Étambém o que às vezes torna a timidez um tanto ridí-cula. O tímido pode dar a impressão de ser uma pes-soa enleada pelo próprio corpo, alguém que procuraem torno de si um lugar para depositá-lo.

Por isso, o poeta trágico tem o cuidado de evitartudo o que possa chamar nossa atenção para a mate-

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rialidade de seus heróis. Tão logo intervenha a preo-cupação com o corpo, é de se temer uma infiltraçãocômica. Por esse motivo, o herói de tragédia não be-be, não come, não se aquece. Sempre que possível, aténão se senta. Sentar-se em meio a uma tirada serialembrar que existe um corpo. Napoleão, que era psi-cólogo nas horas vagas, notara que se passa da tragé-dia à comédia só com sentar-se. Vejamos como ele seexpressa a respeito no Diário inédito do barão Gour-gaud (trata-se de uma entrevista com a rainha da Prús-sia depois de Iena): “Ela me recebeu com um tom trá-gico, como Ximena: Majestade, justiça! Justiça! Mag-deburgo! E continuava nesse tom, que me deixavamuito embaraçado. Por fim, para fazê-la mudar, eu aconvidei a sentar-se. Nada melhor para cortar umacena trágica; pois, quando nos sentamos, tudo viracomédia.”

Agora ampliemos essa imagem: o corpo sobre-pujando a alma. Obteremos algo mais geral: a for-ma querendo impor-se ao fundo, a letra chicanean-do o espírito. Não seria essa a idéia que a comédiaprocura sugerir-nos quando ridiculiza uma profissão?Nela o advogado, o juiz e o médico falam como se asaúde e a justiça pouco importassem, sendo essencialque haja médicos, advogados e juízes, e que as formasexteriores da profissão sejam respeitadas escrupulo-samente. Assim, os meios substituem os fins, a for-ma substitui o fundo, e não mais a profissão é feitapara o público, porém o público para a profissão. A

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preocupação constante com a forma, a aplicação ma-quinal das regras criam uma espécie de automatismoprofissional, comparável ao automatismo que os há-bitos do corpo impõem à alma e tão risível como es-te. São abundantes os exemplos disso em teatro. Sementrar nos pormenores das variações sobre esse te-ma, citaremos dois ou três textos em que o própriotema é definido em toda a sua simplicidade: “Somosobrigados a tratar as pessoas somente nas formas”, dizDiaforius no Doente imaginário. E Bahis, em Amormédico: “É melhor morrer de acordo com as regrasdo que salvar-se contrariando as regras.” “É precisosempre observar as formalidades, aconteça o queacontecer”, dizia já Desfonandrès na mesma comé-dia. E seu confrade Tomès explicava por quê: “Umhomem morto não passa de um homem morto, masuma formalidade negligenciada causa notável pre-juízo a toda a categoria dos médicos.” A frase deBrid’oison, para resumir uma idéia um pouco dife-rente, não é menos significativa: “A forma, senhores,a forma. Alguém ri de um juiz que, em trajes comuns,treme simplesmente por ver um procurador envergan-do toga. A forma, a forma.” Mas aqui se apresenta aprimeira aplicação de uma lei que se mostrará cadavez mais claramente à medida que avançarmos emnosso trabalho. Quando o músico emite uma notanum instrumento, surgem espontaneamente outras no-tas que, sendo menos sonoras que a primeira e es-tando ligadas a ela por certas relações definidas, im-

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primem-lhe um timbre por se lhe somarem: como sediz em física, são os harmônicos do som fundamen-tal. Não poderia ocorrer que a imaginação cômica,mesmo em suas invenções mais extravagantes, obe-deça a uma lei do mesmo gênero? Consideremos porexemplo esta nota cômica: a forma querendo sobre-pujar-se ao fundo. Se nossas análises estiverem cor-retas, seu harmônico deverá ser esta outra: o corpoatenazando o espírito, o corpo impondo-se ao espí-rito. Portanto, assim que o poeta cômico emitir a pri-meira nota, acrescentará a segunda de modo instinti-vo e involuntário. Em outros termos, somará algumridículo físico ao ridículo profissional.

Quando o juiz Brid’oison entra em cena gague-jando, não nos estará preparando, com sua gagueira,para compreender o fenômeno de cristalização inte-lectual cujo espetáculo nos oferecerá? Que secreto pa-rentesco vinculará esse defeito físico àquela debilida-de moral? Talvez fosse preciso que essa máquina dejulgar nos aparecesse ao mesmo tempo como uma má-quina de falar. Em todo caso, nenhum outro harmô-nico poderia completar melhor o som fundamental.

Quando Molière nos apresenta os dois doutoresridículos de Amor médico, Bahis e Macroton, um dosdois fala bem devagar, escandindo seu discurso sílabapor sílaba, enquanto o outro tartamudeia. O mesmocontraste há entre os dois advogados do Monsieur dePourceaugnac. Ordinariamente, é no ritmo da falaque reside a singularidade física destinada a comple-

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tar o ridículo profissional. E, quando o autor não indi-ca um defeito desse tipo, o ator raramente não procu-ra compô-lo de modo instintivo.

Há, portanto, um parentesco natural, naturalmen-te reconhecido, entre essas duas imagens que estamosaproximando uma da outra, o espírito a imobilizar-seem certas formas, o corpo a enrijecer-se segundo cer-tos defeitos. Quer nossa atenção seja desviada do fun-do para a forma ou do moral para o físico, a mesmaimpressão é transmitida à nossa imaginação nos doiscasos; é, nos dois casos, o mesmo tipo de comicidade.Também aqui quisemos seguir fielmente uma direçãonatural do movimento da imaginação. Essa direção,cabe lembrar, era a segunda daquelas que se nos apre-sentaram a partir de uma imagem central. Uma ter-ceira e última via continua aberta. É por ela que vamosagora enveredar.

III. Voltemos uma última vez à nossa imagemcentral: do mecânico sobreposto ao vivo. O ser vivode que falávamos era um ser humano, uma pessoa.O dispositivo mecânico é, ao contrário, uma coisa.Portanto, o que provocava o riso era a transfiguraçãomomentânea de uma pessoa em coisa, se quisermosolhar a imagem por esse lado. Passemos então daidéia precisa de mecânica à idéia mais vaga de coisaem geral. Teremos uma nova série de imagens risíveisque serão obtidas, por assim dizer, esbatendo-se os

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contornos das primeiras, e que conduzirão a esta no-va lei: Rimos sempre que uma pessoa nos dá a impres-são de coisa.

Rimos de Sancho Pança posto sobre uma cober-ta e lançado para o ar como uma bola. Rimos do ba-rão de Münchhausen transformado em bala de canhãoa caminhar através do espaço. Mas talvez certos exer-cícios dos palhaços de circo possibilitem uma veri-ficação mais precisa da mesma lei. Seria preciso, éverdade, fazer abstração das facécias com que o pa-lhaço enriquece seu tema principal e só ficar com opróprio tema, ou seja, as atitudes, as cabriolas e osmovimentos que constituem o que há de propriamen-te “palhaçal” na arte do palhaço. Apenas duas vezespude observar esse tipo de comicidade em estado pu-ro, e nos dois casos tive a mesma impressão. Da pri-meira vez, os palhaços iam, vinham, davam-se en-contrões, caíam e ricocheteavam, segundo um ritmouniformemente acelerado, com a visível preocupa-ção de criar um crescendo. E, cada vez mais, era parao ricochete que a atenção do público se voltava. Aospoucos, perdia-se de vista que aqueles eram homensde carne e osso. Pensava-se em pacotes, que se dei-xavam cair e entrechocar-se. Depois, a visão ia fican-do mais precisa. As formas pareciam arredondar-se,os corpos pareciam rolar e embolar-se. Por fim, apa-recia a imagem para a qual toda aquela cena evoluía,por certo inconscientemente: bolas de borracha, lan-

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çadas em todos os sentidos umas contra as outras. –A segunda cena, ainda mais grosseira, não foi menosinstrutiva. Apareceram duas personagens, de cabeçaenorme e crânio inteiramente calvo. Vinham armadascom grandes pedaços de pau. E uma de cada vez dei-xava cair o pedaço de pau sobre a cabeça da outra.Também nesse caso observava-se uma gradação. Acada golpe recebido, os corpos pareciam ficar maispesados, imobilizar-se, invadidos por uma rigidezcrescente. A reação voltava cada vez mais atrasada,cada vez mais pesada e repercutente. Os crânios res-soavam formidavelmente na sala silenciosa. Por fim,rígidos e lentos, retos como um I, os dois corpos pen-deram um para o outro, os pedaços de pau se abate-ram pela última vez sobre as cabeças com um ruídode martelos enormes caindo sobre vigas de carvalho,e tudo foi ao chão. Naquele momento apareceu comnitidez a sugestão que os dois artistas haviam gra-dualmente introduzido na imaginação dos especta-dores: “Vamos virar, viramos manequins de madeiramaciça.”

Um obscuro instinto pode levar os espíritos in-cultos a pressentir alguns dos mais sutis resultadosda ciência psicológica. Sabe-se que, por simples su-gestão, é possível evocar visões alucinatórias numindivíduo hipnotizado. Se lhe disserem que há umpássaro pousado sobre sua mão, ele verá o pássaro eo verá sair voando. Mas é preciso que a sugestão se-

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ja sempre aceita com tal docilidade. Muitas vezes omagnetizador só consegue fazê-la penetrar aos pou-cos, por insinuação gradual. Partirá então de objetosrealmente vistos pelo indivíduo, e tentará tornar suapercepção cada vez mais confusa: depois, de grau emgrau, extrairá dessa confusão a forma precisa do obje-to cuja alucinação quer criar. É assim que muitas pes-soas, na hora de dormir, vêem essas massas coloridas,fluidas e informes, que ocupam o campo da visão,solidificar-se insensivelmente em objetos distintos.A passagem gradual do confuso ao distinto é, pois,o procedimento por excelência da sugestão. Acredi-to ser possível encontrá-lo no fundo de muitas su-gestões cômicas, sobretudo na comicidade grosseira,quando diante dos nossos olhos parece ocorrer a trans-formação de uma pessoa em coisa. Mas há outros pro-cedimentos mais discretos, usados pelos poetas, porexemplo, que talvez tendam inconscientemente aomesmo fim. Por meio de certos dispositivos de ritmo,rima e assonância, nossa imaginação pode ser em-balada, levada em ramerrão num balanço regular, fi-cando assim preparada para receber docilmente a vi-são sugerida. Prestem atenção a estes versos de Rég-nard, e vejam se a imagem fugaz de um boneco nãolhes atravessa o campo da imaginação:

... Plus, il doit à maints particuliersLa somme de dix mil une livre une obole,Pour l’avoir sans relâche un an sur sa parole

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Habillé, voituré, chauffé, chaussé, ganté,Alimenté, rasé, désaltéré, porté.3

Não encontramos algo do mesmo tipo nesta ti-rada de Fígaro (embora nela talvez se procure suge-rir a imagem de um animal mais que de uma coisa):“Que homem é esse? – É um belo, gordo, nanico, jo-vem velhote, encarneirado, astuto, tosado e chateado,que espiona e questiona, e rosna e resmunga de umasó vez.”

Entre tais cenas grosseiras e tais sugestões suti-líssimas há lugar para uma multidão inumerável deefeitos engraçados – todos os que são obtidos quandonos expressamos sobre pessoas como se fossem coi-sas. Vejamos um ou dois exemplos do teatro de La-biche, no qual eles abundam. Perrichon, na hora desubir no trem, certifica-se de não ter esquecido ba-gagem alguma. “Quatro, cinco, seis, minha mulhersete, minha filha oito e eu nove.” Há uma outra peçaem que um pai gaba a ciência da filha nestes termos:“Ela vai dizer sem vacilar todos os reis de França queocorreram.” Esse que ocorreram, sem converter pre-

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3. ... E mais, ele deve a muita genteA soma de dez mil e uma libra e um tostão,Porque durante um ano, infatigavelmenteEle o trajou, carregou, calçou, enluvou,Barbeou, alimentou, dessedentou, levou. Essa tradução não é literal. Procuramos transmitir o efeito repetiti-

vo existente no original. (N. da T.)

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cisamente os reis em coisas, compara-os a aconteci-mentos impessoais.

Cabe notar a respeito deste último exemplo: nãoé necessário chegar até o fim da identificação entrea pessoa e a coisa para que se produza o efeito cômi-co. Basta entrar por esse caminho, fingindo, por exem-plo, confundir a pessoa com a função que ela exer-ce. Só citarei estas palavras de um prefeito de aldeianum romance de About: “O senhor alcaide, que sem-pre nos tratou com a mesma benevolência, apesar deter sido trocado várias vezes desde 1847...”

Todos esses ditos são criados a partir do mesmomodelo. Poderíamos compor outros, indefinidamente,agora que temos a fórmula. Mas a arte do contista edo autor de vaudeville não consiste simplesmente emcompor o dito. O difícil é dar-lhe força de sugestão,ou seja, torná-lo aceitável. E só o aceitamos porqueele nos parece sair de um estado d’alma ou caber nascircunstâncias. Assim, sabemos que Perrichon estámuito emocionado na hora de fazer sua primeira via-gem. O verbo “ocorrer” é daqueles que devem ter rea-parecido muitas vezes nas lições recitadas pela filhadiante do pai; lembra-nos uma recitação. Por fim, aadmiração da máquina administrativa poderia, a ri-gor, chegar ao ponto de nos fazer acreditar que nadamuda no alcaide quando ele muda de nome, e que afunção se cumpre independentemente do funcionário.

E aqui estamos nós, bem distantes da causa origi-nal do riso. Uma forma cômica, inexplicável por si

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mesma, só pode ser entendida graças à semelhançacom outra, que só nos faz rir por ter parentesco comuma terceira, e assim por diante durante muito tem-po: de tal modo que a análise psicológica, por maisque a suponhamos esclarecida e penetrante, perderánecessariamente o rumo se não segurar o fio ao longodo qual a impressão cômica caminhou de uma extre-midade da série à outra. Qual a razão dessa continui-dade de progresso? Qual é a pressão, qual é o estranhoimpulso que faz a comicidade ir deslizando assim deimagem em imagem, cada vez mais distante do pon-to de origem, até fracionar-se e perder-se em analo-gias infinitamente distantes? Mas qual é a força quedivide e subdivide o tronco da árvore em ramos, araiz em radicelas? Uma lei inelutável condena assimtoda energia viva, desde que lhe dêem tempo, a co-brir o máximo possível de espaço. Ora, a invençãocômica é bem uma energia viva, planta singular quebrotou vigorosamente sobre as partes pedregosas dosolo social, à espera de que a cultura lhe permitisserivalizar com os produtos mais refinados da arte. Es-tamos longe da grande arte, é verdade, com os exem-plos de comicidade que acabam de passar diante denossos olhos. Mas já nos aproximaremos mais dela,embora sem a atingir de todo, no capítulo que segui-rá. Abaixo da arte, há o artifício. É nessa zona dos ar-tifícios, intermediária entre a natureza e a arte, que pe-netramos agora. Vamos tratar do autor de vaudevillee do humorista.

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