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Capítulo II Identidade pessoal, social e profissional

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Capítulo II

Identidade pessoal, social e profissional

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1. Introdução

Todos nós temos um nome, todos nós temos um rosto, todos usamos uma

língua, todos temos uma nacionalidade, todos em determinado momento fomos alunos,

todos e cada um de nós adultos, exerce ou exerceu já uma actividade profissional, todos

temos algo que nos distingue dos outros e que ao mesmo tempo nos aproxima por

forma a que nos sintamos parte de um grupo de uma sociedade. Todos nós em

momentos determinados da nossa vida nos interrogamos sobre quem somos. Enfim

todos nós temos múltiplas identidades que se interligam e que como afirmam Campeau

et all (1998:86) permitem “ressaltar as interdependências que fazem com que os

indivíduos sejam à vez profundamente parecidos e tão profundamente únicos e

diferentes”.

É sobre este esteio que nos une e que nos separa dos outros, que nos torna

semelhantes e que, ao mesmo tempo, nos atribui a característica de sermos únicos, que

nos permite encontrar as respostas para o quem somos nós – a Identidade - que nos

propomos reflectir neste momento. E propomo-nos fazê-lo tendo em conta três pontos

de vista, o do indivíduo, o da sociedade e o do grupo com especial incidência para o

grupo profissional, até porque a compreensão da construção da identidade de cada um

de nós será talvez o que nos permite a “compreensão das mutações sociais actuais”

(Ruano-Borbalan, 1998:2)

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Por outro lado cremos ser importante ter em conta estas três vertentes pois,

como afirma Freund (1979:84) o indivíduo está no centro de “vários círculos que se vão

alargando, partindo do que respeita ao da família para chegar ao que respeita ao da

nação”. Estes círculos de identidade serão portanto círculos que “se sobrepõem numa

espécie de escada de identidades que têm como ponto de partida a identidade individual

e por ponto superior a humanidade” (ibidem).

Será pois entre estes dois pólos que procuraremos fazer incidir a nossa reflexão

iniciando-a com a tentativa de clarificação do conceito Identidade para passarmos

depois aos pólos individuais e sociais.

1. A identidade – noção

Vejamos pois como pode ser entendido o conceito de identidade.

Antes de mais começaremos dizer que este é um conceito de multifacetado

facetas. E é-o porque se pode definir o conceito identidade como “um conjunto de

referentes materiais (passaporte, carta de condução), sociais (trabalhador, cônjuge, pai)

e subjectivos (amador de golfe, de esqui, cozinheiro, etc) escolhidos para permitir uma

definição de um actor social” (Campeau et all, 1998:87).

Lipiansky afirma mesmo que para além de “fenómeno complexo, a identidade é

também paradoxal” dado que “designa o que é único: distingue-se e diferencia-se

irredutivelmente dos outros” no entanto “qualifica igualmente o que é único, isto é o

que é perfeitamente semelhante mantendo-se distinto” (1998a:22). Em seu entender,

ainda, o conceito de identidade encerra dentro de si uma “ambiguidade semântica com

um profundo sentido” que sugerirá mesmo quando a “identidade oscila entre a

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similitude e a diferença, entre o que faz de nós uma individualidade singular e que ao

mesmo tempo nos torna semelhantes aos outros” (ibidem).

Partindo desta noção de complexidade e de ambiguidade Dubar (2001)

apresenta-nos uma visão do conceito de identidade que agrupa as diversas abordagens

da noção em três grandes posições: a essencialista, a nominalista e a das formas

identitárias.

De acordo com a posição essencialista entende-se que o conceito identidade está

ligado à “crença nas ‘essências’, nas realidades essenciais, nas substâncias à vez

imutáveis e originais” (ibid:2). Será pois através das essências que o ser é qualquer que

seja o tempo em que vive, quaisquer que sejam as mudanças que ocorram. Os seres

humanos possuem qualidades permanentes que constituem, portanto, a sua essência.

Cada um de nós será por isso possuidor de um conjunto de aspectos essenciais que

constituem a essência, que nos permitem sermos iguais a nós próprios e a todos quantos

as partilham.

A visão essencialista dir-nos-á que nas diferentes categorias de essências existe

um ponto comum, essencial que nos torna idênticos. Cada ser humano será pois

definido como sendo idêntico à mesma essência e diferente de todos os outros. Dubar

afirma então que a “identidade dos seres existentes é o que faz com que eles sejam

idênticos, no tempo, à essência” (ibid:2). A identidade será assim constituída por uma

continuidade temporal que nos permite conhecermo-nos a nós próprios e identificarmo-

nos ao longo de toda a nossa vida. Cada um de nós é singular podendo mesmo dizer-se

que “o ser humano é” (ibid:4) e que estaremos perante uma identidade para si.

E é tendo em conta essa singularidade que Freund se refere à identidade como

sendo “tudo o que será, no sentido próprio do termo, inalienável do ser, isto é

irredutível dos outros” (1979:66) até porque, para o autor, a noção de identidade

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“significa a fidelidade de um ser a si próprio no tempo(...) ela é o sinal de uma

separação quase um encerramento do ser dentro dos seus próprios limites, uma marca

da sua individualidade indivisível”

A identidade poderá assim ser entendida como a fidelidade de cada um de nós a

si próprio, como o espaço privado de cada um de nós e que é , ainda de acordo com

Dubar (1998a:136), construída através das “reivindicações de pertença e de qualidades

para e por si próprias”, o que permite que cada um de nós se conheça a si próprio

através das “histórias que cada um conta a si mesmo sobre o que é” e “ se encarna nas

‘figuras’, nos papéis, nos ofícios”.

A posição nominalista, por sua vez, opõe-se à posição anterior. Neste sentido

convirá recordar que é de Heráclito a famosa frase que encerra o cerne do seu

pensamento: “não é possível tomar banho duas vezes na mesma água do mesmo rio”.

Nada portanto é eterno, tudo está sujeito à mudança, pelo que a própria identidade

estará sujeita à mudança dos tempos, do vivido, do experimentado, dos grupos, enfim

da sociedade. Existem, portanto,”diferenças específicas a priori e permanentes entre os

indivíduos” (Dubar, 2001:3) que pressupõem existência de categorias diferentes que se

encontram ainda dependentes do contexto.

A identidade será, assim e também as “reacções às palavras e às atitudes dos

outros” (Dubar, 1998a:136). E esta construção e reacção às palavras e atitudes dos

outros só será possível, no entender de Hall (2000:17), através “da relação com o Outro,

a relação com o que não é, com aquilo que falta” até porque de acordo com este autor a

identidade é a “representação que se constrói através ‘daquilo que falta’, através da

divisão, a partir do lugar do Outro” (2000:19).

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Encontramo-nos, pois, perante dissimilitude, a diferença de que nos falava

Lipiansky ou que Erikson (1972:21) refere quando afirma que “a identidade de uma

pessoa (...) pode ser relativa à de outras pessoas ou grupos”.

A identidade não se constrói, então, apenas porque existimos, mas sim porque

existimos em interacção com os outros porque enfim existimos com os outros e em

determinados contextos. A identidade será, portanto, uma identidade para os outros

(Dubar, 2001:4).

A terceira posição- a posição das formas identitárias procura, em nosso

entender, fazer o equilíbrio entre as posições anteriores. Estaremos assim perante o

paradoxo de que nos fala Dubar, a identidade respeitará, pois “ao que existe de único e

o que é partilhado” (2001:3), estaremos perante a dialéctica da identidade para si e a

identidade para os outros, encontrar-nos-emos face a face com a singularidade e com a

diferença.

A identidade será, também a diferença que decorre de uma “identificação

contingente” (ibidem) porque partilhada e dependente dos que nos rodeia e que nos

servem de espelho. A identidade decorrerá de uma dupla operação de diferenciação e

de generalização.

Será através da diferenciação que se define a singularidade de cada um de nós

enquanto que através da generalização poderemos encontrar os pontos ou o ponto

comum daquilo ou daqueles que são diferentes. Ela será, portanto, a pertença comum

ao mesmo tempo que será também o que existe de único porque o que é único é o que é

partilhado com o Outro. Como afirma Dubar as identidades existem, assim, nas

“alteridades” variando “historicamente e dependendo do seu contexto de definição

(ibidem).

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Será, então no encontro dos processos de identificação – o para si e o para

outros – que se fundamenta a noção de formas identitárias.

Os actores poderão então contruir a sua identidade a partir da interiorização da

sua pertença herdada e definida pelos outros como a única possível ou a desejável, mas

podem também divergir e definir-se como entenderem utilizando “palavras diferentes

das categorias oficiais utilizadas pelos outros” (ibid:4).

As formas identitárias permitirão que “cada indivíduo tenha uma pertença

considerada como principal (...) e uma posição singular ao mesmo tempo que ocupa um

lugar no seio [das suas comunidades]” (ibid:5).

Assim a identidade dirá respeito “às definições que as pessoas dão de si próprias

e aos reconhecimentos que procuram obter dos outros” (Dubar, 1998a:138) até porque,

como afirma Lipiansky (1998a:21), a identidade resulta de “processo complexo que

liga estreitamente a relação consigo próprio e a relação com os outros tratando-se

mesmo “do primeiro dado da nossa relação com a existência e o mundo”.

A identidade permitir-nos-á, assim, percebermos que somos à vez actores

individuais e actores sociais que existimos na relação connosco próprios e na relação

com os outros, construindo-nos mutuamente.

Neste sentido e porque falamos de construção entendemos que para além de ser

um fenómeno complexo e multifacetado a identidade é algo que se vai construindo ao

longo das nossas vidas.

A identidade será assim “não mais do que o resultado simultaneamente estável e

provisório, individual e colectivo, subjectivo e objectivo, biográfico e estrutural, dos

diversos processos de socialização que, em conjunto, constróem os indivíduos e

definem as instituições” (Dubar, 1997:105) e que são “sem cessar reajustados e

renegociados” (Dubar, 1998a:135).

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Na opinião de Campeau et all (1998:88) a identidade “não é estática, ele será por

assim dizer jamais acabada. (...) inscreve-se num processo evolutivo. Forma-se

progressivamente, reorganiza-se e modifica-se sem cessar ao longo de toda a vida”.

Esta evolução progressiva que, de acordo com Erikson, “não se origina (e não

acaba) na adolescência” (1968:62) mas prossegue ao longo de toda a vida. A identidade

de alguém que passa do exercício de uma actividade profissional intensa para a situação

de aposentado sofre uma transformação completa. E as transformações ainda podem ser

substanciais no declinar da vida.

Na sociedade actual as organizações às quais pertencemos ou nas quais

participamos de diferentes formas são quadros relevantes na estruturação das

identidades dos seus membros. Com efeito “nascemos em organizações, somos

educados por organizações e quase todos nós passamos a vida a trabalhar para

organizações. Passamos muitas horas de lazer a pagar, jogar e a rezar em organizações”

(Etzioni,1989:1).

Se procuramos nos outros o reconhecimento de cada um de nós e se nos

construímos e à nossa identidade na relação que estabelecemos com os outros, então

verdadeiramente a evolução da construção da identidade só será acabada – se alguma

vez o for – quando cada um de nós deixar de estar em relação com os Outros, podendo

pois afirmar-se que a identidade se constrói ao longo de um longo processo de evolução.

Este processo, mais ou menos longo, permitirá, assim que durante a vida se vão

introduzindo e processando mudanças até porque, como afirma Erikson, “a identidade

nunca é ‘estabelecida’ como uma ‘realização’ na forma de uma armadura de

personalidade ou de qualquer coisa estática e imutável” (1972:22).

A identidade inscrever-se-á pois, “num longo processo de evolução pessoal”

(Campeau et all, 1998:87) o que permite a cada um de nós reconhecer-se e aperceber-se

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de si como a mesma pessoa ao longo do tempo apesar das evoluções e ou das mudanças

que se vierem a operar.

As diferentes fases por que cada um de nós vai passando ao longo da evolução

da sua identidade são vistas como fases diferentes de toda uma vida têm uma sequência.

Este sentimento – o da continuidade temporal permite que o actor empregue “um

processo de reflexão e observação simultâneas” (Erikson,1972:21) e que haja um

desenvolvimento gradual de uma “identidade psicossocial (...) que pressupõe uma

comunidade de pessoas cujos valores tradicionais se tornaram significantes para a

pessoa em crescimento da mesma forma que o seu crescimento assumiu relevância para

essas pessoas” (Erikson,1968:61). Desta forma o actor procura conhecer-se a si próprio

e conhecer-se através dos outros.

Para Tap (1998:65) o actor conseguirá construir a sua identidade através de um

conjunto de princípios que define como sendo os que respeitam ao “sentimento de

continuidade, coerência e unicidade, diversidade, realização pessoal através da acção,

auto estima, conformismo e diferenciação”.

Estes princípios poderão ser observados em qualquer fase/momento da vida de

cada um, seja ele um momento passado, presente ou futuro. A identidade forjar-se-á

também na continuidade temporal social sendo, por isso, influenciada por todos os

fenómenos sociais que se vão operando, pelas diferenças mais ou menos pronunciadas

na escala da hierarquia de valores, pelos avanços tecnológicos que vão

vertiginosamente ocorrendo, enfim por todas as mudanças que se vão operando nos

grupos e na sociedade em que o actor se insere.

Poderemos dizer com Sansot (1979: 31) que “identidade é pois a imagem que

tenho de mim e que eu forjei porque tenho de dar continuidade e resposta àquilo que os

outros esperam de mim”.

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A identidade será assim definida não apenas “pelo passado que já foi vivido mas

também pelo futuro potencial” (Erikson, 1968:61). Na sua definição utilizar-se-ão ainda

“materiais da história, geografia, biologia de instituições produtivas ou reprodutivas

memórias colectivas fantasias pessoais instrumentos de poder e revelações religiosas”.

Mas ao utilizar esta diversidade de materiais a pessoa individualmente ou os grupos

sociais reorganizam-nos, “e rearranjam os seus significados de acordo com

determinações sociais e projectos culturais que se baseiam na sua estrutura social e na

sua estrutura espácio temporal” (Castells 2001:7).

A identidade vista como uma forma identitária será portanto “a crença na

identidade pessoal que condiciona as formas de identificação societais aos diferentes

grupos (familiares, profissionais, religiosos, políticos) considerados como resultantes

das escolhas pessoais e não das imposições herdadas” (Dubar, 2001:5). Ainda com

Dubar (1998a: 141) parece ser possível afirmar que «cada pessoa pode mudar de forma

identitária ao longo da vida, jogar com várias formas, de acordo com o interlocutor,

mesmo no decurso de uma conversa”.

É durante as passagens de uma fase para outra que ocorrem momentos de

particular intensidade na reorganização do indivíduo a que Erikson (1972) apelida de

crises, e que trazem consigo potencialmente quer perigos quer novas oportunidades.

Perigo de desestruturação da identidade já conseguida, oportunidade de através de novas

reestruturações a aquisição de uma reconfiguração da identidade compaginável com as

novas expectativas que os novos contextos e as novas situações acarretam. Crises que

nos permitirão evoluir e encontrarmo-nos perante a possibilidade de dentro de cada um

de nós existirem “várias identidades (reais ou potenciais)” identidades estas que estarão

provavelmente carregadas de “tensões, de conflitos, de choques estratégicos, de

compromissos, de transacções” (Dortier, 1998:53) e que exigirão ao indivíduo fazer a

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“gestão das semelhanças” (Tap, 1998:66) com os outros e a”afirmação das diferenças”

(ibidem) com com esses mesmos outros.

Parece-nos assim ser possível dizer que a “identidade para si e identidade para o

outro são inseparáveis e estão ligadas de uma forma problemática. Inseparáveis porque

a identidade para si é correlativa do Outro e do seu reconhecimento: eu só sei quem eu

sou através do olhar do Outro. Problemáticas porque a experiência do outro nunca é

directamente vivida por si (...) de tal forma que nos apoiamos nas nossas comunicações

para nos informarmos sobre a identidade que o outro nos atribui (...) e, portanto, para

forjarmos uma identidade para nós próprios" (Dubar, 1997, 104)

A identidade será pois, como afirma Campeau et all ( 1998:87), “o resultado de

uma relação dialéctica perpétua” entre o indivíduo, o outro e o meio em que se insere ou

como Drevillon diz a identidade é “da ordem do vivido: ela é um sistema de

representações e de acções de carácter consciente” (1979:180). Ela representa ainda “os

meios indispensáveis para ‘construir mundos’, identificá-los e poder negociá-los com os

outros na vida social” sendo o garante em qualquer sociedade, democrática ou não,

“contra toda e qualquer empresa totalitária” (Dubar, 1998a:141)

2. A construção da identidade

Sendo a identidade o resultado de uma relação dialéctica permanente entre o

indivíduo, os outros e o meio em que se insere, resultará pois de um processo de

construção que se nos afigura deverá integrar estes elementos. Como se constroem

então as formas identitárias é a questão que de imediato se nos coloca.

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E interessa-nos encontrar a resposta para esta nossa questão uma vez que

entendemos que a identidade de cada um de nós é o que nos permite reconhecermo-nos

enquanto o que somos ao longo dos tempos mas é também fruto das interacções que

com os outros estabelecemos e que nos permitem construir de nós uma imagem, uma

ideia que irá evoluindo e que nos permite fazer parte de um grupo determinado.

Afirmamos no ponto anterior que a identidade não é estática que ela é dinâmica

e que nunca estará por assim dizer completamente acabada. Tal ideia prefigura como

afirma Dubar (1998a:139) que, para além das “formas identitárias se construírem (mas

podem também ser destruídas) e se reconstruírem ao longo da vida”, se integram ainda

no processo mais vasto de interacção com os outros, pelo que necessitam assim de ser

negociadas “com os outros que as devem reconhecer para que elas existam plenamente”

(ibidem).

Esta necessidade de vermos a construção da identidade inserida num processo

mais vasto de interacções com os outros é algo que perpassa nas afirmações que

diferentes autores fazem sobre o processo de construção da identidade. Assim

– Ruano-Borbalan (1998:2) diz que a identidade se “estabelece sobre critérios de

relações e de interacções sociais” e que “os estudos contemporâneos nos

lembram todos, com insistências, de que a imagem e a auto estima, as

identidades comunitárias ou políticas se elaboram nas interacções entre os

indivíduos, os grupos e as suas ideologias”

– Dubar (1997:118) ao falar de definição geral de identidade diz que esta “não é

‘transmitida’ por uma geração à seguinte, ela é construída por cada geração

com base em categorias e posições herdadas da geração precedente, mas

também através das estratégias identitárias desenroladas nas instituições que

os indivíduos atravessam e para cuja transformação real eles contribuem”.

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– Tap (1998: 67) ao tentar precisar os elementos que constituem a identidade

relembra que “o primeiro lugar de aprendizagem das identificações e da

apropriação de identidades múltiplas” é a família dizendo ainda que esta

primeira experiência de interacção é relevante dado que será a partir dela

que “seremos chamados mais tarde a reproduzir em múltiplos contextos

(escola, grupos de pares, relações amorosas, nova família, meios

profissionais)” nas relações que estabelecemos com os outros e que nos

permitem construir a nossa identidade.

Face ao que ressalta que nos encontramos num campo de incertezas, de procura

constante porque “a identidade nunca é dada, é sempre construída e a (re)construir

numa incerteza maior ou menor e mais ou menos durável” (Dubar, 1997:104),. E

porque a identidade é sempre construída e (re)construída, porque tem uma dinâmica

própria utilizará alguns instrumentos na sua construção (re)construção permanente.

Assim, para Tap (1998:65) existem seis características, que podemos ter em conta na

construção da identidade, a saber: i) a continuidade, ii) a representação que tenho de

mim próprio e que os outros têm de mim, iii) a unicidade, iv) a diversidade, v) nós

somos o que fazemos, vi) a auto estima.

Qualquer uma destas características será importante para a construção de cada

um de nós, sendo, no entanto, de relevar, tal como o fizemos ao longo do ponto anterior

quando procuramos entender a noção de identidade, o elemento continuidade que nos

permitirá conhecermo-nos e reconhecermo-nos ao longo da nossa vida.

A imagem que tenho de mim e aquela que penso que os outros têm de mim será

a característica, o elemento, que me permite ter determinados comportamentos que

estarão em consonância com as representações que tenho ou que de alguma forma nos

“reenvia para a ideia da unidade, da coerência do Eu” (ibidem).

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A unicidade por um lado, será o elemento que nos reenvia para a singularidade

de cad um de nós, para o facto de sermos únicos. Por outro lado a característica

diversidade será aquela que apesar da nossa singularidade nos permitirá assumir

múltiplas identidades, que nos permitirá como já afirmamos escolher entre as

identidades que nos atribuem ou aquela ou aquelas que desejamos em determinados

momentos.

A ideia de sermos o que fazemos está para Tap ligada à ideia ”da realização do

Eu pela acção (...) através de actividades (fazer e ao fazer ‘fazer-se)” (ibidem). Este

será mais um elemento importante para a geração da ambigüidade, para o paradoxo da

identidade tal como a diversidade.

Por último Tap afirma que a identidade estará necessariamente ligada à visão

positiva de si, à auto estima. E a auto estima será importante pois será este elemento

que nos permitirá ter de nós e gerar mesmo uma visão positiva de si que se pretende

que os outros partilhem.

Estas seis características servirão pois para a construção da identidade de acordo

com Tap que, de novo, nos diz que a construção da identidade não é algo meramente

individual ela é algo que se partilha com os outros e que ocorre atravessando a vida de

cada um de nós.

Neste sentido Campeau et all (1998: 88) afirmam que a identidade “se refina e

se precisa através de uma longa evolução pessoal que permite uma definição de si

integrando à vez os aspectos mais pessoais ao mesmo tempo que integra os aspectos

sociais e colectivos da nossa individualidade”. Assim parece-nos importante relevar o

facto de que a identidade se começa a construir no momento em que nascemos podendo

portanto desde logo dizer-se com os autores que a identidade”se realiza através de um

duplo processo, o da socialização e o da personalização” (ibidem). Entendemos ainda

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que a construção da identidade não termina na adolescência quando, de alguma forma,

se processa, de forma particularmente intensa, a personalização mas prossegue ao longo

de todo o tempo da nossa vida. E porque a identidade se vai construindo e

reconstruindo parece-nos indispensável dizer que a identidade se realiza não apenas

através de um duplo processo mas sim através de um triplo processo que engloba a

socialização, a personalização e a crise de identidade de que nos fala Erikson

(1968,1972) entre outros. Será sobre estes três processos que procuraremos de seguida

reflectir e ver como contribuem para a construção da identidade.

2.1. A socialização

Entendida a identidade como “fenómeno que emerge da dialéctica entre o

indivíduo e a sociedade” (Berger e Luckmann, 1991: 195) parece-nos importante ver

como é que cada um se torna em ser social e como se procede a essa interacção

dialéctica que permite a construção da identidade. Com efeito o indivíduo baseará a

construção da sua identidade e portanto do seu eu essencialmente na atribuição de

significado não apenas a si mas também ao outro pelo que nos parece ser possível dizer

que a socialização assenta nesta construção1.

No sentido de que nenhum de nós tem assegurado à partida a pertença a uma

1 Berger e Luckmann afirmam ainda que a construção da identidade enquanto processo dialéctico necessita que o indivíduo tenha acesso à compreensão da sociedade em que este se insere. Sociedade que é ao mesmo tempo realidade objectiva e subjectiva o que prefigura desde logo que o sujeito necessitará de estar de posse dos instrumentos que lhe permitem ter uma ideia destes aspectos. Tal só acontece porque neste processo dialéctico de construção e de compreensão da sociedade os sujeitos se vão servir de três instrumentos: a exteriorização, a objectivação e a interiorização. Por interiorização entende-se o momento que “constitui a base, primeiro da compreensão dos nossos semelhantes e, segundo, da apreensão do mundo como realidade significativa e social” (1991:151). A objectivação é apontada por Lipiansky como sendo o momento em que a criança se torna visível pra si própria dado que ela foi capaz “de se aperceber de si, a partir do exterior, como um objecto no espaço dos objectos” (1998 a:23) Alves-Pinto (1995:121) por sua vez diz-nos que o momento de exteriorização é aquele que permite ao “membro individual da sociedade exteriorizar o seu próprio ser no mundo social”.

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organização, a uma sociedade, Rocher (1989) afirma que nenhum de nós recebe à

nascença uma herança biológica que lhe permite conhecer e dominar os modelos

culturais da sociedade em que se vai inserir. Assim e de acordo com Erikson (1972:92)

“ao nascer o bébé abandona a permuta química do ventre materno pelo sistema de

permutas sociais da sua sociedade onde as suas capacidades em gradual aumento

encontram as oportunidades e limitações da sua cultura”.

O momento do nascimento marca, então o início de uma caminhada na

construção da identidade ou das múltiplas identidades de que cada um de nós disporá

ao longo da vida e do tempo. Será, pois necessário que cada um e todos aprendam “os

modelos da sua sociedade, os assimilem e os adoptem como regras de vida pessoais”

(Rocher, 1989:52) uma vez que "a criança torna-se membro da sociedade quando se

tenham criado níveis aceitáveis de congruência entre os significados atribuídos pela

criança aos acontecimentos e o atribuído pelos adultos, particularmente pelos adultos

que se encarregaram da sua socialização" (Alves-Pinto,1995:122).

Queiroz e Ziolkovski (1994:22) sobre o papel que os outros representam na

socialização das crianças e numa perspectiva interaccionista simbólica afirmam que "é

do ponto de vista e a partir da perspectiva do outro que o indivíduo se apercebe antes de

mais de si próprio" e que " os elementos teóricos mais interessantes aduzidos pelo

interaccionismo simbólico se reportam à análise das relações entre indivíduos e a

sociedade, concebidas como processo de produção recíproca. Esta análise repousa

sobre a socialização ou o 'tomar o papel do outro' (o que constitui um mecanismo

central), sobre a concepção de identidade (que reformula a noção de biografia), sobre a

renovação da noção de papel e sobre a concepção de grupos de referência" (ibid:37).

Este processo de reprodução recíproca em que a criança e a família (ou adultos

que a substituem) interagem uma com a outra em que ambos geração mais velha e

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geração mais jovem se encontram num processo de troca dialéctica permite-nos , com

Erikson que “é tão acertado dizer que os bébés controlam e criam as suas famílias,

como o inverso” (1972:96).

Este processo de aprendizagem dos modelos culturais de uma sociedade é ainda

no entender de Rocher (1991) sempre contingente uma vez que estes variam no tempo,

e no espaço, consoante a civilização, a classe social entre outros. A ideia que perpassa é

a de que existe uma construção que se vai (re)construindo ao longo do tempo do espaço

e que variará de acordo com a classe social de cada um em cada um dos momentos da

sua vida, com as novas tendência, as modas, com os fenómenos sociais novos que

emergem nas sociedades2.

Voltando no entanto à ideia da socialização como um dos processos de

construção da identidade diremos com Erikson que “é nos primeiros encontros que o

bébé humano se defronta com as principais modalidades da sua cultura. A mais simples

e mais remota modalidade é a de adquirir, não no sentido ‘vá e apanhe’ mas no de

receber e aceitar o que lhe é dado” (1972:99).

A criança estará assim pronta a receber tudo o que lhe é oferecido e aprende a

ver-se de acordo com o ponto de vista dos seus parceiros mais próximos ( os seus

outros significativos, que de acordo com Alves-Pinto (1995:122) "serão os "mediadores

para a criança entre o ambiente que a envolve e a interiorização que ela vai realizando"

e que como afirmam Berger e Luckmann (1991:151) para além da mediação entre o

2 Berger e Luckmann lembram-nos que o mundo social em que cada um de nós é introduzido não é um mundo social objectivo. Ele é um mundo subjectivo fruto da selecção que os outros significativos – que são impostos à criança - vão fazendo no decurso da mediação a que procedem entre a criança e o mundo. Assim para estes autores o mundo “social é ‘filtrado’ para o indivíduo” (1991:151) dando mesmo como exemplo o facto de uma criança das classes inferiores absorver “uma perspectiva de classe baixa a respeito do mundo social mas absorve esta com a coloração idiossincrática dada pelos seus pais” (ibidem). Podem esta perspectiva de classe inferior, por exemplo dar origem a estados de espírito completamente diferentes e mesmo opostos. Tal significa que para além de a criança da classe inferior ter uma perspectiva do mundo muito diferente da criança da classe alta ela poderá ter perspectivas completamente diversas daqueles que pertencem à mesma classe social.

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mundo e a criança ajudam a criança a modificar o mundo no decurso dessa mesma

mediação) e sobretudo através dos olhos da mãe, o que lhes permitirá de certa forma

estar face ao grande mecanismo de socialização da criança (Queiroz e

Ziolkovski,1994), o “role taking” de que nos fala Mead (1934).

A família – que a criança tem de aceitar “como um conjunto predefinido de

outros significantes (...) sem possibilidades de optar por outro arranjo” (Berger e

Luckmann, 1991:154) – será então um papel preponderante uma vez que “ a família é o

primeiro lugar de aprendizagem das identificações e da apropriação das identidades

múltiplas, dado que a criança aprende múltiplos ‘nós’, evocando o nome de família ou

situando-se no ‘concerto’ das posições entre irmãos e irmãs. Mas ao mesmo tempo

aprende a manifestar as suas próprias condutas” (Tap, 1998:67).

Uma vez que a criança não dispõe de escolha no que respeita aos outros

significativos será a eles e apenas a eles que se poderá identificar. A criança não

interioriza o mundo dos outros significativos como sendo um mundo entre outros, mas

como "o único mundo existente e concebível, o mundo tout court" (Berger e

Luckmann, 1991:154) embora possa como afirma Erikson (1972:53), por força das

muitas oportunidades que tem dentro da família, “identificar-se mais ou menos

experimentalmente, com pessoas reais ou fictícias de um ou outro sexo, e com hábitos,

características, ocupações e ideias”.

A família será pois a geração mais velha que tem várias responsabilidades para

com o pequeno ser que procura introduzir na sociedade e transformar em ser social até

porque como afirmam Berger e Luckmann nenhum de nós “nasce membro da

sociedade” cada um “nasce com predisposição para a sociabilidade e torna-se membro

da sociedade” (1991:149). Esta responsabilidade estende-se portanto à construção da

identidade pelo que Erikson afirma que uma das responsabilidades da geração mais

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velha “consiste em fornecer aqueles ideais poderosos e convincentes que devem

anteceder a formação da identidade na geração seguinte” (1972:28) até porque ainda de

acordo com o autor é na infância que adquirimos “a base moral da nossa identidade

[pelo que] somente uma ética adulta pode garantir à geração seguinte uma oportunidade

idêntica de conhecer, por experiência própria, o ciclo completo de humanidade. E só

isso permite ao indivíduo transcender a sua identidade – tornar-se mais

verdadeiramente individual que nunca e , ao mesmo tempo, situar-se para além de toda

a individualidade” (ibid:42).

E é nesta capacidade de garantir à geração mais jovem a oportunidade de

conhecer por si o ciclo da humanidade que a criança vai tentar assumir o papel do

outro, de forma natural, espontânea, interiorizando valores, atitudes e sobretudo, as

necessidades do outro (Queiroz e Ziolkovski,1994:23).

Este processo que se desenvolve em diferentes fases e condições parece

começar com as primeiras assunções de papel que dizem respeito aos "outros

significativos" e representam as pessoas fisicamente e afectivamente próximas. A

criança desenvolve assim a sua personalidade de acordo “com uma escala

predeterminada na prontidão do organismo humano para ser impelido na direcção de

um círculo cada vez mais amplo de indivíduos e de instituições significantes, ao mesmo

tempo que está cônscio da existência desse círculo e pronto para a interacção” (Erikson,

1972:92)..

Ultrapassadas as grandes crises iniciais – separação da mãe, a divisão interna e

o fim da infância - a criança estará em posição de começar a utilizar o Eu pois aprendeu

a conhecer e a dominar o corpo o que na constituição da identidade tem um lugar muito

importante “ (Lipiansky, 1998 a:23) uma vez que através do processo de apropriação a

criança “incorpora a aparência visual e fá-la coincidir com a experiência interna do seu

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corpo (...). É no momento em que esta fusão se realiza que o uso do ‘eu’ se torna

habitual no discurso da criança, marcando a primeira emergência verdadeira do

sentimento de identidade” (ibidem). A criança assume então o seu papel, a sua

localização social, é chegado o momento em que ao ser-lhe atribuída uma identidade

lhe é também atribuído um lugar específico no mundo social. Neste sentido Berger e

Luckmann afirmam que a identidade “é definida, em termos objectivos, como

localização num certo mundo e só pode ser apropriada ao nível subjectivo juntamente

com este mundo” (1991:152).

Estaremos perante um dos elementos fundamentais de que nos fala Mead (1934)

quando assistimos à reconstrução da perspectiva do outro, assumindo as atitudes do seu

grupo de pertença e través disso construir uma “espécie de eu pleno” (Mead, 1934:155).

A partir do momento em que a criança utiliza o “eu”, em que é marcada pela

emergência do verdadeiro sentimento de identidade, começa a reconhecer que existem

outros para além daqueles que constituem o grupo primário ou os outros significativos.

A criança descobre, portanto, que existem outros que ela pode utilizar na sua

assumpção de papéis. Ao estender as suas assumpções de papéis a outros parceiros

formam finalmente uma generalização de atitudes e expectativas do conjunto do grupo.

Logo que todos os papéis se organizam num todo consistente e que o indivíduo se

apercebe, não só do papel dos outros mas também estará em condições de aprofundar a

sua participação no jogo social. Ela acede, assim, ao "outro generalizado que, de acordo

com Mead, corresponde à comunidade organizada ou grupo social que fornece ao

indivíduo a sua unidade. Através do outro generalizado o indivíduo passa a associar as

expectativas que são feitas sobre as suas atitudes, sobre as reacções adequadas a

determinada situação, não apenas aos outros concretos que conhece mas à generalidade

dos outros com que se possa cruzar., A atitude do eu generalizado será a atitude da

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comunidade enquanto todo. (Mead , 1934:154).

A criança ultrapassará então a fase da confiança3 que termina quando emerge a

capacidade de generalizar o outro. Esta fase termina quando o conceito do outro

generalizado (e tudo o que o acompanha) foi estabelecido na consciência do indivíduo.

Neste momento é um membro efectivo da sociedade e possui subjectivamente uma

personalidade e um mundo. Mas esta interiorização da sociedade, da identidade e da

realidade não se faz para sempre." (Berger e Luckmann, 1991:157). Berger e

Luckmann disto mesmo nos avisam quando afirmam que “uma vez socializados todos

os homens são potenciais ‘traidores de si mesmos’” (1991:190) querendo significar esta

possibilidade do refluir constante e das constantes possíveis (re)construções de

identidade.

A conquista seguinte da criança, ultrapassada que foi a fase da confiança, é a da

autonomia. A criança partirá, pois, para a conquista da sua autonomia relativa em

relação aos parceiros (Queiroz e Ziolkovski, 1994:39).

O indivíduo que age num contexto já estabelecido, persegue os seus próprios

fins ou objectivos. Reconstrói os papéis dos outros e pode mesmo identificar-se com

alguns deles, mas fá-lo de forma selectiva. Pode perceber a sua interacção com um

parceiro do ponto de vista de uma terceira pessoa, ou ainda do ponto de vista de uma

norma generalizada.

A criança encontrar-se-á, então, numa fase em que interioriza “submundos

institucionais ou baseados em instituições” (Berger e Luckmann, 1991:145). Os adultos

que podem ter significado deixam de ser apenas aqueles que nos são impostos por

3 Erikson diz-nos que por confiança se entende “uma segurança íntima na conduta dos outros, assim como um sentido fundamental da boa conceituação própria” (1972:97) acrescentando ainda que “as mães geram um sentimento de confiança nos filhos que lhes permite formar a base de um componente de sentido de identidade, que mais tarde, combinará os sentimentos de estar ‘certo’, de ser uma pessoa distinta e de se tornar o que outras pessoas confiam que ela virá a ser” (ibid:104)

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serem família, os que rodeiam a criança passam a ser vistos como contingentes"

exigindo "níveis menos aprofundados de identificação" permitindo-se, por isso que a

pessoa distinga "os papéis, as atitudes e as formas de estar relevantes para a sua

participação" (ibidem) nas organizações e na sociedade.

As crianças começam a procurar e procuram novas identificações com novos

outros. A identidade estabelecida no final da fase da confiança pode ser nesta fase posta

em causa. A criança poderá enfrentar uma crise de identidade – a qual trataremos em

outro momento deste trabalho – que poderá pôr em causa a “coerência ou a

compatibilidade entre interiorizações realizadas ao longo da socialização primária” e

aquelas que irá efectuar ao longo dos diferentes momentos da sua socialização

secundária (ibidem).

É nesta fase da socialização, e nas que se irão seguir ao longo da vida o mesmo

irá acontecendo, que a criança descobre que nem sempre fala a mesma língua dos

outros, que necessita de aprender a comunicar de novo numa língua que para si é

estranha. Isto é a criança descobre que algumas senão muitas das suas regras sagradas

apreendidas na socialização primária não o são para os outros. Tal facto obriga-a a uma

reconstrução das identificações e das interiorizações feitas anteriormente. No entanto

estas novas interiorizações não têm, como afirmam Berger e Luckmann, como base o

nada, elas baseiam-se nas interiorizações anteriores dando origem a processos

complexos de identificação. Os autores dão como exemplo para esta construção o da

aprendizagem de uma língua estrangeira, afirmam mesmo que “aprende-se uma

segunda língua construindo sobre a realidade indiscutível da ‘nossa língua materna’”

(1991:163). Na realidade o processo de aprendizagem de qualquer língua estrangeira

baseia-se no conhecimento da língua materna à qual se recorre recorrentemente no

sentido de se poder compreender o que se está a passar. Só depois de algum tempo é

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possível deixar de fazer as traduções/retroversões constantes para se passar a pensar na

língua que se aprendeu. Tal parece acontecer com a criança que saída da socialização

primária com um sentido de identidade que se baseia na confiança é agora na fase da

socialização secundária confrontada com a necessidade de proceder a novas

interiorizações.

De acordo com Erikson a criança começará por ultrapassar a sua “fase edipiana”

(1972:121) na relação de companheirismo que estabelece com os outros.

A criança liberta-se assim da infância, toma iniciativas e essa tomada de

iniciativas permite-lhe um “desenvolvimento ulterior da identidade” (ibid:122) o que

mais tarde lhe proporcionará a “realização plena da gama de capacidades” (ibidem) que

ela própria detém ou vai construindo e desenvolvendo.

A criança joga4 e nos jogos que faz com os seus colegas e amigos vai

construindo novos processos de identificação subjectiva com funções e normas

adequadas às personagens que constrói.

É a hora da entrada na escola, é a hora do companheirismo com os seus pares,

do convívio com os adultos professores. É a hora de descobrir que estar com os outros

em interacção não implica o investimento afectivo que implicou a socialização 4 O jogo será, de acordo com Marc e Picard (s/d:71/72), um elemento importante na construção do próprio actor. Estes autores afirmam que o jogo é "uma estrutura necessária à formação do Eu". E é-o porque através dele a criança aprenderá "a assumir papéis a ocupar o lugar de outros indivíduos reais ou imaginários e a reagir como eles; aprende também a adaptar-se a eles numa conversa onde ocupa sucessivamente o lugar deles e o seu" (ibidem). Será portanto através do jogo que a criança, o actor, construirá a consciência de si e do outro. Em ambos os casos a capacidade de representar o papel do outro será essencial. Segundo Friedberg (1995:357) o jogo é um "mecanismo fundamental da estruturação das relações de poder e , portanto, de cooperação no seio das organizações". Assim e, ainda de acordo com este autor, " o jogo é muito mais do que uma imagem. É um mecanismo concreto que permite estruturar a acção colectiva, conciliando a liberdade e a restrição." (ibidem).Ou como Crozier e Friedberg (1977:97) afirmam é graças ao jogo que os actores estruturam as suas relações de poder mantendo, no entanto a sua liberdade. Trognon afirma que o jogo é um processo complexo, que é utilizado por cada um dos actores para construir a realidade social em que se insere pelo que estamos de acordo com Crozier e Fiedberg quando afirmam que o "jogo é um constructo humano" (1977:98) que proporciona uma construção do eu, uma estruturação do tempo, serve para para seleccionar os parceiros com os quais interagimos, permite o exercício das margens de liberdade de cada um de nós, permite encarar a organização como o campo privilegiado das trocas entre parceiros e o local por excelência em que os actores desenham e põem em prática os significados que se atribuem, que lhes são atribuidos e que atribuem aos outros e aos contextos.

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primária. A criança entra, assim, num tempo e num espaço em que se liga “aos seus

professores e aos pais de outras crianças e quer observar e imitar pessoas,

representando ocupações que pode entender: bombeiros, polícias, jardineiros,

mecânicos...” (ibid:123).

É o tempo em que o mundo passa a albergar a casa e a escola e as casas dos

amigos, em que aquilo que a criança aprende passa a ser um mundo para além do

mundo tout court dos pais. É, como afirma Erikson, “neste ponto que a sociedade maior

se torna significativa para a criança ao admiti-la em papéis preparatórios para a

realidade” (1972:125).

A escola funcionará então como o espaço do desafio, da descoberta do que pode

ou não pode fazer. A escola é o tempo em que as crianças descobrem “que podem

realizar coisas em que, por si mesmas, nunca teriam pensado, coisas que devem a sua

atracção ao próprio facto de não serem produto de jogo e de fantasia mas da realidade,

da utilidade e da lógica, coisas que assim proporcionam um sentimento simbólico de

participação no mundo real dos adultos” (ibid:127).

E porque falamos de socialização diríamos que a entrada na escola, a

capacidade de reconhecer o outro generalizado, não são senão o princípio da

socialização secundária. A socialização secundária não se termina no momento em que

a criança abandona a escola, ela transformar-se-á em outros tipos de socialização,

nomeadamente a socialização profissional que "se desdobra em várias etapas" (Alves-

Pinto,1995:124).

Campeau et all na senda de Berger e Luckmann afirmam que a socialização

secundária "designa todo o processo ulterior pelo qual um indivíduo já socializado se

insere em novos sectores da sociedade" (1998:150).

Assim, de cada vez que o agora adulto integra uma nova organização ou que

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surgem mudanças naquela que integra, ver-se-á confrontado com "processos sucessivos

de socialização em que, por vezes, há redefinições das suas identidades profissionais"

(ibidem). Estes processos sucessivos permitirão ao actor "aprender a viver com

constrangimentos" tendo para tal de "utilizar as suas capacidades imaginativas"

(ibid:128) para definir as interacções a realizar com os outros e o ou os papéis que

desempenhará.

Neste sentido e ainda tendo em conta o processo da socialização enquanto

instrumento de construção de identidade parece-nos ser possível dizer com Erikson

(1972:48) que para que o processo de construção possa ser bem sucedido é necessário

que a criança “ao crescer possa derivar um sentido vitalizador da realidade da

consciência de que o seu modo individual de dominar a experiência, a síntese do seu

ego, é uma variante bem sucedida de uma identidade grupal e está de acordo com o seu

espaço-tempo e plano vital”, e que haja, no processo de socialização, uma simetria

entre a identidade atribuída pela sociedade e a real identidade subjectiva de cada actor.

E se por um lado é importante que a criança seja capaz de usar o Eu, de

reconhecer-se nele será também importante para si, e para uma equilibrada construção

identitária, que os outros a percepcionem enquanto eu atribuído e reconstruído porque

recorrendo de novo a Erikson “o sentimento consciente de se possuir uma identidade

pessoal baseia-se em duas observações simultâneas: a percepção da uniformidade e

continuidade da existência pessoal no tempo e no espaço; a percepção do facto de que

os outros reconhecem essa uniformidade e continuidade da pessoa” (1972:49).

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2.2. A personalização

Para que a construção da identidade possa acontecer de forma equilibrada não

basta o processo de socialização. Como já anteriormente referimos a identidade

constrói-se no processo dialéctico socialização/personalização/crise de identidade.

Tendo no ponto imediatamente anterior procurado compreender o processo

seguido durante a socialização, procuraremos, de seguida, ver como a personalização

pode contribuir para a construção da identidade de cada um.

Falamos na maior parte do tempo da criança que se socializa isto é que “procura

a sua realização enquanto pessoa” (Tap,1996: 56). Mas na infância, e particularmente

durante a socialização primária que culmina na organização do outro generalizado, as

identificações ocorrem com os outros que aconteceram estar no nosso caminho. Não

escolhemos o pai e a mãe que temos. E é com os que aconteceram ser os nossos que nos

vamos identificar na primeira etapa da construção da nossa identidade. Já a partir da

adolescência, vamos assistir à tentativa de descolar das figuras que na infância

dominaram de forma predominante o campo das nossas identificações e à procura de

outros significativos. Com efeito o adolescente e depois o jovem procura definir “a sua

identidade real e ideal, construir uma representação de si próprio por comparação com

os outros, a partir de imagens que esses lhe devolvem a si mesmo” (ibid:62). E nesta

fase o adolescente e o jovem terá de fazer escolhas. Os outros significativos, nesta fase

já não são dados à partida mas têm de ser escolhidos, de forma mais ou menos

consciente. Procuraremos agora compreender como cada um e todos nessa caminhada

têm iniciativas, se afirmam, fazem escolhas, enfim como é que cada um constrói a sua

identidade através também do processo de personalização.

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Quando falamos de personalização falamos do processo que cada um põe em

prática quando rejeita selectivamente “certos modelos, porque o indivíduo está em

posição de detectar lacunas ou fraquezas, e de escolher por si próprio os valores e os

modelos aos quais quer aderir” (Campeau et all, 1998:87); ou como diz Tap (1996:71)

falamos da personalização como a “procura de um poder, de um domínio dos objectos,

de si mesmo e do outro. [do] esforço para se significar e criar valores. [de] um processo

de diferenciação crítica de superação das alienações e das incapacidades, de

objectivação das dependências e dos conflitos. [da] tentativa constantemente renovada

de realização de potencialidades, de unificação do EU, de domínio dos possíveis e de

harmonização das aspirações num programa de vida. [de] coordenação dos fins e dos

meios, dos ideais e das capacidades reais e actuais do Eu e dos outros, em função das

situações e das instituições”.

Falamos de personalização como a tentativa de “avaliar e significar os actos

próprios, procurar a unificação em função das experiências que (os actores) realizaram

ou memorizaram, dos projectos que formaram ou abandonaram nos diferentes tempos,

circunstâncias e lugares da sua socialização” (Baubion-Broye, 1998:10).

O processo de personalização acontece, portanto, porque os sujeitos se

encontram rodeados por outros sujeitos que com eles interagem, jogam, comunicam. È

o tempo e o espaço em que cada um testa as suas capacidades de se relacionar com os

outros de provar que a sua identidade para si é simétrica da identidade para os outros.

A personalização será assim, tal como a construção da identidade um processo

dinâmico que ocorrerá ao longo da vida de cada um em cada momento de confronto

com os outros em cada momento de construção de novos projectos pessoais.

A personalização poderá, pois, ser entendida como o processo que quer o adulto

quer o adolescente vão utilizar para se movimentarem por “múltiplas barreiras sociais,

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[por] escolher as vias susceptíveis de salvaguardar o máximo de potencialidades

pessoais, no domínio profissional e relacional” (Tap, 1996:64).

Porque o jovem finalmente no processo de socialização foi capaz de formar uma

generalização de atitudes e de expectativas, de interiorizar submundos institucionais ou

baseados em instituições (Alves-Pinto, 1995), ver-se-á confrontado com um conjunto

de interacções com os outros e com o meio que o desafiam.

O tempo da personalização é o tempo da tentativa da “construção de novos

objectivos, de valores finalizados, de projectos de transformação de si mesmo, de

mudança nas relações interpessoais e nas regras ou nas instituições sociais e culturais”

(Tap, 1996:72).

É o tempo e o espaço em que os actores adultos integrados no mundo do

trabalho e portanto exercendo uma actividade profissional procuram a sua própria forma

de a exercer e muitas vezes procuram contribuir para a modificar (cf. Baubion-Broye,

1998:10). É ainda Tap que nos diz que este é o tempo da vivência dramática das

relações e é na rede das mesmas que “a criança, e sobretudo o adolescente, vão aceder

às relações sociais, e aí encontrar posições e papéis, e aí construir as categorias sociais

de pertença e de referência do ‘Nós’ e dos outros” (ibid:94).

O jovem, o adolescente vai ser confrontado com o facto de ter de aprender a

viver em meios diferentes e em grupos diferentes daqueles que eram o seu grupo

primário, vai ter de aprender a enfrentar os conflitos que inevitavelmente surgirão

nesses meios e grupos e perceber que existem “limitações operadas nas suas

possibilidades de personalização, e da necessidade eventual de agir sobre os meios de

vida, a fim de preservar as aspirações individuais e colectivas” (ibidem).

Face a estes confrontos e aos conflitos que surgem da e na relação com os outros

e à consciência das suas limitações, o jovem poderá optar por um de três caminhos: o da

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submissão, o da clivagem ou o da superação. Qualquer que seja a sua opção ela terá

reflexos na construção da sua identidade.

Assim, ao optar pelo caminho da submissão o jovem escolherá o caminho de se

conformar coma “escolha de conduta maioritária” (ibid:95) o que implica que se adapte

às situações que vive, o que poderá leva-lo a uma assimetria entre a identidade para si e

a identidade para os outros ou não. Se pelo contrário optar pelo caminho da clivagem

então entrará pelo caminho da desadaptação da sua conduta o que pode causar o

“bloqueio, a revolta ou a fuga” (ibidem). Nesta opção seguramente não existirá simetria

entre as duas formas de identidade o que poderá fazer com que o jovem ou mostre aos

outros uma identidade que estará em oposição com a que lhe foi pelos outros atribuída.

A terceira hipótese que lhe resta é a da superação. Feita a opção, consciente ou

inconscientemente, aliás como nas duas opções anteriores, deste caminho o jovem

procurará uma “solução que integre os elementos contraditórios” (ibidem) que a

interacção com os outros, com o meio, com os grupos lhe provocam. Esta poderá ser a

opção que em nossa perspectiva mais próxima esteja da convergência entre a identidade

construída e a atribuída.

Qualquer uma das três opções implica condutas5 que de acordo com Tap têm

como característica “o facto de ser resposta, por um lado, a uma desadaptação

provocada pela situação (...) e por outro, aos problemas colocados ao sujeito-actor pela

divisão entre as instituições” (1996:95).

A capacidade de superar situações de construir novos objectivos, projectos de

transformação de si, será um dos grandes desafios que se colocam à pessoa e que lhe

5 Tap diz-nos que “a estrutura de uma conduta não depende apenas das pressões externas para a conformidade, mas depende também da intervenção de processos internos que visam: esforço de unificação (...) (função da personalidade); realização de uma auto imagem (...) (processo de identificação); procura de significação, de valores e de ideais (...) (construção dos actos da pessoa)” (1996:95)

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permitem construir e (re)construir a sua identidade. E esta capacidade de superar

situações, de construir novos projectos, este desafio importante que se coloca a cda um e

a todos nós poderão ser vistos como “um conjunto de processos activos de construção

da pessoa, nesta ‘irredutível singularidade do universo dos semelhantes’” (Baubion-

Broye e Hajjar, 1998:18).

Parece-nos, portanto, ser possível afirmar com Tap que os processos de

construção da pessoa e da sua identidade “estão constantemente sob a influência de

regulações sociais cuja pluralidade, oposições e contradições internas “ (ibid:96) se

revelam aos actores como “fontes de interrogações de invenções” (ibidem) ou como

fontes de alienação ou de conformidade.

O processo de alienação que poderá mesmo levar à despersonalização e que de

acordo com Mounier (1976:45) não se confina apenas à “impersonalidade, dispersão,

indiferença que tende para o nivelamento” poderá no entanto ser combatido e

ultrapassado se encaramos o processo de personalização como o que permite ao jovem

construir reacções que fazem face às contradições “entre as instituições e às clivagens

ou compartimentação das condutas e representações do sujeito” (Tap, 1996:119).

E entendemos que este processo de alienação de despersonalização “atinge a

própria vida, abate os seus impulsos, a desdobra em espécies de exemplares

indefinidamente repetidos, degenera as descobertas em automatismos, esconde a

audácia vital em formações de segurança donde a própria invenção se retira “ (Mounier,

1976:45). Processo de alienação, de despersonalização que “acaba por aniquilar a vida

social e a vida do espírito” (ibidem) mas que ao ser combatido, ao ser ultrapassado

permitirá ao jovem, ao adulto não se “confundir com um ramo, para se fazer esquecer

na mobilidade vegetal” (ibid:21) e portanto construir-se enquanto ser que está “sempre

em movimento de … e tem em vista…” ajudando-os ainda a viver uma vida e a

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construir uma identidade feita de “desejos, esperanças, votos, de compromissos, de

juramentos, de medos e de tensões” (Baubion-Broye e Hajjar, 1998:34)

A personalização que poderá, então, ser definida como: a procura do sentido e da

significação; a procura da autonomia; a procura do poder; a hierarquização de novos

valores e projectos; o realizar para se realizar, permitirá ao jovem adolescente “construir

um objectivo temporal para si e/ou para os outros, (...) delinear um plano de vida, pôr

em jogo um sistema de projectos” (ibid:121). Sistema este de projectos que permitirá a

libertação das sujeições, o desenvolvimento das potencialidades, o alargar do campo das

possibilidades, enfim permitirá a “harmonização entre as condições de existência e de

interacção, e os processos e acontecimentos específicos da história individual” (ibid:79)

o que nos permitirá dizer que a personalização e as condutas ou actividades6 que lhe

correspondem traduzem “uma interioridade activa do sujeito” (Baubion-Broye e Hajjar,

1998:18).

Finalmente parece-nos ser ainda possível dizer com Tap que o processo de

“personalização é simultaneamente social e individual, imaginário e real, libertador e

alienante” (ibid:124) enfim paradoxal. Através dele o jovem, depois de ter avaliado a

identidade construída num tempo de socialização – da qual a personalização é

inseparável – será capaz de construir uma “harmonização de condutas individuais e

relacionais com as instituições, por intermédio de um projecto de transformação social e

cultural e num jogo de relações e de conexões entre actores “ (ibid:128).

6 Baubion-Broye e Hajjar, (1998:31) ao falarem das actividades de personalização recorrem a Malrieu definindo as mesmas como “o esforço que os indivíduos, mais ou menos conscientes, sustentados ou não pelos seus desejos, desenvolvem para ‘reestruturar os sistemas de atitudes e os quadros de referências elaborados nas práticas da educação’”. Ainda segundo os autores as actividades de personalização tomam corpo através da “reacção aos processos de alienação inerentes às contradições das instituições, às quais o sujeito está exposto e é confrontado por via das suas relações interpessoais e as suas diversas pertenças sociais” (ibidem).

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Será pois através da personalização que o adulto ou o jovem terá atingido um

estado de convergência entre a identidade para si e a identidade para os outros que o

ajudará a reconhecer-se enquanto tal ao longo do tempo, lhe permitirá ser singular mas

ao mesmo tempo partilhado.

2.3. Crise de identidade

O tempo e o espaço da personalização são um tempo e um espaço em que o

jovem acabado de sair da socialização primária se vê confrontado com mais uma crise

que o fará continuar a construir a sua identidade.

Como anteriormente dissemos as crises de identidade são mais um dos

elementos que permitem a construção da identidade de cada um.

Mas a crise de identidade ou identitária não acontece apenas neste momento da

saída da socialização primária. Para Erikson (1972:85-86) cada um de nós enfrenta

várias crises , crises estas que se iniciam com a separação da mãe, seguida da crise

vivida por cada criança quando se vê confrontada com a distinção entre o bem e o mal

ou até aquela que todas as crianças enfrentam no fim da infância. Em sua opinião as

crianças e os jovens só se tornam verdadeiramente pessoas de pleno direito quando

vivida a “fase do desenvolvimento caracterizada por uma diversidade de mudanças no

crescimento físico, no amadurecimento genital e na consciência social” (ibid:86).

Campeau et all (1998:88) dizem-nos que a crise surge “logo que o indivíduo

atinge uma etapa em que deve reorganizar a sua vida, ou em que deve escolher entre as

vias em que se repartem todas as possibilidades de crescimento pessoal ou social” o que

nos reenvia de imediato para a ideia de que a crise de identidade não acontece apenas

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na infância ou mesmo só na adolescência mas que ocorrerão em cada momento de

passagem, que acontecem trazer consigo momentos particularmente intensos de

reflexão de confronto da vida de cada um. Será pois assim possível recordar com Dubar

(2001) que, da mesma forma que a construção da identidade é um processo dinâmico

que nunca está terminado que vai evoluindo, ou que, tal como o processo de

socialização que nunca estará terminado uma vez que em quaquer situação nova a que o

sujeito seja exposto haverá a necessidade de este se socializar de novo, as crises de

identidade “ estão no coração da identidade pessoal, sempre frágil e inacabada que é a

construção de um sujeito mergulhado numa forma social de dominante ‘societária’”

(2000:163) e que elas são”o pôr à prova da gestão identitária que os indivíduos têm de

fazer de si mesmos e dos outros, em todos os aspectos da vida social e em todas as

esferas da existência pessoal” (ibid:56).

Temos, neste ponto, vindo a falar de crises de identidade e da sua

inevitabilidade na vida e na construção de cada um de nós, tendo apenas recordado que

o significado de crise compagina a dimensão de perigo e a dimensão de oportunidade.

Dubar (2001:9-10 e 170) explicita a dimensão de perigo dizendo que a crise significará

ou resultará de

- uma fase difícil atravessada por um grupo ou um indivíduo;

- uma ruptura do equilíbrio entre diversos componentes;

- perturbações das relações relativamente estabilizadas entre os

elementos estruturantes da actividade;

- choques biográficos ligados a processos sociais que implicam , ao

mesmo tempo, dificuldades materiais, um pôr em causa, de forma

mais ou menos radical de um modelo identitário, de um sistema de

crenças socialmente construídas, especialmente definições de si

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próprio que se tornaram insuportáveis para os outros, ilegítimas aos

seis próprios olhos e negativas para todos.

Enquanto que para Erikson (1972:96) a palavra crise é usada “num sentido de

desenvolvimento para designar não uma ameaça de catástrofe, mas um ponto decisivo,

um período crucial de crescente vulnerabilidade e potencial”. Potencial de novas

oportunidades. Sendo a crise, portanto, um estado que se multiplica em todas as

existências e idades e que pode ter origens em factos tão diversos quanto o insucesso

escolar; as separações; os divórcios; as dificuldades da vida privada; os dramas do

desemprego; as mutações forçadas; a entrada na pré-reforma forçada; as decepções

políticas; o abandono de crenças; o pôr em questão convicções anteriores, cada vez que

ela acontece estaremos perante momentos de grandes ou até radicais alterações ou

mudanças no sujeito. Tal ocorrência de mudança parece não ser um privilégio da

juventude. A mudança7, e por consequência as crises ou crise que delas decorrem

acontecem em todas as etapas da vida do indivíduo em que o equilíbrio anterior foi

quebrado. Podem ser vistas, no entender de Dubar, como algo que faz parte do

crescimento de cada um até porque “cada vez mais as pessoas na idade adulta são

confrontadas com a necessidade de mudar (...). Ora toda a mudança é geradora de

‘pequenas crises’ ” (2001:166). Umas vezes as crises serão menores, outras vezes

maiores.

Erikson ao falar do tempo da adolescência e da construção da identidade, por

sua vez, alerta-nos para o facto de a formação da identidade ser “crítica” nos jovens

7 Dubar (2001:173) alerta-nos ainda para o facto de que “toda a mudança de configuração identitária passa por [uma] crise que acompanha geralmente os ‘momentos cruciais’ da existência, das mudanças de estatuto, dos ‘acontecimentos maiores’ da história pessoal”. A mudança implica assim “a reconstrução de uma nova identidade pessoal diferente da antiga não apenas porque o estatuto muda ‘objectivamente’ mas porque o sujeito deve gerir ‘subjectivamente’ novas relações com os outros e, talvez, sobretudo a continuidade entre o seu passado, o seu presente e o seu futuro”.

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(1972:28) e que é apenas com a adolescência que “o indivíduo desenvolve os requisitos

preliminares de crescimento fisiológico, amadurecimento mental e responsabilidade

social para experimentar e atravessar a crise de identidade” (ibid:90) ou como afirma

Dubar (2001:178) a adolescência é a saída da infância, é a fase da “gestão das suas

identificações, aquelas que os outros fazem de si e aquelas que [cada um] faz de si

próprio, [é a fase] mais delicada: é necessário construir as suas próprias referências

identitárias tentando realizá-las na prática e faze-las reconhecer [pelos outros]”. É

talvez por isso que Erikson ao apresentar o diagrama que respeita às diferentes fases

que cada indivíduo percorre na construção da sua identidade e que formaliza uma

progressão temporal nessa mesma construção, afirma que este “expressa um certo

número de relações fundamentais que existem entre os componentes, assim como

alguns factos fundamentais para cada um” sendo cada fase descrita como o “encontro

com o meio, o desenvolvimento de cada um e a crise resultante desse encontro”

(1972:93) relembrando ainda que é na fase da adolescência que o jovem “mais

fervorosamente procura homens e ideias em que possa ter fé, a que se possa agarar, o

que também significa homens e ideias em cujo serviço pareça valer a pena, seja digno

de confiança” procurando portanto o adolescente “uma oportunidade de decidir, com

livre assentimento, sobre um dos rumos acessíveis ou inevitáveis de dever e serviço”

(ibid:129). Parece-nos ser , portanto, possível dizer que mais uma vez Erikson ao falar

da diferentes etapas de construção de identidade, das respectivas crises e da

adolescência em particular nos reenvia para o facto de muitas vezes estas crises de

identidade terem como base a fragilidade e mesmo a conflitualidade existente nas

relações que se estabelecem entre os elementos da sociedade ou de um grupo. Dubar ao

referir as crises relacionais chama-nos a atenção para o facto de estas muitas vezes

tocarem “no que há de mais profundo e de mais íntimo na relação com o mundo, com

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os outros e consigo próprio, o que é também o mais obscuro. Porque o Eu assim

agredido, por vezes humilhado faz sofrer, sente-se órfão das suas identificações

passadas, ferido nas suas crenças incorporadas, envergonhado muitas vezes dos

sentimentos dos outros com relação a si próprio” (2001:167).

Os momentos de crise de identidade serão, assim, momentos de grande

conflitualidade interior do próprio sujeito. Serão, portanto, momentos que podem

perturbar “a imagem de si, a auto estima, a própria definição que a pessoa dá de si

própria” (ibidem) o que pode prefigurar tempos e espaços de grandes dúvidas, de

descontruções. No entanto, parece-nos que apesar de e por causa de todas as agressões

que a identidade e que o sujeito sofrem a cada momento “as crises identitárias

engendram aquilo que se chama ‘o voltar-se para si’” (ibid:168).

Este voltar-se para si fruto das agressões que a identidade e o sujeito sofrem

poderá ter a ver com o facto de que, como Teixeira afirma, “qualquer relação encerra

riscos de frustação. E que a frustração pode ser um convite à demissão, à desistência, ao

abandono do caminho relacional empreendido” (1993: 444) pode ainda ser visto como

o processo que permite que o indivíduo reflua para “o ser-para-si, perdendo-se num

individualismo que contraria a sua essência de ser pessoal. E isto acontecerá tanto mais

quanto o homem se sentir ameaçado na sua própria segurança pelo mundo exterior,

pelos outros” (ibid: 445).

Este voltar-se para si poderá ser visto como o tempo e o espaço em que o sujeito

se olha, se procura e procura encontrar aquilo que são as suas raízes, as suas mais

primitivas formas de construção.

É o espaço e o tempo de voltar atrás, muitas vezes revisitar mesmo o tempo da

primeira socialização, das primeiras aprendizagens sociais.

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É o tempo e o espaço do mergulho nos primórdios de cada um, é o tempo de

voltar ao Eu/Nós em que o grupo primário, a mãe, o ajudou a construir-se, a encontrar-

se enquanto identidade para si e para os outros.

E se o tempo e o espaço da crise pode ser o tempo e o espaço do encontro

consigo próprio, com um Eu renovado, diferente, da transformação de si, este tempo e

este espaço pode, por vezes, ser longo e muitas vezes penoso, até porque no tempo que

medeia entre “o abandono da ‘velha identidade’ isto é da renúncia de uma forma

identitária protectora (...) e a construção lenta e penosa de uma ‘nova identidade’ (...)

existe um vazio, um ‘no man’s land de sentido’ onde literalmente o Eu não é nada”

(Dubar, 2001:171).

Será no tempo e no espaço da crise, no tempo e no espaço em que existe o “no

man’s land” que o sujeito em (re)construção de identidade arrisca “uma queda, uma

depressão, um suicídio, uma crise aguda” que apenas poderão ser ultrapassadas desde

que “as relações entre a ’velha’ identidade e a ‘nova’ identidade”(ibid:172) estejam

clarificadas.

Por último diremos que a identidade é algo que está em constante construção,

que nunca está acabada e que exactamente porque é um edifício em constante

construção, remodelação, mudança , os sujeitos “atravessam obrigatoriamente crises de

identidade ligadas a ‘fissuras internas do eu’” (Dubar1997:104). Mas se poderia parecer

que este é um tempo e um espaço – o da crise – de sofrimento apenas, tudo depende da

pessoa encontrar uma saída que lhe dê um novo equilíbrio dinâmico. Neste caso

diremos com Erikson (1972:91) que “cada ser humano ressurge de cada crise com um

sentimento maior de unidade interior, um aumento de bom juízo e um incremento na

capacidade de ‘agir bem’, de acordo com os seus próprios padrões e aqueles padrões

adoptados pelas pessoas que são significativos para eles” deixando, assim, a ideia de

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que o tempo da crise de identidade é o tempo e o espaço do crescimento, da procura da

coerência, da continuidade de si, da representação estruturada ou estável que qualquer

um tem de si próprio.

3. Os pólos de identidade

Mas o tempo da crise, do crescimento é um tempo em que a identidade para si e

a identidade para os outros, que afinal constituem o todo a que chamamos de

identidade, se consolidam, se alteram se multiplicam, se complexificam.

Até ao momento temos falado de identidade afirmando que a mesma se constitui

nestes dois pólos – o para si ou individual e o para o outro ou social – sem que

tivéssemos especificado o que entendíamos por cada um deles. Procuraremos de

seguida faze-lo, tentando explicitar em primeiro lugar o que se entende por pólo

individual e dentro dele o papel relevante que o Eu/Self desempenha na sua mesma

construção, para de seguida passarmos ao pólo social em que procuraremos

compreender como a noção Nós, o Grupo podem ser factores que têm uma palavra forte

a dizer.

E porque nos preocupamos com a forma como cada um de nós constrói a sua

identidade e como essa identidade tem como ponto fulcral o indivíduo e seu EU/Self 8

entendemos com Queiroz e Ziolkovski (1994:41) que "a noção do eu (self) é uma das

noções chave do interaccionismo" e que"os seres humanos agem com respeito às coisas

8 Porque entendemos que as palavras e sobretudo porque, como afirmam Watzlawick, Beavin e Jackson (1979:59) as palavras “são sinais arbitrários que se manipulam de acordo com a sintaxe lógica da linguagem” dado que as palavras serão uma convenção, não existindo, portanto, qualquer correlação entre a palavra e o objecto que ela representa, cada vez que nos referirmos ao Eu utilizaremos a forma inglesa Self acopulada, dado que entendemos que se utilizarmos somente a forma Eu poderemos não estar a traduzir fielmente o conceito. O mesmo faremos para as formas do EU “I” e “Me”

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em função do sentido que as coisas têm para eles (ibid: 33).

3.1. O pólo individual

Na caminhada para a compreensão do que é a identidade procuraremos abordar

a representação que temos do aspecto individual da identidade.

Ao falarmos do pólo individual/pessoal será necessário, em nosso entender

procurar compreender em primeiro lugar o papel desempenhado e o percurso de

construção da componente Eu/Self.

3.1.1. O “Eu/Self”

No percurso que até agora seguimos, fomos afirmando que todos nós vivemos

em conjunto, que todos nós interagimos com os outros até porque os “indivíduos e as

sociedades são dois diferentes aspectos do mesmo ser humano” (Elias, 2000:284) e

porque , tal como afirma Laing (1969:82), “ninguém actua ou experiencia no vacuum”.

Vivemos, portanto, conjuntos de experiências que nos vão construindo quer porque

adoptamos essas mesmas experiências quer porque as rejeitamos. Drevillon (1979:181)

ao referir-se à dimensão social do EU/Self afirma que no processo de reconhecimento,

de construção de si próprio o indivíduo “recebe imagens de si próprio que provêem do

meio e reage segundo o grau de continuidade ou de discordância assim criados”. É

ainda Laing (1969:81) que nos diz que não é possível falar de “uma pessoa sem dar

conta da sua relação com os outros” até porque de acordo com este autor mesmo que

apresentemos de forma muito breve alguém não “poderemos dar-nos ao luxo de

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esquecer que cada pessoa está em todos os momentos a agir sobre os outros e a sofrer a

acção dos outros sobre si mesma”.

Neste sentido recordamos que, se como afirmamos anteriormente o indivíduo ao

nascer necessita da família que iniciará a sua socialização – um dos aspectos que

contribui para a construção da identidade – também o Eu/Self também não existe

“primordialmente ali, à nascença, mas surge no processo da actividade experimental

social, isto é desenvolve-se num dado indivíduo como o resultado das suas relações

com esse processo como um todo e com as relações que estabelece com outros

indivíduos nesse mesmo processo” (Mead, 1934:135), ou como afirma Evans (2002:21)

o Eu/Self pode ser visto como “um actor que aparece em primeiro lugar e que é

seguidamente reconhecido através da (...) sociabilidade e da linguagem”.

O Self será então em grande parte “uma criação social “ (Vallerand e Losier,

1994:124) ou como diz Laing o “meu self , a minha consciência e sentimento de mim, o

meu sabor a mim, do I, e do me, acima e em todas as coisas, inclui o meu sabor a ti. Eu

tenho sabor a ti e tu tens sabor a mim, eu sou o teu sabor e tu és o meu sabor”

(1969:35), alterando-se, crescendo e progredindo sempre interagimos uns com os

outros, nos saboreamos uns aos outros.

3.1.1.1. O que é o Eu/Self?

Face às afirmações que fomos produzindo cremos que será importante tentar

delimitar o que se entende por Eu/Self. Assim, Vallerand e Losier, (1994:125) afirmam

que o Eu/Self “não é unicamente um conteúdo representando o que nós somos e como

nós nos percebemos, mas é também um conjunto de estruturas e processos que se

encontra no coração mesmo da maior parte dos nossos pensamentos, sentimentos e

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acções (...) resulta em grande parte da influência dos outros e das diversas ramificações

que engendra e que influenciam o menor dos nossos comportamentos em relação

àqueles que nos rodeiam”.

A consciência dos outros e as suas raízes inconscientes, o conjunto das

percepções, sentimentos e representações que uma pessoa tem de si própria, as noções

familiares da imagem de si, do sentimento ou estima de si, noção fenomenológica da

ordem do vivido são algumas das formas encontradas por Lipiansky (1998b) para

apresentar a noção do Eu/Self.

Ruano-Borbalan (1998:6) entende que o Eu/Self pode ser definido como um

“conjunto de características (gostos, interesses, qualidades, defeitos, etc) traços pessoais

(incluindo as características corporais, os papéis e os valores) que a pessoa se atribui”.

Uma estrutura social que surge da experiência social, que mesmo se “em prisão

solitária para o resto da vida (..) ainda se tem a si própria como companheira e é capaz

de pensar e de conversar consigo própria da mesma forma que fazia com os outros”,

capacidade individual de tomar para si os papéis dos outros, ou tomar o lugar dos

outros, capacidade de tomar para si a atitude ou atitudes do outro ou dos outros

compreendendo assim os significados dos símbolos ou gestos em termos do processo

de pensamento; capacidade de ser objecto de si próprio e portanto ser reflexivo, são

alguns dos traços que Mead (1934:140-141) aponta para a consideração do Eu/Self.

Lecomte (1998:31) afirma que o Eu/Self é um termo que “pode definir o

conjunto de elementos que nos caracterizam”.

Esta definição tão simples mas ao mesmo tempo tão vasta – porque nela tudo se

engloba, o pessoal e o colectivo – assim como todos os outros aspectos focados pelos

outros autores reenviam-nos a uma ideia veiculada por Lipiansky (1998b) que nos diz

que a construção do Eu/Self pressupõe um triplo processo,

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o da construção da imagem de si que se baseará antes de mais no re-

conhecimento da imagem do corpo. Não podemos aqui esquecer Mead (1934) que a

propósito da imagem do corpo nos diz que nunca somos capazes de o conhecer na sua

totalidade até pela evidência física de não podermos olhar para ele da mesma forma que

outros o enxergam. No entanto será através das sensações corporais que

progressivamente vamos experimentando ao longo da vida e sobretudo dos primeiros

meses, anos de vida, que esta imagem do corpo se pode e vai construindo. Esta imagem

do corpo, esta imagem de si, é de acordo com Lipiansky (1998b:36) “uma

representação que se desenvolve e constrói em função da evolução temporal e das

sensações de prazer ou desprazer que a acompanham”;

o do processo pulsional que se relaciona fortemente com a estima de si e o

amor por si e que muito desenvolvido foi por Winnicott na sua teoria – o narcisismo.

Esta teoria pretendeu mostrar que os cuidados maternos eram fundamentais para a

compreensão do Eu/Self (2000:144-149).

Os sentimentos de harmonia, de bem estar, a gratificação das necessidades de

alimentação, de sobrevivência, os sentimentos de amor, ternura, rejeição ódio

espelhados pela mãe (Winnicott, 2000:148) permitirão à criança conhecer e aceitar ou

rejeitar a imagem do seu corpo e concomitantemente de si, enfim estes sentimentos

permitirão à criança sentir-se real e organizar o seu Eu/Self. Para Winnicott “sentir-se

real é mais do que existir, é encontrar um caminho para existir enquanto

Eu/Self”(2000:149) é existir enquanto Eu/Self porque - e aqui atrevemo-nos a transcrever o

original em língua inglesa

“When I look I am seen, so I exist

I can now afford to look and see.

I now look creatively and what I apperceive I also perceive.

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In fact I take care not to see what is not there to be seen (unless I am

tired)”(ibid:147);

o do processo relacional e intersubjectivo através do qual a imagem de si se

constitui. Isto é cada um reconhece-se no olhar do outro, cada um saboreia-se e

saboreia o outro reconhecendo os sabores de si.

Como dizíamos anteriormente as formas de apresentar o Eu/Self por parte dos

diferentes autores que apresentamos reenviam-nos para mais além desta imagem do

Eu/Self que tem como base o reconhecimento de si próprio através sobretudo da

imagem do corpo. Estas definições reenviam-nos para a ideia veiculada por Mead

(1934:172) de que a essência do Eu/Self “é cognitiva: repousa na conversa

internalizada dos gestos que constituem o pensamento ou em termos de quem o

pensamento ou a reflexão se originam”.

Para além da capacidade de construir uma imagem de si que tem a ver com a

imagem do seu corpo, parece-nos ser fundamental nesta tentativa da definição do

Eu/Self a capacidade que o ser humano tem de se compreender a si próprio através da

compreensão do mundo dos outros, desta capacidade que o ser tem de conhecer, intuir,

o mundo simbólico do outro o que lhe permitirá ter um mundo simbólico próprio ter

uma imagem dos outros, compreender a imagem que os outros têm de si e construir

uma imagem de si. Como Mead afirma, “uma pessoa que diz alguma coisa está a dizer

a si próprio o que diz aos outros; de outra forma não seria capaz de compreender de que

é que fala” (1934:147). Só se será capaz de possuir um Eu/Self desde que se seja capaz

de comunicar com os outros através de símbolos que tenham significado para os outros

e para si próprio, enfim desde que sejamos seres sociais.

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3.1.1.2. As definições do Eu/Self

E porque o Eu/Self poderá ser entendido como um produto social do ambiente

que nos rodeiam várias são as perspectivas ou teorias que se nos apresentam no que

respeita à forma como o podemos caracterizar.

Deschamps et all (1999:14) afirmam que o Eu/Self pode organizar-se de acordo

com cinco níveis de identificação associados a diferentes tipos de motivação a saber: o

vivido, o público, o colectivo, o Eu/Self conceptual e o o Eu/Self autónomo.

O Eu/Self vivido corresponde em seu entender à existência de mecanismos

afectivos e motivacionais que estão associados a tendências afiliativas, a estados de

sintonia social e a relações presenciais.

A socialização, as recompensas e punições atribuídas pelo grupo para que o

indivíduo se conforme à norma constituem o Eu/Self público enquanto que a

capacidade de estabelecer e pensar categorias sociais, a identificação emocional com

aqueles que constituem o “nós” e o favorecimento das relações com estes em

detrimento das relações com os “outros são os aspectos que caracterizarão o Eu/Self

colectivo.

O Eu/Self conceptual será aquele que permite que os indivíduos sejam capazes

de criar, estabelecer categorizações com base em critérios abstractos o que permite que

por exemplo a identificação com os outros possa ser independente da sua pertença

social.

Por último, o Eu/Self autónomo estará associado à formação de “standards

pessoais de avaliação que permitem reconhecer-se como pessoa que tem valores

superiores” (1999:15). As identificações serão assim reenviadas mais para objectivos

comuns do que para categorias sociais.

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Lecomte (1998:31-35) afirma que o Eu/Self varia ao longo da vida e varia não

só com a passagem do tempo mas ainda com as experiências vividas por cada um.

Neste sentido e retomando a teoria de L’Ecuyer, Lecomte afirma que é possível

distinguir seis estádios no conceito do Eu/Self a saber:

a emergência do eu 9

a confirmação do eu 10

a expansão do eu/self 11;

a reorganização do eu/self 12

a maturação do eu/self 13

a permanência do eu/self 14.

Ainda de acordo com Lecomte o conceito do Eu/Self pode ainda ser dividido em

cinco estruturas que representarão as características fundamentais do Eu/Self.

A primeira estrutura de que nos fala é aquela que se relaciona com a auto

descrição, auto descrição esta que se faz em termos da aparência física e das possessões

materiais ou pessoais. É o Eu/Self material.

O Eu/Self pessoal, a segunda característica terá a ver com as aspirações,

emoções qualidades e defeitos de cada um englobando ainda a filosofia de vida

9 Este estádio situar-se-á entre os 0 e os 2 anos. 10 Segundo Lecomte o estádio confirmação do eu ocorrerá entre os 2 e os 5 anos, acrescenta ainda que desde a idade dos 3 anos o conceito de eu/self estará já bem estabelecido e organizado. 11 A expansão do eu/self poderá ser verificada entre os 6 e os 10 anos. De acordo com o autor, entre estas idades as crianças fazem muitas vezes referência às suas actividades, indicando, sobretudo as raparigas, o que desejam ser no futuro. 12 Entre os 10 e os 12 anos e entre os 21 e 23 anos, isto é na adolescência, período de descoberta e de exame de si próprio, e no período que medeia os 21 e os 23 anos acontecerá um tempo em que normalmente os indivíduos analisam e avaliam a sua filosofia de vida. A estes dois tempos na vida de cada um corresponde o estádio de reorganização do eu/self. 13 A maturação do eu/self pode ocorrer em dois períodos que são definidos por Lecomte por aqueles que se situam entre os 24 e os 25 anos e entre os 55 e 57 anos. O primeiro período é o da ‘polivalência do eu/self’ em que face às grandes mudanças de vida novas imagens de si são integradas, o segundo período caracteriza-se pelo facto de os indivíduos se irem progressivamente desligando do trabalho e desejarem realizar-se plenamente, dando um sentido à vida. 14 Este estádio ocorre entre os 58 e os 60 anos e mais. Neste período, as pessoas recorrem à aparência física e às suas possessões materiais para se descreverem.

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adoptada, os papéis e estatutos desempenhados e o sentimento de coerência interna,

sentimento este que é um dos aspectos que enforma a identidade.

A avaliação de si das suas reacções e comportamentos face à vida diária, a

autonomia, a dependência ou a ambivalência das suas posturas constituem o terceiro

nível ou estrutura do Eu/Self e que se denomina do Eu/Self adaptativo.

O Eu/Self social, que constitui a quarta característica, diz respeito às descrições

dos comportamentos sociais, que de acordo com Deschamps et all (1999:16) dependem

“simultaneamente de três factores: a pessoa, e em particular a percepção subjectiva de

si; a situação e os seus constrangimentos; a cultura e as crenças colectivas partilhadas”.

A quinta estrutura ou característica do Eu/Self é, segundo Lecomte, a do Eu/Sef

não Eu/Self. Esta estrutura caracteriza-se sobretudo pelo facto de as pessoas falarem de

si ou eventualmente falarem dos outros mas sempre relacionando-os consigo próprios.

Importa no entanto salientar que as correntes psicológicas e sociológicas têm

interpretações diferentes da definição do Eu/Self. Deschamps et all (1999:159-160) ao

tentarem explicitar as diferenças de pontos de vista entre as correntes psicológicas e

sociológicas da definição do Eu/Self apontam a possibilidade aventada por Turner da

distinção de três níveis de definição do Eu/Self, definindo-os da seguinte forma. “ um

nível supraordinado que diz respeito à definição do Eu/Self como ser humano e que

reenvia a uma identidade humana baseada nas comparações entre espécies (...); um

nível intermediário de definição do Eu/Self como membro de um grupo(...) e que

reenvia para uma identidade social baseada nas comparações intergrupos (...); um nível

subordinado de definição do Eu/Self como um ser singular (...) e que reenvia para uma

identidade pessoal baseada nas comparações interpessoais(...)”.

E se Deschamps et all nos apresentam as diferenças que existem entre as

correntes psicológica e sociológica, já Vallerand e Losier (1994), tendo como base a

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psicologia social, nos dizem que no que respeita ao entendimento do Eu/Self podemos

ter uma visão deste enquanto conteúdo (1994:126-153) ou enquanto processo

(1994:153-184).

O Eu/Self será conteúdo sempre que cada um de nós procura conhecer ou ver o

seu interior, isto é sempre que cada um de nós procura identificar ou conhecer as

características que cremos possuir enquanto indivíduos. Nesse sentido várias podem ser

as formas de que nos servimos para coligir as informações que nos permitem

conhecermo-nos e avaliarmo-nos.

De acordo com os autores o Eu/Self enquanto conteúdo pode ser considerado

segundo três grandes componentes:

Conceito de si

Estima de si

Esquema de si

No que se refere ao conceito de si, vários são os tipos de informação que podem

constitui-lo. São normalmente informações que respeitam às percepções e aos

conhecimentos que cada um possui das suas características e qualidades pelo que nem

sempre o conceito de si possa ser visto como um componente que permite ter uma visão

objectiva. Ele será sobretudo “um reflexo de nós próprios tal como nos apercebemos de

nós” (ibid:128)

A estima de si que respeita aos julgamentos de valor que cada um de nós

produz acerca do que nos caracteriza e identifica que se pode desdobrar em três formas

distintas: a estima de si pessoal, a estima de si colectiva e a estima de si disposicional.

A estima de si pessoal é aquela que nos reenvia para uma “avaliação subjectiva

dos atributos que nos são próprios” (ibid:130) enquanto que a estima de si colectiva

parece ser a que respeita aos julgamentos de valor que cada um faz de si tendo como

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pano de fundo as “características do ou dos grupos com que se identifica” (ibidem). A

estima de si disposicional será segundo Vallerand e Losier (1994:133) a que se

relaciona com uma “avaliação ‘geral’ de nós próprios enquanto pessoas”. E que nos

permite distinguir os aspectos globais dos mais particulares.

Vejamos de seguida como podemos entender esta terceira grande componente

do Eu/Self enquanto conteúdo que é denominada de esquemas de si. De acordo com os

autores o nosso Eu/Self funciona como “um sistema de memória especializada que

integra as nossas percepções de nós mesmos” (ibid:136). Este sistema tem ainda a

necessidade de reagrupar e organizar de forma hierárquica as percepções para que estas

possam, ainda ser interligadas através de bancos de dados muito complexos. A unidade

de base destes bancos de dados é segundo os autores o esquema, podendo ser definido

enquanto esquema de si como “as generalizações cognitivas acerca de si saídas das

experiências passadas que organizam e guiam o tratamento da informação contida nas

experiências sociais da pessoa” (ibidem). Os esquemas de si ajudar-nos-ão, então, a

coligir e estruturar os dados que recolhemos sobre nós próprios ao longo dos anos.

Para além destas três grandes componentes do Eu/Self enquanto conteúdo

Vallerand e Losier falam-nos, também, em dois outros aspectos que denominam de

outras componentes e de determinantes do Eu/Self enquanto conteúdo.

Assim e no que respeita às outras componentes falam-nos das concepções

centrais e que seriam constituídas pelas identidades pessoais e colectivas – que iremos

abordar em outro momento – e ainda das concepções do Eu/Self ideal (o que cada um

de nós desejava ser), do Eu/Self real (o que cada um se percebe ser) e do Eu/Self

obrigado (aquilo que cada um de nós ou é constrangido ou sente que deveria ser de

acordo com a nossa opinião ou mesmo a opinião dos outros). São, ainda, parte das

outras componentes as concepções de si potenciais que incluem os Eu/Self que

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poderíamos ou quereríamos ser e ainda aqueles que tememos poder vir a ser. Vallerand

e Losier afirmam que os Eu/Self possíveis “são importantes porque permitem a ligação

essencial entre as representações cognitivas do Eu/Self e a motivação do indivíduo para

atingir ou evitar esses Eu/Self possíveis” (1994:139).

Quando os autores referem as determinantes do Eu/Self enquanto conteúdo

falam-nos dos aspectos que se relacionam com as fontes interpessoais, com o contexto

social e cultural, com a avaliação de si próprio e com a estabilidade e a mudança.

As fontes interpessoais que nos ajudam a compreender que aqueles que vivem e

interagem connosco “representam um espelho que podemos utilizar para aprender a

melhor nos conhecermos” (ibidem) podem ser reagrupadas em três correntes

dependendo do tipo de influência sofrida: directas (o nosso Eu/Self resulta em grande

parte do ambiente social em que nos integramos pelo que os que nos rodeiam podem

ajudar-nos a enfrentar possíveis mensagens negativas e a repô-las de forma positiva),

filtradas (o nosso Eu/Self filtra muitas vezes a retroacção dos outros de forma que é

muito mais a nossa percepção do que os outros dizem de nós do que verdadeiramente o

que eles dizem que determina o nosso Eu/Self) e bloqueadas ( muitas vezes a

informação que recebemos dos outros não é apenas filtrada é totalmente rejeitada15).

15 Parece-nos que estas três correntes de fontes interpessoais poderá de algum modo estar ligadas à forma como cada um de nós responde aos outros com os quais interage. E sendo este o caso parece-nos importante lembrar que como diz Rimé quando fala sobre a forma como comunicamos que não será possível pensar a existência " uma comunicação neutra ou objectiva"(1984:417) entre os actores de qualquer organização e em especial da organização escola, Marc e Picard (1987:44) afirmam, por sua vez, que cada actor transmite informações sobre acontecimentos, factos, opiniões ou sentimentos, isto é, os actores oferecem-se "mutuamente definições" (Watzlawick, Beavin e Jackson 1979:84) da relação que desenvolvem entre si comunicando ainda ao outro o que Watzlawick, Beavin e Jackson chamam de "o protótipo da sua metacomunicação" ou a forma como nos dizem "Isto é como eu me vejo a mim próprio" (ibidem). Para Watzlawick, Beavin e Jackson (ibidem) existem três tipos de respostas que podem ser dadas pelos actores nos momentos de interacção com os outros: confirmação, rejeição ou desconfirmação. Por confirmação poderá, assim, entender-se a resposta positiva que o actor recebe à definição do EU que propôs ou ainda " o sinal de reconhecimento por parte do outro de que pelo menos confirma a sua presença no seu mundo" (Laing, 1990:98). Esta aceitação ou confirmação será, de acordo com Watzlawick, Beavin e Jackson (1979:84), " o maior factor que, por si só, assegura o desenvolvimento e a estabilidades mentais" de qualquer actor,

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O contexto social e cultural em que cada um de nós vive pode “representar um

conjunto de determinantes extremamente poderosas das características distintivas da

pessoa e do seu Eu/Self” (Vallerand e Losier, 1994:143). Assim aspectos como o

género, a etnia, as características físicas, enfim a própria cultura podem causar grande

impacto sobre a nossa percepção do Eu/Self uma vez que o tipo de relações que temos

com os outros podem determinar até que ponto estes aspectos terão uma influência na

nossa percepção do Eu/Self.

A determinante, estabilidade e mudança não é menos importante do que

qualquer outra determinante. Quando tentamos compreender a noção de identidade

afirmamos que um dos aspectos que para ela contribuía era o da estabilidade, o da

continuidade do nosso Eu/Self. Todos procuramos uma “coerência uma estabilidade do

nosso conceito de Eu/Self e resistimos, activamente, às influências que tentam mudar o

nosso Eu/Self”. O nosso conceito do Eu/Self é estável no que respeita às questões

sendo, ainda, a responsável pelo evoluir da comunicação humana para "além das fronteiras muito limitadas das permutas indispensáveis à protecção e à sobrevivência" (ibidem). A confirmação será a resposta que permite que a "vasta gama de emoções que os indivíduos sentem em relação uns aos outros" exista, impedindo ainda que vivamos "num mundo vazio de beleza, poesia, jogo e humor" (ibidem) ou permitindo ao actor "ganhar consciência do seu próprio eu" uma vez que "o homem é incapaz de manter a sua estabilidade emocional durante períodos prolongados em comunicação exclusiva consigo mesmo" (ibidem). A segunda hipótese de resposta que nos propõem Watzlawick, Beavin e Jackson é a da rejeição. Rejeição que de acordo com estes mesmos autores "pressupõe, pelo menos, o reconhecimento limitado do que está sendo rejeitado e, portanto, não nega, necessariamente, a realidade do conceito de eu" (1979:85). Laing afirma, mesmo que a rejeição pode ser confirmatória "se for directa, não tangencial e reconhecer a acção evocatória concedendo-lhe significado e validade" dado que "uma acção 'rejeitada' é percebida e esta percepção mostra que foi aceite como um facto" (1990:99). A terceira resposta possível é a da desconfirmação . Esta resposta será no entender de Watzlawick, Beavin e Jackson (1979:85) "a mais importante". E será a mais importante porque, tal como Laing afirma, quando cita William James, a desconfirmação será a mais horrível punição possível de imaginar " mesmo que tal fosse fisicamente possível" pois nada será pior "do que deixar à solta na sociedade um indivíduo que permanecesse absolutamente ignorado por todos os seus membros para todo o sempre" (1990:98-99). Por desconfirmação entende-se pois, não a mera rejeição do Eu, mas sim a negação da realidade do Eu, isto é a negação da realidade do próprio indivíduo. Como dizem Watzlawick, Beavin e Jackson (1979:86) a desconfirmação pode traduzir-se na expressão "Você não existe" ou como afirma Laing na desconfirmação "o indivíduo experimenta não a ausência da presença do outro mas a ausência da sua própria presença enquanto outro para o outro" podendo mesmo afirmar-se que "o outro está ali, mas ele não está ali para o outro" (1990:138).

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centrais podendo no entanto ocorrer mudanças subtis do nosso Eu/Self na sequência de

acontecimentos fulcrais que possam pôr em causa as nossas concepções centrais.

Se no Eu/Self enquanto conteúdo procuramos identificar ou conhecer as

características que cremos possuir enquanto indivíduos, no Eu/Self enquanto processo

procuramos o “conhecimento do que somos, do que fazemos, do que desejamos ser e da

imagem que projectamos nos outros” (Vallerand e Losier, 1994:153) pelo que será no

Eu/Self enquanto processo que avaliaremos o “ambiente social à luz do Eu/Self

enquanto conteúdo” (ibid:127).

Falar então do Eu/Self enquanto processo, de acordo com os autores, significa

falarmos da consciência de si, dos tipos da consciência de si, das determinantes da

consciência de si públicas ou privadas e das consequências intrapessoais do Eu/Self.

Quando procuramos olhar para dentro de nós, por forma a que possamos

conhecer-nos como conteúdo estaremos, no entender dos autores, num estado de

consciência de si. Sem ele seria impossível saber quem somos pelo que a consciência

de si “tem um papel muito importante na organização e na regulação do Eu/Self”

(ibid:154). No entanto, cada vez que estamos neste estado de consciência de si podemos

assumir uma postura que é determinada pelo objecto da nossa atenção – a observação

dos elementos privados ou dos elementos públicos. Face a isto poderemos então afirmar

que a consciência de si pode revestir dois tipos: a consciência de si privada ( que está

em contacto com os aspectos internos do Eu/Self, os que não estão acessíveis aos outros

– os sentimentos, os pensamentos, os desejos, as motivações, os valores) e a

consciência de si pública ( os aspectos que constituem este tipo de consciência são os

que permitem aos outros construir uma opinião acerca de cada um de nós – são os

comportamentos, os modos de estar, as roupas).

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Ao referirem as determinantes da consciência de si pública e privada, os autores

apontam para a existência de “pelo menos duas fontes de influência da consciência de

si” (ibid:155) que podem determinar a consciência de si e que são as fontes de

influência situacionais e as disposicionais. Quer no primeiro caso como no segundo,

será importante ter em conta que existem vários e diferentes estímulos sociais e que por

vezes nos levam a reflectir sobre assuntos do foro privado enquanto que outros nos

encaminham para os aspectos do foro público. E se as determinantes da consciência de

si podem ter influência na reflexão que fazemos sobre nós próprios o mesmo poderá ser

dito quanto ao que respeita a certos processos de si. E podemos dizê-lo porque o

Eu/Self parece controlar vários processos – cinco: avaliação de si, aumento de si,

protecção de si, coerência de si e apresentação de si – que podem ter consequências

importantes não só para o sujeito mas como para aqueles que o rodeiam.

Assim o processo de avaliação de si pode conduzir o Eu/Self a uma

“clarificação do que podemos sentir num momento preciso, assim como a mudanças de

percepção sobre nós próprios” (ibid:159).

O aumento de si permitir-nos-á recolher informação que confirme a imagem,

percepção positiva que temos de nós e se há situações em que procuramos todos os

motivos possíveis para fazer de nós uma avaliação positiva outras existem em que

pretendemos sobretudo proteger a nossa estima. Nessas situações, e que serão

sobretudo públicas, o processo de protecção de si encontrará os elementos necessários

para proteger o Eu/Self.

Falamos na estabilidade do Eu/Self enquanto conteúdo mas para que esta possa

ocorrer muitas vezes recorremos ao processo de coerência de si para que possamos

manter a visão de estabilidade e de coerência do Eu/Self. É talvez através deste

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processo que poderemos compreender a dificuldade que todos parecemos possuir de

mudar a nossa percepção de nós próprios.

Por último o processo de apresentação de si será aquele que o Eu/Self utiliza

para apresentar aos outros uma imagem que corresponda de alguma forma à percepção

que tem de si próprio ou à que deseja que os outros tenham de si. A este propósito

Goffman afirma que o Eu/Self é “um produto dos dispositivos que um conjunto de

pessoas cuja actividade em cena, e servindo-se dos adereços disponíveis, constituirá o

espectáculo a partir do qual o Eu/Self do personagem representado irá emergir”

conjugado ainda com “o público cuja actividade interpretativa será necessária para esta

emergência” (1973:239). Relembremos ainda que (1997a:24) as actividades sociais

repartem-se em actividades públicas (as "representações" - no sentido teatral do termo)

nas quais os actores exercem um controlo estrito sobre os seus comportamentos e em

actividades mais ou menos privadas durante as quais o controlo se relaxa.

A cada tipo de actividade corresponde uma 'região' que é um lugar relativamente

delimitado. A região “da frente” é o lugar onde se desenrola a "representação" e a

região “de trás” (ou "bastidores") aquele que tem relação com a representação dada,

mas onde os actores escapam à vista do público.

Na primeira região investe-se numa imagem de si que se quer ver reconhecida e

retida pelo respectivo público como a única legítima. É na região “de trás” que nos

permitimos comportamentos que o público não deve conhecer e que só podemos

adoptar num lugar onde ele não é admitido. Até porque o espaço é uma variável

importante da interacção, podendo os modos da interacção diferir consideravelmente

conforme nos situemos num espaço definido como "público" ou "privado".

Por último importa dizer que o Eu/Self enquanto conteúdo e enquanto processo

não são disjuntos mas sim articulados. Neste sentido Vallerand e Losier (1994:127)

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afirmam que “a interrelação entre as duas componentes do Eu/Self é muito pertinente

para a compreensão de vários comportamentos sociais” e que o Eu/Self é “geralmente

percebido como um elemento possuindo duas entidades, na ocorrência o Eu/Self como

conteúdo e o Eu/Self como processo com todas as suas funções” (ibidem).

E se estas duas componentes – conteúdo e processo – são relevantes para a

compreensão do Eu/self resta em nosso entender lembrar que para além de conteúdo e

processo que se interrelacionam, também será relevante ter em conta, tal como afirma

Mead (1934) que o Eu/Self é à vez constituído por uma componente I e outra ME que,

como afirmam Doise, Deschamps e Mugny (1991:36) são elementos constitutivos do

Eu/Self até porque “o Eu/Self emerge no fim de contas a partir de uma interacção, de

uma tensão dialéctica entre o I e o ME. O Eu representa o aspecto criador do Eu/Self

que responde às atitudes do outro que interiorizamos enquanto que o ME é justamente o

conjunto organizado dos julgamentos do outro que o Eu/Self assume”.

3.2. A identidade pessoal

Sendo o objectivo deste ponto do nosso trabalho a tentativa de compreensão do

pólo individual da identidade e tendo até agora procurado perceber como se constitui o

Eu/Self e de que modo ele participa na construção da identidade, pensamos ser o

momento de reflectirmos sobre o modo como se constitui a identidade pessoal que, no

entender de Ruano-Borbalan (1998:1), é uma das componentes cruciais das práticas e

das representações dos indivíduos” uma vez que cada vez mais os estudos sobre a

identidade pessoal “se ancoram” em torno do “‘Eu/Self’ (imagem de si, representação

de si, construção de si, controlo de si, etc)”(ibid:6).

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Para Deschamps et all (1999:151) o conceito de identidade pessoal é um

conceito pouco definido uma vez que como afirma Lipiansky (1998 a:22) “resulta de

uma construção progressiva” em que cada pessoa está “continuamente envolvida em

múltiplas interacções com o outro”(Doise:1999:206) não podendo nós alienar o facto de

que “por definição, cada pessoa pode sempre mudar, modificar-se a si própria (...)

evoluir, converter-se” (Dubar, 2001:208).

Enfim o conceito de identidade pessoal será um conceito pouco definido pois

como afirma Dubar (ibid:210) “a identidade pessoal é um processo, é uma história, uma

aventura e nada permite fixa-la num momento qualquer da biografia” de cada um de

nós. Uma história que se conta em vários tons, uma aventura que se vive e revive em

cada momento que se conta, um devir, um passado, um presente e um futuro em

constantes mutações são por vezes difíceis de definir ou aparecem-nos com contornos

pouco definido. Apesar disto procuraremos o entendimento possível da identidade

pessoal.

Neste sentido cremos que necessitamos de recuar algumas páginas e relembrar

algumas das ideias que fomos apresentando em termos de identidade. E assim,

relembramos que identidade é algo que se constrói – não nasce com nenhum de nós e

nem mesmo no Livro da Vida que nos conta a história do genoma humano e dos cerca

de trinta mil genes que constituem o ser humano. Pudemos ainda vislumbrar que a

identidade seja algo que provem da combinação mais ou menos caprichosa, mais ou

menos previsível que nos faz ser seres humanos, seres que pensam e sentem – que estão

em permanente mudança e evolução, que têm, também, dentro de si as sementes que

permitem a cada um de nós ser singular, individual, que permitem que cada um de nós

se identifique e ao mesmo tempo seja similar e diferente dos outros que nos rodeiam,

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que ao longo e com o correr do tempo permitem o reconhecimento de cada um e de si

próprio.

Se estas são algumas das características que podemos encontrar para

compreender o que é a identidade parece-nos que poderão servir também para, pelo

menos, tentarmos compreender este conceito pouco definido que é o da identidade

pessoal.

Vejamos então. Dubar (2001:200), ao referir-se à identidade pessoal como algo

que se constrói em cada um e por cada de nós, afirma que ela não “é dada, à nascença.

Ela constrói-se durante toda a vida. Mas não se reduz a uma interiorização ‘passiva’e

‘mecânica’ das identidades herdadas, do conjunto das características ligadas ao

nascimento (...) nem aos papéis estatutários pré definidos (...). Pelo contrário conquista-

se muitas vezes contra estes mesmos, através de distinções e rupturas não excluindo

nem as continuidades, nem as heranças”.

A continuidade, a coerência, a diferença, a ruptura - a crise – têm papéis

importantes na construção da identidade pessoal.

Lipiansky (1998 a:21), por sua vez, entende que a identidade pessoal tem antes

de mais “um significado objectivo: o facto de que cada indivíduo é único, diferente de

todos os outros” possuindo também um outro significado o subjectivo que corresponde

ao que se relaciona com o “sentimento da sua individualidade (‘eu sou eu’), da sua

singularidade (‘eu sou diferente dos outros e tenho estas ou aquelas características’), e

de uma continuidade no espaço e no tempo (‘eu sou sempre a mesma pessoa’)”

(ibidem).

Para além da continuidade, da coerência, da diferença de que nos falava Dubar,

Lipiansky traz para a ribalta a singularidade, a individualidade, que constituem parte

integrante da identidade pessoal.

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Não longe destes pressupostos parecem estar Campeau et all (1998:95) quando

afirmam que “o pólo individual dá testemunho da nossa singularidade e, portanto, das

nossas diferenças por relação com o outro” ou mesmo Goffman (1975:73) quando nos

diz que cada membro de um grupo é “reconhecido pelos outros como uma pessoa

‘única’”.

Falar pois de identidade pessoal é falar também de individualização.

Individualização que acontece porque a identidade se inscreve numa valorização

crescente “da margem de liberdade de que dispõe o indivíduo na sociedade”

(Massonnat e Boukarroum, 1999:183) e porque designa o “conjunto de características

através das quais um indivíduo difere de um outro indivíduo num mesmo espaço (...)

designa o que lhe permite exprimir a sua especificidade: uma série de diferenciações

que integram num ponto de vista ou num estilo” (ibid:191).

A individualização repousará, pois, na “organização do cérebro humano que

permite a representação simbólica16, a linguagem17 e a memória18” (Campeau et all,

1998:93) sendo, por isso, “um conjunto de signos que distinguem de todos os

indivíduos que os detêm“ (Goffman, 1975:74).

Falar de similitude e de diferença é também falar de identidade pessoal até

porque esta pressuporá a existência “de uma combinação única de traços que fazem

com que cada indivíduo seja diferente do outro, tenha uma unicidade, uma

particularidade, em resumo, seja específico” (Deschamps et all, 1999:151) pelo que a

identidade pessoal terá que ver com o facto de “o indivíduo se perceber como idêntico a

16 Para Campeau et all (1998:93) a representação simbólica para além de permitir representar mentalmente as coisas, “permite ao indivíduo de tomara as suas distâncias face a si próprio e de se situar entre os outros e por relação a eles” 17 Os mesmos autores afirmam que a linguagem “permite ao indivíduo exprimir simbolicamente a diferença [entre ele e os outros] através do emprego do ‘I’, do ‘Me’ e do ‘Nós’” (ibidem). 18 A memória é para os autores “esta imensa capacidade de registar as experiências afectivas e pessoas de todas as épocas da vida, que permite materializar a permanência da individualidade” (ibidem).

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si próprio, isto é, que ele será o mesmo no tempo e no espaço, mas é também o que o

especifica, o singulariza por relação com os outros, o outro. A identidade pessoal é o

que o torna igual a si próprio e diferente dos outros” (ibid:152) e caracteriza-se pelas

possibilidade que cada um de nós tem de “gerir as semelhanças pela afirmação das

diferenças” (Tap, 1998:66).

Neste sentido poderemos, então, afirmar com Goffman (1975:74) que o que

“distingue um indivíduo de todos os outros é o seu ser profundo, este aspecto de si

próprio que é ao mesmo tempo global e central, que o diferencia integralmente, (...)

daqueles mesmo que mais semelhantes a si são” e que a ideia de identidade pessoal

estará “ligada à hipótese de que cada indivíduo se deixa diferenciar de todos os outros,

e que, à volta destes elementos de diferenciação, encontramos um registo único e

ininterrupto de factos sociais que se anexam, se misturam como ‘algodão doce’, como

uma substância viscosa à qual se colam sem cessar novos detalhes biográficos”

(ibidem) até porque o conceito de identidade pessoal permitirá colocar o “acento tónico

sobre a maior ou menor similitude ou comunhão que baseia as entidades comparadas

tendo em conta os aspectos que as distinguem”( Massonnat e Boukarroum,1999:183).

Este sentimento ou esta capacidade, que permite comparar ou distinguir cada

um dos outros que interage no ou nos grupos em que cada um de nós se insere, é um

sentimento ou capacidade que não parece poder senão ser vivido “por relação com o

outro” (Deschamps et all, 1999:152). E isto porque esta vivência permitirá ao “sujeito

aceitar ou recusar e portanto gerir as diferenças, até mesmo as contradições”(Massonnat

e Boukarroum,1999:197) e compreender quais “ as marcas e as referências simbólicas

(...) de um indivíduo dotado de uma identidade pessoal” (Dubar, 2001:197).

E porque o indivíduo será o mesmo no tempo e no espaço o “sentimento da

nossa identidade pessoal repousa também no facto de aqueles que nos rodeiam

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reconhecerem a similitude e a continuidade” (Campeau et all, 1998:92) até porque

como Drevillon (1979:181) afirma ao citar L’Écuyer “o indivíduo recebe imagens de si

próprio vindas do meio e reage a elas de acordo com o grau de continuidade ou de

discordância criado”.

E se o reconhecimento dos outros é importante para a construção do sentimento

de continuidade, de permanência, o controlo do espaço não o será menos nesta busca

constante da permanência pois será através dela que seremos capazes de “nos

reconhecer num território” de fazer seu “um espaço” de nos relacionarmos “com o lá

fora, o espaço, o vento do largo com a nossa maneira de andar ao longo de uma avenida

ou de nos instalarmos num lugar” (Sansot, 1979:33).

Face a tudo isto poderemos então procurar perceber o que se entenderá por

identidade pessoal e para além destas características que fomos enunciando que outras a

poderão constituir.

Esta procura da compreensão do que é a identidade pessoal remete-nos desde

logo para o facto de que esta, como diz Lipiansky, poder “ parecer ser uma noção

simples e evidente mas revela-se na análise um fenómeno complexo e

multidimensional” (1998:21). E será um fenómeno complexo pois, apesar de ser

pessoal, de ter que ver com os aspectos mais íntimos mais marcantes de cada um, se

construir na relação de cada um com os outros.

Neste sentido, o próprio Goffman ao falar sobre identidade pessoal afirma que

quando fala “de ‘identidade pessoal’ não tenho senão em vista as duas primeiras

noções: os signos patentes ou bilhete de identidade e a combinação única de factos

biográficos que acabam por se ligar ao indivíduo” (1975:74) mas que se combinam com

as respostas às expectativas que os outros têm do indivíduo tal como afirma Sansot

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(1979:31) quando diz que “a minha identidade é portanto a imagem que tenho de mim e

que forgei porque tenho de seguida de responder às expectativas dos outros”.

Em jeito de síntese poderemos dizer que a identidade pessoal “pode ser

considerada como um dos princípios organizadores mais importantes das nossas

relações simbólicas com os outros agentes sociais” (Doise, 1999:201). A identidade

pessoal enquanto organizadora das relações simbólicas de cada um de nós parece,

assim, poder ser considerada uma representação individual e social, poderá ser

“concebida como uma propriedade emergente da estrutura das representações

conceptuais de si e do outro e não como uma propriedade inerente ao sujeito” (Debonis,

2001:229). A identidade pessoal poderá ainda ser concebida como “uma representação

social que actualiza um saber comum, princípios organizadores de posições individuais

por relação aos pontos de demarcação fornecidos pelo saber comum, e as ancoragens

das suas posições em realidades sociopsicológicas” (Doise, 1999:201). A identidade

pessoal ao actualizar um saber comum, ao actualizar princípios organizadores será

composta por “um conjunto de sistemas de regulação, de um sistema de ancoragem, de

um sistema de significação e de um sistema de controlo (...) é assim uma entidade

dinâmica, em evolução permanente e relativamente estável, coerente, favorecedora do

sentimento de continuidade e de unicidade19 “ (Cohen-Scali, 2000:44). Ela permitirá

ainda no entender de Goffman ter “na organização social um papel de estrutura,

rotineiro, estandartizado e que desempenha efectivamente por causa precisamente da

qualidade que tem de ser em cada momento única no seu género” (1975:74).

19 “A noção de unicidade de um indivíduo inclui a noção de “signos patentes” que desempenham um papel de “bilhete de identidade” e são por exemplo, a imagem mental que se tem do rosto de alguém ou ainda o conhecimento e o seu lugar particular no seu de um qualquer sistema parental” (Goffman, 1975:73) Para Aebischer e Oberlé (1990: 75) a noção de unicidade designa a “motivação para construir a diferença entre si e os outros indivíduos através da preferência por actividades a que os outros dificilmente têm acesso”

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Encontrámo-nos de novo com a ideia de que a identidade pessoal é portadora do

sentimento da unidade, da unicidade, da singularidade de que falávamos anteriormente

até porque apesar de ser constituída pelos traços mais pessoais de cada um de nós, de

ter a ver com os atributos mais específicos de cada um, a identidade pessoal permite

construir a ideia de que cada um de nós possui “uma combinação única de traços que

fazem com que cada indivíduo seja diferente do outro, tenha uma unicidade, uma

particularidade, em suma uma especificidade” (Deschamps et all, 1998:151). O que

proporciona ainda “a permanência do sujeito como forma ou estrutura na continuidade

das mudanças que o agridem no decurso da sua experiência ou história” (Freund,

1979:66).

Por último queremos recordar com Dubar que a identidade pessoal “não é nem

pertença ‘herdada’ de uma cultura congelada, nem uma ligação a uma categoria

estatutária ‘dada’, é um processo de apropriação de recursos e uma construção de

marcas, uma aprendizagem experiencial, a conquista permanente de uma identidade

narrativa (eu/self projecto) pela e na acção colectiva com outros escolhidos. A

identidade pessoal implica o pôr em prática de uma atitude reflexiva (Eu/Self próprio)

pelas e nas relações significantes (...) que permitem a construção da sua própria história

(Eu/Self) ao mesmo tempo que permitem a sua inserção na História (Nós)” (2001:200).

Em suma, a identidade pessoal é um conceito complexo e multiforme que tem

dentro de si os traços da singularidade, da unidade e da unicidade, da permanência, da

coerência, da continuidade, que se constitui através das relações, interacções com os

outros – através das tensões, dos choques , dos conflitos que as próprias interacções

geram – que se constrói através ainda das crenças, dos valores, dos afectos dos aspectos

cognitivos das imagens de si dos outros e das imagens que se imaginam que os outros

têm de si. A identidade pessoal é similitude e diferença é adesão e rejeição. É enfim

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dinâmica, um devir constante que nos permite reconhecermo-nos enquanto Eu/Self

integrado num mundo, numa sociedade num grupo de pertença.

3.3. O pólo social

Ao falarmos de identidade pessoal localizamo-la no Eu/Self que se constrói e

re-constrói continuamente e que vive também das interacções que com os outros

estabelecemos, que vive da construção da nossa história pessoal e da inserção que cada

um de nós faz na História do Nós, do grupo ou grupos20 a que vai aderir ou pertencer.

Assim, em nosso entender e porque nos propusemos tentar compreender esta

noção complexa e multiforme que é a identidade, não bastará para tal compreender o

pólo individual da identidade, a identidade-para-si.

Se quisermos ter uma visão abrangente e alargada do conceito identidade

parece-nos ser fundamental tentar compreender a outra faceta que constitui a

identidade, o pólo social, a identidade-para-os-outros, a identidade colectiva.

Neste sentido cremos que para iniciarmos esta caminhada na compreensão da

identidade-para-os-outros, será necessário termos em conta que a identidade “se

constrói numa dupla relação: a relação do indivíduo com os membros do seu grupo de

pertença (...) e a relação do seu grupo com os outros grupos” (Lorenzi-Cioldi, 1988:6).

E esta construção acontece no dia a dia por referência a trocas simbólicas das quais

muitas vezes nem nos damos conta. Maffesoli fala mesmo de “uma ‘poética’ na vida

quotidiana e que ainda que nem sempre reconhecida, oficializada, canonizada, não é

20 Dolan, Lamoureaux e Gosselin (1996:134) afirma que os motivos que levam um indivíduo a pertencer a um grupo “são muito variados e podem permitir conjugar várias necessidades. De qualquer forma é raro que as necessidades de um iundivíduo possam ser satisfeitas inteiramente num só grupo. É por este motivo que os indfivídyuos pertencem a vários grupos : se um grupo não satisfaz completamente as necessidades de um indivíduo (...) este investirá mais tempo e energia noutros grupos”.

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menos geradora de sociabilidade. É constituída por pequenas e minúsculas atitudes

quotidianas, trajectos, discussões, bricolages, receitas, passeios, pesquisas,

indumentárias (..) atitudes através das quais um grupo de indivíduos se reconhece

enquanto tal” (1979: 58).

E tal poética não pode ser ignorada porque “os seres humanos estão quase

sempre em constante interacção com os seus semelhantes (...) ‘ser humano’ é pertencer

a grupos como o da família, do partido político, do círculo de amigos, da equipa

desportiva, da equipa de trabalho” (Dolan, Lamoureux e Gosselin, 1996:133).

E porque todos nós enquanto seres humanos, somos seres sociais que vivemos

gregariamente em vários grupos ao longo da nossa vida, cremos ser importante começar

por tentar perceber o que é um grupo e como ele pode ser importante na compreensão

da identidade social, na identidade-para-os-outros

3.3.1. O “Nós” ou O grupo

E se compreender o que é um grupo poderá ser importante para o nosso

entendimento da identidade social cremos que não será menos importante relembrar

que como seres sociais que somos o primeiro grupo que conhecemos é o da família.

E relembrar com Aebischer e Oberlé (1990: 40-44) que é na família - o primeiro

grupo que cada um de nós conhece e que como anteriormente afirmamos nos apresenta

à sociedade e nos fornece os instrumentos necessários para que possamos transformar-

nos em seres sociais – que cada um de nós se actualiza, vive concretamente.

É o grupo família que nos inscreve num contexto social que especifica os

lugares e as relações de cada um nós com e em relação aos outros; é a família que

permite a cada um de nós apropriar-se de um conjunto de valores, que transmite as

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normas, que será enfim e também “a correia de transmissão de um certo número de

valores, de ideais, de modos de pensar e de acção na sociedade em que se encontra

inserida” (ibid:42).

É na família que cada um de nós se socializa que cada um para além dos

valores, das normas, dos ideais, encontra, constrói e desempenha “os papéis21 (...) e o

estatuto22” (Guimond, 1994: 669) que nos permitem inserirmo-nos não só no grupo

21 Marc e Picard (s/d:104) definem papel como a "expressão dinâmica do estatuto" que " aparece como um conjunto organizado de condutas". LEMERT (1997: XXXIX), ao analisar a obra de Goffman, conclui que os papéis que desempenhamos nos apresentam os sinais através dos quais, e tendo em atenção a realidade tal qual ela se nos apresenta, sabemos o que e como pensar e fazer. A ideia de que os papéis atribuídos a um indivíduo correspondem aos comportamentos que dela se esperam; têm por função tornar previsíveis os comportamentos; e de que numa empresa a descrição das tarefas e as directivas enquadram o exercício das funções e precisam os papéis dos indivíduos é veiculada por Dolan, Lamoureux e Gosselin (1996:143). Estes autores afirmam, ainda, que quando as pessoas manifestam comportamentos que não correspondem aos que normalmente estão associados aos papéis que desempenham, dão a impressão de não se comportar adequadamente. Côté, Bélanger, e Jacques (1994:204) e Jacques (1979:175), por sua vez, definem o conceito de papel como subentendendo "uma série de comportamentos e atitudes directamente ligados ao facto de ocupar um lugar. De qualquer indivíduo que ocupa o lugar ou manifesta expectativas em relação a ele, se espera que se comporte de uma determinada forma e que no exercício da sua função assuma o papel associado ao seu lugar", e "a função principal do papel é a de assegurar a previsão dos comportamentos" (ibidem). Os papéis servem de guias para o comportamento ou são o que o contexto social designa como o comportamento apropriado em relações específicas. (Fisher e Adams, 1994:121). Para Etzioni (1989:110) "papel indica o comportamento que se espera de uma pessoa numa determinada posição". Alves-Pinto (1995:151), afirma que o papel está ligado intimamente aos comportamentos quando refere que "papel é um conjunto organizado de comportamentos que correspondem à leitura que determinada cultura faz das expectativas que se tem sobre quem detém determinado estatuto na organização". Por último, para Mead e numa perspectiva interaccionista, o papel é a atitude que um indivíduo adopta numa relação interpessoal, atitude que é simultaneamente uma resposta e um estímulo às atitudes dos outros. Entendendo-se, ainda, como um processo intersubjectivo dado que depende das interacções e dos significados e interpretações que o sujeito atribui aos comportamentos (1934:150-152 e 256-257). Como Goffman afirma, "cada indivíduo estará envolvido em mais de um sistema ou padrão e, portanto, desempenhará mais de um papel. Cada indivíduo terá, assim, vários eu, colocando-nos de imediato o problema de sabermos de que forma estes vários eu se relacionam" (1997 b:36). Boudon e Bourricaud afirmam que "os papéis podem ser definidos como sistemas de constrangimentos normativos, que influenciam os actores que os detêm, e de direitos correlativos a esses constrangimentos (..) os constrangimentos normativos associados a cada um dos papéis sendo, nos casos mais simples, mais ou menos conhecidos do conjunto dos actores pertencentes a uma organização, criam expectativas de papel que têm como efeito a redução da incerteza da interacção: no momento em que o actor A e o actor B entram em interacção cada um deles espera que o outro aja dentro do quadro normativo que define o seu papel" (1990:505). Joly afirma, ao citar Linton, "os papéis definem as modalidades de interacção do indivíduo com a sociedade de que faz parte. Estão na base da socialização da personalidade. Pode-se desempenhar ou assumir um papel social. O papel será assumido se ele for integrado no eu, na personalidade, por outras palavras, o papel faz parte integrante da personalidade individual" (1992:472) 22 Linton (1986:71) define estatuto como "o lugar que um dado indivíduo ocupa num dado sistema num determinado momento" determinando o papel de cada indivíduo no conjunto em que ele participa sendo a base de uma definição da estrutura social que mediatiza as relações entre os diferentes actores (ibid:72-75). Boudon e Bourricaud (1990:564), afirmam que "a expressão estatuto designa a posição que um indivíduo ocupa num grupo, ou que um grupo ocupa numa sociedade" e que " pode ser entendido como o

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família mas em todos os outros – a escola, o trabalho - que ao longo da vida elegemos

ou nos elegem.

Digamos, antes de passarmos à tentativa de definição do grupo, que a

socialização não pode ser vista apenas como uma forma simples de integração do

indivíduo na sociedade e nos grupos que a compõem mas também como um factor que

corresponde a “uma dinâmica interactiva e muitas vezes conflitual entre o homem e o

seu ambiente social” (Aebischer e Oberlé, 1990: 6) até porque “se os grupos modelam e

socializam os indivíduos, imprimindo-lhes o seu modo de fazer e de pensar, eles são

também produzidos por estes” (ibid:5).

Os grupos – e os indivíduos que os constituem - serão, pois, ao mesmo tempo

“servos e senhores” (Etzioni, 1989: 7) uns dos outros reciprocamente, construindo-se e

construindo os outros na interacção dialéctica que constantemente ocorre entre si.

Por outro lado não podemos esquecer que todos nós “fazemos parte de grupos e

que este estatuto de ‘membro do grupo’ não é secundário, ele é constitutivo da nossa

identidade social” (ibid:39) e que esta nossa pertença a grupos implica estar sujeitos a

solicitações contraditórias23, uma vez que exige que o indivíduo “se conforme com a

regra, seja submisso e obediente, que interiorize os valores dominantes ou domésticos e

por outro lado lhe é exigido que seja criador, que forje a sua personalidade, que se

transforme num homem (...) que seja ora submetido ora criador” (ibidem), nos permite

construir-nos enquanto ser-para-si e ser- para-os-outros (Teixeira, 1993: 443-447). conjunto das relações igualitárias e hierárquicas que um indivíduo mantém com os outros membros do seu grupo". Dolan, Lamoureux e Gosselin (1996:145) afirmam que "o estatuto decorre do lugar ou posição de um indivíduo na organização. Esta noção aplica-se também ao conjunto do grupo, dado que o lugar ou a posição do grupo na organização pode favorecer grandemente a sua influência e eficácia". Côté, Bélanger, e Jacques (1994:207) e Jacques (1979:173) que advogam uma tese semelhante à referida pelos autores anteriormente citados alertam-nos, ainda, para o facto de que "muitas vezes confundida com o papel, a noção de estatuto sugere-nos que este se relaciona com a posição ocupada por um indivíduo no grupo" e afirmam, de novo, que "o estatuto é a posição de um indivíduo num sistema social" sendo esta posição baseada no reconhecimento da contribuição que o indivíduo que a ocupa traz para o grupo. Posição semelhante é defendida por Giust (1997:320-321). 23 Maffesoli fala de “double bind” (1979:54), numa referência à definição dada pela Escola de Palo Alto

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3.3.1.1. O grupo e as identidades dos seus membros

Dado que fomos falando de grupos sem termos tentado encontrar uma definição

destes pensamos ser chegado o momento de o fazermos. Parece-nos assim ser possível

começar por afirmar com Jacques (1994:192) que “o grupo não é uma invenção

moderna, [ele] fez a sua aparição ao mesmo tempo que os seres humanos”. Na

sociedade pluralista em que vivemos “os grupos partilham o espaço social e não é raro

que um indivíduo pertença a vários grupos”.

O grupo poderá então ser visto como “um número restrito de indivíduos que

desempenham actividades similares ou diferenciadas e que, para esse fim, se encontram

numa situação de estabelecerem relações directas aos quais o tempo confere um

carácter de continuidade e de estabilidade” (Bélanger, 1994:5). E começamos aqui a

apercebermo-nos de que nos encontramos de novo perante algumas das características

que já anteriormente apontamos quando falamos de identidade e de identidade

individual ou identidade para si. Encontramo-nos de novo perante a continuidade e a

estabilidade, que como afirma Lorenzi-Cioldi nos remetem para o facto de o indivíduo

“ser prisioneiro das definições do Eu/Self enquanto ser autónomo, ou pelo contrário

enquanto membro de um grupo. As expressões de identidade, o que os indivíduos

dizem de si próprios, são geralmente localizadas ao longo de um continuum que vai do

mais singular, a identidade pessoal, para o mais colectivo, a identidade social”

(1988:11). Será assim neste continuum que o indivíduo, o ser social poderá reconhecer-

se ao longo do tempo e ser reconhecido pelos outros.

Se atentarmos ainda nesta tentativa de definição do que é um grupo encontrar-

nos-emos, ainda, perante a similitude e a diferenciação. E se, tal como afirmam

Aebischer e Oberlé (1990:85), o “agrupamento dos indivíduos em uma mesma

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categoria provoca a sua ‘homogeneização’ e simplifica a nossa forma de os apreender,

de os avaliar (...)de os julgar” não podemos esquecer-nos, por outro lado, como diz

Lorenzi-Cioldi (1988:11) o grupo é “a maior parte das vezes concebido como um

processo que leva à uniformidade, à indiferenciação, à homogeneização entre os seus

membros”.

Mas, se por um lado falamos de homogeneização, de similitude, por outro o

próprio grupo pode propiciar a diferenciação24. São, de novo, Aebischer e Oberlé

(1990:7) que nos dizem que “os grupos são lugares de diferenciação” uma vez que “o

indivíduo se serve também dos grupos para se diferenciar, para afirmar a sua

singularidade por forma a manter ou a aumentar a sua estima de si e construir para si

próprio uma imagem de si valorizada”. O grupo, na opinião das autoras fornecerá pois

ao indivíduo “as marcas que lhe permitem tê-lo como referência, de com ele se

comparar e portanto de validar as suas atitudes e opiniões” (ibid: 74), permitindo ainda

a constituição da sua identidade social.

Ainda para estas autoras, pode falar-se de grupo “quando as pessoas nele se

definem a si próprias como membros do grupo (sentimento de pertença) e ao mesmo

tempo são definidas pelos outros como membros do grupo (visibilidade social ) . (ibid:

6) o que nos faz mais uma vez dizer que indivíduo/pessoas/seres sociais são factores de

influência e influenciados dos e pelos grupos.

Todos pertencemos a grupos, todos somos como afirma o poeta John Donne

parte de “um Continente, parte de um Todo”, todos estabelecemos relações, todos

interagimos uns com os outros e, tal como Crozier e Friedberg (1977:73) dizem acerca

24 Aebischer e Oberlé, (1990: 82) afirmam que a “diferenciação caracteriza-se pelo contraste que o indivíduo estabelece entre si e os outros por relação a uma norma social que é quer aceite quer valorizada (...)fornece dois marcos através dos quais o ambiente e os factos sociais são estruturados e apreendidos; participa na constituição da identidade social porque está ligada ao conhecimento da sua pertença a certos grupos sociais e ao significado emocional e avaliativo que resulta desta pertença”

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das organizações, não somos “ilhas isoladas” pelo que a nossa pertenças a grupos

enforma a existência de relações sociais que compreendem “seres humanos individuais

com diferentes personalidades, diferentes auto-conceitos, diferentes ideias, diferentes

emoções, diferentes relatos das suas relações com os outros" (Fischer e Adams, 1994:

313).

Face a isto, parece-nos ser possível dizer, tal como o faz Mucchielli, que um

grupo não é um mero conjunto de pessoas que se encontram num determinado

momento num determinado lugar, um grupo será “uma realidade na medida em que

exista uma interacção entre as pessoas, uma vida afectiva comum, objectivos comuns e

uma participação de todos, mesmo se essa existência grupal não for consciente e

mesmo que não exista qualquer organização oficial que a exprima” (2000, 206).

E encontramo-nos aqui com um conjunto novo de factores, de características

que permitem identificar um conjunto de seres sociais como um grupo: a interacção, a

emocionalidade, os objectivos comuns. Jacques (1994:193) no que respeita aos

objectivos comuns afirma mesmo que ”um grupo existe se os membros interagem e se

existir interdependência e colaboração entre eles por forma a que se atinjam os

objectivos” pelo que na sua perspectiva para que os membros do grupo possam atingir

os objectivos comuns por si e pelo grupo definidos“é necessário que cada membro do

grupo se perceba como um elemento do grupo, que se identifique como elemento do

grupo “ (ibidem). É Doise que afirma que os objectivos comuns “instituem a pertença

comum a uma categoria social comum e (...) reforçam ou enfraquecem as clivagens e

convergências” (1992:265) entre indivíduos, entre indivíduos e grupos e grupos.

Guimond ao definir um grupo aponta também o facto de ser importante a

existência de objectivos comuns e de uma interacção que permita que os membros do

grupo construam entre si e reconheçam as imagens de si e as imagens dos outros. O

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autor afirma, também, tal como Mucchielli que, um grupo é algo mais do que um

conjunto de indivíduos e que, para que este conjunto possa ser reconhecido como

grupo, necessitará que “1)essas pessoas tenham uma certa forma de interacção social

entre elas, normalmente uma interacção face a face; 2) que tenham um objectivo

comum; 3) que se influenciem; ou 4) que exista uma interdependência entre os

diferentes membros do grupo” (1994:660).

Para Dolan, Lamoureaux e Gosselin, (1996: 133) um grupo “é um sistema

organizado composto por indivíduos que partilham normas, necessidades e fins e que

interagem de modo a influenciar mutuamente as suas atitudes e comportamentos”. E se

estes autores retomam algumas ideias de outros que anteriormente citamos acrescentam

em nosso entender um facto que não nos parece ser de somenos importância e que é o

que se relaciona com as normas. Jacques ao referir-se à estrutura dos grupos afirma que

estes “impõem normas e valores” (1994:203) aos elementos do grupo, caracterizando as

normas como sendo fontes de conformismo25 que “constituem o cimento que une o

grupo” (ibid:208) e que nos podem ser apresentadas como “as regras habitualmente

implícitas que sugerem aos membros do grupo os comportamentos apropriados ou

desapropriados numa dada situação” (Guimond, 1994:670). Podem ainda ser vistas

como “as crenças partilhadas” servindo um fim “essencial: permitem o não recurso

constante ao poder pessoal (...) uma vez que constituem uma medida de controlo

exterior às pessoas” (Jacques, 1994:208).

25 Aebischer e Oberlé dizem que o conformismo é “uma das modalidades de influência social e manifesta-se pelo facto de um indivíduo (ou subgrupo) modificar o seu comportamento, as suas atitudes, as suas opiniões para estar em harmonia com o que percebe serem os comportamentos, as atitudes e as opiniões de uj grupo no qual está inserido ou deseja ser aceite” (1990:61) Para Mucchielli conformismo será “a atitude social que consiste a submeter-se às opiniões, regras, normas, modelos que representam a mentalidade colectiva ou o sistema de valores do grupo ao qual se adere e a torna-los seus” (2000:204).

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Por último diremos que todos pertencemos a grupos e que por isso “somos

confrontados com indivíduos e grupos com os quais temos relações de solidariedade”

(Lorenzi-Cioldi, 1988:5), mas que apesar destas confrontações temos, face ao ou aos

grupos a que aderimos ou desejamos aderir ou integrar, um sentido de pertença que nos

fornece “os aspectos explicitamente colectivos e uniformisantes da identidade do

indivíduo e impede a emergência de uma representação do eu/self distinta e autônoma”

(ibid: 16).

O sentimento de pertença será no entender de Aebischer e Oberlé

“determinante” uma vez que será “o sentimento de pertença que ligará o indivíduo a um

ou mais grupos e [que lhe dá a possibilidade] de demarcar e limitar diferentes grupos

num campo social como que delimitado por fronteiras reais ou simbólicas”. Será pois o

sentimento de pertença que nos transmitirá “o sentimento de ‘Nós’, que socializa o

indivíduo por relação aos valores defendidos pelo seu grupo, às suas características, às

suas particularidades e aos seus objectivos” (1990: 74).

Para terminar este ponto gostaríamos de lembrar que apesar de o grupo ser

importante na construção da identidade e factor primordial para a identidade social ou

identidade-para-os-outros, de ser ele que nos permite ter a noção do “Nós” da nossa

inserção na História “nem todos os membros de um grupo possuem todas as

propriedades que definem claramente o grupo e tal como com o limite de uma nuvem

ou de uma floresta, o limite de um grupo é uma linha imaginária” (Lorenzi-Cioldi,

1988:34). Linha imaginária esta que depende do grupo e das características desse

mesmo grupo.

Entendido o grupo como o espaço partilhado por um conjunto de actores onde

cada um tem a possibilidade de expressar a sua similitude e a sua diferença, onde

normas, valores, estatutos e papéis são adquiridos, construídos e re-construidos ou

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desempenhados. Onde cada um de nós, apesar da diferenciação que deseja e marca em

relação aos outros, se revê.

E porque assim o entendemos, cremos que cada um de nós, tal como quando

falamos de organizações – e não é o grupo uma organização se entendermos tal como

Crozier e Friedberg a definem, isto é como um conjunto de "relações humanas que

colocam problemas específicos" (1977:191) -, pertence, adere, integra26 ou deseja

pertencer a vários tipos de organizações, de grupos durante a vida.

Neste sentido salientamos que os grupos são caracterizados por uma

considerável diversidade, assim como as abordagens de que têm sido objecto. Cremos

ser vantajoso atentar à diversidade dos diferentes tipos de grupo em que cada um de nós

se pode envolver ou a que pode pertencer. Características de um grupo, o porquê da sua

existência, podem, então, ser aspectos que nos levam a procurar conhecer diferentes

tipologias dos grupos.

Observemos, a título de exemplo, alguma sistematização de diversas tipologias

de grupos apresentadas por alguns autores.

Tipos de Grupo

Guimond Mucchielli Jacques Primário Primário Primário

Secundário Secundário Secundário Pertença Pertença

Referência Referência Formais Formais

Informais Informais Restrito Micro

Categoria social/multidão Macro

26 Através da sua integração “nos grupos, os indivíduos satisfazem a sua necessidade de segurança e esperam conquistar ou preservar vantagens” (Aebischer e Oberlé, 1990:39). A integração é também no entender destas autoras “um processo que se desenvolve através de um duplo movimento, que implica não só tomar em consideração os constrangimentos da sociedade sobre o indivíduo por um lado, as necessidades e as aspirações que levam a que qualquer um se afilie, se integre nos grupos, por outro lado” (ibid:40).

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Vejamos então. Por grupo primário entender-se-á “ o conjunto de humanos, que

se caracterizam por uma associação ou uma cooperação face a face” (Mucchielli,

2000:19) ou no sentido de melhor podermos compreender o que se entende por grupo

primário poderíamos afirmar que ele será “um ‘nós’, que engloba toda a espécie de

simpatia e de identificação mútua para a qual o ‘nós’ é a expressão natural” (ibidem).

Assim o grupo primário poderá ser visto como o grupo que mais ”nos toca

emocionalmente. É composto de pessoas que têm contactos regulares, pessoais e

íntimos connosco, como a nossa família ou os amigos” (Guimond, 1994:661).

Parece-nos, assim, poder dizer que o grupo primário será aquele em que os

membros estarão “total e emocionalmente envolvidos” (Jacques, 1994:196) e que

muitas vezes também pode ser qualificado de grupo informal uma vez que este se cria

“naturalmente a partir de interacções, de preferências ou de necessidades individuais.

Os membros aderem a ele voluntariamente” (ibid:194), ou como afirmam Dolan,

Lamoureaux e Gosselin, o aparecimento destes grupos é espontâneo e eles constituem-

se “ao sabor e ao longo do tempo e das interacções dos membros das organizações. Os

membros de um grupo informal partilham geralmente as mesmas ideias, valores,

crenças e necessidades sociais” (1996:135).

E cremos que para além destas características que, em nosso entender,

aproximam os grupos primários dos grupos informais, será de realçar o facto de a

adesão aos grupos informais ser voluntária e permitir que o grupo “se desenvolva

naturalmente segundo as preferências ou os interesses comuns” (Guimond, 1994:661).

Ao contrário do grupo informal todos nós em momentos diferentes da vida –

quando entramos na escola e somos afectos a uma classe/turma, no trabalho, nas

associações culturais, recreativas, sindicais que escolhemos ou nos acolhem –

integramos grupos formais.

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O grupo formal terá, assim por função “realizar um trabalho específico e bem

definido” (ibid: 660) sendo, por isso, “criado intencional ou deliberadamente” pelo que

nele podemos descrever a existência de “uma estrutura de autoridade, de estatutos

determinados e uma série de papéis definidos , largamente elaborados e duradouros”

(Jacques, 1996:194).

Parece-nos, pois, ser possível dizer que o grupo formal poderá, em certos casos,

ter semelhanças com o que é definido como grupo secundário, no sentido de que este

pressupõe que as relações “entre o grupo e os membros são meramente ocasionais”

(ibid:196). E serão ou poderão ser ocasionais dado que elas apenas acontecem para

permitir a concretização, o levar a cabo de uma tarefa pré-definida.

O grupo secundário poderá, assim ser visto como o grupo em que “as relações

são indirectas, em que a consciência da existência dos outros é global ou vaga, em que

a pertença faz parte do saber (...) em detrimento de uma existência afectiva quotidiana,

...e em que as comunicações passam por intermediários” (Mucchielli, 2000:19).

É talvez por isso que Mucchielli diz que aos grupos secundários lhes chama

também “organizações” (ibidem). E poderão ser denominados de organizações porque

normalmente poderão ser vistos como constituídos por um “conjunto de pessoas

normalmente mais determinadas que desenvolvem contactos entre si de forma mais

esporádica e num contexto mais oficial e impessoal” (Guimond:1994: 661).

Outro tipo de grupo que nos aparece referenciado em alguns dos autores cujas

tipologias elegemos, são os grupos de pertença e de referência.

Com já dissemos anteriormente, todos nós escolhemos grupos aos quais

aderimos ou eventualmente desejaríamos pertencer.

Assim, por grupo de pertença entende-se o grupo no qual o “indivíduo tem

relações directas, face a face, com os outros membros “ (Mucchielli, 2000:41), o grupo

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de pertença será ainda aquele que “influencia as nossas atitudes e os nossos valores “

(Guimond,1994: 661) e no qual cada um de nós se mantém enquanto as necessidades

que nos levaram a escolhe-lo não forem completamente satisfeitas. No momento em

que o forem então cada um de nós estará pronto a “modificar a sua pertença de acordo

com as circunstâncias” (Jacques, 1994: 197).

O sentido de pertença a um grupo constrói-se ainda “na relação assimétrica que

liga um grupo aos outros grupos, sendo o factor que faz aparecer esta relação uma

representação da identidade de si” (Lorenzi-Cioldi, 1988:38) pelo que “ a pertença a um

grupo social pode desembocar mais sobre as componentes colectivas do que as

singulares do Eu/Self” uma vez que as influências que os grupos de pertença exercem

sobre “a imagem do Eu/Self não se reduzem à presença de referentes colectivos nas

suas condutas e nos seus propósitos” (ibid:35) podendo afirmar-se, pois, que as relações

“intergrupos e a pertença a um ou outro grupo de dois se repercutem diferentemente

sobre a identidade dos indivíduos, exprimindo-se esta em termos mais ou menos

singulares, ou mais ou menos relacionais, isto é colectivos” (ibid:39).

O grupo de referência, por sua vez, pode ou não ser um grupo ao qual o sujeito

pertence de facto. E pode ou não corresponder a uma presença física e efectiva do

sujeito uma vez que por grupo de referência se pode entender aquele que permite ao

actor ter como referência “de forma mais ou menos consciente, as suas opiniões, os

seus princípios, os seus valores, os seus fins” (Mucchielli, 2000:41).

Poderemos, ainda dizer que os grupos de referência têm duas grandes funções

“fornecem marcas de comparação27 que nos permitem avaliar-nos; e por outro lado,

27 São ainda Aebishcher e Oberlé que nos dizem que por vezes “a comparação com outros grupos (...)tem um resultado inverso:ela confirma que este ou aquele grupo de pertença é mesmo o grupo a eu se deve aderir, que tem importância para nós, ao qual tem desejo de continuar a pertencer” (1990:53) e que “no jogo da comparação não se trata apenas de ser diferente para não ser similar. Trata-se de ser único. Um indivíduo aceita mais facilmente uma relação de similitude entre ele e as outras pessoas se esta similitude

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propõem-nos normas e modelos que influenciam as nossas atitudes e as nossas

oipniões” (Aebischer e Oberlé, 1990:53) pelo que poderão ser vistos como os grupos

“aos quais os indivíduos se apega pessoalmente enquanto membro de pleno direito ou

aqueles aos quais aspira ligar-se psicologicamente: em outros termos, aqueles com os

quais se identifica ou deseja identificar-se” (ibidem) ou ainda, serão os grupos que “um

indivíduo adopta como quadro de referência para os seus comportamentos, as suas

atitudes ou os seus valores” (Guimond:1994: 661).

Por último cremos que o grupo ou grupos de referência, que cada um de nós

elege ao longo da vida, terão grande influência na construção da identidade social de

cada um de nós pois, como afirmam Bourhis e Gagnon, “o desenvolvimento cognitivo,

a escolha do grupo de referência assim como a necessidade de ter uma identidade social

positiva são factores que influenciam a identidade social dos membros dos grupos (...)

da infância à vida adulta” (1994:749).

É Guimond que nos fala dos grupos restritos afirmando que os mesmos

designam “um grupo relativamente bem estruturado que é composto por um pequeno

número de indivíduos tendo contactos face a face de forma mais ou menos regular”

(1994:662), o que nos reenvia para a designação micro de que se serve Jacques

(1994:197) para falar deste tipo de grupo.

Grupo macro (ibidem) ou multidão/categoria social são as denominações

utilizadas, quer por Jacques quer por Guimond, para os grupos “muito grandes,

relativamente pouco estruturados, compostos por centenas ou milhares de pessoas e

onde não é sequer questão falar de interacções face a face entre os seus diferentes

membros” (1994:662).

é definida por referência a si próprio, isto é se o sujeito se torna no modelo com o qual o outro é comparado” (ibid:77)

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Por último cremos ser importante tentar perceber o que pode levar qualquer um

de nós a procurar integrar um ou vários grupos.

No início deste ponto quando procuramos definir grupo afirmamos que um dos

factores importante na sua constituição era o que respeita aos objectivos comuns. Sejam

eles quais forem serão facilitadores da “adesão a um projecto comum ou a uma

experiência específica” (Doise, 1992:265). Além disso os objectivos comuns

favorecerão ainda uma “frequência elevada de ocasiões de interacção (...) assim como o

crescimento do grupo” (Dolan, Lamoureaux e Gosselin, 1996:136).

Para além dos objectivos comuns, outros factores parecem ter uma palavra a

dizer no que respeita à formação, à procura de pertença a um grupo. Assim Jacques

(1994) aponta um conjunto de necessidades que vão desde a afiliação28, a

identificação29, a comparação social30, a segurança31, a estima de si e o poder32 até à

cooperação para tentar compreender o que faz com que os indivíduos se juntem a um

ou a vários grupos. Dolan, Lamoureaux e Gosselin (1996:136) apontam para além de

interesses, fins comuns e influência, ainda as características pessoais para justificar a

adesão aos grupos.

Por sua vez, Guimond (1994) apresenta três abordagens para a compreensão da

formação dos grupos: o modelo funcionalista, o da coesão social e o da identificação

social. 28 Esta é uma necessidade social que provem do facto de os “indivíduos desejarem ser aceites pelos outros e desejarem igualmente aceitar os outros” (Jacques, 1994:198) 29 Jacques afirma que todos nós desejamos “pertencer, identificar-se com alguma coisa” e que este desejo de identificação “se manifesta aliás através da tendência que todos os indivíduos têm de se perceber como membro de um pequeno grupo” (ibidem) 30 de acordo com a autora esta necessidade “faz com que uma pessoa se junte a um grupo para avaliar as suas próprias ideias, opiniões e julgamentos. (...)poderá ser importante para um indivíduo comparar-se com os outros pois poderá aquilatar se as suas opinões correspondem à realidade social” (ibidem). 31 O grupo servirá para que o indivíduo resolva uma conjunto vasto de inseguranças (Jacques, 1994). 32 Para além de os grupos permitirem que cada um se valorize e ponha em relevo o seu valor, pelo facto de permitir a constitução de subgrupos permitirá ao sujeito exercer poder sobre os outros (Jacques, 1994).

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O primeiro dos modelos baseia-se na satisfação de necessidades psicológicas

para explicar a formação dos grupos. O modelo da coesão social afirma que é a

“atracção que os indivíduos sentem uns pelos outros que os conduz eventualmente a

formar um grupo” (Guimond, 1994:663).

Quanto ao que respeita ao modelo da identificação social apóia-se sobre os

“mecanismos de identificação social” e procura saber “como é que os indivíduos se

percebem e se definem” (ibidem) uma vez que segundo este modelo a formação dos

grupos depende da maneira como os “indivíduos se classificam como membros de uma

categoria social particular” (ibid:668).

Em qualquer uma das abordagens, de forma explícita ou implícita o grupo é o

palco do jogo de imagens recíprocas dos seus membros. E é enquanto membro de

grupos que fazemos a experiência do Nós. O grupo permite reconhecermo-nos na

continuidade, na estabilidade, na diferença, na singularidade e na similitude do Eu/Self

que se constrói e reconhece também nas interacções que cada um estabelece com os

outros e portanto nos permite perceber que para além da história de cada um

construímos e ajudamos a construir a história do “Nós”.

Assim parece-nos ser possível afirmar que “muitas mudanças importantes

acontecem nas nossas vidas quando nos integramos num novo grupo social. Deixar a

casa, ir para a universidade, encontrar um trabalho, qual quer um dos casos implica

modificações consideráveis no tecido das nossas relações sociais e tem repercussões na

nossa forma de ser e de agir” (Guimond, 1994:658) e que estas mudanças terão

implicações importantes no devir que é a identidade de cada um.

Implicações e mudanças não só na identidade individual ou pessoal ou para-si,

assim como identidade social ou para - os-outros.

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3.4. A identidade social

Face a tudo isto cremos que, se os grupos determinam de alguma forma a

concepção que cada um de nós tem de si próprio, então poderemos dizer que “toda a

identidade é por um lado pessoal, no sentido em que está ‘localizada’ numa pessoa e

social na medida em que os processos da sua formação são sociais” (Deschamps et all,

1999:150).

Estamos, assim perante os dois pólos que constituem a identidade33 – o pólo

individual e o social – que como já anteriormente afirmamos é polifacetada34,

multiforme e em constante construção ao longo de toda a vida (cf. Campeau et all,

1998:109).

E porque nos detivemos já sobre o pólo individual cremos que será importante

determo-nos sobre o que se entende por identidade social até porque pensamos que de

alguma forma “os indivíduos adquirem e moldam a identidade [social] através da sua

pertença a grupos” (Lorenzi-Cioldi, 1988:14).

Neste sentido, identidade social poderá ser entendida como”os traços de ordem

social que assinalam a pertença [do indivíduo] a grupos ou categorias” (Deschamps et

all, 1999:152) cuja compreensão estará ligada aos “papéis sociais” e às “posições que

um indivíduo ocupa na sociedade” (Doise, Deschamps e Mugny, 1991:38).

33 De acordo com Ruano-Borbalan a identidade “deve ser concebida como uma totalidade dinâmica onde diferentes elementos interagem na complementaridade ou no conflito. Daí resultam ‘estratégias identitárias através das quais o sujeitto tende a defenfer a sua existência e a sua visibilidadde social, a sua integraç~zo na comunidade ao mkesmo tempo que se valorizae busca a sua própria coerência’” (1998:7) 34 Dortier sobre a questão da possibilidade de cada um de nós ser portador de várias identidades cita Edgar Morin afirmando que este autorf diz que “vivemosa na ilusão de que a identidade é una e indivisível, quando ela é sempre ‘unitas multiplex’. Todos somos seres poli-identitários, no sentido em que unimos em nós uma identidade familiar, uma identidade regional, uma identidade transnacional e eventualmente uma identidade confessional ou doutrinal” (1998:35).

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A identidade social aparecer-nos-á, então como sendo “uma parte do processo

do Eu/Self35” ou mesmo como “a parte do conceito do Eu/Self do indivíduo que

decorre das suas pertenças a grupos, das relações interpessoais e da posição e do

estatuto dos grupos na sociedade” (Lorenzi-Cioldi, 1988:30).

A identidade social , de acordo com Massonnat e Boukarroum, toma forma na

“articulação entre construção da identidade e o lugar ocupado pelos indivíduos nos

grupos sociais” (1999:186). Segundo os mesmos autores este tomar forma da

identidade social acontece sempre que “um sujeito se afilia a grupos, os abandona e

passa a referir-se a outros para pensar e para agir” (ibidem).

Para Campeau et all, identidade social representará um «sistema de ideias, de

sentimentos, de hábitos que nos permitem exprimir não a nossa personalidade mas o

grupo ou os grupos de que fazemos parte” (1998:93) sendo mesmo a expressão “de

alguma forma da nossa cultura” (ibidem).

Esta ideia de que a identidade social poderá ser vista como a expressão da nossa

cultura, fez com que os autores se referissem ao “Eu de cultura” conceito avançado por

Malrieu, definindo o “eu de cultura” como o conjunto dos saberes e dos poderes que

permitem ao indivíduo funcionar à vontade no meio em que evolui e dar sentido aos

gestos que reproduz quotidianamente, sentido que, por sua vez, é estranho para uma

pessoa que não partilhe o mesmo ‘eu de cultura’” (ibidem).

Cremos poder dizer que a identidade social nos aparece como o sentido de

partilha dos significados, para além da partilha dos saberes, dos saber-fazer, dos

poderes. 35 Convirá aqui relembrar que para Doise, Deschamps e Mugny “o Eu/Self e o Nós são indissociáveis e constituem uma ‘totalidade reversível’. Por outras palavras, as representações do Eu/Self e do Nós reenviam-nos para conteúdos comuns emprestados quer pelos modelos culturais quer pela biografia pessoal. O individual e o colectivo seriam assim ‘como uma espécie de gestalt em que tanto o Eu/Self é figura e o Alter o fundo como o contrário, mas os dois [Eu/Self e Nós] estão associados e cimentados através daquilo que poderíamos chamar a emoção identificativa” (1991:41)

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E, voltando um pouco atrás, relembramos que se não formos capazes de

partilhar os significados, se não formos capazes de com os outros partilhar o nosso

mundo simbólico não seremos capazes de comunicar, de entender o mundo, de nos

entendermos a nós próprios e os outros, até porque “cada um de nós, no decurso da sua

vida, aprende que é através do olhar, e depois através das palavras dos outros” (Dubar,

1998a:136) que comunicamos, que nos construímos e construímos os outros que

connosco interagem.

E a identidade social fabrica-se na interacção. Como afirmam Marc e Picard

(s/d:71-72), será na interacção que "o social afecta o indivíduo (o EU), este por sua vez

age sobre o social (como Eu). A atitude do Eu influencia a atitude dos outros e por isso

mesmo modifica a posição do grupo" em que se insere e com o qual interage”. Será

ainda na interacção com os outros, no olhar e nas palavras dos outros que "os gestos do

outro são apercebidos e interpretados. As imagens do eu e do outro são à vez

determinantes e o produto da interacção, mas a imagem do outro é bem mais

susceptível de modificações que a do eu" sendo a vida "uma confrontação entre a ideia

que cada um constrói de si próprio e a sucessão contínua de imagens que nos são

oferecidas" (Queiroz e Ziolkovski, 1994:44).

Identidade social parece-nos, portanto, subentender a “ideia da existência de

‘Nós-Outros’ e de unicidade desta entidade” (Deschamps et all, 1999:44) dado que

pode ser vista como um “conjunto de referentes materiais, sociais e objectivos36 que

36 No que respeita ao conjunto de referentes vários são os autores que a eles se referem de forma mais ou menos alargada. Assim Ruano-Borbalan (1998:10) aponta como possíveis referentes “os rituais de memória, a cultura e as crenças [como constituindo] formas privilegiadas da socialização e da identificação dos indivíduos”. Deschamps et all (1999:43-57) falam-nos das crenças, dos valores, dos fins e da ideologia. Assim para estes autores a crença no grupo – “nós somos um grupo” para além de exprimir a identidade social dos membros do grupo permite a cada um “partilhar crenças relativas a toda uma outra variedade de assuntos” (ibid:44). Os valores em sua opinião “orientam a escolha dos meios e dos fins de acções particulares e servem os critérios de avaliação de objectos, acções ou acontecimentos. Sendo possível caracterizar os grupos pelos valores que os seus membros partilham” (ibid:50). Os fins

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definem uma pessoa, e que se inscreve num processo evolutivo. [A identidade social]

molda-se, reorganiza-se, modifica-se ao longo da vida. Realiza-se através de um duplo

processo de socialização37 e de personalização38” (Campeau et all, 1998:109).

Enfim cremos poder dizer que a identidade social repousa sobre “as referências

privilegiadas (...) da pertença a um grupo ou a uma dada categoria39 social, as posições

que um indivíduo ocupa numa estrutura social”( (Deschamps et all, 1999:151).

Neste sentido parece-nos ser possível afirmar que o “indivíduo é tanto um ser

colectivo como um ser privado” (Campeau et all, 1998:93), possuidor de uma

identidade que se constrói no individual mas também no colectivo. Assim e se a

identidade pessoal é da ordem do vivido também nos parece que a identidade social

seja da “ordem da realidade vivida” (Drevillon, 1979:179) podendo, de acordo com o

podem ser entendidos como referentes uma vez que na sua perspectiva os indivíduos “formam grupos para atingir determinados fins. Conseqüentemente, os fins (...) mantêm freqüentemente os membros do grupo juntos, conferem uma base à solidariedade e orientam a actividade” (ibid:51). Por último e no que respeita à ideologia que na sua perspectiva “é muitas vezes descrita como a característica mental do grupo” (ibid:53) consideram os autores que ela “consiste num conjunto de ideias que caracterizam a forma como um grupo expõe, explica e justifica as finalidades e os meios das suas acções sociais organizadas” dando assim ”uma identidade aos membros do grupo, definindo a cesão do grupo e descrevendo o seu carácter exclusivo”(ibid:54) 37 De acordo com Dubar (1998:135) “a identidade social não é inata, ela resulta da socialização dos indivíduos. Ela não é puramente pessoal, dependendo do julgamento dos outros” 38 Campeau et all afirmam no que respeita à socialização e à personalização que “a socialização permite ao indivíduo criança fazer a aprendizagem das regras sociais e culturais para estarem à vontade no seu meio. Mais tarde, na adolescência, o indivíduo personaliza-se, isto é rejeita selectivamente certos aspectos da socialização, escolhe a forma mais pessoal dos modelos, dos valores, das normas e fá-los seus” (1998:109). 39 O processo que permite a elaboração e inserção dos indivíduos numa categoria social – categorização – foi extensamente desenvolvido por Tajfel aquando da construção da teoria da identidade social. Aebischer e Oberlé (1990:84) apontam no entanto duas funções essenciais ao processo de categorização social. As autoras dizem que este processo “fornece os elementos de referência a partir dos quais o ambiente e os factos sociais são estruturados e apreendidos; participa na constituição da identidade social, uma vez que esta está ligada ao conhecimento da pertença [do indivíduo] a certos grupos sociais e ao significado emocional e avaliativo que resulta desta pertença”. As autoras referem ainda que ao categorizar “sistematizamos o nosso ambiente, ordenámo-lo, simplificámo-lo de maneira que nos podemos reconhecer na massa de informações e de acontecimentos que nos assaltam todos os dias” (ibidem). O processo de categorização pressuporá pois “uma actividade de conhecimento que nos permite orientar no ambiente e de nele nos ancorarmos, (...) uma selecção de informações que são triadas, agrupadas, ordenadas e reagrupadas em função das categorias pertinentes para um indivíduo num dado momento e de critérios que definem essas mesmas categorias” (ibidem). De acordo com Deschamps et all (1999:155) “uma categoria corresponde (...) a um conjunto de elementos que têm em comum uma ou várias características” pelo que “toda a categoria social é antes de mais, uma categoria cognitiva, isto é é o congregar, em espírito, de pessoas que supostamente partilham uma ou mais características comuns”.

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autor, distinguir-se cinco elementos constitutivos dessa mesma identidade social. A

identidade social será, pois,

“ - subjectivamente vivida e percebida pelos membros de um grupo;

- resulta da consciência de pertença a um grupo;

- define-se antes de mais pela oposição e diferença com outros grupos;

- discerne-se através de um conjunto de representações em que se

opõem traços negativos e positivos;

- as atitudes e imagens exprimem-se num discursos que revela um

sistema de ideias” (ibidem).

E de novo reencontramos ideias que já foram perpassando na reflexão que

fizemos sobre a identidade e sobre a identidade pessoal. As ideias da similitude e a

correspondente oposta da diferença, da estima de si40, dos estatutos e papéis, das

crenças, das práticas, das tradições, das opiniões. Para além destas que perpassam no

entendimento do que poderá ser a identidade social, encontra-nos-emos, também,

perante ideias que respeitam a aspectos afectivos provenientes do”sentido de pertença”

que “se constrói na partilha de experiências comuns” (Campeau et all, 1998:93).

Ideias que nos remetem para diferentes formas de solidariedade humana até

porque, no entender dos autores, estas “ilustram bem no concreto o sentimento de

pertença” (ibid:95) uma vez que “o espírito do grupo que se exprime nas diferentes

manifestações de solidariedade – sindical, familiar, de clã ou de classe – se traduz na

entreajuda, na adesão, na lealdade e na valorização dos laços comunitários. Nessas

40 A estima de si, reenvia-nos “ para os julgamentos de valor da pessoa por relação com as características do ou dos grupos com os quais se identifica. Assim uma pessoa poderia dizer que os grupos sociais aos quais pertence formam uma parte importante da estima de si.” (Vallerand e Losier, 1994:130). Os autores afirmam, ainda, que a estima de si “reflecte a avaliação subjectiva do indivíduo quanto aos atributos pessoais, como as suas competências, a sua personalidade ou a sua apareência” (ibidem)

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manifestações de solidariedade esquece-se o ‘eu’ para não se ser senão um ‘nós’ por

detrás de uma causa comum” (ibidem).

E identidade social estará ligada à similitude uma vez que ela “exprime um

conjunto de papéis partilhados que contribuem para definir, ao mesmo tempo, o

indivíduo em questão e todos os indivíduos comprometidos com o desempenho desses

papéis” (Lorenzi-Cioldi, 1988:19) sendo a similitude mais bem aceite pelo indivíduo se

“forem os outros aqueles que se assemelham ao próprio sujeito, tido como modelo”

(Aebischer e Oberlé, 1990:77) até porque as “identidades sociais são partilhadas por

aqueles que ocupam posições semelhantes, que têm pertenças comuns” (Deschamps et

all, 1999: 152).

A similitude, factor constitutivo da identidade social, permitirá ao sujeito então

ser “uma pessoa parecida com aquelas que partilham o mesmo meio de vida que ele”

(Campeau et all, 1998:109).

O aspecto oposto ao da similitude será o da diferenciação ou singularidade. E,

se por um lado, podemos dizer que um dos aspectos marcantes da identidade social será

a ideia da similitude, de semelhança entre os indivíduos que constituem um grupo, por

outro lado, parece-nos ser possível dizer que “se (..) é através da afirmação da nossa

singularidade que confortamos a nossa identidade, e se a diferença é para se buscar

como aquilo que nos permite distinguirmo-nos dos outros, esta é também um valor que

partilhamos com os outros” (Aebischer e Oberlé, 1990:102). Campeau et all (1998:95)

afirmam mesmo que “a partir do momento em que uma pessoa se sente em segurança

no seio do grupo, tem tendência a afirmar a sua diferença, a sua singularidade, o que a

torna numa pessoa diferente”.

O sentimento de identidade não nascerá, assim, “da consciência da diferença

entre a espécie humana e as outras espécies animais, mas da existência da distinção

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entre colectividades e mesmo entre outros homens e outras colectividades” (Freund,

1979:75) pelo que nos parece ser possível afirmar que quando falamos em similitude e

em diferença no âmbito da identidade social estaremos a falar quanto ao primeiro na

possibilidade e até necessidade que o sujeito tem, e expressa, de se sentir igual ou

similar a outros, por forma a que possa integrar , pertencer a grupos com os quais se

identifica e onde encontra a “segurança” Campeau et all (1998:95).

No que respeita à diferença ela está ligada quer ao sentimento de distinção entre

grupos quer ao sentimento de distinção entre indivíduos de um mesmo grupo. Distinção

esta que acontece uma vez que o grupo “funciona como o catalizador privilegiado da

identificação pessoal” (Ruano-Borbalan, 1998:7).

No entanto, e face ao postulado pela teoria da identidade social, enunciada por

Tajfel, poderíamos afirmar que uma das “necessidades fundamentais do indivíduo é

construir e preservar uma identidade distinta daquela que pertence ao outro” (Lorenzi-

Cioldi, 1988:14).

A distinção intragrupo satisfaz a necessidade do indivíduo construir e preservar

uma identidade distinta, assegurando níveis de aceitação securizantes. Por seu lado a

distinção intergrupos responde à necessidade de sentir que se pertence a grupos onde se

percebe como “ semelhante aos outros membros do endogrupo e diferente dos do

exogrupo” (Bourhis e Gagnon, 1994:747). Assim, o indivíduo, no sentido de satisfazer

esta necessidade “efectua comparações favoráveis entre o seu grupo e os outros grupos”

(Lorenzi-Cioldi, 1988:14).

Parece-nos, pois ser possível afirmar que de acordo com o postulado pela teoria

da identidade social “um indivíduo partilha as suas pertenças a categorias sociais com

certos indivíduos e distingue-se de outros através destas mesmas pertenças” (Doise,

1992:253) pelo que seria “ precisamente pela acentuação das semelhanças e das

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diferenças que o organismo vivo pode organizar com maior eficácia a sua actividade no

ambiente” (ibid:254) o que, no que respeita ao homem “ tais acentuações seriam

também muito importantes para que ele se possa orientar no seu universo social”

(ibidem).

Para que o ser humano se possa pois orientar no seu universo social precisa de

se identificar com certos grupos ligados ao sexo, à idade, à ocupação profissional, ao

grupo social (cf. Bourhis e Gagnon, 1994:748) o que pressuporá um processo de

categorização41. E será este processo que de acordo com Bourhis e Gagnon, (ibidem)

permitirá ”ao indivíduo definir-se enquanto membro de grupos particulares nos seio da

estrutura social”. As acções dos grupos sociais subentendem sistemas complexos de

categorização que se traduzem nas convergências ou clivagens sociais e que permite

ajudar a perceber como “a realidade social se estrutura” (1992:263).

A identidade social que se constrói será entendida assim como “parte do

conceito de si dos indivíduos que provém do seu conhecimento da pertença a um grupo

social, associado ao valor e à significação emotiva desta pertença” (Bourhis e Gagnon,

1994:748).

A teoria da identidade social releva, pois, “a definição de um ‘nós-outros’ que

permite aos membros de um grupo dizer ‘nós pertencemos a um grupo’ (...) graças a

este processo, os indivíduos percebem-se como membros de um grupo, identificam-se

como tal e diferenciam o seu grupo de outros grupos” (Deschamps et all, 1999:43).

41 Deschamps et all (1999:154) dizem mesmo que a categorização “permite o recorte do ambiente para posterior reagrupamento dos objectos que são ou que parecem similares uns aos outros em certas dimensões e diferentes de outros objectos nessas mesmas dimensões. A categorização tem um papel específico na estruturação do ambiente tendo uma função de sistematização (recorte e organização) e através da simplificação em si desse mesmo ambiente. (...) Um dos principais efeitos da categorização é o aumento percebido das diferenças entre as categorias (...) e das semelhanças no interior de uma mesma categoria”.

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Será através da percepção, da identificação da pertença a categorias sociais que

o indivíduo pode construir “uma identidade social positiva [uma vez que] o grupo de

pertença deve aparecer diferente dos outros grupos nas dimensões julgadas positivas e

importantes para o indivíduo membro desse grupo” (Bourhis e Gagnon, 1994:748). Mas

para além da possibilidade de construção de uma identidade social positiva, o indivíduo

na relação que o seu grupo de pertença – o endogrupo – estabelece com o ou os outros

grupos, pode ainda construir uma identidade social negativa o que pode “ter um efeito

nefasto na estima de si” (ibidem) uma vez que “há uma sobreavaliação do exogrupo

percebido como tendo a maior parte das características valorizadas pela sociedade

dominante” (ibid:749). Tal facto, pode levar-nos a afirmar com Doise que “as pertenças

categoriais intervêm em grande parte na definição do Eu/Self que cada indivíduo

elabora “ (1992:265) mas que a “acentuação das diferenças e das semelhanças entre

grupos [sendo os processos centrais da categorização] não se desenrolam

necessariamente de uma forma simétrica para todos os grupos” (ibid:267).

Mas importa distinguir a identidade ”social ‘virtual’ emprestada a uma pessoa e

a identidade social ’real’ que ela se atribui a si própria” (Dubar, 1997:107).

E a identidade social virtual pode assumir grande variabilidade conforme ela

decorre do endo-grupo ou do exogrupo. A identidade social será ainda o resultado do

processo de interacção que cada um de nós desenvolve com os outros e com o meio em

que se move permitindo assim, que cada um escolha entre as diversas opções que o

grupo ou grupos de pertença lhe oferecem, até porque as escolhas, as opções feitas pelo

indivíduo permitem o comprometimento do “ser individual na colectividade” (Freund,

1979:79). Deste comprometimento releva o facto de o mesmo ser assumido não apenas

como a “simples selecção passageira que [qualquer um] faz quotidianamente na sua

existência” (ibidem) mas sim com convicção e com”fé” (ibidem).

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E porque a identidade social se constrói também desde os mais tenros anos da

vida de cada um e se vai refazendo até ao momento da morte, parece-nos ser possível

dizer que ela se constrói em grupos como a família, a escola, o trabalho.

3.5. A identidade profissional

Procurando nós perceber qual a imagem que os professores têm de si próprios e

quais as imagens que os outros – nomeadamente os alunos – têm da profissão e dos

profissionais, cremos ser necessário reflectir sobre esta forma de identidade social

específica que é a identidade profissional.

E entendemos que a identificação profissional é uma forma específica da

identidade social, pois, como afirma Cohen-Scali, (2000:81) a “distinção entre

identidade social e identidade profissional não aparece sempre de forma clara” uma vez

que a diferença essencial entre as duas identidades estará ligada ao contexto particular e

até singular no qual a identidade social se actualiza, aparecendo a identidade

profissional como uma faceta da identidade social.

Relembremos que tal como já dissemos todos nós pertencemos a vários grupos,

ao grupo família – onde ocorre a primeira socialização – ao grupo escola – é na escola,

na interacção com os seus pares e com os professores, que a criança experimenta a sua

primeira identidade social num grupo mais alargado – e mais tarde ao grupo de

trabalho, que no caso dos professores que nos interessa prefigura um grupo

profissional, mas que na sociedade actual é uma situação entre muitas outras.

Entendida a necessidade de individualmente ao mesmo tempo que, em conjunto,

construirmos a identidade social, entendido ainda o facto de todos nós vivermos em

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relação com os outros, em grupos, pois nenhum de nós é uma ilha isolada, surge-nos,

por vezes, de forma pouco clara a distinção entre a identidade social e a identidade

profissional.

As identidades profissionais diferenciam-se das identidades sociais porque “se

constituem e evoluem no quadro de actividades particulares: as actividades

profissionais” (Cohen-Scali ,2000:82). Entenda-se aqui actividades profissionais em

sentido amplo, não excluindo actividades laborais que a sociologia das profissões não

reconhece como profissão.

Mas não é indiferente a qualificação de profissional. Com efeito, como diz Blin

(1997:182) “a noção qualificante de profissional é uma das instâncias da identidade

social que postula que, no contexto profissional, a identidade profissional seja

mobilizada prioritariamente por relação às outras identidades. É uma vez mais afirmar a

necessária contextualização no sentido em que o contexto actualiza preferencialmente

as identidades que lhe são específicas”.

Mas a identidade profissional não depende só do contexto social e profissional

nem se resumem essencialmente a situar socialmente alguém. ara Dubar (1997:235) As

identidades profissionais corresponderão, para Dubar (1997:235) “a trajectórias sociais

diferentes (...) envolvem as categorias oficiais, as posições nos espaços escolares e

socioprofissionais, mas não se resumem a categorias sociais. São intensamente vividas

pelos indivíduos em causa e reenviam tanto para definições de si como para rotulagens

feitas pelos outros: são pois formas identitárias”.

Voltando ainda ao contexto em que ocorrem as identidades profissionais parece-

nos também determinante para a emergência da identidade sublinhar que “a questão do

trabalho que se faz, do seu lugar na sociedade e do sentido que se lhe dá constituem uma

dimensão, mais ou menos central, das identidades individuais e colectivas” (Dubar,

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1998b:66). E de novo temos aqui a ideia de que a identidade profissional é uma parte do

que poderá ser entendido como a identidade colectiva que “implica a aspiração a uma

identidade pelo menos parcialmente construída no seio de um grupo, a partir de um

conjunto de relações tais como uma comunhão de pontos de vista ou de estilos de vida e

mais geralmente maneiras de ser” (Freund, 1979:67).

De acordo com Cohen-Scali (2000:82), a identidade profissional e a identidade

social não se chegarão a confundir, embora nem sempre a distinção entre ambas seja

clara porque “a primeira reenvia para o domínio do emprego e das actividades

económicas enquanto que a segunda diz respeito ao estatuto social”.

Assim, e tendo em conta que Dubar entende que as identidades sociais são

formas identitárias, parece-nos ser possível afirmar que “a noção de forma identitária

engloba estes dois aspectos essenciais da identidade num contexto em que a relação

com o emprego se torna num aspecto essencial” (ibidem) até porque falar de formas

identitárias corresponde a falar de “maneiras de se definir42, de se identificar face aos

outros, no campo profissional” (Dubar, 2003:45).

A identidade profissional poderá ser entendida, pois como o “produto de um

duplo compromisso43 entre a identidade para o outro44 (...) e uma identidade para si45

(ligada à biografia, à trajectória escolar e á identidade visada)” (Gravé, 2003:38) uma

42 Dubar afirma que existe uma diversidade de maneiras que cada um utiliza para se identificar, para se definir. Essa diversidade de maneiras “de se definir de se situar por relação aos outros e de antecipar o seu futuro, não é apenas um produto do seu percurso anterior, origem social e diploma escolar. Ela é também resultante das experiências sobre o mercado de trabalho (interno ou externo), isto é, ela é resultante de um trabalho sobre si, situado num contexto relacional e dependente de processos de reconhecimento social e pessoal” (2003:45). 43 A este duplo compromisso ou transacção corresponderão dois importantes campos, no entender de Dubar, o que corresponde à sua relação “consigo mesmo, através da maneira como cada um conta o seu percurso anterior, na maneira como se transforma em conto” e o que corresponde à sua relação com “os outros através da forma como se forja o reconhecimento de si pelos parceiros de actividade” (2003:45). 44 O autor entende, no que respeita à identidade profissional, como identidade para os outros “o reconhecimento (ou não) em determinado momento e num dado contexto das competências e saberes de um indivíduo em termos de estatuto e de remuneração” (Gravé, 2003:40) 45 Que se caracteriza pelo facto de estar ligada “às trajectórias sociais, escolares e profissionais anteriores e à percepção do futuro individual” (Gravé, 2003:40)

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vez que este processo de duplo compromisso poderá ainda ser caracterizado pelo facto

de ocorrer num “universo de trocas” (Sainsaulieu, 1988:259) que poderá ser

considerado como um “lugar de experimentação sobre si e sobre os outros” (ibidem).

A identidade profissional constituirá, em nosso entender, “não só uma identidade

no trabalho, mas também e sobretudo uma projecção de si no futuro, a antecipação de

uma trajectória de emprego e o desencadear de uma lógica de aprendizagem, ou melhor,

de formação” (Dubar,1997:114). O que, no entender de Dubar, poderá ser chamado de

“occupational identity” (ibidem) pretendendo-se com esta designação significar “a

identificação a uma carreira na sua globalidade (career), a implicação46 (commitment)

num tipo de actividades e a experiência da estratificação social, as discriminações

étnicas e sexuais, as desigualdades de acesso às diferentes profissões” (ibidem).

A noção de que a identidade profissional transporta consiga uma ideia de

prospectiva, de futuro, parece-nos deveras importante. E parece-nos importante pois, o

trabalho, hoje, não se perspectiva da mesma forma que se perspectivava nos anos do

post-guerra.

A ideia que perpassava nessas décadas era ainda a ideia de que o trabalho era

para a vida e que dependia da formação qualificante inicial de cada indivíduo. Essa

formação inicial permitir-lhe-ia encontrar um posto de trabalho que lhe “assentava

como uma luva” e no qual se manteria para o resto da sua vida activa.

Hoje, face às mudanças vertiginosas que se foram e vão operando parece que

“todas as ‘convenções’ portadoras de identidades profissionais, e portanto, sociais, são

46 Thévenet entende que a implicação é uma “noção nova” (1990:44) e que respeita à “interacção do sistema de valores da pessoa, da sua própria percepção do sucesso pessoal e da auto-concepção com o sistema de valores da empresa e da sua cultura” (ibid:45). Para este autor a implicação poderá ainda ser definidada através da “convicção e aceitação dos objectivos e valores da organização; vontade de actuar no sentido das missões e finalidades que a organização estabelece; desejo muito forte de manter a sua participação na vida da organização” (ibidem)

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progressivamente postas em causa (...) pelas novas formas de gestão das empresas e

mesmo às vezes pelas próprias administrações” (Dubar, 1998b:71).

Hoje novas competências são valorizadas, a estabilidade do e no emprego, a

imobilidade interna já não serão, por muitos, queridas como o pareciam ser

anteriormente.

Hoje, parecem “multiplicar-se os procedimentos de individualização (...), pôr-se

em dúvida as categorias (...) históricas emblemáticas de uma identidade social forte”

(ibidem) o que nos permitirá dizer que “é no confronto com o mercado do trabalho que,

sem dúvida, se situa hoje o desafio identitário mais importante dos indivíduos da

geração da crise. Este confronto assume formas sociais diversas e significativas segundo

os países, os níveis escolares e as origens sociais. Mas é da sua saída que depende,

simultaneamente, a identificação pelo outro das suas competências, do seu estatuto e da

carreira possível e a construção para si do projecto, das aspirações e da identidade

possível. Este afrontamento com a incerteza, diz respeito praticamente a todos” (Dubar,

1997:113).

Esta articulação de que Dubar nos fala entre a identidade para si e a identidade

para os outros estará, assim, “no coração dos processos de construção ou de reprodução

identitária de cada indivíduo” (Gravé, 2003:40).

Para além desta articulação parece-nos ser de relevar o facto de que as relações

que os indivíduos estabelecem no ou nos seus locais de trabalho, serão factor importante

e terão uma “importância crescente na sociabilidade do trabalho” (Sainsaulieu, 1988:

256) até porque a organização será, no entender de Sainsaulieu, “um lugar de

aprendizagem de normas de relação porque oferece possibilidades de experimentação

estratégica” (ibidem), o que fará com que o indivíduo possa ser “influenciado na sua

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forma de racionalizar, de simbolizar e de interpretar a sua experiência ou a dos outros

pelas circunstâncias da comunicação no trabalho” (ibid:11).

E já que falamos de um universo de trocas estratégicas lembremos que é

Teixeira (1993:442) que afirma que “entre a organização e o actor organizacional se

estabelece um sistema de trocas que se pode exprimir pela existência de um duplo

constrangimento. É este duplo constrangimento que faz dele sujeito activo e passivo,

determinante ou determinado” ou como dissemos anteriormente citando Etzioni, é este

duplo constrangimento que faz com que o actor seja servo ou senhor.

E é ainda de relevar que para além de falarmos de um universo de trocas falamos

de um universo de trocas estratégicas e que este sublinhar da noção estratégica47 releva

de facto de que quando se afirma que "um actor tem um comportamento estratégico [se]

significa que ele é capaz de utilizar os recursos de uma situação e as ocasiões que se lhe

oferecem para atingir objectivos pessoais. Estes não são, aliás, sempre claros e

coerentes; não emergem sempre forçosamente da consciência. Para o observador, como

para o par ou o adversário, a estratégia do actor torna os seus actos totalmente

imprevisíveis visto que dependem do ajustamento do actor a recursos flutuantes da

situação organizacional, segundo os seus objectivos pessoais." (Petit, 1989:138).

As relações profissionais actualizam-se e ocorrem estrategicamente, acontecem

pois entre os indivíduos e, dependendo do tipo de relações que cada um estabelece com

os que rodeiam – relações de par ou de chefe ou subordinado –“desenvolvem-se 47 Alves-Pinto (1995:159) afirma que a “análise estratégica (...) vai trabalhar muito com as atitudes das pessoas. Só que estas atitudes não vão ser olhadas como determinadas em exclusivo pelo passado das pessoas. Este passado vai interessar na medida em que permite delimitar, de forma mais adequada , as representações que os actores vão ter das situações e das oportunidades de accção que essas situações lhes abrem”. E porque como já dissemos anteriormente a identidade profissional transporta dentro de si também a noção de futuro esta não está ausente da noção de análise estratégica. É de novo Alves-Pinto que refere que “a análise estratégica põe os projectos pessoais, com a dimensão de futuro no centro da sua interpretação. Com efeito, estudar as estratégias do actor num determinado sistema é perspectivar a sua acção em termos de como se projecta no futuro próximo, a médio ou a longo prazo, tendo em conta as oportunidades que vislumbra no sistema onde interage” (ibidem)

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constantemente fenómenos de identificação projectiva ou identificativa” (Sansaulieu

1988: 304). Estes fenómenos estão intrinsecamente relacionados com as interacções no

campo profissional, que se repercutem directamente na identidade do indivíduo.

Estaremos, pois de acordo com o autor quando afirma que “o conceito de

identidade é portanto muito precioso para designar esta parte do sistema do sujeito que

reage permanentemente à estrutura do sistema social. A identidade exprime esta busca

da força que encontramos nos recursos sociais do poder para se chegar a possibilidade

de se fazer reconhecer como detentor de um desejo próprio” (1988: 333).

Entre os indivíduos estabelecem-se relações de poder48 que relevam quer da

modalidade do exercício de autoridade, quer de modalidades de reacções à autoridade.

Neste último caso podemos distinguir quatro formas de reacção49 a essa mesma

autoridade. Estas quatro formas relevarão ainda em termos de análise feita da

observação de “dois grandes eixos que estruturam as identidades do trabalho concebidas

como forma de socialização no trabalho e na empresa” (Cohen-Scali, 2000:84). Os dois

grandes eixos referidos serão aqueles que respeitam por um lado à integração colectiva

e por outro à ou às sociabilidades50 no trabalho. As quatro formas de reacção à

48 No que respeita ao poder, Boudon e Bourricaud lembram que "o poder é a capacidade exercida pelos líderes (...) para fazer coincidir motivações e interesses heterogéneos" (1986:442).

Livian aponta para o facto de que, o poder pode ser entendido como a "capacidade que tem um indivíduo ou grupo de indivíduos para afectar concretamente o funcionamento e os resultados de uma dada organização" (1987:9) até porque "compreender como os homens cooperam no seio de uma organização permite-nos desenvolver propostas importantes sobre o modo como se podem resolver os problemas de integração em conjuntos complexos e sobre o modo como tais conjuntos se regulam". (Crozier e Friedberg,1977:256).

Crozier e Friedberg dizem que "o poder reside na margem de manobra de que dispõe cada uma das partes envolvidas numa relação de poder" pelo que, será, também, possível afirmar com estes autores que "o poder de um actor social está em função da amplitude da zona de incerteza que a imprevisibilidade do seu comportamento lhe permite controlar face aos outros actores" (1977:59) 49 Cohen-Scali (2000:84) afirma que Sainsaulieu diz que “a identidade no trabalho se ancora nas relações de poder que os trabalhadores estabelecem na empresa” 50 Sainsaulieu a respeito da análise das formas de sociabilidade no trabalho afirma que esta “mostra definitivamente que as categorias socioprofissionais clássicas não coincidem com modelos de comportamento homogêneo” (1988:244) o que pressupõe ainda a necessidade de se ter em conta as mudanças e os constrangimentos do mundo do trabalho que ao longo dos tempos e das décadas foram e vão ocorrendo como já afirmamos.

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autoridade nas relações humanas de trabalho que deles relevam podem então, de acordo

com Sainsaulieu (1988:241-243), ser denominadas da seguinte forma:

descomprometidas, conciliadas, excluídas e solidárias.

A cada uma destas formas corresponderá um tipo de trabalhador ou grupo de

trabalhadores.

À reacção descomprometida corresponderão os trabalhadores que não têm poder

no que respeita ao controlo da regra e da comunicação51, que têm uma forte

dependência no trabalho e que “procuram utilizar a relação de autoridade para retirarem

vantagens individuais” (ibid:241).

A situação em que a “colectividade é central para as trocas humanas” mas em

que os “constrangimentos da situação, nomeadamente as fontes de acesso a um poder

real [existem] mas [nos apresentam esse poder como] limitado para cada um dos

indivíduos “ (ibid:242) sendo ainda as condições de acesso a essas fontes “tais, que o

grupo de colegas não funciona senão com uma relativa indiferença entre eles” (ibidem)

51 Quando Sainsaulieu refere o controlo da regra e da comunicação remete-nos em termos do poder para o que poderemos entender como fontes de poder. Vários foram os teóricos das organizações que procuraram compreender de que forma as fontes de poder podem ou não interferir com o desempenho e as relações que os actores desenvolvem nas organizações. De entre eles destacamos o que Crozier e Friedberg afirmam quanto a duas das quatro fontes de poder que enunciam e que respeitam às fontes de poder que permitem o controlo da informação e das regras. Assim, para estes autores, o domínio dos fluxos de informação e da comunicação (1977:74) entre as unidades e os membros de uma organização estará relacionado com a forma como cada actor transmite as informações que possui o que afectará profundamente a capacidade de acção não só dos outros actores mas também a capacidade de acção da própria organização. No mesmo sentido parece-nos estar Burke que ao referir o controlo dos recursos na organização diz que ele "decorre directamente da capacidade de acesso à informação" afirmando, ainda que "a aquisição e a distribuição de recursos valiosos constituem uma excelente fonte de exercício do poder" até porque " quanto mais aumenta a dependência de B (sujeito) em relação a A (aquele que detém o recurso que B necessita) mais a influência de A é importante" (1991:36-37) e, portanto, quando se é o único a deter o recurso desejado maior poder se tem para influenciar e controlar os outros.

Quanto ao controlo da regra que Crozier e Friedberg afirmam, dizer respeito à fonte de poder existência de regras gerais da organização (1977:75), este poder ser visto como, "um constructo e pode compreender-se como uma resposta da direcção ao problema posto pela existência das três outras fontes de poder"(ibidem). Para Crozier e Friedberg é através da existência de regras gerais da organização que se definem, também, as regras da direcção - aquilo que denominam da "autoridade oficial" - permitindo, o seu conhecimento, que os actores se aproveitem delas como uma protecção contra eventuais decisões discricionárias, tomadas a um nível superior da hierarquia organizacional (1977:77).

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é aquela que parece caracterizar a forma conciliada. Nesta forma cada um, indivíduo ou

grupo, depende fortemente dos líderes dos grupos, aceita uma organização rígida da

colectividade e um tipo de “reivindicações à autoridade formal” (ibid:243) que permite

que cada um assuma as suas responsabilidades e que o líder proteja os indivíduos.

A forma excluída caracterizar-se-á pela inexistência de “sinais de uma vida

colectiva estável” (ibidem), pelo facto de “as trocas entre pares estarem carregadas de

um conteúdo diferenciador forte” e ainda pelo facto de o tipo de poder a ser exercido ser

o do “perito parcial” (ibidem). Para Sainsaulieu esta é a forma em que “a exclusão, o

sentimento de ruptura e a dificuldade em definir um novo universo de pertença social e

profissional são os elementos mais prováveis da vida colectiva” (ibidem).

Por último e no que respeita à quarta forma, a solidária, Sainsaulieu diz-nos que

esta “corresponde à experiência maior do poder. Os indivíduos são mergulhados na

possibilidade permanente de redefinir a regra a partir do poder do especialista52”

(ibidem). A relação que os indivíduos e os grupos desenvolvem entre si permitirá então

a existência de uma vida colectiva “pensada como numa fonte de solidariedade activa

porque pode repousar sobre grandes trocas e sobre a lei democrática da maioria”

(ibidem).

Estas quatro formas de reacção poderão reenviar-nos para formas de estar, de

participar nas organizações, o que nos poderá levar a dizer que, quer as formas de

participar apresentadas por Thévenet (1990) no que respeita ao modo como os actores

aderem aos valores das organizações que integram e as oportunidades que daí crêem

poder retirar, quer algumas das apresentadas por Alves-Pinto (1995) quando refere as 52 De novo somos aqui remetidos para as fontes de poder e se tomarmos como exemplo o que Crozier e Friedberg (1977) ou Teixeira (1993) afirmam estaremos, no que se refere ao poder do especialista, perante a fonte de poder conhecimento ou domínio de uma competência específica. Crozier e Friedberg entendem que a fonte de poder que decorre de se ser possuidor de uma competência ou especialização funcional será dificilmente substituível. O especialista é o único que dispõe do saber, do saber fazer, da experiência do contexto que lhe permite resolver problemas cruciais da organização (1977:72).

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formas de estar na escola como expressão de uma modalidade de interacção, poderão

estar próximas.

Assim parece-nos encontrar alguma similitude entre a reacção descomprometida

e o tipo de adesão “mercenário” apresentado por Thévenet (1990:46). Como referimos a

reacção descomprometida caracterizar-se-á pelo facto de os indivíduos procurarem

utilizar a relação de autoridade para retirarem vantagens individuais. Enquanto que de

acordo com Thévenet o mercenário procurará retirar da organização o maior número de

vantagens pessoais, abandonando-a quando melhores propostas lhe são apresentadas.

Já no que respeita à reacção conciliada parece-nos ser possível dizer que ela se

inscreverá relativamente às formas de estar enunciadas por Alves-Pinto num misto de

participação apática ou abandono (1995:166).

Assim, neste tipo de reacção Sainsaulieu adverte-nos que o indivíduo e o grupo

funcionará apenas “com uma relativa indiferença entre eles” (1988:242). Transportando

esta reacção para as formas de estar numa organização poderemos dizer que ela se

conteria entre a hipótese de “os actores fazerem aquilo que lhes é formalmente exigido”

(Alves-Pinto, 1995:166) – participação apática - e o considerar que a sua participação

não revela “trazer grandes vantagens” (ibidem) para o facto de se sentir que se “caiu

numa certa rotina” (ibidem) – abandono. Se recorremos a Thévenet encontrar-nos-emos

provavelmente face a uma posição de “presentismo contemplativo” (1990:46) que

caracterizará aquele que é entendido como tendo uma adesão de demissionário.

Por último a reacção solidária poderá, em nosso entender, encontrar ecos junto

do enunciado por Thévenet como a adesão missionária ou a forma de estar participação

convergente apresentada por Alves-Pinto.

Assim, para Thévenet, o missionário caracterizar-se-á pela “forte adesão aos

valores da empresa sem qualquer preocupação pelas oportunidades” (ibidem) enquanto

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que para Alves-Pinto os actores que revelam ter uma forma de estar na modalidade de

participação convergente serão “os que jogam com as regras que estão estabelecidas e

conseguem inscrever no âmbito da organização os seus próprios projectos de forma não

problemática. Isto não significa que sejam ‘actores fáceis’ no sentido de estarem sempre

de acordo. Até podem, em certos momentos, mostrar a sua insatisfação e tecer críticas

(…). Mas fazem-no nos locais apropriados, usando os mecanismos formais e informais

ao seu dispor” (1995:165). Tais formas de adesão ou de estar não estarão longe da

reacção solidária definidas por Sainsaulieu (1988:243).

Em jeito de conclusão cremos ser possível dizer que a identidade profissional é

uma forma específica da identidade social, que com ela partilha as características, por

vezes paradoxais, da necessária continuidade, temporalidade, similitude e diferença,

mas que para além de se construir na relação que cada um de nós estabelece com os

outros, nos sentido de pertença e de referência ao ou aos grupos em que nos integramos

ou desejamos integrar, “representa (...) uma forma de identidade colectiva

particularmente durável, ancorada no trabalho” (Dubar, 1998b:67) e que tem dentro de

si todas as potencialidades do futuro, dos projectos que permitem a cada um ir-se

(re)construindo enquanto identidade para si e identidade para os outros e

(re)conhecendo-se enquanto portador de uma identidade.

A identidade profissional, entendida como a “articulação entre uma transacção

‘interna’ do actor e uma transacção’externa’ entre o actor, os grupos e o contexto

profissional com os quais o actor entra em interacção” (Blin, 1997:179), será

constituída, portanto, por um conjunto de relações de trabalho que cada um de nós vai

estabelecendo ao longo da vida de adulto, inserido num campo profissional, pelas

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representações sociais, pelas representações de si e pela articulação entre as várias

transacções que vão ocorrendo entre as relações e a biografia de cada um.

4. Conclusão

Chegados ao fim desta nossa reflexão sobre a identidade cremos ser chegado o

momento de voltarmos à nossa ideia inicial, isto é a de que a identidade é um conjunto

concatenado da identidade pessoal e da identidade social.

Ter, ser possuidor de uma identidade significará, em nosso entender, ter

percorrido ou melhor estar em constante caminhada de construção, de conhecimento de

si, de conhecimento dos outros, de aceitação de si e dos outros, de procura de aceitação

e reconhecimento de si por parte dos outros.

Ter, ser possuidor de uma identidade significará que cada um de nós será um ser

singular, diferente, mas ao mesmo tempo semelhante. Significará ter um projecto

próprio que ao mesmo tempo é partilhado por outros, ser solitário, autônomo, ter

liberdade de escolher de decidir por si e ao mesmo tempo integrar-se em grupos de

pertença, desejar pertencer a outros grupos ou pelo menos identificar-se com eles

naquilo que são os valores, as crenças, as atitudes, a cultura, as finalidades ou objectivos

que os fazem mover-se. Significará ser semelhante ao outros ao mesmo tempo que deles

se é totalmente diferente, em suma significará ser, como afirma Mounier (1976:87), “ser

aquela árvore, pulsar ao doce calor primaveril, crescer com ela no seu secular

crescimento, brotar com alegria de seus rebentos, sempre sendo eu próprio e sempre

sendo distinto”.

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Ter ou ser possuidor de uma identidade significará, ainda, que cada um de nós

tem um passado que nos ancora, um presente que se vai construindo e vivendo nas

relações pessoais, afectivas, cognitivas, racionais e de trabalho que estabelecemos com

os que nos rodeiam e connosco próprios. É ter um futuro que se perspectiva, que se

deseja, que corresponde a um projecto individual mas também colectivo. É ter uma

imagem de si que se foi, vai e irá construindo através do reflexo observado nos olhos,

nos comportamentos, nas confirmações, rejeições ou desconfirmações de si que os

outros nos vão dando, fornecendo.

Ter ou ser possuidor de uma identidade significará viver crises e a elas

sobreviver, evoluir, aprender com elas desde que nascemos até que morremos.

Significará viver as crises da infância, da adolescência, da juventude, de si próprio e

crescer, e sobreviver e ser “aquilo que não pode ser repetido” (Mounier, 1976:77).

Ter ou ser possuidor de uma identidade significará que não se é apenas um,

significará que dependendo dos contextos, do tempo, do espaço, dos grupos a que

pertencemos ou vamos pertencendo ao longo da vida construímos diferentes identidades

para os outros o que nos permitirá dizer que somos seres poli-identitários e que a noção

de identidade, para além de multifacetada, tem dentro de si paradoxos, o que faz com

que a entendamos como uma noção complexa em constante devir. Por outro lado

significará, também, e apesar de sermos seres poli-identitários que nos possamos

reconhecer enquanto pessoas, ao longo da nossa vida, aconteça o que acontecer, pois

existe sempre um fio condutor, um grande baluarte, fortaleza a que podemos recorrer

em momentos de confusão que é a identidade para si.

Por fim ter ou ser possuidor de uma identidade significará ter vivido, significará

ser ao mesmo tempo servo e senhor, vassalo e rei de si e dos outros, significará

reconhecer que a identidade não é algo de “unificado” mas que ela será sim “algo que se

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move e muda, que constitui através de uma pluralidade de expressões uma trama sólida

à imagem desses fios diversificados na textura e na cor que constituem nos seus

múltiplos cruzamentos os tecidos resistentes que nós conhecemos” (Maffesoli,

1979:59).