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Capítulo III: A reconstrução do passado Quando temos nas mãos um livro da época da infância, começamos a leitura com certa curiosidade, com a espera de um despertar de lembranças e de rejuvenescimento interior. Neste momento nós cremos nos encontrarmos no estado mental de então. O que terá permanecido em nós, antes desse momento, e no momento mesmo de nossas impressões de então? 105 Incapacidade de reproduzir pelo pensamento a série de acontecimentos em seus detalhes, as diversas partes do relato, com traços, indicações, descrições, propósitos e reflexões que gravam na mente do leitor, uma figura, uma paisagem, ou o que o fazem penetrar no coração de uma situação. 105 Distância que subsiste entre a lembrança vaga de hoje e a impressão de nossa infância. Ela era viva, precisa e forte, esperamos ao reler o livro, completar a lembrança e fazer renascer esta impressão. 105 Mas, parece que lemos um livro novo, ou modificado. Faltam páginas, desenvolvimentos, ou detalhes antes presentes, e ao mesmo tempo, outros parecem ter sido agregados, pois nosso interesse avança ou nossa reflexão se exerce sobre uma quantidade de aspectos da ação e dos personagens, que éramos incapazes de detectar, e por outro lado, as histórias nos parecem menos extraordinárias, mais

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Memória

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Capítulo III: A reconstrução do passado

Quando temos nas mãos um livro da época da infância, começamos a leitura com certa

curiosidade, com a espera de um despertar de lembranças e de rejuvenescimento

interior. Neste momento nós cremos nos encontrarmos no estado mental de então. O que

terá permanecido em nós, antes desse momento, e no momento mesmo de nossas

impressões de então? 105

Incapacidade de reproduzir pelo pensamento a série de acontecimentos em seus

detalhes, as diversas partes do relato, com traços, indicações, descrições, propósitos e

reflexões que gravam na mente do leitor, uma figura, uma paisagem, ou o que o fazem

penetrar no coração de uma situação. 105

Distância que subsiste entre a lembrança vaga de hoje e a impressão de nossa infância.

Ela era viva, precisa e forte, esperamos ao reler o livro, completar a lembrança e fazer

renascer esta impressão. 105

Mas, parece que lemos um livro novo, ou modificado. Faltam páginas,

desenvolvimentos, ou detalhes antes presentes, e ao mesmo tempo, outros parecem ter

sido agregados, pois nosso interesse avança ou nossa reflexão se exerce sobre uma

quantidade de aspectos da ação e dos personagens, que éramos incapazes de detectar, e

por outro lado, as histórias nos parecem menos extraordinárias, mais esquemáticas e

menos vivazes, ficaram desprovidas de grande parte do prestígio. 105-106

Nossa memória, retoma a medida que avançamos, boa parte do que havia se escorrido,

ainda que de uma nova forma. Assim como quando um objeto é visto de um ângulo

diferente, ou com uma iluminação diferente. Com isso os valores das partes mudam e se

a reconhecemos não podemos afirmar que tenham permanecido tal como eram. 106

Ideias e sugestões sugeridas pela nova leitura, da qual estamos seguros de que não pode

acompanhar a primeira. 106

Livro escrito para crianças, onde se encontram desenvolvimentos abstratos que não se

acompanhou na primeira leitura. Estória contada para crianças, mas não por crianças. O

autor é um adulto, que, mesmo quando conta uma estória que as crianças compreendam,

ele oferece um quadro verossímil da sociedade. 106

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Crianças se impressionam e tem mais interesse sobre os eventos da natureza, enquanto

adultos prestam mais a atenção ás questões da sociedade, àquilo no qual ancoram suas

memórias, pois já estão muito mais implicados nas relações sociais do que as crianças.

106-108

O que nos impediria de redescobrirmos as impressões registradas outrora, seria todo o

conjunto de nossas ideias atuais, em particular sobre a sociedade. 109

Se quiséssemos de fato viver em outra época deveríamos esquecer a ciência e todas as

aquisições que nos tornaram modernos. 109

Para reler um livro com a mesma disposição de quando éramos crianças deveríamos nos

esquecer de muitas coisas, ou seja, daquilo que nos faz adultos. 109

A criança carece da experiência social e psicológica do adulto. Mas isto não o perturba,

isto pesa sobre o adulto, e se chegar a desprender-se, talvez a impressão de então

reapareceria em sua totalidade. 109-110

Bastaria alijar esta massa de noções adquiridas para que surjam as lembranças de

ontem? 110

Se a recordação estava ali, deveria aparecer. No entanto, não reaparece. 110

Não basta esquecer tudo que temos aprendido: porém, necessitaria conhecer exatamente

o que sabíamos naquele tempo. Não somos vítimas de ilusão quando não reencontramos

neste livro detalhes e particularidades que encontrávamos ontem. 110-110

A mente da criança tem seus marcos, hábitos, modelos, experiências, que não são os

mesmos dos adultos, mas sem os quais não compreende o que lê. 111

Nossa imaginação era alimentada, por espetáculos, rostos, objetos que se necessitaria

conhecer, para se fazer uma ideia justa da maneira que éramos capazes de reagir a tal

relato, nesse mesmo momento. 111

De cada época de nossa vida guardamos algumas lembranças que são sempre

reproduzidas, através dos quais se perpetua um sentimento de identidade. Justamente

por este motivo, porque estas lembranças têm sido conduzidas a sistemas de noções

muito diferentes, nas diversas épocas de nossa vida, que perderam sua forma e seu

aspecto de então. 111

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A reconstrução do passado não é outra coisa senão aproximação. Esta será tanto ou mais

que disponhamos de uma maior quantidade de testemunho escritos ou orais. 112

Para voltarmos para o nosso antigo estado mental, necessitaríamos evocar ao mesmo

tempo, sem exceção todas as influências que se exerciam sobre nós. 112

Se o passado subsiste como tal, e não porque possuímos a capacidade de reproduzi-lo

com a ajuda de nossas noções atuais, que reaparecem de igual forma que como

subsistem todos em um mesmo grau, deveriam ser todos capazes de ressurgir. Se o

tempo transcorrido tem um papel, não por conta de massa de lembranças interpostas. A

memória não estará obrigada a passar de maneira contínua de um ao outro. 112-113

Por que, pelo fato somente de que são antigas, algumas lembranças estariam impedidas

de introduzir-se no “marco”, ou de passar através da fissura que lhes apresentam ou que

os abrem os chamados aparatos sensório-motores? Discussão com Bergson sobre a

emergência das lembranças. 113-114

Suponhamos que o obstáculo para a recordação não seja o corpo, mas o conjunto das

noções que ocupam atualmente nossa consciência. Se é difícil admitir que as

lembranças tenham se conservado realmente, tenham sido detidas e interceptadas por

semelhante barreira psíquica. Certamente existe incompatibilidade entre alguns aspectos

desta lembrança e as noções atuais. 114

Não temos em nenhum momento a impressão de encontrarmos exatamente no estado

mental de ontem (a lembrança). É porque na verdade estas lembranças não subsistem.

115

Reproduzir não é reencontrar, mas reconstruir. Não é necessário que a lembrança tenha

permanecido, porque a consciência atual possui em si mesma e encontra também no

entorno os meios para fabricá-la. 115

Se não há reprodução é porque esses meios são insuficientes. Ela não se converte em

obstáculo para uma lembrança real, mas porque as concepções de um adulto e de uma

criança são bastante diferentes. 115

Crianças e adultos se detêm em elementos diferentes quando leem as mesmas histórias.

116-117

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O adulto define e distingue cada espécie de homem por sua situação na sociedade.

Visão abstrata, comparável à da ciência. Noções econômicas e científicas passam para

um primeiro plano. 117-118

Estes são alguns traços gerais que distinguem o ponto de vista da criança e do adulto.

Para reencontrar suas impressões de infância não basta que se desprenda, por esforço

violento e frequentemente impossível, desse conjunto de ideias que chegam a ele a

partir da sociedade. Seria preciso reintroduzir nele as ideias de criança, e renovar sua

sensibilidade, que não está à altura das impressões espontâneas plenas da infância. 118

O pensamento se orienta de maneiras diferentes em adultos e crianças, em parte, devido

à sua natureza física e sensível, mas principalmente por conta das condições exteriores e

sociais em que um e outro estão situados, que são muito diferentes para que um adulto

possa buscar somente com sua vontade uma alma de criança. 118

A ideia de sociedade para uma criança de 10 ou 12 anos se restringe muito à família, o

círculo de amigos da escola ou de jogos. 118

O primeiro marco em que se desenvolve é a família, pois ficam marcadas as memórias

domésticas ou dos fatos históricos, tais como são lembrados pelo grupo social. 119

Mas há diferenças na maneira como estes marcos atuam nas crianças e nos adultos. Para

estes a casa, os lugares da cidade também constituem um marco. Mas ele sabe que não é

mais do que uma parte definida de um conjunto mais amplo e tem a ideia das

proporções da parte do conjunto e do conjunto mesmo. O marco espacial que encerra o

pensamento do adulto é mais amplo. 120

As atividades exercidas pelos adultos vão muito além do mundo fechado ao qual

remetem seus pensamentos, preocupações, emoções. Suas atividades se exercem muito

mais além e sobre ele se exercem múltiplas influências. 120

A criança, durante muito tempo, não sente necessidade de reintegrar este pequeno

mundo em um maior. Sua realização e sua sensibilidade se realizam com comodidade.

120

Diversos aspectos familiares formam parte da vida social da criança, reduzida à vida

familiar, aquilo que a alimenta, ao mesmo tempo, a limitam. 121

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O caso é o mesmo no adulto. Quando este abandona uma casa na qual viveu por um

longo tempo, parece que abandona uma parte de si mesmo. Uma vez desaparecido este

marco, as recordações que se apegam a ele correm o risco de desaparecer. 121

Desta pode ter a possibilidade de guardar uma lembrança mais ou menos rico, pois

talvez encontrou em outra parte aquilo que algum dia viveu, pois a casa era um pequeno

marco contido em uma grande, este último, que subsiste permitirá evocar o pequeno.

121

Hipóteses que podem explicar em que sentido o desaparecimento ou a transformação

dos marcos sociais acarreta a o desaparecimento ou a transformação de nossas

lembranças.

1- Entre o marco e os acontecimentos que ocorreram não havia mais que uma

relação de contato, não eram feitos de uma mesma substância. 122

2- Ou, entre o marco e os acontecimentos havia identidade de natureza. Os

acontecimentos são lembranças, mas o marco também estaria conformado de

lembranças. A diferença seria que este último seria mais estável, que dependeria

de nós a cada instante apercebe-los, e nos serviríamos deles para reencontrar e

reconstruir as primeiras. 122

É a esta segunda hipótese que nos unimos. 122

Bergson formulou a primeira hipótese, que se apoia na distinção de duas memórias,

uma que conserva as lembranças dos fatos que se produzem apenas uma vez, e outra

que se orientaria a partir dos atos, os movimentos repetidos e todas as

representações habituais. 122

Adotando a visão teórica de Bergson temos o seguinte: supondo que a cada leitura

corresponde uma lembrança definida, e claramente distinto dos demais , dispondo

do princípio ao fim das lembranças de todas estas leituras. Ao aproxima-las se terá

ao mesmo tempo reconstituído o marco no qual se tem desenvolvido, e na realidade

é esse marco que permite não fazer reviver os estados de ontem, ao menos imaginar

o que tem devido ser em razão das circunstancias na qual se tem produzido e

reproduzi-las na medida em que podemos faze-lo, mediante as representações

dominantes. O exemplo escolhido não deverá ser tomado ao pé da letra. 124

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Bergson se propôs a definir duas formas definitivas de memória. Mas não a

reencontraríamos na realidade que não nos apresentaria senão sob formas

intermediadas. 124ontade

Como representar imagens cujo sentido seria inteiramente novo e único, sem relação

com aquilo que conhecemos, como o tempo, o espaço, as noções de livro, de

caracteres impressos, de mesa, de professores? Como lembraremos mais tarde? Por

onde voltaremos a captura-lo? 124-125

Há por um lado um marco espacial, temporal, e social. Este conjunto de

representações estáveis e dominantes nos permite, recordar segundo nossa vontade

os acontecimentos essenciais do nosso passado. Por outro, existe aquele, na

impressão inicial mesma, permitiria situar a imagem uma vez reproduzida, em tal

espaço, tempo e meio. 125

Ilusão frequentemente denunciada por Bergson. 125