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CELIA ABICALIL BELMIRO UM ESTUDO SOBRE RELAÇÕES ENTRE IMAGENS E TEXTOS VERBAIS EM CARTILHAS DE ALFABETIZAÇÃO E LIVROS DE LITERATURA INFANTIL Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor. Campo de Confluência:Linguagem, Subjetividade e Cultura. Orientador: Profª. Drª. Cecília Maria Aldigueri Goulart Niterói, outono de 2008

Capítulo V: Análise do material

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Page 1: Capítulo V: Análise do material

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CELIA ABICALIL BELMIRO

UM ESTUDO SOBRE RELAÇÕES ENTRE IMAGENS E TEXTOS VERBAIS EM CARTILHAS DE ALFABETIZAÇÃO E LIVROS DE

LITERATURA INFANTIL

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor. Campo de Confluência:Linguagem, Subjetividade e Cultura.

Orientador: Profª. Drª. Cecília Maria Aldigueri Goulart

Niterói, outono de 2008

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L’Oeil Cacodylate Francis Picabia, artista dadaísta

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CELIA ABICALIL BELMIRO

UM ESTUDO SOBRE RELAÇÕES ENTRE IMAGENS E TEXTOS VERBAIS EM CARTILHAS DE ALFABETIZAÇÃO E LIVROS DE LITERATURA

INFANTIL

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor. Campo de Confluência:Linguagem, Subjetividade e Cultura.

Aprovada em março de 2008

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________ PROFª.DRª. CECÍLIA MARIA ALDIGUERI GOULART – Orientadora

UFF

______________________________________________________________________ PROFª.DRª. ARACY ALVES MARTINS

UFMG

______________________________________________________________________ PROF. DR. MARCELO KRAISER

UFMG

______________________________________________________________________ PROFª.DRª. LUDMILA THOMÉ DE ANDRADE

UFRJ

______________________________________________________________________ PROF. DR. ARMANDO MARTINS DE BARROS

UFF

Niterói, outono de 2008

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Dedico esta tese a meu pai, sábio narrador, com quem aprendi a contar histórias

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Agradecimentos - À minha orientadora, Cecília Goulart, cuja sensibilidade e competência me deram segurança intelectual para arriscar, me transmitiram firmeza e precisão na orientação, e que me acolheu com o carinho de sua amizade. - À minha madrinha Nair, que alimentou, com seu afeto irrestrito, meu corpo e minha alma. - À Aracy Martins, com quem tudo começou: primeiras publicações, discussões e um olhar diferenciado para o trabalho. - Às colegas Eleonora Cretton Abílio e Margareth Silva de Mattos, do PROALE, pela gentileza com que me atenderam. - Aos meus colegas de departamento que me incentivaram na trilha desse caminho. - À Marildes Marinho, pela ajuda precisa na estada em Paris. - Aos meus parentes de Friburgo, com quem pude recuperar um pedaço da minha história. - Aos meus amigos do Rio de Janeiro e de Paris, junto aos quais me senti protegida e afagada. - À Inez do Espírito Santo, que me cuidou do coração e da alma, não transigindo na fala leve e delicada. - Ao Pedro Henrique, meu sobrinho, com quem idealizei o projeto gráfico da tese e que me orientou no seu formato e na sua estética. - Ao André, meu afilhado, meu suporte técnico e afetivo, na infra da tese. - Ao meu filho Marcos, que soube entender minha necessária solidão e que me animou com seu olhar silencioso de admiração. - A todos da minha família que me acolheram no Rio e que acreditaram no meu trabalho todo o tempo. - Ao CNPq, a bolsa de estudos, com a qual me proporcionou as condições para realizar o curso de doutorado.

Page 6: Capítulo V: Análise do material

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Agradecimentos especiais Pedro, meu irmão: Todos sabemos que a ajuda se faz na hora da necessidade do outro. Mas nem sempre encontramos a dedicação aliada ao amor incondicional que você me deu, principalmente nos momentos de instabilidade por que certamente passei. O trabalho intelectual é duro e muitas vezes nos esquecemos de explicitar o nosso afeto. Sua compreensão total, seu carinho e sua ajuda fundamental fizeram com que eu conseguisse chegar ao término desse caminho. Gostaria de tornar pública minha gratidão e de lhe dizer que, mesmo nas horas em que eu nada dizia, senti-me segura com você. Formas avessas de mostrar, acompanhada de Bartolomeu Campos de Queirós, que o amor é silencioso. Muito obrigada. Angela, minha irmã: A certeza de que posso contar com você para o que for, para o que será, me ajudaram a tomar decisões difíceis. Não só no período do doutorado, mas no tempo de sempre, em qualquer lugar. Ajudas concretas e simbólicas são as que você me deu para que eu pudesse me inscrever nesse mundo. Muito obrigada.

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A fome, a solidão, a palermice do Zeca, tudo isso o tio atribuía a uma única carência: a falta de maresia. Há coisas que se podem fazer pela metade, mas enfrentar o mar pede a

nossa alma inteira. Era o que dizia Jaime.

O Beijo da palavrinha Mia Couto

Page 8: Capítulo V: Análise do material

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Sumário

1. Apresentação da Tese .................................................................................................... 16 ○ 1.1 Histórico da pesquisa ............................................................................................. 16 ○ 1.2 Apresentação da pesquisa ...................................................................................... 23

2. A Questão ....................................................................................................................... 26 ○ 2.1 Contextualização da pesquisa ................................................................................ 26 ○ 2.2 A especificidade do ensino-aprendizagem da escrita e as linguagens visuais ....... 35 ○ 2.3 As metodologias de aprendizagem da escrita e os usos das imagens .................... 40

2.3.1 O contexto de estudo .......................................................................................... 48 2.3.2 Por que cartilhas de alfabetização ...................................................................... 51

2.3.2.1 A noção de letramento e algumas implicações para o estudo ..................... 52 2.3.2.2 Mudanças de paradigmas e suas decorrências no ensino de língua materna................................................................................................................................. 57

2.3.3 A relação imagem/escrita em cartilhas francesas: uma investigação exploratória..................................................................................................................................... 60

2.3.3.1 Sobre o material investigado ...................................................................... 63 2.3.3.2 A análise exploratória................................................................................. 68

○ 2.4 Questão de linguagem............................................................................................ 94 3. A Linguagem, as Imagens e a Construção da Subjetividade................................... 103 ○ 3.1 Dois modelos de construção de conhecimento .................................................... 104 ○ 3.2 Decorrências para a educação .............................................................................. 114 ○ 3.3 O círculo de Bakhtin e um novo projeto discursivo............................................. 116

4. Os Sistemas de Escrita ................................................................................................ 133 ○ 4.1 A origem da escrita ............................................................................................. 134 ○ 4.2 Dupla natureza da escrita .................................................................................... 138 ○ 4.3 Relações entre o icônico e o verbal..................................................................... 155

4.3.1 O Paradoxo ...................................................................................................... 155 4.3.2 O Paralelo ........................................................................................................ 158 4.3.3 Propostas de análise........................................................................................ 159

4.3.3.1 1ª- Perspectiva da natureza das obras ........................................................ 160 4.3.3.2 2ª- Perspectiva pragmática......................................................................... 161

5. Análise do Material ..................................................................................................... 166 ○ 5.1 A Perspectiva de Análise ................................................................................... 171 ○ 5.2 Considerações Gerais ........................................................................................ 177

5.2.1 Sobre os projetos gráfico-editoriais................................................................ 178 5.2.2 Sobre as temáticas .......................................................................................... 200

○ 5.3 Construção de uma proposta de análise ............................................................. 203 ○ 5.4 Dimensões da construção das obras literárias.................................................... 208

5.4.1 Dimensão do projeto ético-estético ................................................................ 208 5.4.2 Dimensão lúdica ............................................................................................. 212 5.4.3 Dimensão da interdiscursividade.................................................................... 216 5.4.4 Dimensão gráfica............................................................................................ 218

5.4.5 Dimensão do acabamento............................................................................... 224 ○ 5.5 Dimensões da construção composicional e do estilo dos enunciados............... 227

5.5.1 Dimensão narrativa......................................................................................... 229

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5.5.1.1 O aspecto da leveza .................................................................................. 229 5.5.1.2 O aspecto da argumentação ....................................................................... 234 5.5.1.3 O aspecto da metonímia ............................................................................ 241 5.5.1.4 O aspecto dos dêiticos ............................................................................... 245

5.5.2 Dimensão descritiva ....................................................................................... 252 5.5.2.1 O aspecto biográfico.................................................................................. 252 5.5.2.2 O aspecto do estilo..................................................................................... 255

5.5.3 Dimensão do enquadramento ......................................................................... 260 5.5.3.1 O aspecto da moldura ................................................................................ 261 5.5.3.2 O aspecto da verticalização ....................................................................... 267

6. Considerações Finais ................................................................................................... 270 Referências Bibliográficas .............................................................................................. 274

Page 10: Capítulo V: Análise do material

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LISTA DE IMAGENS

Fig. 1 Jornal Le Parisien,

8 de dezembro de 2005 f. 47 Fig. 32 Abracadalire, papel manteiga f. 91

Fig. 2 Jornal Le Parisien, 8 de dezembro de 2005

f. 47 Fig. 33 Abracadalire, papel manteiga f. 91

Fig. 3 Les abécédaires français ilustres, p.5

f. 50 Fig. 34 Abracadalire, papel manteiga f.91

Fig. 4 Ratus et sés amis, p.8 f. 65 Fig. 35 Abracadalire, papel manteiga f. 91 Fig. 5 Ratus et sés amis, p.16 f. 67 Fig. 36 Abracadalire, papel manteiga f. 92 Fig. 6 Ratus et sés amis, p.35 f. 67 Fig. 37 Abracadalire, papel mantenga, p.17 f. 92 Fig. 7 Léo et Lea, p.16 e 17 f. 68 Fig. 38 Léo et Léa, p. 72 f. 93 Fig. 8 Ratus et sés amis, p.4 f. 71 Fig. 39a Ícone bizantino f. 150 Fig. 8 Ratus et ses amis (detalhe) f. 71 Fig. 39b Ícone bizantino f. 150 Fig. 9 Ratus et ses amis f. 72 Fig. 39c Ícone bizantino f. 150 Fig. 9 Ratus et ses amis, p. 49 f. 72 Fig. 40a Revista Traça, Música f. 154 Fig. 10 Léo et Léa, p.70 f. 73 Fig. 40b Revista Traça, Liturgia do silêncio f. 154 Fig. 11 Abracadalire, p.9 f. 75 Fig. 41 Ida e volta, capa do Livro f. 173 Fig. 12 Abracadalire , p.11 f. 75 Fig. 42 Cacoete, p. 13 f. 179 Fig. 13 Abracadalire, p.80 f. 76 Fig. 43 Cacoete, p. 14 f. 179 Fig. 14 Ratus et sés amis, p.48 f. 77 Fig. 44 Cacoete, p. 15 f. 180 Fig. 15 Ratus et sés amis, p.60 f. 78 Fig. 45 O livro dos pés , p.45 f. 180 Fig. 16 Ratus et ses amis,

Caderno de Leitura, p.8 f. 78 Fig. 46 O livro das cabeças, p.7 f. 180

Fig. 17 Ratus et ses amis, p.48 – detalhe

f. 80 Fig. 47 O livro dos corações, página dupla

f. 181

Fig. 48 Grande ou pequena?, p. 18 f. 181 Fig. 18 Ratus et ses amis, p.56 -

detalhe f. 80 Fig. 49 O rinoceronte ri,

página dupla f. 182

Fig. 19 Ratus et ses amis, p.48 – detalhe

f. 81 Fig. 50 O beijo da palavrinha, página dupla

f. 182

Fig. 20 Ratus et ses amis, p. 52 e detalhe

f. 81 Fig. 51 Esquisita como eu, página dupla f. 183

Fig. 21 Abracadalire, p. 80 e 81 f. 82 Fig. 52 Poeminha em língua de brincar f. 183 Fig. 22 Abracadalire, p. 11 f. 83 Fig. 53 Meu amigo, o Canguru f. 184 Fig. 23 Léo et Léa, p. 1 f. 84 Fig. 54 E agora? vão tomar o meu lugar? f. 185 Fig. 24 Léo et Léa, p. 2 e detalhe f. 85 Fig. 55 Grande ou pequena?, p. 19 f. 186 Fig. 25 Léo et Léa, p. 42 f. 85 Fig. 56 Grande ou pequena?, p. 28 f. 186 Fig. 26 Ratus et ses amis, p.53 e

detalhe f. 87 Fig. 57 Formiga Amiga, p. 4 f. 187

Fig. 27 Abracadalire, p. 8 f. 88 Fig. 58 As patas da vaca f. 188 Fig. 28 Abracadalire, p. 63 f. 88 Fig. 59 As patas da vaca f. 189 Fig. 29 Abracadalire, p. 16, papel

mantenga, p. 17 f. 90 Fig. 60 As patas da vaca f. 189

Fig. 30 Abracadalire, p. 16 f. 90 Fig. 61 O livro dos corações, página dupla f. 190 Fig. 31 Abracadalire, papel

manteiga f. 91 Fig. 62 O livro dos corações, página dupla f. 191

Page 11: Capítulo V: Análise do material

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Fig. 63 O livro dos corações,

página dupla f.191 Fig. 93 Coração de ganso,

Página dupla f.215

Fig. 64 O livro dos pés, p.27

f.191 Fig. 94 Coração de ganso, página dupla f.215

Fig. 65 O livro dos pés, p.25 f.192 Fig. 95 Coração de ganso f.216 Fig. 66 O livro das cabeças, p.10 f.192 Fig. 96 Você sabe gritar? f.217 Fig. 67 O livro das cabeças, p.20 f.192 Fig. 97 Você sabe gritar? f.218 Fig. 68 Cocô de passarinho, p. 3 f.193 Fig. 98 Você sabe gritar? f.218 Fig. 69 Cacoete, p. 10 f.194 Fig. 99 Você sabe gritar? f.219 Fig. 70 Cacoete, p. 11 f.194 Fig. 71 Minha mãe é um

problema, página dupla f.195 Fig. 100 Cacoete, p. 25 f.219

Fig. 72 Cacoete, p. 5 f.196 Fig. 101 A linha, página dupla f.220 Fig. 73 Rodolfo, o carneiro, p. 13 f.196 Fig. 102 A linha, página dupla f.221 Fig. 74 Rodolfo, o carneiro, p. 11 f.197 Fig. 103 O Equilibrista f.221 Fig. 75 Amor índio f.200 Fig. 104 O Equilibrista f.222 Fig. 76 Da Pequena toupeira que

queria saber quem tinha feito cocô na cabeça dela.

f.201 Fig. 105 O que o coração mandar, página dupla f.223

Fig. 77 Desertos f.202 Fig. 106 O que o coração mandar, página dupla f.224 Fig. 78 Desertos f.203 Fig. 107 O que o coração mandar, página dupla f.225 Fig. 79 Desertos f.204 Fig. 108 Poeminha em língua de brincar f.227 Fig. 80 Desertos f.205 Fig. 109 Poeminha em língua de brincar f.229 Fig. 81 Da Pequena toupeira que

queria saber quem tinha feito cocô na cabeça dela.

f.207 Fig. 110 Poeminha em língua de brincar f.229

Fig. 82 Da Pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na cabeça dela.

f.207 Fig. 111 Poeminha em língua de brincar f.231

Fig. 83 Da Pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na cabeça dela.

f.207 Fig. 112 A princesinha boca-suja, página dupla f.236

Fig. 84 Da Pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na cabeça dela.

f.207 Fig. 113 A princesinha boca-suja, página dupla f.237

Fig. 114 A princesinha boca-suja, p. 9 f.237 Fig. 85 Cocô de passarinho, p.25 f.208 Fig. 115 A princesinha boca-suja, p. 10-11 f.237 Fig. 86 Cocô de passarinho, p.26 f.209 Fig. 116 A princesa boca-suja, p. 20 f.237 Fig. 87 Cocô de passarinho, p.27 f.209 Fig. 117 A princesa boca-suja, p. 27 f.238 Fig. 88 Minha mãe é um

problema f.210 Fig. 118 O beijo da palavrinha, página dupla f.239

Fig. 89 Livro dos corações f.212 Fig. 119 O beijo da palavrinha, página dupla f.240 Fig. 90 Livro dos corações f.212 Fig. 120 O beijo da palavrinha, página dupla f.241 Fig. 91 Rodolfo, o carneiro, p. 8 f.213 Fig. 121 O beijo da palavrinha, página dupla f.243 Fig. 92 Rodolfo, o carneiro, p.16 f.213

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Fig. 122 O Jantar Fantasma, p. 12 f. 244 Fig. 137 O ratinho que morava no livro f. 260 Fig. 123 O Jantar Fantasma, p.

13 f. 244 Fig. 138 O ratinho que morava no livro f. 260

Fig. 124 O Jantar Fantasma, p. 27

f. 246 Fig. 139 O ratinho que morava no livro f. 260

Fig. 125 O Jantar Fantasma, p. 32

f. 247 Fig. 140 O ratinho que morava no livro f. 260

Fig. 126 O Jantar Fantasma, p. 33

f. 247 Fig. 141 O ratinho que morava no livro f. 260

Fig. 127 O Jantar Fantasma, p. 39

f. 247 Fig. 142 O ratinho que morava no livro f. 260

Fig. 128 O Jantar Fantasma, página final

f. 249 Fig. 143 O ratinho que morava no livro f. 260

Fig. 129 Esquisita como eu, página dupla

f. 251 Fig. 144 O ratinho que morava no livro f. 260

Fig. 130 Esquisita como eu, página dupla

f. 251 Fig. 145 O ratinho que morava no livro f. 261

Fig. 131 Esquisita como eu, página dupla

f. 252 Fig. 146 O ratinho que morava no livro f. 261

Fig. 132 Vizinho vizinha, página dupla

f. 254 Fig. 147 O ratinho que morava no livro f. 261

Fig. 133 Vizinho vizinha, página dupla

f. 254 Fig. 148 O ratinho que morava no livro f. 261

Fig. 134 Vizinho vizinha, página dupla

f. 256 Fig. 149 O ratinho que morava no livro f. 261

Fig. 135 Vizinho vizinha, página dupla

f. 257 Fig. 150 Cíclico, página dupla f. 265

Fig. 136 Vizinho vizinha, página dupla

f. 258 Fig. 151 Cíclico, página dupla f. 265

Page 13: Capítulo V: Análise do material

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Resumo BELMIRO, Celia Abicalil. “Um estudo sobre relações entre imagens e textos verbais em cartilhas de alfabetização e livros de literatura infantil”. Orientadora: Cecília Maria Aldigueri Goulart, NITERÓI-RJ/UFF, 27 de março de 2008. Tese (Doutorado em Educação), 283 páginas. Campo de Confluência: Linguagem, subjetividade e cultura; Linha de Pesquisa: Linguagem: Processos de produção de linguagem, identidades culturais e práticas educativas; Projeto do orientador à qual a tese está vinculada: A história da alfabetização do município de Niterói no século XX: em busca de determinantes e condicionantes políticos e metodológicos. Esta tese insere-se no campo de confluência Linguagem, subjetividade e cultura do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF e tem por objetivo principal compreender como se estabelecem e dialogam as relações entre texto verbal e imagem em cartilhas de alfabetização e livros de literatura infantil. Fundamenta-se na concepção de linguagem formulada por Bakhtin como eixo das possibilidades de produção de diferentes relações. Categorias como hibridização, interdiscursividade, plurilingüismo, entre outras, deram forma aos encaminhamentos metodológicos. Os estudos de Christin sobre a linguagem ideográfica e sua influência na literatura ocidental orientaram a perspectiva de integração imagem/palavra em moldes que superam a linearidade da escrita alfabética, abrindo caminho para pensar tanto a imagem da escrita, quanto a escrita da imagem. A partir de estudos desenvolvidos no campo educacional voltados para a linguagem verbal e a visual, é indicada a pergunta que a pesquisa encerra, contextualizando teórico-metodologicamente áreas que a perpassam. São abordadas diferentes manifestações da escrita e das imagens e apresentados estudos elaborados por Bakhtin sobre o prosaísmo do discurso romanesco e sobre o monologismo do discurso poético como matrizes para compreender as posições de autor e ilustrador dos livros de literatura infantil analisados. O estudo desenvolve também fundamentação teórica baseada em alguns conceitos da teoria literária e das artes plásticas, como o de iconotexto, superfície, entre texto. O material de análise é apresentado em dois momentos da pesquisa: no segundo capítulo, são exploradas três cartilhas francesas, analisando-lhes a relação entre imagem e texto verbal; no quinto capítulo, são analisados livros de literatura infantil brasileiros e estrangeiros, revelando uma multiplicidade de situações em que texto e imagem interagem. Embora em espaços distintos, a análise dos dois grupos de materiais dialoga de modo intenso, sustentada pela base conceitual construída ao longo da tese. As diferentes possibilidades de conceber a relação entre imagem e texto verbal trabalhadas no estudo contribuem para a compreensão de diferentes modos de acesso ao conhecimento, aos bens culturais em geral, embora estes não se desprendam do formato que lhes dá organicidade, a utilização em espaços escolares: quando se constituem em material pedagógico, especialmente nos anos escolares iniciais, as imagens e os textos explicitam modos de olhar para conteúdos sociais, assim como para o suporte de veiculação e o gênero escolhidos. A atenção a esse fato pode ser mais um aspecto a ser considerado para a formação da consciência crítica sobre materiais e métodos utilizados em sala de aula. Palavras-chave: imagem, texto verbal, cartilha de alfabetização, livro de literatura infantil

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Abstract This thesis is inserted in the joint field of Language, subjectivity and culture in the Post-graduation Program on Education of Universidade Federal Fluminense-UFF, and aims at understanding how relations between verbal text and image are established and create a dialogue in the reading primers and infant literature books. It is grounded on the concept of language formulated by Bakhtin as the axis of possibilities to produce different relations. Categories as hybridization, interdiscourse, plurilinguism, among others, have shaped methodological procedures. Christin´s study on ideogram language and its influence on western literature have guided the perspective of image/word interplay, beyond the linear aspect of alphabet writing, thus opening a way to let us think about both the image of writing and the writing of image. Based on studies I have been developing in the educational field concerning verbal and visual languages, I indicate the question comprised in the research, and analyze the theoretical and methodological context of areas that pass in between the question. I approach different faces of writing and images and present studies elaborated by Bakhtin on the prosaism of novel discourse and on the monologism of the poetic discourse as the source to understand the position of authors and illustrators of the infant picture storybooks analyzed. This study also develops theoretical grounds based on some concepts of the literary theory and of the plastic arts, such as iconotext, surface, inter text. The material analyzed is presented in two moments of the research: in Chapter 2, I go through three French primers analyzing the relation between image and verbal text; in Chapter 5, I analyze Brazilian and foreign infant picture storybooks, revealing multiple situations where text and image interplay. Although placed in distinct chapters, the analysis of the two groups of materials establishes an intense dialogue supported by the conceptual basis built along the thesis. Different possibilities to conceive the relation between image and verbal text, worked on in this study, contribute to understand the different ways to access knowledge, cultural asset in general, although these ways do not become free from the format that organize them – their use in the school setting: when they become pedagogical material, especially in the first school years, images and texts define ways to face social meanings, and to face also the chosen dissemination support and style. Attention to this fact can be one more aspect to be considered in the formation of a critical awareness of materials and methods used in classroom. Key words: image, verbal text, reading primer, infant literature

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Résumé Cette thèse se rapporte à un domaine où se retrouvent Le Langage, la subjectivité et la culture dans le Programme de Post-Grade en Education de l´Universidade Federal Fluminense UFF. Elle a comme but principal comprendre comment s´établissent et se croisent les relations entre le texte verbal et l´image dans les livres d´alfabétisation et ceux de littérature pour enfant. Ella a comme fondement la conception du langage formulée par Bakhtin comme un axe de possibilités de production de différentes relations. Des catégories telle l´hibridisation, interdicursivité, le plurilinguisme, entr´autres, ont donné la forme aux cheminements méthodologiques. Les études de Christin sur le langage idéographique et son influence sur la littérature occidentale ont orienté la perspective de l´intégration de l´image avec la parole, selon des modèles qui dépassent la linéarité de l´écrite alphabétique, ce qui ouvre le chemin pour penser aussi bien l´image de l´écrite, que celle de l´image. À partir des études que je développe dans le domaine éducationnel tournées vers le langage verbal et visuel, je pose la question que la recherche suppose, quand elle met en contexte téorique et méthodologuique des domaines qui normalemetnt les séparent. J´analyse plusieurs manifestations de l´écite et des images et je présente des étude élaborées par Bakthin sur le prosaïsme du discours romanesque et sur le monologisme du discours poétique, comme des matrices pour comprendre les positions de l´auteur et de l´illustrateur des livres de littérature pour enfants analysés. L´étude développe aussi un fondement théorique basé sur quelques concepts de la théorie littéraire et des beuax-arts, comme l´iconotexte, la superfície, l´entre- texte. Le matériel d´analyse est présenté en deux moments de la recheche : au deuxième chapitre, j´exploite trois livres pour l´aphabétisation françaises, je les analyse selon la relation entre l´image et le texte verbal. Il y en aussi l´analyse de brésiliens et étrangers, ce qui révèle une multiplicité de situations où le texte et l´image interagissent. Même si dans des espaces différents, l´analyse des deux groupes de matériels interagissent intensément, soutenus par la base conceptuelle constuite le long de la thèse. Les différentes possibilités de concevoir la relation entre l´image et le texte verbal travaillées dans cette étude, servent à comprendre de différents modes d´accés à la connaissance, aux biens culturels en général, quoique ceux-ci ne se détachent pas du format qui leur donne de l´organicité, l´utilisation dans des espaces ecolaires: quand ils deviennent du matériel pédagogique, surtout pendant les années scolaires iniciales, les images et les textes démontrent des manières différentes de regarder des contenus sociaux, ainsi que le support de véhiculation et les genres choisis. L´attention à ce fait est encore un aspect à être considéré pour la formation de la conscience critique sur des matériels et des méthodes utilisés en salle de classe. Mots-clé : Image, texte verbal, livre d’alphabétisation, littérature pour enfant

Page 16: Capítulo V: Análise do material

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○ 1 ○ Apresentação da Tese Esse capítulo situa, em primeiro lugar, os motivos principais que geraram interesse na

realização da presente tese, indicando os caminhos das produções que tenho elaborado e

que têm suscitado a necessidade de prolongamentos, seja em forma de projetos de

extensão, de ensino ou de pesquisa. Faço uma breve reflexão sobre a importância das

relações entre imagens e textos verbais no âmbito escolar, para situar nas cartilhas de

alfabetização e nos livros de literatura infantil o desenho da pesquisa. Uma segunda parte

expõe o desenvolvimento da tese, o conteúdo dos capítulos e as considerações finais.

○ 1.1 Histórico da pesquisa Há dez anos, venho trabalhando com pesquisas acadêmicas na perspectiva das relações

entre a linguagem verbal e as imagens nos ambientes escolares, especialmente em alguns

gêneros e suportes. Pela inevitável limitação criada pelo modo de organização das

disciplinas e das áreas de estudo, ao teorizarem e se fazerem Ciência, senti necessidade de

buscar diálogo com outras áreas, além da Lingüística, que pudessem fornecer conceitos e

enfoques para uma amplitude de perspectiva, como a Semiótica, a Comunicação, a História

da Educação, entre outras, e nesta tese amplio a discussão com conceitos das artes plásticas

e da literatura. E nesse percurso, ora em contato com uma, ora com outra, fiz interrogações

que motivaram a construção de um tecido teórico que venho tentando aprofundar e polir.

Principalmente dois aspectos me instigavam: por um lado, a variedade de textos verbais e

visuais produzidos culturalmente, como espaço de forças políticas e ideológicas, e que

eram absorvidos por diferentes materiais educativos para todos os segmentos da Educação

Básica, como, por exemplo, os livros didáticos de Português (doravante LDP); por outro

lado, a necessidade de constituição de uma crítica acadêmica para a compreensão de

noções e conceitos sobre a temática da relação imagem e texto verbal, posta no interior de

projetos político-pedagógicos que eram, algumas vezes, elaborados por formadores de

professores.

Page 17: Capítulo V: Análise do material

17

Essas investigações me permitiram chegar a alguns resultados e a muitas interrogações

que, hoje, me levam à presente pesquisa. Apesar de buscar ampliar meus horizontes de

interesse, tenho clareza da parcialidade e limitação do meu campo de ação e da

necessidade de complementação em estudos detalhados nas práticas de leitura. Um aspecto

importante para compreender o caminho que venho trilhando é a visão de que tanto as

teorias quanto os instrumentos de que me utilizo provêm muitas vezes de campos

diferentes, mas que têm, para sua integração, a clareza de suas finalidades e possibilidades.

Espero ter conseguido explicitar na pesquisa que ora apresento os limites teóricos e

metodológicos que circunscrevem o trabalho.

Considero a importância de refletir sobre as relações entre imagens e textos verbais por seu

uso na escola e, em vista disso, nesta apresentação, faço um recorte de minha produção

privilegiando as ações de pesquisas mais do que a cronologia dos estudos. Certas vezes,

tendi para um estudo mais de natureza semiótica; outras, com características

historiográficas; e algumas, destacando aspectos metodológicos. O que os reúne é um

permanente desejo de descobrir as possibilidades de interlocução das imagens com a

linguagem verbal em aspectos do ensino e aprendizagem da língua portuguesa, em suas

diferentes dimensões: leitura, produção de textos, gramática. Uma questão de base esteve

sempre presente em meus estudos: o que distingue os usos de imagens e textos verbais em

materiais escolares de língua portuguesa? E, como decorrência, a seguinte pergunta: Qual

seria a potência das imagens e seu impacto na aprendizagem da escrita alfabética?

Em trabalho apresentado na ANPEd (Belmiro & Evangelista, 1998), com o título A

Escolarização da imagem e da imaginação nos livros didáticos de português, e publicado

em parte na revista Presença Pedagógica (Belmiro, 2000a), discuto a presença das imagens

nos LDP, o conceito de escolarização e sua aplicação em relação às imagens, nesse

suporte. Mostro que nem sempre a escolarização permite um uso adequado e enriquecedor

das imagens na sua relação com o texto verbal e que, muitas vezes, para fins didáticos,

limita-se à exploração das propriedades visuais, subordinadas a critérios metodológicos. Já

nessa época me interessava por alguns conceitos da área da Comunicação e da História da

Arte para integrarem um conjunto de reflexões sobre materiais escolares.

Page 18: Capítulo V: Análise do material

18

Uma pesquisa apresentada na ANPEd do ano seguinte, 1999, e publicada posteriormente

na revista Educação e Sociedade (Belmiro, 2000b) em forma de artigo intitulado A imagem

e suas formas de visualidade nos livros didáticos de português, discute as condições sócio-

históricas da presença do livro didático no Brasil. Nesse texto, enfatizo as décadas 1960/70

e 1990 como momentos fundantes para propostas e transformações desse material escolar,

e aponto as influências das pesquisas na área da Linguagem e as suas decorrências no

campo educacional; discorro também sobre as grandes mudanças tecnológicas e os

resultados na área da informática e da comunicação. A Semiótica torna-se um campo de

pesquisa que influencia outras áreas, dialogando com a Lingüística, a Pedagogia, entre

outras, e as produções acadêmicas daí decorrentes, na área do ensino da língua materna,

são uma vitrine desse momento.

É um momento em que me preocupo em enfatizar que o uso de imagens, muitas vezes,

nada mais era do que um processo de modernização por que vinha passando o suporte, o

que não coincidia forçosamente com uma transformação nos processos de ensino-

aprendizagem. Acredito que, com essa categoria por mim proposta, pude reconhecer um

divisor de águas que introduziria novas perspectivas nas produções dos finais do século

XX. Nesse texto, intenciono reconhecer o estatuto da imagem e uma tríplice perspectiva

que ajuda a compreender sua natureza múltipla: 1°- a qualidade intrínseca de sua natureza

indicial e simbólica vem contemplar o viés relacional da imagem como atividade social.

De acordo com o texto:

...é uma imagem que se torna significativa por sua ancoragem nos conteúdos resultantes da criação imagética, e não na realidade mesma. Assim, refletir acerca de possíveis leituras de imagens pode significar também investigar que padrões de visualidade um dado contexto sócio-histórico organiza e conforma. (p. 14).

2°- a necessidade de apontar as implicações da convencionalidade dos dispositivos

técnicos e afirmar que o que se vê é a tradução de um modo de organizar o olhar, uma

lógica sempre precária, porque está presa a um conjunto de fatores históricos, sociais,

científicos. Dessa forma, a “alfabetização visual” contempla as práticas de aprendizagem

da convenção para a leitura de imagens (p. 16); 3°- a percepção visual como uma

qualidade inata do homem, numa perspectiva cognitiva de compreensão da imagem. A

presença da indústria cultural propicia construir um novo objeto que, nos anos 1990,

resulta em projetos pedagógicos arrojados e refinados, sem os excessos da década de 1970.

Nesse texto, apresento também algumas funções exercidas pelas imagens nos LDP junto

Page 19: Capítulo V: Análise do material

19

com os textos verbais, mostrando que (p.23) “a suposição inicial de complementaridade

nessa relação nem sempre é confirmada e, em muitos casos, a ilustração ultrapassa o texto,

atrapalha o texto ou, mesmo, nada lhe acrescenta. Pior, continua como mero indicador de

modernidade...”

Nessa ocasião, já buscava em um escritor, crítico e experimentador de várias linguagens,

Mário de Andrade (1965), um pensamento mais aberto à exploração de novos campos de

pesquisa. Em artigo publicado originalmente em jornal sem nome e sem data, e

posteriormente em livro, o escritor discute a importância do desenho e seu lugar no campo

das artes. Para ele, o desenho está tão ligado à pintura e à escultura quanto à prosa e à

poesia, podendo ser entendido como uma forma de caligrafia. É um fato aberto. Suas

argumentações se baseiam na idéia de que as pinturas primitivas participam da essência

caligráfica do desenho. Dessa forma, a imagem pode estruturar-se como uma das grafias

que estão envoltas por práticas sociais que lhes dão sentido.

No intuito de ampliar a investigação sobre as possibilidades de interação entre as duas

linguagens, visual e verbal, e a explicitação de algumas especificidades dessa relação,

dirijo minhas reflexões para a importância do suporte como um dos elementos de

conformação dos sentidos. Em outro texto de 1999, A Imagem e o texto literário: entre

uma caligrafia e uma ortografia (Belmiro, 1999), apresentado no seminário O Jogo do

Livro, confronto o LDP das primeiras séries do Ensino Fundamental com o livro de

literatura infantil, para explicitar dois objetos singulares e, na maioria das vezes,

antagônicos na exploração das duas linguagens. Pensar o suporte, nesse momento, me

ajuda a compreender aspectos da pedagogia que dá forma e vida a projetos educacionais,

em oposição à liberdade de escrita visual e verbal que o suporte livro de literatura infantil

permite. Trago, ainda nesse texto, outros elementos que matizam ainda mais a discussão:

primeiro, a linguagem oral, suas possibilidades cognitivas e as relações de poder

estabelecidas pela escrita no confronto com a oralidade e a imagem. Mostro como só

recentemente se supera a concepção da fala como um discurso da falta, contemplando o

rigor da estabilidade estruturante da escrita como o centro de referência, ao qual as outras

linguagens e modalidades de língua devem se ajustar, e a perspectiva de que são as

relações de poder que definem a superioridade de uma modalidade sobre a outra. Prova

disso são os diferentes lugares dos usos sociais da escrita e da fala e, no percurso do

trabalho que apresento, das imagens e sua presença avassaladora na vida dos cidadãos. Da

Page 20: Capítulo V: Análise do material

20

mesma maneira, na esteira do debate sobre as relações da língua e as práticas sociais, abre-

se um caminho para uma interessante discussão no campo das relações escrita / imagem e

entre imagem e texto literário.

O viés da literatura em confabulação com as imagens marca o interesse de minhas

pesquisas, seja pela fotografia, pela pintura ou pelo desenho. O certo é que a Educação

precisa pensar essa relação e suas formas e espaços de existência, tanto nos ambientes

escolares quanto nos não escolares. É assim pensando que apresento, no VIII Congresso

Internacional da Abralic/ 2002, o artigo Texto literário e imagens nas mediações escolares,

publicado posteriormente como capítulo de livro, e que tem como ênfase a presença de

imagens em livros de cartilha e das séries iniciais do Ensino Fundamental, fazendo

referência – ou não – aos textos literários contidos no suporte. Dizia, naquele momento:

A origem de todas as proposições que esse trabalho pretende desenvolver está na hipótese de que, nas mediações escolares, especificamente nos livros didáticos de Português – das cartilhas de alfabetização aos livros das séries iniciais do Ensino Fundamental –, as relações entre o texto literário e as imagens são permeadas por um sentido (consciente ou não) de interdisciplinaridade ou, até possivelmente em alguns casos, de transdisciplinaridade, mas que vão se distanciando, e eventualmente antagonizando-se, nas séries finais do Ensino Fundamental.

Nesse artigo, me proponho a investigar alguns pontos de convergência/divergência nas

propostas de interpretação desses dois produtos estéticos: o texto literário e as imagens, nos

livros didáticos de Português das séries iniciais. Além disso, mostro interesse em saber em

que medida os recursos estéticos próprios da produção literária contaminam didaticamente

a exploração estética dos recursos visuais de uma produção imagética. Há que não se

perder de vista as especificidades de um livro didático que, sendo de Língua Portuguesa, se

interessa por desenvolver habilidades específicas com a linguagem, o que o diferencia dos

livros das demais disciplinas, haja vista, o pouco interesse da Matemática, Geografia,

Ciências, etc em trazer as artes plásticas e gráficas para o interior de seus livros e

aproveitá-las como linguagens de expressão artística. Uma evidência desses materiais é a

freqüência das poesias visuais como elo entre a arte literária e a arte gráfica, o que as

aproxima numa forma peculiar de leitura: Literária? Visual?

Page 21: Capítulo V: Análise do material

21

Também na mesma direção, publico o artigo Uma educação estética nos livros didáticos

de português (Belmiro, 2003), onde pretendo discutir, nos livros das séries finais do Ensino

Fundamental, a multiplicidade de conteúdos ensinados que convivem nesse suporte e que

se mesclam com o ensino da Língua Portuguesa.

Como conseqüência natural, em 2004 amplio a abrangência da pesquisa, em direção às

séries finais da Educação Básica: os livros didáticos de Português do Ensino Médio. Como

parecerista do Plano Nacional do Livro Didático do Ensino Médio, tive oportunidade de

estar em contato com diferentes publicações e perceber a variedade de propostas para esse

segmento, eventualmente repetindo a fórmula do Ensino Fundamental e propondo

atividades de leitura literária e de imagens voltadas para a construção dos jovens leitores.

O texto apresentado e publicado digitalmente tem uma posterior publicação impressa

(Belmiro, 2005).

Um viés desses estudos permitiu a retomada de uma interrogação para se transformar num

dos pilares da tese: que efeitos de escolarização sofrem os textos e gêneros de texto que

circulam na sociedade e se transformam em materiais didáticos? Ou, se é possível melhor

delimitar a questão: há confronto (e, se há, como?) entre processos pedagógicos e

processos estéticos na elaboração de materiais didáticos ou nos livros de literatura infantil?

As propostas de desenvolvimento de uma competência estética encontram dificuldades de

convivência junto a processos didáticos? Ou é o sentido de aprendizagem e suas formas

que devem ser repensadas e recolocadas no campo educacional?

A criação de um grupo de pesquisa multidisciplinar, em 1999, sobre as Práticas Educativas

do Olhar foi um dos caminhos que percorri na busca da ampliação do campo de pesquisa.

Constituído de pesquisadores da área de História da Educação, da Comunicação Social e

de uma ONG voltada para projetos educativos na área de jornalismo, fotografia e vídeo, o

grupo deu prioridade naquele momento a um estudo sobre a multiplicidade de diálogos

propostos pela relação imagem x texto verbal em ambientes escolares e não-escolares.

Além da realização de seminários, essa pesquisa resulta em duas publicações do grupo:

uma delas, A Imagem e sua dimensão cultural na formação de professores, interroga-se

sobre a inserção cultural promovida pelas imagens junto aos processos de formação

Page 22: Capítulo V: Análise do material

22

docente; outra publicação, Imagens e práticas intertextuais em processos educativos, sendo

resultado parcial de pesquisa do grupo, retoma alguns conceitos importantes para a área

multidisciplinar, a saber: hibridismo, intertextualidade, entre outros. Distingue-se,

principalmente, por uma discussão marcada por um olhar transverso sobre a imagem e a

educação, mostrando um contraponto entre linguagens e tecnologias da imagem e a

importância de dar condições aos alunos de se tornarem sujeitos do olhar.

Como formadora de professores, meu interesse pelas formas múltiplas de manifestação

cultural sobre o tema imagem x texto verbal me levou a estudar algumas produções

cinematográficas nessa área. Em 2001, apresento o trabalho Imagens de professoras em

narrativas no cinema e na literatura, no IX Seminário Nacional Mulher e Literatura, cujo

texto resulta numa publicação como capítulo de livro (Belmiro, 2002). Nele, aponto três

formas distintas de lidar com a escrita da professora, um gênero feminino, situada em

diferentes circunstâncias, mas com uma característica que as unia: o domínio da escrita

como poder, sua glória e seu desterro. Pela escrita e pelos corpos as mulheres inscrevem-se

na vida e, na interação com o outro, produzem sentidos que dão a sua medida. A condição

de mulher e professora que domina a linguagem escrita e, por disso, sabe do poder que

exerce na sua realidade social, tem, em minha abordagem, papel fundante para

compreender as suas interações com o mundo. O que necessitava explicitar, através dessas

produções culturais, tanto no cinema quanto na literatura, era a importância da escrita

como marca de inscrição e poder; além disso, desejava situar a autonomia dos estudos da

escrita em relação aos estudos da leitura, que tanto tem marcado o cenário da pesquisa

sobre linguagem. A escolha da literatura e das imagens do cinema retoma, no seu cerne, o

projeto de reconhecimento da relação imagem x texto verbal, agora refeita por processos

estéticos de construção da linguagem.

A seqüência de investigações que vim realizando nos últimos anos se transforma, no

momento, num contexto de idéias sobre as relações imagem e texto verbal que podem

produzir articulações produtivas em esferas como as artes, a literatura e a educação. Assim,

acredito poder contribuir com as investigações que apresento no estudo, ampliando as

condições de entendimento das propostas de livros de literatura infantil e de cartilhas de

alfabetização. É isso que justifica o interesse em propor a leitura deste texto.

Page 23: Capítulo V: Análise do material

23

○ 1.2 Apresentação da pesquisa

A pesquisa tem por objetivo principal compreender como se estabelecem e dialogam as

relações entre textos verbais e imagens em cartilhas de alfabetização e livros de literatura

infantil. Desdobra-se em quatro capítulos: o capítulo A Questão oferece os motivos que

levaram a esse tema e sua inserção na produção intelectual que venho desenvolvendo no

campo das pesquisas educacionais voltadas para os estudos da linguagem verbal e visual.

Para isso, precisei delimitar o contexto em que o tema se situa, definindo os horizontes da

pesquisa. Apresento inicialmente duas perguntas sobre as quais desenvolvo algumas

reflexões contextualizando teórica e metodologicamente os campos de pesquisa que

perpassam a interrogação. A primeira questão é assim apresentada: Como se constituem as

especificidades da aprendizagem da escrita a partir da sua relação com as linguagens

visuais? Assim posta, essa pergunta aborda os aspectos lingüísticos que podem determinar

a presença das imagens nos diferentes suportes e gêneros. A segunda pergunta é formulada

da seguinte maneira: Como as propostas metodológicas se aproveitam da relação imagem x

texto verbal para pensar uma alfabetização mais enriquecedora e eficiente? As ações

didáticas aqui estão sendo privilegiadas, filtrando o campo das expressões da linguagem.

A dimensão histórica e lingüística dos usos educativos das imagens em processos de

apropriação da escrita deu-me aporte teórico para analisar algumas cartilhas francesas

contemporâneas. Sendo a intenção primeira do livro de alfabetização a utilidade – pois ser

útil é servir objetivamente a algum objetivo –, e a marca essencial dos livros de literatura

infantil é a perspectiva estética – pois nela a linguagem reconstrói o mundo, sem a intenção

primeira de ensinar –, proponho reavaliar e matizar análises que não permitem trânsito

entre esse dois mundos (o educativo e o estético), e apostar em interferências mútuas de

projetos editoriais, projetos educativos, projetos estéticos, resultando em variadas formas

de atividades de linguagem e plasticidade. Nesse momento, abro espaço para apresentar

Page 24: Capítulo V: Análise do material

24

algumas investigações que realizei com cartilhas francesas durante os estudos realizados na

França e que se justifica porque são similares, no geral, às propostas de cartilhas

brasileiras.

A terceira pergunta que dará a direção da pesquisa pode ser assim descrita: quais as

relações entre imagem e texto verbal em cartilhas de alfabetização e livros de literatura

infantil do ponto de vista da linguagem? Minha intenção com essa formulação é manter a

tensão que a discussão enseja para estabelecer elos da linguagem verbal com as imagens,

como plasticidade e linguagem, nos processos de leitura e escrita. Portanto, a linha de

reflexão que desenvolvo acresce aos aspectos lingüístico e metodológico, pertinentes às

duas primeiras questões, uma perspectiva discursiva que valerá a ampliação dos horizontes

de possibilidades de relações imagem/texto. Essa apresentação pretende situar livros de

alfabetização e livros de literatura infantil, apostando numa extensão de relações

imagem/texto que podem superar as características clássicas de cada gênero.

O capítulo A Linguagem, as imagens e a construção da subjetividade considera alguns

marcos teóricos que ajudam a modelar a construção do conhecimento e os sujeitos que se

constituem a partir deles. Ademais, o capítulo aponta diferentes manifestações da escrita e

das imagens ao longo do tempo, circunscritas pela concepção bakhtiniana de linguagem;

constitui algumas categorias que ajudarão a dar corpo à análise do material e apresenta os

estudos elaborados por Bakhtin sobre o prosaísmo do discurso romanesco e sobre o

monologismo do discurso poético como matrizes para compreender as posições de autor e

ilustrador dos livros de literatura infantil analisados no corpus referente ao quinto capítulo.

O capítulo Os Sistemas de escrita busca os estudos sobre a origem da escrita para

fundamentar as posições de quem deseja apresentar uma outra maneira de ver a questão:

Anne-Marie Christin aposta na dupla origem da escrita, sendo as duas inteiramente

heterogêneas. Tanto o fonetismo quanto o grafismo são geradores da escrita, podendo-se

assim compreender melhor a discursividade da imagem e a plasticidade da escrita. Torna-

se natural, então, que se utilizem alguns conceitos da teoria literária e das artes plásticas

para apresentar as relações entre o icônico e o verbal. Assim, as relações entre imagem e

texto verbal podem se apresentar de forma renovada e tomar corpo no contexto das

produções artísticas, bem como nos processos pedagógicos que assimilam essas

linguagens. Tanto o visível quanto o legível são categorias necessárias para dar

Page 25: Capítulo V: Análise do material

25

flexibilidade e extensão de usos aos textos e às imagens nesses dois gêneros e suportes de

que trato. A direção investigativa é no sentido de constituir categorias que possam

fundamentar as análises do material de pesquisa que desenvolverei adiante.

O capítulo Análise do material justifica os materiais utilizados: livros de literatura infantil

brasileiros e estrangeiros que fazem parte do acervo do PROALE – Programa de

Alfabetização e Leitura, vinculado à Faculdade de Educação/UFF – e os que são

integrantes do PNBE – Plano Nacional de bibliotecas Escolares. Apresenta a perspectiva

de análise, em que o conceito de cronotopo de Bakhtin fundamentará a superação do

conceito de artes do tempo e do espaço e, com isso, a descrição e a narração assumem

outras instâncias discursivas, podendo se apropriar e fundir imagem e de textos verbais na

criação artística. A dimensão argumentativa nos livros de literatura infantil é tratada a

partir dos estudos de Cecília Goulart, para quem enunciar é argumentar. A sua necessidade

de compreender o movimento de produção de discursos e conhecimentos nas relações

ensino-aprendizagem dá margem a que se estenda sua compreensão à produção de

discursos nos livros de literatura infantil. Por isso, o enunciado bakhtiniano compõe um

conjunto de conceitos, como plurilingüismo, hibridização que apoiarão a análise do corpus.

Nas considerações finais, proponho uma reflexão sobre a base conceitual elaborada ao

longo da tese e as injunções de sua utilização em espaços escolares. O que explicitam as

formas em que imagens e textos são postos na escola? É possível um tratamento dessas

linguagens de maneira a que a escola não precise ser reativa às imagens e tomá-las como

empecilho para a aprendizagem da língua escrita. Acredito que assim seja possível poder

pensar as dimensões do estético e do pedagógico voltadas para a formação da consciência

crítica sobre materiais e métodos utilizados em sala de aula.

Page 26: Capítulo V: Análise do material

26

○ 2 ○ A Questão

Este capítulo tem como finalidade formular a questão que justifica a presente pesquisa.

Para isso, realizo inicialmente reflexões sobre certas interrogações que naturalmente

podem surgir, pois o trabalho que venho desenvolvendo situa-se na interseção de algumas

áreas de conhecimento, contextualizado no campo educacional. Introduzo duas questões

preliminares, uma de cunho lingüístico e outra de cunho pedagógico, para, então,

especificar o escopo do trabalho: o estudo das relações entre imagem e texto verbal do

ponto de vista do conceito bakhtiniano de linguagem, as riquezas que resultam dessas

interações e a amplitude do alcance que esse ponto de vista permite para olhar de modo

renovado questões no âmbito educacional.

○ 2.1 Contextualização da pesquisa

Diferentes formas de expressão humanas, como o gesto, a música, a imagem, são

historicamente apropriadas pela escola e nela transformadas em objeto de aprendizagem e,

com freqüência, em instrumento para a aprendizagem da escrita. Essas ações vêm

configurando, principalmente nas séries iniciais, um interessante movimento e

deslocamento de posições, seja de aproximações de linguagens, seja de uma tendência ao

fortalecimento da escrita como um sistema de comunicação eficiente para a constituição

dos sujeitos, frente a outras formas de cognição.

Pesquisas na área da história da leitura e da escrita têm mostrado1 que os usos, as funções e

os modos de apropriação da escrita têm se transformado ao longo da sua história devido às

demandas sociais e culturais de cada momento histórico. Por exemplo, a função do copista

foi fundamental para a sobrevivência do texto escrito, até praticamente o século XVIII: sua

caligrafia, de certa forma, dava consistência e estabilidade visual à leitura; também, nessa

1 Viñao Frago faz uma boa síntese desse assunto no capítulo 12: Por una historia de la cultura escrita: observaciones y reflexiones em Leer y escribir: historia de dos prácticas culturales, 1999. Além dele, pesquisadores da história cultural propõem um olhar renovado sobre o objeto da História na busca etnográfica, a exemplo de Darnton.

Page 27: Capítulo V: Análise do material

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época, se supunha o traço como marca de estilo e de autoria. Portanto, a escrita poderia ser

vista – e não lida/ouvida – e poderia igualmente ser contemplada como algo oferecido a

um espectador, ainda como lembrança das iluminuras da Idade Média. Outra marca

histórica é a generalização do texto escrito que, reforçada com a cultura tipográfica

renascentista, ajudou a afirmar certo tipo de leitura, silenciosa e solitária. Além disso, a

disseminação do texto propiciada pela imprensa institui um leitor que se habitua à

linearidade, seqüencialidade das letras, palavras e frases, uma visão controlada pela linha

que indica o caminho de leitura. A letra, a palavra, enfim, a escrita concebe o branco do

papel como um vazio, um oco, um nada, onde depositar os sentidos contidos no interior do

texto; ademais, os tipos da imprensa generalizam um padrão de letras que dissolve a marca

da identidade e da singularidade do traço da mão de quem escreve.

Contemporaneamente, a cultura televisiva informa outro modo de abordar a escrita. Há

uma tendência à contundência na afirmação de que as características dessa nova cultura se

opõem às da cultura tipográfica, embora essa última sobreviva e os livros continuem a ser

editados de forma abundante. Contudo, diz Frago (1999, p. 288-290)2, “já não constituirá

(...) o modelo de referência socialmente mais valorizado. Uma nova mentalidade e um

novo suporte nasceram”. Essas transformações de técnica de execução, ferramenta e

suporte de escrita não se resumem à sua evolução material, mas afetam um conjunto de

fatores – quem escreve e lê, como se escreve e se lê, os contextos, os meios e os fins para

que se escreve e se lê, isto é, as funções, usos e práticas sociais relacionadas com o escrito.

Dessa forma, são criadas novas formas de ler e de escrever e, em última análise, a tela do

computador, hoje, refaz categorias como autoria, acesso, divulgação e a própria idéia de

livro, agora uma outra forma de integrar o som (em substituição à antiga leitura em voz

alta), a imagem (agora virtual) e o texto (sem rascunho, eterno presente passado a limpo).

Essas novas formas de ler e escrever vêm se constituindo como novas práticas culturais, o

que evidencia os significados dados às atividades do ser humano, tanto pelo viés prático

como pelo simbólico. Por outro lado, as novas maneiras de ler e de se relacionar com o

escrito necessitam de certa permanência e estabilidade para se constituírem como uma

prática cultural, com isso evidenciando que o significado é circunstancializado.

2 “ya no constituirá...el modelo de referencia socialmente más valorado. Una nueva mentalidad y un nuevo soporte han nacido”. Todas as citações no corpo do texto, com o original em francês, inglês e espanhol no rodapé, foram traduzidas por mim.

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Em artigo importante sobre leitura tipográfica e televisiva, Frago (1999)3 constrói um

abismo entre a imagem e a escrita, traçando um paralelo, a partir da capacidade

imaginativa do homem, desde a realidade fixa da fotografia e do telégrafo, culminando

com a televisão. Declara que, nas crianças, a fantasia, a realidade cotidiana e a narração ou

o relato, o contar histórias, a simulação e as ficções vão de mãos dadas, umas servindo para

despertar outras. E, sobre a televisão, ele é ainda mais enfático (p. 228): “Nela, tanto a

imaginação quanto a realidade – ou seja, a percepção sensorial do real – são suplantadas

por uma realidade virtual de imagens tecnologicamente construídas. Umas imagens que

não são a realidade nem promovem a imaginação”4. Afirma que o presentismo fugaz e o

fluxo ininterrupto de suas imagens são mera retenção física e mental do telespectador.

Acredito que essa discussão, posta em outros moldes, relativiza também os suportes de

imagem, assim como se faz com os suportes da escrita. Todas as imagens não são as

mesmas da televisão, nem as imagens da TV são a realidade naturalizada de qualquer

suporte imagético. Alguns desses suportes oferecem possibilidades de criação de relações

próprias, inclusive com a presença freqüente do texto verbal. Diferentes áreas de estudos

sobre imagem vêm concordando com a idéia de que a imagem não é somente reprodução

do real, ou uma representação calcada em modelos que lhe são exteriores. Imagem é

também criação, e isso traz a possibilidade de construção de outras cadeias de significação,

superando uma definição parcial de imagem como descrição do real. Algumas das imagens

mais contundentes da história foram criadas por fotógrafos que não faziam da sua arte um

documento do real, ou, mais que isso, superando a qualidade de documento, levavam o

espectador a outros mundos, onde ele poderia ficcionar o real, além de dar entendimento ao

visto pelas relações que ele, o espectador, poderia estabelecer. Imagens submarinas, por

exemplo, apenas facilitaram o acesso a um mundo em que se construiu, com elas e por

meio delas, uma possível realidade, pois se sabe que as cores no fundo do mar não são as

mesmas que nos são dadas a ver pelas objetivas submersas dos fotógrafos; que a luz das

lanternas que iluminam o fundo do mar construiu também um recorte de mundo que, junto

com lentes poderosas, adaptadas para esse ambiente especial, nos deram uma certa

tonalidade, intensidade e profundidade. Esses procedimentos não nos impedem, pela visão, 3 Cap.10: Cultura tipográfica y cultura televisiva. Lecturas intensivas y extensivas. In: Leer y escribir: Historia de dos prácticas culturales. México: Fundación Educación, voces y vuelos, I.A.P., 1999. 4 “En ella, tanto la imaginación como la realidad – o sea, la percepción sensorial de lo real- son suplantadas por una realidad virtual de imágenes tecnológicamente construidas. Unas imágenes que no son la realidad ni promueven la imaginación”.

Page 29: Capítulo V: Análise do material

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de imaginar e criar esse mundo, de lhe construir uma memória ficcional que agencia a

imaginação. Outro exemplo são as fotos espaciais inimagináveis para os olhos humanos, a

dimensão planetária apresentada por uma tecnologia que supera os dados com os quais os

homens se orientam e que solicita processos cognitivos complexos para configurar uma

temporalidade, uma espacialidade e organizar novos conceitos para situar o homem na

virtualidade.

Outras imagens nos levam a desenvolver um senso de pertencimento e a adentrar mundos

que, para serem compreendidos, requerem uma consciência de nós próprios frente ao

estado de coisas; é o caso das imagens de cunho social, carregadas de histórias,

sentimentos e ideologia. Ou de certas artes que explicitam e propiciam estados alterados de

consciência, de onirismo total livre de padrões regulatórios. As telas de Dali nos prendem a

respiração e nos levam por veredas surreais que não explicam nada, não descrevem coisa

alguma, nada documentam, mas nos deslocam da fixidez arbitrária do lugar comum. Por

outro lado, imagens podem nos facilitar a generalização de situações, a abstração de

conceitos, o desenvolvimento de temáticas fundamentais para a inserção do homem no seu

contexto sócio-histórico e outras capacidades cognitivas que o texto verbal também

propicia. Imagens múltiplas. Estudos de Olson5 mostram que uma tela pode retratar uma

história inteira, em que as partes de uma narrativa se encadeiam e se condensam numa

cena. Por exemplo, a retratação de grandes batalhas conta a história da batalha, com os

diversos estágios do evento: a cavalgada, a luta, a vitória de uns e a derrota de outros, o

término triunfante.

Frago6 afirma que a imagem controla a imaginação, pois não deixa espaço vazio para que

seja preenchido pelo sujeito. Acrescenta ainda que, nesse caso, se “a imaginação cobre os

vazios, o faz a partir das representacões conhecidas”. Em parte, sim, embora seja relevante

lembrar que a imagem pode suscitar também o seu inverso, isto é, a construção de um

modo diferenciado de ver, se tomarmos, por exemplo, o conceito de perspectiva como um

constructo epistêmico da plasticidade da imagem. Diversos estudos promovidos pela

história da arte são referência para o entendimento das imagens e suas formas de

5OLSON, David R. O Mundo no Papel. As implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. São Paulo: Ática, 1997. 6 FRAGO, opus cit., p.228: “la imaginación cubre los vacíos, lo hace a partir de las representaciones conocidas.”

Page 30: Capítulo V: Análise do material

30

representação7. Como fato científico, que tem seu apogeu na Renascença, o descobrimento

da perspectiva refaz todo o conhecimento medieval sobre as artes plásticas. A Ciência

Matemática e a Física na Modernidade ajudam a elaborar um olhar renovado sobre a

realidade e construir outro modelo de visualidade. Com o desenvolvimento dos

procedimentos digitalizados, nenhum contato com o real é preciso para trazê-lo a um

suporte: nem as mãos do homem frente à natureza, na tentativa de trazer o mundo para o

papel, nem os raios luminosos captados pelas objetivas dos fotógrafos, que marcam, na

emulsão do filme, a emissão de luz dos objetos e os capturam fisicamente. O conceito de

representação, pois, passa por um constrangimento, uma vez que não se representa, mas se

apresenta um real, criado nas telas da computação, ou manipulado, feito virtualmente.

Além disso, a ênfase no texto escrito, como uma forma estável para melhor desenvolver o

pensamento e a imaginação, relativiza as formas orais da narrativa, adequando-as à nova

modalidade. Nesse caso, a escola tem exercido papel primordial, tanto no que tange ao

desenvolvimento de diversos gêneros de escrita, quanto ao emprego de diferentes formas

de oralidade para o enriquecimento das interações verbais in presencia. Todavia, a falta de

uma percepção mais aguda sobre os inúmeros eventos de linguagem em que predomina a

imagem faz deslocar as dificuldades internas da escola, no seu processo de ensino-

aprendizagem da leitura e da escrita, para fatores fora do seu âmbito de ação, absolvendo-a

da gravidade de resultados negativos.

Um das características da cultura digitalizada é a aposta na transformação da consciência

de tempo e lugar. Absorvendo traços da oralidade – como fluxo contínuo do pensamento,

fragmentação e espontaneidade, tipo de relação entre os interlocutores no instante da

produção da escrita – a escrita digital destaca algumas das características do oral dentro de

um novo contexto tecnológico, como a informalidade e certos gêneros do discurso. Além

disso, podem abranger um número muito maior de usuários, mesmo que ainda se distingam

socialmente as pessoas para seu acesso. Os atos de produção, recepção e apropriação de

texto e sua difusão pela tecnologia eletrônica tornam-se exemplo da concepção de tempo e

espaço de uma sociedade pós-moderna8, condenadas ao eterno presente.

7 HOCKNEY, David. O Conhecimento secreto: redescobrindo as técnicas perdidas dos grandes mestres. São Paulo: Cosac&Naify, 2001. 8 Não intento aprofundar essa discussão, dados os objetivos da tese e os limites de meu objeto de estudo. No capítulo 3, apresento uma discussão sobre essa temática, por necessidades de contextualização da pesquisa.

Page 31: Capítulo V: Análise do material

31

Frente a um contexto sociocultural que impõe novos olhares para a complexidade do

mundo, diversos estudos na área educacional vêm promovendo uma extensa discussão

sobre a importância de a escola repensar seus objetivos e métodos de leitura e escrita. Já

nos anos 1980, pesquisadores de diferentes países advertem para a superação de certos

conceitos, como de alfabetização ou analfabetismo, para lhes recompor os sentidos a partir

de injunções sociais, científicas e histórico-culturais. Nessa década de políticas neoliberais,

os círculos acadêmicos estabelecem uma discussão sobre a existência de uma sociedade

composta por minorias alijadas dos processos decisórios, em que se incluem obviamente os

analfabetos. Os debates acerca do analfabetismo, do analfabetismo funcional (ou o

iletrismo de feição francesa9) e da idéia de uma educação intercultural dão mostras da

grandeza das transformações sobre as quais a escola não podia se furtar a um

posicionamento. Muitos consideram que esses novos analfabetos não exploram a memória

e têm pouca capacidade de concentração, além de não terem condições de organizar um

discurso oral convincente, muito menos a escrita com propriedade10. A televisão seria seu

lugar de perdição, de seu consumo passivo. Também, e por causa disso, a presença da

escrita torna-se rarefeita, quase inexistente, porque desnecessária e superada.

Todavia, considero fundamental matizar essas posições, frente à variedade de

possibilidades que os novos suportes e linguagens oferecem aos usuários nos processos de

comunicação de que se utilizam, ao usarem a linguagem verbal. Em texto sobre as

aproximações entre revolução tecnológica e revolução intelectual, Hébrard11 anuncia, para

as reflexões aqui apresentadas, dois eventos importantes para a cultura da escrita, que

podem explicar a necessidade de tornar menos rígida a relação de causa e efeito entre o

sucesso ou o fracasso da leitura e da escrita e a presença das imagens. Em primeiro lugar,

explica que estudiosos alemães têm mostrado a relação direta da reforma luterana e a

importância das imagens nas gravuras satíricas, para a difusão das críticas endereçadas à

igreja e ao papa: “A imagem é, antes do texto, então, sem dúvida, a origem do sucesso da

Reforma”.12 (Hébrard, 2001, p. 105).

9 HÉBRARD, 1991. 10As décadas de 1970 e 1980 representam um importante tempo, pela Escola e seus professores, de assimilação das teorias da comunicação e de suas ferramentas tecnológicas, por um lado, e, por outro, de reação às condições sociais que determinam quem pode se tornar seus usuários. 11 HÉBRARD, 2001. 12 « L’image, avant le texte, est donc, sans doute au principe du succès de la Reforme. »

Page 32: Capítulo V: Análise do material

32

Por outro lado, Darnton (1986, p. 287-288), em seu comentário sobre a fabricação de uma

sensibilidade romântica nos escritos de Rousseau, mostra a importância dada ao portador

de texto, indicando uma relação estreita do objeto com o conteúdo por ele veiculado. A

percepção do aspecto material na leitura, influenciando a relação do leitor com a leitura

mesma, integra os protocolos de leitura, participando ativamente das condições de

produção de sentido que envolvem o leitor e o ato de ler. Diz Darnton:

Esta consciência tipográfica desapareceu, agora que os livros são produzidos em massa, para uma audiência maciça. No século XVIII, eram feitos à mão. Cada folha de papel era produzida individualmente, com um procedimento esmerado, e diferia de todas as outras folhas do mesmo volume. Cada letra, palavra e linha era composta segundo uma arte que dava ao artesão uma possibilidade de exprimir sua individualidade. Os livros, em si, eram individualizados, cada exemplar tendo suas características próprias. O leitor do Antigo Regime aproximava-se deles com cuidado, porque prestava atenção ao material da literatura, bem como à sua mensagem...Observaria o desenho do tipo, examinaria os espaços, conferiria o registro, apreciaria a diagramação e verificaria a regularidade da impressão. Provaria um livro da maneira como poderíamos provar um copo de vinho: porque olhava para as impressões no papel e não apenas através delas, buscaria o significado. E, quando estivesse inteiramente de posse do livro, em todos os seus aspectos materiais, se instalaria para lê-lo .

Darnton, com essas evidências, mostra que os leitores do século XVIII têm, com o livro,

uma relação de prazer que vai além do caráter informacional ou emotivo advindo das

mensagens dos textos. O sabor/saber contido no livro instiga o prazer dos sentidos que,

verdadeiramente, é dado por uma perspectiva estética que acompanha a produção do

conhecimento abstrato, sendo-lhe complementar, ou mesmo suplementar, de qualquer

forma integrando duas dimensões que são da essência do ser humano, conhecimento e

estética. Essa é a postura do leitor do séc. XVIII frente ao objeto.

Embora Darnton afirme que essa consciência tipográfica desapareceu com os livros

produzidos em massa, para uma audiência maciça, considero que esse aspecto ainda está

presente nas produções editoriais, nas diferentes maneiras de ler e nas relações que são

estabelecidas no ato de leitura. Mesmo deslocada no tempo e no espaço, a perspectiva

estética surge em outros modelos ou mesmo sob outras formas que designam seu tempo,

mas sempre constará de um modo de apropriação e criação de significados. Essa tensão

entre o conteúdo e seu suporte está presente nas questões teóricas que desejam conceber o

conhecimento, não de forma abstrata, mas a partir da sua relação com o entorno, seja

Page 33: Capítulo V: Análise do material

33

material ou imaterial, isto é, nos simbolismos, nas ideologias, nos valores de uma época. A

poesia brasileira concretista do século passado, por exemplo, foi uma importante retomada

dessa consciência tipográfica, uma literatura que põe em jogo o artesão da palavra, a

desconstrução da linearidade do texto, do aprisionamento do significado, para lapidar a

forma da palavra e dela surgir o sentido do poema. Mais radicais foram os seguidores dos

poemas-processo, construídos de total grafismo: linhas, pontos, formas geométricas postas

em encaixes ou em folhas soltas, abrindo amplamente a leitura em todas as direções, sem

princípio, sem ponto derradeiro, para onde o olho e o imaginário levarem o

leitor/espectador.

Sabe-se também que a litografia e a xilogravura do século XIX reintegram texto e imagem,

criando novos espaços gráficos, como os cartazes tão em moda na Europa, os livros

ilustrados, o livro de literatura romântica, para “leitores que nutrem seu imaginário com

produções do desenhista como daquelas do escritor” 13. Mais adiante, abordarei esse

expediente em livros de leitura escolar. Outro fato relevante para compreender a história da

leitura é tomar consciência de que o livro concorre com outra mídia de transporte da

palavra à distância, o rádio, que se generaliza rapidamente entre as duas guerras mundiais

do século XX. Hébrard (2001) lembra a importância da emissão radiofônica, anterior às

imagens da TV, que implica uma outra sociabilidade, qual seja, interdita a palavra viva do

interlocutor, colocando-o na posição de ouvinte, e lhe põe na situação de não ter que errar

na sua interpretação individual e solitária da palavra escrita; por isso, lhe desobriga do

trabalho da leitura. Cito Hébrard (2001, p. 112):

O rádio, bem antes da televisão, fez existir um mundo onde cada um, qualquer que fosse seu lugar no território, podia, no mesmo instante, na imediatez absoluta da palavra, vibrar com a mesma emoção, se entusiasmar pela mesma opinião, ser persuadido a saber o que uma voz autorizada acabava de lhe ensinar.14

A afirmação de Hébrard de que as revoluções tecnológicas se prolongam nas revoluções

intelectuais encontra eco na produção de novas mentalidades que, por vezes, apagam as

interações que os antigos meios propiciavam. Nos anos 1970, por exemplo, a leitura,

13 (Hébrard, idem, p. 111) : « des lecteurs qui nourrissent leur imaginaire des productions du dessinateur comme de celles de l’écrivain ». 14 « La radio, bien avant la télévision, a fait exister un monde où chacun, quelle que soit sa place sur le territoire, pouvait au même instant, dans l’absolue immédiateté de la parole, vibrer de la même émotion, s’enthousiasmer pour la même opinion, être persuadé de savoir ce qu’une voix authorisée venait de lui enseigner. »

Page 34: Capítulo V: Análise do material

34

prioridade dos sistemas educacionais, se transforma numa atitude dentro de um projeto de

escolarização que prolongou a terminalidade dos estudos. No caso brasileiro, a lei 5692/71

criou o 1° Grau obrigatório em território nacional e, tal como na França, propôs fazer da

atividade da leitura um passo para o domínio da escrita. Supunha-se, e ainda se supõe, que

ler muito resulta obrigatoriamente em escrever bem. Todavia, os resultados dessa empresa

nem sempre significaram acerto ou mesmo sucesso. Diz o autor (idem, p. 113):

Não nos surpreendemos mais, a partir dos anos 1970, que um aluno não tenha lido Molière nem Camus, nem Hugo nem Char. Surpreendemo-nos simplesmente que ele não leia ou que ele não leia mais. O verbo ‘ler’, tornando-se intransitivo, faz da leitura um valor estético ou moral que se basta ele mesmo. 15

Portanto, a complexidade da temática permite pensar que os que vêem TV podem ser

aqueles que escrevem e-mails, constroem uma comunidade nos blogs, descrevem e

argumentam quando criam os seus próprios sites, oralizam a escrita por msn etc., o que

quer dizer que escrevem por outros caminhos, com outros formatos, sem os procedimentos

tradicionais da escrita, utilizando-a em outros meios, de outras formas. Certamente os

analfabetos de antigamente não são os analfabetos de hoje e, no caso brasileiro, os dois

coexistem no mesmo tempo e espaço, sendo que o que os distingue é a dimensão do

letramento, este, sim, marcando a diferença na autonomia de uso e domínio de linguagem,

e, portanto, entre os analfabetos e os novos analfabetos, que são os não letrados. Para isso,

é preciso situar o contexto em que esse conceito é utilizado, posto que sua apropriação é

circunscrita, nesse caso, histórica e antropologicamente. O conceito de cultura pós-

tipográfica ou cultura eletrônica, proposto por W. J. Ong, aproxima justamente duas áreas,

Lingüística e Semiologia, cujos campos de pesquisa têm sido cada vez mais solicitados a

contribuir com conceitos e noções. A interface entre oralidade, escrita e imagem, por

exemplo, pode ser um índice dessa aproximação.

A discussão dessas relações trouxe importantes contribuições para as pesquisas

educacionais que reconhecem a legitimidade do saber cultural compartilhado de diferentes

grupos e dos saberes dos professores como pertencentes à cultura escolar: partir do

particular para o geral, do local para o universal, possibilita o conhecimento de si, no outro. 15 « On ne s’étonne plus, à partir des années 1970, qu’un élève n’ait lu ni Molière ni Camus, ni Hugo ni Char. On s’étonne simplement qu’il ne lise pas ou qu’il ne lise plus. Le verbe ‘lire’, en devenant intransitif, fait de la lecture une valeur esthétique ou morale qui se suffit à elle-même. » No Brasil, esse tema também tem sido palco de debates entre diferentes estudiosos que se preocupam com a leitura e suas condições de possibilidades de realização em ambientes escolares.

Page 35: Capítulo V: Análise do material

35

Isso pode ser confirmado por pesquisas na área da etnografia de sala de aula que vêm

propondo, pela busca das tramas urdidas entre professor e aluno nas suas interações em

classe, novos significados aos sujeitos e à experiência do conhecimento. Também se

observa hoje o fluxo de algumas ciências na direção de outras, na busca de

complementação, ou mesmo de outros aportes epistemológicos, produzindo novos campos

de pesquisa para explicação das diferentes realidades em que vivemos. É o caso, entre

outros, da Lingüística, Sociologia, Antropologia, História, Semiótica.

Dessa forma, os problemas relativos à utilização das imagens na educação podem e devem

ser relativizados, para que a discussão não se restrinja à contestação pertinente, porém

reativa e insuficiente, das conseqüências dos usos da televisão, seu suporte, suas

linguagens e seu acesso. Um dos exemplos freqüentes para o baixo rendimento na

capacidade de utilização da linguagem verbal pelos alunos é a dificuldade que eles

encontram para compreender textos acadêmicos, ou para escrever gêneros textuais, como

resenhas, resumos; enfim, uma dificuldade para lidar com outras formas de escrita

diferentes da narrativa, e justificar essa impossibilidade pela desqualificação dos jovens

devido ao seu constante contato com as imagens desde pequenos, até antes mesmo do

início da alfabetização. Na década de 1960, Osman Lins (1977) angustiava-se com a

possibilidade de as imagens matarem a capacidade imaginativa dos alunos, mas não

antevia a importância de propor uma escola mais atenta ao mundo lá fora. Com isso, ele

não entendia que as crianças não só são fruto, como também são produtores de um

complexo conjunto de processos culturais cujas vivências delimitam e dão forma ao

conhecimento. Apostava, naquele momento, na capacidade de o texto escrito bastar aos

processos imaginativos.

○ 2.2 A especificidade do ensino-aprendizagem da escrita e as linguagens visuais Para iluminar as reflexões que pretendo realizar neste estudo, é preciso, antecipadamente,

refletir sobre algumas questões que pretendo superar ao longo da exposição para poder,

então, indicar o foco de meu interesse de pesquisa. Uma delas pode ser formulada da

seguinte maneira: Como se constituem as especificidades do ensino-aprendizagem da

escrita a partir da sua relação com as linguagens visuais?

Page 36: Capítulo V: Análise do material

36

Essa interrogação, assim posta, filtra excessivamente o olhar sobre os processos

pedagógicos que utilizam imagem no ambiente escolar. Seu ponto de chegada é a

aprendizagem da escrita e seus processos, e as linguagens visuais lhe servem como

contraponto ou complemento. Muitos estudos têm restringido o objetivo do ensino da

escrita ao domínio do código lingüístico nos períodos escolares da alfabetização, tomando

a dimensão lingüística como alicerce desse caminho investigativo; alguns desses estudos

têm ampliado sua área de conhecimento pelo diálogo da Lingüística com outras

disciplinas, derivando um outro recorte de pesquisa como, por exemplo, a Psicolingüística,

a Sociolingüística, a Filosofia da Linguagem, a Teoria Literária, entre outras. A lingüística

estrutural saussuriana marcou as pesquisas na área de ensino da língua até metade do

século XX, determinando, pelas relações binárias e, portanto, por oposições simplificadas,

as relações do homem com o conhecimento. A fala não é pertinente ao sistema, uma vez

que a sua instabilidade, fluidez e circunstancialidade não permitem a fixação de uma

estrutura, conceito caro para os que constituem suas pesquisas na direção do domínio do

sistema da língua, estando excluídas, conseqüentemente, a interação e a perspectiva

humanas nos processos comunicativos. Por outro lado, pesquisas com enfoques

cognitivistas têm dado margem a descobertas importantes sobre os mecanismos cerebrais

de produção e acesso ao conhecimento. Essas foram, inclusive, a marca dos trabalhos

produzidos no período de 1970/1980. As últimas décadas têm apontado um grande esforço

para retomar a importância da oralidade para a aprendizagem da escrita, porém não como

duas faces da mesma moeda, mas entendendo que as suas especificidades e possibilidades

de autonomia lhes garantem um valor específico e uma qualidade que determinam seus

lugares de interlocução16. Os dias atuais buscam não relacionar a valorização da escrita

com a depreciação da oralidade, uma superando a outra cognitiva e socialmente, mas dar

uma perspectiva não-hierarquizante a essas duas modalidades, dentro e fora da escola.

Frente a essa postura contemporânea postulada pelos estudos, acredito na possibilidade de

se pensarem também as posições social, cognitiva e discursiva das imagens no contexto da

cultura e, dentro dele, da educação, sem que o valor social atribuído à escrita desqualifique

os processos cognitivos e discursivos engendrados pelas linguagens visuais. Esse debate

será retomado mais adiante, no capítulo 5. 16 Trabalhos marcantes na pesquisa brasileira têm trazido contribuições fundamentais para o estudo da oralidade, escrita e o ensino da língua, tais como: CASTILHO (1990, 2000), Projeto NURC, A gramática do Português Falado 5 vols. Campinas, Editora Unicamp; São Paulo, FAPESP, 1990-1996; MARCUSCHI (2001), RAMOS (1997), entre muitos.

Page 37: Capítulo V: Análise do material

37

Certas áreas de estudos trazem contribuições importantes para o entendimento da questão

anunciada. Uma perspectiva que deve ser levada em consideração e que tem gerado

trabalhos relevantes para a pesquisa historiográfica são os estudos da Teoria da Literatura e

sua influência nos modos de conceber o texto, alertando o estudioso da sua fluidez e sua

conseqüente impossibilidade para sustentar ou conformar uma realidade. Esse é o exemplo

dado por Darnton17 que, atento para a possibilidade de construir um modelo de análise, não

toma os relatórios policiais do século XVIII como uma realidade irredutível, a partir do

qual pode recriar uma sólida reconstituição do passado. Diz ele (1988, p. 205): “...os

teóricos da literatura ensinaram os historiadores a se acautelarem com os textos, que

podem ser dissolvidos em ‘discurso’ pela leitura crítica, por mais sólidos que possam

parecer”. E se tudo pode ser discurso, tudo está em construção. Caberia pensar, para o caso

da Semiologia, como tratar os signos. Estarão os signos em construção?

Do ponto de vista da história da educação, Frago18 aponta, em 1989, três grandes fases de

estudos da história da alfabetização em contraponto à história do pensamento: 1ª- Estudos

tradicionais sobre alfabetização – centrados no analfabetismo (e não, na alfabetização

como processo); 2ª- Fase iniciada na década de 1960 com seu auge na de 1970. O estudo

deslocou-se para o processo de alfabetização, seus agentes e modos de atuação, resistências

e apoios. Essa inversão supôs o recurso a novas fontes e a ampliação do campo de

investigação aos fatores ideológico-culturais, às relações oralidade-escrita, aos aspectos

tecnológicos, à história da comunicação oral e escrita, assim como mediante outras

linguagens (numérica, musical, icônica, gráfico-não alfabética, gestual, etc.) e às análises

comparadas ou transculturais. A tarefa do historiador da alfabetização confluía em muitos

aspectos com a do historiador da literatura, com a dos lingüistas e antropólogos, mas

sobretudo com a do historiador da cultura; e 3ª- Fase que se abre a considerações mais

complexas e profundas. Não é mais história da alfabetização strito sensu, mas história dos

processos de comunicação, da linguagem e do pensamento, quer dizer, da mente humana.

Um aspecto relevante para essa discussão são as mútuas influências dos sistemas de

comunicação e o pensamento, o que cria motivações para uma pesquisa voltada para

aspectos cognitivistas, superando tanto as estruturas como o relativismo cultural. Enfatiza-

17 Darnton, 1988. 18 Frago, 1999, cap.3, p. 71. Texto com primeira publicação em 1989. Edição brasileira de 1993.

Page 38: Capítulo V: Análise do material

38

se, nesse viés, o papel que as trocas nos modos de comunicação representaram nas

transformações operadas nas estruturas e nos processos cognitivos19. Destaca Frago:

“Mesmo reconhecendo que ‘a mensagem não pode ser razoavelmente reduzida ao meio’, se é certo que ‘qualquer mudança no sistema de comunicação humana’, em sua tecnologia, terá ‘grandes conseqüências’ em seu ‘conteúdo’, nos ‘modos de pensamento’, ou seja, nas atividades cognitivas ou, como diz Goody, tomando a expressão de Luria, Scribner e Cole, nos ‘sistemas cognitivos funcionais’ ”20 .

Portanto, os instrumentos alteram os modos de pensar. E se as culturas não passam,

necessariamente, pelos mesmos processos intelectuais é preciso que os sistemas cognitivos

estejam integrados aos modos como funciona uma dada cultura, por isso, funcionais. São

conhecidas as pesquisas na área de leitura que procuram entender os processos cognitivos

desenvolvidos na interação com o meio cultural e com o espaço físico. Cito, para o caso

em estudo, a categoria espacialidade: práticas de leitura de texto visual, com

posicionamento em relação à lateralidade, à grandeza dos objetos etc.; e práticas de leitura

de texto verbal, compreendendo, em relação à realidade textual, a importância da

segmentação, dos sinais de pontuação, ou com relação à realidade externa, compreendendo

a coerência com os fatores de referência do mundo.

Sabe-se o quão contaminado e polêmico é o significado do termo funcional para os estudos

da alfabetização na sociedade ocidental, bem como para a gramaticalização da língua. Não

cabe historicizar nem comentar aqui a questão que tem envolvido lingüistas de diferentes

tendências para os debates acerca da apropriação da escrita, apenas vale indicar a presente

discussão, uma vez que as possibilidades de encaminhamento são múltiplas, ricas e

divergentes. Lembro ainda que, do ponto de vista antropológico e historiográfico, o termo

oscila entre momentos de aprovação e restrição, dependendo do olhar com o qual se

debruça o pesquisador. Frago, em texto produzido em 199221, faz uma síntese de acepções

do conceito de alfabetização, preferindo o termo no plural e mostra alguns de seus usos: a-

19 Comento essas implicações na educação de jovens e adultos no artigo A Leitura na educação de jovens e adultos. In: EVANGELISTA et all (org.) A Escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p.117-128. 20 “Aun reconociendo que ‘el mensaje no puede ser razonablemente reducido al medio’, sí es cierto que ‘cualquier cambio en el sistema de comunicación humana’, en su tecnología, tendrá ‘grandes consecuencias’ en su ‘contenido’, en los ‘modos de pensamiento’, o sea, en las actividades cognitivas o, como dice Goody, tomando la expresión de Luria, Scribner y Cole, en ‘los sistemas cognitivos funcionales’”. (p. 94). 21 Frago, 1999, cap. 1. Análisis de una mutación antropológica e historiográfica.

Page 39: Capítulo V: Análise do material

39

alfabetização funcional, nos termos originais, voltada para habilidades diferentes segundo a

cultura ou grupo de referência; b- alfabetização funcional, do ponto de vista econômico-

produtivo, ou alfabetização para o trabalho; c- alfabetização cultural, que se dirige aos

conhecimentos e saberes que o cidadão deve possuir, para participar da vida em sociedade;

d- alfabetização de orientação político-ideológica, voltada para a massa, de índole social,

cultural e participativa; e- retomada da alfabetização funcional, com uma perspectiva

utilitária e cotidiana, que tem sido realçada pelas pesquisas lingüísticas sobre os gêneros de

texto, relativizando o peso da avaliação escolar no uso das capacidades de leitura, quando

voltadas para textos de sobrevivência imediata dos aprendizes de leitura, como bulas,

carnês, boletos de pagamentos, fichas de matrícula etc. Sendo todas as acepções passíveis

de críticas e restrições, essas tendências são uma mostra de diferentes períodos de

organização do conhecimento por que passam as sociedades e as necessidades de inserção

da população analfabeta, as ações das instituições para definirem suas prioridades e a visão

política que transparece dessas ações. Por isso, a impossibilidade de se pensar uma

alfabetização, mas alfabetizações.

A preocupação do autor, portanto, é como construir uma tipologia das alfabetizações nas

sociedades de escolarização e alfabetização generalizada, a exemplo da espanhola, uma

vez que seu interesse não está voltado para as diferentes realidades das sociedades

periféricas, como a brasileira. Sua análise consegue espelhar, através de um modo

particular de organizar diferentes tendências subjacentes aos diferentes programas de

alfabetização, uma grande totalidade das propostas de alfabetização, seus fundamentos e

seus escopos. O pesquisador considera três aspectos: 1- o de índole lingüístico- cultural; 2-

o que leva em conta a pluralidade de códigos, sistemas ou tecnologias de armazenamento,

transmissão e recepção de informação, assim como suas diferentes funções, usos e

valorização social; e 3- o de âmbito da língua escrita, da alfabetização no sentido estrito,

usos escolares e sociais da leitura e da escrita. Uma questão geral aos três aspectos é que

todos os códigos ou linguagens descritos oferecem, alguns, usos simples, e outros, usos

mais complexos, sofisticados e com graus de dificuldade.

Meu interesse nesta pesquisa será desenvolver um espaço de reflexão que configure uma

tentativa de recriar alguns pressupostos teóricos no campo da educação e indicar alguns

procedimentos de análise para que as relações entre imagem e texto verbal tenham trânsito

mais dinâmico no espaço escolar.

Page 40: Capítulo V: Análise do material

40

○ 2.3 As metodologias de aprendizagem da escrita e os usos das imagens

Trato nesta seção de outra questão que toma, como fato concreto, as relações entre imagem

e texto verbal como inevitáveis e enriquecedoras, e que pretendo superar na sua

formulação. A questão pode ser assim enunciada: Como as propostas metodológicas se

aproveitam dessa relação para pensar uma alfabetização mais enriquecedora e eficiente?

Esse viés escolhe as ações didáticas como o eixo que estruturará o campo em que se

definirão e se alcançarão os objetivos da alfabetização. Vale lembrar as diferentes

abordagens do ensino-aprendizagem da leitura e da escrita ao longo da história da

alfabetização, para perceber que as transformações ocorridas nessa noção apresentam

diferentes causas e objetivos, de acordo com demandas externas ao processo estrito.

A história da escrita mostra que o objetivo da aprendizagem da escrita para os sumérios

constituía o eixo da atividade escolar. A realização de listas e tábuas fez desenvolver a

consciência do caráter espaçovisual da escrita e as suas potencialidades para situar a

realidade percebida em um espaço bidimensional, por isso recriando outra realidade. Esse é

o conceito de representação que perdurará até a modernidade como uma duradoura base

para se compreender a escrita. Por outro lado, outras escolas, como a grega, centraram sua

aprendizagem na leitura de letras, depois de sílabas, palavras, mas não as vocalizavam e,

sim, as soletravam, até textos breves. A ruptura com essas formas de ensino-aprendizagem

dá-se nos fins do século XVIII e início do XIX na Europa, e as relações entre leitura e

escrita se transformam, tanto para aprender a ler quanto para aprender a escrever, as duas

podendo ser simultâneas, mas também independentes. Frago22 assinala que a escola

ampliava (não só na teoria, mas na prática) a noção de aprendizagem da leitura expressiva

e da cópia, até incluir a leitura compreensiva e silenciosa. Progressivamente, foi-se

consolidando uma escola prévia à elementar, a pré-escola, inferiorizada por muitos por não

incentivar capacidades superiores ou finais do processo de aprendizagem da leitura e da

escrita. Essa observação é importante para destacar as mudanças de concepção em relação

à natureza da aprendizagem dos saberes elementares. Sobre a realidade européia do século

XIX, Frago (1999, p. 178) comenta:

22 Frago, opus cit. p. 177-178.

Page 41: Capítulo V: Análise do material

41

Assim, enquanto a educação pré-escolar se convertia, em alguns países, em laboratório de onde nasceriam muitas inovações posteriores, enquanto predominava nela uma concepção de escrita como desenho ou traço, como possibilidade e jogo, aberta a qualquer polissemia e figuração, inclusive antropomórfica, pelas similitudes e diferenças das letras entre si ou com objetos, animais ou pessoas, enquanto, nas últimas décadas se impuseram os termos pré-leitura e pré-escrita e tende-se a pôr o acento nos conhecimentos prévios, a impregnação pelo escrito e a conformação daquelas estruturas mentais e corporais sobre as quais basear a aprendizagem posterior, a educação primária continuou considerando a escrita como disciplina e limite, e a palavra como sons a desagregar e agregar e, ao mesmo tempo, como significado a compreender... e a circunscrever em todo caso a polissemia e a possibilidade, no âmbito da escrita, à área do ensino artístico (caligramas, dadaísmo, colagens, decoração, publicidade, caligrafia). A escola retoma assim o primeiro objetivo da escola grega: evitar a volta à polissemia picto e ideográfica, à concepção da escrita como traço que guarda alguma relação com aquilo que significa.23

Portanto, o problema, assim posto, enfatiza as tensões que a aprendizagem da escrita

oferecia e ainda oferece. Os conteúdos oferecidos aos alunos separados por graus e séries

tinham a preocupação de buscar uma metodologia, um como fazer, desenvolvendo

capacidades cognitivas, superiores ou básicas, e indicando uma esfera de problemas que

vão além dos processos cognitivos, na direção de questões ideológicas, culturais, sócio-

históricas. Acrescida a uma série de mudanças nas políticas de organização dos ciclos de

obrigatoriedade escolar e de formação profissional, a escola tem constatado que seus

objetivos básicos – ler, escrever, fazer conta – não foram alcançados plenamente e o

analfabetismo funcional ou neo-analfabetismo não é prioridade das escolas brasileiras, mas

conseqüência de um desconhecimento, ou um despreparo, escolar quase mundial de fatores

variados, que vêm se confrontando com a forma como a escola se organiza e que está

construindo uma nova mentalidade, em confronto com a mentalidade da cultura letrada.

Desse modo, o sistema educacional também tem contribuído para esse tipo de

23 “Así, mientras la educación preescolar se convertía, en algunos países, en laboratorio donde nacerían muchas innovaciones posteriores, mientras en ella predominaba una concepción de la escritura como dibujo o trazo, como posibilidad y juego, abierta a cualquier polisemia y figuración, incluso antropomórfica, por las similitudes y las diferencias de las letras entre sí o con objetos, animales o personas, mientras, en las últimas décadas se han impuesto los términos de prelectura y preescrita y se tiende a poner el acento en los conocimientos previos, la impregnación por lo escrito y la conformación de aquellas estructuras mentales y corporales sobre las cuales basar el aprendizaje posterior, la educación primaria ha seguido considerando la escritura como disciplina y límite, y la palabra como sonidos a desagregar y agregar y, a la vez, como significado a comprender... y circunscribir en todo caso la polisemia y la posibilidad, en el ámbito de la escritura, al área de la enseñanza artística (caligramas, dadaísmo, collages, decoración, publicidad, caligrafía). La escuela retoma así el primer objetivo de la escuela griega: evitar la vuelta a la polisemia picto e ideográfica, a la concepción de la escritura como trazo que guarda alguna relación con aquello que significa”.

Page 42: Capítulo V: Análise do material

42

analfabetismo e a democratização gerada pelo estabelecimento da escrita grega torna-se

exclusão em tempos atuais.

As chamadas novas linguagens – a meu ver um termo inadequado, pois inclui, na mesma

indefinida denominação, linguagens que são antigas e antecessoras da escrita da palavra,

como as imagens da pintura ou as histórias em quadrinhos, cujas origens são as pinturas

das cavernas, as tirinhas, que vieram dos grafismos primordiais, e a tela do computador

como um suporte que, disseram alguns, mataria o livro –, juntamente com os fatores acima

mencionados, têm sido consideradas como uma das causas da crise da alfabetização. Seja

pela diversidade de meios e suportes que carregam as imagens contemporâneas, seja pelos

processos cognitivos que desenvolvem, o argumento de que elas não acionam os processos

superiores da escrita alija-as para outra área, a das artes visuais. O termo novas linguagens

carrega implicitamente uma explicação, portanto, pelo que não contém e pela limitação de

alcance.

Essa nova mentalidade formula, assim, uma outra questão, sobre a qual a escola ainda não

tem instrumentos para refletir. Frago (1999, p. 182) é decisivo ao afirmar:

A noção de aprendizagem cobre desse modo, sem interrupções, desde a escola infantil até não se sabe bem quando. Porém, no fundo, o que se persegue é o mesmo que já perseguia aquela primeira escola nascida com a escrita: modelar a mente de acordo com os pressupostos da razão gráfica e a cultura escrita.24

Habituados a uma metalinguagem da cultura letrada, os métodos de ensino voltados para a

aprendizagem da leitura e da escrita não incorporaram os novos processos de

tecnologização da palavra oral e escrita, nem assimilaram metalinguagens das linguagens

audiovisuais, já que não se pode falar no singular. A reflexão, portanto, que pode responder

às novas situações geradas pelas relações imagem versus texto não está ou, pelo menos,

não se restringe ao método. Muito pelo contrário, alguns deles descartam a possibilidade

de utilizar as imagens no processo de aprendizagem da escrita. E, quando o fazem,

submetem as imagens a uma epistemologia da escrita, restringindo um projeto de

alfabetização cultural, inter ou multicultural.

24 “La noción de aprendizaje cubre de este modo, sin interrupciones, desde la escuela infantil hasta non se sabe bien cuando. Pero, en el fondo, lo que se persigue es lo mismo que ya perseguía aquella primera escuela nacida con la escritura misma: modelar la mente de acuerdo con los supuestos de la razón gráfica y la cultura escrita”.

Page 43: Capítulo V: Análise do material

43

Além da Educação Infantil, observa-se que, nos demais níveis de ensino, o tratamento dado

pela escola às relações entre as linguagens verbal e visuais tem mostrado uma forte

tendência para o uso de funções didáticas muitos semelhantes, isto é, a imagem substitui o

texto verbal mas as perguntas de interpretação mantêm o mesmo formato, com os mesmos

objetivos, supondo que uma linguagem possa substituir a outra sem alterar

substantivamente o alcance e as especificidades das capacidades leitoras25. Chartier (2003)

analisa a importância dos atos de leitura, que dão aos textos significados plurais e móveis.

Além das diferentes maneiras de ler, que incluem os leitores e os diversos contextos que

conformam uma certa forma de ler, os protocolos de leitura estão dispostos no objeto lido.

Dessa forma, a substituição de linguagens e a manutenção dos mesmos procedimentos de

leitura criam dificuldades não só do ponto de vista da abordagem do texto como de

processos cognitivos específicos que são solicitados nas diferentes leituras.

A interrogação que persiste e que, pela impossibilidade de resposta desse momento

histórico, se coloca como um horizonte para futuros estudos é que a escola, ao constituir

uma teoria da imagem para viabilizar sua prática de sala de aula, poderá repetir os

processos de conservação e fixidez que constituíram a aprendizagem da escrita, esvaziando

a flexibilidade de tipos, de freqüência, de modos de utilização com que elas ocorrem e

levando-as a perder sua polissemia, seu traço criador. Reafirma-se, todavia, que as

implicações acerca da aprendizagem da escrita devem reconhecer o surgimento de uma

nova mentalidade, que amplia a mentalidade letrada e dela se apropria, para novas relações

apoiadas na visualidade e na oralidade, para integrar-se ao fórum de discussões

contemporâneas que lhe são propostas pelos estudos culturais.

Seguindo o eixo de considerações desse texto e afastados os dois enfoques iniciais, isto é,

ênfase na teoria da língua ou nas metodologias, cabe definir um ponto de partida que possa

investigar e integrar tanto a escrita quanto as imagens como modos de apreensão da

realidade que tenham significado para o aprendiz.

É preciso, antes de enunciar a questão que deverá conduzir a pesquisa, refletir acerca de

uma antiga relação que, associada como está, deixa a escrita impermeável a outros

25 Em algumas publicações venho abordando esse assunto, como em BELMIRO, Celia Abicalil. A Escolarização da imagem nos livros didáticos.In: Presença Pedagógica. Belo Horizonte: Dimensão,vol.16, nº31, jan/fev.2000. p. 29-37.

Page 44: Capítulo V: Análise do material

44

relacionamentos que dão frutos interessantes no fluxo da cultura. Os estudos que dissociam

a aprendizagem da leitura da aprendizagem da escrita podem gerar algumas novas buscas

para compreender melhor a presença das imagens no ambiente escolar. Em palestra sobre

leitura, aprendizagem e cidadania, Freitag (1994) põe em dúvida a certeza generalizada de

que escrever e ler seriam duas faces da mesma moeda e aponta uma relativa autonomia dos

processos de produção de texto (ao escrever) do processo de decifração de um texto (ao

ler). Traz as contribuições dos anos 70/80 do lingüista David Elkind para afirmar que ler e

escrever, do ponto de vista lógico, são duas operações distintas. A forte presença do

construtivismo de Emília Ferreiro no contexto brasileiro das últimas décadas induziu a que

se desse ênfase ao acesso à escrita, através de processos de produção de textos,

negligenciando a interpretação como possibilidade de alcançar a construção do sistema da

língua. A teoria da construção dos estágios da leitura apresentada por Elkind faz parte do

contexto da teoria desenvolvida por Piaget. Diz Freitag (1993, p. 31):

Elkind compreende a aquisição da leitura como uma logical substructure of a particular skill (uma estrutura lógica parcial de uma aptidão ou faculdade específica) cujas formas de manifestação remetem às estruturas lógicas gerais subjacentes a cada estágio da psicogênese.

Apresenta quatro estágios do desenvolvimento da aquisição da leitura elaborados pelo

autor norte-americano, indo do realismo infantil ao descentramento gradativo da criança

em seu desenvolvimento psicogenético na direção de um estágio adulto. São eles: global

undifferentiated stage, identity decoding, equivalence decoding e lexical egocentrism e

receptive discipline. Além disso, a comparação entre os estágios da escrita e da leitura

baseados na teoria de Piaget mostra uma correlação e uma relativa autonomia desses dois

processos. Freitag denuncia (idem):

Um dos equívocos freqüentes praticados durante os processos de alfabetização em escolas consiste em interpretar a leitura como sendo mera conseqüência da experiência lingüística, sem relacionar esse ato e essa faculdade aos processos de pensamento e formas de julgamento.

E ainda aponta a amplitude do trabalho do lingüista como suficiente para englobar a

pesquisa de Ferreiro, isto é, fazendo da dimensão da escrita um acréscimo da dimensão da

leitura.

Page 45: Capítulo V: Análise do material

45

A historiografia proposta por Frago corrobora a idéia de que aprender a ler e a escrever não

estão obrigatoriamente vinculados, podendo ocorrer de forma autônoma. Em estudo sobre

o método de soletração que vingou até fins do século XVIII e início do século XIX, o autor

assinala que a leitura expressiva, muitas vezes, fazia o leitor decifrar as palavras mas não o

elevava a um leitor compreensivo. Na verdade, ele não sabia realmente o que lia. A

convenção do signo, sua arbitrariedade, induzia a leituras disciplinadas com seu sentido

submetido.

Nos finais do século XVIII e início do XIX ambas as aprendizagens experimentam uma tríplice ruptura. Em primeiro lugar, se introduz com lentidão o ensino simultâneo da leitura e da escrita. Não se tratava, em princípio, de aprender a ler escrevendo e vice-versa. Ambos os ensinos continuavam configurados de modo independente, mas agora se relacionavam e levavam a cabo no mesmo curso ou em cursos sucessivos. Com o tempo, não será mais necessário dominar a leitura para iniciar a aprendizagem da escrita26.

Portanto, observa-se que há uma mudança de rota na aprendizagem do sistema da língua e

da escrita. O século XIX assume uma escola centrada na leitura. Por isso, a

antropomorfização das letras (desenhos de animais) ajudava a dar sentido àqueles traços

vazios, expediente muito explorado pela escola européia, inclusive na França do séc.

XVIII. Por outro lado, as últimas décadas do século XX tomam a aprendizagem da escrita

como foco de atenção para delinear seus objetivos, ou, pelo menos, que dá sentido à

mentalidade letrada desses tempos.

Minha atenção, nessa discussão, volta-se para essa abertura de foco, cuja amplitude

permite envolver a presença das imagens e suas relações com a escrita nos processos

escolares de aquisição da escrita. Aprender a escrever não significa obrigatoriamente

aprender a ler compreensivamente e vice-versa. As imagens no ambiente escolar podem

estar a favor da leitura e/ou a favor da escrita? Ou, em termos de linguagem: as imagens

podem ser mais bem compreendidas quando se trabalha com a escrita ou com a leitura, se é

26 Cap.8, p. 175. “En los finales del siglo XVIII y primeros del XIX ambos aprendizajes experimentan una triple ruptura. En primer lugar, se introduce con lentitud la enseñanza simultánea de la lectura y la escritura. No se trataba, en un principio, de aprender a leer escribiendo viceversa. Ambas enseñanzas seguían configuradas de modo independiente, pero ahora se relacionaban y llevaban a cabo en el mismo curso o en cursos sucesivos. Con el tiempo no será ya necesario dominar la lectura para iniciar el aprendizaje de la escritura”.

Page 46: Capítulo V: Análise do material

46

que é possível fazer essa distinção nos espaços de aprendizagem da escrita e em relação às

imagens?

Outra entrada nesse campo de reflexão pode fazer emergir outras formas de relações entre

oral x escrito x imagem, pela consideração de que as sociedades contemporâneas se

constroem por uma oralidade secundária, cuja natureza é marcada pela escrita. Pode-se,

assim, considerar uma nova mentalidade, mista, pela inclusão simultânea de linguagens27.

Assim, a pesquisa, voltada para essa relação, não tratará da oralidade como uma

modalidade de expressão, como um elemento do processo de produção de sentidos, como

sistema organizado que terá ajuda nas imagens para o processo de domínio do sistema de

escrita, mas considera a oralidade secundária que marca esses novos tempos do texto

escrito. Acredito, porém, que este estudo, ao relacionar imagem e texto nos processos de

alfabetização, poderá evidenciar que a textualização28 realizada pela criança trata com

elementos que, além de assumir a idéia da escrita e seus processos lógicos específicos,

propõem a significação estabelecida na relação entre sujeitos e entre o sujeito e o texto,

tornando insuficiente a relação convencional grafema e fonema.

Para falar sobre metodologias de ensino-aprendizagem e o trabalho com imagens, uma

possibilidade é o estudo de manuais didáticos e os tipos de inserção das imagens ao longo

da história de usos desses manuais, observando a permanência, a resistência e as 27 No artigo ‘Imagens e Práticas intertextuais em processos educativos’, em co-autoria com Delfim Afonso Jr. e Armando Martins de Barros, analiso as injunções dessa nova realidade no interior da escola. In: PAIVA, Aparecida, MARTINS, Aracy, PAULINO, Graça, VERSIANI, Zélia. Literatura e Letramento: espaços, suportes, interfaces. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. 28 COSTA VAL, Maria da Graça. Texto, textualidade e textualização. IN: CECCANTINI, J.L. Tápias; PEREIRA, Rony F.; ZANCHETTA JR., Juvenal. Pedagogia Cidadã: Cadernos de formação: Língua Portuguesa. v. 1. São Paulo: UNESP, Pró-Reitoria de Graduação, 2004. Nesse artigo, Costa Val esclarece a atualidade do termo textualização em relação ao termo textualidade,largamente utilizado por todos os lingüistas. Diz ela: “O termo textualidade foi definido por Robert-Alain de Beaugrande e Wolfgang Dressler, no livro Introduction to Text Linguistics, de 1981, como o conjunto de características que fazem com que um texto seja um texto, e não apenas uma seqüência de frases ou palavras. Mais recentemente, num livro de 1997 (New foundations for a science of text and discourse: cognition, communication and freedom of access to knowledge and society), o próprio Beaugrande rediscutiu essa definição, propondo não se perdesse a estreita relação entre a textualidade e o processo de “textualização”. Atualmente, outros estudiosos, como Jean-Paul Bronckart e Bernard Schneuwly, focalizando os processos de produção e interpretação de textos, também têm usado o termo textualização. Quando se fala em textualidade, muitas pessoas podem compreender que se esteja considerando o texto como um produto lingüístico que traz em si mesmo o seu sentido e todas as suas características. Pensar assim significaria acreditar que todos aqueles que ouçam ou leiam um determinado texto, mesmo que em circunstâncias diferentes, vão entendê-lo exatamente do mesmo jeito. E isso a gente sabe que não é verdade. Todos nós já vivenciamos situações em que textos literários, ou jurídicos, ou religiosos, ou noticiosos, ou da conversa cotidiana, foram interpretados diferentemente por pessoas diferentes. Essa diversidade de interpretações acontece porque cada texto pode ser textualizado de maneiras diferentes por diferentes ouvintes ou leitores. Por isso é que se tem preferido, atualmente, falar em textualização.” p. 2-3.

Page 47: Capítulo V: Análise do material

47

transformações dos usos das imagens, por exemplo, nas cartilhas de alfabetização. Essa

perspectiva enriquece e dá base para uma pesquisa desejosa de compreender a história dos

usos das imagens no contexto das metodologias, não só no período de aquisição da leitura

e da escrita, como também nas séries mais avançadas29. Em texto publicado em 200330, já

percebia uma forte tendência dos livros didáticos para utilizar uma abundância de imagens

de diversos tipos e funções, suplantando a predominância da função comunicativa dos anos

1970 e acrescentando um aspecto bastante contemporâneo, que é a dimensão estética como

elemento formador do sujeito aprendiz, no mesmo contexto e mesmo suporte em que se

ensinava leitura, produção de texto e conhecimento lingüístico. E, para isso, as imagens,

junto com a literatura, assumem o lugar a partir do qual se pensa e se propõe uma educação

estética.

A seção a seguir apresenta uma parte dos resultados de meus estudos realizados em Paris,

França, no período de bolsa PDEE/CAPES (doutorado sanduíche), 2005-2006, quando tive

a oportunidade de investigar a organização de algumas cartilhas francesas, tanto do ponto

de vista teórico quanto metodológico. Considero a importância deste estudo para a

pesquisa, uma vez que são encontradas muitas semelhanças de estruturação e concepção

entre as cartilhas francesas e as cartilhas brasileiras. Discussões sobre métodos e a

hegemonia, no momento, da proposta de perspectiva fônica nas metodologias para a

aquisição do sistema alfabético de escrita têm sido palco de debates na área da educação e

ocupado espaços da mídia, com declarações definitivas por parte das autoridades

governamentais em território francês, conforme se lê no jornal francês abaixo.

Figuras 1 e 2: Jornal Le Parisien, 8 de dezembro de 2005

29 Ver estudos de Belmiro, 2000a, 2000b, entre outros. 30 Belmiro, 2003, “Uma educação estética nos livros didáticos de Português”.

Page 48: Capítulo V: Análise do material

48

Também no Brasil este debate tem aberto polêmica tanto na área acadêmica, quanto na

área governamental das políticas públicas voltadas para a alfabetização. Com isso, é

explicitada a hegemonia de uma tendência de teorias anglo-saxônicas, que deseja imprimir

à relação grafema/fonema a essencialidade e a suficiência no domínio da escrita.

A incorporação do estudo sobre as cartilhas francesas às reflexões desenvolvidas na tese

pode contribuir para o estabelecimento de elos significativos na compreensão das relações

entre texto e imagem. Um deles é a sinalização de que, mesmo com a influência

determinante do suporte e do gênero que constitui o livro didático – utilitário por natureza

e com uma intencionalidade central que orienta suas ações na direção da escolarização dos

conhecimentos –, percebe-se que, em algumas obras, textos e imagem ampliam suas

relações, superando formas fixadas para a didatização da aprendizagem da escrita. Outro, é

o fato de que os padrões contemporâneos de comunicação, como a clareza, a eficácia e a

abstração, são encontrados, por princípio, na linguagem da escrita, mas não

obrigatoriamente nas imagens; muitas vezes, é patente a inadequação de procedimentos de

interpretação do texto verbal transferidos para atividades de interpretação visual.

2.3.1 O contexto de estudo

Parmegiani (1989) estuda um período de ouro das ilustrações de livros das edições

francesas – de 1860 a 1940 –, cuja relevância fez com que o livro infantil se assumisse

como um gênero de sucesso. O desejo da autora é indicar os motivos do sucesso, as

metamorfoses ocorridas para, enfim, poder justificar as criações atuais. Trata dos editores e

ilustradores como pioneiros de uma trajetória de descolamento da criança da imagem de

pequeno adulto. Para isso, os livros devem adaptar seu enredo e ilustrações às necessidades

da infância, à conformação de seu mundo. Contudo, modelam-se esses sujeitos com

atributos gerais, instituindo-se paradigmas infantis. São livros desejosos de eleger um novo

sentimento de infância, uma utopia de um modo de vida, uma estética dedicada, diz a

escritora, à felicidade. A antropomorfização de bichos realiza, na narrativa para a infância,

histórias e imagens tanto expressivas quanto estéticas, aproximando o mundo encantado

dos bichos dos valores preconizados pelo Ocidente. Portanto, esses livros ilustrados, que se

estruturam paulatinamente em livros de literatura infantil – termo perigoso porque

Page 49: Capítulo V: Análise do material

49

ambíguo na definição e incerto na intenção – assumem um caráter claramente educativo,

apoiado por um mercado emergente dos livros ilustrados, marcando o plano de uma

educação ampla no nível social, influenciada e influenciando, muitas vezes, as artes

plásticas. A escritora afirma (1989, p. 290): “É preciso, então, esperar a grande ruptura da

representação clássica para que a ilustração para crianças, depois de ter tido consciência da

natureza intrínseca de seu público, encontre enfim os meios para responder às suas

necessidades”31.

Por sua vez, Le Men (1984) estuda os abecedários franceses ilustrados do século XIX,

explorando as condições e a prática educativas, a aprendizagem técnica da leitura, os temas

das leituras correntes. Apresenta diferentes utilidades da imagem32 (como memorização,

documento, tornar a aprendizagem agradável, cativar o olhar e evitar a distração etc.), bem

como introduz três tipos de alfabetos ilustrados. Garante a pesquisadora que os alfabetos

ilustrados podem ser considerados a origem de muitos livros de literatura infantil, “que são

ilustrados e semantizados”33. Discorre sobre uma pedagogia pela imagem, em que

apresenta os títulos dos abecedários, a noção de imagem pela criança nos abecedários e a

utilidade pedagógica da imagem. A sua observação de que a relação arbitrária da primeira

articulação da língua – som/letra – passa a ser tematizada com a ingerência das imagens –

ilustração, com letras em forma de figura (“lettre figurée”) (fig.3), indica que as imagens

daquele tempo têm uma função análoga às imagens atuais, a de ilustração de uma história e

seus personagens. São letras-imagens fundadas no princípio analógico que vão buscar, no

real, formas de representar o mundo, um sonho da motivação do signo alfabético, arbitrário

por excelência.34 Por isso, a pesquisadora define o abecedário ilustrado como um gênero

intersemiótico35 e avança em seus procedimentos de análise, dividindo a combinação do

texto com a imagem em três variantes principais, com numerosas nuances: por

aproximação (“voisinage”), elo semântico e sobreposição imagem/letra. 31 « Il faut donc attendre la grande rupture de la représentation classique pour que l’illustration pour enfants, après avoir pris conscience de la nature intrinsèque de son publique, trouve enfin les moyens de répondre à ses besoins ». 32 Le Men (1984 :141-145). 33 A análise que Le Men (1998) faz da obra de Vitor Hugo define um painel da ilustração romântica do século XIX francês. No capítulo “Ceci tuera cela” (“Isto matará aquilo: O livro matará o edifício”) a pesquisadora discute sobre a importância da impressão em oposição à arquitetura, no séc. XV, no deslocamento da arquitetura como arte maior, para analisar as ilustrações nos cartazes, nos livros do séc. XIX. Para ela, o momento romântico é propício ao aparecimento de ilustradores que refazem, no livro romântico, a função arquitetônica de decoração, dos frontispícios arquitetônicos. No decorrer do séc.XIX, a ilustração aparecerá em vários livros, a exemplo do renomado Gustave Doré. 34 Discussão efetivada no capítulo II do livro citado. 35 Idem, p.146.

Page 50: Capítulo V: Análise do material

50

O tema da arbitrariedade do signo versus signo motivado será um aspecto fundamental nos

detalhamentos do estudo de Le Men, considerando a carga semântica da analogia como o

ponto inicial para cumprir o trajeto até o conceito, este abstrato e lógico.

Figura 3

Les abécédaires français ilustres, p.5

Um exemplo significativo, e que pode ajudar a alargar os horizontes da análise, é a

utilização de sons repetidos, como ecos, que se tornam lúdicos e poéticos, tal como uma

forma literária de aprendizagem da língua; é uma tentativa, com isso, de amenizar a

dureza, a aridez da arbitrariedade do sistema.

Cabe, no caso da pesquisa, indicar as obras de Parmegiani e de Le Men como algumas das

que podem contribuir para a compreensão do aparecimento das imagens ditas infantis, em

situações artificiais, organizadas em leituras para criança em fase de alfabetização, ou para

adultos que lêem para crianças (os interlocutores secundários, mas igualmente importantes)

e, mais ainda, para adultos curiosos com a metamorfose que vive esse período. Considero

importante poder avançar nessas reflexões, lembrando que as imagens, mesmo com traços

do real, não lhe são necessariamente submetidas, cumprindo sua liberdade de linguagem

(sintática e semanticamente) e de discurso (do ponto de vista bakhtiniano).

Page 51: Capítulo V: Análise do material

51

A discussão que ora apresento sobre os aspectos lingüístico e metodológico, pertinentes às

duas primeiras questões apresentadas neste segundo capítulo, será acrescida, ao longo do

desenvolvimento da minha pesquisa, por uma perspectiva discursiva que valerá a

ampliação dos horizontes de possibilidades de relações imagem/texto. Essa apresentação

pretende situar livros de alfabetização e livros de literatura infantil, apostando numa

extensão de relações imagem/texto que podem superar as características clássicas de cada

gênero.

Por outro lado, a dimensão histórica e lingüística dos usos educativos das imagens em

processos de apropriação da escrita deu-me aporte teórico para analisar algumas cartilhas

francesas contemporâneas. Vale lembrar que, sendo a intenção primeira do livro de

alfabetização a utilidade, pois ser útil é servir objetivamente a algum objetivo, e a marca

essencial dos livros de literatura infantil é a perspectiva estética, pois nela a linguagem

reconstrói o mundo, sem a intenção primeira de ensinar, proponho, na pesquisa, reavaliar a

rigidez de análise que não permite trânsito entre esse dois mundos (o educativo e o

estético), e apostar em interferências mútuas de projetos editoriais, projetos educativos,

projetos estéticos, resultando em variadas formas de atividades de linguagem e

plasticidade.

2.3.2 Por que cartilhas de alfabetização

O interesse em cartilhas de alfabetização deve-se ao fato de elas serem um material em que

se pode verificar a possibilidade de se realizar (ou não) uma proposta escolar de

apropriação do sistema de escrita, assentada na hipótese não só de que a escrita traz

consigo uma dupla natureza (verbal e gráfica, assunto que será desenvolvido no cap. 4),

bem como da capacidade de significação por imagens, as duas podendo produzir resultados

férteis na aquisição do conhecimento lingüístico, textual e discursivo do aprendiz. Por

outro lado, sabe-se de críticas sobre a possibilidade de as cartilhas, ao se tornarem um

lugar de experiências múltiplas com palavras e imagens, resultarem em fragmentação de

modelos e possível fragilidade de processos de aprendizagem da escrita.

Pensar em métodos de alfabetização seria pensar uma suspensão do diálogo responsivo

bakhtiniano, o que pode eliminar justamente a atividade de interlocução ativa, e se tornar

Page 52: Capítulo V: Análise do material

52

uma atividade de interlocução pré-determinada. Para Bakhtin, a compreensão ativa36 supõe

uma participação-agente na interlocução e, logo, a presença suposta internamente de um

discurso-resposta. A importância de uma atitude responsiva configura antecipadamente o

discurso que se realiza, a sua criação sendo implicitamente orientada por uma resposta

possível. Ora, se pensarmos que alguns projetos pedagógicos de alfabetização não

trabalham com essa hipótese discursiva, mas com a simplificação da resposta única, a

tendência recairá necessariamente em uma orientação para a exterioridade do discurso, sua

forma composicional, absolutizando e neutralizando sua ocorrência e situando-o na

convencionalidade. Assim, para o sucesso da proposta, é erradicada nessas metodologias

qualquer presença que desestruture a convencionalidade. Linguagens que circulam

histórica e socialmente e que participam do multidiscurso social não têm permissão, nessa

esfera educacional, para compor a imagem do objeto, cujo perfil está impregnado

naturalmente pelo plurilingüismo que caracteriza o discurso. Nesse caso, a palavra é

percebida de modo objetal.

Em conseqüência, faz-se a seguinte interrogação: para alfabetizar é necessário se afastar da

linguagem como discurso e ensinar o código da língua? Alfabetizar significar somente

domínio do código da língua? Não é objetivo da pesquisa aprofundar essas questões que

são cruciais e sempre contemporâneas, em se tratando de alfabetização. Mas é relevante

lembrar que desejo manter a tensão que a discussão enseja, para estabelecer elos com as

imagens, como plasticidade e linguagem, nos processos de leitura e escrita. Por isso, o

paralelo entre as noções de alfabetização e letramento poderá iluminar o contexto das

relações entre imagem e texto verbal.

2.3.2.1 A noção de letramento e algumas implicações para o estudo

Refletir sobre o fenômeno do letramento permite compor um quadro bastante matizado a

respeito da alfabetização, das imagens, da escolarização de ambas, língua escrita e

imagens. Soares (1998, p. 61-125) traça um longo percurso sobre a construção do conceito

de letramento em sociedades desenvolvidas e em desenvolvimento, a exemplo de países

como Estados Unidos e França, de um lado, e Brasil de outro. Aponta inicialmente duas

principais dimensões do letramento: a individual e a social. Na primeira, o letramento é um 36 Bakhtin, 1998, cap.2.

Page 53: Capítulo V: Análise do material

53

atributo pessoal e, na perspectiva social, se assume como fenômeno cultural. Afirma a

autora: “Na maioria das definições atuais de letramento, uma ou outra dessas duas

dimensões é priorizada: põe-se ênfase ou nas habilidades individuais de ler e escrever, ou

nos usos, funções e propósitos da língua escrita no contexto social” (p.66-67).

Um dos interesses dessa pesquisa, e cuja tensão tem sido mostrada nos estudos sobre

letramento, é a necessidade de considerar a leitura e a escrita como habilidades e

conhecimentos específicos; isso porque, ao lhes somar habilidades e conhecimentos

específicos para ler imagens, me proponho a aproveitar a discussão acerca do letramento

para compreender as relações de leitura com e entre linguagens.

Da mesma forma, a produção escrita deve expressar capacidades próprias, distintas das

solicitadas pela leitura. Analisando a leitura e a escrita sob a dimensão individual do

letramento, Soares (idem, 68-70) assim define: “leitura é um processo de relacionar

símbolos a unidades de som e é também o processo de construir uma interpretação dos

textos escritos”, utilizando habilidades cognitivas e metacognitivas. E continua: “a escrita é

um processo de relacionar unidades de sons a símbolos escritos e é também um processo

de expressar idéias e organizar o pensamento em língua escrita”. Portanto, ambas se

constituem de habilidades lingüísticas e psicológicas, complementando-se umas às outras.

E também, acrescento eu, mesmo na dimensão individual, constituem-se em habilidades

sócio-culturais na medida em que a construção de interpretações dos textos e a expressão

de idéias se dão balizadas por coordenadas sócio-culturalmente construídas pelos sujeitos,

conformando seus universos de referências.

Soares inclui a habilidade motora – a caligrafia – como uma dentre várias outras

habilidades da escrita. Entretanto, deve-se observar a possível e necessária relação com o

desenho infantil que constitui uma caligrafia que expressa o pensamento da criança ágrafa.

Assim pensando, a caligrafia é mais que uma questão motora, pelo menos, no seu gérmen;

é expressiva e, portanto, estética. Esse traço anterior à aquisição do sistema alfabético e

ortográfico, e que espelha sentidos propostos pela criança, é um traço conceitual, um tipo

específico de material conceitual (e, no caso, talvez até textual) produzido pela criança e

Page 54: Capítulo V: Análise do material

54

que está na base das competências que constituem a “variável ‘contínua’ do letramento”,

utilizando definição de Soares.

Do ponto de vista da dimensão social do letramento, Soares destaca a importância do

envolvimento do indivíduo com seu contexto social, através das práticas sociais ligadas à

leitura e à escrita. Aponta duas perspectivas: a progressista, “liberal”, em que “certas

habilidades não devem ser dissociadas de seus usos, das formas empíricas que elas

realmente assumem na vida social” e são necessárias “para que o indivíduo funcione

adequadamente em seu contexto social” (p. 72). Esse letramento funcional, vale dizer, essa

adequação do indivíduo às condições sociais, agrega um valor pragmático às suas

condições de sobrevivência. Por isso mesmo, Street37 caracteriza-o de modelo autônomo

de letramento, associado à mobilidade social, ao progresso, e que ainda prevalece nos

sistemas escolares de uma maneira geral.

Em contrapartida, a segunda perspectiva, a dimensão social do letramento, exige uma

interpretação mais revolucionária de suas implicações e é definida por Soares (idem, p. 74-

75) como

um conjunto de práticas socialmente construídas que envolvem a leitura e a escrita, geradas por processos sociais mais amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores, tradições e formas de distribuição de poder presentes nos contextos sociais.

A esse modelo de letramento, Street (idem, p. 21) denomina “modelo ideológico”, social e

culturalmente determinado, em que as práticas orais e práticas letradas se constituem como

grandes interfaces.

As afirmações até aqui postas já permitem pensar em conseqüências para algumas

apropriações desse fenômeno letramento, no uso de imagens no âmbito escolar e nas

relações imagem x texto verbal, como linguagens entrelaçadas na vida e na arte. Uma

primeira observação é que o movimento dos anos 1980 explicitou a dissociação

alfabetização e letramento, mesmo com todas as conseqüências resultantes desse

37 Apud Kleiman,1995, p. 38.

Page 55: Capítulo V: Análise do material

55

movimento, e sabendo da necessária relação de simultaneidade desses dois processos. O

ambiente epistemológico, portanto, permitiu a aproximação das reflexões sobre o

fenômeno letramento a outros campos do conhecimento, como, por exemplo, as imagens e

os processos de construção de subjetividades promovidos por (e promotores de) diferentes

visualidades na vida cotidiana.

Tomando como ponto inicial o letramento individual, o enfoque dado às demandas por

habilidades de leitura de imagens da mídia, hoje, necessita de mais complexidade do que

no passado. A impossibilidade de comparar as estruturas cognitivas exigidas no tempo das

iluminuras, desenhadas à mão, com as estruturas cognitivas das crianças e dos jovens,

demandadas pela computação gráfica, produzida a laser, não é suficiente para finalizar a

discussão sobre as relações imagem x texto verbal. Além do seu caráter formal e

psicológico, o letramento visual também exige uma discussão extensa e profunda a partir

do contexto sócio-histórico e econômico em que se desenvolve. E, para isso, o ponto de

partida é a integração do indivíduo no tempo e no espaço, marcos fundadores da história da

mentalidade do homem.

Opondo-se à idéia do que seja funcionalmente letrado, isto é, o indivíduo que responde

minimamente às solicitações de grupos majoritários da sociedade, Paulo Freire (1983, p.

109) explica sua opção metodológica a respeito da alfabetização de adultos:

Para a introdução do conceito de cultura, ao mesmo tempo gnosiológica e antropológica, elaboramos, após a “redução” deste conceito a traços fundamentais, dez situações existenciais “codificadas”, capazes de desafiar os grupos e levá-los pela sua “decodificação” a estas compreensões. Francisco Brennand, uma das maiores expressões da pintura atual brasileira, pintou essas situações, proporcionando assim, uma perfeita integração entre educação e arte.

O uso das pinturas de Brennand vem confirmar uma importante afirmação de que, mesmo

que não se explorem esteticamente as pinturas retratando as dez situações propostas por

Freire, a exposição dos alunos às obras de arte é um procedimento que exemplifica a

dimensão formadora e ideológica deste modelo de letramento social, eminentemente

política e explicitamente voltada para a transformação social.

Page 56: Capítulo V: Análise do material

56

A presença das imagens nas práticas sociais de leitura e escrita no sistema escolar não é

nova; porém, hoje, a presença intensa da mídia na vida social e, portanto, na vida dos

alunos tem possibilitado questionamentos muitas vezes defensivos, indicando o

conseqüente afastamento do aluno do texto verbal. Essa discussão deve ser restabelecida

por outras vias, a contar com nomes proeminentes como Paulo Freire.

Apoiando-se na concepção de letramento individual, visto como atributo pessoal, as

imagens podem e devem ser absorvidas como uma tecnologia mental de que se utiliza o

indivíduo para realizar atividades cognitivas e metacognitivas. É a sua ferramenta da

percepção. Esse aspecto merece uma maior valorização dentro do sistema escolar, visto

que ele amplia o campo de variedades de habilidades de leitura e escrita, não só de textos

verbais, mas também visuais.

Uma outra abordagem, permitida pela utilização do modelo de letramento social de base

ideológica, supera o dilema (ou falso dilema) do uso das imagens como promotoras de

apagamento da consciência crítica. Na verdade, o que se deve ter em conta são exatamente

os usos sociais das práticas de leitura de imagens. A constatação é de que são os fatores

oriundos da própria cultura e os fatores que determinam o enfoque dado à leitura que

podem contribuir para uma visão mais questionadora das normas, tradições e valores de

práticas socialmente construídas.

Essa abordagem abre a possibilidade de construir letramentos de base ideológica fora do

sistema escolar, por vias não controladas pelo regime educacional formal. É o caso de

propostas de escolas edificadas pelos e para os movimentos sociais. Por outro lado, tratado

dentro do ambiente escolar, o letramento sofre injunções específicas. Soares (idem, p. 85),

analisando a avaliação e medição do letramento em contextos escolares, comenta sobre a

natureza “teleológica” do sistema escolar e aponta para o perigo de transformar o

letramento como processo em letramento como produto:

O conceito de letramento torna-se, assim, fundamentalmente determinado pelas habilidades e práticas adquiridas através de uma escolarização burocraticamente organizada e traduzida nos itens de testes e provas de leitura e de escrita. A conseqüência é um letramento

Page 57: Capítulo V: Análise do material

57

reduzido, determinado pela escola, muitas vezes distante das habilidades e práticas de letramento que realmente ocorrem fora do contexto escolar.

Atualmente observa-se nos livros didáticos de português que a fragmentação, ordenação e

avaliação dos conhecimentos imagéticos ainda não estão sob total controle, isto é, as

imagens nas relações ensino-aprendizagem de língua materna não estão totalmente

escolarizadas. Na verdade, estão num entre-lugar: não sendo livro didático de educação

artística, não apresenta as decorrências específicas de um ensino já constituído e

organizado, portanto, escolarizado; mas também não é língua portuguesa, embora seja

intensamente utilizada por essa área de conhecimento e pelo seu suporte didático

privilegiado. Portanto, não apresenta toda a arquitetura de controle dos processos ensino-

aprendizagem da língua portuguesa. Ao mesmo tempo livre, por isso mesmo ainda não

totalmente reconhecida.

As imagens no ensino de língua portuguesa apresentam, ainda, uma certa flexibilidade na

escolha de habilidades a serem exploradas, ou mesmo alguma liberdade de integração ao

conteúdo de língua materna. Assim, os indivíduos vêm para a escola letrados visualmente,

seja um letramento autônomo ou ideológico, uma vez que já sabem lidar com diversas

práticas de leitura por imagem. E são colocados sob a exposição de fortes mecanismos de

escolarização de imagens. Dessa forma, não passam, nas aulas de português, pela

alfabetização visual, mas por um letramento escolar, com “comportamentos escolares de

letramento”, nas palavras de Soares. Nos dias atuais, a escola ainda não firmou um

compromisso com uma teoria da imagem, o que dá uma margem folgada de eventos reais,

em imagem, no contexto escolar.

2.3.2.2 Mudanças de paradigmas e suas decorrências no ensino de língua materna

As relações nem sempre estáveis entre letramento e alfabetização são analisadas por Soares

(2004), que mostra algumas causas e modalidades do atual fracasso escolar. Uma delas é a

perda da especificidade da alfabetização, exatamente pelo excesso de especificidade. Vale

dizer, “a autonomização das relações entre o sistema fonológico e o sistema gráfico (...) ou

Page 58: Capítulo V: Análise do material

58

seja, a exclusividade atribuída a apenas uma das facetas da aprendizagem da língua escrita”

(p.9). Entre as diversas causas atribuídas a essa perda, como a reorganização do tempo

escolar em ciclos, interessa a esta pesquisa uma delas, a que abre caminho para a

introdução de diversos e diferentes mecanismos da ação pedagógica e que poderá ajudar a

justificar a presença cada vez maior de múltiplas linguagens nos processos de ensino-

aprendizagem da língua escrita: as mudanças de paradigmas teóricos. Cito Soares (idem, p.

9-10):

Segundo Gaffney e Anderson (2000, p. 57), as três últimas décadas assistiram a mudanças de paradigmas teóricos no campo da alfabetização que podem ser assim resumidas: um paradigma behaviorista, dominante nos anos 1960 e 1970, é substituído, nos anos 1980, por um paradigma cognitivista, que avança, nos anos de 1990, para um paradigma sociocultural.

Justamente nos anos 1960/1970, acontece uma explosão das teorias da comunicação e da

informação e sua absorção nos meios escolares. Sabe-se que desde os anos 1920 o Brasil

produz cinema educativo; que a explosão dos quadrinhos nos anos 60 redimensiona as

leituras proibidas das revistinhas no espaço escolar; e, finalmente, que a TV convive dentro

da escola desde os anos 70 através dos canais UHF e VHF. Portanto, o fluxo de imagens na

escola não é recente, só para permanecer no séc.XX. Pesquisando manuais didáticos do

ensino fundamental, Belmiro (2000a, p. 12) analisa a presença das imagens nos livros

didáticos de Português (LDP) dos anos 1960/1970 e 1990 e sinaliza:

São recorrentes as situações de uso das imagens, evidenciando alguns pontos de sua contextualização sócio-histórica, em meio às políticas educacionais: 1º) como indicador do processo de modernização por que vem passando o suporte; 2º) como um meio de trazer para dentro das salas de aula linguagens renovadas que circulam no cotidiano das populações; 3º) como tradução didático-metodológica de um ponto de vista sobre as relações de ensino-aprendizagem da língua portuguesa e outras linguagens...

A autora aponta a incorporação de toda sorte de imagens para diferentes práticas de leitura.

Vale a pena interrogar sobre um possível sufocamento, pelas imagens, do texto verbal e,

em contrapartida, de uma total falta de critério no uso de imagens nos materiais

didáticos38. Faz lembrar as atuais inclusões nos livros de bulas de remédio, receitas de

38 Sobre imagens nos LDP, ver BELMIRO, 2000a e 2000b.

Page 59: Capítulo V: Análise do material

59

bolo, na perspectiva de recuperar e garantir o espaço de cotidianidade dos textos que

circulam na sociedade. Diz Belmiro (idem, p. 12):

É interessante observar como os anos 90, principalmente nesse fim de década, vêm apresentando mudanças nas propostas de construção de seus projetos pedagógicos. Elas são mais abrangentes, interdisciplinares, integradoras, holísticas – o certo é que o paradigma está mudando.

Na área da alfabetização, o paradigma cognitivista, que se expande no Brasil sob o nome

de construtivismo, nos anos 1980 e 1990, abre espaço na escola para o uso de materiais que

circulam nas práticas sociais reais. Em decorrência dessa nova concepção, processos

implícitos de aprendizagem da língua escrita facilitam a permanência das imagens como

forma de letramento.

É importante destacar as singularidades que marcam essa entrada das imagens nos anos

1990, em oposição ao paradigma de 1960/70, quando o conteúdo programático voltava-se

para o modelo da teoria da comunicação e da informação, intensificando o estudo do

código e dos mecanismos de decodificação. Um bom exemplo é o livro de alfabetização

“Caminho Suave – Alfabetização pela Imagem”, publicação iniciada nos anos 1970, cuja

perspectiva funcionalista se ajusta bem ao modelo acima citado.

Propondo a reinvenção da alfabetização, com todos os perigos que dela podem decorrer,

Soares (idem, p.14) mantém os elos necessários e indissociáveis entre alfabetização e

letramento, um sendo complemento do outro:

Não são processos independentes, mas interdependentes, e indissociáveis: a alfabetização desenvolve-se no contexto e por meio de prática sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização.

Sendo esses, então, dois processos indissociáveis, a ingerência aí das imagens, seja de

qualquer tipo – gravura, desenho, pintura etc. – propicia uma participação ativa da criança

no seu desenvolvimento da escrita e do letramento, sendo a educação visual uma parte de

Page 60: Capítulo V: Análise do material

60

um processo mais amplo de formação cultural dos alunos. A configuração de uma

dimensão estética na escola, antes de qualquer ação, visa reconhecer a importância de se

experimentar um “estado do olhar e do pensamento” na construção da subjetividade não só

do aluno, mas também do professor, além de atribuir uma dimensão formadora no processo

de “educação cultural da inteligência visual” (Almeida, 2000, p. 27).

É bom lembrar, porém, que educação visual não se conforma somente à educação estética;

é a educação que inclui o nosso cotidiano visual, com o qual construímos a significação

para o mundo que nos cerca. A videosfera, ou “era do visual”, proposta por Debret, suscita

uma boa polêmica sobre o nosso tempo tomado por imagens que refletem um modo de

conceber o mundo. Educar o olhar não se restringe a trazer para a sala de aula obras de arte

que se consagraram na história da arte ocidental. A esse aspecto do valor de universalidade

de uma obra, deve-se agregar um olhar que nós, adultos, não construímos quando jovens,

porque não tínhamos certas próteses do olho que nos permitiriam construir algo novo.

2.3.3 A relação imagem/escrita em cartilhas francesas: uma investigação exploratória

A polarização entre as duas grandes tendências em metodologias de alfabetização, o

método sintético e o método analítico, é antiga – em 1768, o abade de Radonvilliers39

pensa uma aprendizagem pelo hábito construído pela memória visual – e leva em conta

sujeitos específicos: ou uma criança que não tem ainda capacidade de raciocinar o

suficiente para ser posta no difícil exercício de compreensão da língua, ou uma criança que

deve, democraticamente, ser exposta às condições do exercício lógico que esclarece a

mente e o espírito.

Le Men (1984), analisando as diferentes formas de aprendizagem técnica da leitura no

século XIX na França, assinala que, do ponto de vista histórico-filosófico, a oscilação de

escolha e aplicação desses métodos marca, por um lado, uma vigorosa definição do

pensamento ocidental por uma educação laica, por um homem livre para a compreensão do

mundo, distante dos dogmas cristãos; ao mesmo tempo, obedecendo ao rigor do

pensamento cartesiano da ordem, da linearidade, da progressão e do método. Por isso 39 Le Men, 1984, p.136.

Page 61: Capítulo V: Análise do material

61

mesmo, as imagens, que representavam uma grande força para o entendimento do mundo

na história da Idade Média, perdem prestígio e devem estar longe do processo educativo

pela via do raciocínio lógico. Todavia, os recursos tipográficos – que são ideográficos e,

portanto, imagéticos – permanecem como instrumento de facilitação da leitura, como, por

exemplo, a pontuação separando as sílabas, as palavras, as letras mais grossas para os

títulos, etc.

A novidade do método de Port-Royal (quase dois séculos antes) inaugura uma nova

maneira de alfabetizar: substitui o processo de soletração nomeando as letras e as sílabas,

pela pronúncia imediata dos sons das letras e sua ligação a um conjunto. O século XIX

aprende a adequar, na escola, as regras de análise cartesiana na direção de uma facilitação

e sua conseqüente simplificação para a aprendizagem da leitura. Le Men (idem, p. 120) é

incisiva na afirmativa:

Esta regra hermenêutica da análise que resume o procedimento simplificador do espírito face ao real complexo é na realidade a da gramática, à qual o raciocínio dos métodos de leitura prefere a regra pedagógica oposta e complementar da síntese, que reconstitui o real a partir de uma combinação de unidades simples. 40

Essa novidade põe em jogo, na verdade, a tensão entre a educação dos colégios cristãos,

que conformava uma criança sem razão, instintiva, e que deveria aprender a ler sob os

princípios da religião, e uma educação laica, cujo fim é em si mesmo, que permite um

aperfeiçoamento do indivíduo e, conseqüentemente, da sociedade. A oposição apresentada

pela autora permite compreender melhor a multiplicidade de formas tipográficas que

auxiliam a leitura, seja no conjunto de letras para produzir somente um som, seja no

tamanho e na forma das letras, seja no apoio visual para distinção das sílabas dentro da

palavra.

Por que, então, o método global favorece o aparecimento de imagens, sejam elas de

qualquer tipo? A explicação de Le Men (idem, p. 138) aponta uma concepção moderna de

língua como um sistema orgânico e, ao mesmo tempo, um novo conceito de criança.

Portanto, prevalece a contextualização, a relação cujos níveis são interdependentes: não 40 “Cette règle herméneutique de l’analyse, qui resume la démarche simplificatrice de l’esprit face au réel complexe, est en réalité celle de la grammaire, à laquelle le raisonnement des méthodes de lecture préfère la règle pédagogique opposée et complémentaire de la synthèse, qui reconstitue le réel à partir d’une combinaison d’unités simples”.

Page 62: Capítulo V: Análise do material

62

existe sentido nas letras e sílabas em si, mas só em relação a palavras inteiras, que são

unidades de significação. A preocupação com o método é dar margem para que se

desenvolvam os mecanismos associativos que facilitem a memorização das unidades de

significação, que são as palavras. A brincadeira, o jogo, a curiosidade estão a serviço da

instrução não fatigante, pois a criança tem dificuldade de fixar a atenção.

As relações que podem ser estabelecidas entre os métodos de leitura e o uso das imagens

mostram como elas são praticadas nos diferentes casos. O comentário da autora esclarece

alguns aspectos, dando importância à progressão das dificuldades na leitura de silabação,

com o intuito de tornar a atividade mais inteligível para o aluno (idem, p. 134-135):

O método fonético se esforça para motivar o arbitrário da expressão escrita do francês. O discurso motivado da imagem reforça esta busca “mimológica”, para empregar o termo de Genette. Mas a imagem está lá, sobretudo, porque ela agrada as crianças, e porque ela serve a uma pedagogia do jogo que quer distrair a criança antes de fazê-la raciocinar41.

A relação com as imagens, nos processos descritos acima, tende a buscar contextualização,

motivação, prazer, para o trabalho intelectual. E a cartilha de alfabetização construirá uma

direção a priori, determinada pelo método e pelo suporte (não é demais lembrar a

relevância de outros pontos de partida para o domínio da escrita).

Mais do que enfocar métodos, interessa-me, nesse estudo, abrir caminho na direção de

outras questões que são do interesse da pesquisa, explorando aspectos das relações entre

imagem e texto em cartilhas francesas. A utilização dessas cartilhas se justifica pelo papel

desempenhado nos estudos por mim realizados na França e porque suas propostas são

similares, no geral, às de cartilhas brasileiras.

41“ ... la méthode phonétique s’efforce de motiver l’arbitraire de l’expression écrite du français. Le discours motivé de l’image renforce cette quête « mimologique », pour employer le terme de Genette. Mais l’image est là surtout parce qu’elle plaît aux enfants, et parce qu’elle sert une pédagogie du jeu qui veut amuser l’enfant avant de le raisonner”.

Page 63: Capítulo V: Análise do material

63

2.3.3.1 Sobre o material investigado

Foram analisadas três cartilhas de alfabetização de produção francesa recente. Os critérios

para a seleção foram guiados pela especificidade de cada proposta e pela metodologia de

cada manual associada a seu aporte teórico, mostrando uma variedade de relações imagem

x palavra nos ambientes de aprendizagem. Uma delas é a mais usada pelos professores, a

segunda é a mais antiga, e a terceira é a cartilha indicada pelo Ministério da Educação

francês, pois sua metodologia é baseada nos princípios fônicos da relação grafema/fonema.

a- Ratus et ses amis: méthode de lecture é a cartilha mais usada pelos professores. Sua

proposta pedagógica é apresentada em quatro livros: Méthode, Cahier d’expression 1 e 2,

Cahier de lecture;

b- Abracadalire: méthode de lecture é a mais antiga. Compõe-se de vários documentos:

dois manuais (um para aprendizagem da leitura e outro com páginas consagradas à

descoberta do mundo e à educação artística – pages consacrées à la découverte du monde

et à la education artistique) ; dois cadernos de atividades que correspondem aos dois

manuais, respectivamente; o livro do professor; material coletivo (quadros de grafemas para

o estudo das relações grafo-fonológicas; etiquetas-palavras para a construção de frases;

pôsteres: alfabeto, textos de base das duas primeiras historias); outros instrumentos que os

autores se interessam em preparar: cassete com textos de base lidos por atores etc.; uma

coleção de pequenos álbuns nos quais as crianças reencontrarão os universos das cinco

histórias; testes permitindo avaliar as aquisições das crianças ao fim de cada período;

c- Lire avec Léo et Léa : méthode de lecture é a cartilha mais recente. É composta por

vários livros: Lire avec Léo et Léa: Méthode de lecture; Je lis et l’écris avec Léo et Léa :

cahier d’exercices (CP) ; 14 livrets de Léo et Léa (histórias referentes às lições: os fonemas

e sua aprendizagem); CD-ROM de apresentação do trabalho.

Sobre a cartilha Ratus et ses amis

O professor tem um manual, um livro separado, para orientação das atividades a serem

realizadas; além disso, no livro do aluno são apresentadas várias orientações de base

teórica e metodológica. No Guia Pedagógico (Guide Pédagogique), os autores apresentam

o livro como um instrumental com o qual o professor tem liberdade de constituir sua

própria linha de trabalho, organizar o encadeamento dos exercícios conforme as suas

opções pedagógicas, criando o seu método de leitura. Por isso, oferecem uma seqüência de

Page 64: Capítulo V: Análise do material

64

ações com o material proposto no livro, a partir de uma tendência para o método global,

para o chamado método natural, para uma tomada mista clássica e para o método fônico.

Por fim, fazem sua própria proposta de uso.

Vale a pena observar a preocupação dos autores em destacar a importância das imagens no

processo de aprendizagem:

Nos exemplos citados, notaremos que os professores se apóiam sempre no desenho e nas aventuras dos personagens. É uma forte motivação para a expressão oral, que conduz muito facilmente as crianças a se interessarem por escrever42.

Por outro lado, fica claro que os desenhos estão a serviço da aquisição do sistema de escrita

e que, por isso, sua função é de apoio pedagógico.

Méthode de lecture: A página da esquerda é dividida em duas partes, sendo que a superior

apresenta uma gravura colorida com uma cena dos personagens que compõem a história do

livro (fig.4). As imagens são temáticas. Na metade inferior, segue o texto referente à cena.

Ao longo do livro, a página da direita mostra o personagem principal em alguma atividade,

como que retomando a temática da página da esquerda. A primeira página do livro já

apresenta o modelo de estruturação do manual: uma cena, apresentação do fonema,

diferentes formas de escrita da letra: imprensa maiúscula, imprensa minúscula, bastão e

cursiva.

A forma de apresentação também destaca o lugar da letra na palavra: dentro do boxe não

existe preocupação com a margem, o que poderia dar já uma noção de organização de texto

escrito (pelo menos nessa primeira página), mas destaca a letra em meio às palavras, de

forma que seja a letra a o eixo de organização espacial dentro do quadrado. Ao mesmo

tempo, ao lado e em destaque na cor amarela, estão o verbo e o artigo que serão utilizados

imediatamente nas frases que aparecem na parte de baixo. É uma frase escrita de duas

formas distintas (letra de imprensa minúscula e letra cursiva), apresentando para o aluno,

assim, um conjunto de informações, a saber: a palavra, a letra na palavra, as palavras na

frase, as formas de escrita do fonema em destaque, no caso, a letra “a”.

42 “Dans les exemples cités, on notera que les maîtres s’appuient toujours sur le dessin et sur les aventures des personnages. C’est une puissante motivation à l’expression orale, qui améne très facilement les enfants à s’intéresser à l’écrit” (p. 25).

Page 65: Capítulo V: Análise do material

65

Figura 4

Ratus et ses amis, p.8

Para o professor, faz as seguintes sugestões:

• Outras palavras a partir do desenho: árvore, bola, bolsa, toalha de mesa, pão com

geléia, queijo... Observar bem os dois desenhos possíveis do ‘ a’ minúsculo.

• Não confundir o grafema ‘a’ (que corresponde ao fonema /a/) com a letra ‘a’,

desenho que pode se combinar com outras letras (ai,au,ay,an...)43

Essa informação, já na primeira lição, supõe uma proposta teórico-metodológica de base

lingüística que privilegia, tanto na gravura quanto na letra, um modo de compreensão

através do desenho. Esse é um dos pontos chave da proposta.

Sobre a cartilha Abracadalire

Propondo um trabalho interdisciplinar, os autores justificam suas ações, no prefácio do

livro do professor: • 43 “autres mots à partir du dessin: arbre, ballon, sac, nappe, tartine, fromage... Bien faire observer les deux dessins possibles du « a » minuscule ”. • “Ne pas confondre le graphème « a » (qui correspond au phonème /a/) à lettre « a », dessin qui peut se

combiner avec d’autres lettres (ai, au, ay, an...) ”. É notável como, também nas cartilhas francesas, trata-se de conceitos altamente abstratos como se o professor (e a criança em fase de alfabetização) tivesse facilidade no trânsito de teorias lingüísticas. Por isso, é relevante a declaração de Bagno (2008, p. 6) sobre a carga teórica de livros brasileiros que, mesmo reportando-se ao ensino da gramática em livros do segundo segmento do Ensino Fundamental brasileiro, comporta aproximação com o caso francês.

Page 66: Capítulo V: Análise do material

66

Se Abracadalire propõe prolongamentos temáticos em diversas disciplinas, é porque o CP se caracteriza também pelo lugar de articulação que ele ocupa no seio do sistema educativo. Garantir a ligação com a grande seção necessita levar em consideração o funcionamento interdisciplinar da escola maternal44.

Proposta declaradamente baseada no método global, essa cartilha propõe uma seqüência de

ações na seguinte ordem: escuta, leitura, retenção de uma palavra, colocação da palavra na

estrutura da língua; compreensão oral, visão, escrita, descoberta de frases. É a primeira

cartilha que usa ícones para as ações a serem realizadas pelos alunos. Assim, escutar, ler,

reter, funcionar, etc. são ações apresentadas pelo ícone – um pássaro da história – com

algum objeto nas mãos, como um livro, uma máquina fotográfica, uma chave de fenda.

Esses ícones, consignes, são senhas para os alunos.

O projeto pedagógico utiliza diversos componentes, sendo um deles Educação Artística.

Seus objetivos são dois: quanto à estrutura do livro, “estabelecer uma rede de interconexões

entre os saberes culturais presentes nos textos de leitura e aqueles adquiridos nas outras

disciplinas”; e quanto à especificidade das artes plásticas, “relacionar e confrontar

procedimentos plásticos”. É explicitamente criado um momento de apresentação de

pinturas de artistas renomados junto com trabalhos de crianças da mesma faixa etária dos

alunos. No livro 1, por exemplo, cinco unidades trabalham especificamente esse

componente: pinturas de Magritte, Miró, Arcimboldo, Salvador Dali, acompanhadas por

trabalhos de crianças de 6 e 7 anos (fig.5). Neles são explorados a relação forma x fundo e

o conceito de traço na pintura. Além disso, são apresentadas músicas para serem cantadas

pelas crianças (por exemplo, p.35 e p.59) (fig.6).

Outro componente amplia a proposta do manual: em Descoberta do mundo, o aluno vê o

tamanho, o espaço, toma contato com a literatura (narrativa - a carta), etc., em três etapas:

entrada, aprofundamento e alargamento do tema. Portanto, o livro se interessa por

apresentar diferentes formas e linguagens para a construção do conhecimento, objetivando,

com isso, uma aprendizagem do sistema ortográfico, paralelamente a expressões artísticas e

culturais.

44 “Si Abracadalire propose des prolongements thématiques dans diverses disciplines, c’est parce que le CP se caractérise aussi par la place charnière qu’il occupe au sein du système éducatif. Assurer la liaison avec la grande section nécessite la prise en compte du fonctionnement interdisciplinaire de l’école maternelle” .

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67

Figura 5 Figura 6 Ratus et ses amis, p.16 Ratus et ses amis, p.35

Vale destacar que essa exploração de trabalhos de artistas consagrados junto com os

trabalhos dos estudantes tem sido uma maneira bem contemporânea de reconhecer a

qualidade de expressão dos alunos e tornar pedagógico o trabalho com a arte. Alguns livros

brasileiros também vêm recorrendo a esse expediente, inclusive em níveis de ensino mais

elevados, como o Ensino Médio.

Sobre a cartilha Léo et Lea

Começando pelo formato do volume (horizontal), essa cartilha compõe um projeto mais

amplo, com vários livros que integram a metodologia. O volume Método de Leitura quer

ensinar a ler, a partir de um método interessado na decodificação/codificação, isto é,

essencialmente baseado na relação fonema/grafema. A afirmação de que a memorização

visual – fotografar – dificulta a decifração, justifica que o livro mantenha uma disciplina

metódica extraordinária, trabalhando todo o tempo com os fonemas e sua decifração, na

gradação de dificuldades das famílias silábicas. Por exemplo, o aluno toma contato com as

letras minúscula, maiúscula e script. E para distinguir visualmente as letras, são dadas

cores que diferenciarão vogais e consoantes (fig.7). Assim, essa proposta de alfabetização

quer evitar, já no início, a necessidade do que se chama memorização aproximativa, sem a

adequada decodificação.

As imagens são enfatizadas nos livrinhos de literatura, separando de forma clássica os usos

pedagógicos da imagem para a aquisição do sistema de escrita de um lado e, de outro, das

imagens junto ao texto literário.

Page 68: Capítulo V: Análise do material

68

Figura 7

Léo et Léa, p.16 e 17

2.3.3.2 A análise exploratória O comentário de Le Men (1984, p. 35) acerca do modo de paginação e a evolução do

frontispício e dos títulos gravados desde o século XVI ao século XVIII explicita uma

antiga e variada relação de texto e gravura no ambiente escolar. Diz a autora:

Esta evolução do frontispício se explica na medida em que o frontispício representa a parte mais estética e decorativa da ilustração; enquanto no modelo antigo, o frontispício era concebido como enquadramento ornamental, alegórico ou narrativo do título; tornado autônomo, ele é composto à maneira de um quadro e anuncia os temas do livro. Mais ainda, ele diz o espírito no qual o livro é escrito e exerce sobre ele uma verdadeira metalinguagem45.

E continua afirmando que as imagens – gravuras – têm diferentes escalas em relação à

vinheta do título, ampliando fortemente ou diminuindo a importância dada a um e ao outro.

Isso permite, comenta ela, expor duas idéias ao mesmo tempo e acentuar o aspecto

principal: um tema maior ao lado de um tema menor. 45 “Cette évolution du frontispice s’explique dans la mesure où le frontispice représente la partie la plus ésthetique et décorative de l’illustration; alors que dans la formule ancienne, le frontispice était conçu comme encadrement ornemental, allégorique ou narratif du titre; devenu autonome, il est composé à la manière d’un tableau et annonce les thèmes du livre. Plus encore, il dit l’esprit dans lequel le livre est écrit et tient sur lui un véritalbe métalangage”.

Page 69: Capítulo V: Análise do material

69

Ademais, é possível acrescentar um valor, ou sobre a natureza do livro, que é de cunho

educativo (tema de estudo) e consagrado à aprendizagem da leitura (tema da lição da

leitura), ou sobre o texto mesmo da história apresentada. Dessa forma, o material que

chega às mãos do aluno preserva, contudo mesclando, essas duas direções, destacando o

valor sobre seu papel escolar e sua função alfabetizadora.

O texto a seguir pretende verificar as implicações derivadas da apropriação dos níveis da

língua – relação grafema/fonema, aspectos sintáticos e semânticos – juntamente com os

usos das imagens como apoio pedagógico e como dimensão estética, formadora. Foram

selecionados 3 fonemas: /a/, /on/, /gn/, e suas diferentes abordagens em relações ao sistema

visual proposto por cada cartilha. As categorias daí decorrentes possibilitaram a construção

de um conjunto analítico para melhor compreender as inter-relações imagem / fonema /

letra-palavra nas cartilhas.

Configuraram-se dois grandes grupos de análise: no primeiro grupo, as imagens atuam

como um dos pólos da relação grafema /fonema, constituindo-se – seja substituindo ou

complementando – como um dos elementos distintivos da língua. Em alguns casos,

percebe-se que a imagem (uma figura) é o elemento semantizado que busca, pela

motivação do signo visual, um eco na oralidade, cuja modalidade o sujeito já compreende

e utiliza. A imagem pode também, nesse primeiro grupo, se apresentar como o significante

para que o aluno, lendo-a, dê completude ao signo verbal saussureano. Numa etapa

seguinte, o estudante toma posse paulatinamente do sistema de escrita, articulando

fonema/grafema.

Tanto na leitura como na escrita, o uso pedagógico da imagem como simples representação

do real vem facilitando a entrada do aluno na arbitrariedade do signo verbal. Vistas por

esse ângulo, as imagens criam interlocuções com a oralidade e com o domínio do sistema

de escrita, ora substituindo um, ora substituindo outro (oral ou escrito), dependendo do

aspecto (ler ou escrever) no qual é dada a ênfase. Dessa forma, nesse primeiro nível de

linguagem, as figuras apresentadas ao aluno valem, ou como unidade fonética, ou como

unidade gráfica, vinculando seu uso à sua relação com o código verbal. Deve-se lembrar

que o conceito de imagem vale tanto para a figura, como para o uso tipográfico das letras

que ajudam a sua legibilidade.

Page 70: Capítulo V: Análise do material

70

Um segundo grupo de análise mostra a relevância da imagem em relação aos processos de

produção de sentidos vivenciados pelos sujeitos analfabetos através das imagens que

povoam os livros didáticos infantis. Uma questão que evidencia a preocupação com seu

uso é a simplificação com que muitas figuras se apresentam para espelhar o real, na

suposição de que é simples a representação das coisas do mundo. Mesmo assim, é a

palavra que a imagem busca e traz para identificação e realização sonora pelo aluno. Em

muitos casos, percebe-se que a gratuidade lúdica não exerce nenhuma função sígnica

destinada aos processos para a aprendizagem da escrita. Contudo, em vários outros casos, a

imagem toma a frente e indica o caminho da leitura e da escrita.

Proponho, então, nomear esses dois grupos pela relevância de suas funções: 1°- relação

com o sistema fonológico; 2°- relação com o sistema semântico-discursivo.

I. Imagem e sua relação com o sistema fonológico

Nesse subitem, as imagens assumem funções dentro do sistema lingüístico. Muitos

exercícios jogam com os dois elementos da formação sígnica saussuriana,

significante/significado, com o objetivo de facilitar a apreensão do sistema da língua.

Aponto cinco sugestões de atividades em que as imagens ora substituem o significante, ora

o significado, ora fazem fronteira com o oral, todos dentro da esfera da estrutura da língua.

I.1 Imagem como palavra

Na cartilha Ratus et ses amis, no Caderno de expressão (Cahier d’expression), propõe-se o

seguinte exercício na p.4, ex.2: “Escreva um somente se você pode dizê-lo com a palavra

desenhada” (Écris un seulement si tu peux le dire avec le mot dessiné) (fig.8).

A palavra desenhada não é o traço das letras, mas a representação visual do objeto. A

solicitação para que o aluno coloque um artigo antes do desenho mostra o caráter de apoio

dado ao desenho. Este substitui a palavra e vale por ela, e não pelo desenho mesmo. O

enunciado do exercício diz “palavra desenhada” (mot dessiné), o que equivale a dizer que a

imagem cobre totalmente a relação significante/significado do signo verbal, assumindo, na

proposta dos autores, as prerrogativas do signo verbal e suas características morfológicas.

Por isso, a solicitação do gênero masculino não leva em conta que não é a imagem que tem

gênero, mas o nome do objeto que a imagem representa.

Page 71: Capítulo V: Análise do material

71

Figura 8 Ratus et ses amis, p.4

I.2 Imagem substitui a palavra

Na cartilha Léo et Léa, p.1: Vê-se um artigo ao lado do desenho de um objeto (ver figura

7). A imagem é tratada como mediação para o mundo de referências do aluno. Esse jogo

possibilita a imagem ser lida, pois se apresenta como um signo completo: o significante

oralizado e o significado exercendo sua função semântica. Libera-se, desse modo, o aluno

para o trabalho de nomeação/reconhecimento do mundo.

Esse exercício situa a imagem na fronteira entre o oral e o escrito. É um ponto de

concentração de modalidades e de linguagens – usado por metodologias para aquisição da

língua escrita – e tem sido objeto de estudo de teorias que vêem a cognição como campo de

estudos que pode responder algumas questões sobre os modos de apreensão da escrita.

I.3 Imagem substitui a palavra dentro da frase

Na mesma cartilha, p.1, pede-se para o aluno ler: “Léo com a (quadrado com uma bola)”.

Esse exercício amplia o anterior, inserindo a imagem, agora, no interior de um pequeno

texto. Dessa forma, a imagem do objeto na frase possibilita construir sintaticamente o

campo semântico do aluno. Dentro de uma mesma página, conclui-se um percurso de

síntese, partindo da letra para chegar à frase.

Page 72: Capítulo V: Análise do material

72

I.4 Imagem substitui a palavra falada (ditado mudo)

Na cartilha Ratus et ses amis, p. 49,: ex.4 Cahier d’expression: “ Ditado mudo. Essas

palavras têm, ao mesmo tempo, OU e ON. Escreva-as.” (“Diccté muette. Ces mots ont à la

fois OU et ON. Écris-les.”) (fig.9).

Figura 9

Ratus et ses amis, p.49

O ditado mudo utiliza o desenho como uma ponte da fala do professor, é uma imagem que

retoma uma oralidade implícita nos processos de nomeação do mundo, recuperando na

memória auditiva, e exercendo na escrita, a capacidade de nomeação do mundo: primeiro,

vemos; depois, nomeamos e, por fim, escrevemos o nome. Essas figuras, portanto,

significam associando-se aos sons da língua. O exercício faz, então, uma analogia à dupla

articulação da língua (nível fonológico e nível semântico), e a imagem assume um papel de

signo completo. Este exercício difere de 1.3, uma vez que lá a atividade é de oralização da

imagem/palavra.

I.5 Imagier (figura como legenda)

Na cartilha Léo et Léa, a p. 70 apresenta a palavra e, abaixo, um desenho, ou ao contrário

(fig.10).

Page 73: Capítulo V: Análise do material

73

Figura 10 Léo et Léa, p.70

A posição da imagem em relação à palavra é bem significativa, uma vez que sua função é

de ilustração da palavra. Uma imagem tem o valor de uma palavra. Estabelece-se, aqui,

uma ponte com o conceito de signo saussuriano, sendo a palavra, o significante, e a

imagem, o significado. De uma maneira geral, as cartilhas que usam esse tipo de exercício

se apropriam do conceito clássico de representação visual como semelhança com o real,

abolindo qualquer hipótese de a imagem poder tratar de outras dimensões, além de uma

suposta cópia do real. Uma apresentação sobre alguns problemas da representação será

feita em capítulo posterior, mas importa aqui lembrar a conformação arbitrária e

universalizante que é imposta à imagem, explicitando um olhar pressuposto para um

objeto. Foucault apresenta uma longa discussão sobre esse conceito no seu livro Ceci n’est

pas une pipe (Isto não é um cachimbo). Para esse autor, a semelhança difere da similitude,

uma vez que aquela constrói a representação, enquanto que a similitude a desconstrói,

oferecendo uma multiplicidade de variáveis de sentido, na medida da sua repetição. A

maioria dos manuais didáticos para alfabetização não faz destaque para a hipótese da

diferença, já que sua preocupação é com o ensino da regularidade do sistema. Essa

abordagem pedagógica que opera com a idéia de transparência do signo icônico é afeita

aos princípios lingüísticos de homogeneidade e de estrutura, o que engessa o diálogo

Page 74: Capítulo V: Análise do material

74

discursivo em que se dá a experiência estética. Vouilloux (2005) aborda as relações entre

texto e imagens, questionando a lógica que dá à imagem da pintura a capacidade de

representação mais viva da realidade, em oposição à palavra. Sua argumentação baseia-se

na diferença entre “o que está aqui” e “o que está diante de mim”, marcando a idéia de

tempo, isto é, o tempo da re-apresentação. Sobre a relação transparente entre o signo

icônico e a coisa, Vouilloux argumenta (2005, p. 23):

Esta tese aparentemente límpida levanta, entretanto, mais dificuldades do que as resolve, na medida em que ela interpreta a relação de representação, que é de ordem lógica (sobre o modo do valer-por), como uma relação de semelhança, que é de ordem perceptual (sobre o modo do ser-como), a relação semiológica entre a imagem e seu referente sendo confundido com a “relação visível” que os une.46

Assim, a imagem, tomada como figura, se aproxima da palavra, se sobrepõe a ela, ou lhe

acompanha, para facilitação da apreensão do sistema lingüístico.

II. Imagem e sua relação com o sistema semântico-discursivo

Nesse subitem, as imagens assumem outras funções, voltadas prioritariamente para

participação dos sentidos do texto ou, mesmo, para sua construção. As relações da imagem

e da palavra escrita se ampliam, embora mantenham algumas vezes o sistema da língua

como fundo. Diferentes exercícios instituem desde uma função clássica de ilustração do

texto, até a presença da imagem em que ela é propriamente o discurso, ora descritivo, ora

narrativo. Além disso, diferentes posições da imagem em relação ao texto na página

orientam leituras variadas, influenciando ativamente na produção de sentidos. Apresento

dez possibilidades de uso das imagens, mantendo a perspectiva icônica, em condições

específicas de produção de sentidos.

II.1 Imagem-ilustração do texto

A imagem-ilustração funciona na cartilha Abracadalire, em relação às frases, como

verdadeira animação, no sentido mais original, cativando o leitor para uma maior 46 “Cette thèse apparentement limpide souleve cependant plus de difficultés qu’elle n’en résout, dans la mesure où elle interprète la relation de représentation, qui est d’ordre logique (sur le mode du valoir-pour), comme une relation de ressemblance, qui est d’ordre perceptual (sur le mode de l’être-comme), la relation sémiologique entre l’image et son référent étant confondue avec le « rapport visible » qui les unit”.

Page 75: Capítulo V: Análise do material

75

disposição de aprender. São os casos das páginas 9 e 11 (figs.11 e 12), em que o desenho

representa o diálogo entre a protagonista e o pássaro. Ou, como na p. 9, na seção “Eu faço

funcionar” (Je fais fonctionner), a protagonista está de costas para a atividade que o menino

realiza, como que aguardando o fim da tarefa. O desenho não acrescenta nada à informação

da frase, plasmando um real ficcional do mundo infantil.

Figura 11 Figura 12 Abracadalire, p.9 Abracadalire, p.11

Por outro lado, uma função interessante é a de indicar para o leitor-mirim o que ele deve

fazer. Na p. 80 (fig.13), na seção “Eu entendo” (J’entends), as ilustrações servem mais para

pedir atenção à audição das palavras; por isso, uma menina tocando piano, um rapaz

tocando flauta. Fora isso, a situação permanece aleatória à situação.

Page 76: Capítulo V: Análise do material

76

Figura 13 Abracadalire, p.80

II.2 Imagem tema x texto legenda

Na cartilha Ratus e ses amis, a estrutura que organiza as unidades é a seguinte:

apresentação e contextualização dos personagens dentro de um cenário e a criação de uma

temática que poderá ser apresentada em cada unidade e desenvolvida ao longo do livro. Isto

significa que a proposta pedagógica para a alfabetização, já na primeira lição, pressupõe a

presença das imagens como ponto de partida para a aquisição do código da escrita. Por isso,

a posição do texto em relação à imagem é de legenda. As duas frases, tomadas

isoladamente, limitam-se a ser descritivas: “marou é um gato / ratus é um rato.” (marou est

un chat / ratus est un rat). Contudo, junto com as demais aberturas das lições, essas frases

assumem uma função textual mais ampla quando inseridas em uma macroestrutura, isto é,

na descrição e nas seqüências narrativas. Essa proposta indica, portanto, uma preocupação

não só com o domínio do código, mas também com o acesso às estruturas textuais e

discursivas.

Na primeira lição, a imagem ocupa a meia página superior da folha e é nela que está a

significação. O texto-legenda ocupa duas linhas, nomeando os personagens.

Progressivamente, o texto vai tomando espaço e construindo história, dividindo com a

Page 77: Capítulo V: Análise do material

77

imagem a possibilidade de constituir sentidos. Um bom exemplo é a lição do fonema /on /,

p. 48 do “Manual de Leitura” (Manuel de Lecture) (fig.14).

Figura 14

Ratus et ses amis, p.48

O texto é uma narrativa com diálogo. Como nas demais lições, a imagem conta toda a

história, explicitando, dessa forma, sua natureza discursiva e sua capacidade narrativa.

Ainda nessa página, a narrativa está no passado, até a etapa final da história, que está sendo

apresentada na imagem.

Já na p. 60 (fig.15), lição do fonema /gn /, a seqüência de acontecimentos que não consta

da imagem é contada no passado, mas, a partir do momento em que os fatos narrados são

mostrados na única cena, o tempo passado é substituído pelo tempo presente, considerando

a possibilidade de o leitor acompanhar o tempo da narração, seguindo pari passu os

acontecimentos.

Essa qualidade narrativa da imagem é reproduzida na gravura em livros didáticos para

turmas de alfabetização, delegando ao arbítrio e à percepção de cada um a construção do

tempo narrado.

Page 78: Capítulo V: Análise do material

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Figura 15

Ratus et ses amis, p.60

II.3 Imagem no centro x palavras nas laterais

Essa disposição visual na p. 8 (fig.16), da cartilha Ratus et ses amis, Caderno de Leitura,

quebra com a linearidade de leitura da esquerda para a direita, de cima para baixo.

Figura 16 Ratus et ses amis, Caderno de leitura, p.8

Page 79: Capítulo V: Análise do material

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Parte do centro (onde estão as imagens) para as laterais (onde estão as palavras que devem

ser identificadas). Dessa forma, aproveitam-se novas possibilidades de agrupar os

elementos e concentra-se no centro da página a orientação do olhar, daí propondo um

deslocamento para a direita e para a esquerda, em busca das palavras que melhor se

adequam ao enunciado do exercício. Essa outra organização de formas, seja figura ou letra,

permite redirecionar o olhar e a atenção e deslocar a linearidade da leitura alfabética para

uma leitura que inclui a espacialidade como elemento fundamental na proposição dos

sentidos.

Esse uso da espacialidade permite atrair o conceito de superfície e fazer dele um meio de

compreender o “pensamento da tela” (la pensée de l’écran), que Christin (1995, p. 6)

define para ampliar a noção de imagem como figura + superfície. Discorrendo sobre este

pensamento, ela afirma que “ele procede por interrogação visual de uma superfície a fim de

deduzir as relações existentes entre os traços que aí se observam e, eventualmente, seu

sistema” 47. E segue apontando a presença importante de

seu suporte que permitiu conceber essas figuras como signos, e signos suficientemente ambíguos e dominantes para que não os interroguemos somente em termos de significação mas associando-os igualmente, como a um sistema de um outro tipo, aos sons da língua48.

Assim, essa proposta reúne figura e palavra através de um processo associativo facilitado

pelo tipo de representação que a metodologia do livro didático escolheu. Esse assunto será

aprofundado nos capítulos seguintes, quando tratarei dos sistemas de escrita.

II.4 Imagem x linha x palavra

Os exemplos também da cartilha Ratus et ses amis, p. 48, 56 (figs.17 e 18), entre outros, no

Caderno de Expressão (Cahier d’expression), servem para uma importante transição do

espaço da ficção para o espaço da pedagogia.

47 “Elle procède par interrogation visuelle d’une surface afin de déduire les relations existant entre les traces que l’on y observe et, éventuellement, leur système”. 48 “leur support qui a permis de concevoir ces figures comme des signes, et des signes suffisamment ambigus et prégnants pour que l’on ne les interroge pas seulement en termes de signification mais en les associant également, comme à un système d’un autre type, aux sons de la langue”.

Page 80: Capítulo V: Análise do material

80

Figura 18 Figura 17

Ratus et ses amis, p.56 - detalhe Ratus et ses amis, p.48 - detalhe

As linhas marcam as personagens e as encaminham para fora do enquadramento, o qual

separa a história das atividades pedagógicas, que, aliás, fazem parte da natureza do livro

que contém a história. Nesse momento, as linhas conduzem os leitores – os alunos – para

fora da representação ficcional e os levam para o espaço da representação escolar, isto é, do

livro didático. O passo seguinte é identificar algumas seqüências da história com a escrita

de frases curtas ou simples palavras. A dimensão ficcional é infiltrada, redefinindo-se no

espaço da pedagogia.

Essa dupla representação – da escola x da ficção –, uma recortando a outra, no livro de

alfabetização, faz desse suporte um lugar saturado de marcas que definem um modo próprio

de “narrar as coisas da vida”. A incidência dessas marcas é tão forte que permanece após a

realização da tarefa principal: o enunciado sugere “Depois, colorir no desenho o que é

importante para você” (Après, colorie dans le dessin ce qui est important pour toi), numa

clara solicitação ao lúdico, na tentativa de retornar ao aluno sua participação ativa.

Uma questão para pensar é saber que fato importante há (se é que há) na permissão para

colorir, uma vez que, no Manual de Leitura, essa gravura já vem, de antemão, colorida.

Qual é o objetivo pedagógico dessa sugestão? Frente a um projeto didático tão ordenado e

controlado, a tentação do aluno para copiar as cores é forte e isso o defende e o protege de

uma possível desaprovação por iniciativas individuais. Dessa forma, dificilmente o aluno se

lançará para a criação. Esse exercício é um exemplo explícito da presença da instituição

Escola em atividades aparentemente livres dos alunos.

Page 81: Capítulo V: Análise do material

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II.5 Imagem x número x palavra

No Caderno de Leitura (Cahier de Lecture) da cartilha Ratus, nas p. 48 ex..5 e p. 52 ex.2

(fig.19 e fig.20), vê-se o seguinte enunciado: “Ao lado de cada palavra, escreva o número

do desenho correto” (Écris le bon numéro à coté de chaque devinette de Marou.). É uma

atividade de ligação entre a palavra (ou uma frase) com o desenho correspondente, pois os

signos visual e verbal aqui são completos, isto é, um não depende do outro para ser

compreendido.

Figura 19 Ratus et ses amis, p.48 e detalhe

As frases descrevem o que os olhos vêem. Pode-se dizer que aí se apresentam, um (a

imagem) apoiando o outro (a palavra): a essência do desenho – o traço gráfico – e a

realização escrita da palavra – os grafemas. Além disso, o desenho é o elemento contextual

que explicitará quem é “ela” ( elle ), quem é “ele” ( il ).

Figura 20

Ratus et ses amis, p.52 e detalhe

Page 82: Capítulo V: Análise do material

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II.6 A palavra como imagem

É um momento importante na proposta da cartilha Ratus et ses amis, sendo essa uma das

características do método global: recompor frase a partir de sintagmas. A palavra é um

todo. Por isso, difere radicalmente da proposta da cartilha Léo et Léa. Ao mesmo tempo,

esse tipo de atividade conta com a ativação da consciência sintática do aluno para realizar a

tarefa de escrita. Ratus et ses amis, p. 48 ex.6 e p. 52 ex.3 (ver figuras 19 e 20) do Caderno

de Leitura (Cahier de Lecture), mantém o mesmo enunciado: “Ratus cortou esta frase em

pedaços. Refaça-a e depois escreva-a.” (Ratus a coupé cette phrase en morceaux. Retrouve-

la, puis écris-la).

Na cartilha Abracadalire, p. 9: a opção pelo método global transforma, nesse livro, a

palavra inteira em uma imagem. No bloco “Eu retenho” (Je retiens), as frases do diálogo do

bloco anterior foram desmembradas em palavras soltas marcadas por cores diferentes (ver

figura 11). Nomes e verbos em amarelo; pronomes e preposição em vermelho. Assim, no

bloco seguinte “Eu faço funcionar” (Je fais fonctionner), um novo personagem vai

adicionar seu nome na estrutura frasal que o aluno deverá aprender, um nome novo, que

sugere ser o nome de cada um dos pequenos leitores. Cores para cada tipo de sintagma,

destacando a posição na frase, explorando ao máximo as possibilidades que a visualidade

permite aos processos de ensino-aprendizagem. No bloco “Eu construo palavras” (Je

construis des mots) (fig.21), os pedaços em forma de dados indicam a formação das letras e

dos sons de cada unidade. Olhando a divisão e a junção dos pedaços das palavras, a criança

visualiza o todo. A palavra como imagem libera a imagem-ilustração para mergulhar no

imaginário infantil e motivar e tornar lúdicos os processos pedagógicos.

Figura 21

Livro Abracadalire – p.80 e 81

Page 83: Capítulo V: Análise do material

83

De qualquer forma, cabe fazer aqui algumas observações em relação a certas atividades: na

p. 11, no início do livro (fig. 22), a evidente preocupação com o desenvolvimento motor do

aluno transgride uma questão de lógica: em primeiro lugar, a bola roda objetivamente na

direção oposta ao movimento desenhado no livro, que é o do lápis que vai

escrever/desenhar a letra a.

Figura 22

Abracadalire – p.11

O desenho da bola redonda quer dar relevo à forma, reunindo as letras que fazem o

movimento na mesma direção. Por isso, as letras d,q,g,o,e,c,e,x são apresentadas aos alunos

sem outra motivação que não seja a direção do movimento do lápis. Dar a uma técnica o

sentido da escrita é artificial e não ajuda a compreensão infantil, já que essas letras ainda

não são do conhecimento da criança.

II.7 Ícone

Na cartilha Léo et Léa, o ícone da p. 1 (fig. 23) orienta o que fazer nas tarefas. No caso,

serve de ligação entre as letras: as vogais a, o, e, mais a letra L. Nenhuma presença nem

uso de imagens que pertençam a um sistema de significação. Também a cartilha

Abracadalire é plena desses ícones (ver, como exemplo, fig. 22). Nos dias atuais, tanto no

Brasil quanto na França, é vasto o uso de ícones nos livros didáticos, inclusive no Ensino

Fundamental, numa demonstração da presença disseminada de figuras e imagens que

povoam o universo infanto-juvenil.

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Figura 23

Léo et Lea – p.1

II. 8 Função textual-discursiva

Esse item discute a ampliação das ações e das funções das imagens nas cartilhas, tratando

de tipos de textos – a descrição e a narração – e de configuração discursiva como materiais

de trabalho para a aprendizagem da linguagem escrita.

II.8.1 Imagem como descrição x tipo de texto descritivo

No livro da coleção Léo et Léa, “Eu leio e escrevo com Léo e Léa” (Je lis et j’écris avec

Léo et Léa), a relação se estende, apresentando, na p. 2 (fig. 24), gravuras com ações dos

protagonistas na coluna da esquerda, para ligar com a coluna da direita, onde aparecem

frases descritivas. Nesse estágio, a imagem carrega a carga semântica que será descrita

pela frase. A ampliação do item anterior, quando a imagem substitui a palavra dentro do

texto, se dá pela autonomia que a imagem tem de significar, ela sozinha, toda uma idéia. A

frase vem conformar certa leitura da imagem com os fins específicos da descrição.

Apropriar-se de uma linguagem para explicar a outra é sempre restritivo e diversos estudos

vêm mostrando a parcialidade desse tipo de uso.

Page 85: Capítulo V: Análise do material

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Figura 24 Léo et Lea , p.2 e detalhe

A intencionalidade pedagógica nos processos de aquisição do sistema de escrita tem

marcado as relações imagem x texto. No caso dos manuais didáticos de língua materna, o

espaço da representação e o espaço do livro se sobrepõem, simplificando para o aprendiz o

contato com os objetos do mundo. Por isso mesmo, na cartilha Léo et Léa, o exercício 3 da

p.42 (fig. 25) do Caderno de exercícios (Cahier d’exercices) é exemplar: trata-se

voluntariamente de plasmar o real, retomando o tema da representação. Na mesma página,

uma imagem de árvore e, ao lado, o texto “Isto é uma árvore” (Ceci est un arbre).

Figura 25

Léo et Lea , p.42

Page 86: Capítulo V: Análise do material

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A seqüência do exercício sugere que os alunos olhem, leiam, escrevam e ilustrem imagem

e texto, de forma alternada. A ordem em que aparecem as ações do enunciado também é

significativa: primeiro, olhar; depois, ler; em seguida, escrever e, por último, a ilustração

como atividade lúdica. Nessa medida, olhar, para os autores, tem duas direções: uma, como

forma de reconhecimento, no sistema de representação cultural do aluno, de um objeto de

seu mundo e, outra, como o primeiro movimento na direção do reconhecimento das letras,

do texto que será lido. No espaço do livro, o projeto gráfico posiciona a imagem à

esquerda, seguida do texto à direita, indicando, assim, a direção final do aprendizado, que é

o texto escrito; no espaço da representação, o texto exerce uma função dêitica, isto é,

designa, aponta, dentro do modelo imagem/texto, a sua referência, a imagem. A dêixis é

que vai permitir, pela linguagem que designa, mostrar o objeto. Retomando a análise sobre

o quadro de Magritte, Ceci n’est pas une pipe (Isto não é um cachimbo), o paradoxo entre

o que a imagem mostra (um cachimbo) e o que o texto diz (isto não é um cachimbo) é

apontado por Foucault pela intencionalidade do pintor de desvelar a soberania de um real

ideal, solidamente amarrado num espaço escolar49. Para alguns teóricos, o valor de

existência da imagem depende da capacidade de ela poder ser referida no mundo da

linguagem, isto é, poder ser dita. Esse é o viés da maioria das propostas de alfabetização,

que utilizam a imagem na direção dos processos de aquisição da escrita. Essa questão

também foi amplamente abordada por Roland Barthes50, quando situa o princípio de

designação inerente à fotografia, quer dizer, sua qualidade de mostrar a força da presença

do real que adere na foto: o “eis aí”.

II.8.2 Texto narrativo x imagem cenário

Na cartilha Ratus et ses amis, ampliando as atividades para a aprendizagem do fonema /gn

/, na p.53 do Caderno de Leitura (Cahier de Lecture) (fig.26 e detalhe), a atividade

apresenta uma pequena narração e, ao lado, três enquadramentos em que são reproduzidas

cenas para que o aluno identifique a que está de acordo com a narrativa. Difere e amplia a

proposta da cartilha Léo et Léa, de forma bem significativa. Enquanto em Léo et Léa

49 1981, p. 43. 50 BARTHES, Roland. A Câmara clara: nota sobre fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

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87

dispõe-se a ler narrativas sem imagem, restringindo seu uso ao texto descritivo, em Ratus et

ses amis ela está a serviço da história e a explicita.

Figura 26

Ratus et ses amis, p.53 e detalhe

Todavia, o exercício também prepara o aluno que se alfabetiza para entrar no mundo

ritualizado da aprendizagem, em que entender o enunciado da atividade para realizá-la é

condição de escolarização. Essa atividade é um exercício de compreensão do texto, com

resposta de reconhecimento das informações através da escolha de imagem: escolher a cena

certa entre três possíveis é um exercício de múltipla escolha. Finalmente, colorir o desenho

é o espaço de participação lúdica do aluno. Embora a cartilha Abracadalire use a imagem

como cenário, tal qual o item anterior, aqui há uma pequena variação, uma vez que seu uso

é mais decorativo (p. 8), (fig.27) como uma ilustração do texto, não fazendo da imagem

uma forma de entrada na história, como em Ratus. Por isso mesmo, diferentemente de

Ratus, o texto é disposto primeiramente na página, para ser seguido pela ilustração. Embora

ocupe um grande espaço na página, a imagem é mais lúdica e decorativa. Também na p. 9,

(ver fig. 11) a imagem funciona como uma ilustração do diálogo entre Lucie e o pássaro.

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88

Figura 27

Abracadalire, p.8

II.8.3 Imagem é o texto

A opção de um método de alfabetização que usa palavras inteiras e textos traz para dentro

do manual didático um tipo de narrativa bem ao gosto infantil, as histórias em quadrinhos, e

que tem sua origem nas antigas histórias em imagens. Na p. 63 da cartilha Abracadalire

(fig. 28), um exemplo entre outros, a seção “Eu descubro uma história de Théo e Lola” (Je

découvre une histoire de Théo et Lola), uma história curta e mágica trabalha com o

vocabulário aprendido numa seqüência de alguns poucos quadros, com enquadramentos e

uso dos recursos visuais bastante diversificados. Le Men (1984) afirma que um momento à

parte deve ser reservado às histórias em imagens, pois elas anunciam a história em

quadrinhos moderna. Pela estreita e particular associação do texto e da imagem, elas não

procedem nem do livro ilustrado nem do álbum, mas fundam um gênero à parte.

Figura 28

Abracadalire, p.63

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Pensando nos dias de hoje, pode-se supor que essa seja uma forma revolucionária das

relações texto-imagem para a juventude e para a infância, em que a narrativa é apresentada

de forma mista, com duas linguagens complementares. Caberia averiguar a eficiência desse

tipo de texto para o processo de alfabetização, no conjunto com as demais atividades. De

qualquer forma, a contextualização proposta por essa narrativa para o estudo do fonema da

unidade apresenta novas formas de leitura, sejam elas oblíquas, implícitas, pressupostas,

podendo reaproximar as duas linguagens – visual e verbal - por um viés até então não

enfatizado pela racionalidade da escrita alfabética. Assim, essa proposta transforma a

imagem em texto também.

III. O lúdico, o educativo, o estético

Cada cartilha toma direção teórica específica e, conseqüentemente, define uma metodologia

própria. Abracadalire se apropria das relações grafema/fonema, mas se fundamenta também

nas diretrizes do método global, com a tomada fotográfica da palavra, das imagens. Um

aspecto que chama a atenção é os autores se interessarem por desenvolver na criança, já na

fase de alfabetização, procedimentos estéticos próprios da visualidade, que vão além da

ludicidade tão explorada nessa fase. Nas seções onde “não se ensina a escrever”, as fases

sugeridas ao professor vão desde a feitura de um desenho pela criança à exploração de

características técnicas (um código de visualidade) – como a relação forma x fundo, a

silhueta, as cores, a divisão do enquadramento –, que resultam em categorias estéticas,

como o deslocamento de uma representação realista do objeto para uma irrealidade

proposta na sintaxe visual, o conceito de grafismo etc. (fig.29,30,31,32,33,34,35,36,37).

Page 90: Capítulo V: Análise do material

90

Figura 29 Abracadalire, p.16 , papel manteiga, p. 17

Figura 30 Figura 31

Abracadalire, p.16 Abracadalire, papel manteiga

Page 91: Capítulo V: Análise do material

91

Figura 32 Figura 33 Abracadalire, papel manteiga Abracadalire, papel manteiga

Figura 34 Abracadalire, papel manteiga

Figura 35 Abracadalire, papel manteiga

Page 92: Capítulo V: Análise do material

92

Figura 36 Abracadalire, papel manteiga

Figura 37

Abracadalire, papel manteiga, p.17

A coexistência, no manual didático, de trabalhos de artistas mundialmente consagrados

com trabalhos de crianças indica uma disposição de procurar fazer o aluno compreender a

Page 93: Capítulo V: Análise do material

93

expressão artística do seu semelhante para melhor desenvolver a sua própria expressão e a

escrever o mundo a seu modo, por imagens. Pergunta-se, então, sobre as injunções de um

projeto pedagógico que deseja alfabetizar no sentido estrito, isto é, domínio do código

escrito, e, ao mesmo tempo, alfabetizar visualmente. É um livro de linguagem ou de

língua? Ou é um livro de língua e linguagem? Em que medida essa proposta facilita ao

aluno compreender o mundo e que, por outro lado, pode criar obstáculos para o professor

em relação ao entendimento de uma metodologia clara e precisa? É de interesse desse

manual tratar a imagem como um recurso dos processos alfabetizadores, ou a imagem é,

por si, o discurso visual pelo qual a criança aprende a se constituir? É um conteúdo a

aprender?

Enquanto isso, o projeto pedagógico de Léo et Léa é essencialmente baseado no método

fônico, na direção do ensino do código. Por isso, na medida em que os alunos conseguem

fazer a correspondência grafema/fonema, como na aprendizagem do a,o,e, e, com isso,

decifrar as palavras para a leitura, as imagens vão sumindo da página, numa clara

preferência pelo lingüístico e a conseqüente exclusão a qualquer referência a uma

associação do tipo que não seja o verbal, como no caso do on , na p. 60 (fig. 38). E quando

aparecem, são fortemente enquadradas numa dimensão especificamente instrumental. Já na

p. 72, a apresentação do fonema gn se restringe a textos de quatro a cinco linhas, com

períodos simples, diálogos, sinais de pontuação. Usam-se apenas os clássicos desenhos

como descanso visual, sem nenhum objetivo pedagógico fundamental.

Figura 38

Léo et Léa, p.72

Page 94: Capítulo V: Análise do material

94

De qualquer forma, vale lembrar a afirmação de Le Men (1984, p. 175), nos seus estudos

sobre o abecedário ilustrado, de forma a relativizar a impossibilidade de convivência entre

imagem e palavra no ambiente alfabetizador.

Se a imagem do abecedário ilustrado é um auxiliar ao método analítico pois ela conduz à palavra que serve de ligação para evidenciar o som de cada palavra, ela indica também, pela importância conferida à palavra, o princípio do método global ou sintético e, na medida em que a palavra pode ser desenvolvida por um texto mais longo, orienta o abecedário para a leitura corrente51.

O que significa que, para escolher um método, não é preciso eliminar as cores, as imagens,

as propriedades relacionais que as imagens propõem. Interessante observar esse jogo de

posições da imagem: ora como significante, ora como significado, ora como signo

completo para ser lido pela criança. Por isso mesmo, os jogos de linguagem dos quais os

projetos pedagógicos se apropriam mesclam freqüentemente as ordens de entrada das

linguagens, seja visual, seja verbal, como que uma traduzindo a outra, uma explicando a

outra, uma servindo de apoio para o conhecimento da outra. De qualquer forma, é sempre

claro que o ponto de chegada é o conhecimento do código escrito.

○ 2.4 Questão de linguagem

Nesse ponto, pode-se pensar uma terceira questão, que servirá de base para o

prosseguimento da pesquisa. Que relações entre imagem e texto verbal são propostas em

materiais escolares, a partir da natureza de sua constituição? Os estudos de Christin (1995)

buscam, nas origens da escrita, justificativas para entender a lógica constitutiva da escrita

ocidental, na relação com outros sistemas de escrita que lhe são até mesmo antagônicos,

caso da escrita ideogrâmica chinesa. A presença gráfica é o eixo sobre o qual Christin

incidirá suas reflexões e a partir do qual reconhecerá outros modos de expressão escrita.

Analisando pesquisas sobre os pictogramas52, vê uma confirmação de que eles “não

51 “Si l’image de l’abécédaire illustré est un auxiliaire de la méthode analytique puisqu’elle conduit au mot qui sert de relais pour mettre en évidence le son de chaque lettre, elle indique aussi, par l’importance conférée au mot, le principe de la méthode global ou synthétique et, dans la mesure où le mot peut être développé par un texte plus long, oriente l’abécédaire vers la lecture courante”. 52 Christin, 1995, p. 42.

Page 95: Capítulo V: Análise do material

95

serviam de ligação entre ‘as coisas’ e ‘as palavras’, nem entre a realidade e a escrita.”

Havia, na verdade, na sua notação, já uma análise sintagmática. Além disso, mostra que o

importante é que, na aparência de figuras que indicavam seu pertencimento ao mundo dos

ícones, os pictogramas significavam outra coisa, como é, por exemplo, uma placa com a

figura de uma bicicleta coberta por um xis: não é sinal da ausência do objeto (como seria a

natureza do signo), mas de uma ordem, uma interdição. Mais que uma ausência, eles

indicam um sentido, mesmo nos dias atuais. A absorção dos pictogramas pelos ideogramas

é sentida na escrita egípcia dos faraós: tornados signos verbais, vê-se, na sua constituição,

o produto dessas imagens absorvidas (1995, p. 42):

Certamente, a complexa arquitetura sintática da escrita propriamente dita está ausente do estágio pictográfico, mas estas figuras, longe de aderir às coisas ou ao real, são de fato o início original de uma verbalização das imagens, quer dizer, de uma leitura53.

Aqui, portanto, está o cerne dessa história ambígua e aparentemente polarizada das

relações imagem e palavra. Explica a autora que a leitura desses pictogramas não seria um

deciframento, nem a tradução verbal desses textos, mas uma outra forma que utilizasse as

figuras para sugerir, inspirar o leitor na sua leitura criativa, diferentemente da nossa

concepção de leitura que pretende extrair um sentido do texto. Para o “texto” pictográfico,

diz Christin, a “palavra-que-é-leitura” não se apresenta jamais como um comentário do

visível, ela é uma retomada, um encadeamento, um prosseguimento dele. Oposta ao uso de

que faz o Ocidente, quando falar da arte tornou-se uma norma, esse comportamento, típico

das sociedades orais, sinaliza a alternância enunciativa que lhe é típica. Significa, portanto,

integrar a imagem a uma concepção aberta da palavra, num evento enunciativo vivo, que

se dá na oralidade. O dinamismo das relações entre essas linguagens e a importância de

diferenciar essa relação não só por palavras, mas por frases, determinam, por exemplo, que

uma imagem-palavra, associada a duas ou mais conotações, passe à imagem-sintagma.

Essa perspectiva, encontrada modernamente, por exemplo, no cinema eisensteiniano que

aproveitou para criar seu conceito de montagem, e que a linguagem do vídeo chama de

edição, posteriormente pôde ser superada, dando à imagem ela mesma o poder de conotar.

É o caso de fotografias que trazem nelas próprias um conteúdo que vai além do descritivo,

conotando o significado imediato. Caso, por exemplo, de fotografias de Sebastião Salgado

53 “Certes, la complexe architecture syntactique de l’écriture proprement dite est absente du stade pictographique, mais ces figures, loin d’adhérer aux choses ou au réel, sont en fait l’amorce originale d’une verbalisation des images, c’est-à-dire d’une lecture”.

Page 96: Capítulo V: Análise do material

96

e de alguns filmes analisados por Metz54, como os de Antonioni e de Godard. A história

das influências e convivências dessas linguagens – visual, verbal escrita e oral – mostra a

riqueza de usos e a importância que cada uma tem em diferentes períodos da construção do

conhecimento.

Na proto-escrita, portanto, confirma Christin, um estágio essencial da metamorfose já está

realizado, que é a articulação da palavra à imagem, mais rica que o simples decalque

fonético, para que se desenvolva a escrita. Diz ela (1995, p. 44) que essa forma nova de

signo representava o real só enquanto o real era, ele mesmo, designado ou representado

pela linguagem e que só se compreendia pelos olhos enquanto podia-se dizer algo, vendo-

o. Essa seria, então, uma nova formação sígnica. Do ponto de vista dos estudos da

linguagem, Bakhtin (2004, p. 35-36) contribui significativamente com esse debate, na

medida em que o seu conceito de signo neutro permite à palavra ser preenchida por

qualquer função ideológica:

Mas a palavra não é somente o signo mais puro, mais indicativo: é também um signo neutro. Cada um dos demais sistemas de signos é específico de algum campo particular da criação ideológica. Cada domínio possui seu próprio material ideológico e formula signos e símbolos que lhe são específicos e que não são aplicáveis a outros domínios. O signo, então, é criado por uma função ideológica precisa e permanece inseparável dela. A palavra, ao contrário, é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa.

Isso significa que essa aderência da palavra lhe permite penetrar surdamente no mundo dos

signos, para explicar-lhes os sentidos ou possibilitar uma interlocução sígnica capaz de

constituição dos sentidos. Vale lembrar que essa nova formação sígnica pode, hoje, nos

ajudar a compreender certos gêneros do discurso e suportes textuais inimagináveis e que se

concretizam em orkut, site, ou na literatura visual.

Associando essas afirmações com as de Guimarães55 (1997, p. 196), sobre literatura e

cinema e as maneiras de compreender o mundo, marcadas pelas especificidades e

aproximações dessas duas linguagens, parece vital compreender e explicitar a dinâmica

constante de superação dos limites de cada uma. Guimarães analisa a literatura e o cinema

54 Apud Guimarães, 1997, p. 77. 55 Cap. VII, “A imagem escrita”, 1997, p. 193-231.

Page 97: Capítulo V: Análise do material

97

em Marguerite Duras e destaca a pureza da imagem na escrita da autora como o melhor

caminho de leitura de imagem:

Essa imagem pura é obtida – e aí reside seu gesto inovador – por meio de uma escrita que modifica o fazer cinematográfico no seu interior mesmo, e que nos permite inverter a fórmula que Dominique Nogues encontra para Duras: não o “cinema da literatura”, mas a “escrita do cinema” (Do mesmo modo, também podemos modificar a fórmula de Serge Daney: não mais o que ver na imagem, e sim o que ler na imagem).

Para Marguerite Duras, a legibilidade no cinema pode estar aproximada “da escritura, mas

de ‘escritura em voz alta’ (segundo a expressão de Roland Barthes), tal o privilégio dado à

voz, desgarrada da imagem, autônoma, mostrando o que o olho não vê” (p. 196). É o

mesmo que dizer a “escuta da imagem recitada” (p. 198), para observar a possibilidade

mesma de a imagem ser lida, independente do texto literário que a acompanha.

Ora, eis aí um ponto fundamental para o posicionamento teórico desta pesquisa. O

princípio que orienta todas as formulações, ou melhor, o pressuposto teórico que abarca

minhas reflexões é o princípio de que as imagens seguem muitas vezes autônomas nas

cartilhas de alfabetização, às vezes partilhando dos processos de aquisição da escrita, às

vezes propondo uma leitura própria e independente de uma matriz teórico-metodológica da

linguagem verbal, mas utilizando essa linguagem como forma de explicitação da leitura de

imagem. Ler imagem não é necessariamente um outro procedimento para a aprendizagem

da escrita, mas certamente é um exercício de verbalização e de discursividade. Ler na

imagem, e não ver na imagem, como quer Guimarães ao falar da literatura e cinema de

Duras, traz um frescor de contato das imagens com a escrita e desloca algumas leituras que

também se circunscrevem ao ambiente escolar para falar sobre o material didático.

Essa reflexão permite ultrapassar a necessidade de tomar a história dos métodos de

alfabetização ou dos livros didáticos como causa e/ou finalidade. Acredito que esse viés

emergirá naturalmente no decorrer do estudo e muito contribuirá para o entendimento das

interlocuções nesses manuais. Esta pesquisa, no entanto, ao privilegiar um olhar enviesado

sobre os livros didáticos, especialmente as cartilhas de alfabetização, permite assentar o

seu objetivo nas interações que as imagens e o texto verbal, enredados no visto e no dito,

propiciam, podendo daí depreender, então, apropriações e adequações que os métodos de

alfabetização fazem. Assim, acredito poder rever alguns conceitos já cristalizados, como a

Page 98: Capítulo V: Análise do material

98

limitação descritiva da imagem, a imagem ilustração como uma categoria que melhor

definiria sua presença nos livros didáticos, ou a crença de que os livros didáticos de

português se limitam a ensinar a língua portuguesa e seus discursos decorrentes. Dessa

forma, o movimento desta pesquisa é considerar pressupostos pedagógicos, mas ir ao

encontro de instâncias e níveis discursivos mais abrangentes; também enfatizar a

estranheza que poderia (ou deveria) causar essa presença num contexto essencialmente

lingüístico, em que a questão semiótica é muitas vezes sublimada, seja por descuido, por

excesso de atenção ao objeto de ensino, seja por desconhecimento, ou mesmo pelo fato de

que o objetivo primordial contido nesse suporte é a aprendizagem da escrita. Há inúmeras

pesquisas, por exemplo, sobre a importância do desenho nos processos de aquisição da

escrita. Muitas delas tomam por base estudos em arte-educação, ou estudos sobre a

psicogênese da escrita, ou abordam um diálogo entre a psicanálise e a educação; de

qualquer forma, é evidente que não se tem uma única linha a respeito de qual a abordagem

mais adequada ou mesmo mais reveladora das múltiplas conexões entre imagem e escrita.

Tenho clara, entretanto, a finalidade de enfocar a pesquisa nas interações possíveis entre

imagem e escrita, ampliando o contexto de ação no âmbito da cultura.

Aproveito a afirmação de Guimarães sobre literatura e cinema, para quem “a escritura

promove a migração de imagens – do real para o espaço da textualidade” (1997 p. 216),

para transpor para o plano da palavra e imagem nos processos de aprendizagem da escrita.

Esse deslocamento mostra que os estudos acerca dessa relação desejam superar a

dicotomia ver x ler, adicionando ao ver estatuto de ler alguma coisa, e ao ler, as condições

de poder ver alguma coisa. O que os une é o dizer, e isso solicita uma discursividade que

recupera a presença dos interlocutores e seus atos de fala.

Em seu estudo sobre Fenollosa, Haroldo de Campos (2000) mergulha nos estudos da

linguagem, de corte lingüístico, apoiando-se especialmente nos estudos de Saussure.

Mostra também que a passagem para a semiótica permite que se estudem os signos do

ponto de vista da sua iconicidade, isto é, da percepção, da sua similaridade com o real,

“embora essa ‘qualidade representativa’ possa não decorrer de imitação servil, mas de

diferenciadas configurações” ( p.48), e do seu gradativo afastamento da similaridade à

convencionalidade.

Page 99: Capítulo V: Análise do material

99

Haroldo de Campos discute, em Ideograma, a possibilidade conceitual e metodológica de

Fenollosa de se indicar o ponto de vista semiótico como saída para a interpretação da

escrita chinesa, mostrando que as diferentes formas de relação do traço, da letra, com a

realidade já são sinal de sua “qualidade representativa”, com diferentes gradações, da

mesma forma que o “realismo artístico” da narrativa literária na demonstração de Jakobson

(p. 48), que questiona uma tradução real, na literatura, da vida concreta. Por outro lado,

caberia a Eisenstein, mestre do cinema russo e mundial, comentar o antinaturalismo das

“desproporções” psicológicas na arte japonesa, considerando esse “método de

representação expressiva” como “organicamente natural”, espontâneo nas crianças e

rastreável até fontes pré-históricas. A “escala natural” cede sempre a uma intrínseca

“escala pictórica” (p. 49), o “realismo absoluto” não é de modo algum “a forma correta de

percepção, mas, simplesmente, uma função de certas estruturas sociais absolutistas...” Ora,

a posição eisensteiniana de construção semântica tem sua base na sintaxe da composição, o

que para ele se concretiza na montagem cinematográfica. “Pela associação de duas

representações (ou imagens cinematográficas) chega-se a designar o conceito abstrato que

a representação, por si mesma, é incapaz de evocar”... Esse método ideogrâmico de

compor está associado à metáfora: “o uso de ‘imagens materiais’ para sugerir ‘relações

imateriais’”, ou, como quer Eisenstein, a passagem do “pensamento por imagens” ao

“pensamento conceitual”, para ele, o cinema. A discussão trazida ao Brasil por Campos, já

nos finais da década de 1970, tem o mérito, entre muitos outros, de fazer a escrita oriental

relativizar o absolutismo da escrita ocidental, moldada na arbitrariedade das relações entre

sons e letras.

No âmbito da educação, essa consideração esclarece a variedade dos gêneros de

visualidade realista que reflete um certo tipo de estratégia de poder e uma determinada

construção de escola. A atenção a esse fato ajuda a formação de uma consciência crítica

sobre os materiais utilizados em sala de aula, bem como contribui para a compreensão dos

modos de acesso aos bens culturais, embora estes não se desprendam do formato que lhes

dá organicidade, o do uso escolar: quando se propõem a construir algum material

pedagógico, as imagens e os textos explicitam um certo olhar sobre os conteúdos sociais,

assim como o suporte de veiculação e o gênero escolhidos.

Em contrapartida, os estudos de Bakhtin acerca dos signos ideológicos, assim

denominados em vista de suas injunções sócio-históricas e culturais, ampliam essa

Page 100: Capítulo V: Análise do material

100

discussão e fornecem um outro panorama conceitual para as questões da presença dos

sujeitos falantes frente ao sistema lingüístico. Em Marxismo e filosofia da linguagem, o

autor aponta a capacidade de a palavra ser o único signo a poder preencher qualquer

espécie de função ideológica, seja estética, científica, moral, religiosa, sendo este o seu

conceito de signo neutro (p. 36-37). Isso significa que os demais sistemas de signos

possuem um campo particular de criação ideológica, com seu próprio material ideológico

para formular signos e símbolos que lhes são específicos e que não podem ser aplicáveis a

outros domínios. Em Estética da criação verbal (2003, p. 294), esse pensador segue

discutindo os significados lexicográficos neutros das palavras da língua para assegurar a

identidade e a compreensão mútua dos falantes, mas ressalva que o emprego das palavras

na comunicação discursiva viva é sempre de índole individual-contextual. E faz uma

importante observação que ajudará a desencadear uma série de questões relativas aos

aspectos discursivos da comunicação verbal:

Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em três aspectos: como palavra da língua neutra e não pertencente a ninguém; como palavra alheia dos outros, cheia de ecos dos outros enunciados; e, por último, como a minha palavra, porque, uma vez que eu opero com ela em uma situação determinada, com uma intenção discursiva determinada, ela já está compenetrada da minha expressão.

Bakhtin sustenta enfaticamente que nos dois aspectos finais a expressividade da palavra

não pertence à própria palavra, mas nasce no ponto de contato da palavra com a realidade

concreta e nas condições reais de enunciação que se realizam pelo enunciado individual.

Além disso, a palavra denuncia a posição valorativa do homem individual investido de

autoridade.

Do ponto de vista da filosofia da linguagem bakhtiniana, esse é um caminho possível para

compreender as injunções decorrentes das naturais tensões entre os sujeitos falantes, nos

processos instituídos pela dinâmica da linguagem. Bakhtin reafirma o fundamento da

“palavra como signo social para compreender seu funcionamento como instrumento da

consciência” (2004, p. 37)56, que é de natureza social. Também na área educacional, esse

caminho permite analisar de perto as metodologias selecionadas para facilitar a

aproximação do aprendiz ao exercício efetivo do domínio da linguagem verbal. A escolha 56 Vale a pena retomar as discussões acerca da palavra como ferramenta do pensamento, posição que enfatiza o caráter cognitivista de abordagem sobre a linguagem, em contraposição à perspectiva bakhtiniana da palavra como instrumento da consciência, esta de natureza social, determinada pelas tensões próprias da comunicação discursiva.

Page 101: Capítulo V: Análise do material

101

de apenas um dos aspectos apontados por Bakhtin limita a pluralidade das ações

pedagógicas, fixando a aprendizagem, ora nos seus aspectos neutros não pertencentes a

ninguém, voltados para a estruturação do sistema lingüístico, ora intensificando a

tendência a ver na comunicação discursiva apenas a expressão da palavra minha,

perdendo-se a dimensão da interação que constitui a linguagem. Vale lembrar que, para

Bakhtin ( p.295), a expressividade de determinadas palavras “não é uma propriedade da

própria palavra como unidade da língua e não decorre imediatamente do significado dessas

palavras; essa expressão ou é uma expressão típica de um gênero, ou um eco de uma

expressão individual alheia...”

Essa perspectiva proporciona a vantagem de, não renegando a existência e a importância

do sistema lingüístico, mas considerando suas limitações e possibilidades, ampliar a

concepção de linguagem como constitutiva dos sujeitos, incluindo as relações entre os

interlocutores no seu contexto sócio-histórico. Além disso, Bakhtin afirma categoricamente

que a palavra não suplanta nem substitui nenhum outro signo ideológico, mas mantém com

ele uma relação de apoio (2004, p. 38):

É impossível, em última análise, exprimir em palavras, de modo adequado, uma composição musical ou uma representação pictórica. Um ritual religioso não pode ser inteiramente substituído por palavras. Nem sequer existe um substituto verbal realmente adequado para o mais simples gesto humano. Negar isso conduz ao racionalismo e ao simplismo mais grosseiro. Todavia, embora nenhum desses signos ideológicos seja substituído por palavras, cada um deles, ao mesmo tempo, se apóia nas palavras e é acompanhado por elas, exatamente como no caso do canto e de seu acompanhamento musical.

Outro conceito caro a Bakhtin é o de “comunidade semiótica” (2004, p. 46), a que utiliza

um único e mesmo código ideológico de comunicação. E ele avisa que não se deve

confundir comunidade semiótica com classe social, posto que o peso das tensões do

sentido situa-se a partir da plurivalência social do signo ideológico. Por isso o signo é a

arena das lutas de construção de sentidos possíveis e realizáveis. Pensar a constituição de

uma comunidade de falantes a partir da utilização de signos significa aceitar que diferentes

formas de comunicação (artística, religiosa etc.) constituem uma tendência em estabilizar o

signo, por si volátil, fluido, arisco. Essa é a dialética interna do signo. É o que se pode

perceber com metodologias de aprendizagem da língua escrita que tendem a apagar essa

tensão, sugerem a morte da dialética e a permanência do metafísico e da imanência,

Page 102: Capítulo V: Análise do material

102

fazendo com que a comunidade à qual freqüentemente nos referimos seja a comunidade

que idealizamos, nem sempre concretamente existente.

As reflexões acima desenvolvidas servirão de embasamento para a análise que será

realizada no capítulo 5.

Page 103: Capítulo V: Análise do material

103

○ 3 ○ A Linguagem, as Imagens e a Construção da Subjetividade

Este é Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento. Ele faz encurtamento das águas.

Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros Até que as águas se ajoelhem

Do tamanho de uma lagarta nos vidros. No falar com as águas rãs o exercitam. Tentou encolher o horizonte

No olho de um inseto – e obteve! Prende o silêncio com fivela.

Até os caranguejos querem ele para chão. Viu as formigas carreando na estrada 2 pernas de ocaso

Para dentro de um oco... E deixou. Essas formigas pensavam em seu olho.

É homem percorrido de existências. Estão favoráveis a ele os camaleões.

Espraiado na tarde – Como a foz de um rio – Bernardo se inventa...

Lugarejos cobertos de limo o imitam. Passarinhos aveludam seus cantos quando o vêem.

Manoel de Barros

O interesse deste texto é explicitar alguns marcos teóricos que singularizam modelos de

construção do conhecimento e os sujeitos neles postos; além disso, há o empenho em

propor algumas questões que estão no interior de suas estruturas e discutir o sentido de

subjetividade que ampara tais modelos. Assim, as relações entre imagem e texto verbal

podem se apresentar de forma renovada e tomar corpo no contexto das produções

artísticas, bem como nos processos pedagógicos que assimilam essas linguagens. A direção

investigativa é no sentido de constituir categorias que possam fundamentar as análises do

material de pesquisa que desenvolverei adiante. Para tanto, historicizo previamente alguns

pontos relevantes dessas relações que deflagram uma cisão radical nos modos tradicionais

de conhecer, cuja estética explicita a marca de um certo olhar sobre o mundo, como a

pintura, a fotografia, a literatura. Dessa forma, acredito poder facilitar a reflexão sobre

algumas das questões posteriores a respeito das relações imagem e texto verbal em

ambientes escolares, seja do ponto de vista estético, seja do pedagógico.

Page 104: Capítulo V: Análise do material

104

○ 3.1 Dois modelos de construção de conhecimento

A modernidade criou novos rumos para o homem se pensar e pensar as coisas deste

mundo, a partir de um conjunto de parâmetros que, sob diversos pontos de vista, poderia

orientar essa construção lenta e sólida de uma certa humanidade. A Filosofia e a

Matemática, por exemplo, vieram, desde a Renascença, apontando caminhos que

definiriam posteriormente uma oposição à superstição, à fé, à tradição, tão ao gosto

medieval, e que auxiliaram na construção do pensamento racional e crítico da ciência, com

ênfase nos séculos XVII e XVIII.

As artes se apropriaram dessa lógica de organização e desse ponto de vista sobre o mundo

e para ele devolveram um olhar que o espelha, a exemplo da perspectiva renascentista: fora

do quadro, o artista tudo vê e é ele quem delimita o cenário; os objetos são organizados na

tela a partir de um fundo que origina e orienta o olhar na direção de um ponto de fuga, isto

é, um ponto infinito que capta a atenção do nosso olho e para onde tudo converge. Esse

olho da arte pictórica é o de uma perspectiva centrada no homem e para ele voltada. O

ponto de fuga é um bom tema para exemplificar o arranjo dado pelas artes e pela ciência ao

novo contexto epistemológico. A proporcionalidade das formas dos objetos está presa às

relações entre os objetos, e todas as retas imaginárias presentes na imagem convergem para

um mesmo ponto, conduzindo o olhar do espectador para a mesma direção proposta pelo

ponto de vista do artista. Essa construção, medida matematicamente, dá a base para a

coerência interna do espaço. O modelo de visualidade se definirá a partir desse conjunto de

conhecimentos em torno do século XV, consonante com o paradigma da racionalidade que

o sistema estruturador do conhecimento oferece. Além desses aspectos, os meios técnicos e

o desenvolvimento da ciência, propiciados pela revolução industrial, fariam da relação

entre a pintura e a fotografia, já no século XIX, um tema profícuo para o debate acerca da

origem da criação ótica e seu compromisso com a realidade.

Diferentemente da falta de volume e de profundidade da pintura medieval e,

posteriormente, da grave transcendência proposta pelo barroco, através dos fortes

contrastes de luz e sombra e dos planos terreno e superior, marcados pelos olhares e gestos

voltados para uma instância superior, divina, o mundo terreno renascentista é espaço

privilegiado da ação humana e mostra já a influência de técnicas óticas nas obras dos

Page 105: Capítulo V: Análise do material

105

grandes pintores desse período. Numa monumental pesquisa sobre o uso de espelhos e

lentes na criação plástica da história da pintura ocidental, Hockney (2001) analisa

exaustivamente uma grande variedade de pinturas nas quais denuncia o uso de ferramentas

óticas já a partir da Renascença. Num quadro comparativo, Hockney (2001, p. 17) aponta

uma série de indícios que confirmam a presença de estudos óticos: “Tudo o que estou

dizendo é que, bem antes do séc.XVII, quando acreditamos que Vermeer estivesse usando

uma câmara escura, os artistas dispunham de uma ferramenta e a utilizavam de forma antes

desconhecida pela história da arte”. Em sua pesquisa documental, o autor sinaliza a

primeira referência à câmara escura com uma lente, realizada por Girolano Cardano, em

1550. Além disso, recupera documentos que provam que o conhecimento ótico foi

secretamente guardado por estudiosos receosos do peso da Inquisição. Mesmo trezentos

anos antes dela, a Igreja mantinha sob controle Roger Bacon (1212-1294), cujas idéias

eram consideradas perigosas. Algumas das análises de Hockney são bastante elucidativas:

O retrato de Leão X por Rafael (1518-9) parece de uma ordem completamente diversa... Observe as vestes do papa, por exemplo: são reproduzidas de modo “naturalista” e com volume convincente. O espaço, por outro lado, parece irreal e encerrado, e tem um plano de fundo escuro, aspectos que eu começava a notar também em outras obras que suspeitava “óticas”.

.

Vale a pena, mesmo que extensa, conhecer as observações feitas por Hockney a respeito da

obra do pintor Hans Holbein (p.56-57):

Os Embaixadores de Hans Holbein foi pintado em 1533, somente oito anos depois da gravura de Dürer. Está repleto de objetos curvos e esféricos, os quais teriam sido difíceis de fazer a olho, e, no entanto, todos eles são maravilhosamente “precisos” em seu escorço... O globo celeste na estante acima, por exemplo, é perfeito em sua representação. Os motivos da cortina ao fundo e da toalha são profundamente dignos de crédito ao acompanharem as dobras. Os riscos de longitude e latitude no globo terrestre traçam a curvatura da esfera precisamente, tal como a palavra “AFFRICA”. E a partitura musical é reproduzida com exatidão nas páginas abauladas do livro aberto. Já isso teria sido quase impossível pintar usando a máquina de Dürer. Teria sido possível, contudo, usar uma lente para projetar a imagem do livro e dos outros objetos tridimensionais numa superfície plana e decalcar os formatos projetados, agora bidimensionais.

Essas são observações fundamentais, entre muitas outras (como o quadro de Van Eyk de

1434, o Casamento dos Arnolfini), que indicam um caminho que já vinha sendo traçado

Page 106: Capítulo V: Análise do material

106

pelo homem e resulta, ao fim, de uma nova construção do homem e seus valores, do

homem e sua consciência, do homem e a natureza.

A Era Moderna do séc. XVI propõe um certo modelo teórico de concepção de mundo. Os

grandes descobrimentos, por exemplo, ampliam os horizontes do homem ocidental para

outros e novos espaços e passam a necessitar de que se pense geograficamente o mundo,

isto é, obrigam-no a tomar uma posição intelectual em relação ao que o circunda. Não

somente um novo constructo teórico está sendo postulado e concretizado, mas também

uma nova compreensão do mundo e dos homens é solicitada. As experiências das grandes

navegações produzem uma notória mudança de enfoque dos homens dessa época: os

mapas foram refeitos a partir de um outro referencial de localização, distância, tamanho,

proporção, vale dizer, um reposicionamento mental para designar-se, em relação aos

outros, no espaço. Os pontos cardeais como referência e os mapas, portanto, eram

desenhados sem uma base comum: o norte e o sul, por exemplo, não tinham a obrigação de

estar, respectivamente, em cima ou embaixo no mapa. Olson (1997, p. 222) sinaliza:

Embora existissem numerosos mapas locais, descrevendo o itinerário de Londres a Paris, por exemplo, ou de Portugal à costa da Terra Nova, esses mapas e roteiros (que são mapas destinados a apoiar viagens por mar ou em terra) indicavam particularidades sem integrá-las em um esquema geral.

Por outro lado, as atuais imagens via satélite nada mais são do que o retrato da

impossibilidade humana de alcançar, com a extensão física de seu campo visual, as

imagens propostas. A distância degenera o entendimento tradicional do homem, mas lhe

adianta uma experiência visual renovada em relação aos objetos do mundo virtual.

O surgimento da Bíblia de Gutenberg viria a movimentar o ambiente econômico, social,

cultural e político da Renascença, divulgando idéias, dando acesso à produção literária e

possibilitando um processo alfabetizador europeu que culminaria nos séculos XVII e

XVIII com leituras maciças da Bíblia protestante. Todavia, do ponto de vista da

importância renovadora dessa nova mídia, alguns estudiosos tendem a propor um olhar

mais cauteloso. É o caso de Burke & Briggs (2004, p. 32-33) que, comentando a história da

mídia, realizam uma interessante incursão crítica no interior dos estudos da mídia e sua

relação com a história e, com isso, pretendem redimensionar o poder dessa mídia neste

caso:

Page 107: Capítulo V: Análise do material

107

Falar da impressão gráfica como agente de mudança é dar muita ênfase ao meio de comunicação, em detrimento de escritores, impressores e leitores que usaram a nova tecnologia, cada qual segundo seus próprios e diferentes objetivos. Talvez seja mais realista ver a nova técnica – como aconteceu com outros meios de comunicação em séculos posteriores (a televisão, por exemplo) – como um catalisador, mais ajudando as mudanças sociais do que as originando.

Outro importante fato que marca essa mudança de rota é a expressão estética produzida

pela arte no século XVII: com os contornos sociais e políticos da época exigindo a

assunção pelo homem de novos papéis sociais, o retrato toma conta da pintura holandesa,

tendência de arte que se interessa por mostrar os homens e seus papéis sociais, os homens e

seu cotidiano, os homens e suas relações de e com o poder. Rembrandt é o símbolo maior

de uma expressão realista que pretende ser crítica em relação ao seu tempo.

Assim, é gerada uma grande responsabilidade na concretização de um indivíduo que

discute seu tempo, pela aceitação social da capacidade individual de existir e agir. Num

processo histórico de auto-afirmação, o indivíduo vem confirmando, mais fortemente a

partir da Renascença, seu descolamento em relação ao grupo, ao coletivo como único lugar

de existência. E passa a assumir, não só responsabilidades, como também direitos – o

homem que pode situar-se na posição de formular juízos éticos e políticos a partir de

princípios universais de justiça, independentemente de quaisquer lealdades locais.57

O caráter científico do racionalismo moderno toma por base, entre outros, os princípios

matemáticos da clareza, exatidão, unicidade, imutabilidade, para a concretização da

verdade universal comum a todos. O pensamento filosófico cartesiano é símbolo dessa

perspectiva universalizante, numa época de uma Europa necessitada de um consenso em

que se devem apoiar os indivíduos que lutam por causas religiosas, políticas, para afirmar

seu caráter nacional. Pessanha (1997, p. 26) discute a direção dada por Descartes na

construção do modelo matemático da trama da verdade lógica e absoluta, optando por uma

racionalidade que impediu, de certa maneira e a longo prazo, a discussão que hoje se faz

sobre a capacidade e a importância da linguagem natural como um sistema aberto,

histórico, concreto:

57 Rouanet (1993) faz uma consistente análise sobre o assunto.

Page 108: Capítulo V: Análise do material

108

Quando Descartes fez aquela ruptura, estava abrindo mão de uma coisa muito séria. Estava abrindo mão daquilo que o Renascimento chamava de Humanidade, aquilo que daria ao homem a dimensão humana do próprio homem: a sua capacidade de falar, usar essa linguagem que estamos usando e com ela persuadir, conquistar, seduzir, comandar, dirigir, subjugar os outros.

Essa opção permitiu que se descartasse a existência de outras racionalidades, mais

provisórias e certamente com outros possíveis perfis de humanidade. A máxima cartesiana

do penso, logo existo é uma epígrafe que o homem dessa época tem da consciência de si

em relação ao mundo: a liberdade de pensar, que liberta a razão de qualquer jugo, o da

opinião/doxa, o dos preconceitos, o religioso. Por isso o amparo na ciência, que ilumina e

evita os dogmas, as superstições. Não é à toa que filósofos da segunda metade do século

XX, a exemplo de Derrida, vêm discutir a imposição do logocentrismo que se firmou na

cultura ocidental, por meio da razão dada pela palavra e dos efeitos causados pela natureza

de seu uso, isto é, o modo de organização do saber pela palavra-razão e concessão de lhe

dar a capacidade de poder explicar o sujeito e de conter a suficiência de meios para

organizar logicamente o pensamento.

O Iluminismo francês do século XVIII propõe a construção de uma sociedade de cidadãos

conduzidos por um ideal marcadamente democrático. Seus participantes definem-se por

uma função social, já desde aquela época, da mais alta importância, que era, entre outras,

seu papel educacional. Burke & Briggs (2004, p. 103) afirmam:

Designando-se a si mesmos como “homens de letras”, muitas vezes foram descritos como os primeiros intelectuais, independentes de patronos, ou mesmo a primeira manifestação de intelligentsia, no sentido de serem críticos sistemáticos do regime sob o qual viviam. Eles tentaram difundir amplamente sua mensagem, dentro e fora da França, tanto para mulheres quanto para homens – embora não buscassem atingir o “povo”. Voltaire foi particularmente desdenhoso com o que chamava “ralé” (canaille).

A direção certa da educação era não só a ignorância, mas o que dela adviria, a cegueira do

obscurantismo, considerado por muitos como um elo ao encantamento servil da

humanidade. Portanto, a idéia de desencantamento do mundo é marcada por fortes cores

anti-religiosas e por um ideal filosófico de emancipação dos preconceitos. Os três pilares

da modernidade – a universalidade, a individualidade e a autonomia – estão sendo

edificados e serão consolidados nos séculos seguintes. Por isso mesmo, os teóricos da pós-

Page 109: Capítulo V: Análise do material

109

modernidade, a exemplo de Mafesolli, propõem o reencantamento do mundo a partir de

novas formas de sociabilidade. Uma delas, ao contrário da liberdade do cogito, é a

construção de uma visualidade que se propõe a espelhar o espetáculo do mundo.

O positivismo do século XIX, tanto na filosofia quanto na ciência, explica a evolução das

espécies fazendo uso da linearidade temporal como categoria de base. Seu tempo histórico

e sua área de conhecimento assim delineavam o constructo teórico do momento. Está aí a

justificativa do trabalho minucioso dos estudos da medicina sobre o corpo humano, vendo-

o essencialmente como um conjunto de aparelhos e sistemas. O corpo feminino, por

exemplo, foi exaustivamente explorado e esmiuçado nos séculos XIX e início do século

XX, denotando um profundo sentimento de experiência científica. O que se verificou, nos

anos 60 do século XX, foi um movimento feminista tão intenso58, que possibilitou a

proposição de novas significações aos movimentos sexuais e culturais das minorias.

A revolução industrial, por sua vez, solicita uma transformação radical nos hábitos e nos

costumes dos cidadãos, advinda tanto de um novo projeto social e político para as

populações, quanto de uma nova perspectiva para o homem que movimenta novas técnicas

e ferramentas. Anderson (1999, p. 48), comentando a modernidade estética, em especial a

arquitetura, traça resumidamente o quadro da época e ao final cita Habermas:

No século XIX, a revolução industrial colocou três desafios sem precedentes à arte arquitetônica. Exigiu o desenho de novos edifícios –tanto culturais (bibliotecas, escolas, casas de ópera), quanto econômicos (estações ferroviárias, lojas de departamentos, armazéns, casas de operários); possibilitou novas técnicas e materiais (ferro, aço, concreto, vidro) e impôs novos imperativos sociais (pressões de mercado, planos administrativos) numa “mobilização capitalista de todas as condições urbanas de vida” (Habermas, 1985, p. 18).

Em relação à proposta inovadora de Descartes no século XVII, movimentos de

descentramento do sujeito ocorreram nos séculos XIX e XX, levando-o para uma

correlação de forças com o exterior, incluindo aí a figura do Outro como parâmetro da

construção do indivíduo.

O Pós-modernismo não nasceu como uma bandeira ou como um manifesto. Os estudos que

vieram a consolidar esse termo como síntese de um conceito foram posteriores aos eventos

58 Ver o comportamento do corpo feminino nesse período em Belmiro (1992)

Page 110: Capítulo V: Análise do material

110

– esparsos inicialmente, múltiplos e constantes depois – e denotaram manifestações bem

variadas. Anderson (1999, p. 110-111) afirma:

As origens da noção de pós-modernismo foram literárias e sua projeção à fama como estilo foi arquitetônica. Mas muito antes de aparecerem romances ou prédios que atendiam às definições-padrão de pós-moderno, praticamente todos os seus aspectos afloraram-se na pintura.

Ultrapassando o expressionismo abstrato e apontando para um multi-uso do plano

pictórico, a pop-art assimila toda sorte de objetos e de reprodução de objetos, isto é,

imagem da imagem, o simulacro. Esse percurso de dessacralização do objeto artístico

resulta de buscas e experimentações estéticas propostas pela pintura moderna, que vem de

superar a perspectiva, o figurativismo, o empastamento até a cor chapada e pura.

Na seqüência da experimentação artística pós-moderna, o minimalismo impossibilita a

distinção entre as formas e o conceitualismo; vindo na sua esteira, destrói finalmente

qualquer imposição externa do objeto artístico e o próprio objeto enquanto tal, na medida

do questionamento radical de seus códigos. A mistura de texto e imagem, por exemplo,

instaura objetos inomináveis, cortes radicais no sistema pictórico canônico. Um bom

momento para o surgimento das instalações.

Essa arte que enfatiza o espaço e que é sintoma da prevalência de uma cultura do visual

sobre o projeto narrativo da história como condição de humanidade, essa arte é exemplar

de uma cultura do espetáculo pós-modernista, dos quinze minutos de fama, do cotidiano

pasteurizado em olhares bigbrothers observadores vinte e quatro horas ao dia. A realidade,

que permite às práticas sociais dar sentido concreto à vida, torna-se um jogo de construção

que dá margem ao aleatório e ao enfraquecimento de alguns temas valorizados no

ambiente moderno.

A análise de Jameson (1993, p. 26) acerca do pós-modernismo e a sociedade de consumo

explicita dois aspectos importantes que o distanciam do modernismo: o primeiro, “a

unidade desse novo impulso – se é que ele a tem – é dada, não por ele mesmo, mas pelo

próprio modernismo que ele visa a desbancar”. O outro aspecto é “o desgaste da distinção

entre a alta cultura e a chamada cultura de massa ou popular”. Esse comentário deixa claro

o quanto o modernismo está presente nas manifestações pós-modernistas. Vale lembrar o

Page 111: Capítulo V: Análise do material

111

uso dessacralizado da chamada arte superior, mesclando música clássica com música

popular, filmes de segunda classe citando clássicos da filmografia internacional. O remake,

o retrô, a nostalgia figuram como uma postura do artista que tudo assimila e devolve os

objetos artísticos e os objetos do cotidiano indistintamente num mesmo patamar.

Ademais, duas características configuram procedimentos que resultam em conteúdos

específicos: a paródia e o pastiche. Enquanto a paródia enfatiza e reconhece, de alguma

maneira, o modelo que satiriza, o pastiche cria uma massa mimética sem apoio de um

padrão que o artista deve criticar. Para Jameson (idem, p. 29), “o pastiche é a paródia

vazia, a paródia que perdeu seu senso de humor”. Assim é que a paródia, pela sua ligação

com um estilo o qual critica e que, por isso mesmo, tem sempre como referência um

original, está em constante litígio com os modernos. O pastiche, por sua vez, não apresenta

conflito ou contraste em relação a nada, pois tudo pode estar do modo que está, ser do jeito

que é, sem causar estranhamento aos olhos dos sujeitos, sem a quebra de expectativa que

faz o riso e a ironia. Numa vertente particular, Bakhtin (que será estudado mais adiante)

também propõe o estudo da paródia para compreender o estilo literário do humor inglês.

Para esse autor, é a quebra da intenção discursiva.

Portanto, o espaço pós-modernista como construção de um ambiente em rede é o que os

teóricos chamam de hiperespaço e advém de uma visão que não se fragmenta para se

totalizar, como o cubismo, ou que ultrapassa a compreensão das dimensões do espaço

físico para melhor erigir suas criações e relações, como o surrealismo ou o hiper-realismo.

É, na verdade, uma concepção pluridimensional do espaço, e o homem que nele se situar

precisa de novas ferramentas da percepção para dar conta de processos renovados de

entendimento do mundo.

Para Sontag (1981, p. 7), a produção de imagens fornece também uma ideologia

dominante. A transformação social é substituída por uma transformação de imagens. A

fotografia, que tem como material o mundo, traz como conteúdo todos os processos

ideológicos que organizam a vida social e da qual faz parte. A imagem impalpável, mas

sempre presente, faz-nos participar com o olho que, por sua vez, recriará na imaginação o

espetáculo do mundo. O homem contemporâneo constrói sua cosmovisão a partir daquilo

que a imagem estabelece e reproduz como valor: é assim que se constitui a sua

Page 112: Capítulo V: Análise do material

112

representação social. O mercado não prescreve leis, mas imagens cuja linguagem

normatiza a estética.

Por outro lado, a virtualidade do espaço da tela plana do computador exige um

deslocamento do lugar original do sujeito que vê centrado pelo eixo da perspectiva, para

acompanhar a viagem dos personagens, navegando junto com eles, nas dimensões

recônditas das fendas de bueiros ou saltar juntos em ascensão ao último andar de prédios

arranha-céus, como no gênero de filmes do tipo O Homem-Aranha ou, mesmo,

experimentar batalhas sangrentas com milhares de personagens figurantes-virtuais em O

Senhor dos Anéis. Necessita-se novamente de um reposicionamento espacial, tal qual a

modernidade exigiu do homem renascentista; o homem situa-se num mundo que não é

mais de papel, mas de luz, eletricidade e ótica: virtual. A comunidade a que pertence pode

prescindir do conceito clássico de cartografia como condição de referência; essa

comunidade não significa necessariamente um conjunto de pessoas em presença, mas pode

estar organizada por afinidades em outro espaço, o virtual. O corpo físico se desloca, mas

continua no mesmo lugar e-mail.

Por isso mesmo, é preciso formular um novo conceito para esclarecer este acontecimento

humano: o de desterritorialização59. Agregada a isto, a linearidade temporal estruturadora

das narrativas clássicas está no fim e, com ela, um modo de organizar a vida. O conceito

religioso de Deus entra em crise como um ente virtualizado, tal qual os homens comuns. É

o tempo da simultaneidade, da ubiqüidade e esse caráter virtualizante produz efeitos

radicais principalmente em algumas áreas de conhecimento e nos seus operadores, como os

“da tecnociência, das finanças e dos meios de comunicação. São também os que estruturam

a realidade social com mais força, e até com mais violência”. 60 O individualismo, que

marcou a trajetória do sujeito, descaracteriza-se como tal, isto é, o estilo pessoal, o mundo

que permitia esse estilo pessoal, o espaço privado, a família nuclear, entre outras marcas.

59 Termo proposto por Felix Guattari em Mil Platôs, escrito em parceria com Gilles Deleuze, para designar uma sociedade pós-moderna marcada pela mobilidade e desenraizamento cultural. 60 Lévy (1996, p. 21)

Page 113: Capítulo V: Análise do material

113

Foucault afirmou a instância discursiva como lugar de existência do homem, como sujeito

e como objeto, a partir do século XVIII, diferentemente do homem pré-capitalista. Para

ele, o homem é:

1) um fato entre outros, a ser estudado empiricamente mas, ao mesmo tempo, proporcionando uma base privilegiada para tal conhecimento; 2) algo cercado pelo desconhecido, mas fonte potencialmente lúcida de todo conhecimento (o cogito de Descartes); 3) um produto da história, mas também a fonte e o fundamento da mesma história.61

Dessa forma, Foucault já aponta a emergência de uma crise de descentramento do homem,

acompanhada, por sua vez, pelas análises lacanianas de busca de significados que se

apóiam em uma rede interminável de significantes e que impedem o homem de ter acesso

ao real. Já é dada ao sujeito uma estrutura significante transindividual na ordem social. A

análise foucaultiana da disciplinarização, de higienização dos corpos, da normatização de

condutas das populações e dos procedimentos de vigília e punição marca, nos estudos

sobre a produção de verdade e de sujeito, um viés de alienação do sujeito como capacidade

e como poder individual de autogestão. A aderência do discurso científico, como limite de

neutralidade e objetividade, ao discurso da norma confere a este um papel estruturador das

relações sociais. Portanto, o sujeito, dependendo do lugar em que atua, é móvel,

diferentemente da perspectiva bakhtiniana, de interesse para esse estudo, por exemplo, que

compreende a constituição da subjetividade num embate de forças de dentro para fora e de

fora para dentro. O sujeito atua e se modifica.

Essa empresa de desconstrução do primado do homem moderno tem, na sua base, germes

de uma nova episteme, cujo modelo se vale de referendar as partes, os pedaços, o local, os

pequenos grupos – por isso, as etnias, os gêneros, os sexos. Ao mesmo tempo, se vale do

outro como instância avaliadora de quem eu sou. Não é à toa que as fotografias

publicitárias se aproveitam da inversão da posição do sujeito, fazendo-nos supor que nós,

espectadores, somos os sujeitos que surpreendemos algo imanente do real. Essa inversão

transfere para a imagem da fotografia a idéia do outro como modelo de quem eu sou62.

Contudo, resta lembrar que o peso do modelo de modernidade e suas expressões nas

diversas modalidades artísticas marcam tão fortemente a contemporaneidade, que esta dá

61 Apud Cardoso (2001, p. 87). 62 Essa discussão está apresentada em Belmiro (1992), a respeito das análises de fotografias de nu grávido que circularam na mídia na década de 1980.

Page 114: Capítulo V: Análise do material

114

sinais do peso da existência moderna: nas referências, na negação. Por isso mesmo,

Cardoso (2001, p. 89-97) faz uma análise crítica da epistemologia pós-modernista para

compreender o lugar das ciências sociais, especificamente a História. Para esse autor, na

epistemologia pós-moderna não há teoria, mas sistemas discursivos. Baseando-se em

Lawrence Cahoone, faz um mapeamento conceitual dos cinco temas pós-modernistas,

apontando, em cada um, suas falácias. São eles:

1) crítica da presença ou da apresentação, em favor da representação; 2) crítica da origem, em favor dos fenômenos; 3) crítica da unidade, em favor da pluralidade; 4) crítica da transcendência das normas, em favor da sua imanência; 5) único ponto positivo de tipo metodológico: análise dos fenômenos mediante alteridade constitutiva. Note-se que, não sendo a epistemologia pós-moderna um sistema coerente, os temas indicados não aparecem todos necessariamente em cada autor ou tendência; assim, por exemplo, a posição desconstrutivista de que nada há fora do texto não é coerente com a de Foucault, por exemplo, o qual admite em suas análises a existência de “práticas” ou “dispositivos” extratextuais.

Essa discussão entre os dois modelos epistemológicos, modernidade x pós-modernidade,

certamente propicia debates a respeito das relações de produção do conhecimento na pós-

modernidade, sendo uma delas a lógica da palavra versus o analógico da imagem. A

tomada da razão pela imagem, nos dias de hoje, subverte a lógica linear que a palavra dá

ao pensamento e propõe uma analogia visual com o mundo, com a qual o pensamento

lógico não tem paralelo.

Por outro lado, é novamente Jameson que dá volume a esse debate, contrapondo a desrazão

pós-modernista com alguns temas no seu próprio bojo:

Uma reintegração da ética, o retorno do sujeito, a reabilitação da ética política, renovados debates sobre a modernidade e – acima de tudo – uma redescoberta da estética.63

○ 3.2 Decorrências para a educação

O debate desenvolvido acima apresenta decorrências irreversíveis para a educação, uma

vez que tem mostrado a importância de não mais se negar o papel da visualidade na

63 Apud Anderson (1999, p. 127).

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115

construção do conhecimento pelos sujeitos e na influência da sua formação intelectual64,

principalmente por aqueles que freqüentam os ambientes educacionais formais. Aliás, a

presença das imagens em metodologias de ensino tem sido objeto de pesquisas, poucas em

língua portuguesa, e em disciplinas que se apóiam em uma organização mental marcada

pela abstração conceitual, como é o caso da área de ciências.

Acompanhando as transformações ocorridas na sociedade e na ciência, a escola por vezes

renova suas bases de sustentação política, promove um redimensionamento de seus

conteúdos e metodologias; o que ela não contava, como ainda não conta, é que a

solicitação, pelas imagens, de capacidades renovadas nos processos cognitivos em

diferentes ambientes do cotidiano dos alunos, nas relações discursivas, assim como a

emergência de condições de produção de novos modos de interação social pelas imagens,

obrigam-na a se deparar com seus próprios limites e a rever seus objetivos e condutas.

Uma questão que lhe é imposta deriva justamente das condições atuais de convívio entre os

sujeitos no espaço escolar: a crise do homem moderno e os múltiplos desenhos das

diferentes formações sociais obrigam a escola a se pensar como espaço de interação onde

se produzem diferentes discursos, entre eles, o das imagens.

Na seção seguinte, tomarei a linguagem como ponto de partida para estabelecer as relações

necessárias na constituição dos sujeitos e suas modalidades de expressão. Os conceitos

bakhtinianos de linguagem, signo neutro, signo atual, dialogismo, plurilingüismo, entre

outros, facilitarão a aproximação com a imagem, cujas perspectivas teóricas estão

submetidas à discursividade verbal, mas com ela dialogam na direção de interações entre

discursividade e plasticidade, questão para a qual a escola deverá estar atenta.

64 Em comovido texto sobre as imagens nos livros, Imagens iluminando livros, Ricardo Azevedo relembra a importância das imagens na sua formação. www.ricardoazevedo.com.br/Artigo14Imagens.htm (acessado em 30/1/2008): “... se fosse um texto sobre o assunto eu, menino ainda, teria dormido antes de terminar o primeiro parágrafo. As imagens fotográficas, entretanto, eram implacáveis. Não respeitaram minha idade, meu grau de instrução, minha inocência, nada. Entraram em mim como uma espécie de luz [...] pretendi falar da força poderosa, e muitas vezes esquecida, das imagens como transmissora insubstituível de conhecimento; da importância das imagens na formação intelectual e ética das pessoas; da influência imensa e difícil de medir das imagens na construção da ‘visão de mundo’ de cada um de nós”.

Page 116: Capítulo V: Análise do material

116

○ 3.3 O círculo de Bakhtin e um novo projeto discursivo

Neste ponto, cabe reafirmar a importância do papel da linguagem na construção de um

universo simbólico, dentro do qual o homem significa e se significa, enfatizando que a

alteridade constitutiva se dá pela existência do outro, na contra-palavra do outro. Essa

concepção vai me permitir pensar um outro corte para estabelecer uma discussão sobre as

relações entre imagem e texto verbal (ou as palavras) e tomar um outro ponto de partida,

que não seja a base lingüística, nem a base metodológica, ambas já comentadas no capítulo

anterior. Esse ponto é a própria linguagem, como lugar de produção de sentidos. Em várias

de suas produções, o teórico Mikhail Bakhtin (1998, 2003, 2004) e o círculo por ele

liderado desenvolvem não uma teoria do sujeito, mas uma teoria da linguagem, esta, sim,

lugar onde os sujeitos se reconhecem e se situam na vida, na arte. Suas reflexões

proporcionam uma superação de formas monológicas de estruturação do discurso, abrindo

potencialmente diálogo entre diferentes linguagens e, por isso mesmo, indicando um

possível percurso analítico e metodológico. Superando a língua, como estrutura, escolhe a

linguagem, lugar de constituição das subjetividades65.

Em escrito de 1929, Volochinov66 faz a pergunta que dá título a seu texto, O que é a

linguagem?, e procura orientar suas argumentações com a finalidade de compreender a

criação artística, em especial a linguagem literária. Para isso, traça um percurso do

aparecimento da linguagem articulada, mostrando que ela surge não como uma

necessidade de comunicação social, uma vez que a linguagem dos gestos já cumpria

suficientemente essa função. São as ações mágicas67 a base comum tanto para a dança, o

canto e a música, juntamente com a expressão fônica, para acompanhar os trabalhos

coletivos do homem primitivo e que ajudarão a desenvolver futuramente os órgãos da

fonação para que seja possível a linguagem fônica articulada. Contrapondo diferentes

materiais – como argila ou mármore – com o material verbal, o autor observa uma

diferença substancial: é que existem leis lingüísticas que não se podem infringir, caso

65 Diversos estudos e publicações têm proporcionado uma ampla discussão e um vasto campo de interpretações a respeito das obras do Círculo bakhtiniano: Faraco (1993); Faraco et alii (orgs: 2001, 2006); Brait (2005); Fiorin (2006), entre outros. 66 Volochinov (1929), Qué es el lenguaje? 67 Debret (1993) desenvolve estudo sobre a imagem e o uso mágico que o homem primitivo faz dela.

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117

contrário não haveria compreensão recíproca, não há flexibilidade ou possibilidade de

amoldamento exterior, como nos outros materiais.

O autor apresenta algumas etapas do desenvolvimento humano a partir de uma base que

funda todo o seu pensamento, a organização social do trabalho e, por isso mesmo, toma em

consideração a atividade verbal também como trabalho. Não propõe, portanto, uma

definição de linguagem sob uma perspectiva sobrenatural (divina) ou natural, de qualquer

forma, sobredeterminada. Por isso, afirma (1929, p. 227) sobre a linguagem: “É o produto

da atividade humana coletiva, e reflete em todos os seus elementos tanto a organização econômica

como a sócio-política da sociedade que o gerou”.68

Voloshinov acrescenta, na sua argumentação, um elemento fundamental para toda a

compreensão da teoria do Círculo: além do ato gestual e do ato verbal, que caracterizam o

signo exterior, o processo se cumpre quando se converte em uso interior; a compreensão

do signo e resposta a ele denotam uma interiorização da linguagem que possibilita o

entendimento do dado comum para a troca, para a interação e para a construção da

subjetividade a partir do laço social. Assim, a linguagem é a forma materializada de

comunicação social, e a interiorização da linguagem permitirá a constituição da

consciência. Dessa forma, nossa expressão, seja interior ou exterior, pode utilizar

diferentes signos, mesclados ou mesmo fragmentados, e, por uma entonação particular,

explicita um estilo, mesmo embrionário, mas que denota nessa enunciação a necessária

troca comunicativa como fato social. E certamente mostra que a consciência se encarna no

material ideológico (1929, p. 240):

O mesmo grupo social que deu a uma pessoa a língua, que lhe orientou as idéias, os gostos, os juízos, que, em uma palavra, determinou o tom e o caráter de sua vida interior, agora se contrapõe a ele como ambiente exterior, como massa de leitores, como grupo de saboreadores e críticos de sua obra artística. Por isso, se conflitos ou contradições nascem entre a linguagem interior e exterior do escritor, existem razões sociais particulares que causam este conflito69.

68 “Es el producto de la actividad humana colectiva, y refleja en todos sus elementos tanto la organización económica como la socio-política de la sociedad que lo ha generado”.

69 El mismo grupo social que ha dado a una persona la lengua, que le ha orientado las ideas, los gustos, los juicios, que, en una palabra, ha determinado el tono y el carácter de su vida interior, ahora se le contrapone

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118

O interesse em fazer, ao fim e ao cabo, uma discussão sobre a natureza e a realização da

linguagem literária faz os integrantes do Círculo se reportarem apenas eventualmente a

outras linguagens. Vale lembrar que, na pequena nota de rodapé n° 5, o autor amplia a

noção de linguagem interior, considerando-a como conjunto de incorporações de diferentes

signos (1929, p. 233): “Es decir, en cualquier signo, palabra, gesto, diseño, símbolo etc.” O

material ideológico da linguagem verbal é sua prioridade de análise e aponta três estágios

de criação ideológica, no caso em questão, a literária: 1°- o reforço para a orientação

social. Nesse estágio, a passagem da linguagem interior para a linguagem exterior ocorre

no âmbito da ideologia cotidiana; 2°- a realização de um produto ideológico, uma obra

precisamente. Nesse estágio, opera-se a transformação do material bruto em objeto de arte,

seja uma estátua, um quadro, uma sinfonia, um poema, uma novela ; 3°- o produto técnico

deve adaptar-se às condições técnicas exteriores, isto é, ocorre a transformação técnica da

forma do material, a realização da obra não se ausentando da responsabilidade de uma

orientação frente às condições de sua produção.

Nesse texto de Voloshinov, observa-se o intento de não fazer da polarização de idéias uma

redução de argumentação. A interação é um traço característico não só como categoria de

análise, mas também como metodologia de argumentação. É o caso das relações entre

ideologia cotidiana (o conjunto de sensações cotidianas e das expressões exteriores

imediatamente ligadas a ela) e os sistemas ideológicos (a ciência, a arte, a filosofia, as

teorias políticas). Uns se nutrem dos outros exercendo domínios e influenciando-se

mutuamente. É o mesmo caso das relações entre linguagem interior e linguagem exterior

no fazer artístico. O “intercâmbio comunicativo do autor com seus leitores” (p. 239) é o

lugar onde se elabora sua língua comum, é onde se estabelece o plano extraliterário

comum, enfim, onde se formam e estandardizam seus mundos interiores. É o lugar do

entrecruzamento.

No caso da minha pesquisa, os estágios de criação artística apresentados por Voloshinov

dão margem a pensar que as relações entre o texto verbal e as imagens me ajudam a

como ambiente exterior, como masa de lectores, como grupo de gustadores y críticos de su obra artística. Por eso, si nacen conflictos o contradicciones entre el lenguaje interior y el exterior del escritor, existen razones sociales particulares que causan este conflicto.

Page 119: Capítulo V: Análise do material

119

observar essa relação como um enunciado, cuja estrutura precisa ser entendida como um

todo, no entrecruzamento de linguagens, para poder deixar aflorar a riqueza de sentidos

que emerge desse olhar; caso contrário, cai-se no incômodo de polarizar a relação, fixando

lugares e funções, ou antagonizando linguagens que são, muitas vezes, complementares.

Vistos como enunciado, os textos verbais e visuais adquirem uma vitalidade que permitem

reconhecer os interlocutores implícitos, as situações de uso e as condições de produção.

Com isso, é possível identificar diferentes suportes como um dos estágios da criação

artística que certamente determinam sua realização. Contudo, essa visão não elimina a

força de compreender o objeto e de nele reconhecer um enunciado. Assim, a obra explicita

uma orientação social, se organiza intelectualmente em um suporte, se constitui como um

enunciado que, por sua vez, pertence a um gênero. Portanto, a direção que tomo para

entender o material que analisei (livros de alfabetização) e que analisarei (livros de

literatura infantil) leva em consideração que tais objetos se constituem em gêneros, cujos

enunciados estão carregados de conteúdos ideológicos que determinam, de certa maneira, a

orientação de leitura e de resposta do leitor ao material.

Em outro texto do Círculo, Bakhtin/Volochinov (2004, p. 69-89), em 1929, retoma sua

teoria sobre a linguagem como interação verbal e, para tal, critica duas grandes

perspectivas predominantes naquele momento: o subjetivismo idealista e o objetivismo

abstrato. Por subjetivismo idealista, o autor aponta o psiquismo individual como motor da

língua, sendo esta uma criação contínua. Por isso mesmo, essa tendência se interessa pelos

atos de fala e é análoga às outras manifestações ideológicas.

Vale salientar que essa tendência nega o positivismo lingüístico que se satisfaz com as

formas lingüísticas acompanhadas do ato psicofisiológico. Outro fator fundamental é o

caráter ideológico significante da língua, isto é, “a relação do signo com a realidade por ele

refletida ou com os indivíduos que o engendram” (p. 83), resultando no gosto lingüístico,

variedade particular do gosto estético. Isto faz com que a expressão seja a marca dessa

concepção, seja porque o fenômeno essencial é o ato de criação individual da fala

(Vossler), seja porque a lingüística, como ciência da expressão por excelência, coincide

com a estética (Benedetto Croce). A lógica da língua é a renovação constante e a

heterogeneidade, uma vez que “a realidade da língua constitui também sua evolução” (p.

82).

Page 120: Capítulo V: Análise do material

120

A outra tendência é a do objetivismo abstrato, que se pauta pela organização da língua num

sistema fechado em que cada signo se refere a outro signo, mantendo uma lógica interna ao

próprio sistema. Suas leis são-lhes específicas e, por isso mesmo, os atos individuais de

fala constituem variações ou deformações das normas. Seu principal teórico, Saussure,

formulou as bases para o desenvolvimento desse modelo que desconhece as injunções

ideológicas advindas do sujeito produtor de signos. Nessa linha, a questão a discutir não

está na expressão do locutor e tampouco no locutor, conseqüentemente deixando de lado a

evolução do pensamento e do psiquismo subjetivo explicitado pela palavra; seu caráter

homogêneo, fechado, nega qualquer historicidade. Por isso, Saussure abandona o trabalho

metódico com a parole e concentra-se na langue, que lhe permite desenvolver seu estudo

sem a instabilidade da criação individual. O racionalismo positivista dessa tendência nega

o sujeito histórico e seu contexto social e afirma o modelo matemático como pólo

dialogante, numa confirmação das estratégias de neutralização do mutável, do concreto, da

polissemia, do fluxo constante que há na comunicação verbal, em favor da imutabilidade,

do abstrato, da univocidade.

Ao analisar essas duas tendências, Bakhtin enfatiza, em primeiro lugar, a polaridade em

que a discussão se configurou; mostra também que, na sua perspectiva, o que define a

linguagem é, acima de tudo, a sua natureza social, por isso, ideológica. Ela é uma instância

sensível às questões sociais e condensa, através dos signos ideológicos, os significados que

estão nas relações de poder. Assim é que o autor formula alguns conceitos-chave, baseados

no entendimento dos usos sociais da língua, para recuperar a presença significativa dos

interlocutores no processo de significação na interação verbal. Por isso, a enunciação como

instância de produção de sentidos: A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente

social.

Em texto de 1934-35, O Discurso na poesia e o discurso no romance70, o autor traça um

caminho de análise cuja metodologia se apóia no seu projeto discursivo, isto é,

compreender a linguagem como centro de investigação e mostrar sua natureza constitutiva

dos sujeitos, em que a dialogia estabelece o fluxo vivo dos discursos. Bakhtin apresenta o

discurso concreto, a enunciação, que esbarra no discurso de outrem, eterno interlocutor

(mesmo antes de realizar concretamente o diálogo) que desenha e interpela o discurso do

70 Capítulo II do livro Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, 4ªed., São Paulo: Unesp, 1998.

Page 121: Capítulo V: Análise do material

121

falante. Mesmo em discurso da prosa extra-artística – de costumes, da ciência, retórica –

há uma orientação para o já-dito, para o conhecido, o que quer dizer que a orientação

dialógica é um fenômeno próprio a todo discurso. A crítica que faz à Lingüística e à

Filosofia da Linguagem de sua época é a de que tenham se detido apenas na forma

composicional da construção do discurso e do estilo, este entendido como um contexto de

figuras de estilo – tropos – dos quais o enunciador se apropria para compor a sua locução

individual71. Seria como a síndrome de Procusto, uma metáfora para a necessidade que os

formalistas tinham de se ajustar a um modelo externo. Ou quando o olhar dirigido para a

obra a vê como um todo individualizado, uma unidade verbal, ou seja, a enunciação. Essa

individualização da língua geral cria o estilo que Bakhtin (1998, p. 80) chama de

lingüística das enunciações, pautada nos fundamentos saussureanos: um “sistema de

linguagem única e o indivíduo que fala nessa linguagem”.

Essa limitação retira o sentido concreto e histórico e, conseqüentemente, abandona a sua

natural dialogicidade interna, posto que “o discurso nasce no diálogo como sua réplica

viva, forma-se na mútua-orientação dialógica do discurso de outrem no interior do objeto.

A concepção que o discurso tem de seu objeto é dialógica” (p. 88/89). Isso significa que a

dialogicidade interna do discurso (tanto na réplica quanto na enunciação monológica)

penetra sua estrutura, seu conteúdo semântico e estilístico, constituindo-se num único

objeto.

Em oposição à língua abstrata, para Bakhtin as normas são relativizadas pela força criadora

da vida da linguagem. A linguagem comum e única do sistema de normas lingüísticas cria,

no interior do plurilingüismo, um núcleo sólido e resistente da linguagem literária

oficialmente reconhecida, pondo em confronto forças centrípetas e centrífugas que são da

natureza da linguagem. Por isso ele afirma a necessidade de construir outra concepção de

discurso e de gênero, em que caiba a vitalidade plural plurivocal do discurso romanesco

(1998, p. 81):

Tomamos a língua não como um sistema de categorias gramaticais abstratas, mas como uma língua ideologicamente saturada, como uma concepção de mundo, e até como uma opinião concreta que garante um maximum de compreensão mútua, em todas as esferas da vida ideológica.

71 Essa crítica dirige-se principalmente aos formalistas, cujo método para a análise literária utilizava a retórica formal e seus enquadramentos de classificação para o estudo da Estilística, como, por exemplo, os tropos, que são procedimentos estilísticos e lingüísticos inerentes ao discurso do orador.

Page 122: Capítulo V: Análise do material

122

Portanto, a compreensão ativa supõe uma participação-agente na interlocução e, logo, a

presença pressuposta internamente de um discurso-resposta; por isso, a importância de uma

atitude responsiva configura antecipadamente o discurso que se realiza.

Ora, se pensarmos que alguns projetos pedagógicos de alfabetização não trabalham com

essa hipótese discursiva, abrem-se possibilidades de uma tendência de orientação para a

exterioridade do discurso, sua forma composicional, absolutizando e neutralizando sua

ocorrência, situando-o na convencionalidade. Assim, é erradicada nessas metodologias de

aprendizagem da escrita qualquer outra presença que desestruture a convencionalidade.

Linguagens que circulam histórica e socialmente nos contextos dos aprendizes e que

participam do multidiscurso social não têm acesso, no espaço desses projetos educacionais,

para compor a imagem do objeto, isto é, sua apresentação, impregnada que é naturalmente

pelo plurilingüismo que caracteriza o discurso. No máximo, suas presenças garantem uma

grande dose de modernidade. Bakhtin considera o plurilingüismo como um conjunto de

diferentes linguagens que compõem o discurso do prosador-romancista (1998, p. 107), e

acrescenta que, devido à diversidade de seleção e constituição dos falares do

plurilingüismo, as linguagens não se excluem umas às outras, mas se cruzam e se

entrelaçam de diversas maneiras. Essa perspectiva permite ampliar o conceito de

plurilingüismo, nele incluindo, além das linguagens verbais, as visuais, as

sonoras/musicais, as gestuais etc., para a construção do discurso, já por natureza plural.

Considerando essas reflexões bakhtinianas, podem-se tomar hibridismo e hibridização

como fatores responsáveis pela amplitude dialógica que o discurso propicia. Desde o

momento em que as condições de existência desses discursos internos e externos são

reconhecidas, a hibridização discursiva promovida pela interlocução reúne um conjunto de

falas, de linguagens e de ações aparentemente díspares, mas que, no evento de linguagem,

se configuram harmônicas.

Para Bakhtin, o significado neutro da enunciação saussureana se opõe ao sentido atual, o

que vem explicitar a oposição entre língua e discurso e, em última instância, entre objeto e

sujeito, indicando que, no plano da língua geral, a compreensão é passiva e se faz

distanciada do sentido, interessada que está na clareza, na força da persuasão e na

evidência. Essa discussão leva em conta, evidentemente, a importância da resposta como

princípio gerador do sentido e da compreensão ativa, sendo esse seu caráter responsivo: “A

Page 123: Capítulo V: Análise do material

123

compreensão e a resposta estão fundidas dialeticamente e reciprocamente condicionadas,

sendo impossível uma sem a outra” (1998, p. 90) Alguns teóricos da literatura que

comungam dos princípios da estética da recepção têm se aproveitado desse relevo dado à

compreensão responsiva para confirmar seu fundamento, que é a centralidade no leitor

produtor de sentido.

Nesse capítulo do livro que comento, o autor desenvolve uma teoria do estilo poético e do

estilo de prosa romanesca, polarizando algumas posições antagônicas, contrapondo outras,

e deixa claro que, ao fim e ao cabo, há um plano comum, o plano do romance, em que o

plurilingüismo e a pluridiscursividade das linguagens se relacionam, o que equivale a dizer

que há uma intencionalidade na linguagem literária que ultrapassa os índices puramente

lingüísticos, no dizer de Bakhtin, resíduos fossilizados que perderam sua força intencional.

Criada essa dimensão de coexistência, é possível situar numa mesma ordem fenômenos

aparentemente díspares e metodologicamente heterogêneos, como dialetos profissionais e

sociais, concepções de mundo e obras individuais, entre outros. Esse aspecto é vital para a

perspectiva metodológica do projeto bakhtiniano, uma vez que a diversidade e a amplitude

são marcas de seu pensamento, essência de um olhar panorâmico e abrangente, atento à

orientação intelectual do plano em que atua.

Como decorrência, essa dialogicidade de linguagens pode resultar em relações particulares,

percebidas como pontos de vista. Vale dizer, a diversidade de linguagens que pode conter a

prosa romanesca é traduzida por formas apropriadas e redirecionadas pelo autor, embora a

sua liberdade esteja vinculada à realidade do herói. Considerando a intencionalidade da

linguagem literária, “sua orientação viva sobre seu objeto” (1998, p. 90), pode-se dizer que

não se conservam mais formas e palavras neutras, sem responsável algum, e a língua torna-

se acentuada, transpassada de intenções, prenhe das intenções alheias. Além disso, a

consciência lingüística viva se orienta ativamente para o plurilingüismo e convive com

essa multiplicidade de linguagens de maneira pluridiscursiva, isto é, onde as linguagens

possam se contrapor, se tensionar, onde tenham uma vida ativa dada pelo olhar estrangeiro

(1998, p. 102):

...tão logo se descobriu que estas línguas não só eram diferentes, mas também múltiplas, e que os sistemas ideológicos e as abordagens do mundo, indissoluvelmente ligados a elas, se contrapunham entre si ao invés de permanecerem lado a lado, terminou seu caráter peremptório e

Page 124: Capítulo V: Análise do material

124

de predestinação, começando, por outro lado, entre elas, uma orientação seletiva e ativa.

Considero essa análise bakhtiniana sobre a vida estilística concreta do discurso um ponto

fundamental para sua incorporação à minha perspectiva sobre as linguagens visuais,

trazendo-as ao conjunto múltiplo de línguas do discurso e integrando-as à presente

discussão.

Situado em oposição ao prosador, o poeta se isola na responsabilidade única do discurso

monológico, da palavra única, da retirada do caos que caracteriza a linguagem literária

contemporânea; o prosador, ao contrário, é tomado pela sua linguagem que se aproxima,

gradualmente (ou não), do autor e da sua instância discursiva, observando-se: 1°-

explicitação das intenções semânticas do autor; 2°- a acentuação de sua individualidade

como forma de explicitação ou refração das intenções; 3°- refração (ou não) das intenções

do autor, pelo afastamento de sua instância lingüística; 4°- apresentação de elementos

distantes das marcas da individualidade autoral, o autor apenas mostra, são inteiramente

objetais.

A possibilidade de a obra literária poder conceber e traduzir os seres comuns deu uma

dimensão significativa às individualidades e, conseqüentemente, um valor social ao

indivíduo, à sua intimidade. Esse modo de elaborar e dar sentido à subjetividade direciona

a perspectiva bakhtiniana para uma sutil, mas crucial, diferença do olhar sobre a

construção do sujeito mesmo pós-estruturalista, ou seja, o sujeito em Bakhtin não é um ser

móvel e constituído pelo lugar que ocupa. Além disso, a proposta pós-moderna de que a

linguagem não constitui realidade, mas suas versões, quantas forem as leituras sobre ela, e

que o sujeito se realiza pelo outro, não encontra (infelizmente para alguns) inteiro respaldo

no pensamento bakhtiniano, uma vez que, para ele, a subjetividade individual está em

constante processo de acabamento, ou, mais precisamente, há sempre um ser inacabado

que se faz na interação com o outro, portanto, em exercício com uma parte de si que já

existe, mas que está em constante processo de se fazer. Eis aí o duplo movimento,

centrípeto e centrífugo, de forças constitutivas da subjetividade.

Page 125: Capítulo V: Análise do material

125

Prova dessa importância é a interdição, pelos cânones religiosos do século XIX e início do

XX no Brasil, da leitura de romances que poderiam iluminar os desejos femininos72. Ainda

na Europa, lembre-se dos romances de Rousseau no século XVIII, que fisgavam os leitores

mais comuns e lhes traziam a vida em livro. Há interessantes pesquisas73 sobre a forte

influência do romancista nas decisões da família pequeno-burguesa oitocentista na França.

No Brasil contemporâneo das décadas de 1960-70, a perda da autoridade poética tem sua

outra face na forte presença da crônica, como o gênero literário que poderia traduzir, não

só a opção do leitor comum que se afastava gradualmente de uma leitura mais demorada e

complexa – seja porque a sociedade se organizava cada vez mais em torno de mídias mais

ágeis, seja por questões econômicas de acesso ao livro –, como também pela natureza do

gênero, que retrata o indivíduo como herói, num cenário com poucas situações, em forma

de paródia ou não, podendo nele incluir-se um valor moral, um ensinamento na vida

cotidiana. A verdade é que a crônica é a face literária do jornalismo impresso, e assim

estabilizou-se com certas características e propriedades de um gênero capaz de reconhecer,

nas suas personagens e situações, o leitor comum. Ocupavam um lugar de relevo, nos

grandes jornais brasileiros de época, as esperadas e deliciadas crônicas de Carlos

Drummond de Andrade, Rubem Braga, Fernando Sabino, Nelson Rodrigues, Otto Lara

Resende, Clarice Lispector, Stanislaw Ponte Preta e outros tantos seletos escritores, vários

desses com obras nos gêneros romance ou poesia. Como conseqüência natural, o gênero

crônica foi sendo apropriado pelos processos de ensino-aprendizagem e, assimilado

inteiramente como um material didático, foi introduzido nos livros escolares de língua

portuguesa, principalmente e a partir da década de 197074, tempo de influência

determinante dos estudos sobre as teorias da comunicação e da informação.

Hoje essa marca do prosaísmo cotidiano de que nos fala Bakhtin (1934-1935) é sentida na

escola também pelos estudos de jornal, como suporte que apresenta uma variedade de

gêneros e tipos de texto para escolha dos leitores; além disso, acrescentem-se os textos de

Internet, dos orkuts, dos blogs, toda forma de escrita que assimila a vida diária e faz desse

prosaísmo o lugar de existência do sujeito comum. Da mesma maneira, esses textos estão

sendo assimilados no interior da escola em formas renovadas de escrita. 72 Ver a esse respeito PAIVA (1997). 73 Ver, por exemplo, DARNTON (1986) (1996). 74 Ver a esse respeito trabalho apresentado na XXII Reunião Anual da ANPEd (Associação de Pós-graduação e Pesquisa em Educação) de 1999 e posteriormente publicado em Belmiro (2000).

Page 126: Capítulo V: Análise do material

126

E a poesia? Em texto que quer entender e explicar a proposta bakhtiniana na definição do discurso

poético, Tezza (2006, p. 235-254) discorre sobre a relação da poesia com a prosa

romanesca, enfatizando que a distinção entre esses discursos é a marca de autoridade da

palavra poética, isto é, a força discursiva centrada exclusivamente na palavra do autor. Sua

análise diz respeito à contraposição entre a autoridade da poesia e à democracia do

discurso polifônico do romance e apresenta um interessante aspecto da crítica literária em

geral, e especificamente a brasileira, a saber, um desconforto com a perspectiva

centralizadora e autoritária da palavra poética. A história das lutas democráticas, no

passado recente brasileiro, e da sociedade contemporânea como um todo, para ele justifica

a dificuldade com um certo modo de compreensão da palavra poética. Um alerta

importante de Tezza está na atenção para não fundir num mesmo plano a natureza da

linguagem com a mesma lógica e o mesmo imaginário da vida política e cotidiana. Essa

atitude é fundamental para que se possa empreender um mergulho na natureza constitutiva

da linguagem, nos seus modos de apropriação, desvinculando-se da questão temática, esta

sim, marcada essencialmente por elementos contextuais.

A contraposição entre discurso prosaico e discurso poético, que esse autor revela do texto

bakhtiniano acima citado, aponta para um aspecto valioso para a análise que faço das

múltiplas possibilidades de relação da palavra escrita com as imagens, na medida em que

se renova a compreensão à autoridade da palavra e permite, com isso, relativizar o poder

dos usos sociais da escrita frente a outras linguagens. Bakhtin informa que as palavras

autoritárias podem encarnar conteúdos diferentes: o autoritarismo como tal, a autoridade, o

tradicionalismo, o universalismo, o oficialismo etc. Tezza, em primeiro lugar, observa que

Bakhtin define o signo como signo duplo e, para isso, recupera o sentido de dialogismo

interior como um traço duplo da vida da linguagem, em que há pelo menos dois pontos de

vista ideologicamente estranhos em ação. Em seguida, lembra que a unidade lingüística,

defendida por lingüistas, é uma construção social e histórica, não sendo um dado natural da

linguagem. Portanto, essa dialogicidade natural da linguagem se realiza mesmo com um só

enunciador gramatical. Ademais, confirma que a palavra escrita é o lugar da “centralização

da linguagem”, ação das forças centrípetas, e carrega consigo a idéia de permanência e

eternidade que lhe confere um valor de verdade, resultando, daí, sua autoridade. Se, por um

lado, o discurso romanesco, nascido da palavra escrita, refrata e relativiza a autoridade a

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127

ela imposta, por outro lado, o discurso poético procura justamente o seu lugar como a

palavra da autoridade.

Para compreender essa autoridade – “Na poesia, o discurso sobre a dúvida deve ser

indubitável”, palavras de Bakhtin (Tezza, p. 247), – e não confundi-la com a idéia de uma

autoridade imanente que a todos causa aversão, Tezza lembra que a poesia ritualiza a

linguagem, sendo essa a sua superioridade e, implicitamente, sua autoridade. Essa

ritualização pode advir de uma perspectiva de sacralização da palavra (vínculo com Deus,

com a Natureza), de irrealidade no modo de aproximação com o mundo concreto (a poesia

é o irreal, o não-ser75), de uma visão do poeta como um ser mais velho (os velhos são

sábios, na palavra do poeta Elliot), mas o que a torna encantada é o poder de a palavra

poética dizer o homem, centralizando sua força justamente no homem que fala sua palavra.

A luta em busca da palavra poética teve, no movimento teórico do formalismo russo do

início do século XX, uma forte tendência em se afastar da língua prática da prosa e marcar

pelo estranhamento sua posição diante da linguagem do cotidiano. A busca da palavra

poética distanciada do senso comum tem outra importante via de expressão nas propostas

do movimento teórico dos concretistas brasileiros, que buscam, entre outros princípios, a

essencialidade do sentido pela forma que a palavra sugere e pelo espaço que ela ocupa, a

visualidade da palavra é o seu sentido76. Vêem-se, assim, as décadas de 1960-70

marcando, no Brasil, tanto na prosa quanto na poesia, uma vigorosa produção literária.

Para Bakhtin, porém, o plurilingüismo que marca esse homem descentrado do poder de sua

linguagem é que dá vida e reconhecimento à linguagem artística da prosa romanesca como

expressão de autoridade. Essa perspectiva bakhtiniana tem sido apropriada pelos teóricos

da pós-modernidade, dando-lhe uma feição política e filosófica na compreensão do

movimento de fragmentação do sujeito ocorrido no último século, e matizando sua posição

privilegiada e autoritária em relação ao conhecimento. A dessacralização da imanência

como conceito que define a base do conhecimento humano faz a linguagem ter que buscar

outro lugar onde possa ser explicada e se reconhecer. Se o sujeito se constitui pela

linguagem (pois é ela que lhe dá acesso ao entendimento do mundo), essa crise da

75 Lima (apud Tezza, 2006, p. 248). 76 Campos (2000), já citado na introdução da tese. Além disso, para uma abordagem desse assunto em relação aos materiais didáticos de Língua Portuguesa, ver Belmiro (2004).

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128

humanidade, pelo menos da sociedade Ocidental, resulta na crise do sujeito. A relatividade

como premissa para a produção do conhecimento instaura uma instabilidade que, para

Bakhtin, nada mais é do que a tensão de forças que define a linguagem, sendo nela que se

constitui o ser-evento. Portanto, o sujeito é um acontecimento de linguagem.

Tezza (2006, p. 252) lembra que o meio verbal, por parecer insuficiente, nos últimos anos,

para sustentar a autoridade poética, leva a poesia a tomar outras áreas de empréstimo,

convívio e auxílio para continuar presente (como os gêneros de poesia visual, videopoema,

poemas na Internet etc.): “a palavra poética, sempre ameaçada de um prosaísmo que nos

cerca de todos os lados, vai buscar refúgio em outros códigos e sistemas onde possa

sustentar sua autoridade isolada e isolante”. Essa afirmação explicita uma categoria

bakhtiniana que, ajustada às condições de existência de linguagens no mundo

contemporâneo, justifica e dá sentido à multiplicidade de formas próximas e/ou

entrelaçadas que fazem parte dos processos de criação de linguagem. Bakhtin (1998, p.

156-163), a propósito do modelo de criação de linguagem no romance, reúne todos os

procedimentos em três categorias: hibridização, inter-relação dialogizada de linguagens e

diálogos puros. E lembra que essa divisão é para efeito teórico, uma vez que elas se

realizam sempre mescladas num tecido literário único.

O que vem a ser hibridização? É a mistura de duas linguagens sociais no interior de um único enunciado, é o reencontro na arena deste enunciado de duas consciências lingüísticas, separadas por uma época, por uma diferença social (ou por ambas) das línguas [...] Pode-se realmente dizer que, no fundo, a linguagem e as línguas se transformam historicamente por meio da hibridização, da mistura das diversas linguagens que coexistem no seio de um mesmo dialeto, de uma mesma língua nacional, de uma mesma ramificação, de um mesmo grupo de ramificações ou de vários, tanto no passado histórico das línguas, como no seu passado paleontológico, e é sempre o enunciado que serve de cratera para a mistura.

Acrescenta ainda que, para atualizar a linguagem no hibridismo literário, é preciso mais

que duas vozes (bivocal), mais que dois acentos individuais (como na retórica); o

hibridismo é bilíngüe, pois inclui duas consciências, em duas épocas, e um enunciado no

qual essas consciências se enfrentam e lutam. Dessa forma, o autor amplia o campo de

abrangência dessa categoria, de forma que as diversas línguas que participam da cena

literária possam existir no romance:

Page 129: Capítulo V: Análise do material

129

O hibridismo romanesco é um sistema de fusão de línguas literariamente organizado, um sistema que tem por objetivo esclarecer uma linguagem com a ajuda de uma outra, plasmar uma imagem viva de uma outra linguagem.

As variadas formas de aparecimento do hibridismo permitem uma elaboração sofisticada

de linguagens em diferentes tons e acentos. Nesse sentido, são fundamentais a expansão e

o aprofundamento do horizonte lingüístico, aguçando nossa percepção das diferenciações

sócio-lingüísticas, além de referendar um conceito caro a Bakhtin, qual seja, o dialogismo

interno que toda forma de hibridismo, seja inconsciente ou conscientemente, naturalmente

incorpora.

Do ponto de vista das relações entre as linguagens artística e literária, Arbex (2006, p. 17-

62) analisa diferentes tendências teóricas e indica uma inclinação original para a superação

de uma abordagem marcadamente polarizada por uma conceituação que preza a relação

binária. Cito Chazaud & Sichère:

a partir do momento em que a pintura e a literatura não são mais consideradas como funcionando apenas em espelho, relações mais abertas se instalam. Entre a falta e a sua transferência. Entre o sintoma e a translação operada. Entre fantasma e sua interpretação performativa. Num ponto de fuga surge então a possibilidade de relações de um novo gênero entre pintura e literatura. De um gênero por completo, certamente...(Apud Arbex, p. 34).

O descortinar de um novo gênero entra em conformidade com as inquietações por que vêm

passando as práticas literárias e artísticas no último século, sinalizando condições próprias,

desejadas por um ponto de vista exploratório, que vem aos poucos se tornando mais

sistemático e intenso. Essa situação permite descortinar horizontes mais maleáveis aos

projetos de interdisciplinaridade, em que escrita e imagem sejam abordadas por uma

atividade estética que atravesse o caráter irredutível de cada um desses pólos. A

hibridização, aqui indicando um tipo de atividade aberta para um novo gênero entre, abre

um campo de interrogações que permite o livre pensamento sobre novas modalidades

estilísticas, o acesso a diferentes materialidades que traduzam a riqueza gráfica de ambas

as linguagens e a experimentação de linguagens a partir da superação dos procedimentos

lógicos da escrita ocidental. É o que nos confirma a pesquisadora Arambasin (apud Arbex,

2006, p.40):

Page 130: Capítulo V: Análise do material

130

O estudo da hibridez dos gêneros revela-se ainda mais pertinente hoje, já que a presença da arte nos ensaios, ficções críticas ou autobiográficas, narrativas biográficas e romances policiais, oscila entre os registros culto e popular para fazer surgir um sentido inesperado e, de maneira geral, visa transgredir as categorias disciplinares...

Essa mudança de perspectiva vem ao encontro de alguns dos meus pontos de vista77 sobre

a hibridização contemporânea em diferentes produções culturais e educacionais. As

relações cada vez mais próximas entre a linguagens verbal e a visual, seja no cinema, nas

instalações de artes plásticas, nos livros de literatura infantil, além de variados materiais

didáticos, mostram uma interessante diversidade na combinação dos conteúdos temáticos e

das formas composicionais, como, por exemplo, a recuperação do texto poético no interior

das imagens visuais, bem como a poesia implícita nas imagens dos livros de literatura

infantil. A contaminação poética na prosa e a interferência da prosa na poesia penetraram

nas imagens de livros infantis, fazendo desse gênero um ponto de encontro, no sentido

mais essencial do poético. Meu interesse em usar essa categoria, portanto, se justifica pela

sua importância em ampliar o horizonte de inclusão, não somente lingüístico, mas de

outras linguagens, como, por exemplo, as imagens das artes plásticas, da propaganda, das

histórias em quadrinhos e todas as que dialogam entre si e com a linguagem verbal, nos

textos (seja verbal ou visual) de literatura infantil e nos livros organizados com a clara

finalidade de alfabetização infantil.

Ora, se observarmos que palavra, imagens, música e um conjunto de outras linguagens

estão cada vez mais mesclados, produzindo formas inusitadas e sentidos insuspeitados,

pode-se compreender melhor Bakhtin, quando diz que o problema não está nas formas

composicionais, mas na concepção de linguagem.

Certamente, as marcas discursivas da prosa romanesca, vistas como mais democráticas,

abrem um campo de discussão extremamente fértil para as relações imagem e texto verbal.

Considerando que a presença do poeta se distingue por uma postura de afastamento frente

às formas alheias ao seu projeto discursivo, a acentuação do prosador pode se distinguir

pelo aproveitamento das formas contextuais que dão existência ao discurso romanesco. O

prosador não purifica discursos, não destrói os germes do plurilingüismo social, não

elimina figuras lingüísticas, modos de falar, formas de linguagem que ressoam no seu

próprio discurso; além disso, não afasta posições sociais, valores, responsabilidades. Essa é 77 Ver Belmiro et alli (2003).

Page 131: Capítulo V: Análise do material

131

a estilística sociológica proposta por Bakhtin e que vem construindo uma visão mais ampla

acerca dos discursos literários e extraliterários que são incorporados pela prosa romanesca.

É nesse caminho e sob esse ponto de vista que as linguagens visuais, ou mais precisamente

as diferentes imagens, podem ser vistas e incorporadas ao processo analítico dos materiais

que utilizam as imagens e os textos verbais nos ambientes escolares e que dão margem a

pensar numa possível renovação de textos e outras linguagens em projetos pedagógicos de

alfabetização. Na linguagem literária, essa diversidade intencional torna-se plurilíngüe, isto

é, um diálogo entre linguagens; por outro lado, a ampliação e a transposição dessa

perspectiva podem conferir plausividade ao diálogo entre as linguagens existentes num

mesmo contexto, o pedagógico, e, em especial, num mesmo gênero, o didático.

A pesquisa que ora desenvolvo quer buscar, justamente na nova dinâmica decorrente da

insuficiência da autoridade prosaica, o elo que faz com que outras linguagens (e, no caso

de minha pesquisa, a linguagem imagética) assumam uma co-participação nos processos de

produção do conhecimento, nos movimentos de expressão artística, nas atividades práticas

concretas da vida e nos processos de aprendizagem da escrita. A mútua influência dos

espaços de autoridade que definem a natureza da linguagem em Bakhtin – mesmo que ele

afirme que a linguagem poética tende a se fechar em casulo – deixa emergir uma extensão

e um aprofundamento de usos que vão desde o monologismo da linguagem poética ao

plurilingüismo do discurso prosaico (não vendo nisso uma postura evolutiva e em linha

reta, mas elos intercambiáveis que apresentam diferentes possibilidades de tornar as

relações entre as linguagens algo vivo e representativo do momento em que vivemos).

A gradação que vai do pólo mais inflexível da linguagem a um outro o mais aberto

possível, que com gosto absorve as manifestações contextuais, não significa que os dois

não sejam plurilíngües, mas, sim, que o modo de relação muda. Com isso, quero dizer que

é preciso atenção para verificar se a pluridiscursividade natural dos livros de literatura

infantil, por exemplo, sempre resulta em formas de linguagens renovadas e se, na outra

ponta, é tendência dos livros didáticos se constituírem como um gênero mais reativo a

inovações. Seria uma atitude precipitada polarizar a discussão nos dois gêneros e uma

tendência redutora, frente à riqueza de linguagens, situar o problema confrontando formas

acanhadas e formas vigorosas de recriação do sentido, embora o suporte/gênero seja uma

instância importante de constituição de linguagem. Aposto, contudo, na idéia de que a rica

extensão de usos entre as linguagens verbal e visual e as ações com as linguagens

Page 132: Capítulo V: Análise do material

132

decorrentes da pluridiscursividade explicitam gradações que vão, desde um quase nada, a

formas surpreendentes e impensadas: irrepetíveis, com Bakhtin.

Em resumo, a perspectiva que dirigirá o olhar da pesquisadora é a visão bakhtiniana de

linguagem constitutiva e seus conceitos, tais como, dialogismo, plurilingüismo,

pluridiscursividade, hibridismo e gênero do discurso.

Page 133: Capítulo V: Análise do material

133

○ 4 ○ Os Sistemas de Escrita

Poema desenhado No meio da página escrevo ao acaso a palavra MENINA

E, à sua magia, um caminho abre-se Para ela andar.

E como houvesse brotado a seus pés um arroio espiador,

uma ponte estendeu-se para ela atravessar.

Mas a menina

agora parou e do meio de uma ponte namora encantadamente nas águas

a graça inacabada de seu pequeno rosto feito às pressas.

Às pressas... (nem tive tempo de lhe dar um nome...)

Mário Quintana

Este capítulo tem a finalidade de elaborar um caminho reflexivo sobre as relações entre a

escrita e a imagem, com o intuito de compreender os sentidos dos atuais embates sobre as

conseqüências da predominância de uma cultura visual. Com isso, talvez se possa

contribuir para explicar dificuldades por que vem passando a escola, no seu exercício de

tornar os alunos reais produtores de texto.

A visão simplificada da concepção de linguagem, tomando a linguagem oral como ponto

de partida para refletir sobre a escrita e vendo-a como transcrição da fala, explicita o elo

fundante para entender a escrita a partir da unicidade e linearidade da base do alfabeto que

utilizamos - o grego -, além de aceitar a finalidade racional que o logos privilegia. Nesta

direção, as produções de conhecimento advindas do saber Ocidental esqueceram, ou

mascararam, a riqueza de sentidos derivada da escrita do pictograma e do ideograma, uma

vez que tratam a produção de sentidos sob outra ótica, mais heterogênea, multidirecional,

apoiada na síntese de elementos integrados estrategicamente pela noção de superfície, isto

é, um espaço que, sendo entre, é parte, não um espaçamento que distingue a distância, mas

a total presença que marca a acentuação dos elementos no todo, em rede. Dagognet (apud

Arbex, 2000, p.22) supera a divisão clássica de lingüistas, historiadores e filósofos entre

língua e imagem na relação de comunicação, o que torna a imagem inferiorizada como

decalque do real, e aponta a superioridade da voz em relação à escrita, considerada como

representação da fala, e decide por outra forma de compreender a superioridade da escrita:

Page 134: Capítulo V: Análise do material

134

“A expressão como conquista, a importância do desenho e da representação, em suma, uma

defesa da escrita, a glória tanto estética quanto científica, da Figuração”. Apresento uma questão polêmica, mas que considero fundamental e atual, no âmbito da

alfabetização. Refiro-me ao que se vem considerando como o mito da origem verbal da

escrita, em detrimento da presença da imagem na sua formação. A conhecida perspectiva

que aceita a evolução do pictograma ao ideograma, indo para o fonograma e, finalmente,

para o sistema alfabético tem recebido severas críticas por parte dos pesquisadores que

desejam renovar um olhar marcado pelo etnocentrismo, que outorga distinção ao

conhecimento ocidental, principalmente o europeu. Isso não impede, porém, de haver

concordância com o fato de que a etapa determinante da formação da escrita é a conversão

do ideograma em fonograma.

○ 4.1 A origem da escrita

Pesquisas realizadas desde a segunda metade do séc. XX, predominantemente a partir da

década de 1970, vêm apontando diferentes caminhos que pretendem superar preconceitos e

abrir diálogo com formas de inteligibilidade de outros sistemas de escrita, sua história e

sua permanência entre os povos. Michalowski (1994, p. 62) mostra que há um número

bastante grande de povos que usam sistemas de escrita não alfabética que têm oferecido

vantagens sobre o alfabeto (Carrol, 1972, apud Michalowski). Além disso, divulga

questões apresentadas em 1952 pelo arqueólogo soviético Yuri Knorozov, sobre a escrita

antiga na América Central, cujo texto só foi tornado público em 1991. Nele, o pesquisador

aponta evidências de uma total inadequação da aplicação do modo de organização da

escrita logocêntrica, cujo esquema evolutivo culminaria com o fonetismo. Mostra que as

escritas chamadas hieroglíficas contêm elementos fonéticos quase desde a sua origem e

que a pureza do sistema dos pictogramas de fato nunca existiu. Essa também é a tese de

Jean-Jacques Glassner78, cujos estudos sobre a escrita suméria corroboram a coexistência

nela de traços fonéticos silábicos. Mignolo (1994, p. 98), em pesquisa sobre a escrita

asteca, lembra o trabalho de Galarza para mostrar que a escrita asteca-nahuatl tinha alguns

dispositivos fonéticos.

78 Anotações feitas a partir de participação em seminário realizado em 25 de outubro de 2005, na disciplina Antropologie de l’écriture, coordenada pela professora Béatrice Fraenkel, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Ver seu livro L’Invention du cunéiforme: écrire à sumer. Paris, Edition du Seuil, 2000.

Page 135: Capítulo V: Análise do material

135

Michalowski continua seu investimento numa outra abordagem acerca dos sistemas de

escrita, mostrando que o vazio de explicações que há na passagem da escrita suméria para

o sistema grego não outorga a essa escrita a supremacia do alfabeto, devido a uma possível

superioridade de acabamento do sistema. E acrescenta (p. 60):

No Oriente Próximo, e eu suspeito que em outros lugares, a escrita não foi usada primeiramente como veículo para a preservação de uma tradição oral própria: quase no pólo oposto, foi uma nova forma de comunicação que provocou uma nova semiótica e novas formas de discurso (Michalowski, 1990). Esse, acredito, é o problema fundamental que está na raiz de qualquer discussão da escrita antiga. A diferença entre Mesopotâmia, Egito, ou Mesoamérica e Grécia está posta não tanto na tecnologia de escrita, “hieroglífica” vs. alfabética, mas no modo no qual a escrita foi usada79.

Entre outras questões, o pesquisador declara que essa nova tecnologia, a escrita, foi vista

indevidamente durante muito tempo como uma bandeira da democracia grega – e do

mundo ocidental –, que permitia a qualquer um dominar o alfabeto simples e escrever.

Ressalta que a oposição entre oralidade e escrita é ultrapassada, justificando tal redução

por uma educação institucionalizada que enfatizava a escrita como um componente

prioritário. A dicotomia entre oralidade e escrita, conseqüentemente, significava a presença

ou ausência de uma aprendizagem institucionalizada. A separação de palavras no fluxo da

escrita é um aspecto de suma importância para o começo da quebra do elo que sustentava a

lógica da relação entre escrita e oralidade. Sem precisar ler em voz alta para dar sentido ao

texto, podia-se olhar para as palavras separadas e lê-las silenciosamente, como uma

imagem compreensível que se tornava inteligível para o leitor (p. 63).

Por outro lado, Michalowski afirma que, no momento, as crianças japonesas têm

apresentado freqüentemente uma intensidade muito maior de usos da escrita, em relação

aos jovens norte-americanos, e que parecem ser menores os problemas de leitura entre as

crianças japonesas. Esse fato atual revela a medida histórica em que o problema está posto,

indicando que essa questão parece ainda estar esperando um maior volume de juízo crítico

para sustentar um novo desenho teórico. Todavia, a posição do pesquisador tem o mérito

de não apontar o melhor ou o pior sistema de escrita, mas perceber que as vantagens e as 79 “In the Near East, and I suspect elsewhere, writing was not used primarily as a vehicle for the preservation of one’s own oral tradition: quite the opposite, it was a new form of communication that brought about a new semiotic and new forms of discourse (Michalowski, 1990). This, I believe, is the fundamental problem that lies at the root of any discussion of early literacy. The difference among Mesopotamia, Egypt, or Mesoamerica and Greece lies not so much in the technology of writing, “hieroglyphic” vs. alphabetic writing, but in the way in which writing was used”.

Page 136: Capítulo V: Análise do material

136

desvantagens dos diferentes sistemas de escrita e seus relativos méritos técnicos não são

tão importantes quanto as atitudes sociais sobre a escrita mantidas pelo povo que a usa. O

autor complementa (p. 64):

As diferenças entre a natureza da alfabetização em seus primórdios não estão nas próprias tecnologias, mas na construção social da alfabetização, na maneira pela qual a escrita era usada como um método de comunicação e controle nas várias sociedades80.

O estudo de Mignolo (1994) acerca da escrita e da colonização hispânica de um povo sem

alfabeto apresenta um quadro da limitação espanhola (portanto, européia) para

compreender o modo como os astecas e os incas reconstruíam seu passado e projetavam

seu futuro. A falta do alfabeto desnorteou a atenção dos brancos para o modo como

verdadeiramente se dava a escrita dos ameríndios. O autor mostra que os astecas tinham

não só uma sofisticada prática de escrita e comportamento verbal, quanto conceitualizações

complexas dessas práticas e comportamentos, e que a compreensão do texto desses povos

que não conheciam o alfabeto precisaria de uma lógica que não lidasse com o modo de

construção do pensamento logocêntrico. Por exemplo, como relacionar o conceito de

tempo, a partir da idéia de narrativa que constrói a memória de um povo, se a sua

organização temporal não parte da linearidade imposta pela colocação das letras e palavras

umas após as outras? Como entender que uma narrativa escrita possa se dar sem o

agenciamento das letras? As imagens que construíam o calendário, marca temporal dos

anos e meses, assim como os elementos que indicavam uma leitura da peregrinação, são

exemplos significativos de que a história podia ser construída por outras escritas, que não

só a escrita alfabética, a exemplo do calendário asteca: além de registrar o passado,

organiza os eventos humanos no contexto da ordem cósmica81. Comentando as pesquisas

do franciscano Juan Torquemada a respeito da origem dos astecas (ou Mexica, conforme

eles gostavam de ser chamados), da conquista do México e das atividades dos franciscanos

durante o séc. XVI, Mignolo (p. 100) afirma:

Foi difícil para ele, assim como para qualquer homem de letras espanhol, entender que as narrativas que registram o passado podiam funcionar independentemente da fala e de seu controle pela escrita alfabética e que a linguagem visual e as relações espaciais podiam ser perfeitamente

80 “the differences between the nature of literacy in early states lay not in the technologies themselves, but in the social construction of literacy, in the manner in which writing was used as a method of communication and control in various societies”. 81 Idem, p. 104.

Page 137: Capítulo V: Análise do material

137

compreensíveis para aqueles familiarizados com as convenções picturais82.

Portanto, pensar outra forma de fazer narrativa significa aceitar que a escrita dos

ameríndios, pictoideográfica, não significa somente coisas (eventos, crenças, idéias,

memórias), mas que, sem o agenciamento das letras, também pode fazer história. O

antropólogo aponta três formas escritas dos astecas de registrar o passado: a Tira de la

peregrinación, as árvores de família e genealógicas e, por fim, a demarcação espacial.

Esses três tipos eram usados como narrativas para a configuração da memória e da

localização. Por outro lado, concordar com a afirmação do pesquisador, de que os seres

humanos parecem formular conceitos de acordo com a regionalidade e a materialidade de

suas práticas culturais, é evitar incorrer no erro de perguntar, diz ele, como os astecas lêem

seus textos e de procurar um equivalente à leitura alfabética de textos escritos. Não existe,

para o povo Nahuatl, o verbo ler, mas algo como estar olhando as figuras enquanto alguém

conta uma história oralmente. Provavelmente os sentidos podem variar de acordo com

quem interpreta e para quem o intérprete trabalha, explicitando a importância das

condições de leitura e das relações de poder para a produção de sentido.

Essa também é a crítica de Christin (1995, p. 18) a Leroi-Gourhan que afirma que, para a

leitura das seqüências mitográficas arcaicas, havia comentários pronunciados frente aos

afrescos enquanto eles eram contemplados. Comentar enquanto se contempla parece ser

uma prática constante nas sociedades orais, mas parece ser uma afirmação ambígua, no

mínimo, que esses enunciados sirvam de tradução das imagens em palavras, por não haver

outro modo de compreendê-las. Christin lembra que essa prática se encontra menos nas

sociedades em que a fala e a imagem se completam segundo modalidades, algumas

variáveis, mas sem jamais se redobrarem em forma de redundância.

Acredito que esse modo de completude entre as imagens e a oralidade pode indicar duas

coisas: uma, que não havia uma sobredeterminação do oral sobre a imagem, mas uma

retórica própria da oralidade e uma organização própria de assentamento espacial das

figuras; outra, que a carga semântica das imagens e a retórica do texto oral fazem a história

dos ameríndios. Futuramente ver-se-á que a ideologia educacional da correção fará mesclar

a prática oral e a prática escrita, ambas baseadas na gramática e na retórica. 82 “It was hard for him, as well as for any Spanish man of letters, to understand that narratives recording the past could function independently from speech and its control by alphabetic writing and that visual language and spatial relations could be perfectly understandable to those familiar with the pictorial conventions”.

Page 138: Capítulo V: Análise do material

138

O estudo do padre jesuíta Acosta permite que ele faça, no séc. XVI83, em meados de 1590,

duas afirmações: a primeira, a de que o homem tem três diferentes modos de registrar suas

lembranças: pelas letras e escrita (cujos primeiros exemplos são o grego, o latim e o

hebreu), pela pintura (cujos primeiros exemplos Acosta descobriu em quase todas as

civilizações conhecidas) e pelas cifras e caracteres; a segunda, a de que nenhuma

civilização indígena usou letras, mas empregava tanto imagens quanto figuras. Sua

perspectiva, contudo, mostra uma linha evolutiva da história da escrita, localizando os

astecas depois dos chineses e os dois, anteriormente às letras e à escrita alfabética.

O estudo historiográfico de Mignolo sobre o significado de literati é bastante pertinente

para entender a dificuldade européia na compreensão de muitos significados dados pela

escrita numérica dos ameríndios, e que eram dados pela escrita alfabética na Europa.

Buscando a origem da palavra literati, ele mostra que o sentido de ler pela escrita

alfabética foi fixado a partir do sexto século, e que antes a idéia era de discernimento, mais

evocativo. Por isso, propõe compreender os acontecimentos de escrita no século XVI como

letramentos alternativos84. Comentando sobre a forma como eram organizados os eventos

e recordações importantes para o povo asteca, o autor noticia que o sujeito que imprimia as

informações era, ao mesmo tempo, escritor e pintor, e que essas informações eram

interpretadas (ou lidas) por experts, os letrados: “Eles lêem o mundo, ao invés de lerem a

palavra”85.

○ 4.2 Dupla natureza da escrita

Essa discussão se insere dentro dos estudos sobre a escrita que propõem uma abordagem

mais ampliada das relações da escrita com diversas áreas do conhecimento. É o caso das

pesquisas de Anne-Marie Christin, que relaciona artes plásticas e literatura, para ir à raiz

dos estudos sobre a origem da escrita e propor um recorte teórico a partir da sua dupla

natureza: verbal e gráfica. A autora privilegia os estudos sobre o ideograma para contrapor

à escrita logocêntrica e mostrar como o Ocidente, principalmente a França dos sécs. XIX e

XX e as diversas propostas poéticas do séc. XX em outros países, redescobre a escrita

83 Apud Mignolo (1994:101) 84 Hoje, vemos pesquisadores que querem compreender as novas formas de escritas contemporâneas, pensando também possíveis letramentos alternativos ou uma nova era midiática, como Gunther Kress e J.L.Lemke, entre outros. 85 “They read the world instead of reading the word”.

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139

ideográfica e solicita novas funções cognitivas aos leitores, novas práticas de leitura, pela

quebra da linearidade da escrita alfabética, pelo aproveitamento do espaço que participa

semanticamente da imagem, pela simultaneidade de entradas de leitura, constituindo,

assim, uma mobilidade de produção de sentidos inesperados e possíveis.

Em seus estudos, discute a idéia já cristalizada da origem verbal da escrita, além de não se

satisfazer com a mitografia antropológica de Leroi-Gourhan, e abre um campo de pesquisa

sobre a escrita que abarca a presença de ambos os sistemas, o gráfico e o verbal. Para ela, a

tese da filiação verbal da escrita ocultou por muito tempo as funções gráficas do sistema. O

que Christin quer dizer é que procurar uma origem da escrita na imagem, privilegiando aí

as imagens, é não compreender a imagem no que ela tem de específico, de característico,

de próprio como linguagem, e projetar sobre ela um modelo de explicação que se torna,

uma vez mais, linguageiro. É submeter as imagens a uma explicação de orientação verbal,

pois o espaço físico se torna invisível e as figuras, como representação do real, se

organizam em sistema como uma sorte de utopia paraverbal (p. 5). Deve-se, portanto,

entender a escrita como uma linguagem de dupla entrada: verbal e imagética, um estudo

semiótico ampliado, tendo cada uma as suas especificidades. Por isso, lança a proposta de

recuperar a importância da categoria superfície, aparentemente um espaço cego, e amplia a

concepção de escrita por dupla origem. Cito (1995, p. 11):

O que caracteriza essencialmente a estrutura da escrita é sua capacidade de ser mista: porque seu sistema se apóia em dois registros ao mesmo tempo, o verbal e o grafismo, mas também porque esses registros são inteiramente heterogêneos um ao outro86.

A experiência a seguir é exemplar do seu ponto de vista: a série de instalações feita por Jim

Hodges, numa exposição em Santiago de Compostela / Espanha, em dezembro de 2005.

Uma delas, chamada "New AID drug, 1988”, é uma pilha de papéis com fotocópias de

uma notícia de jornal sobre um novo produto farmacêutico contra a Aids. O artista faz

tantas fotocópias que o texto vai se apagando nas linhas, nas palavras, nas frases

decompostas que também abandonam seu sentido. Gradativamente, a natureza lingüística,

verbal do texto se transfigura esteticamente em formas dispersas, aleatórias, até encontrar

uma outra natureza e nos dar a olhar alguma coisa que acreditamos identificar: uma flor.

86 “Ce qui caractérise essentiellment la structure de l´écriture est sa mixité : parce que son système s’appuie sur deux registres à la fois, celui du verbal et celui du graphisme, mais aussi parce que ces registres sont foncièrement hétérogènes l’un à l’autre”.

Page 140: Capítulo V: Análise do material

140

Porém, são restos de letras, pedaços de parágrafos, rastros de pontuação, espaços vazios e

arrastados no papel, traços que vão recompondo formas imprevistas. Puro grafismo.

Essa característica gráfica não é vista somente na poesia, nas artes. A banalidade da

presença gráfica da linguagem nos lugares sociais, nas formas cotidianas do dizer

ultrapassa o patamar do que se imaginaria como o futuro da poesia, isto é, a ruptura da

linearidade fônica e da seqüência silogística aristotélica (sujeito, cópula/combinação,

predicado), para se encarnar nas formas juvenis de rebeldia, na internalização de uma outra

gramática, a verbovisual, na montagem cinematográfica que solicita do espectador

velocidade para exploração dos cortes e para criação de hipóteses no exercício pleno de

reconstrução de sentidos, enfim, uma orientação intelectual que se firma no solo do

diagrama / configuração.

Em seu livro L’Image écrite (1995), Christin abre uma discussão sobre a existência do

grafismo como constitutivo da escrita, ao lado do fonetismo, permitindo, com isso, o

investimento de semantização nas figuras, com valor de símbolo, e não como substituto

das coisas. Ela nos lembra87, por exemplo, que uma placa representando uma bicicleta e

sobre ela um xis não é compreendida como tal, e também não indica uma ausência, mas

significa uma interdição, uma ordem. Os pictogramas não serviam de ligação entre as

coisas e as palavras, mas sua abordagem destaca o fato de que, tendo conservado uma

aparência de figura, eles não sejam mais isso. O milagre da escrita, diz ela, começa a partir

desse momento. Sua tese, portanto, nega a origem da escrita como representação da fala e

reafirma seu nascimento por uma estrutura elaborada a partir da imagem na qual a fala

integrou os elementos de seu sistema compatíveis com ela88. Abordando diferentes autores,

tanto da Filosofia e da Antropologia, quanto das artes plásticas, a autora firma-se com um

ponto de vista que quer recuperar, da cegueira do espaço vazio, uma presença que

hierarquiza formas variadas, a ponto de tornar, esse vazio, um outro. Contrapondo épocas

em que o conhecimento humano propõe novas epistemes, a pesquisadora analisa o espaço

representado na imagem da pintura renascentista como expressão de uma metafísica, é o

invisível que se coloca pela presença do espaço. Além disso, o trompe l’oeil, a ilusão de

ótica que a perspectiva renascentista provoca, é, para ela, uma perversão das figuras,

embora uma definição científica do fenômeno refira-se a “um conflito perceptivo”. De

87 Le signe introuvable, p. 42 88 Arbex, p. 64

Page 141: Capítulo V: Análise do material

141

qualquer forma, há uma preocupação em mostrar que o estudo da imagem inclui não só a

figura, pois não revelaria a importância que o intervalo empresta na constituição de uma

escrita (1995, p. 20): “É esse pensamento do ‘fundo’, esse pensamento do vazio não ponto

neutro mas capaz de engendrar a seu turno uma ‘forma’ inédita, própria ao homem, e que

se inscreve como tal no mundo, que inventou a escrita”89 .

Esse foi, segundo Christin, um limite na estrutura teórica do pensamento de Derrida,

quando criticou o sujeito individualizado, centrado. O filósofo, introduzindo o outro na

definição do eu, não discute a escolha da ordem linear como índice decisivo da escrita. Seu

interesse no sujeito da enunciação o faz dispor do espaço como algo não percebido,

ausência, o não-consciente. Diz Christin (1995, p. 16) que “o que lhe interessa na linha é

aquilo que ele deduz de sua gênese, assim como lhe fazem supô-la: que ela seja uma marca

sensível da ausência”90. Essa percepção da linguagem a partir da relação do interlocutor

com o outro tem concordância com o ponto de vista bakhtiniano, para quem é na interação

que os homens se constituem. É bem verdade que a discussão proposta por Bakhtin toma

uma direção específica, na medida em que é a linguagem verbal que assume o centro de

seus interesses e, portanto, sua análise outorgará a ela a vitalidade de dar existência ao

homem.

Portanto, o intervalo que separa as figuras, longe de ser um tempo morto de que fala

Derrida, constitui sua dinâmica semântica, sua sintaxe. O que determina o valor semântico

do vazio pictural, isto é, dos espaços entre as figuras, é que, mesmo que as figuras sejam

inteiramente polissêmicas, ele mesmo é polissintático, permitindo variadas formas de

relação. Dessa forma, ao lado de uma polissemia das figuras, tem-se uma polissintaxe do

espaço, constituindo assim uma semântica espacial. Um exemplo significativo é a pintura

de Giotto que se traduz, junto com uma leitura narrativa das escrituras, por uma lógica

espacial que dá relevo aos elementos da cena. O efeito de presença que exercem os

marcadores espaciais atrai com ele o intervalo também como presença.

Conseqüentemente, algumas questões estão em jogo: uma delas é a evidência de que a

função narrativa torna-se mais difícil. Característica das leis da comunicação verbal, a

89“C’est cette pensée du ‘fond’, cette pensée du vide non point neutre mais capable d’engendrer à son tour une ‘forme’ inédite, propre à l’homme, et qui s’inscrit comme telle dans le monde, qui a inventé l’écriture”. 90“Ce qui l’intéresse dans la ligne est ce qu’il déduit de sa génese telle qu’on la lui fait supposer: qu’elle soit une marque sensible de l’absence”.

Page 142: Capítulo V: Análise do material

142

narrativa prevê um sistema fixo de signos e de sintaxe, que garante um ordenamento linear

e temporal, próprio do sistema alfabético. Em contrapartida, a escrita que credita

mobilidade de signos e de sintaxe autoriza diferentes leituras, umas até antagônicas a

outras, ou mesmo ambíguas. Christin (2006, p. 73) lembra adequadamente: “é notável, por

sinal, que a literatura chinesa tenha ignorado a epopéia e que tenha produzido romances

somente quando sua escrita explicitou um fonetismo que, em princípio, não lhe era

indispensável”. Se o vazio é necessário entre as figuras pintadas para que se constitua uma

história, é porque, em primeiro lugar, é uma marca de inteligibilidade, índice de uma co-

presença que reenvia o espectador, não à realidade dos seres pintados na tela, mas à sua

própria memória, humana, da qual a imagem propõe um testemunho (1995, p. 18-19). É

essa memória que é evocada pela tela que produz narrativa, que capta e devolve um modo

particular da forma como a cultura se preserva.

Outra questão de interesse refere-se à descrição pictural nos textos literários. Louvel

(2006) define iconotexto91 para organizar um modelo retórico de descrição pictural. Afasta

qualquer função pedagógica que se aproprie dos procedimentos da descrição em geral e

investe no que ela define como uma figura da figura, isto é, uma analogia entre artes, em

que a imagem no texto – a que vai ser descrita – será tratada por um procedimento de

translação, de passar de um lugar para outro, de uma linguagem para outra, de um código

semiológico a outro. A pesquisadora (2006, p. 196) afirma:

O iconotexto, como se viu, se coloca em situação de “duplo desligamento”: na “translação pictural”, diferentemente da tradução lingüística (passagem de um significante a outro, de mesma natureza, lingüístico), efetua-se a passagem de um significante (pictural) a um outro significante (lingüístico) de natureza diferente. Nesta translação midiática, todas as metamorfoses, todas as manipulações que o escritor quiser impor à obra artística serão permitidas.

Mesmo alinhada à tendência de Lessing, que classifica as artes do tempo e as artes do

espaço, a pesquisadora procura o que há de espacial na linearidade da escrita literária,

através de recursos lingüísticos de espacialização textual: a grafia de letras, os dêiticos, os

encadeamentos de narrativas, entre outros, a diagramação da página, os brancos

tipográficos, são efeitos de enquadramento que sublinharão a passagem da narrativa à

descrição pictural. Ao resultado do uso desses procedimentos ela chama de efeito de

91 Iconotexto: presença de uma imagem visual convocada pelo texto e não somente a utilização de uma imagem visível para ilustração ou como ponto de partida criativo. (nota da autora, p. 218)

Page 143: Capítulo V: Análise do material

143

imagem. Recupera os estudos de Derrida sobre a pintura para entender o efeito da moldura

que ele chama de efeito-parergon: “nem dentro, nem fora da obra: a moldura efetua a

passagem entre eles, aponta a obra como de-marcável” (p. 196).

É freqüente, na história das relações entre essas artes irmãs, uma servir de modelo para a

construção da outra, isto é, artistas pintam a partir de descrições literárias ou escritores

apresentam suas leituras das obras de arte através de textos poéticos, seja em prosa ou

poesia. Nesse caso, o que se faz ultrapassa a simples descrição de uma arte pela outra e

afasta a idéia da ilustração como tradução do legível. É claro que não se devem esquecer os

múltiplos exemplos da História da Arte que apontam inúmeras obras de arte que tomam

outra como parâmetro e que realizam comentários, referências, paródias, verdadeiros

estudos a partir das interlocuções travadas.

Historiadores da arte mostram que a integração da narrativa na pintura ocidental tem

intenso momento de elaboração de uma nova linguagem artística nas miniaturas das

iluminuras, que se destinavam, em princípio, a uma elite intelectual: são o que eles

chamam de campo de experimentação da pintura, laboratório de novos procedimentos.

Sterligov92 (1996, p. 8) explica:

A elaboração de uma nova linguagem artística – aquisição do espaço, experimentação de massas, de volume, de movimento etc. – se efetuou para muitos nas oficinas dos iluminadores. As funções de ilustração incitaram os autores de miniaturas para a narração, o discurso, os detalhes do real, para uma tentativa de transformar em imagem não somente o espaço, mas também a duração.

Isso justifica o empenho com que as imagens da Idade Média foram usadas para traduzir

textos e orientar os analfabetos na leitura das escrituras cristãs, com o peso do

convencimento retórico. O interesse evidentemente pedagógico da substituição da narrativa

composta por letras e palavras – alfabética – em narrativa com figuras muda o modelo

verbal por outro que também se organiza em torno do verbal. A preocupação com uma

explicação literal do mundo faz as imagens desse período, principalmente dos séculos XI e

XII, se submeterem à lógica do discurso. Do ponto de vista educativo, o uso das imagens

92 Vorona & Sterligov (1996): “L’élaboration d’un nouveau langage artistique –acquisition de l’espace, rendu des masses, du volume, du mouvement etc. – s’effetua pour beaucoup dans les ateliers des enlumineurs. Les fonctions d’illustration poussèrent les auteurs de miniatures vers la narration, le récit, les détails du réel, vers une tentative de rendre en image non seulement l’espace, mais aussi la durée”.

Page 144: Capítulo V: Análise do material

144

de diferentes formatos e tipos foi largamente difundido, adquirindo colorido próprio de

acordo com as épocas e ideologias.

Para a pesquisa em questão, desejo destacar que o processo por que passaram as imagens,

de intensa absorção de algumas qualidades discursivas, como a descrição, a narração e a

argumentação retórica, se espalhou por diferentes modalidades expressivas e de variadas

maneiras; o corte que proponho para o século XIX quer enfatizar o movimento ao

contrário, de as palavras se apropriarem, na visibilidade, do modelo da espacialidade:

principalmente a litogravura, por um lado, e a poética de Mallarmé, por outro, devolveram,

sob formas artísticas do plástico e do verbal, um modelo de visualidade letrada ou, dito de

forma condensada, verbovisual93. Se as imagens serviam para, na sua origem, o homem se

comunicar com os deuses; se, depois, o homem se serviu da imagem para tornar visível o

invisível; se a imagem da sociedade Ocidental absorve o logocentrismo e suas estruturas

discursivas; e se, mais ainda, o sistema de escrita alfabético se apropria das imagens para

seu uso no nível fonológico, em substituição às letras; então, expõem-se formas dinâmicas

de convivência e sempre renovadas no âmbito das diferentes formas de comunicação, das

expressões plástica, gráfica, literária, contribuindo para o aprendizado da cultura. Resta às

finalidades pedagógicas entender a importância de como melhor interpretar o momento

atual e traduzi-lo em ações didáticas.

Outro conceito que deve ser compreendido a partir do vazio intercalar é o de representação

do espaço. A profundidade de campo, que na Renascença tinha como desejo uma certa

forma de organização do mundo, é substituída pelo olhar do homem do século XXI, que

vê, por imagens, um mundo reproduzido via satélite e impossível a olho nu. Não está mais

dentro do mundo para recortá-lo com sua lógica matemática, mas o vê de fora, numa visão

totalizante dada pelo holograma94. No caso desta pesquisa, vale lembrar que o grande

espectro de perspectivas que abarca o tema dessa discussão tem na sua base o conceito de

ilusionismo, tantas vezes revisto, mas sempre em tensão. De qualquer forma, Kac95

esclarece que esse termo nunca significou que o espectador seria enganado por uma 93 A proposta de retomar obras do século XIX não significa esquecer as origens dessas relações intersemióticas que datam da época Clássica. Usa-se o termo ecfrase para definir, a partir de trabalhos poéticos, o modo de coexistência entre dois sistemas de significação, suas mútuas influências e apropriações e suas transposições intersemióticas. Ecfrase vem do grego EKPHRASIS e significa, por sua origem, descrição ou ek: fora + phrasis: frase, fora da frase. Ver a esse respeito trabalhos na área dos estudos literários, como por exemplo, Cordeiro (2003), Santos (2006), entre outros. 94 Para maior aprofundamento do tema, ver Kac, 2006. 95 Kac, opus cit. p. 340, entre outros artigos em Fabris & Kern, 2006.

Page 145: Capítulo V: Análise do material

145

imagem e pensaria estar olhando para o objeto mais do que para uma representação. Hoje,

frente à irrealidade proposta pela realidade pós-moderna, os homens já reconhecem a

dimensão ilusionista não como um mimetismo, mas algo destoado e recriado por imagens

sem fundo, sem margem, sem preenchimento. No mundo de hoje, os homens não precisam

decifrar mais a mensagem divina, mas a dos próprios homens, transformados em ciência,

em arte, em virtualidade. Vale lembrar os estudos de Gombrich para quem os mecanismos

psíquicos de que dispomos nos fazem compreender organizadamente os elementos de

alguma imagem dentro de um dado contexto cultural, mesmo que saibamos ser uma ilusão.

Presença e memória, marcas da inteligibilidade humana, acompanham a ordem do suporte.

Com o intuito de localizar suas pesquisas no cenário dos estudos sobre a escrita, Christin

discute dois teóricos que reavaliam a origem da escrita, tentando liberá-la, embora

parcialmente, de seus apriorismas lingüísticos: I.J.Gelb e A. Leroi-Gourhan. O primeiro

enfrenta filólogos que ignoram “a etapa inicial da história da escrita sob o pretexto de que

os sinais então utilizados não estavam em correspondência exata com a língua” 96, e se

tornou o promotor apaixonado da criatividade de seu grafismo (p. 12). Mas mantém o

grafismo como uma proto-escrita e afirma que só uma adequação ao fonetismo verbal

constitui a verdadeira escrita. Outro problema desse estudo está na manutenção do ponto

de vista quanto a uma reflexão autêntica sobre a imagem e suas origens. O modelo que

orienta suas reflexões é o da linguagem, e a referência à enunciação, isto é, à fala

concebida como origem de um poder, guia sua teoria do traço. Christin vai chamar a

atenção para o que ela considera renovador no modo de conceber a escrita e sua origem,

alertando para o fato de que Gelb se esquece de que, sem suporte sobre o qual se inscreve,

o traço não é nada.

A seu turno, A. Leroi-Gourhan constrói a hipótese de que os desenhos feitos pelo homem

nas paredes das cavernas já tinham um cunho simbólico, não eram simples substitutos das

coisas. Chama essa escrita de mitografia e seus estudos confirmam o papel da imagem na

gênese da comunicação escrita:

Mitologia e grafismo multidimensional são [...] normalmente coincidentes nas sociedades primitivas e se eu ousasse usar o estrito conteúdo das palavras, seria tentado a equilibrar a ‘mito-logia’ que é uma construção pluridimensional repousando sobre o verbal com uma

96 “L’étape initiale de l’histoire de l’écriture sous prétexte que les signes que l’on y utilisait n’étaient pas en correspondence exate avec la langue”.

Page 146: Capítulo V: Análise do material

146

‘mitografia’que é seu estrito correspondente manual. (apud Christin, p. 13)97.

Mesmo assim, contesta Christin, seu raciocínio manteve-se próximo ao de Gelb, uma vez

que Leroi-Gourhan acredita que a mitografia não teria sido suficiente para criar a escrita.

Por uma ruptura misteriosa, o sistema da escrita fonética se constitui forte, mas também

débil o suficiente para não anular certos benefícios da mitografia original. De qualquer

forma, há uma mudança no modo de repartição dos signos e a liberdade espacial de

assentamento do grafismo no seu suporte se subordina à linearidade dos signos. Essa

sucessão é resultado não só do fonetismo da língua como da lógica do raciocínio contábil,

que conferem uma utilidade social. Vê-se ainda hoje como a história da subordinação

gráfica pela expressão fonética, mostrando a conquista da escrita, tem paralelo nas

instituições escolares que reforçam esse mecanismo de apagamento, quando as crianças

deixam de desenhar para começar a escrever.

Leroi-Gourhan também retoma uma distinção feita no século XVIII por Lessing para

confirmar sua hipótese de que a escrita logocêntrica seria a mais útil. Lessing afirma que a

poesia e a literatura de ficção são a arte do tempo, enquanto a escultura e a pintura são

artes do espaço, tomando a materialidade como categoria: essa divisão dá à literatura a

capacidade de, no tempo, revelar o invisível; o espaço domina o visível e, para que também

domine o invisível, é preciso que se dobre a convenções e a constrangimentos. Além disso,

para que uma imagem na pintura seja vista, como afirma Christin, é preciso que seja

percorrida por um certo tempo. Mas, para tanto, desconsidera qualquer hipótese de que

haja sentido no vazio aparente e supõe que as figuras emergem de um lugar sem interesse e

sem consistência. Na verdade, o espaço não existe. Só na escultura, cuja materialidade não

lhe permite recorrer ao tempo, como a pintura permite. Essa é uma discussão sobre

representação da arte que só terá uma proposta de revisão no século XX. Nesse início de

século XXI, pode-se considerá-la uma afirmação fraca e duvidosa.

No caso brasileiro, a discussão sobre a linguagem do desenho, além de elaborada por

muitos críticos das artes plásticas, também é posta por Andrade (1965)98, que transita entre

97“Mythologie et graphisme multidimensionnel sont [...] normalement coïncidents dans les sociétés prmitives et si j’osais user du strict contenu des mots, je serais tenté d’équilibrer la ‘mytho-logie’ qui est une construction pluridimensionnelle reposant sur le verbal par une ‘mythographie’ qui en est le strict correspondant manuel.” 98 Essa discussão de Andrade foi aproveitada em artigo sobre literatura infantil e imagem, em Belmiro, 2004.

Page 147: Capítulo V: Análise do material

147

diferentes artes, como a fotografia, a música, a literatura de ficção e a poesia, além da

escrita de argumentação teórica: para ele, “o desenho fala, chega a ser muito mais uma

espécie de escritura, uma caligrafia, que uma arte plástica” (p. 71). Essa discussão é

interessante para a pesquisa que realizo, pois traz um novo elemento, o desenho, na

elaboração de um quadro de referências que amplie e melhor defina com que materiais

deve-se trabalhar na construção do arcabouço conceitual. O desenho está distante não só da

pintura e escultura, quanto da poesia e da prosa. Mas, para isso, Andrade recorreu, como

Leroi-Gourhan, à polarização que há na definição de artes do tempo e artes do espaço,

proposta por Lessing. Embora não se apóie no suporte como critério distintivo, como faz

Christin, ultrapassa a materialidade como conceito, “porque o desenho é, por natureza, um

fato aberto. Se é certo que objetivamente ele é também um fenômeno material, ele o é

apenas como uma palavra escrita” (p. 72), e acrescenta que as pinturas primitivas

participam muito mais da natureza e essência gráfica do desenho do que da pintura

propriamente dita. Aprofunda o debate sobre o traço do desenho e suas limitações:

Na verdade, o desenho é ilimitado, pois que nem mesmo o traço, esta convenção eminentemente desenhística, que não existe no fenômeno da visão, nem deve existir na pintura verdadeira ou na escultura, e colocamos entre o corpo e o ar, como diz Da Vinci, nem mesmo o traço o delimita. Desenha-se um perfil, por exemplo, e o traço pára no meio, ao chegar no colo, ou na raiz da cabeleira (p. 74) (grifo meu).

Diferentemente da pintura, cuja validade estética está na ordem da composição, a sua

argumentação compreende o desenho como uma definição: ao mesmo tempo uma

transitoriedade e uma sabedoria (mesmo que não seja eterna). É, como diz ele, uma espécie

de provérbio, pois exprime uma experiência vivida e transformada numa definição

eminentemente intelectual; assemelha-se a uma frase-feita, que se liberta das fragilidades

sentimentais da frase espontânea e assume sua forma definitiva. Essa depuração lhe

concede a natureza essencialmente poética do provérbio, pois condensa, define e o afasta

“da natureza descrevedora e contemporaneamente raciocinante da prosa” (p. 76).

Percebe-se desse modo que, mesmo libertando o desenho da comparação com o prosaísmo

– que absorve, longamente no tempo, sentimentos, pontos de vista, enfim, condicionantes

que organizam a forma –, mantém sua delimitação, mesmo que intelectualmente o traço

não lhe aprisione o sentido, na esteira da linearidade da escrita alfabética. Supera essa

dualidade, todavia, pela caligrafia; dito de outra forma, pelo estilo.

Page 148: Capítulo V: Análise do material

148

Portanto, o traço para Gelb é sinal da escrita alfabética; para Leroi-Gourhan significa

também uma transposição gráfica da linearidade verbal, considerando o traço a etapa

fundadora da escrita; para Andrade é uma convenção desenhística. Christin avança a

discussão, apontando um outro elemento anterior à combinação de figuras: o seu suporte.

Diz ela (2006, p. 66):

é privilegiando na análise da imagem seu suporte, ao invés de suas figuras, que poderemos determinar as premissas icônicas da escrita. Os homens da pré-história não cessaram, aliás, de homenagear as paredes inspiradoras sobre as quais eles inventavam a pintura, imprimindo ali suas mãos...

Ora, a autora mantém-se firme na sua proposição: o ponto de tensão não é o que é visível,

mas o que dá a ver o visível. É fundante essa tomada de posição de Christin para enviesar a

questão: o traço é o que o homem realiza, mas o fundo é a superfície de que ele se utiliza e

não explicita, embora ele saiba da sua existência. Cito (2006, p. 68):

Superfície acolhedora do invisível, compreende-se que não foi através do ‘traço’ que a tela da imagem conduziu à escrita. O traço é o depósito de um gesto que visa representar um ato de enunciação; o suporte sobre o qual se inscreve não exerce nenhum efeito, senão puramente acidental, sobre seu percurso: o traço o ignora. O signo que nasce da imagem não possui referência linguageira: ele resulta do mesmo exercício de observação de superfícies anunciadoras de revelações que, na longa história que leva da aparição da imagem à da escrita, teria como primeira conseqüência a invenção da agricultura.

Traço, gesto, escrita, a mão do homem que enuncia. Mas Christin está preocupada com

alguma coisa a mais. O sedentarismo em que a vida agrícola resultou fez o homem

conjugar a sua observação e sua comunicação com o além numa outra instância de

comunicação, a escrita, através de formas específicas que utilizaram tanto o traço como a

adivinhação. Na China, por exemplo, o traço serviu mais para “transcrever as marcas da

natureza, não significa a vontade de uma palavra: a memória sobre a qual repousa a

civilização chinesa é a do visível, não do verbo” (p. 69). O interesse da pesquisadora

aponta, portanto, para as múltiplas possibilidades de realização simultâneas que o vazio

sugere, compreendido, não como o nada, mas com o todo da tela, onde são pintadas as

imagens e em que igualmente sobram, isto é, respiram, nos vãos, os sentidos.

Recuperar o fundo coloca toda a história das relações entre artes plásticas e literatura num

patamar que revigora a discussão sobre a natureza da escrita, uma vez que nem palavra,

Page 149: Capítulo V: Análise do material

149

nem figura são, isoladamente. Desde o fim do séc. XIX (1897), com Un coup de dés

n’abolira jamais le hasard, Mallarmé redesenha a poesia do século seguinte e toda a

literatura integrando os elementos visuais perdidos. Sempre a literatura avançando na

revisão de suas premissas e propondo, neste caso, uma retomada da imagem pela escrita

alfabética. O espaçamento da leitura, como ênfase da imagem poética, o caráter gráfico das

letras99 e figuras desenhadas na página, criam uma aproximação, segundo Mallarmé, com a

partitura musical, como o tempo fraco ou o forte, a pausa, vista não como ausência de som,

mas como presença de ritmo e de leitura, são aproximações com uma visualidade ainda

impensada ou esquecida pela história da escrita alfabética. Nesse aspecto, aproxima-se da

oralidade pelo ouvido que reconhece o ritmo, a cadência, a toada. A leitura simultânea da

página dupla oferece uma nova forma de ler similar à da imagem e, nesse caso, distante da

palavra oral. Por isso, a linguagem se aproxima da escrita e se afasta da palavra viva, como

mostra da existência material do verbo.

As experiências nas artes plásticas, na literatura e, fundamental, no design gráfico ao longo

do século XX, reaproximam a escrita e a pintura, e constroem olhares acostumados com as

multiformas gráficas, que tornam até automáticos e, por vezes, vulgares a coexistência de

palavras e imagens como forma de entendimento dos usos da espacialidade e da

visualidade. Por isso, Christin afirma, nas primeiras palavras de apresentação de seu livro,

que “a escrita deve ser compreendida no seu sentido restrito de veículo gráfico de uma

palavra”100, o gráfico tomado como veículo de visibilidade, pois a escrita permite que a

palavra se torne visível, assim como o fundo dá a ver a imagem. E, para tornar a palavra

visível, podem-se usar outros sistemas gráficos que não o da reprodução da linguagem

verbal pela via da oralidade.

Arbex (2006, p. 22-23) informa que “as teorias sobre o valor ‘positivo’ da escrita repousam

sobre três pontos: seu caráter unitário (por espelhar a linguagem, a qual não seria apta à

mistura); seu caráter útil (conserva a linguagem oral); sua simplicidade (o alfabeto é o

sistema mais simples, por isso é útil)”.

Essas características mostram como os valores modernos da escrita são o espelho do

império da Razão, cujo peso incide sobre o espírito analítico, entre outros índices. Por isso,

99 Ver o artigo, em Belmiro (2004), que trata da caligrafia como presença de uma parte visual da escrita. 100 “L’écriture y est comprise dans son sens strict de véhicule graphique d’une parole” (p.5).

Page 150: Capítulo V: Análise do material

150

valores modernos, como a comunicação, clareza, eficácia e abstração, são perpetuados nos

ambientes da educação escolar, como qualidades e graus de acesso ao conhecimento. Vale

lembrar Barthes101, para quem “a escrita às vezes (sempre?) serviu para esconder o que lhe

foi confiado, sendo a criptografia a própria vocação da escrita e a ilegibilidade sua

verdade”. Esse é um dos aspectos que será fundamental para o trabalho de análise do

corpus.

Esse caráter didático, que hoje encontramos em livros escolares e em outros não destinados

obrigatoriamente à escola, já era visto em obras, como já citado, desde a Idade Média e,

por essa razão, inibia uma aproximação estética. Basta observar como certos processos de

alfabetização se apropriam das imagens102: não somente como ilustração, isto é, como

contextualização de uma narrativa, mas como ícone que comporá, com o significante

verbal, o signo verbal. Tal qual o ícone bizantino, cujas imagens de santos retratam o

universo específico da cristandade ortodoxa oriental: são imagens de santos sem fundo,

sem contexto, um mesmo rosto santificado de caráter abstrato, como ícones que acessam o

invisível; por outro lado, a arte popular das cruzes bizantinas reproduzem, verticalmente e

fora da linearidade alfabética, as histórias da vida de Cristo (fig.39).

Em contrapartida, o que se vê na humanidade de São Francisco que identificamos nos

afrescos de Giotto é um retrato do espaço concreto dos homens, com feições do homem

comum; é a Virgem que também é mulher. O século XIII propõe, através do pintor

101 Apud Arbex 2006, p. 24 102 Remeto essa discussão à análise sobre cartilhas apresentada no cap.2 desta tese.

Figura 39 Ícones Bizantinos

Page 151: Capítulo V: Análise do material

151

italiano, um espaço que poderia se chamar “matéria ótica da superfície, que mostra e

transmite”103.

Essa dificuldade de convivência entre o didático e o estético merece uma reflexão mais

aprofundada que supere as exigências de um saber escolarizado. Parece que o problema

está no pólo da produção de materiais escolares e, não, no pólo da recepção104. Talvez

esteja mesmo nas relações estabelecidas. De qualquer forma, é fundamental que se

compreenda, nessas relações, o que o conceito de aprendizagem pode gerar. A questão

deve avançar por um caminho que defina o que é aprender, em que ponto o embate de duas

posições pode indicar novos rumos: de um lado, uma criatividade solta e aparentemente

libertária, e, de outro, uma cópia inicial do que já existe, como um estágio do

conhecimento que proporcionará sua inserção na cultura, não significando

obrigatoriamente que o aprendiz se limite ao modelo. Dessa forma, a escola escolariza,

mas os sistemas de aprendizagem105 devem permitir sua comunhão com a estética, sem

que isso restrinja o seu caráter criador e sem o qual o homem torna-se apenas reprodutor.

Contemporaneamente, alguns estudos vêm priorizando certas abordagens sobre uma área

que, de alguma forma, é exemplo dos mais recentes da discussão que estou apresentando.

Trata-se do design gráfico106, que integra a imagem e o texto verbal numa outra

concepção, mais visual, mais plástica, enfim, uma retomada da figura e da palavra tendo

como eixo comum o espaço. A história do design vem de longe e tem sua origem na

Antiguidade, mas a Modernidade e o conceito de Belo do séc. XVIII trouxeram uma

maneira nova de ver o objeto, reformulado pelos usos de que dele se fazia. Zarur (2000),

analisando a possível inserção da ilustração no âmbito do design gráfico, comenta a falsa

dicotomia entre belas-artes e artes-aplicadas, tomando a segunda como uma atividade

prática e uma função objetiva, diferenciando-as das puramente expressivas. Esse rigor

mostra bem o lugar de onde se analisam as figuras (e não imagens, que, na diferenciação

proposta por Christin, traz consigo a superfície), vistas como ilustração. As pesquisas na

103 Christin (2006, p. 94) 104 Um tratamento bem estruturado do tema das relações entre linguagem e imagem e que visa a um caráter didático pode ser encontrado em Walty et all, 2000. 105 Para a presente discussão, é bastante útil o artigo de Gomes (2007) sobre a aprendizagem sob o ponto de vista antropológico, no qual analisa alguns conceitos de cultura e sua relação com os processos de aprendizagem da própria cultura. 106 Não é meu interesse aqui aprofundar o debate sobre essa área de conhecimento, que tem apresentado uma discussão rica e complexa nos seus fundamentos; apenas me reporto a ela pela semelhança de elementos e características que podem iluminar as questões que proponho.

Page 152: Capítulo V: Análise do material

152

área de História da Leitura e da História da Arte107, principalmente, têm oferecido

inúmeros exemplos de como os quadros religiosos, os vitrais, as iluminuras da Idade

Média participam ativamente da inserção do homem analfabeto no mundo, pela via da

religião, com uma função bem objetiva, de facilitadora da aprendizagem dos ensinamentos

divinos, e que atualmente se transformam em representantes das belas-artes. É o que

confirmam as pesquisas de Ginzburg, para quem o dogma da transubstanciação,

proclamado em 1215, consegue neutralizar esse movimento ambíguo de medo e

desvalorização das imagens que transcorre durante toda a Idade Média européia:

Depois de 1215, o medo da idolatria começa a diminuir. Aprende-se a domesticar as imagens, inclusive as da Antigüidade pagã. Um dos frutos dessa reviravolta histórica foi o retorno à ilusão na escultura e na pintura. Sem esse desencantamento do mundo das imagens, não teríamos tido nem Arnolfo di Cambio, nem Nicola Pisano, nem Giotto. A idéia da imagem como representação no sentido moderno do termo, de que Gombrich falou, nasce aqui.108

Penso que essa discussão põe em evidência o grafismo atual que vem sendo aproveitado na

área da educação, seja como aplicação prática, seja como arte, não só na ilustração de

textos verbais, como também tomado como texto visual, o que possibilita aproximar o

design gráfico de sua função utilitária e expressiva, ao mesmo tempo. Portanto, resta

redefinir que aspectos distinguiriam o grafismo como uma área de atuação específica na

educação. Essa mistura de funções, ou melhor, essa desformatação de funções ajuda a

reinventar formas de relação e formas de apresentação, o que pode aproximar a poesia do

design, as artes da literatura, e a prosa romanesca, que contempla o cotidiano dos seres

comuns, teria essa dupla entrada. A proposta de uma interrogação visual seria bem acatada

nos ambientes nos quais caberia interpretar as relações existentes entre seus traços e,

eventualmente, seu sistema.

Zarur (2000) faz uma síntese da história do design gráfico desde a sua origem, buscando

situar a ilustração não só como design gráfico, mas também como linguagem. O design

gráfico mostra uma preocupação com a reprodutibilidade técnica tão presente, que talvez

seja o que realmente o caracteriza como atividade diferenciada. Nesse sentido, diz ela, a

ilustração pode ser vista como algo que se insere no âmbito do design gráfico, pois

107 Ernst Gombrich, em seu clássico Arte e ilusão, faz um percurso da história da arte procurando uma base ótica e psicológica da pintura. Ver também os trabalhos de Hauser, Débret, Chartier, Christin (2006, p. 88-89), Vouiloux, entre tantos. 108 Ginzburg, 2001, p. 102 apud Makowiecky, 2003, p. 20.

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153

qualquer que seja sua origem, ela, invariavelmente, passa por um processo de impressão.

Essa qualidade de reprodução faz com que pinturas que ilustram um livro, seja didático ou

não, percam sua aura: “Nesse sentido, Mona Lisa que ilustra um livro histórico certamente

não é igual à Mona Lisa exposta no Museu do Louvre; ela perde seu caráter de pintura e,

dentro de outro contexto, passa a ser design” (p.207). Vindo de direção oposta, mas

chegando a um ponto de convergência, os desenhos da Mônica das histórias em quadrinhos

de Maurício de Souza, travestida de Mona Lisa, aparecem nos livros didáticos,

configurando um elo entre o grafismo, a arte, e resultando no pedagógico.

Por outro lado, para tratar as imagens como linguagem, a pesquisadora se apóia na

pragmática da enunciação de onde retirará os subsídios para sua metodologia: “imagens

escolhidas para ilustrar determinado texto são enunciados visuais utilizados pelo emissor

como instrumentos de determinadas ações comunicativas, convencionadas com o receptor”

(p.207). Sua preocupação mostra uma tendência atual de superar uma visão meramente

funcionalista das figuras/dos objetos/das imagens e considerar os interlocutores e as

condições de produção, além das possibilidades de impressão. Apresenta operações, que

chama de modalizações da enunciação, baseadas em Milton José Pinto. São elas:

declarativa, representativa, declarativa-representativa, expressiva, compromissiva, diretiva.

Interessada em reconhecer as múltiplas condições de uso e as situações de produção das

imagens, isto é, sua natureza gráfica e sua qualidade de linguagem, Zarur recorre, como

tantos que fizeram aproximações entre imagem e texto verbal, a dois pilares distintos,

todavia sem estabelecer paralelo de equivalência e valor: um pilar no seu modo de

produção (sua reprodutibilidade) que lhe garantirá funcionalidade e outro em categorias

lingüísticas para se constituir como linguagem.

Um exemplo concreto de como as artes gráficas assumem o diálogo com as artes plásticas

é a exposição do artista plástico Mário Arreguy Amostras do terreno, em Belo Horizonte-

MG, outubro/2007: são trabalhos com diferentes materiais e uma mesa com “um enorme

volume de material pesquisado/catado ao longo de uns dezoito anos”,109 diz ele. E

acrescenta: “a escrita e a imagem andam juntas, uma beleza, uma liberdade, posso propor

ao espectador ler uma idéia visual e ver um texto, na mesma configuração

plástica/gráfica!”

109 Depoimento dado à pesquisadora em conversa informal e por email.

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154

Outro caso exemplar, entre muitos projetos e eventos, são as revistas de design gráfico, que

tomam assento no espaço das artes, com publicações de pequeno, médio e grande porte,

para públicos diferenciados. Algumas pretendem apresentar, como atividade acadêmica,

uma arte gráfica universitária em que palavras, desenhos, guache, letras, reprodução

fotográfica, nanquim, frases, tintas, todos juntos realizam uma arte livre, relacionando

design, música, poesia, entrevista. É o caso da revista Traça110, que trata de práticas desde

o graffiti (questionando a perda de sua força subversiva) a temas como a preocupação com

o critério de valorização do suporte (figs.40a - 40b).

Figura 40b Figura 40a

Revista Traça, Liturgia do silêncio Revista Traça, Música e Liturgia do silêncio

110 A revista ‘Traça’, em seu segundo número em 2007, é uma arte gráfica universitária, publicação da Universidade Fumec, Belo Horizonte-MG. É um projeto acadêmico extracurricular, desenvolvido por alunos do curso de Design Gráfico e funciona como um espaço aberto para pesquisas gráficas. Para acessar, ver site www.revistatraca.art.br

Page 155: Capítulo V: Análise do material

155

○ 4.3 Relações entre o icônico e o verbal Nesta seção, apresento algumas abordagens sobre a relação entre o icônico e o verbal e,

para isso, valho-me dos estudos sobre literatura e artes plásticas realizados por Arbex, que

oferece, em seu artigo Poéticas do visível: uma breve introdução111, uma revisão da

literatura sobre as propostas teóricas e os níveis de relação entre o icônico e o verbal, a

partir da leitura de dois números da revista Textuel. A autora propõe dois grandes eixos de

análise: os estudos que se baseiam no conceito de paradoxo e os voltados para o conceito

de paralelo. Vale lembrar que, a partir de Christin, a escrita aqui é vista como uma

estrutura mista, apoiada em dois registros, verbal e gráfico, e a imagem, entendida como

um conjunto de figura e suporte.

4.3.1 O Paradoxo O paradoxo se situa no movimento de aproximação e afastamento em que se encontram

essas expressões artísticas. Essa permeabilidade de fronteiras entre os mundos do dizer e

do ver, essa relação dinâmica entre esses pólos recusa as aproximações arbitrárias, mas

também distanciamentos apressados, e privilegia a noção de limite, de fronteira, o que está

em jogo no entre a escrita e a imagem. Além dessas, são outras as características:

diversidade de práticas e métodos de análise; necessidade de abordagens múltiplas e

dinâmicas; pluralidade de enfoques empregados no tratamento do objeto de estudo, devido

à heterogeneidade das obras em que o legível e o visível se reúnem. Olhar para essa tensão

como um paradoxo é a opção de quem deseja enfatizar o caráter dialético que deve

predominar entre os pólos. Os caminhos das pesquisas se orientam por algumas perguntas

formuladas por Jacques Neff112: O que está em jogo quanto ao visível na escrita, o que se

escreve na pintura? Existem obras absolutamente isentas de qualquer relação com o

adversário? Essas indagações também são as de Bernard Vouilloux, para quem

movimentos artísticos da modernidade operam uma conexão ou uma travessia entre os

domínios literário e plástico. As propostas de eixos teóricos vão das escritas paradoxais à

incomensurabilidade entre os registros especular e especulativo. Esse paradoxo é devido à

lógica semiótica de cada um dos códigos, o verbal e o icônico, às diferenças de seus

regimes semióticos; isso não justifica o favorecimento de um discurso que tende a

111 Arbex (2006, p. 17-62) é um artigo que resume seu relatório de pós-doutorado. 112 Apud Arbex, p. 31

Page 156: Capítulo V: Análise do material

156

confundir o visível e o legível sob a categoria (...) do inteligível, mas a manutenção das

interrogações que persistem na dupla de códigos.

Essa é uma questão difícil de ser assimilada, por exemplo, pelo conceito bakhtiniano de

signo neutro que, de alguma forma, permite e facilita o passeio da linguagem verbal por

entre as imagens, ajuda a compreendê-las e propõe o retorno ao mundo dos conceitos para

tornar inteligíveis os seus conteúdos; todavia, não há, coerentemente, aliás, nenhuma

referência ao espaço entre as imagens.

Ademais, questiona-se o termo relações, que supõe uma lógica, uma economia binária ou

uma síntese pacífica. Na verdade, há uma questão de dilema, de alienação, de fratura, de

heterogeneidade, de contato impossível; são relações dinâmicas e não fixas,

transformadoras e não estáveis. Acredito estar aí um grande problema para a escola, uma

vez que a questão teórica de não polarizar posições deveria ter ressonância no modo de

operar a realidade escolar, ampliando (e não reduzindo) a riqueza dos diferentes contatos

produzidos por essa dinâmica. Acostumada à estabilização, à conformidade e à ordenação,

o espaço escolar tende a falsear a tensão, não explicitando a presença, por vezes

dominante, do discurso visual nos processos de aprendizagem.

Arbex apresenta outro conceito importante de que autores vêm se apropriando, para dar

corpo ao conjunto teórico da perspectiva do paradoxo: é o de corte semiótico, a partir do

qual os autores pensam as relações sob o signo da plasticidade. Para isso, se aproveitam

das pesquisas de Pierce que, propondo uma triádica, amplia a relação binária saussureana

que supõe uma lógica e permite realizar contatos que não sejam obrigatoriamente estáveis,

mas transitórios e múltiplos. Frente a isso, o conceito de corte semiótico quer pensar as

relações sob o signo da plasticidade. Muitos teóricos têm proposto uma revisão do conceito

de mimese, além de estudo da materialidade da escrita e articulação de diferentes

modalidades tipo-estilísticas. Parece que, com isso, propõe-se, ao fim e ao cabo, uma

forma original de pensar e abordar o tema: aceitando uma diferença irredutível, surge a

possibilidade de um novo gênero entre a pintura e a literatura, que a atividade estética tenta

descobrir e atravessar. Mais do que natural, a seqüência de incômodos recai sobre o modo

de organização das disciplinas que tornam suas margens mais fluidas: de um lado, a

história da arte e a reflexão estética e, de outro, a história e teoria literárias. Hoje,

observam-se diálogos profícuos nas suas fronteiras, numa evidente necessidade de

Page 157: Capítulo V: Análise do material

157

interdisciplinaridade, destacando “a troca de olhares entre escritor e artista plástico, a

história dessa comunicação, o modelo proposto por uma outra forma de arte e o

desencadeamento que pode produzir o choque estético (...)” 113. Acrescento a esse

momento de tensão, contudo producente, entre essas duas áreas, a idéia de que outras áreas

desejam fortalecer um intercâmbio, como a História Cultural e a Antropologia, entre

tantas, explicitando, para a área da Educação, a emergência de abertura de novos campos

para a prática educativa. 114

As diferentes investigações sobre os elos entre as imagens e o texto têm provocado

múltiplas propostas de classificação e de critérios operatórios, mas vale destacar que as

freqüentes interrogações sobre a imagem que gera o texto, ou a imagem no texto, ou de um

texto que evoca uma imagem, enfim, constituem questões que variam de acordo com a

delimitação do campo de estudos, privilegiando certo enfoque. No momento, é relevante

destacar uma abordagem sobre a anterioridade da imagem para gerar um texto de ficção,

para mostrar uma base conceitual de alguns procedimentos escolarizados da aprendizagem

da escrita, em relação à descrição. São as imagens colocadas em palavras, “captadas

apenas na dimensão do legível” 115 , a imagem no texto, que comporta a noção de

descrição pictural. No ponto oposto, pensa-se a imagem com uma autonomia suficiente

para que não dependa mais de um texto fonte. Ora, eis uma questão que me proponho

discutir nos livros de literatura infantil, e talvez nos livros de alfabetização, já que muitas

vezes a imagem não depende de texto, optando por um procedimento plástico, e, outras

vezes, ela se define por um procedimento linguageiro. Vouilloux atenta para o fato de que,

ao falar sobre a pintura, usa-se o discurso como meio, como se fosse o discurso que

mediasse o ensino do conhecimento da pintura. Arbex (2006, p. 35-36) cita o pesquisador,

omentando-o:

stitucionais por meio das quais ela pôde ‘naturalizar’ seus ferentes.

c

ao procurar saber o que a imagem quer dizer, ao interrogar a pintura como linguagem, atribui-se uma transparência imediata à própria linguagem com a qual tal busca foi conduzida, tal interrogação foi formada’. Destituída de sua ‘opacidade enunciativa’, a linguagem teria destituído a pintura de sua própria opacidade; ou seja, a linguagem esteve isenta de qualquer interrogação relativa às suas regras constitutivas, suas

ariantes invre

113 PRUDON, Montserrat apud Arbex (2006, p. 35). 114 Essa preocupação está exposta no artigo Práticas intertextuais em processos educativos , em Belmiro (2003). 115 Vouilloux, apud Arbex, p 36.

Page 158: Capítulo V: Análise do material

158

Novamente, o signo neutro de Bakhtin é solicitado a posicionar-se. Penso que, quando os

estudos sobre a anterioridade da imagem ao discurso propõem que o texto (de ficção)

gerado pela imagem não fala sobre/a propósito da imagem, mas a partir dela, acabam

resultando numa solução, mesmo que provisória, para o dilema dessa relação, mostrando

uma possibilidade de tangenciamento desses dois modos de expressão, de forma autônoma

u, pelo menos, mais arejada.

eidade da imagem, para

staurar uma discussão que contraponha os poderes da escritura.

.3.2 O Paralelo

o

É claro que a base do percurso, pelo qual todos os estudiosos adeptos do paradoxo optam,

está, antes de mais nada, em quem fará o percurso. Importa dizer que os pesquisadores da

história da arte, ou os adeptos da semiótica, ou os que querem ressaltar a autonomia da

imagem em relação ao texto, conferem valor na radical heterogen

in

4

Outra perspectiva de estudo apresentada por Arbex é aquela a partir da noção de paralelo

entre literatura e pintura. Esse enfoque comparativista, proposto por Nella Arambasin116,

legitima uma proposta, pensada em 1947, de a literatura abrir-se “a uma estética

comparada”, para apresentar textos e escritas interdisciplinaridade, decorrentes de uma

reflexão própria às diferentes expressões artísticas. Sua origem encontra-se desde a

Antigüidade com o ut pictura poesis, fundada sobre o paralelo baseado no princípio

mimético, “que não apenas rege todas as artes, mas conduz também a aproximá-las até o

amálgama.” Essa perspectiva horaciana vingou até o século XVIII, quando Lessing,

historiador da arte, construiu um arcabouço teórico que se manteve até o século XIX. Dizia

que era preciso mantê-las distante e redefini-las, as artes e a poesia, dentro de seus limites,

apresentando, conseqüentemente, a clássica depuração entre artes do espaço e artes do

tempo. Por sua vez, o século XIX é portador de uma experimentação estético-literária que

permite escrever sobre pintura e elaborar uma reflexão sobre a prática literária. Ora, essa

presença constante da arte como temática de artigos, ensaios, textos de ficção, propicia um

olhar que amalgama os lugares dessas experiências estéticas, criando certas dificuldades

para a modernidade que afirma a autonomia das artes, essa noção tão cara ao processo de

assentamento do sujeito. Mesmo assim, o princípio do paralelo é mantido, como afirmação

116 Apud Arbex, p. 38-40

Page 159: Capítulo V: Análise do material

159

do distanciamento entre imagem e texto, “como sublinham Mourier-Casile e

Moncond’huy. A imagem contemporânea seria geradora de textos de ficção que, em troca,

onfirmariam sua ‘radical heterogeneidade’”.117

tigos paralelos, redundando em

propostas de gêneros, como, por exemplo, os híbridos.

i,

eles me rementendo implícita ou explicitamente para estruturar as análises do material.

.3.3 Propostas de análise

c

Vale a pena pensar o que essas relações ou, como querem, esses rompimentos e fraturas

entre essas artes podem significar para o estudo em questão. Não é o caso de optar

necessariamente por uma ou outra noção, mas dizer da impossibilidade de se manter

distante da discusssão e, mais ainda, de estar atento para os impasses por que passam a

convivência entre esses dois domínios. Chamar a pintura de linguagem é submetê-la ao

padrões de conformidade verbal; chamar o texto de imagem (como querem os estudiosos

do design gráfico) é submeter o texto à plasticidade da figura. Mais do que o quê, vale

aproveitar o como se dão essas relações para que se possa depreender, em materiais que

circulam na escola, as diferentes formas de aproximação entre imagem e texto. Talvez

fosse mais proveitoso recuperar o tanto de linguagem e de imagem que há nos dois

domínios. Por isso é que Arambasin continua apontando, no século XX, alguns

movimentos de substituição e deslocamento dos an

Tal como a tensão que permanece no gênero entre a pintura e a literatura, na perspectiva

do paradoxo, o ponto de vista do paralelo entre as artes e a literatura recria essas novas

possibilidades de gêneros. Vale lembrar que o hibridismo em Bakhtin aponta para a

resultante de misturas que ampliam a dialogicidade inerente ao discurso. São pequenas

alterações e interferências no modo de estruturar o conceito que fazem essa situação de

enfrentamento tomar pequenas variações fundamentais, que ajudarão essa pesquisa a

recolocar as relações entre imagem e texto nos ambientes escolares. Portanto, paradoxo,

paralelo, corte semiótico, descrição, narrativa são alguns conceitos nos quais me apoiare

a

4

Saber da impossibilidade de falar da totalidade dos estudos que comportam o visível e o

legível permite tratar aqui somente de alguns deles, correndo o risco da natural

parcialidade do estudo. Por isso, aproveito ainda o artigo já citado de Arbex que apresenta

117 Arbex 2006, p. 40

Page 160: Capítulo V: Análise do material

160

um resumo de algumas propostas de classificação das relações imagem e texto, a partir de

diferentes autores e de diferentes pontos de vista, mas que podem acrescentar contribuições

s investigações contemporâneas para o campo.

utor se serve do

uadro como motivo de descrição); d- a pintura inspirada pela literatura.

à

4.3.3.1 1ª- Perspectiva da natureza das obras Um dos critérios de base considera a natureza das obras118, apontando três categorias de

obras: 1°- “criadas em fusão artística” (mistura de vários códigos artísticos numa mesma

obra, como a ópera, os romances com desenhos do autor etc.); 2°- “criam uma fusão” e as

“adaptações” (a partir de elementos parciais pré-existentes, cria-se uma nova obra, que

realiza ou não a fusão das artes); 3°- as que incluem citações. Além disso, essas categorias

apresentam quatro principais eixos críticos: a relação com o autor, a relação com o

contexto de produção, a relação com o contexto de recepção (esses três questionando a

obra do ponto de vista pragmático) e a relação da obra com as artes (a relação da mudança

de código, com as outras artes, é o eixo da estética comparada, já mencionada

anteriormente). Há uma tendência para compreender como essas formas artísticas marcam

a existência umas das outras, ou seja, se pode haver prevalência de uma delas e, se houver,

como se dá essa tensão. Críticos dizem que são quatro os pontos abordados: a- duas formas

artísticas para uma mesma interrogação, “... escrever e pintar, ou fazer da pintura o objeto

do discurso literário, são abordagens inscritas numa pesquisa formal ou filosófica” (p.42);

b- a pintura como fonte de inspiração para o escritor (o autor forma uma estética própria a

partir da observação da pintura); c- a pintura como motivo do texto (o a

q

Ora, se observarmos os materiais da área de linguagem com que os alunos de todas as

séries da Escola Básica lidam, é fácil perceber que esses pontos são fortemente marcados

por critérios de hierarquização e valor frente às relações estabelecidas entre o plástico, o

verbal e o gráfico. Justifica-se aqui o conceito bakhtiniano de signo ideológico que

constitui as relações entre os sujeitos e, acrescento, entre diferentes formas de expressão

elas mesmas. Basta atentar para as interpretações de texto verbal e imagens, como um

modo define o modo de compreender a realidade. Interrogam-se, muitas vezes, a

linguagem verbal, as pinturas ou os grafismos nos livros didáticos de Português como se

118 MONCLAIR, Florent apud Arbex, p. 41-42

Page 161: Capítulo V: Análise do material

161

fossem da mesma natureza, pois não são marcadas as formas próprias de se constituírem.

Muito menos marcada a natureza da relação que essas formas estabelecem, como se

bastasse aproximação física no suporte para se constituírem como obras dialogantes. Sabe-

se que a linguagem constitui o sujeito, como afirma Bakhtin e, aqui, quero reafirmar que as

naturezas constitutivas dessas outras linguagens também constituem os sujeitos,

contemporâneos e híbridos, detentores de uma diversidade de modos de expressão que

precisam ser, primeiramente, reconhecidos pelo sistema escolar e devolvidos aos sujeitos-

alunos em forma de atividades didáticas. O alfabeto, por exemplo, que os gregos

organizaram de forma a retirar a instabilidade através da relação grafema/fonema, tem

apresentado formas renovadas que, mesmo que não alterem seu sistema, reintroduzem

imagem como um elemento de significação. A diagramação, a fonte, o subsistema de

acentuação e o de pontuação etc. são apenas alguns recursos de visualidade que interferem

significativamente no sentido da escrita alfabética. Outro aspecto que tem demonstrado

certa falta de clareza de exploração é a preocupação em transformar os elementos

constitutivos dos gêneros do discurso, como o tema, a forma composicional e o estilo do

autor, em exercícios que se dirigem às pinturas, gravuras, desenhos, mapas, etc., mas que

não obtêm como resposta dados relativos às características dessas linguagens. Ao

ontrário, o viés da plasticidade é anulado em detrimento do viés da linguagem verbal.

variedade de materiais e gêneros necessita justamente de

ma variedade de abordagens.

c

Essa classificação permite estabelecer um paralelo entre literatura e artes, em suas

diferentes expressões, mantendo a natureza da especificidade estética como solo para o

confronto. Acredito que, para a pesquisa em questão, é possível aproveitar os fundamentos

teóricos apresentados para dar um tratamento diferenciado aos materiais – livros didáticos

de alfabetização e livros de literatura infantil – e aos diferentes gêneros discursivos, mesmo

os não-literários, uma vez que a

u

4.3.3.2 2ª- Perspectiva pragmática Outro caminho de análise parte da hipótese de que os tipos de relação entre imagem e texto

dependem de sua situação de comunicação e não da natureza intrínseca do texto e da

imagem. Hoek119 estuda textos que se inspiraram em obras de arte e que têm um referente

119 Hoek apud Arbex p. 43-44

Page 162: Capítulo V: Análise do material

162

pictural. Sua proposta de classificação indica uma dada situação de comunicação (de

produção ou de recepção), a relação imagem/texto que é proposta (se primazia da imagem,

se do texto, se simultaneidade, se co-referência) e a tipologia das obras (multimedial,

transmedial, discurso misto, discurso sincrético). Parece ser possível aproveitar alguns

elementos desse quadro classificatório como base para um mapeamento mais amplo das

formas em que se apresentam textos e imagens. Na pesquisa que desenvolvo, não há

interesse, por exemplo, na observação da situação de recepção, mas é rica a possibilidade

de destacar, na relação texto/imagem, se há ou não primazia de um sobre o outro. Por outro

lado, a tipologia das obras merece atenção, pois sua caracterização implica a presença de

ambos, ou a anterioridade de um sobre o outro, isto é, se imagem ou texto serve de base

ara a realização de um deles.

nte, mas explicitam uma inteligência específica para lidar, por exemplo,

om mapas120.

p

Essa classificação vai permitir um avanço de propostas teórico-metodológicas,

considerando texto e imagem como autônomos, tomando corpo a partir de injunções

históricas, sejam individuais ou coletivas. Vários autores têm se preocupado em tratar

dessa relação, construindo categorias com base no textual ou no pictural, mas sempre

abarcando os dois ambientes de referência. É o caso de Louvel que opta pelo descritivo

ligado às práticas intersemióticas. Também é o caso de Vouilloux, que estabelece

categorias a partir de relações em presença ou em ausência. Analisando o texto literário,

Louvel percorre os caminhos do visível e do legível, e propõe uma extensão dessas

relações para o que denomina substitutivos do pictural: considera os aparelhos óticos, os

reflexos, a cartografia, a fotografia etc., numa demonstração de alargamento de sua

abordagem. Acredito ser possível, para a pesquisa em questão, poder utilizar essas

referências ampliando-as mais ainda, devido ao contexto de seu uso, no caso, o escolar.

Sabe-se que as pesquisas no âmbito cognitivo têm mostrado que as adaptações nem sempre

são óticas some

c

Louvel prioriza a descrição como forma de explorar diferentes graus de saturação pictural

do texto, e não somente como imagem visível para ilustração ou como ponto de vista

criativo. Assim, diz ela121: “... relação entre texto e imagem, jamais totalmente

estabilizada, mas sim movimento perpétuo entre ver e ler, donde a produção dessas ondas

120 A esse respeito, ver Olson, 1997, cap. 10. 121 Apud Arbex, p. 48

Page 163: Capítulo V: Análise do material

163

do visível que não param de perturbar a superfície do legível ...” Por isso, ela define o

iconotexto como uma imagem visual convocada pelo texto, que se desloca na situação de

“‘duplo desligamento’: na ‘translação pictural’, diferentemente da tradução lingüística

(passagem de um significante a outro, de mesma natureza, lingüístico), efetua-se a

passagem de um significante (pictural) a outro significante (lingüístico) de natureza

diferente” 122, o que equivale à translação transmidiática. A autora observa que a descrição

traz um efeito de expansão do texto, resistindo à linearidade e acrescentando um espaço, o

da imagem mental, que terá como limite a capacidade de memorização do leitor. Cria uma

série de recursos que mostrarão as ofertas de efeitos de enquadramento, isto é, seus

dispositivos específicos: deve realizar uma série de operações, ser organizada (por um

calizador), motivada pela intriga, ter uma ou várias funções, que são efeitos plásticos.

rita, e não o valor que

vez por meio da presença de um sujeito, que relativiza a aparente autonomia da arte pela

fo

Penso que não só a descrição, mas a argumentação pode ser tomada como parâmetro para o

paralelo entre imagem e texto. Por exemplo, as capas de revistas de circulação nacional

como Veja, Isto é, Carta Capital, entre outras, além de explicitar sua postura ideológica,

também argumentam quando selecionam modos de colocação das imagens na superfície do

papel: apostando em diferentes níveis de leitura, orientam o leitor para a descoberta da tese

que desejam defender, suas hipóteses, na maioria das vezes apenas indicadas, resultando

numa conclusão pelo leitor, dada pelos vãos de leitura e pelo tempo que é dado ao leitor

para absorver e concluir. A forma de apresentação da argumentação é simultânea, mas a

leitura, não. Eis a aproximação com as obras de arte. Alguns estudos sobre a relação

imagem e escrita têm mostrado os traços de argumentação na imagem, especificamente o

desenho infantil123, embora considerando a imagem como etapa inicial da escrita e, de

certa forma, não aprofundando as tensões decorrentes da persistência da imagem nos

processos de significação desenvolvidos pelos alfabetizandos. Algumas vezes, observa-se

que a tendência em priorizar a escrita na escola traz conseqüências danosas para o trato

com as imagens, supondo que seria simplesmente a presença da esc

lhe é dado, o motivo principal pelo desinteresse no uso de imagens.

Novamente a tensão entre as artes do tempo e as artes do espaço volta a ser criticada, dessa

122 Louvel, p. 196 123 Ver estudo sobre as relações do desenho e da escrita no processo de aquisição da escrita, em Paula, 2007.

Page 164: Capítulo V: Análise do material

164

necessidade de um leitor/espectador para lhe dar sentido. A compreensão desse sujeito traz,

no seu bojo, toda a bagagem de sua formação construída. Louvel afirma124:

a apreensão do poema como a do quadro depende de uma questão de grau e de duração bastante relativa de acordo com o sujeito, seus critérios de formação, de cultura, de gosto, sua capacidade de apreciação estética. Decorre daí a noção de ‘competência estética’ formada a partir da noção de ‘competência ideológica’ proposta por Umberto Eco em Lector in Fabula.

Para a presente pesquisa, a afirmação acima vem ao encontro de algumas das preocupações

já citadas, como a formação dos professores. Parece fundamental que, para se ensinar,

deve-se, antes de qualquer devaneio, saber fazer o que se ensina. Assim, o professor que

tem interesse em construir uma competência estética tem mais facilidades no trato das

questões estéticas propostas nos livros didáticos, nas revistas de arte, nos livros de

literatura infantil, em qualquer veículo em que a sua sensibilidade e sua competência sejam

solicitadas. Seja em texto literário – romance, crônica, poesia –, seja em artes visuais e

gráficas – pintura, escultura, fotografia, desenho etc. –, seja na relação dos dois, é com o

intuito de aprender, entendido como um tipo de habilidade que deve ser cultivada nas

práticas cotidianas e experimentais, que o professor – e na sala de aula com o aluno – situa

sua ação de saber125. Tanto desejo para aprender, quanto disposição intelectual para

apropriação de novas formas de organização do conhecimento, refletem a afirmação de

Olson (1997, p. 246-247): tanto palavras quanto imagens se tornam recursos conceituais e

técnicos que permitem a aprendizagem de distintas propriedades do mundo e de formas

que as tornem visíveis, pois não bastam “um olho sincero e uma mão fiel para ver tudo o

que há; é preciso, além disso, uma mente educada.”

Outro aspecto importante é a atenção para o fato de que a relação entre o texto e a imagem

nem sempre é feita de forma rígida, nas palavras de Louvel (apud Arbex, 2006, p. 48),

“jamais totalmente estabilizada, mas sim movimento perpétuo entre o ver e ler, donde a

produção dessas ondas do visível que não param de perturbar a superfície do legível”

(p.48). Uma situação exemplar é a instalação Grande sertão: veredas, concepção da

diretora Bia Lessa, outubro de 2007, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Uma

124 Apud Arbex, p. 48 125 Gomes (2007) apresenta, entre outras concepções, o conceito de cultura relativizado pelo conceito de habilidades (skill) na forma de lidar com o mundo, e a idéia de aprendizagem como educação da atenção. Essa perspectiva ilumina o entendimento sobre a formação cultural do professor e de suas ações em sala de aula, na direção de suas ações educativas.

Page 165: Capítulo V: Análise do material

165

verdadeira explosão de letras, palavras e textos que vão sendo remontados na medida em

que o leitor/espectador estabelece uma ponte de sentido com o mundo de Guimarães Rosa.

Como diz a proposta no folder: “Optamos por não dividir o ambiente, mas dividir o olhar.”

Mais adiante: “No caso do espectador seguir a trilha de Riobaldo, encontraria palavras

ilegíveis jogadas em restos do mundo – lixos. De um único ponto, o texto se tornaria

claro...” ou: “Se seguissem a trilha de Diadorim, encontrariam frases (escritas no avesso)

cobertas por uma lâmina de água e contidas em galões... Para ler, o visitante teria que fazer

uso de um espelho, estabelecendo um diálogo com o ilegível...” Letras que faltam, palavras

cortadas, frases quebradas, mas tudo realinhado num certo ponto do espaço por quem

deseja enxergar. A linguagem sendo construída, como Rosa o fez em seu romance, e as

palavras e letras sendo remontadas, refeitas, textos sendo reconstruídos pela interferência

do espectador no visível, para torná-lo legível. Sobe-se uma escada para se alcançar um

lugar de onde se tem um ponto de vista que permitirá organizar o olhar, na medida em que

os sentidos do que se vê são redescobertos, a saber, o texto. Dessa forma, pedaços de

palavras e letras, lixos do espaço, se organizam em linguagem. Um sonho da artista Bia

Lessa que concretizou, em espaço, a literatura de Guimarães Rosa. Na concepção da

autora, a produção da instalação se deu a partir do legível para o visível que, na experiência

do espectador ao vivenciar a instalação, completará o circulo interpretativo, do visível ao

legível. Isso dá a medida tênue da operação de translado de um domínio ao outro, mesmo

sendo o visível visual (imagem) ou textual (linguagem), mesmo que sempre falte alguma

coisa que se perdeu nessa translação, ou que sempre se acrescente algo a mais no momento

da conquista da significação.

Page 166: Capítulo V: Análise do material

166

○ 5 ○ Análise do Material

Toda reflexão metodológica enraíza-se, com efeito, numa prática particular, num espaço de trabalho.

Roger Chartier

Este capítulo apresenta um conjunto de livros de literatura infantil e alguns de literatura

juvenil que constituem o material de análise, dialogando com a análise dos livros de

alfabetização apresentada em capítulo anterior. Preliminarmente, apresento algumas

explicações sobre a escolha do material e o olhar sobre ele depositado, para compreender a

determinação da sua abordagem de acordo com o objetivo da pesquisa, que é verificar as

relações entre imagem e texto verbal em livros didáticos de alfabetização e em livros de

literatura infantil, atravessadas pelas categorias do visível e do legível.

Minhas reflexões metodológicas baseiam-se em algumas práticas de trabalho que venho

trilhando nos últimos anos: uma delas é o estudo específico sobre o objeto livro didático de

língua portuguesa e as propostas de relação entre as imagens e os textos, sejam literários ou

não; outro aspecto é o estudo de livros de literatura infantil, nos quais me concentro nas

diferentes práticas de escrita visual e verbal; por fim, como se articulam novas formas de

sociabilidades por essas escritas e as dificuldades de assimilação desses comportamentos

pelas práticas escolares. Tanto individualmente quanto no todo, os estudos têm mostrado a

importância das presenças do professor e do aluno nas produções ditas escolares e as

possibilidades de diálogo advindas da presença implícita do leitor literário mirim.

A escolha dos livros infantis deu preferência a um grupo de 29 livros, assim divididos: 19

livros são parte integrante dos livros do PNBE (2006 e 2008)126 e 10 livros fazem parte do

acervo do PROALE127. Alguns critérios determinaram a escolha dos livros: 1°- em relação

à quantidade, o número de livros, tanto nacionais quanto estrangeiros, que apresentam

126 Trata-se do Plano Nacional de Biblioteca Escolar, que avaliou e selecionou obras de literatura, no intuito de compor acervos para escolas públicas das áreas finais do Ensino Fundamental – PNBE 2006 – e da Educação Infantil e escolas públicas que atendem as séries iniciais do Ensino Fundamental – PNBE 2008 –, ambos coordenados pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE) da Faculdade de Educação da UFMG, em convênio com a Secretaria de Educação Básica do MEC. 127 PROALE - Programa de Alfabetização e Leitura, vinculado à Faculdade de Educação/UFF.

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167

características específicas em diferentes aspectos é incomensurável, e essa pesquisa não

tem a veleidade de abarcar a totalidade de possibilidades de análise; além disso, o interesse

do estudo não se prende a construir categorias que possam se tornar universais, mas a dar

entendimento às relações entre texto e imagem nesse suporte e nesse gênero; 2°- os livros

selecionados apresentam características importantes que me permitem refletir sobre as

interrogações apontadas nos capítulos anteriores; 3°- são publicações atuais (algumas da

década de 1970), contemporâneas às questões que ora apresento, podendo, com isso,

indicar alguns caminhos pelos quais autores e ilustradores optaram para que essas duas

dimensões de expressão pudessem (ou não) ser permeadas uma pela outra; 4°- não tomei o

corpus do PNBE como centro da minha atenção, nem em parte, nem na sua totalidade, para

que não se configurasse um material institucionalizado, organizado por uma política de

ações governamentais e que, por isso, me obrigaria a me deter nas condições de produção

dos materiais dos pareceristas. Isso me afastaria dos meus objetivos de análise, bem como

me aproximaria obrigatoriamente dos motivos que levaram à escolha ou à rejeição dos

livros, os critérios que orientaram tais escolhas, entre outros aspectos. Com isso, suponho

que a discussão que trago no momento possa esclarecer o modo como a multiplicidade de

relações entre imagem e texto tem amparo: nas mudanças de valor outorgado a esses dois

modos de expressão do homem; na assimilação de tecnologias como apoio para a

divulgação de idéias e para a construção de novas modalidades expressivas; na ativação de

processos cognitivos da visualidade até então não valorizados ou desconhecidos; no

respeito a diferentes processos de conhecimento que não sejam permeados pela linguagem

verbal.

Relação das obras analisadas na tese: ficha técnica

Título Autor(es) Ilustrador(es) Tradução Editora Ano Origem Amor índio Rui de Oliveira O mesmo ------- José Olympio 1999 PROALE Beijo da palavrinha, O

Mia Couto Malangatana ---------- Língua Geral 2006 ----------

Cacoete Eva Furnari O mesmo ---------- Ática 2007 PNBE Cíclico José Roberto de

Carvalho O mesmo ---------- Paulus 2003 PNBE

Cocô de passarinho

Eva Furnari O mesmo ----------- Cia. das Letrinhas

1998 PNBE

Coração de ganso

Regina Rennó O mesmo ----------- Mercuryo 2007 PNBE

Da Pequena toupeira que queria saber

Werner Holzwarth

Wolf Erlbruch Dieter Heidemann e Heloisa

Cia. das Letrinhas

1994 PNBE

Page 168: Capítulo V: Análise do material

168

quem tinha feito cocô na cabeça dela.

Jahn

Desertos Roseana Murray Roger Mello ---------- Objetiva 2006 PROALE E agora? Vão tomar o meu lugar?

Bel Linares e Alcy

---------- ------------ Salamandra 2005 PNBE

Equilibrista, O Fernanda Lopes de Almeida

Fernando de Castro Lopes

------------- Ática 2002 PROALE

Esquisita como eu

Martha Medeiros

Laura Castilhos

------------ Projeto 2003 PNBE

Formiga amiga Bartolomeu Campos de Queirós

Elisabeth Teixeira

---------- Moderna 2004 PROALE

Grande ou pequena?

Beatriz Meirelles Aída Cassiano

------------ Scipione 2001 PNBE

Ida e volta Juarez Machado O mesmo ------- Agir 1987 PROALE Jantar fantasma, O

Jacques Duquennoy

O mesmo Clóvis Bulcão

Rocco 2007 PNBE

Linha de Mário Vale, A

Mário Vale O mesmo ----------- RHJ 2006 PROALE

Livro das cabeças, O

Liana Leão Guilherme Caldas

------------ Salesiana 2006 PNBE

Livro dos corações, O

Liana Leão Fábio Sgroi ------------- Salesiana 2006 PNBE

Livro dos pés, O Liana Leão Thais Linhares ------------ Salesiana 2005 PNBE Meu amigo, o Canguru

Ziraldo O mesmo _____ Melhoramentos 1987 PROALE

Minha mãe é um problema

Babette Cole O mesmo Heloisa Prieto e Lilia Moritz Schwarcz

Cia. das Letrinhas

2002 PNBE

O que o coração mandar

Ayêska Paulafreitas

Elvira Vigna ------------ Dimensão 2005 PROALE

Patas da vaca, As

Bartolomeu Campos de Queirós

Walter Ono ---------- Global 2005 PROALE

Poeminha em língua de brincar

Manoel de Barros

Martha Barros

----------- Record 2007 PNBE

Princesinha boca-suja, A

Cláudio Fragata Odilon Moraes

----------- Abril 2007 PNBE

Ratinho que morava no livro, O

Monique Félix O mesmo ------------ Melhoramentos 2005 PNBE

Rinoceronte ri, O

Miguel Sanches Neto

Biry Sarkis ------------ Record 2006 PNBE

Rodolfo, o Carneiro

Rob Scotton O mesmo Ana Martins Bergin

Rocco 2006 PNBE

Vizinho, vizinha Roger Mello Roger Mello, Graça Lima, Mariana Massarani

------------- Cia. das Letrinhas

2007 PNBE

Você sabe gritar?

Karin Koch André Rösler Sérgio Tellaroli

Cia. das Letrinhas

2006. PNBE

Page 169: Capítulo V: Análise do material

169

No processo de realização do estudo, considerei relevante conhecer o ponto de vista de

quem tem a imagem como material de trabalho. Embora não tenha feito um extenso

trabalho de pesquisa com ilustradores, vali-me de contato com artistas que se dispuseram,

de uma forma ou de outra, a enriquecer minha pesquisa. Foi o caso da artista plástica e

escritora Elvira Vigna, autora e ilustradora de vários livros infantis e romances, que me

concedeu entrevista em novembro/2007, a partir do seguinte roteiro semi-estruturado: 1-

como você aborda o papel no qual você trabalhará? Isto é, como você se interroga

visualmente sobre a superfície do papel em que você apresentará seu trabalho, sua história,

seu comentário visual? Você compreende a superfície do papel como espaço de um mundo

ficcional? 2- como você estabelece uma relação entre os dois sistemas de escrita: o gráfico

e o verbal, nos seus trabalhos? 3- existe alguma predominância de um dos dois sistemas de

escrita, nos seus trabalhos, o gráfico e o verbal, ou isso depende de cada trabalho

individualmente? 4- qual o valor relativo que você atribui, nos seus trabalhos, à presença

da palavra escrita? Qual a medida de valor para o grafismo? 5- Você dá algum fundamento

ao intervalo entre as figuras? Entre palavras? Entre palavras e figuras? Como você pensa

esse entre as figuras? É importante para seu trabalho? 6- Como você trabalha com a

materialização da palavra? Isto é, há, no seu trabalho, algum tratamento material da

palavra que pode responder por um campo semântico da escrita dominado até então pela

língua? A palavra pode ser um ícone, no seu trabalho? 7- como você vê essa troca de olhar

entre o escritor e o artista plástico? Você encarna os dois? Como você dialoga com a

parceria de trabalho? 8- Como é seu processo de trabalho? Primeiro o texto literário,

depois a ilustração? Os dois juntos? 9- Como você conjuga duas (ou três) formas artísticas

singulares (literatura e artes plásticas e artes gráficas) para uma mesma proposta? Você

separa essas formas artísticas no seu processo de criação?

O artista plástico Mário Arregui foi outro profissional contatado, em situações informais

de conversa entre amigos, quando ele me presenteou com um número da revista “Traça”,

edição universitária de Belo Horizonte, cujo projeto Arregui coordena. A continuação dos

contatos se deu por correio eletrônico, abrangendo discussões sobre o material apresentado

na revista, que vêm mostrando trabalhos de vanguarda no âmbito do design gráfico.

Construí categorias como forma de organização da análise, numa tentativa metodológica

de aproximar as obras em grandes eixos e de explicitar certas especificidades encontradas

Page 170: Capítulo V: Análise do material

170

em algumas produções. Contudo, é preciso esclarecer que elas têm um caráter mais

didático de apresentação e que meu interesse é mostrar que são o legível e o visível que

atravessam os trabalhos classificados didaticamente e como o fazem. Dessa forma, acredito

poder seguir um caminho que responda à questão fundamental dessa pesquisa, sem a

limitação do lingüístico ou do pedagógico, discussão apresentada no segundo capítulo

dessa tese. Não há uma pretensão de classificar os livros de forma a obter uma regularidade

de uso, mas de compreender possibilidades expressivas que podem ocorrer no trânsito

entre a imagem e o texto, destacando-lhes algumas possibilidades de intercâmbio. Para

isso, penso ser viável a transposição das afirmações de Bakhtin (2002, p. 102) sobre as

manifestações lítero-verbais do sujeito que, numa dada circunstância, se orienta para o

pluridiscurso e elege uma linguagem, a depender das diversas circunstâncias em que se

situa o evento de linguagem:

Na verdade, também esse homem não tem relação com uma, mas com várias linguagens, sendo que apenas o lugar de cada uma é estabelecido e indiscutível, a passagem de um lugar para outro é prevista e automática como aquela que vai de um quarto para outro. Essas linguagens não se chocam entre si na consciência deste homem, e ele não tenta correlacioná-las ou olhar para uma delas usando os olhos de outra linguagem.

O modo como a análise é encaminhada respeita a própria elaboração dos livros, uma vez

que algumas argumentações serão apresentadas ora em conjunto, ora separadamente,

permitindo a estruturação de um texto mais fluido e que dê orientação de percurso ao

leitor. Muitos tópicos referentes ao mesmo livro não podem ser desmembrados, sob pena

de dificultar o entendimento da própria organização da obra. Exemplos de alguma

categoria poderão estar deslocados e comentados em outro lugar, com o intuito de iluminar

uma visão mais íntegra do livro. A opção por esse encaminhamento apenas reflete a

intenção de apresentar a inteireza da obra, privilegiando os embates discursivos a ela

inerentes.

Vale destacar o interesse de vários trabalhos sobre produções brasileiras, tanto do ponto de

vista histórico128 quanto do ponto de vista da temática e linguagem129; alguns estudos

128 A dissertação de Mestrado de Graça Lima, O Design Gráfico do Livro Infantil Brasileiro, defendida na PUC/RJ, em setembro de 1999, estuda algumas produções brasileiras dos anos 1970: Ziraldo, Eliardo França e Gian Calvi. 129 A dissertação de Mestrado de Ana Paula Zarur de Andrade e Silva, Por um Significado da Ilustração no Livro Infantil Brasileiro, defendida na PUC/RJ, em março de 1997, faz aproximações da ilustração como

Page 171: Capítulo V: Análise do material

171

sobre autores e ilustradores consagrados têm sido privilegiados tanto no aspecto

comunicativo, quanto em relação ao design130, além de uma abordagem dos aspectos

documentais sobre a disciplina Educação Artística, dirigidos a professores, e da

perspectiva da criança que lê o livro de imagens 131. Esse quadro permite inserir minha

pesquisa no conjunto das produções sobre o tema e compreender o limite do alcance das

inhas investigações.

5.1 A Perspectiva de Análise

a época iluminista e, de outro, do materialismo mecanicista. Diz

le (idem, p. 245-246):

m

Os estudos contidos nos capítulos anteriores apresentam a literatura e as artes plásticas

como fontes de diálogo, incorporando imagem e texto na perspectiva não só da técnica,

nem só da comunicação, mas da natureza de sua constituição, da linguagem. A análise que

se seguirá pretende recuperar os conceitos que deram condições de organizar o constructo

teórico da pesquisa e se debruçar sobre as obras com um olhar renovado e aberto a

interações nas quais o espaço e o tempo estejam vivamente imbricados numa figura única

de espaço/tempo. Essa visão de mundo já tinha sido anunciada por estudiosos da Física

Quântica, filósofos da organização do espaço e do tempo. Bakhtin (2003, p. 225-258), por

sua vez, nos oferece o conceito de cronotopo, justamente quando analisa a importância do

pensamento de Goethe para a compreensão do seu tempo, superando as limitações, de um

lado, do caráter utópico d

e

design e como linguagem. Outro trabalho é a dissertação de Mestrado de Luís Camargo, “Poesia Infantil e ilustração: estudo sobre Ou isto ou aquilo de Cecília Meireles”, defendida na Unicamp, 1998, onde estuda a relação entre poesia e ilustração de três poemas, em cinco diferentes edições. Cito ainda a dissertação de Mestrado de Nilton Gambá Junior, O Sedutor Design do Livro de História Infantil e sua Relação com a Narratividade, defendida na PUC/RJ, em maio de 1999, que procura desenvolver um parâmetro crítico para a avaliação das interferências realizadas pelo designer no livro de histórias infantil quanto à narratividade. A dissertação de Bárbara Jane Necyk, defendida pela PUC/RJ, em março de 2007, Texto e imagem: um olhar sobre o livro infantil contemporâneo, deseja encontrar parâmetros para a análise das diferentes possibilidades de condução da narrativa do livro infantil, efetuada pelo texto e pela imagem. Outra dissertação 130 Estudos sobre projeto gráfico dos livros infantis são encontrados, sobretudo, em pesquisas na área de artes e design. Outro exemplo é a publicação de Guto Lins, sobre projeto gráfico, metodologia e subjetividade em livro infantil, Livro Infantil? 131 No âmbito dos programas e documentos oficiais que orientam o ensino fundamental em materiais didáticos, a dissertação de Mestrado de Ronan Cardozo Couto, A Escolarização da Linguagem Visual: uma leitura dos documentos ao professor, defendida na UFMG, 2000. Para um ponto de vista do leitor mirim sobre o livro de imagem, ver a dissertação de mestrado de Mara Rosângela O Livro de imagens e as múltiplas leituras que a criança faz de seu texto visual, UNICAMP, Faculdade de Educação, 2001.

Page 172: Capítulo V: Análise do material

172

...no mundo de Goethe não há acontecimentos, enredos, motivos temporais que sejam indiferentes a um determinado lugar no espaço da realização, que possam realizar-se em toda a parte e em lugar algum (os eternos ‘enredos’ e motivos). Tudo nesse mundo é tempo-espaço, cronótopo autêntico. [ ] Daí o mundo concreto-singular e visível do

s aparentemente distantes, como a

escrição e a narração, de forma integrada, constituindo um modo de compreender o

a visual, cuja função para uma sociedade ágrafa

onstitui uma forma de organização da memória coletiva, da guarda de valores, de

espaço humano e da história humana a que se referem todas as imagens da imaginação criadora de Goethe...

Assim, nada escapa na elaboração da obra. As condições, que envolvem os eventos, fazem

parte dos acontecimentos e participam ativamente na constituição da linguagem, e os

sentidos, para Bakhtin, realizam-se através das interações que as atividades de linguagem

propiciam. Por isso, acredito poder tratar de aspecto

d

mundo que esfacela com a dicotomia espaço e tempo.

Tanto a descrição quanto a narração têm sido tratadas como tipos de texto que permitem

maior ou menor aproximação com as imagens. Justificada historicamente pela sua natureza

tipicamente verbal, a narrativa passa a ter existência em escritas ideográficas a partir do

momento em que estas assimilam o fonetismo como um elemento de sua escrita. As

imagens, a seu turno, assumem essa capacidade de contar algo, em seu conjunto ou mesmo

individualmente, desde há muitos séculos. Almeida (1999, p. 3-66) nos mostra, através de

seus estudos sobre os afrescos da Capela delli Strovegni, o uso da cronologia para marcar o

grau máximo do naturalismo no tempo, indicando que a antiga narrativa por imagens da

Idade Média prenunciava o cinema do século XX. O movimento não estaria nas imagens,

mas em nós, ao caminhar pela capela, seguindo-as. As imagens ali apresentadas são a

preservação de uma história, um dram

c

tradições e de crenças.

Essa perspectiva de utilização somente de imagens na construção de narrativa tem sido um

viés constante na elaboração de livros infantis. Flicts, livro sem texto verbal de 1969 de

Ziraldo, brinca com a cor e inova radicalmente a linguagem gráfica; a obra Ida e Volta

(fig.41), do artista plástico Juarez Machado, cuja primeira edição deu-se em 1976, foi um

marco na produção brasileira e conta as peripécias de um personagem, identificado apenas

pela marcas das passadas de seus sapatos e pés. Sem o conhecermos, sem nenhuma

informação sobre quem é, onde mora, sabemos o suficiente do seu trajeto, com quem anda,

Page 173: Capítulo V: Análise do material

173

o que come, sua atitude elegante com os mais velhos, enfim, a inscrição do personagem

numa narrativa totalmente explícita, apenas indicada por imagens. Depois dessa obra,

uitas outras se seguiram e fizeram do chamado livro sem texto uma categoria específica,

o livro de imagens, também álbum de imagem, ou o que chamo de literatura visual.

m

Por sua vez, a descrição, um tipo textual através do qual as imagens têm sinalizado seu

naturalismo poderoso, oscila de uma visualidade plana, simples, até, na outra ponta, uma

proposição complexa de caráter visualmente metafórico. O acúmulo descritivo, mais que

tornar fixo o tempo para a contemplação do espectador, são gestos percebidos do devir,

que convocam o espectador a lhes dar consecuçã

Figura 41 Ida e Volta , Capa do Livro

o. É a história-duração das cenas que

anha continuidade na história-cronologia do espectador. Sobre os afrescos de Giotto e

todas as imagens fixas,

da

há um tempo em trânsito presente, sendo o e ao mesmo tempo

s, próximos do desejo de

g

Almeida (p. 37) comenta:

... o tempo nunca está pintado, parado e isolado em cada quadro. Em caumpassado, presente e futuro. Um tempo que não se faz tempo que transcorre, mas tempo que dura. Duração. Eternidade em movimento.

Imagem e palavra, descrição e narração são pólos dentro dos quais podemos compreender

o caráter extensivo dos usos do texto e das imagens nos livros de literatura infantil. Os

limites que definiam tanto um quanto outro têm-se tornado tênue

Barthes para quem tudo são textos, só se diferenciando pelo meio material – limito essa

discussão, todavia, pois vai além dos propósitos desta pesquisa.

Observa-se que há uma forte tendência em fazer de muitos materiais de leitura algo que

possa repercutir os processos de estruturação do texto verbal, ao mesmo tempo em que o

Page 174: Capítulo V: Análise do material

174

texto se apropria de modos de realização plástica. Tanto imagem no texto, ou texto como

imagem, seja o iconotexto de que nos fala Louvel ou o estudo da ecfrase, ambos discutidos

no capítulo anterior, indicam um processo já sinalizado no início do século passado por

Bakhtin, sobre a flexibilidade e a democracia da narrativa literária, conforme foi aqui

apresentado. Naquele tempo, essa afirmativa definia um posicionamento teórico-analítico

crítico e renovador, abrindo o discurso do narrador para a existência de falas alheias. Hoje,

muitos críticos analisam negativamente esse regime da narrativa literária, considerando

uma fragilidade a excessiva abertura à fala do cotidiano, cujo mau aproveitamento muitas

vezes é percebido à mínima investigação sobre a literariedade do texto. Confunde-se,

gundo esses críticos, uma fala cotidiana com um discurso literário que se apropria da

mento do texto. Goulart (2007) vem propondo, desde 2004133, compreender os

rocessos argumentativos com base na teoria da enunciação de Bakhtin. Afirma ela (2007,

p.1-2):

o é produzido intencionalmente na direção do Outro, no movimento da interminável

rgumentação “se vincula à

ecessidade de compreender o movimento de produção de discursos e conhecimentos nas

se

linguagem do cotidiano132.

Outro aspecto de absoluta importância é a dimensão argumentativa subjacente, ou mesmo

explícita, nos textos de literatura infantil. Pretendo interrogar alguns livros no sentido de

esclarecer como atua o foco narrativo e como as imagens se associam a esse conjunto

argumentativo para interferir nas atitudes cooperativas do leitor, no seu processo de

enfrenta

p

Parto do pressuposto de que é possível conceber, a partir da concepção de linguagem do autor [Bakhtin], que enunciar é argumentar, tendo como horizonte as seguintes premissas: (1) A argumentatividade da linguagem é inerente ao princípio dialógico, já que todo enunciad

cadeia de enunciações; (2) Enunciar é agir sobre o outro, isto é, enunciar extrapola a idéia de compreender e responder enunciados.

O interesse da autora pelo tema da enunciação e da a

n

relações de ensino-aprendizagem, em espaços escolares”134.

132 Ricardo Azevedo trata da distinção entre literatura para crianças e literatura infantil e assinala a importância da arte (e da ficção) para a manutenção do caráter ficcional da linguagem, mesmo com as mais variadas temáticas, desde que sejam vistas “pelo ângulo da ficção, da subjetividade, da poesia”. In: Livros para crianças e literatura infantil: convergências e dissonâncias. www.ricardoazevedo.com.br 133 Goulart, C.M.A. Argumentação a partir dos estudos de Bakhtin: em busca de evidências teóricas e balizadoras para a análise de interações discursivas em sala de aula. Trabalho apresentado no GT Argumentação e explicação, Simpósio Nacional da ANPEPP, Vitória, ES, 2004. 134 Goulart, 2007, p. 2.

Page 175: Capítulo V: Análise do material

175

Para o estudo que ora apresento, a extensão das possibilidades de aproximações entre texto

e imagem faz com que procedimentos próprios da linguagem sejam assimilados pela

imagem, sem que ela perca sua capacidade plástica. Essa ampliação de ações que são feitas

pela e com a imagem incorpora alguns temas caros aos estudos da linguagem que, para

Goulart, ajudam na consideração de que enunciar é argumentar: “o princípio dialógico, a

organização de enunciados como gêneros do discurso e linguagens sociais e as categorias

de palavras de autoridade e internamente persuasiva”135. Em seu artigo, a pesquisadora

trata de conceitos importantes para sua arquitetura teórica. A palavra de autoridade e a

palavra internamente persuasiva bakhtinianas são elementos que explicitam o jogo de

persuasão social e assimilação pelo interlocutor da palavra alheia, contudo sem esquecer o

sistema da língua e a anterioridade de enunciados ao enunciado do locutor. A rede

estabelecida no e pelo processo interlocutivo definirá, dessa forma, a escolha do gênero do

enunciado, os procedim ntos composicionais e o estilo do enunciado, vale dizer, a seleção

dos recursos lingüístico

inar essa resposta de modo ativo; por outro lado, tendo a presumi-la, e essa resposta presumida, por sua vez, influi no

ssiva faz parte dessa atitude e denuncia o juízo de valor dado às suas ações

om as palavras. Esse é um dos aspectos que permitem a Goulart136 afirmar que a

argumentação

ens sociais: entre outros fatores já citados, quando nos

exploratório, compreendendo processos enunciativos como processos argumentativos, uma

e

s por parte do usuário (Bakhtin, 1992, p. 321):

[...] o enunciado daquele a quem respondo (aquiesço, contesto, executo, anoto etc.) é já-aqui, mas sua resposta é porvir. Enquanto elaboro meu enunciado, tendo a determ

meu enunciado (precavenho-me das objeções que estou prevendo, assinalo restrições etc.).

A atitude responsiva ativa do locutor está espelhada, portanto, no enunciado proferido. Sua

entonação expre

c

estaria enraizada na construção dos signos, dos gêneros do discurso e das linguagapropriamos de palavras dos outros, apropriamo-nos também do tom apreciativo, isto é, das condições sociais em que são produzidas e têm valor.

Inclui, nesse caso, as áreas de saber que vão institucionalizando formas de expor seus

conhecimentos, em diferentes textualidades. Analisando interações discursivas em uma

aula de História de 5ª série do Ensino Fundamental, a autora sugere aprofundar o trabalho

135 Opus cit. p.2 136 Opus cit.p.6

Page 176: Capítulo V: Análise do material

176

vez que se manifestam “no discurso pelo tom apreciativo, pelos tempos-espaços e pelo

estranhamento de palavras alheias nos enunciados, como palavras citadas, entre outras

ossibilidades” 137.

gnificante que não se separa da

alidade, de um plurilingüismo substancial, uma vez que

obre a alavra; nesse caso ela degenera num jogo verbal formalista.

possível compreender o sentido de linguagem social

roposto pelo autor (1998, p.154):

minando-se pelas transformações semânticas e lexicológicas.

p

A palavra de autoridade e a palavra internamente persuasiva são absorvidas pelo narrador

de muitos livros infantis, em um jogo lúdico de convencimento, no caso, com finalidade

educativa. A história da literatura para crianças, tanto no Brasil quanto em outros países,

mostra a importância do suporte e do gênero na educação infantil, para a elaboração ética

na construção dos cidadãos, inculcando valores filosóficos e sociais de importância para a

formação da consciência individual. Bakhtin (1998, p.152) critica a tomada da

bivocalidade retórica da palavra e propõe uma palavra si

re

a significação da palavra de outrem como objeto é tão grande que freqüentemente acontece a palavra tentar dissimular ou substituir a realidade e com isso ela se estreita e perde sua profundidade.

reqüentemente a retórica se limita puramente a vitórias verbais sFp

Dessa forma, sua concepção de enunciado do homem social, tanto em situações do

cotidiano como em obras de grande abrangência interlocutiva – caso de grandes obras

literárias ou científicas –, pressupõe a existência da palavra alheia, com a qual ocorre uma

interação tensa e um conflito, num processo constante de demarcação ou de esclarecimento

dialógico mútuo. Nessa direção, é

p

não o conjunto dos signos lingüísticos que determinam a valorização dialetológica e a singularização da linguagem, mas precisamente uma entidade concreta e viva dos signos, sua singularização social, a qual

ode se realizar também nos quadros de uma linguagem lingüisticamentepúnica, deter

Goulart138 lembra que a natureza dialógica da linguagem postulada pelo autor, por um

lado, e as textualidades características das linguagens sociais e gêneros do discurso do

cotidiano e as textualidades das linguagens sociais e gêneros trabalhados na escola, por

outro, muitas vezes não se assemelham e podem gerar conflitos nas aprendizagens das

137 Opus cit.p.13 138 Opus cit., p.13

Page 177: Capítulo V: Análise do material

177

disciplinas escolares. Os modos de argumentar, ou seja, modos de ação na direção dos

Outros, dos alunos nem sempre têm características composicionais compatíveis com as

linguagens sociais de referência. Talvez seja esse o indicador de escolarização de textos

apresentados aos alunos. Embora a argumentação exista em qualquer texto, o sentido

educativo é mais evidente em textos que visam à escolarização. O mesmo autor pode tratar

sua escrita em uma extensão de propostas, que vai desde o explicitamente educativo ao

livro que reafirma a prevalência do estético. A intencionalidade da ação da escrita é que vai

eterminar, então, a abrangência do seu trabalho.

e argumentação, quando os enunciados são

laborados através do literário e do plástico.

5.2 Considerações Gerais 139

aterial tenho em mãos e, conseqüentemente,

linha de trabalho que pretendi desenvolver.

d

Essa perspectiva argumentativa da linguagem proposta por Goulart possibilita explicar

certos modos de relação imagem e texto, algumas vezes deixando para a imagem, outras

para o texto, a complementação ou explicitação argumentativa subjacente a uma das

linguagens. A concepção bakhtiniana de hibridização, vista anteriormente neste estudo,

baseada na compreensão da língua historicamente real, como transformação plurilíngüe,

ajudará a iluminar a discussão sobre o projeto argumentativo em alguns livros de literatura

infantil: “é a mistura de duas linguagens sociais no interior de um único enunciado, é o

reencontro na arena deste enunciado de duas consciências lingüísticas, separadas por uma

época, por uma diferença social (ou ambas) das línguas” (1998, p. 156). Para Bakhtin, não

é simplesmente uma amálgama obscura e automática de linguagens, mas literariamente

intencional, portanto, uma representação literária da linguagem. Nesse sentido, proponho

ampliar o uso desse conceito, com apoio na idéia de hibridização de linguagens, e mostrar

a participação das imagens nos processos d

e

Optei por uma metodologia que pudesse inicialmente tratar de situações mais gerais, como

os projetos gráficos, as temáticas e uma apresentação de proposta de análise, para que o

leitor tenha acesso e compreenda que tipo de m

a

139 Os livros comentados serão anunciados pelo título e, eventualmente, pelo autor, com base na ficha técnica já apresentada.

Page 178: Capítulo V: Análise do material

178

Num segundo momento, apresento dimensões de análise, assim consideradas pela sua

abertura a atravessamentos de olhares e interrogações e que podem e devem ser ampliadas,

na medida em que o material de pesquisa se avolume e que a pesquisadora se apodere de

novos elementos teóricos. Portanto, são propostas de enfrentamento do material para

nálise, mais do que o interesse em circunscrever os livros em categorias que limitem

scussão que

presento permite focalizar três dimensões distintas: a dimensão narrativa, a dimensão

que

onstitui os discursos não deseja excluir os leitores privilegiados desse gênero. Contudo, é

is adiante, num tempo/espaço propício.

ue pretendem se dirigir à criança

a

condições de novos acabamentos, no sentido bakhtiniano.

A organização dessas dimensões dividiu-se em duas grandes tomadas: a primeira, que

desse conta da construção das obras literárias do ponto de vista do projeto ético-estético,

lúdico, interdiscursivo, gráfico e do acabamento, caracterizando elementos importantes

para o projeto de estruturação das linguagens. A segunda tomada pautou-se por seguir a

arquitetura do enunciado bakhtiniano, pelo menos em dois de seus constituintes: a

construção composicional e o estilo. Mesmo não totalmente delimitados, a di

a

descritiva e a dimensão do enquadramento, todas subdivididas em categorias.

Essa proposta de aproximação das relações entre discurso verbal e imagético nos livros de

literatura infantil não descarta a importância de aprofundar o tema sobre a conveniência ou

adequação do termo infantil à literatura (verbal e visual) a que tanto crianças quanto

adultos têm acesso e prazer na sua leitura. Até porque se sabe que o sentido dialógico

c

uma discussão que poderá ser enriquecida ma

5.2.1 Sobre os projetos gráfico-editoriais

Alguns comentários preliminares devem ser feitos sobre a contribuição dos projetos

editoriais ao conjunto interpretativo da obra. Pensando no chamado livro de literatura

infantil dos nossos dias, observa-se a forte presença do projeto gráfico como criador de um

produto que, em muitas circunstâncias, pode superar sua função primordial, a produção de

um objeto bonito e que contribua para o entendimento da leitura, facilitando a entrada do

leitor, ou pelo texto ou pela imagem. Essa é uma função de nossa época. Contudo, algumas

obras privilegiam de tal forma a existência do projeto gráfico, que ele passa a competir

com a elaboração discursiva do texto e com a plasticidade da imagem. Muitas críticas ao

uso exagerado da imagem em livros de literatura q

Page 179: Capítulo V: Análise do material

179

refletem, na verdade, a inadequação de um projeto gráfico que prevalece (ou não se

harmoniza) à discursividade do texto e da ilustração.

Nos livros que analiso, a preferência foi não só congregar aspectos comuns auxiliares (ou

não) à compreensão da obra, mas também destacar elementos particulares que dão a feição

de originalidade ao livro. A numeração das páginas, o formato das folhas, a distribuição de

texto e imagem, a concepção da capa são os aspectos sobre os quais me detive no presente

item. Ficou claro que esses aspectos não funcionam sozinhos, mas estão voltados para

finalidades, cuja extensão vai desde o inteiramente educativo ao extremamente estético,

bendo que essa linha não é linear nem estreita, pois ali cabem muitos outros aspectos tão

como pequenos capítulos (p. 14, 15) (fig.43) (fig.44), dão visibilidade às

transformações da narrativa (p. 20 em diante, sem que a numeração das páginas volte ao

normal).

sa

importantes quanto os que selecionei.

Primeiramente, uma característica do suporte que vem sendo reforçada ultimamente e que

indica atenção especial com a visibilidade de leitura é a opção de numeração das páginas.

É notável o cuidado de alguns livros em não numerar as páginas sobre o desenho nela

contido que, às vezes, ocupa página inteira. Alguns projetos não se importam em marcar as

páginas com números, outros organizam texto e imagem de tal forma que o numeral ficará

em espaço em branco, e outros ainda não numeram folha alguma, pois possivelmente

considera-se que estariam infringindo o espaço ficcional da história. Percebe-se, contudo,

que essas opções estarão, na maioria das vezes, em harmonia com as demais opções do

trabalho gráfico do livro. No livro Cocô de passarinho de Eva Furnari, as páginas são

numeradas, mantendo-se os números destacados tanto da imagem quanto do texto e

incorporados ao fundo da folha; em seu outro livro, Cacoete, os números assumem funções

de inteligibilidade textual: dividem os parágrafos (p. 13), as cenas (p. 13), (fig.42), blocos

de texto

Page 180: Capítulo V: Análise do material

180

Figura 42

Cacoete p.13 Figura 43

p.14 Cacoete

A série de livros que fala das partes do corpo humano – Pés, Cabeça, Coração –(fig.45)

(fig.46) (fig.47) , apresenta páginas numeradas. Em alguns deles não se tem o menor pudor

em interferir no desenho com os números, como para ajudar a ordenar o que está sendo

entado

Figura 44 Cacoete, p.15

apres

Page 181: Capítulo V: Análise do material

181

. Figura 45

Livro dos pés p.23 Figura 46

Livro das Cabeças , p.7

Page 182: Capítulo V: Análise do material

182

(fig.48): da mesma forma, as páginas são numeradas e a

ucativa começa a aparecer nesses pequenos sinais de enquadramento de

Figura 47 Livro dos Co gina dupla rações - pá

Como sua intenção é educar com prazer, apenas o livro mais recente, Coração, não tem

numeração, indicando a inclusão da numeração no trabalho gráfico. Mais um exemplo é a

obra Grande ou Pequena?

proposta ed

condução de leitura.

Já em O Rinoceronte ri, (fig.49) a numeração das páginas varia de posição aleatoriamente,

ora nas páginas ímpares, ora nas pares, depois voltando para as ímpares, sem uma

justificativa técnica ou estética muito clara.

Figura 48 Grande ou Pequena? , p.18

Page 183: Capítulo V: Análise do material

183

O Beijo da Palavrinha

Figura 49 nte Ri – PáO Rinocero gina dupla

Todavia, em , de Mia Couto e Malangatana, nem os quadros que

ocupam cada página, nem o texto verbal dado a ler são perturbados por paratextos

excludentes.

O papel não é uma folha em branco onde se depositam textos, figuras e numeração de

página, mas uma superfície constituída por vazios e cheios, como quer Christin, todos

constituindo significados. O mesmo acontece com Esquisita como eu, de Martha Medeiros,

bem como Poeminha em língua de brin anoel de B ros (entre outros), não há

numeração de páginas, talvez que cada página se

ansforma separadamente, ou para impedir os sinais de uma seriação que não tem

Figura 50 O Beijo da Palavrinha - Página dupla

car, de M ar

para não da ificar os quadros emn

tr

compromisso com a história do livro, uma vez que já é dada pela ordem de apresentação

das folhas.

Page 184: Capítulo V: Análise do material

184

Outro aspecto a ser notado é o formato das folhas, que variam de acordo com a proposta de

apresentação da história: pequenos e quadrados, retangulares e verticais, de bolso, médio,

grande, todos participam da construção dos sentidos como uma das condições de

p ra. arca distintiva de desse objeto livro

trando que o suporte, nesse caso, contribui intensam s possíveis que

obra oferece. Esse aspecto, que se transformou em um dos componentes de originalidade

Figura 51 Esquisita como eu - Página dupla

ossibilidades de leitu Essa é uma m produção ,

mos ente para os sentido

a

de muitos livros, não tem merecido relevância em relação aos livros didáticos da Educação

Básica brasileira, uma vez que obedece ao formato padrão de orientação do Ministério da

Educação.

No livro Meu amigo, o Canguru, de Ziraldo, a proposta de separar as páginas de texto das

páginas das imagens já indica a importância atribuída a cada dimensão expressiva: tanto

Figura 52 Poeminha em língua de brincar

Page 185: Capítulo V: Análise do material

185

texto quanto imagem contam a história do Gugu, amigo do narrador, e cada um à sua

feição: à esquerda, o texto, à direita, os desenhos, que vão se harmonizando em narrativas

às vezes paralelas, às vezes coincidentes, mas que são determinadas por uma linguagem

specífica e autônoma.

e

te a leitura pela

riança. A distribuição do texto e das imagens é leve e equilibrada, variando de posição na

m terceiro elemento pertencente ao projeto gráfico-editorial é a amplitude das

possibilidades de realizações do designer ou do ilustrador na distribuição de texto e de

imagem na página, confirmando esse aspecto como um importante estruturador de leitura,

orientado pelo seu caráter original, único, como é toda criação. Muitos mantêm um padrão

de organização que desconhece as intenções narrativas contidas no discurso literário; em

Do lado de cá, converso (faço rima, faço verso). Já nas páginas da direita Calado, vou desenhando as histórias do Gugu um amigo meu, antigo (que eu amo pra chuchu) Veja bem, pois cada história conto num desenho só. Aí, você tem que olhar o desenho com atenção Para poder descobrir da história, todo o enredo. Se, então, você sorrir Ou se der uma gargalhada (daquelas de pedir bis) A história estará contada (e eu, bastante feliz). ...

Figura 53 Meu amigo, o Canguru

Em Poeminha em língua de brincar, de Manoel de Barros, por exemplo, as imagens e o

texto coabitam as mesmas páginas, indicando que suas presenças participam de um projeto

gráfico em que tudo na paginação propõe efeitos de sentido: o corte da folha é quadrado, o

que dá ao objeto livro uma aparência infantil e uma aproximação ao mundo dos leitores

mirins (juvenil, adulto...). A letra é bastão, o que pode facilitar inicialmen

c

página: ora o texto em cima e a ilustração embaixo, ora a ilustração no meio do texto, ora a

ilustração começando a leitura; essa ordem indeterminada de texto e imagem na página não

parece ser um critério de leitura, mas, sim, de harmonia com o conjunto gráfico-editorial.

Portanto, dentro de uma aparência de simplicidade, esconde-se a complexidade que

caracteriza uma obra leve.

U

Page 186: Capítulo V: Análise do material

186

E agora? Vão tomar o meu lugar? (Fig54.), livro de imagem sem texto, a intenção estética

subentendida nos traços do ilustrador mantém-se subordinada ao projeto pedagógico da

autora psicóloga, mesmo que as imagens componham um conjunto harmônico.

A intencionalidade fortemente dirigida à formação de comportamentos adequa o projeto

gráfico-editorial, com poucos elementos na capa e orientados para a temática da história,

facilitando a leitura de quem não sabe ler. Por sua vez, o título deixa pouca margem para

interpretação. Vale a pena lembrar que a obra não se resume a uma proposta didática, com

uma metodologia disfarçada em situações de vida

Figura 54 E agora? Vão tomar o meu lugar?

. O que deve ser enfatizado, contudo, é

que a intencionalidade educativa tem forte presença no conjunto da obra.

Por outro lado, mantendo uma intencionalidade de cunho educativo em livros com texto e

imagem, é freqüente o uso das imagens como ilustração do texto escrito, como no caso de

Grande ou pequena? (fig.55). Contudo, no diálogo que se estabelece entre imagem e texto,

as qualidades estéticas da obra se destacam em diferentes níveis: cores como branco, rosa,

azul claro, azul forte, amarelo, são o fundo onde se sobrepõem as peças para o cenário

infantil.

Page 187: Capítulo V: Análise do material

187

Figura 55

Grande ou Pequena? p. 19 Figura 56

Grande ou Pequena? p. 28

As figuras parecem ser de massinha, o que lhes ajuda a dar volume nas cenas representadas

em cada página. Sem se preocupar com a perspectiva ou a adequação ao enquadramento,

os elementos são dispostos na página de forma harmoniosa, mas livre, para que a criança

possa totalizar o ambiente. Alguns recursos textuais e gráficos aproximam o ficcional ao

mundo infantil (Fig.56): o texto escrito em quadrinhas – redondilha maior - propõe um

ritmo mais popular, de fácil assimilação, tal como batatinha quando nasce..., também

encontrada no livro Coração; a letra de imprensa, modelo padrão para todo o livro, é a

mesma usada em livros do período de alfabetização; e, finalmente, a maioria das páginas é

dupla, ampliando os objetos e o campo de leitura.

ormiga amiga é resultado de um trabalho de linguagem, tanto no texto de Bartolomeu C.

ueirós, quanto nas ilustrações de Elizabeth Teixeira, e traz a seguinte informação na

apresentam uma pequena margem rosa, que destaca a ilustração, e a parte branca com o

F

Q

quarta capa: “Quatro livros, escritos para crianças iniciantes na leitura, fazem parte da

Série Eu sei de cor. Os textos buscam elementos existentes no universo infantil: humor,

rima, fantasia e o inusitado. Por meio dos livros os jovens leitores vão se encantar com as

possibilidades das palavras e seus muitos sentidos. Assim, ler e escrever passa a ser um

prazer”. Esse livro é um exemplo de presença da atividade do designer na produção gráfica

do livro: o texto no centro, com espaçamento entre linhas adequado para leitor iniciante,

fonte e tamanho aproximado do formato de letra usada no período de alfabetização

(semelhante ao livro Grande ou pequena); a numeração das páginas é destacada fora do

quadro da história, em cor diferente, num dos vértices da margem; todas as páginas

Page 188: Capítulo V: Análise do material

188

texto escrito em preto. Estes dois elementos (imagem e palavra) obedecem a uma ordem

rígida de apresentação: cada elemento em uma página separada (tal como nos primórdios

e impressão do livro) e a poesia centralizada na página. Todos os elementos gráficos se

propõem a facilitar o reconhecimento da escrita que a criança conhece, a escolar.

Retomando o enunciado bakhtiniano, acredito poder considerar a importância desses

elementos verbais e o que ele chama de extraverbais (os não lingüísticos) como

fundamentais para a produção de sentidos. No caso dos livros infantis contemporâneos, os

projetos gráficos atuam fortemente na orientação do processo de leitura. Os desenhos

também observam a relação de proporcionalidade, explicitando a intencionalidade do

exagero pelo destaque ao pequeno tamanho da formiga em relação aos objetos e ambiente

da casa.

d

Já em As Patas da vaca, o tratamento estético imprimido por Bartolomeu e pelo ilustrador

Walter Ono se reflete no projeto gráfico, de forma a que nele se destaque o jogo de

linguagens.

Figura 57 Formiga Amiga, p. 4

Dirigido prioritariamente a crianças em fase de alfabetização, o texto curto, a

tra bastão, o desenho simples e cores suaves, os poucos elementos na página, são

ingredientes facilitadores que apóiam as circunstâncias de leitura para permitir, então, a

entrada no mundo ficcional e plástico. Mesmo com esses elementos, não há numeração de

páginas. O texto é para ler, contar e imaginar. A história da vaca e da pata, pernas e pares,

bicos e asas tem intenção clara de jogo de palavras, de sons e de idéias. E de contação. Já

na primeira página a brincadeira é anunciada: “As quatro patas da vaca são quatro patos,

le

Page 189: Capítulo V: Análise do material

189

no boi?” (fig.58), confrontando o masculino e o feminino gramatical com o masculino e o

feminino sob a ótica do gênero.

Essa mescla de palavras de diferentes naturezas (gramatical e social) faz a linguagem

tomar uma direção divertida, irreveren

Figura 58 As patas da vaca

te, acarretando um estranhamento que impossibilita

ma leitura automática e previsível. Ao contrário, o leitor deverá refazer, a seu modo, a

interpretação. Denuncia, na última página do livro, seu projeto ficcional: criar um novo

personagem na fauna brasileira: “o bicho da nossa história é feito de vaca e pata, e feito de

leite e ovo. Isso acaba dando bolo”. A importância da proposta de Ono é corroborar a idéia

de que as imagens não são apenas ilustração do texto, não se propõem somente a se

adequar à instância narrativa predominante, mas querem ler e interpretar o texto verbal,

construindo um diálogo texto e imagem, narrativa e espacialidade (fig.59): duas e até três

linhas horizontais são criadas na mesma página, dividindo-a em planos, para que se

cortem, recortem, colem, montem e remontem partes dos animais e os recriem de forma

impensada.

u

Page 190: Capítulo V: Análise do material

190

Essa divisão propicia, ademais, fazer uso da linha do corte como superfície de apoio, que

até poderá vir a ser rés do chão. A solução plástica do ilustrador abre a possibilidade de

jogar com o tamanho dos elementos (proporção), cor (como destaque para as partes

recortadas), leitura do texto (fig. 60).

Figura 59 As patas da vaca

De um lado, o escritor tratando a palavra como objeto de encantamento; do outro, o

ilustrador dando tratos à ampliar o espaço textual. Esse

é o contrato que o projeto gráfico-editorial estabelece com as crianças (e com os adultos)

para começar a viagem de leitura.

Figura 60 As patas da vaca

bola para, na sua recriação visual,

Page 191: Capítulo V: Análise do material

191

Outros livros procuram inovar nas formas de diálogo que o suporte e o gênero permitem,

mantendo certo padrão editorial para a identificação visual de coleções. A finalidade

educativa da coleção Pés, Cabeça, Coração etc. anda pari passu com a presença de uma

elaboração estética refinada. Arriscando uma inversão de prioridades ou, mesmo, de níveis

de aproximação com o leitor, a coleção pode ser considerada um livro didático ao

contrário, pois a natureza do gênero literário permanece íntegra e não se deixa sobrepor

pela finalidade educativa, não há uma intencionalidade de leitura fora deles mesmo:

inhas, frases-feitas, provérbios e metáforas, os textos não

constituem em narrativa. A exemplo, lembra revistas de

Superinteressante; é poesia, brincadeira, informação, tudo que

leitura e prazer, com imaginação e apuro na exploração

lingüística, no estranhamento da linguagem do cotidiano e em busca de novas

interrogações, através do jogo de linguagem que faz divertir. Isso requer um afrouxamento

dos cânones literários para incluir outros textos que não circulam no campo específico da

literatura, mas que podem ser tratados como jogos de linguagem. A distribuição dos textos

não obedece a nenhuma ordem pré-estabelecida, e eles circulam pelas páginas com total

liberdade ao leitor, que determinará seu caminho de leitura; de qualquer forma, o caráter

educativo está presente, e a intenção educativa convive com a literatura. As imagens são

ilustrações dos textos, sem serem arrojadas e sem pretenderem ir além de uma explicação

o conteúdo do texto (Fig.61,62,63,64,65

contendo quadrinhas infantis, adiv

página ciência divertida, porse

divulgação científica, como

poderia ser aprendido com

d ,66,67).

Figura 61

Livro dos Corações, página dupla

Page 192: Capítulo V: Análise do material

192

Figura 62

Livro dos Corações, página dupla

Figura 63

do Livro dos Corações, página dupla

Figura 64

Livro dos 7 Pés, p. 2

Page 193: Capítulo V: Análise do material

193

Figura 65 Livro dos Pés, p.25

Figura 66 Livro das Cabeças, p.10

Figura 67

Livro das Cabeças, p.20

Page 194: Capítulo V: Análise do material

194

Outro exemplo da relação do texto com as imagens vê-se em O Rinoceronte ri, em que

cada imagem representa um animal, tema das poesias, sempre em dupla página, o que dá

uma folga espacial para propor um trabalho gráfico mais elaborado e que possa sintetizar a

temática do poema. Pretende-se, desse modo, compor uma ambiência para que a inserção

da poesia, tanto na temática, quanto no conteúdo, seja exitosa nos seus efeitos. As

estruturas dos poemas não são fixas, caso do poema A Pulga (ver fig.49), mais visual,

brinca com o pulo da pulga, sempre móvel, enfatizado pela separação das sílabas como

marcas do pulo, que dará ritmo à leitura. Resultado interessante até no último pulo da

pulga, que, de tão impaciente, acaba caindo. (o te de impaciente vira tóim!, já no chão); ou

os dísticos, dos tercetos, das quadras em redondilha menor ou não, enfim, uma

ultiplicidade de formas ao dispor do poeta que realiza gráfica e lingüisticamente a

construção poética imprimindo os sentidos ao poema, além do seu desejo de fazer rir,

sugerido na dedicatória do livro.

Todavia, algumas obras superam imposições de outra ordem que não a literária e a plástica,

e sua realização gráfica torna-se peça essencial para o entendimento do projeto ficcional,

como é o caso de Cíclico, Rodolfo, o Carneiro, Minha mãe é um problema, entre tantos

outros trabalhos de artistas que conseguem tratar o projeto gráfico-editorial como um

projeto ético-estético no âmbito da formação dos sujeitos leitores.

d

m

Figura 68 Cocô de Passarinho, p. 3

Page 195: Capítulo V: Análise do material

195

Em Cocô de passarinho (fig.68), a página é diagramada de forma a dar relevo à instância

discursiva e plástica: as duas, destacadas e postas sobre o amarelo, se constituem uma

colagem de imagem e texto que não pretende criar uma terceira forma, como nos trabalhos

de colagem em geral, mas dar destaque às duas dimensões. Fundo branco, colorido e

sombreado a lápis, lembrando desenhos infantis. Em Cacoete (ver fig.43), a disposição do

texto na página acompanha exclusivamente seu conteúdo semântico, reafirmando a idéia

de que o texto é imagem, é linguagem gráfica. A autora propõe estilo de letra, orientação

de leitura em coluna (p.14-15), história em quadrinhos (fig.69), mapas (fig.70) para extrair

de sua forma composicional os elementos que comporão o discurso estético-literário.

Em Minha mãe é um problema, texto e ilustração de Babette Cole, o projeto gráfico-

editorial compatibiliza-se com a proposta da obra, em

Figura 69 Cacoete, p.10

Figura 70 Cacoete, p.11

tamanho de folha média quadrada,

om desenhos que se reportam a uma época antiga, com castelo, bruxa, vassoura e

brincadeiras de histórias infantis fig.71 Misturam-se a época antiga e o contemporâneo,

c

( ).

uma bruxa moderna com os ingredientes da bruxa de antigamente. Esse é o sabor da

história, que recupera, no imaginário infantil das crianças que vivem na era do computador,

uma sorte de sobrenatural sem medo.

Page 196: Capítulo V: Análise do material

196

Cocô de passarinho, de Eva Furnari, propõe um layout de página padrão para todo o livro,

estacando texto e imagem por um fundo br sobre a página amarela. Isso dá uma

aparência de colagem, como que desta m e sua legenda, um texto (o verbal)

uma na vida dos

us moradores, como, por exemplo, na p. 5-6: três personagens à esquerda e, logo, três

os (por exemplo, a árvore), indicando o estilo do ilustrador: brincalhão, sem ser

anônico; engraçado, sem perder a originalidade do seu traço; não é uma leitura difícil para

as crianças, e isso mantém o livro distante do óbvio.

Outro livro de Furnari que brinca com a distribuição é Cacoete: as imagens e o texto

caminham juntos, marcando, um e outro, as mudanças de comportamento, as ações trágicas

da bruxa, transformando o mundo ao contrário: a simetria na imagem equivale a

comportamentos regrados, nas p. 3,4,5 (fig.72); o enquadramento centralizado tem sua

Figura 71 Minha mãe é um problema, página dupla

d anco

cando image

não interferindo, nem atravessando a composição do outro texto (o visual). Até mesmo a

disposição de todos os elementos é simetricamente organizada na página, dialogando com

o texto: a repetição dos dias numa cidadezinha pequena, sem alteração alg

se

personagens à direita; três passarinhos de um lado e três passarinhos do outro. Essa

apresentação visual da história permite desdobramentos de sentidos, deixando que os

leitores vão confirmando a regularidade do cotidiano que não permite interferência externa.

Coerente com o público-alvo intuído, tudo que há no livro se dirige para o leitor novato. A

capa e a quarta capa não apresentam texto verbal, a não ser o título, e os desenhos são bem

estilizad

c

Page 197: Capítulo V: Análise do material

197

contrapartida no ajuntamento de formas semelhantes, na p. 5; o uso de letras manuscritas

explicita o efeito dos raios desorganizadores, como nas p. 21, 22 etc.

As letras são próprias para cada tipo de uso, como discurso direto, fala do narrador, letreiro

da quitanda, legenda de desenhos, fala de personagens encantados etc. Essa especificidade

serve como orientação de leitura, marcando núcleos narrativos próprios.

Já em Rodolfo, o carneiro, o autor e ilustrador Rob Scotton dialoga texto e imagem, um

buscando o outro para completar e complementar sentidos possíveis: o texto acompanha o

desenho, em cima ou embaixo dele, fora ou dentro do quadro, sempre adequando sua

presença às intenções gráficas da paginação. Um bom exemplo é o das p. 13/14 (fig.73),

em que o texto diz: “Não importava o qu

Figura 72 Cacoete, p. 5

anto tentasse, Rodolfo não conseguia cair no

no”.

so

Page 198: Capítulo V: Análise do material

198

caminho em labirinto do texto, mento do gorro de dormir, dá

isibilidade ao leitor da dificuldade do carneiro em relaxar. Como cantoneiras,

carneirinhos nas pontas da folha sugerem posições ensaiadas pelo bichinho, na tentativa de

um desenho

equeno dos carneirinhos, no centro da folha, fazendo com que todo o branco em volta

O que a o movicompanhaFigura 73 Rodolfo o Carneiro, p. 13

v

se acomodar. Esse jogo verbovisual permite que cada linguagem expresse alguma coisa,

acrescentando-se mutuamente e permitindo concretizar, no discurso proposto, uma poesia

verbovisual que nos remete às considerações de Cristóvão Tezza, como discutido em

capítulo anterior. Na p. 11(fig.74), por exemplo, a noite é apresentada com

p

participe ativamente da história, como que ajudando o silêncio (em branco) a emudecer a

noite: tudo quieto, como um quadro. Por isso, o branco como moldura. O texto acompanha

a inclinação da curva da moldura. Portanto a leitura dessa página não é o texto ou o

desenho: são os dois, além do branco do papel, da inclinação da moldura e do texto. O

branco, como diz Christin, não é o vazio, mas um espaço de plasticidade que participa

significativamente dos sentidos da página.

Page 199: Capítulo V: Análise do material

199

Tudo isso dá chance de poder contrastar com a palavra que quebra esse conjunto. Na ponta

da direita embaixo, isto é, no último lugar de escrita, pronto para virar a página, a palavra

exceto suspende a tranqüilidade e a harmonia do conjunto do quadro para preparar o

conflito: “exceto...”: Rodolfo, o carneiro, não consegue

Figura 74 Rodolfo o Carneiro, p. 11

dormir.

Um fator a mais que contribui para a estruturação do projeto gráfico-editorial dos livros é a

concepção de capa. Na maioria das edições, tanto para o público adulto como para o

infanto-juvenil, a capa reflete o modo como se quer apresentar o conteúdo do tema ao

leitor. Nos livros de literatura infantil, esse aspecto é vivamente trabalhado, assumindo

uma linguagem lúdica que atraia o leitor mirim. A capa traduz o conceito implícito do

projeto gráfico do livro. No livro Vizinho, vizinha, por exemplo, a capa explicita o tema a

ser desenvolvido, apresentando os dois protagonistas de costas um para o outro, indo em

direções opostas, tendo ao fundo o prédio onde moram inserido no cenário urbano. Na

segunda e terceira capas, como uma seqüência de informações preliminares, mostra-se um

desenho, espécie de mapa de uma cidade, com lagoa, praia, praça, prédios, favela etc.,

atraindo o leitor para o campo simbólico em que se dá a história.

Outro exemplo, dentro de todos os livros analisados, é o livro Esquisita como eu: a capa

traduz a concepção do conteúdo do texto. As máscaras dispostas em círculo admitem

interpretações que vão desde o reconhecimento dos personagens citados – meu pai, minha

mãe, meus irmãos, eles – às persona de que a protagonista se investe. Todos os papéis são

Page 200: Capítulo V: Análise do material

200

válidos, toda a diferença é possível, todos olhando para o centro onde a frase Esquisita

como eu dará a orientação ética da leitura. Além disso, o apuro estético dos recortes está

em consonância com a proposta do texto, como verdadeiros quadros que expressam o

modo de ser da protagonista.

5.2.2 Sobre as temáticas Os livros analisados refletem temáticas bastante freqüentes nos livros de literatura infantil

tímulo para a expressão das emoções da criança frente

situação-problema. Sendo educativo, não é disciplinar, mas imprime um sentido

ança e lembra a importância da atenção

a essas questões cruciais para uma pessoa qu sente que deverá ceder seu lugar a um outro.

Diz: “Esse livro procura auxiliar pais e educadores a lidar melhor com as reações da

criança que vive essa situação e a compartilhar com ela suas emoções. Valendo-se de

imagens diretas e simples, que retratam vivências comuns no cotidiano de uma família,

mportantes relativas á chegada do bebê.” Na quarta capa, há

e seus diferentes tratamentos variam de acordo com suas finalidades. Uma delas é a

preocupação com a subjetividade infantil, com a construção do seu imaginário; temas

como a rejeição têm sido explorados de diferentes facetas, mostrando a superação do

problema através do amor da família – como uma linha moralizante –, ou através da

afirmação da diferença como valor, refletindo formas contemporâneas de sociabilidade –

caso do livro Esquisita como eu. Dessa forma, o tema da normalidade e da dificuldade de

conviver com a diferença sempre encontrou e continua encontrando espaço para estar na

arena dos debates (como no livro Você sabe gritar).

O livro E Agora? Vão tomar o meu lugar?, de Bel Linares, com ilustração de Alcy

Linares, exemplifica bem a prevalência da intencionalidade educativa: é um livro que

pretende orientar pais e educadores sobre como é o comportamento da criança que deixa de

ser filho único para receber em casa outro irmão. Organizado só com imagem, limita-se a

propor situações que sirvam como es

à

pedagógico de comportamento. O projeto editorial é simples, com todos os elementos que

o compõem voltados para um só objetivo, que é o de auxiliar pais e professores,

principalmente. Não existem muitos paratextos, apenas uma orelha e a quarta capa. O texto

da orelha se dirige a pais e educadores, orientando-os sobre como lidar com uma situação

difícil que a criança mais velha poderá viver quando chegar um novo irmão. Descreve

também uma série de situações vivenciadas pela cri

e

aborda algumas questões i

Page 201: Capítulo V: Análise do material

201

momentos em que o texto é explicitamente dirigido aos pais. Diz: “Como lidar com birras?

Como fazer meu filho entender que o amo?” Continua informando aos adultos sobre a

autora e a ilustradora, com isso garantindo aos leitores adultos qualidade na orientação

imprimida ao livro, explicitada pelas imagens que poderão ajudar psicologicamente a

criança a compreender sua experiência e a crescer nesse nosso mundo. Assim, o texto

verbal se dirige aos professores e pais, os adultos que deveriam se esclarecer para tratar

com a criança sobre esse problema, enquanto as imagens se voltam para as crianças.

ática igualmente presente nos livros q e compõem o corpus da pesquisa, e que

ma herança dos anos 1970-80, é o tratamento do tema do ‘sobrenatural’ sem

edo ou, melhor dizendo, o trágico destituído do simbolismo clássico das histórias

diferente do amor trágico romântico, impossível de se realizar na terra,

o Amor Índio, de Rui de Oliveira: foi preciso que a Terra se tornasse um grande

is brilhante das estrelas” é um

Outra tem

parece ser u

u

m

infantis. Paródias de histórias infantis, como a do Chapeuzinho Vermelho, foram marcas

de uma época em que o mundo se afirmava pelas teorias da comunicação e da informação,

que criava um cotidiano desmistificado pela mídia globalizada. Novas formas de

encantamento são estudadas por teóricos que desejam compreender a rede mundial que

instaura outros laços de sociabilidade140. Fez muito sucesso o livro Chapeuzinho Amarelo,

de Chico Buarque, que trata do medo do lobo e o transforma em bolo. Nos livros

analisados, o medo é trazido para o racional e não se deixa abalar pelas forças obscuras do

desconhecido, como em Minha mãe é um problema. Em conseqüência desse modo de

enfrentar os problemas do mundo, a atitude da menina em A princesa boca-suja se

distancia do modo de ser das princesas tradicionais e se aproxima dos movimentos

feministas de afirmação do gênero.

Essa postura é bem

com

oceano e que a índia Cuillac escapasse com seu filho para que Conyra os reencontrasse

vivendo numa ilha (fig.75). “E juntos voaram para a eternidade até se transformarem na

ma a maneira de procurar outros mundos para se viabilizar,

traduzindo o mote “viveram felizes para sempre”.

140 Ver essa discussão no cap.3.

Page 202: Capítulo V: Análise do material

202

Em contrapartida, esse mundo de encantamento nem sempre é visto nas ações dos

ersonagens, na história que mantém luxo narrativo, mas nas ações com a

nguagem, que dão sign e

utoridade poética, que Bakhtin tanto preza. O que pode ser observado nos textos de

odem fazer

pela metade, mas enfrentar o mar pede a nossa alma inteira: - Quem nunca viu o mar não

do narrado no livro torna-se mundo

entado, que se desdobra uma segunda vez em mundo encantado, pela participação da

em tinha feito cocô na cabeça dela: o

ático nada tem de estereotipado, uma vez que o assunto, cocô, não é

freqüente nos livros. O tratamento do tema transcorre de forma o mais trivial possível,

recolocando o assunto, de uma esfera familiar e privada, em uma esfera pública, o que

possibilita uma total identificação com a criança: quem fez cocô na cabeça da pequena

toupeira? (fig.76). Excetuando o início da história, que começa pela fala do narrador, o

Figura 75 Amor Índio

p tenso o f

li ificação à enunciação. Este é o lugar da construção da palavra d

a

Manoel de Barros e Mia Couto, que, ao elaborarem a linguagem, com ela mantêm o fio de

encantamento no mundo criado. Como não admitir plausível a contação do menino: “Disse

que ainda hoje vira a nossa Tarde sentada sobre uma lata ao modo que um bentevi sentado

na telha” (Manoel de Barros). Ou a certeza de Jaime de que “há coisas que se p

sabe o que é chorar!” (Mia Couto). Portanto, o mun

com

enunciação que comenta, articula os dois mundos, aproximando-os, na dimensão da

linguagem.

Uma tendência que vem sendo muito explorada nos livros infantis é a ênfase nos assuntos

do cotidiano, criando uma empatia com a criança nos temas que lhe são próprios. É o caso

de Da pequena toupeira que queria saber qu

conteúdo tem

Page 203: Capítulo V: Análise do material

203

texto é todo estruturado em discurso direto, com as falas dos animais seguidas da

enunciação entre parênteses.

Observa-se, portanto, uma variedade temática nos livros analisados, o que é marca dos

livros infantis, de uma maneira geral. O interesse da pesquisa, no entanto, detém-se em

aprofundar as diferentes possibilidades de co

Figura 76 ‘Da pequena toupeira que queria saber quem tinha

feito cocô na cabeça dela

mo se articulam texto e imagem dentro do

desenvolvimento temático. Esse assunt

○ 5.3 Construção d

Considero produtiva a que poderá fornecer

eios para melhor focalizar a análise a seguir. Discutindo a relação de prevalência (ou a

o será desenvolvido na próxima seção.

e uma proposta de análise

abertura dessa seção com a análise de um livro

m

falta de privilégio) do texto ou da imagem, a postura imprimida no fazer plástico/literário

de alguns livros infantis melhor explica os caminhos da estética, seja verbal, plástica,

gráfica, na produção para crianças que ainda detêm o frescor do uso múltiplo de formas de

significação.

Page 204: Capítulo V: Análise do material

204

A obra é Desertos (fig.77), de Roger Mello e Roseana Murray. Ao abrir o livro,

imediatamente somos convidados a buscar nas nossas reminiscências de infância o modo

como nos relacionamos com este objeto, isso é, uma postura física e cognitiva de quem vai

er um álbum, imagens, lembrar dos mom idos e deixar vir os sentimentos que nos

possam. Chartier (2002, p. 61-62) lembra a importância do suporte para o processo de

Caderno de Viagem, aonde o autor vai anotando, a seu modo, tudo o que vê.

discurso, aproveitando-se das esferas de

comunicação das línguas sociais que sedimentam formas comuns de enunciado: “Qualquer

enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da

língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que

denominamos gêneros do discurso.”

Figura 77 Desertos

v entos viv

a

produção de sentidos do texto:

Os textos não existem fora dos suportes materiais (sejam eles quais forem) de que são os veículos. Contra a abstração dos textos, é preciso lembrar que as formas que permitem sua leitura, sua audição ou sua visão participam profundamente da construção de seus significados. O ‘mesmo’ texto, fixado em letras, não é o ‘mesmo’ caso mudem os dispositivos de sua escrita e de sua comunicação.

Nesse caso, além do suporte livro, o conceito gráfico se desdobra na realização do material

impresso, buscando no modo de seqüenciar os desenhos e no formato retangular e

horizontal, com duas fitas nas capas enlaçando as folhas, uma atitude de leitura. Na

verdade, este objeto propõe um gênero que permite o envolvimento de forma especial e

única: é um

Bakhtin (2000, p. 279) define os gêneros do

Page 205: Capítulo V: Análise do material

205

A compreensão desse tema tem sido fundamental para uma abordagem ampliada das

relações discursivas e tem propiciado a elaboração de uma grande diversidade de trabalhos

cada um imprimindo um olhar próprio sobre a produção do Círculo.

Este gênero permite ao viajante fazer de suas anotações e comentários um diário de

viagem, e nos oferecê-las para que possamos usufruir seus relatos (fig.78).

Acredito, pela linha de argumentação que venho traçando ao longo desse estudo, poder

associar os estudos de Bakhtin e seu Círculo sobre os gêneros do discurso141 ao trabalho

que esse Caderno propicia com desenhos e textos, pois permitem reconhecer nesse relato

visual a especificidade discursiva do gênero, mostrando sua indissociabilidade com o

estilo: “quando há estilo, há gênero”, afirma o autor. Murray lembra, no prefácio do livro

Desertos, vários escritores viajantes que nos permitiram sonhar: Marco Pólo, Stevenson,

Maupassant, Guimarães Rosa, entre outros, “nos levam juntos, nas entrelinhas do texto,

nas margens, entre um adjetivo e uma exclamação de assombro”. E, acrescento, na

suavidade ou vigor dos traços, nas cores, na distância entre os elementos, en

Figura 78 Desertos

fim, na

perfície significativa apontada por Christin para incluir os entre como valor de leitura

su

fig.79.

141 Bakhtin, 2000, p. 277-326.

Page 206: Capítulo V: Análise do material

206

O Caderno de Viagem Desertos, de Roger Mello, resultado de sua viagem a Marrocos,

mantém uma interlocução estreita com o texto de Roseana Murray. É ela que nos

confidencia no prefácio: “imediatamente me transportei para estes vastos espaços... Senti

um desejo imenso de ilustrar aqueles desenhos com meus poemas”

Figura 79 Desertos

[grifo meu]. Acerca das

notações, ela diz: “pedi ao Roger que m e fazer estes comentários em forma de

oema... O Roger viu e desenhou. E dei e escrevi. Embora não conheça

essoalmente o deserto...” Pois essa recordação de Roseana Murray ativa sua memória das

(por volta de 86-82 AC) sobre memória, ele

mbra que “A memória natural é nata, juntamente com o pensamento, e a memória

suas orações, seus tapetes, as especiarias, tudo isso com traços leves através dos

uais compreendemos os sentidos do deserto retratado. A marca temporal da narrativa nos

a e deixass

p u recor

p

tradições e das idiossincrasias, do que está ligado ao seu grupo e dos seus devaneios e

reinvenções. Essa memória organizada e inclusiva de tantos acontecimentos não vividos,

mas elaborados, pode ser compreendida pela seguinte definição trazida por Almeida (1999,

p. 47): ao comentar o texto de Caio Herênio

le

artificial é aquela ‘potencializada’ ou consolidada pela Educação”. Tanto é que não há

preocupação em fazer do texto verbal uma narrativa; ao contrário, são trechos que cobrem

dois ou três desenhos, ou um poema para uma página de desenhos e informações.

O que Mello nos oferece é um conjunto arquitetônico de ruas, janelas, vitrais, muros,

portas, cabos de energia, postes de iluminação de Marrocos, suas mulheres e o vento, o

homem e

q

é dada pela seqüência de nomes das cidades que organiza os conjuntos de desenhos –

Settat, Rabat etc. – e pela numeração de 1 a 24, certamente os dias de sua viagem: duas

Page 207: Capítulo V: Análise do material

207

temporalidades que dão ao leitor o mapa de viagem, o tempo de viagem e a compreensão

do artista sobre essa realidade estrangeira.

O texto se acomoda respeitosamente a partir da disposição das imagens, que se fortalece

por outras referências textuais do ilustrador (fig. 80). São dois autores/artistas, de imagens

e de texto, que dialogam muito intimamente.

ma sutil situação de impasse do ponto de vista da edição, pois são

Outro exemplo de expl

gritar?: a capa aprese

mente sendo discrim

linguagens, mas por explicitar justamente a discussão que venho apresentando, numa total

superação de formas antigas de relação entre texto e imagem e de relações de autoria. A

Figura 80 Desertos

No entanto, observa-se u

mantidas as referências catalográficas clássicas para imagem e texto: Desertos: autora

Roseana Murray, ilustrações de Roger Mello, enquanto a escritora nos informa que ela é a

ilustradora dos desenhos de Mello, escritor.

icitação dessa nova relação de autor e ilustrador está em Você sabe

nta os autores sem especificar a linguagem criada por cada um,

inados na referência catalográfica, ao final do livro, e nas so

informações finais dirigidas ao público adulto. Esse nivelamento, na capa, entre os autores

do texto verbal e do texto visual explicita a importância dada pela editoria às imagens na

estruturação textual e discursiva desse gênero e enfatiza o conceito de autoria para o livro

infantil.

Acredito que a importância desse fato não se dê por possíveis relações de poder entre as

Page 208: Capítulo V: Análise do material

208

declaração do artista plástico e ilustrador de livros Rui de Oliveira142 muito contribui para

o fortalecimento dessa postura: “Ilustrar foi um desdobramento natural do meu trabalho e

mbém uma escolha influenciada por minha paixão pela literatura. Pra mim ilustração é

5.4 Dimensões da construção das obras literárias

Esta seção se interessa por explicitar a importância que os livros de literatura infantil

assumem na construção dos sujeitos, das suas interações com o outro, constituindo valores

e orientando um olhar sobre o mundo, sem que isso caracterize uma perspectiva

pedagógica.

5.4.1 Dimensão do projeto ético-estético

dimensão ética para Bakhtin, como o conjunto de obrigações e deveres concretos,

om l (2005 inte

rma:

a concepção bakhtiniana do estético não se baseia no sublime de Kant, nem nas estéticas impressionistas ou expressionistas, mas resulta de um processo que busca representar o mundo do ponto de vista da ação exotópica do autor, que está fundada no social e no histórico, nas relações sociais de que participa o autor.

Por isso, a falta de álibi, que Bakhtin entende como a responsabilidade dos sujeitos pelos

seus atos na vida, aliada à posição exotópica, que significa estar num lugar fora, um

ora’ relativo, uma posição de fronteira, p ão móvel, que não transcende o mundo m

vê sfigu bra

stética o rspectiva ético-es finirá os

rocessos de construção do mundo de modo sempre situado. Isso me permitirá olhar para

ta

um gênero de literatura. Acho que ilustrar é escrever por imagens”. Um (imagem ou texto)

sendo a oferta original, e o outro, a ilustração (texto ou imagem), derrubam a fixidez das

formas hierárquicas com que se constituíam padrões de classificação e propõem um novo

olhar para compreender a dinâmica das interações entre essas duas dimensões.

A

c pleta-se no conceito do estético. Sobra , p.108) analisa esse conceito da segu

fo

“‘f osiç as

o de uma certa distância a fim de tran

u não”143, constitui a pe

rá-lo na construção arquitetônica da o

tética bakhtiniana que dee

p

142Entrevista concedida a Luciano Ramos e Gabriel Gianordoli em www.ruideoliveira.com.br. 143 Cabral, 2005, p. 109.

Page 209: Capítulo V: Análise do material

209

os livros e reconhecer, no trabalho de linguagem estética, uma articulação com processos

éticos de construção de mundo.

Vale a pena comentar duas tendências distintas em relação ao olhar sobre o mundo

eclarado em dois livros: Da pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na d

cabeça dela e Cocô de passarinho. O primeiro apresenta uma elaboração essencialmente

lúdica, oferecendo uma perspectiva de mundo do tipo toma-lá-dá-cá ou fez-levou, para que

a criança, ao aprender essa forma de comportamento social, o perceba como o modo de

relação com o mundo fig.81 fig.82 fig.83 fig.84.

Figura 81 Da pequena toupeira que queria saber quem

tinha feito cocô na cabeça dela

Figura 82 Da pequena toupeira que queria saber quem

tinha feito cocô na cabeça dela

ia não se propõe a ampliar referências estéticas ou

Figura 83 Da pequena toupeira que queria saber quem

tinha feito cocô na cabeça dela

Figura 84 Da pequena t ra que queria saber quem

tinha f to cocô na cabeça dela oupeiei

Nada há que mobilize o leitor a fazer relações com outros textos na leitura. Mesmo que o

livro seja dirigido a crianças pequenas, dos primeiros anos das séries iniciais do ensino

fundamental, o espírito lúdico da histór

Page 210: Capítulo V: Análise do material

210

culturais. Trabalha-se com a idéia de proporção, de aproximação, tornando atrativas as

falas dos

ersonagens dão coerência aos personagens apresentados no início da história,

transfigurando-se no decorrer do enredo. Uma cidadezinha de seis habitantes é suficiente

para que as crianças transformem-na em tema. Seus personagens-tipo se anunciam pelos

seus textos: “Como vão os negócios?”, ou “O ano que vem vai ser pior”, ou os passarinhos

que colaboram para a mesmice do lugar: “Piu, piu? R: Piu.” O assunto do cocô, longe de

ser um artifício fácil e estéril para se aproximar do mundo da criança, é motivo de

mudança na cidade, pois cria novas formas de vida e de relacionamento. Sementes comidas

pelos pássaros e que saem na forma de cocô nos chapéus dos moradores se transformam

em árvores e flores que mudarão a vida da pequena cidade: - “Nasceram os filhotes.

Vamos escolher os nomes?” Os diálogos mostram pessoas com interesses e observações

renovadas sobre o mundo fig.85:

seqüências de contatos entre os personagens. De qualquer forma, os livros infantis devem

ter autonomia suficiente para propor leituras sobre o que desejarem e do modo que

desejarem.

Todavia, o lúdico presente na maioria dos livros de literatura infantil pode compor com

uma perspectiva ético-estética um modo de compreender e estar no mundo. O texto Cocô

de passarinho, de Eva Furnari, é estruturado pelo modelo canônico da narrativa, do tipo

“Era uma vez...”, com apresentação, desenvolvimento, clímax e desfecho, e as

p

“Quatro meses depois: – Eu gosto mais quando eles dançam rumba. – Eu não, prefiro

lambada. Faz mais a minha cabeça”, numa brincadeira com palavras e imagens que

mostram a cabeça feita dos moradores.

Figura 85 Cocô de Passarinho, p. 25

Page 211: Capítulo V: Análise do material

211

Esse mundo possível para a infância propõe um terreno de preparação para reflexões sobre

vida dos moradores, abrindo questões de ordem cultural e ética, como a importância da

apéus-árvore, o corte no enquadramento da

gina (por exemplo, nas fig.86 e 87, quando as árvores crescem e não aparecem mais no

campo visual, mas sabe-se que os habitantes estão equilibrando-as na cabeça), desenvolve

a elaborar um olhar sobre o mundo.

a

coletividade para a sobrevivência de cada um, a possibilidade de poder observar o mundo e

construir outro ponto de vista para as coisas que nos atormentam etc. Além disso, os

desenhos são formosos e a brincadeira dos ch

implicitamente um gosto estético que ajuda

Figura 86

Cocô de Passarinho, p. 26 Figura 87

Cocô de Passarinho, p. 27

A qualidade gráfica da edição e o projeto estético-ético do livro congregam uma série de

qualidades que podem contribuir para o desenvolvimento pelo leitor do gosto de ler

imagens e textos, na literatura.

Outro livro que utiliza tanto a linguagem verbal quanto visual para pensar uma ética das

relações é Minha mãe é um problema. Nesta obra, as dificuldades nas relações sociais

estão mais localizadas nos adultos considerados normais e que não admitem o contato com

a diferença. Um acontecimento inesperado faz com que a mãe do menino se responsabilize

lo seu espaço coletivo, a escola. Essa é a solução clássica do

antil, que se apresent ituações engraçadas com uma

pela salvação das crianças e pe

enredo inf a nessa obra cheia de s

Page 212: Capítulo V: Análise do material

212

mensagem ética contra a discriminação e pela conciliação. É um texto que foge aos

estereótipos saturados de caracterização de personagens e de argumento.

Você sabe gritar é outro exemplo que, dentro de uma forte carga expressiva, tanto visual

quanto temática, traduz um forte compromisso com uma linha de conduta mais reflexiva e

ativa socialmente.

5.4.2 Dimensão lúdica

O lúdico está presente em quase todos os livros dedicados à criança, seja como atenuação

do trágico, como desejo de explicitamente ensinar alguma coisa, ou como uma brincadeira

leve e jocosa para o divertimento na leitura.

O livro Minha mãe é um problema é um exemplo típico de como contar a história com

humor. A capa é divertida, com crianças rindo, embora o título seja minha mãe é um

problema. Isso já indic

quarta capa, também em

imagens que, interagin verbal, propõem sentidos de leitura, caso, entre

emplos, da capa. A necessária correspondência com as imagens é que conota a

a a forma escolhida para compor a história, que escorrega para a

tom de brincadeira. O texto escrito diz alguma coisa, mas são as

do com o discurso

outros ex

fala do narrador. Por exemplo: “minha mãe é um problema por causa dos chapéus que ela

usa” (fig.88).

Figura 88 Minha mãe é um problema

Page 213: Capítulo V: Análise do material

213

Só que, olhando para a imagem, percebe-se que é um chapéu reconhecidamente de bruxa.

Na página seguinte, a mesma coisa (ver figura 71): “No começo, as crianças faziam uma

cara esquisita quando ela me levava para a escola...” A imagem retrata as crianças indo a

é e o narrador-criança, na vassoura voadora com sua mãe. As imagens não vão além e

nem ficam aquém do texto, mas se situam em outro espaço de produção de sentidos que,

por isso, permite à imagem se situar num entre-texto, para dizer o que ele não diz. Todo o

tempo mantém-se o jogo entre o dizer e o ver, ambos se completando na forma de ler. A

margem que cada um deixa no seu rastro é preenchida pela leitura, realizando uma

expectativa de interpretação que se completa na recepção do leitor, propondo o riso, a

ironia. Como a música, que usa a escrita da pauta musical como meio para indicação do

som, texto escrito e imagem constituem dimensões da expressão humana que orientam a

leitura como guias fundamentais. O sentido, entretanto, assume contornos que são

condicionados pela realidade, pelo suporte, pelo objetivo de quem lê, enfim, um conjunto

de fatores que relativizarão circunstâncias de sua produção. Como diz Oliveira144:

A autojustifica quando você estabelece elos narrativos centrais e paralelos. O cineasta russo Eisenstein dizia que o seu filme se

ducativo, sem ser didatizado, o tratamento da temática conduzem as imagens a

presentar cenas descritas pelo texto, sem nenhuma autonomia para produção de sentidos

ou interferência na criação literária.

O Rinoceronte que ri é um livro de poesias, cuja finalidade, o riso, sabe-se logo na

dedicatória: “Dedico este livro a todos que riem sem o menor motivo”. A capa e a quarta

capa são retratadas por uma única ilustração, inteira, que sugere a Terra na galáxia celeste,

com o rinoceronte rindo. Portanto, é um conjunto editorial que preza captar o interesse da

criança, dispondo, logo em seguida, as poesias para leitura.

p

tiva na ilustração é

concluía com a participação e no interior de cada espectador. Portanto, importando esse conceito do Eisenstein, eu acho que quem completa a ilustração é o leitor.

O livro Grande ou pequena?, de Beatriz Meirelles e com ilustração de Aída Cassiano,

pertence à coleção Dó-ré-mi-fá. A autora mora em São Paulo, é professora, escritora e

contadora de histórias, além de trabalhar na formação de professores e de pequenos

leitores. E

re

Em www.ruideoliveira.com.br/entrevista144 acessad novembro de 2007. o em 9 de

Page 214: Capítulo V: Análise do material

214

Outro exemplo é a coleção que fala sobre partes do corpo, como pés, cabeça, coração, de

Liana Leão, autora e ilustradora: é uma série educativa e consegue atingir um grau de

literaridade na linguagem que busca agradar os leitores (fig.89).

Na quarta capa, Maria Luiza O. C. de Leão declara: “Existe jeito melhor de aprender que

se divertindo? A criança não brinca à toa. Adulto feliz é aquele que brincou...” A intenção

educativa dá-se a ver pela formatação do livro: as primeiras páginas do livro dos corações

são apresentadas como um caderno escolar, pautado e horizontal (deitado), memória de um

spaço de aprendizagem (ver figur da autora e do ilustrador, ao final

o livro, participa do conceito do objeto, remetendo igualmente ao contexto escolar

Figura 89 Livro dos Corações

e a 47). A apresentação

d

(fig.90).

Figura 90

Livr ões o dos Coraç

Page 215: Capítulo V: Análise do material

215

Essa aproximação com o material escolar conduz o leitor a um campo de interpretação da

leitura para o qual ler é aprender. Nesse caso, o uso do suporte (seu formato), juntamente

om o gênero específico, orienta o leitor para a leitura.

o lúdico é um dos elementos da construção do

c

Em Rodolfo, o carneiro, de Rob Scotton,

discurso verbovisual que comanda a narrativa; o importante não é só a narrativa, mas os

comentários visuais que o autor nos oferece, com a ironia que deseja imprimir à situação

apresentada. Exemplos são vistos nas p. 8-9 (fig.91), em que as imagens enfrentam o texto:

são carneiros “ao fim de um longo e movimentado dia...”, parados, sem demonstração de

que acabaram de realizar alguma atividade cansativa, já que sabemos que não é freqüente

um carneiro com vida cansativa; a mãe faz um cachecol de tricô para se aquecer, da lã do

próprio carneirinho.

Figura 91 Rodolfo o Carneiro, p. 8

Ou quando o texto nos informa que o travesseiro pula (fig.92) (p.16): “Rodolfo improvisou

um travesseiro... .mas o travesseiro pulou fora... dando pulos de raiva!”

Figura 92 Rodolfo o Carneiro, p.16

Page 216: Capítulo V: Análise do material

216

Mas é a imagem que nos informa que a perereca sai pulando, explicando o que é o

travesseiro que pulava...

5.4.3 Dimensão da interdiscursividade Esse conceito bakhtiniano tem sua origem no cruzamento de enunciados que, por sua

própria natureza, são atravessados por diferentes vozes. Em texto sobre as idéias de

akhtin, Fiorin (2006, p. 51-55) apresenta o nascimento do termo intertextualidade, suas

apropriações e equívocos. Por isso, a preferência na pesquisa pelo termo

interdiscursividade, que dá condições de melhor compreender a discussão que pretendo

travar. Entendendo a materialidade do enunciado como texto e o enunciado como uma

posição assumida pelo enunciador, observa-se que o enunciado é da ordem dos sentidos e

que o texto é manifestação do enunciado. Além disso, Fiorin alerta que “o enunciado não é

manifestado apenas verbalmente, o que significa que, para Bakhtin, o texto não é

exclusivamente verbal, pois é qualquer conjunto coerente de signos, seja qual for sua

rma de expressão (pictórica, gestual et a forma, o que proponho é compreender

s relações entre o discurso l como possibilidades

terpretativas do conjunto da maioria das obras que analiso. Em diferentes momentos da

nálise, acentuo essa marca dialogante e que abaixo especifico em uma das obras

abordadas.

Coração de ganso, de Regina Rennó, é um livro cuja temática se desenvolve com dois

grupos de personagens: de um lado, gansos, de outro, galinha e seus pintinhos. A história

se desenvolve quando um dos gansos se encanta pela galinha e seus pintinhos e resolve se

juntar ao grupo. Seus companheiros rechaçam qualquer possibilidade de aproximação e

aprisionam seu parceiro como castigo. Galinha e pintinhos o salvam e o ganso resolve ir

embora com os amigos, abandonando seu ua realização gráfica apresenta poucos

lementos, com formato de folha quadrado e to

elementos são bem definidos, organizando uma estrutura narrativa canônica. O jogo de

leitura que está presente na obra é proposto pela relação de intertextualidade com a história

clássica infantil do patinho feio (fig.53). No movimento contrário, o protagonista não

busca a semelhança como fator de segurança e identificação para constituição da

subjetividade, mas a liberdade da escolha pelo amor favorece a convivência com a

B

fo c.)”. Dess

a imagético e o discurso verba

in

a

s pares. S

e da a história é colorida a lápis de cor. Os

Page 217: Capítulo V: Análise do material

217

diferença (fig.94). É uma temática contemporânea, arrojada para a idade do leitor-modelo

em questão e para a época em que vivemos. Mas é o fundo ético, o qual ampara o enredo,

que dá sustentação à concepção do projeto editorial. As relações interdiscursivas de

construção da narrativa encontram-se em vários livros infantis contemporâneos,

dialogando com algumas formas renovadas de sociabilidade, provando que é possível

mostrá-las na ficção(fig.95). É o mesmo caso de A Princesa Boca-suja, de Cláudio Fragata

e Odilon Moraes (já comentado nesse capítulo), de Esquisita como eu, e tantos outros.

Figura 93 Coração de Ganso, página dupla

Figura 94 Coração de Ganso, página dupla

Page 218: Capítulo V: Análise do material

218

5.4.4 Dimensão gráfica

Esta seção se interessa por formas de tratamento das linguagens verbal e plástica, de modo

a compor uma dimensão gráfica, em que a palavra escrita assuma uma de suas naturezas,

que é dupla e heterogênea, como discussão apontada em capítulo anterior. As imagens que

compõem a natureza gráfica da escrita serão analisadas juntamente com as imagens na sua

plasticidade e narratividade. Esse momento quer destacar duas situações que considero

fundamentais no trajeto da pesquisa: a primeira, de ordem teórica, garante à dimensão

gráfica (e não apenas ao design gráfico do livro) co

Figura 95 Coração de Ganso

nstar como um dos elos possíveis entre

s duas instâncias enunciativas, a verbal e a visual, indicando influências mútuas na

o de

alização. Cabe aqui lembrar a importância dessas afirmações para a área da educação,

que pode ter o sentido da alfabetização revigorado se se lançar mão desses conceitos para

compreender outros olhares sobre o processo de aquisição do sistema da escrita alfabética.

Além disso, fica claro que, no momento em que se aprende a escrever, aprende-se, na

verdade, o discurso verbal escrito; apreendem-se, em conjunto, os sentidos não ditos

verbalmente, mas latentes na discursividade do texto e, finalmente, compreende-se o

mundo e suas múltiplas formas de expressão. O estudo apresentado sobre as cartilhas de

alfabetização podem servir de parâmetro para as considerações acima.

a

constituição de cada uma. A segunda, de ordem pedagógica, explicita a relevância de abrir

espaços para muitas e possíveis leituras das crianças. O alcance da escrita, quanto da

imagem, é, em algum momento, ímpar e, por isso mesmo, singular no seu mod

re

Page 219: Capítulo V: Análise do material

219

No livro Quem fez cocô na cabeça da pequena toupeira, as imagens são fundamentais para

os desenhos infantis. As imagens tomam tamanhos

iferenciados dependendo da relação com a personagem principal: a toupeira fica pequena

u grande, se está próxima do cavalo ou das moscas. Participam também de um conjunto

expressivo, composto pelas letras, caso, por exemplo, da escrita do CACHORRO, ou das

pequenas observações feitas pelo narrador, entre parênteses. A conseqüência é um projeto gráfico que

busca requinte e acabamento. Alguns recursos são freqüentemente utilizados para dar mais

expressividade ao conteúdo abordado: as letras como imagem, além de estarem marcando

a fala das personagens, denunciam a presença da enunciação e suas onomatopéias, através

do tamanho menor das letras, da sua espessura e do sinal gráfico de parênteses. Essas são

enças visuais que dão sentido ao texto, simples e objetivo no âmbito do narrado, mas

ue brinca com l, colaborando para torna a a história da

upeira. Para uma criança que ainda é iniciante na aprendizagem da leitura, os recursos

nho, a cor e o formato das letras indicam quem são os

terlocutores e a ação proposta, como por exemplo: gritar, sapo, papagaio (fig.96);

a construção do jogo ficcional, da instituição da interação entre os personagens e da

criação do universo narrativo. A técnica em crayon interage com o leitor mirim, através de

uma realização mais próxima d

d

o

pres

q a leitura visua r mais expressiv

to

gráfico-visuais elaborados no livro tratam da relação de proporção dos elementos (bichos)

e a intensidade emocional da fala. Aliás, tem sido bastante freqüente nos livros de literatura

infantil a utilização de recursos visuais da escrita tratada como imagem, numa clara

demonstração de absorção, pela escrita alfabética, de formas de tratamento não lingüístico

das escritas ideográficas de que nos fala Christin.

Em Você sabe gritar?, as condições para uma leitura expressiva pela criança se dão através

de diversos recursos: o tama

in

Figura 96

Você sabe gritar?

Page 220: Capítulo V: Análise do material

220

ou, gritar, Hélio, gritar, tigre. Também variam de acordo com cada personagem e a

intensidade com que eles exprimem sua força: Saber, querer, girafa (fig.97); ou, quero,

ão sei, pular, pulo etc. (fig.98)

n

O espaçamento também é relevante para uma leitura confortável de leitores mirins. Na

verdade, a apresentação do texto participa ativamente da história, sendo este aspecto um

traço marcante do livro: o conteúdo da história é visto pelo leitor. O legível se apropria das

características do visível para tornar inteligível a leitura. Ou, apoiando-se na afirmação de

Anne-Marie Christin de que a escrita tem dupla natureza, o autor a transforma

graficamente em texto verbovisual. A idéia de que o texto também é imagem se concretiza

de forma onipresente nessa obra – como em várias obras selecionadas no corpus, entre as

quais, O Beijo da palavrinha.

Nessa obra, as imagens funcionam de f as, como: 1- complementam o cenário

e dão seqüência ao fluxo narrativo, como o m caco que entrega correspondências enquanto

modo como se apresentam no imaginário de qualquer um de nós, principalmente pela

Figura 97 Você sabe gritar?

Figura 98 Você sabe gritar?

ormas divers

a

lhe fazem pergunta, ou a girafa que parece se alimentar em família, enquanto o Hélio e o

tigre falam (fig.99); 2- tomam dimensões que destoam de um modelo canônico de

proporção fortalecido pela perspectiva renascentista, lembrando o que Einsenstein disse a

respeito da pintura japonesa: o real da perspectiva é falso, a realidade psicológica é

fragmentada e verdadeira (ver comentário no capítulo anterior), mas estão próximos do

liberdade representativa da criança; 3- reagem significativamente aos sentidos propostos no

Page 221: Capítulo V: Análise do material

221

texto, como se representassem o que a escrita não alcança. A intensidade, a tonalidade, os

outros elementos do cenário, tudo isso nos diz algo além da escrita; é um entre texto, como

diz Rui de Oliveira.145

Figura 99 Você sabe gritar?

Em Cacoete, as imagens tomam a feição do conteúdo do texto, iniciando a história com

uma organização sistemática da cidade de Cacoete até a sua degradação, a tal ponto que

Figura 100 Cacoete, p.25

palavras e imagens começam a se misturar, a se desalinhar e, nas p.24- 25 (fig.100), letras,

menino, faíscas, bruxa, tudo se enfeitiça e o mundo se transforma em um grafismo total.

Essa é uma situação exemplar de como as ações com a linguagem e com a plasticidade da 145 Ver site: www.ruideoliveira.com.br, no qual o autor é entrevistado sobre sua vida profissional e suas

ncepções acerca do fazer da ilustração. co

Page 222: Capítulo V: Análise do material

222

imagem podem se integrar numa leitura renovada, paradoxal, cujo padrão precisa se

apropriar de procedimentos de leitura. Com isso, posso considerar essa proposta de relação

icônico-verbal como uma área de ação do paradoxo, movimento de síntese texto/ imagem.

A Linha de Mário Vale, de Mário Vale, um livro de desenhos na forma de charges e

cartuns, é divisão de mundo, é superfície, é perfil de personagem, é uma infinidade de

traços que a linha desenha, o mundo sendo formado aos nossos olhos. Esse desnudamento

o fazer do artista explicita para o leitor s o significado de traço, no que ele tem

e conceitual. São apresentadas dife formar narrativa, mas charges de

or irônico, crítico, lúdico, exercitando múltiplas situações em que a linha nos deixa

ultado de um impulso descontrolado, mas leva a reconhecer o

aráter essencialmente argumentativo desse tipo de proposta (fig.101).

d de imagen

d rentes situações, sem

te

pensar, concluir, não só pela temática, mas pelo estilo proposto por Vale. Linha aberta,

espiralada, ovóide, formas diversas que recriam os objetos do mundo. Ver a linha como um

gesto é compreender a atividade artística de quem deseja organizar o espaço, as áreas de

cor (se houver) e o branco do papel. A intencionalidade que orienta os traços não permite

limitar o trabalho como res

c

a, ou filosófica. Por isso, o desenho de Vale não exagera,

o ultrapassa, nem fica a dever, mas brinca, duvida, reflete e sugere aos seus leitores

entendimentos sobre o mundo (fig. 102).

Figura 101 A Linha, página dupla

O conceito transmitido é uma síntese opinativa a respeito de determinado assunto, seja por

uma abordagem poética, polític

Page 223: Capítulo V: Análise do material

223

traço realizado com a linha e que d sto criador é percebido em diferentes

rtistas, como é o caso do livro infantil O Equilibrista, de Fernanda Lopes de Almeida e

az à história é construído pela denúncia do

ãos e que ele faz seu caminho, traçando fio a

Figura 102 A Linha, página dupla

O enuncia o ge

a

Fernando de Castro Lopes. O lúdico que subj

ersonagem de que o mundo está em suas mp

fio seu caminhar (fig 103).

A leitura da página (e d

as metáforas da aventu

mundo dos possíveis (f

Figura 103 O Equilibrista

a história), portanto, prevê níveis de leitura que possam identificar

ra e da construção do mundo com a flexibilidade necessária do

ig.104).

Page 224: Capítulo V: Análise do material

224

5.4.5 Dimensão do acabamento

Figura 104 O Equilibrista

Essa dimensão merece atenção no processo de sua elaboração, uma vez que Bakhtin, seu

autor, arquiteta esse conceito juntamente com outros que lhe completam o sentido. O autor

apresenta a seguinte afirmação (2000, p. 43):

Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem [...] Quando estamos nos olhando, dois mundos diferentes se refletem na pupila dos nossos olhos. Graças a posições apropriadas, é possível reduzir ao mínimo essa diferença de horizontes, mas para eliminá-la totalmente, seria preciso fundir-se em um, tornar-se um único homem.

A essa situação ele chama de excedente de visão. Pois será esse excedente que permitirá a

akhtin arquitetar seu conceito de e ma posição exterior que condiciona o

xcedente de visão (2000, p. 43):

Esse excedente constante da minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro é condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo: neste lugar, neste instante preciso, num conjunto de dadas circunstâncias – todos os outros se situam fora de mim.

minha visão interna e externa do outro, são, precisamente, atos propriamente

xotopia, uB

e

Continua seu raciocínio, afirmando que “os atos de contemplação, que decorrem do

excedente da

Page 225: Capítulo V: Análise do material

225

estéticos”146, que são pensados como algo ativo e produtivo. Por isso, é possível, pela

atividade estética147, identificar-se com o outro primeiramente, para voltar a nós mesmos

com o material recolhido do outro e lhe dar forma e acabamento. Para ele, a criação verbal

mantém esses dois aspectos com dupla função: guia o processo de identificação e

proporciona o princípio de acabamento ao outro, sendo possível o predomínio de um

desses dois aspectos148.

Essa arquitetura do acabamento pode-se perceber no trabalho de Elvira Vigna, que se

responsabiliza pelas ilustrações do livro O que o coração mandar, de Ayêska Paulafreitas.

Tanto na concepção quanto na técnica, tem em mente a importância do leitor. Ele é seu

norte e, por isso, todo o tempo o leitor está presente no seu trabalho. As ilustrações partem

e fotos suas de casarios de Jequié/BA, que são redesenhadas com um trabalho de d

cor(fig.105). O desenho é uma tomada de posse, não mimetiza a narrativa, pois se trata de

dois tipos de comunicação distintos e servem a finalidades diferentes.

Figura 105

O que o coração mandar, página dupla

146 Bakhtin, 2000, p.45. 147 O conceito de atividade em Bakhtin traduz uma instância produtiva, em que está intrinsecamente contida a idéia de energia, dinamismo, e ‘identifica o agente [...] como sujeito detentor da iniciativa da ação’. Ver nota de rodapé na tradução de Paulo Bezerra, p. 22. 148 Idem, p. 47.

Page 226: Capítulo V: Análise do material

226

A propósito de situações escolares, Elvira Vigna em entrevista149 afirma que o educador

deve estar atento a esse fato, para melhor situar seus objetivos, sem perder de vista a

importância da palavra. Observa também que ler imagem não é necessariamente ler

conteúdo da narrativa e que os professores têm se detido nesse aspecto da leitura da

imagem. Apresenta três níveis da atividade do ilustrador: num primeiro nível, ele reproduz

o que está escrito; num outro nível, o objeto reproduzido tem um olhar do ilustrador; e num

terceiro nível, mais profundo, o ilustrador cria um clima, não precisa retratar o objeto

propriamente. Mas reafirma que isso não faz do ilustrador um co-autor. Sua crença é a de

que, se o trabalho do artista consegue estabelecer com o interlocutor um valor de afeto, ele

estará realizando um trabalho literário valioso. E se as crianças se relacionam afetivamente

com o objeto, tudo valeu a pena.

A história que Vigna ilustra é a de uma personagem que está voltando à cidadezinha de

Jequié/BA, sua figura é retratada com um lápis preto em volta (fig.106), destacando sua

ausência do cenário.

Na verdade, ele ainda está entrando na cidade e, por isso, não participa da história. A

artista não apresenta uma imagem acabada, tanto no formato quanto nos conteúdos

Figura 106 O que o coração mandar, página dupla

149 Entrevista de Elvira Vigna concedida à pesquisadora em novembro/2007. já citada no corpo deste capítulo.

Page 227: Capítulo V: Análise do material

227

semânticos. O que ela propõe é a falha, a imperfeição, pois só aí, no seu dizer, é que ela

invocará a presença do leitor para construir os sentidos possíveis. “Tem que haver um

‘entre’. A rua acaba, não sei onde, o que tem atrás, não sei, a figura acaba, ela não se

completa, está solta no espaço, na capa a terra escorrega, está solta” (fig.107).150 Esse

odo de compreender o mundo e sua arte aproxima-a do ato estético proposto por Bakhtin. m

Esse acabamento ao outro é o que Elvira Vigna deixa para o leitor e permite melhor

compreender o trabalho de quem não concebe a ilustração com imagens perfeitas,

fechadas. A convocação à atividade estética de acabamento de sua obra é o que propõe

Figura 107 O que o coração mandar, página dupla

a

nsão da construção composicional e do estilo dos enunciados O projeto discursivo q

linguagem como o foc

criado por ele dê per

campo de discursividad

interpelado pelo discurs

do projeto interlocutivo (ainda que o diálogo não tenha sido estabelecido). Embora o

ilustradora ao leitor, que terá espaço para ratificar o projeto bakhtiniano de produção de

sentidos.

○ 5.5 Dime

ue Bakhtin apresenta, vale dizer, uma proposta de tratamento da

o de suas reflexões, abre caminho para que o conceito de dialogia

tinência à constituição dos sujeitos, estabelecendo um constante

e. A enunciação, para ele, é um discurso concreto que será sempre

o de outrem, que tem a voz e a vez de participar da ação responsiva

150 Idem.

Page 228: Capítulo V: Análise do material

228

interesse de Bakhtin seja a prosa poética, ele mostra que em outros discursos, como o

extra-artístico – tal como o científico, o retórico, o de costumes –, a presença do já-dito,

isto é, dos discursos já pronunciados e que integram o meu discurso, reafirma a dialogia

constituidora de todo projeto discursivo.

Tanto a Lingüística quanto a Filosofia da Linguagem, dominantes no período em que

Bakhtin constrói seu arcabouço teórico, sofrem duras críticas dele, pois a limitação à forma

composicional do discurso inibe a presença do concreto, do situacional e do histórico,

conseqüentemente apaga o diálogo interno inerente ao discurso. Para ele, é o diálogo que

dá sentido ao discurso e que conformará o objeto. Sendo assim, a mútua-orientação

dialógica do discurso de outrem no interior do objeto integrará a forma composicional, o

onteúdo semântico e o estilo, num só objeto.

Bakhtin impõe entre enunciado e oração lhe é bastante cara, sempre

ampliando a discussão. Em texto de 1952-1953, Estética da Criação Verbal (2003, p. 286-

sponsiva do falante e a cadeia significativa em que os

iferença de seus usos. Bezerra (2003, XI)152,

adutor do original russo, introduz a obra Estética da Criação Verbal com os seguintes

comentários:

Muito se tem falado de enunciação e enunciado na obra de Bakhtin. Neste livro, o autor emprega um só termo – viskázivanie – quer para o ato de emissão do discurso, que seria a enunciação, quer para um discurso já pronunciado e até um romance, que seria o enunciado. Portanto, para ele o discurso de um passado remoto, um texto filosófico ou a emissão de um discurso são viskázivanie. Ele associa também o termo à parole saussuriana, o que permite falar de enunciação. Empreguei ‘enunciado’ (com mais freqüência) e ‘enunciação’ sempre que percebi que as circunstâncias requeriam um ou outro.

c

A diferença que

287), enfatiza a posição re

enunciados se situam e adquirem sentido. Assim, mais uma vez afasta-se da perspectiva

lingüística saussuriana, alertando para seu caráter de convencionalidade e artificialidade, e

indiferente à posição e mudança dos sujeitos do discurso real. A orientação social do

enunciado e sua dependência ao outro, ao ouvinte, já é enfatizada no artigo de Voloshinov

A Estrutura do Enunciado151, em 1930, em que destaca a dificuldade de compreender o

que constitui a parte extraverbal do enunciado, quando é ela que lhe determina o sentido.

As considerações de Bakhtin acerca da enunciação e do enunciado têm recebido diferentes

críticas, assinalando a variedade e a ind

tr

151 Texto de 1930 e tradução de Ana Vaz, para fins didáticos. (p. 10) 152 Bakhtin, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Original escrito em 1952-1953.

Page 229: Capítulo V: Análise do material

229

A análise que apresento a seguir tem por objetivo destacar ora um aspecto, ora outro do

que Bakhtin considera um organismo complexo e dinâmico, que ultrapassa qualquer

enfoque objetal sobre a palavra, que a transforme em uma coisa, como a Lingüística, a

Retórica ou mesmo a Filosofia de sua época. Ao me referir ao enunciado ou à enunciação,

pretendo iluminar certas características que dão relevo ao trabalho estético nos livros de

literatura, no caso, os voltados para um leitor mirim, lembrando a preocupação de Bakhtin

em não perder a dimensão dialógica da linguagem (2002, p. 153): “O fato de que um dos

principais objetos do discurso humano é a própria palavra, até hoje não foi ainda

suficientemente tomado em consideração, nem apreciado em sua consideração radical”.

No caso desta pesquisa, acrescento a imagem e a consistência plástica de suas modalidades

expressivas, que estabelecem relações inovadoras e inesperadas com o texto.

5.5.1 Narração

eza

O texto de Manoel de B

da mestiçagem de gê

contemporânea. As fro

faz da sua aparente sim a em

ngua de brincar se organiza com poucos elementos, sem muitos adereços paratextuais,

5.5.1.1 O aspecto da lev

arros é uma narrativa poética, ou uma poesia narrativa, tão ao gosto

neros, estilos e linguagens que caracteriza a produção literária

nteiras, em Manoel de Barros, se tornam impuras e avessas, o que

plicidade uma arma contra o lugar-comum. O livro Poeminh

mas com imagens que fazem uma releitura do texto de Barros, mostrando que caminham

juntos, texto e imagem, com a mesma finalidade, como diz ele, de “chegar ao grau de

brinquedo para ser séria de rir” (fig.108) .

Figura 108

Poeminha em língua de brincar

Page 230: Capítulo V: Análise do material

230

O projeto editorial trabalha com o intuito da essencialidade, o que permite um

enxugamento de elementos visuais e uma concentração no texto verbal. Este, sim, é o

resultado de uma leveza que faz os sentidos acordar. Calvino153 (1990, p. 28) lembra uma

passagem de Paul Valéry, para quem é necessário ser leve como um pássaro, não como a

pluma; por isso, acredita que a leveza “está associada à precisão e à determinação, nunca

ao que é vago ou aleatório”. Manoel de Barros também lembra que seu protagonista

“falava em língua de ave e de criança”. Nada mais leve e essencial. A preocupação de

Calvino em não se acomodar, pelas vicissitudes do peso de viver, leva-o a buscar

deslocamentos constantes para fora do círculo fechado da conservação, que é uma forma

e opressão. Descartando a fuga cionalidade, acrescenta (p. 19):

Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso

ssas acepções são corporificadas no texto de Barros de forma definitiva, obrigando a que

a leitura compreenda “essa mesma rarefeita consistência”. A elaboração de sua

linguagem dá consistência discursiva ao seu texto, com o frescor de deslocamentos

inesperados para alimentar a existência de seus personagens e de seus leitores: “E jogava

pedrinhas: Disse que ainda hoje vira a nossa Tarde sentada sobre uma lata ao modo que um

bentevi sentado na telha”. Essa outra ótica, que dispensa pensar, permite sentir, extravasar

o encantamento das palavras livres, que o pensamento solto em forma de pipa, com a linha

presa ao coração, faz-de-conta que é verdade. São imagens do texto poético que orientam

um modo de entender o mundo. Por isso é possível compreender, nessa outra ótica

(fig.109), “que certa rã saltara sobre uma frase dele e que a frase nem arriou. Decerto não

arriou porque não tinha nenhuma palavra podre nela”.

d para o s ra a irraonho ou pa

considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos...

E apresenta três acepções distintas da leveza:

1) um despojamento da linguagem por meio do qual os significados são canalizados por um tecido verbal quase imponderável até assumirem essa mesma rarefeita consistência; 2) a narração de um raciocínio ou de um processo psicológico no qual interferem elementos sutis e imperceptíveis, ou qualquer descrição que comporte um alto grau de abstração; 3) uma imagem figurativa da leveza que assuma um valor emblemático...

E

su

3 Para uma melhor compreensão do significado de leveza, ver texto de Ítalo Calvino Seis propostas para o próximo milênio, capítulo ‘Leveza’, p. 13-41. 15

Page 231: Capítulo V: Análise do material

231

Retomando as discussões postas no capítulo quarto, são imagens colocadas na dimensão do

legível, e numa outra dimensão do inteligível, pois não basta a imagem no texto, afeita à

noção de descrição pictural. Nesse caso de Barros, as imagens verbais caracterizam um

mundo que deve ser ainda construído, são imagens inaugurais, fluidas e abertas para

interpretação do leitor. Para a terceira acepção da leveza, “uma imagem figurativa da

leveza que assuma um valor emblemático”, o autor faz a apresentação, logo no início do

texto, do rosto do menino: “ele tinha no rosto um sonho de ave extraviada” (fig.110), e que

se repetirá no meio da história, enfatizando que sua expressão poética é a maneira com a

qual se arremessará para o mundo dos sentidos.

Figura 109 Poeminha em língua de brincar

Figura 110 Poeminha em língua de brincar

Page 232: Capítulo V: Análise do material

232

Barros fala das coisas da natureza como as coisas de um mundo mais palpável, mas nada

nele é palpável, o que resulta em uma concretude sem peso. Ao falar de Lucrécio, Calvino

recoloca como o poeta em que o conhecimento do mundo se transforma em dissolução

da compacidade do mundo, na percepção do que é infinitamente minúsculo, móvel e leve.

Diz ele (1990, p. 21): “A poesia do invisível, a poesia das infinitas potencialidades

imprevisíveis, assim como a poesia do nada, nascem de um poeta que não nutre qualquer

dúvida quanto ao caráter físico do mundo”. Esse é o paradoxo que Barros quer nos ofertar.

A natureza da obra de Manoel de Barros é um labirinto em direção ao Nada, ao

enfrentamento que elimina a Dona Lógica da Razão, para ir em direção à compreensão das

coisas na sua inteireza, na sua natureza irrestrita. Vale lembrar a discussão apresentada no

capítulo 4 sobre os eixos da relação imagem e texto, o paradoxo e o paralelo. No caso

ento do

embate com a perspectiva de s a crença na fratura irredutível

a lógica que sustenta o discurso. Isso é o que possibilita a existência daquelas imagens

lasticidade. Esse é o meio pelo qual imagem e texto

assentam na natureza leve de suas dimensões discursiva e plástica. O que os aproxima,

portanto, é a possibilidade de a imagem falar a partir do texto (ver discussões no Cap. 4),

o

desse livro de Barros, o questionam autor sobre a lógica da racionalidade supõe

íntese pacífica, portanto, um

d

visuais do livro: pois o texto de Barros, mantendo a opacidade enunciativa de seu discurso

poético, sustenta a tensão criadora com outros sistemas, dando margem à autonomia das

imagens em relação ao texto fonte. Por outro lado, a posição autônoma do artista

possibilita a realização de um intercâmbio com o texto literário fora do parâmetro

linguageiro, operando no âmbito da p

se

havendo espaço para que cada dimensão melhor se aproprie de suas modalidades

expressivas. Mantendo a opacidade significativa como característica comum entre a

literatura e o plástico, esses registros não funcionam como espelho, um assemelhando-se

ao outro em características. Do ponto de vista da sua realização, as imagens, que são

desenhos pintados, não intentam explicar nem descrever coisa alguma, não se interessam

em fazer o leitor compreender, mas incentivam uma postura frente ao ato criador. Essa

ritualização contemporânea da imagem que dá autoridade à realização autoral se aproxima

da linguagem poética bakhtiniana que vê na autoridade poética o traço de encantamento

cuja força significa o homem que fala sua palavra (ver discussão desse tema no Cap.3).

Manoel de Barros não se preocupa só em ser entendido, mas em fazer de seus versos uma

“coisa-nada”, uma língua a ser criada, para brincar, como um evento próprio da poesia, um

Page 233: Capítulo V: Análise do material

233

monólogo no sentido bakhtiniano. Sentencia: “Se o Nada desaparecer a poesia acaba”

(fig.111).

etê-la à sua própria essencialidade. Sua proposta é

desfazer os lugares-comuns, deixar que as experiências verbal e visual sejam o resultado de

ma disponibilidade para o sensível.

endo a estrutura canônica do conto, a

a linguagem poética transgride as normas clássicas da narratividade e seu texto começa a

desconcertar um leitor distraído, mais afeito a uma leitura mecânica. Esse mundo particular

da linguagem, em que o Nada é língua de brincar, é a própria casa do jabuti, a poesia, onde

o menino se interna e ali se salva: “E se internou na própria casca ao jeito que o jabuti se

interna”. E sendo o Nada língua de brincar, o é também na plasticidade oferecida ao leitor:

Nesse sentido, o discurso poético se ausenta do cotidiano e constitui um monólogo, no

sentido bakhtiniano, uma construção, quase um objeto conceitual. Essa é a forma de,

transgredindo a fala prosaica, subm

Figura 111 Poeminha em língua de brincar

u

O texto começa pelo pronome pessoal ele: “Ele tinha no rosto um sonho de ave extraviada.

Falava em língua de ave e de criança”. Quem seria ele? Barros avança no seu discurso,

como se houvesse um contrato de antemão com o leitor, sendo aí o espaço de diálogo

instituído com o leitor; afinal, “dispensava pensar”. A consideração de que aí está implícita

a estrutura clássica do gênero conto, que se consagrou infantil, possibilita subentender o

“Era uma vez um menino”. Já no começo, pois, o autor anuncia o tom que o faz original,

distanciado do repetido, do já sabido. Mesmo mant

su

Page 234: Capítulo V: Análise do material

234

o desenho, altamente conceitual, traduz em seus traços, como que tocando levemente a

mbrança de um figurativismo, a manifestação de um Nada significativo.

Por outro lado, tomand

s imagens assumem uma funcionalidade, mostrando plena interação com a proposta: a

.5.1.2 O aspecto da argumentação

le

o um novo ponto de vista a respeito do projeto discursivo da obra,

a

técnica e o material dos desenhos, menos que reproduzir um modo infantilizado de

expressão, desejam cultivar um olhar que traduza a liberdade infantil da livre expressão e

do livre compreender. Vale a pena notar a única vez em que a ilustração interrompe o fluxo

narrativo e abre espaço para o destaque da enunciação: o comentário do narrador quer

justificar e dar coerência à existência do seu personagem – “Decerto não arriou porque não

tinha nenhuma palavra podre nela”.

Do ponto de vista da construção dessas duas instâncias – verbal e plástica – , portanto, é o

vazio preenchido pelo Nada que tudo significa. Texto e imagem caminham juntos

brincando com os sentidos, com as percepções, nos convocando ao estado de criação. Esse

livro se abre para acolher a arte, a estética, onde, como afirma Christin (ver cap. 4), o Nada

é o todo.

5 O livro Princesinha boca-suja é um conto de fadas contemporâneo, com todos os

ingredientes de um conto de fadas tradicional e com todas as críticas aos seus costumes.

Sua estrutura é canônica, mantendo o “Era uma vez...” típico dessas narrativas, embora o

enredo não obedeça à direção esperada. É preciso ser um leitor que já tenha passado pelas

histórias infantis clássicas, para aproveitar a brincadeira que as referências intertextuais

propõem. Por isso, o narrador parodia o gênero e aviva a lembrança dos leitores sobre o

modo como se processa a escritura dessas histórias.

Page 235: Capítulo V: Análise do material

235

Analisando a pessoa que fala no romance, Bakhtin (1998, p. 156) assinala:

coisas vão ficando bem diferentes”. Outro trecho exemplar de colaboração do

arrador com o protagonista é o da p. 18: “A princesinha não entendia por que as pessoas

éculo XXI, que agregam experiências na área da tecnologia, da insegurança

rbana, das transformações por que passa a estrutura familiar, tantas são as diferenças das

a rainha não eram bobos nem nada”.

O discurso do autor representa e enquadra o discurso de outrem, cria uma perspectiva para ele, distribui suas sombras e suas luzes, cria uma situação e todas as condições para sua ressonância, enfim, penetra nele de dentro, introduz nele seus acentos e suas expressões, cria para ele um fundo dialógico.

O narrador, em Princesinha boca-suja, assume seu papel de autoridade que quer persuadir

o leitor e, para isso, usa dos expedientes da linguagem. A relação imagem e texto, nessa

obra, apresenta dois recursos fundamentais para sua realização: o primeiro, quanto ao texto

verbal, é a predominância da enunciação que introduz a força do narrador na orientação de

leitura. Todo o tempo o enunciador comenta, critica, relembra, reafirma situações passadas

em histórias de referência, para dar uma condução crítica às ações do presente: Por

exemplo, p. 8: “Até aqui, a história de Formosura é meio parecida com a da Bela

Adormecida, você notou? Isso não tem nada de mais. Todos os contos de fada são

parecidos uns com os outros. Mas as duas histórias se parecem só até este ponto. Daqui em

diante, as

n

viam tanta maldade nessas palavras que todos diziam pelos cantos. Nem por que viviam

palpitando na vida dela. Palpitando, xeretando, espionando, fofocando e um monte de

outros andos”.

Embora a história se desenvolva distintamente dos cânones consagrados das narrativas

infantis, eles permanecem como fundo, como contraponto para as situações por que passa

uma princesa dos nossos dias. Esse é o segundo recurso, o da intertextualidade: utilizado

em algumas narrativas infantis como expediente para atualização do enredo, trazem para os

nossos dias o imaginário do conto de fadas tradicional, aproximando-o do imaginário das

crianças do s

u

crianças do mundo de Perrault, Andersen, entre outros. Exemplo na p.10: “Quer um

exemplo? Os pais da Bela Adormecida se esqueceram de convidar a fada má, e deu no que

deu. Ela apareceu sem ser convidada e estragou a festa. Já os pais de Formosura não

quiseram cair na mesma cilada. O nome da fada má estava em primeiríssimo lugar na lista

de convidados, que o rei e

Page 236: Capítulo V: Análise do material

236

A menina cresce bonita

por isso seu nome Boca

diferentes das antigas p

fortalecem o texto que

quando, Formosura se e

no jardim! Aí era semp uma correria no castelo, um empregado cochichando no ouvido

do babão, passava o dia

lhando a filhinha no berço e dizendo coisas incompreensíveis como cuticúti, bambalalão,

etomo a discussão proposta por Goulart (2007, p. 8-9) sobre os sentidos da enunciação,

e talentosa, mas não tem vocabulário da realeza e boas maneiras,

-suja; é uma criança sagaz, cheia de personalidade, que tem hábitos

rincesas e que não se dobra às ordens reais. Os discursos diretos

quer mostrar o embate entre duas realidades (p.17): “De vez em

nchia de tanta aula e gritava: “Que titica! Quero brincar um pouco

re

do outro, ‘ela falou isso, ela falou aquilo’, como se ninguém jamais falasse as mesmas

coisas de vez em quando”. Além disso, é ela quem vê a carruagem e decide descer as

escadas para encontrar, sozinha, com o príncipe (p.26): “Certa noite, a princesinha estava

na torre do castelo observando o céu com sua luneta... A princesinha desceu a escadaria da

torre feito um foguete e foi ao encontro do príncipe já com uma pachouchada na ponta da

língua para enxotá-lo dali”; o príncipe e a princesa casaram-se e foram felizes para sempre,

“mas de vez em quando tinha umas briguinhas e a princesa mandava o príncipe plantar

batatas”.

Essa atualização moral do conto é acompanhada pela linguagem do narrador, cujo estilo

configura um olhar renovado para o mundo ficcional e dá o tom da narração: descontraído,

informal, linguagem distensa, como que, desde o início da história, mostrando de que lado

está (p. 7): “Para celebrar o nascimento da princesinha, o rei e a rainha resolveram dar uma

baita festa. Convidaram um monte de gente”. Ou (p. 12): “O rei, to

o

tetéia". Até mesmo na caracterização da princesa, o vocabulário segue familiar, como “o

primeiro pum”. Por isso, quando a menina diz a primeira palavra, “meieca” (meleca), o

leitor já está preparado discursivamente para acolher a fala da princesinha, sem

preconceito.

R

em que a autora analisa a proposta de Weinrich acerca dos dois grupos de situações

comunicativas independentes, o mundo narrado e o mundo comentado, e propõe relacionar

esses conceitos aos conceitos bakhtinianos de discurso de autoridade e discurso

internamente persuasivo:

Page 237: Capítulo V: Análise do material

237

Estou relacionando o mundo narrado ao discurso de autoridade e o mundo comentado, ao discurso internamente persuasivo. Estou compreendendo a caracterização do “não-compromisso” e do distanciamento do discurso do mundo narrado como algo que está convencionado ou legitimado como conhecimento aceito. Ao trazer as categorias do mundo narrado e do mundo comentado desenvolvidas por Weinrich, interligando-as aos discursos de autoridade e internamente persuasivo, elaborados por Bakhtin, acredito não estar realizando nenhuma violência teórica, mas repensando-as sob novas luzes.

Desejo, com isso, reafirmar a importância dessa reflexão e aproximá-la do domínio do

mundo encantado da literatura infantil; dessa forma, passo a entender as imagens como

elementos fundamentais ao discurso da autoridade/mundo narrado e ao discurso

internamente persuasivo/mundo comentado, para retirar, dos conhecimentos que as

crianças vão sedimentando ao longo da sua inserção no mundo ficcional escrito, situações

que serão referenciadas nos relatos a elas dedicados. Muitas vezes, a argumentação é

alizada de forma atenuada, numa narrativa que vai, aos poucos, seduzindo os leitores. A

o clássico de cunho científico, que opta por um formato em que a tese é

rimeiramente apresentada para depois seguir com os argumentos que lhe garantirão

qualidade e valor. A conclusão final vem corroborar ou não a tese.

No corpus apresentado, vêem-se alguns exemplos de textos com destacada força

argumentativa, como em Princesinha boca-suja, Você sabe gritar? entre outros. Por outro

lado, de forma presentemente sutil, o narrador constrói seu ponto de vista e o apresenta ao

leitor em tantos outros livros, como em Poeminha em língua de brincar, O Beijo da

palavrinha.

Em Você sabe gritar?, a história claramente se dirige a elaborar um conteúdo distante dos

estereótipos consagrados à moralização dos comportamentos sociais. Embora quase todo o

texto esteja estruturado sob a ns, alguns trechos indicam a

presença do narrador, como: a- o tempo verbal hipotético, criando uma suposição e,

portanto, uma reflexão do narrador (“os cabelos do sapo ficariam em pé”; “o queixo do

re

sucessão de eventos amortece e dilui a tese nela contida. No redemoinho dos

acontecimentos, o fluxo narrativo caminha para uma assertiva final: a moral da história. A

história toda é o exemplo de uma tese de tal ou qual valor moral que está sendo defendida e

será apresentada – explícita ou implicitamente – no final do enredo, cujos exemplos típicos

são os contos de fadas e as fábulas. Esse padrão difere muitas vezes da estrutura de texto

argumentativ

p

forma de diálogo dos personage

Page 238: Capítulo V: Análise do material

238

papagaio cairia” etc.); b- modalizador adverbial (“perguntam à girafa meio baixinho...); c-

elemento de coesão e, como retomada da narrativa (“E lá vem de novo o sapo...),

mostrando a importância da textualidade para compor o vínculo com a narrativa clássica.

Aí estaria o fecho da fábula clássica, com uma moral que discute as relações entre o saber e

o querer. Ex: “‘Saber é uma coisa, querer é outra’, diz a girafa e dá no pé”. Mas o narrador

amplia a história oferecendo outras possibilidades de ações coletivas: “’Eu quero, mas não

i’, responde o sapo. ‘Sei pular!’, diz o sapo e dá um belo pulo. ‘Eu sei gritar e pular’, diz

o tigre meio baixinho. Mas só dá um pulo”. Como está dito na quarta capa, “uma história

onde todos participam e ninguém perde.” A reflexão que é proposta à criança tem por

objetivo enriquecer suas referências e, a partir dos recursos que a obra oferece, criar

condições para que a criança interaja criativamente com o discurso literário, como por

exemplo, com a imagem das palavras. Essas referências estéticas explicitam uma postura

ética frente às condições dos sujeitos de propor outras formas de relação.

No livro A Princesinha boca-suja, as imagens fazem referência não somente à história do

ro, mas, principalmente, ao imaginário infantil das histórias de princesa, príncipe, sapos

e bruxas, rainha e rei, fada e coringa, a corte. Exemplo disso é a apres a e na

uarta ca nagens da his o estão

ostos, podem sugerir qualquer conto de fadas (fig.112). Funcionam, então, em duas

dimensões:

se

liv

entação, na cap

q pa, de um único painel dos perso tória que, da forma com

p

Figura 112 A princesinha boca suja, página dupla

Page 239: Capítulo V: Análise do material

239

1°- no plano da história, atuam como ilustração de partes relevantes, e as imagens

confirmam as intertextualidades do texto, argumentando com uma citação visual, em

vários sentidos: a p. 6 (fig.113) é a imagem do arauto do rei convocando as moças a

experimentar o sapatinho de cristal, em A Gata Borralheira; as p. 9, 10 e 11(fig.114 e 115),

lembram a cena da festa de nascimento da Bela Adormecida; nas p.20-21 (fig.116), o

espelho da madrasta, que afirma sua beleza, em A Branca de Neve.

Figura 113 A princesinha boca suja , página dupla

Figura 114 A princesinha boca suja, p.9

Figura 115 A princesinha boca suja, p.10-11

Figura 116 A princesinha boca suja, p.20

Esse mundo narrado em que a criança está imersa se constitui como discurso de autoridade

legitimando o relato;

Page 240: Capítulo V: Análise do material

240

2°- no plano da enunciação, as imagens acompanham a perspectiva crítica do texto e, por

isso, os traços estilizados e a técnica em aquarela ajudam a deformar as figuras clássicas e

esguias dos contos de referência; aqui, as imagens passam a brincar com as imagens

adicionais dos contos e a funcionar como metalinguagem, propondo, na sua leitura, a

retomada do campo de conhecimentos que as crianças adquiriram sobre as histórias de

aródia. Na p. 9, a criança no berço já demonstra forte

tr

contos de fada para realizar a p

irritação, longe da figura doce e delicada das princesinhas de nossa infância. Igualmente na

p. 27 (fig.117) é a princesa que foge aos padrões e vai ela mesma verificar, no alto da torre

do castelo, a chegada do pretendente.

Portanto, embora as imagens estejam ligadas ao mundo narrado, instituído, pela

intertextualidade, criam espaço instituinte de novas feições, elo ao campo de referências

das imagens produzidas na ficção infantil, dando significado suplementar à leitura do

visível e não permitindo uma leitura automática ou passiva. Esse mundo comentado, com

citações e paródias visuais e verbais, se omo discurso internamente persuasivo,

stendendo à visualidade as gumentação. No caso desta

esquisa, fortalece-se a aposta de Goulart, para quem “enunciar é argumentar”, embora

Figura 117 A princesinha boca suja, p.27

organiza c

e propriedades discursivas da ar

p

aqui outras questões, além da linguagem verbal, sejam consideradas.

O projeto gráfico-editorial está inserido numa coleção da editora que se chama Abril

educação, o que potencializa o valor positivo dado às atitudes da menina princesa, mesmo

Page 241: Capítulo V: Análise do material

241

que não sejam aceitas pelos costumes do reinado, o que equivale a dizer que existe uma

intencionalidade na produção dessa obra que faz dialogar a dimensão ética/estética com a

dimensão educativa.

5.5.1.3 O aspecto da metonímia Seguindo na mesma trilha da relação verbal e plástico, entre outros aspectos, o livro O

Beijo da palavrinha, de Mia Couto e com ilustração do artista plástico moçambicano

Malangatana, evidencia a natureza dupla da escrita, de que nos fala Christin. E esse

ncontro se realiza no discurso literário. Portanto, não é só o projeto gráfico que orienta as

imagens e a escrita verbal para criar novas formas de leitura, mas também a narrativa está

envolta por uma malha discursiva que propõe estratégias de entendimento do mundo que

ultrapassam o senso comum. Para salvar a menina que adoecera, seria preciso ir à costa,

para que ela “renascesse tomando conta daquelas praias de areia e onda. E descobrisse

outras praias dentro dela”. Entra-se na realidade ficcional com o apoio da estrutura clássica

da narrativa, com a apresentação dos personagens e do problema (Fig.118) .

e

Figura 118 O Beijo da Palavrinha, página dupla

Aos poucos o leitor vai sendo levado para uma outra dimensão, junto com Zeca Zonzo, que

ra desprovido de juízo, e que, por isso mesmo, conseguiu salvar a irmã: outras vias, outro

lhar, outra compreensão. Impossibilitada de ir de corpo ao mar, a salvação da menina

omeça pela escrita: “– Vou-lhe mostrar o mar, maninha. Todos pensaram que ele iria

e

o

c

Page 242: Capítulo V: Análise do material

242

desenhar o oceano. Que iria azular o papel e no meio da cor iria pintar uns peixes. E o Sol

em cima, como vela de bolo de aniversário. Mas não. Zonzo apenas rabiscou com letra

gorda a palavra ‘mar’. Apenas isso: a palavra inteira e por extenso”. A sua desrazão

consegue guiar os dedos da maninha para a leitura de um mundo que ela desconhece e que

vai construindo aos poucos pela relação tátil com o papel onde a palavra está escrita: “Zeca

Zonzo levantou os dedos da irmã e soprou neles como se corrigisse algum defeito e os

ensinasse a decifrar a lisa brancura do papel”. A seqüência da narrativa toda ela é um

momento mágico de construção e de apropriação de um mundo que, aos poucos, passa a

rmar sentido (fig.119). fo

As letras m, a, r ganham a força de uma realidade ideogramática das ondas, da gaivota e da

rocha que se distinguiam pelos dedos da menina: a letra m “é feita de vagas, líquidas linhas

que sobem e descem”. Já o a é uma gaivota pousada nela própria, enquanto que os dedos

da menina se magoam “no ‘r’ duro, rugoso, com suas ásperas arestas”. Mais que uma

metáfora, a existência das letras são uma realidade para a menina que se salva quando

Figura 119 O Beijo da Palavrinha, página dupla

cria

mar e suas ondas, a rocha que nele habita e as gaivotas. É um prolongamento físico do o

mundo, metonímia que faz aproximar o mundo representado do corpo representante.

Passar os dedos nas letras é passar as mãos nos objetos que lhe aproximarão da eternidade,

como se o movimento esculpido de suas mãos trouxesse o mar da sua salvação (fig.120).

Page 243: Capítulo V: Análise do material

243

Figurar e representar, nesse caso, dão poder à imagem arcaica e contêm o perigo público

da sua presença como símbolo do poder, de poder significar. A relação

Figura 120 O Beijo da Palavrinha, página dupla

grafema/fonema é

bstituída pela sensibilidade tátil do desenho, como que refazendo com os dedos as

dos dedos da

enina se aproxima do modo como Samain (1998, p.13) entende a visualidade originária:

o que permitiu à protagonista Maria Poeirinha cumprir seu destino é esse caráter

constitutivo do ser humano que, mesmo no caso dela que não conhecera o mar, define um

modo de estar no mundo. Em um momento de reminiscência, ele faz o seguinte

comentário:

su

formas gráficas dos sentidos.

Régis Debray (1993, p.14), a propósito do seu estudo sobre a história das imagens no

Ocidente, comenta a preocupação de um imperador chinês em pedir ao principal pintor da

corte para apagar a cascata pintada em afresco na parede do palácio porque o ruído da água

impedia-o de dormir. E acrescenta que, ainda na Renascença florentina, Leon Alberti

sugere que “ver pinturas representando fontes, rios e cascatas faz muitíssimo bem aos

febris. Se alguém, durante a noite, não consegue dormir ponha-se a contemplar nascentes e

o sono há de chegar”. A potência da imagem, portanto, é poder apresentar, não um

sucedâneo de algo, mas esse algo transferido, como se sua alma estivesse ali presente.

Por outro lado, essa possibilidade de contar com a presença do mar através

m

Page 244: Capítulo V: Análise do material

244

Tinha, primeiro, avistado o mar. Foi muito mais tarde que consegui nomeá-lo e dele falar e precisei de muitos outros anos de alfabetização, para que, enfim, pudesse escrever seu tão pequeno nome... Dessa maneira, falar do fotográfico será, necessariamente, procurar situá-lo na perspectiva e no traçado de uma visualidade originária e constitutiva do ser humano, que teve de atravessar, ao longo de milênios, outros meios de comunicação que foram e são ainda a oralidade e a escrita, antes de poder constituir-se como fotografia. Não receio em dizer assim que o fotográfico representa nossa visualidade primeira que, quase submersa, durante séculos, nas águas da oralidade e da escrita, remontou, muito recentemente, à superfície, dando-nos a ver o mundo através de uma mediação técnica suplementar: o próprio dispositivo fotográfico e o signo visual singular que ele proporciona.

Essa compreensão da imagem ajuda a compreender o diálogo do texto com os quadros do

artista plástico Malangatana para seu processo de ilustração, uma vez que ele vai buscar

essa visualidade originária e expressar o fotográfico que há no artista por meio de uma

lasticidade étnica, vigorosa como o texto e portadora de fendas de leitura pelas quais a

esejada estética comparada da primeira década do séc. XX se realiza.

m, da escrita o seu mar e todos se calaram

ara escutar o marulhar: “Foi beijada pelo mar. E se afogou numa palavrinha”. A imagem

o é a expressão tátil de conexão com o mundo, retornando

o mundo do sensível a possibilidade de leitura e reconhecimento do mundo.

p

d

Vale lembrar, sobretudo, que, mais do que objetos representados por dispositivos técnicos,

a imagem aqui descrita deve ser compreendida pela definição dada por Philippe Dubois154:

“apreender, desse modo, o ‘fotográfico’ como uma categoria que não se limitaria aos

únicos objetos-imagens, entender o ‘fotográfico’ como uma definição possível de uma

maneira de ser no mundo, como um estado do olhar e do pensamento”. Por isso, a menina

que precisava da salvadora viagem em direção ao mar, de sentir e respirar a maresia para

sobreviver, fez do passar os dedos a sua viage

p

reconhecida do mar está presente como um estado do pensamento, como a potência do

fotográfico que se concretiza na escrita do irmão Zonzo. As letras são o índice da presença

do objeto. E o índice é a mais primitiva relação como o real, a marca do objeto e da sua

existência. Quase cega, sua mã

a

154 APUD Samain, 1998, p. 11.

Page 245: Capítulo V: Análise do material

245

ão dez telas arrativa (fig.121). A opção de apresentar todas elas ao

m frases, seja abrindo o branco para

infinito, ou escrevendo sobre a tela, fica claro que são duas obras que se apresentam por

.5.1.4 O aspecto dos dêiticos

Figura 121 O Beijo da Palavrinha, página final

S que ilustram cenas da n

final do livro permite admirar o trabalho do artista, mesmo que em pequeno formato, de

uma forma inteira, autônoma, e libera a arte gráfica para compor e propor, ora com partes

dos quadros, ora com a tela inteira, diálogos entre o plástico e o verbal, iluminando

aspectos que dão sentidos de leitura. Seja brincando co

o

inteiro para leitura: literatura e artes plásticas.

O texto retoma a escrita da poesia concreta em diversos momentos e as ilustrações são

diagramadas de modo a que permaneçam em constante diálogo com o texto, apresentado

com letras diferentes que marcam a enunciação, as falas alheias e seus sentimentos, sempre

a serviço do jogo de sentidos.

5 O projeto editorial do livro O Jantar Fantasma, de Jacques Duquennoy, é um complexo

trabalho de texto e imagem. Textos curtos escondem dificuldades e estabelecem relações

para fora do texto, convidando o leitor a percorrer visualmente as indicações, que serão

Page 246: Capítulo V: Análise do material

246

explicitadas pela imagem. Em formato retangular de meia página, o tamanho deste objeto

livro torna-se de fácil apreensão, adequado à dimensão infantil. Deve-se analisar essa obra

observando o conjunto imagem e texto, pois o texto, aqui, não sobrevive sem as imagens:

são diálogos que remetem ao acontecimento retratado nos quadros, como na página 12: “-

Epa! A bandeja não passa”. E logo na página seguinte: “Ah, assim é melhor!” (fig.122 –

123).

Só se sabe qual o expediente utilizado para o sucesso da ação ao se olhar para o quadro;

portanto, a compreensão dada pela imagem explicita a importância da plasticidade na

constituição dos

Figura 122 O Jantar Fantasma, p.12

Figura 123 O Jantar Fantasma, p.13

sentidos. Esse é o aspecto que dá originalidade à obra e indica a íntima

teração entre a leitura do texto verbal e as imagens.

de Dêixis, Michel Lahud propõe um estudo

pistemológico da noção de dêixis, mostrando uma inspiração arqueológica fundada em

in

Superando a discussão estabelecida por Lessing, que propõe uma divisão entre as artes do

tempo e as artes do espaço, esse livro vai numa direção mais inclusiva e oferece uma

forma de integração da espacialização na leitura; não uma forma de ler as imagens, como

queria Barthes – para quem tudo seria texto –, mas um jeito mesmo de ver o que há de

imagem, de plástico, no conjunto interpretativo da obra (lembrando sempre que imagem,

aqui, é definida de acordo com Christin, isto é, a figura e a superfície onde ela se assenta).

Dessa forma, a categoria dos dêiticos se torna chave para fazer essa interação, a ponte do

enlaçamento das duas dimensões, lingüística e visual.

Em seu livro A Propósito da Noção

e

uma variedade de pontos de vista e de propostas de estruturação do problema. Dêiticos,

Page 247: Capítulo V: Análise do material

247

índices, shifters, índices de enunciação ou indicadores de subjetividade (p. 41) são algumas

designações, de diferentes origens epistemológicas, para a definição do problema. Embora

não se interesse pela manifestação do fenômeno dêitico nas línguas, toma primordialmente

s pronomes marcados das pessoas eu/tu, o demonstrativo isso e os signos temporais como

ategorias constitutivas de uma única classe que pode ser incluída na noção de dêixis.

Apresenta algumas direções de agrupamento, itindo mostrar, de um lado, sua natureza

semântica e, de outro, a importância da relação que se estabelece com o referente. Estuda

processos históricos das diferentes funções dos pronomes pessoal e demonstrativo,

indicando que o demonstrativo, por exemplo, não só é concebido por alguns como uma

função puramente de substituição do nome, “para um nome”, como também pode ser visto

“como um nome”: esses se situam do ponto de vista semântico, conceitual. Informa a

necessidade de uma ampliação desse conceito, com idéias acessórias de natureza muito

diversa (p.53): “trata-se daquelas que o espírito extrai das circunstâncias do discurso, à

uisa de suplemento, quando a significação precisa de certos termos é geral demais”. É

so que caracteriza sua naturez o que definirá, primeiramente,

s relações da dêixis com a significação e com a referência, embora sejam múltiplos os

exemplo da p. 14 é bastante esclarecedor: “Eu provarei esse aí com prazer...”; ou, na p.

ísticos, com a expressão facial, os gestos, nos são dados pelas imagens.

tripé da oralidade x imagem x escrita compõe, nessa medida, um discurso ampliado,

melhante ao discurso múltiplo e simultâneo de que fazem uso os sujeitos que vivenciam

processos de alfabetização. Muitas metodologias de classes de alfabetização tomam essa

base tríplice, oral/escrito/imagem, como um caminho para o acesso ao domínio da escrita

alfabética (como visto no capítulo dois).

o

c

perm

g

is a relacional. Esse aspecto é

a

valores associados a esses termos. Portanto, o problema assim posto por Lahud indica a

complexidade do fenômeno e as limitações a que me imponho para a crítica do material

ora analisado.

O

30: “Aqui está... a surpresa do chefe!”: nada é dito, mas são as imagens que vão

constituindo os significados do texto verbal. Como o texto é, na sua grande maioria, um

diálogo entre os participantes do jantar, interações em presença, os recursos lingüísticos da

fala não utilizam os necessários procedimentos textuais que dão coerência à escrita, e os

elementos paralingü

O

se

Na medida em que os fantasmas vão comentando o sabor e as sensações prazerosas com a

comida, eles vão se transformando, como que assumindo um atributo do alimento. Vários

Page 248: Capítulo V: Análise do material

248

coquetéis, várias cores; sopa de abóbora, todos laranja; salada, eles folheados e verdinhos;

queijo, eles furadinhos; salmão, eles cor de salmão; sorvete, eles derretidos; café, marrom,

e, finalmente, leite quentinho, e todos voltam ao seu normal, branquinhos (Fig.124).

Por isso, a imagem funciona como um eis aí!, como dêiticos, cuja função de designação

indica mas também interpreta plasticamente os ditos e os subentendidos do texto. São, ao

mesmo tempo, elementos referenciais e semânticos, orientando, ou mesmo dirigindo, a

compreensão do leitor.

Esse recurso faz parte do conjunto de estratégias textuais que, constituindo os sujeitos-

leitores, constituem o discurso155. É o caso da seguinte seqüência: “- Que delícia!”, “-É de

derreter!” (fig.125 – 126), “- É de ficar derretido mesmo!”, “- Hmm...! É mágico!” e

desaparecem do quadro, existindo

Figura 124 Livro O Jantar Fantasma, p.27

apenas através dos objetos que carregam, como os

lheres e o prato.

ta

155 Umberto Eco, em Lector in Fabula, lembra que o texto é constituído por uma série de operações interpretativas que supõe um leitor capaz de executá-las. Chama essa capacidade intelectual de compartilhar o estilo do autor de leitor-modelo. Do outro lado, o autor-modelo é um feixe de estratégias textuais capaz de estabelecer correlações semânticas, criando um estilo que será interpretado pelo leitor. (p. 45).

Page 249: Capítulo V: Análise do material

249

Nada foi dito sobre a possibilidade real de ser um sorvete, mas as circunstâncias

discursivas, constituídas pelo diálogo e pelas imagens, levam a intuir essa hipótese. A

participação efetiva das imagens como elementos de discursividade altera radicalmente a

posição dos valores das figuras na história: superam a sua função como simples ilustração

dos diálo

Figura 125 O Jantar Fantasma, p.32

Figura 126 O Jantar Fantasma, p.33

gos dos quadros e se impõem no campo discursivo como elemento-chave para o

stabelecimento de correlações semânticas. Sob esse ponto de vista, as imagens podem ser e

observadas pelo que o círculo de Bakhtin caracteriza como interiorização da linguagem (cf.

Cap. 3), de forma que o dado comum, que dá base para a interação, possa sustentar a

interlocução em outro patamar, isto é, quando a linguagem (seja verbal, seja visual) está

afeita para a criação do estilo, da marca autoral. Por outro lado, a ambiência do jantar é

construída por índices que se referem ao mundo (para nós) mágico dos fantasmas. Por isso,

o apoio verbal da legenda nas imagens. É o caso, por exemplo, da p. 37, onde se vêem

pratos sendo lançados ao chão, sem uma motivação precedente. A legenda “- Cuidado com

o degrau!” informa uma suposta queda do fantasma. Ou na p.39, em que o diálogo da

legenda explica o evento (fig.127).

Figura 127

O Jantar Fantasma, p.39

Page 250: Capítulo V: Análise do material

250

A preocupação do autor em explicitar possíveis ambigüidades é observada freqüentemente

nas legendas, criando, com isso, uma relação ora de colaboração, ora de repetição do visto.

Outro elemento marcante na realização da obra é o papel da moldura na diagramação das

páginas. Mantendo a mesma organização, a moldura em branco destaca o ambiente

noturno e dá uma unidade aos quadros, o que ajudará na composição da narrativa: mesmo

que os pequenos quadros, junto com o texto verbal, sejam autônomos, ao serem

plasticamente montados, vão criando a história. Almeida (1999)156, ao estudar as pinturas

religiosas em paredes de capela italiana, se utiliza de quadros autônomos, mas que se

integram em conjunto, lembrando e fixando a memória, contando, em narrativa visual, o

périplo de Cristo. São freqüentes esses procedimentos de uso pictural, e esse livro utiliza

esse recurso, lembrando o que Louvel chama de efeito de imagem. A moldura, como fator

de demarcação do objeto, do seu tempo e lugar, dá visibilidade aos dois espaços de

existência, mas interligando-os e mostrando o grau de referência a que os objetos estão

afeitos.

As cores e o desenho também participam da composição do conteúdo e da encenação, cuja

diagramação é inteiramente integrada à história, acentuando aspectos expressivos do

enredo, a exemplo dos quadros menores das p. 16-17, que dão a ver a transformação por

ue passa o fantasma, bem como nas p. amente o contrário, uma página dupla

ara evidenciar toda a cena. De enascentista de Leonardo Da

inci, equilibrada na composição de elementos, de cores e de, neste caso, falta de luz,

q 18-19, just

p resto, lembra a Santa Ceia r

V

indicada pela lua solitária, que passeia lá fora. Novamente essas referências externas

convocam o leitor a uma participação ativa, constituindo-o como um dos produtores de

sentidos, que se atualizarão no diálogo de texto e imagens, pelas linguagens. Esse é o

projeto de acabamento que a atividade estética bakhtiniana proporciona.

156 Milton José de Almeida, em seu livro Cinema: a arte da memória, comenta as aproximações discursivas entre o cinema e a memória artificial, tomando como eixo as pinturas da capela Scrovegni, Itália: mostra que as pinturas são capazes de reconstruir, organizadas em um conjunto pictográfico, narrativ s como no cinema, bem como de propiciar a evocauma invenção moderna, no sent

ação da memória, como os instrumentos da memória artificial. “O cinema é ido material-técnico, porém, a forma como suas imagens são produzidas é

omóloga à produção da memória artificial. Assistir a um filme é estar envolvido num processo de recriação emória como o que estamos vendo dentro da Capella degli Scrovegni. O cinema, ao mesmo tempo, cria

ficção e realidades históricas, em imagens agentes e potentes, e produz memória.” (p. 56).

hda m

Page 251: Capítulo V: Análise do material

251

A história começa apresentando o cenário de recepção dos convidados. Fora do castelo, o

escuro da noite e a lua indicam o momento adequado para o jantar. Sem texto, a cena é de

confraternização. Reproduzindo a estrutura clássica da narrativa, primeiro apresentam-se o

cenário e os personagens que comporão a história. Porém, antes dos paratextos tradicionais

de apresentação do livro, como a folha de rosto, o cenário é um convite ao leitor para

entrada no livro e na história. O mesmo acontece no final: a história - o jantar- termina, e o

xpediente encontrado para marcar o seu término é, como que lembrando a palavra “FIM”,

char-se a cena com um close no rosto do fantasminha, tal qual nos filmes de desenho

rsonagem principal (fig.128). Todavia, repetindo o início do

vro, acrescenta-se mais uma folha ao livro para a despedida dos amigos. E dos leitores

e

fe

animado, com o ícone do pe

li

também.

Dessa forma, os paratextos visuais são integralmente utilizados como marcadores de

orientação de leitura: a narração em terceira pessoa, o ícone em substituição à palavra, a

folha inicial e a folha final como recepção e despedida dos leitores são indícios da presença

do autor e da sua proposta de interlocução. É um contrato de leitura, um estilo que será

aceito na medida da interpretação do leitor. O expediente encontrado para marcar essa

ruptura entre o narrado e a narração, ou melhor, entre o acontecimento e a presença autoral,

compreende aspectos visuais que dialogam no campo literário, mas que não abolem o

plástico, lembrando o que Arambasin propõe como “estética comparada” 157, com

paralelos entre literatura e pintura.

Figura 128 O Jantar Fantasma, página final

157 Arambasin apud Arbex, p. 39.

Page 252: Capítulo V: Análise do material

252

Do ponto de vista da classificação quanto à natureza da obra, pode-se dizer que esse livro é

uma fusão artística e que as suas contribuições estéticas e culturais só devem alimentar a

queza das diferenças: as falas dos fantasminhas, por exemplo, não indicam variáveis

sociais e/ou dialetais, mas culturais, pois é tipicamente francês o comportamento dos

fantasmas: a finalidade – o jantar; a comida – queijo; o lugar – o castelo. Isso tudo vindo

de uma tradição das histórias infantis que povoam o imaginário infantil.

5.5.2 Dimensão descritiva

sta seção intenta contribuir com alguns m ento das relações entre

agem e texto quanto à descriç ilidades de uso: como recurso

série de

tributos da única personagem, constituindo uma textualidade que não é uma narrativa,

as uma grande seqüência descritiva. O resultado é uma espécie de acúmulo de dados

transformados em biografia; os objetos são apresentados através de imagens que tomam

conta inteiramente da página dupla, em tamanho grande, como que aproximando os poucos

elementos que o ilustrador deseja ampliar. As imagens, muitas vezes, se tornam mais fortes

e presentes do que o próprio texto, contudo não deixam de exercer a função de ilustração

do descrito. Esse é caso em que as imagens, mesmo sustentando sua função ilustrativa,

reconhecem seu papel de diálogo com a temática oferecida pelo texto verbal e de

ampliação das perspectivas de leitura. Por exemplo, as referências ao mundo infantil

arque de diversões) e as referências bras da literatura infantil: “quero ter o

abelo bem grande pra usar solto” (fig.129), fala antecedida do desenho de uma moça

ri

E ovimentos de entendim

im ão, apresentando duas possib

biográfico e como construção de narrativa. O biográfico no âmbito das identificações com

o leitor e a construção narrativa na organização do estilo.

5.5.2.1 O aspecto biográfico

Um uso exemplar do descritivo encontra-se no livro Esquisita como eu, de Martha

Medeiros, ilustrado por Laura Castilhos. Essa obra se organiza em torno de uma

a

m

(p a outras o

c

numa torre, de cabelos claros enormes, lembrando a Rapunzel das histórias infantis, que

percorre quase todo o mundo. Sendo uma personagem irreverente, o trabalho visual

Page 253: Capítulo V: Análise do material

253

também se apóia na paródia visual, que adiciona interpretação particular, cooperando com

a proposição discursiva verbal e visual.

Pelo fato de o texto não ser uma narrativa, imagens e textos são recortes do mundo da

criança-personagem e, por isso, os objetos tomam o espaço da página sem uma ordenação

pré-determinada. A orientação de leitura visual pode se apresentar às vezes circular, às

vezes da esquerda

Figura 129 Esquisita como eu, página dupla

para a direita, como a direção de leitura do texto verbal, ou

entralizando o elemento principal (fig.130). O projeto editorial, portanto, acompanha o

onto de vista do auto-retrato da personagem, que se apresenta de forma excessiva – ou

muito subjetiva – marcando, pelas cores, formas e traços, a identidade da criança.

c

p

A impressão de muito boa qualidade facilita a leitura do escrito sobre cores fortes. As

letras bastão distribuídas com bom espaçamento entre palavras e entre linhas estão

apropriadas para um leitor de 7 a 8 anos, idade aproximada da personagem. Entretanto,

Figura 130 Esquisita como eu, página dupla

Page 254: Capítulo V: Análise do material

254

esse é o limite do uso gráfico do texto verbal, integrado à proposta de leitura visual. A

definição do recorte quadrado para o formato do livro se mostra sensível às intenções

terpretativas da obra, pois contribui para a distribuição adequada dos elementos na

prida nas festas de

teiro, isso eles acham normal. / Eles, os que

fazem tudo igual”.).

in

página dupla; o papel de qualidade (couché fosco) ajuda a manter as cores firmes e

definidas.

A seqüência de descrições que caracterizam a personagem cria uma série de atributos com

os quais a autora quer fazer o leitor mirim se identificar. A proposta da obra é apresentar

situações inusitadas, oferecendo uma possibilidade de leitura mais engraçada e, ao mesmo

tempo, reflexiva. Alguns procedimentos estilísticos são desenvolvidos no texto, como a

rima (“...Eu gosto de correr atrás de bicicletas no domingo. / Eu acho dia de sol feio, e dia

feio, lindo”.), o ritmo e o uso de figura de sintaxe (“Às vezes finjo que choro, e às vezes

choro de verdade”), a elaboração textual com elementos de coesão (fig.131) (“Não gosto

de usar vestido nem de nada preso no cabelo. / Uso calça com

aniversário. / Melhor do que usar boné o dia in

A zona de estranhamento postulada pelo tema – ser diferente – acolhe qualquer postura que

possa dificultar uma interpretação imediata e automática: “Prefiro chá gelado em vez de

refri. / Fecho todas as janelas da casa para o vento não entrar./ Adoro tomar banho e chupar

limão. /E do pastel, como só as bordas, o recheio não”. O co

Figura 131 Esquisita como eu, página dupla

nteúdo se organiza em torno

o mundo infantil, estruturado pela comparação com tudo em volta, e as imagens são d

Page 255: Capítulo V: Análise do material

255

agentes que enriquecem a leitura da obra, fazendo lembrar situações e vivências das

crianças em seus contextos culturais.

Para sair dos estereótipos fáceis, a autora constrói uma personagem também idealizada

pelo seu contrário. A primeira quadra do texto já indica essa disposição, lembrando as

inúmeras vezes que alguém disse para uma criança que ela foi achada no cesto de lixo, ou

que foi deixada na porta de casa, que foi adotada, enfim, que traz um estigma: “Dizem que

ão nasci como as outras crianças. Minh u que vim dentro de um ovo de Páscoa.

Meu irmão, que me deram como de McLanche Feliz./ Eu sei que é

estilo próprio, único, estruturado pela linguagem, fundada socialmente. São as

arcas ideológicas na linguagem de que fala Bakhtin. Isso porque há tanto trabalho verbal

quanto imagético e uma proposta de interação entre essas duas dimensões, de forma a

construir um vasto campo de possibilidades de leitura. Uma dominante na proposta do

livro é a complementaridade permanente entre imagem e texto em forma de legenda; muito

do que dizem as imagens não tem paralelo no texto escrito, e vice-versa. Mas outra

proposta igualmente relevante é o diálogo entre as imagens, como que demarcando, pela

descrição constante, as personagens, seus modos de ser, seus atributos físicos e

psicológicos, enfim, uma composição visual que ultrapassa a transcrição denotativa do

xto verbal e amplia as conotações ções assumidas pela plasticidade das

agens. Ex: “O vizinho coleciona discos da velha guarda”.

n a irmã falo

/ lembrancinha

implicância, que foi minha mãe que me quis”. Ao final, depois de desfiar uma lista de

características inusitadas, a última quadra tende a querer recuperar uma normalidade muito

subjetiva: “Eu não vim dentro de um ovo de chocolate. / Nem vim de brinde de lanche. /

Nasci como todos, nove meses de barriga. / Esquisitos são os outros se não me querem pra

amiga”. Como é dito na quarta capa: “... cria uma personagem que, ao olhar para si mesma,

acaba achando os outros muito iguais”.

5.5.2.2 O aspecto do estilo O livro Vizinho, vizinha, de Roger Melo, com ilustrações de Graça Lima, Mariana

Massarani e Roger Melo, propõe uma leitura múltipla, aberta, pelo trabalho com imagens,

palavras e imagem/palavra. São três ilustradores que assumem, cada um, os três

protagonistas do livro e definem seus modos de ser através de cores, de traços, de volumes,

enfim, de

m

te e implica

im

Page 256: Capítulo V: Análise do material

256

Esse texto é complementado pela roupa do rapaz, suas calç

Figura 132 Vizinho Vizinha

as largas e listradas, blusa

lgada, descalço, ele cantando emoldurado por um cacto e uma pintura na parede de um fo

músico violonista – o cenário mais perfeito para estar com os pés em um tapete rústico e a

voz solta na garganta. A simplicidade do rapaz opõe-se à extravagância da mulher do

apartamento em frente, que está em busca das coisas perdidas dentro de casa e nunca

achadas, uma parafernália: “A vizinha guarda coisas velhas que depois não encontra”.

Outro exemplo é a página em que os protagonistas saem e as crianças ficam em casa. O

texto diz o horário e o que tio, avó e crianças foram fazer: “Quatro e quarenta: o vizinho

saiu com o canário. A sobrinha espreita.” (à esquerda); “Vinte para as cinco: a vizinha

levou o relógio ao conserto. O neto observa.” (à direita). Porém, as imagens acrescentam

outras informações fundamentais para a compreensão da história: onde e como a sobrinha

espreitava, onde e como o neto observava, as portas abertas e o corredor como elo entre as

crianças.

Figura 133 Vizinho Vizinha

Page 257: Capítulo V: Análise do material

257

Outros elementos que orientam a leitura são as cores e o estilo de desenho de cada

personagem: rosa fúcsia para a página do homem, amarelo ouro para a página da mulher;

cada personagem foi desenhada por um artista, explicitando no estilo do traço e nos objetos

de decoração as marcas da singularidade de cada casa. O conjunto gráfico-editorial é bem

sucedido, sugerindo uma linguagem aberta e convidativa. O traço, o desenho, a técnica, a

mistura de técnicas – como a colagem –, as cores das páginas, os elementos selecionados,

tudo constitui o campo de significações dos personagens. Embora os conteúdos semânticos

estejam imersos tanto nas palavras quanto nas imagens, o elo significativo da existência de

cada personagem está no intercâmbio dessas duas dimensões.

Nesse livro, é através do conjunto descritivo que se apreende um estilo de vida. Em análise

sobre o conceito de estilo bakhtiniano, Fiorin (2006, p. 46-51) lembra que o estilo não

traduz a expressão da subjetividade, mas resulta de uma visão de mundo, e que estrutura e

unifica os enunciados produzidos pelo enunciador. Além disso, o estilo constitui-se em

oposição a outros estilos, sendo, portanto, dialógico. Tanto pela objetividade com que se

descrevem verbalmente as personagens, como pela suposta dependência da imagem ao

referente, a aparente transparência das imagens e das palavras esconde uma opacidade

orgânica que busca incessantemente o dito e o não dito, o implícito e o implicável, o

traduzível, mas compreensível pelas fendas de leitura. Por isso, o tempo verbal é o

presente do cotidiano, que se desdobra indefinidamente nos mesmos atos diários: passeia

com o passarinho às quatro e quarenta, leva o relógio para consertar às vinte para as cinco,

ou alimenta um rinoceronte debaixo da pia – formas verbais que dão a dimensão do estar

no mundo de cada vizinho. O presente, que do ponto de vista filosófico é a ausência de

tempo, marca as histórias pessoais, contrastando o modo de ser de cada um; além disso,

não promove a transformação dos sujeitos, apenas fá-los se movimentarem. Esse recurso

lingüístico aponta na direção da realização de tarefas que enclausuram os personagens no

u mundo interior, como círculos que se repetem. Por isso, o texto se assemelha à

strutura de um roteiro cinematográfico, cada enquadramento à espera de se tornar real

in

se

e

através do acontecimento.

Pode-se retomar a noção de estilo, que o poeta norte-americano Bukowski tanto preza, ao

dizer que “tudo é uma questão de estilo”, e que Bakhtin aponta como marca da

subjetividade autoral, indício da enunciação. Retomando igualmente os estudos de Lahud,

Page 258: Capítulo V: Análise do material

258

os dêiticos marcam a enunciação e a constituição da subjetividade. Ora, é o estilo dessa

obra que determina sua leitura, sua agilidade na montagem das personagens e a tensão na

constituição plástica do jogo de sentidos. São três ilustradores que imprimem a sua marca

o modo de ser de cada personagem, construindo seus mundos particulares (o vizinho, a

vizinha, o faxineiro). O confronto das imagens propicia uma leitura em contraponto, cujos

níveis mais elevados superam a simples constatação do visto. Esse é um motivo para se

trabalhar em página dupla, sempre com uma visão do conjunto. Além da seleção dos

objetos que organizam os cenários da cada apartamento, sua composição orienta o

espectador para o modo como devem ser compreendidos; ademais, o traço dos desenhos

define o modo de ser de cada um. Como lembra Mário de Andrade, o traço, essa

convenção eminentemente desenhística, é convencional e denuncia que a escolha do

esenho, sua precisão, seus meneios e fo stivas é o estilo do artista e, acrescento,

rienta o modo de olhar. O conjun /casa nos é dado a ver por traços

n

d rmas suge

o to personagem

inteiramente distintos: a pressão da mão, que carrega o lápis e suas imprecisões, vai

modelando rapaz, porta de sua casa, máscara na parede, poltrona, peixe e até passarinho

que leva para passear. Ao contrário, a definição da pintura dos objetos do apartamento da

vizinha aponta para outra concepção de vida, uma energia diferente, que muitas vezes é

sentida pelo leitor/espectador sem que tome consciência dessas marcas/índices que

modelam o perfil dos protagonistas.

Paradoxalmente, o

Figura 134 Vizinho Vizinha

acúmulo do descritivo se transforma em narrativo. O tempo e o modo

omo o cotidiano dessas vidas constitui uma narração tornam-se visíveis pela concepção

gráfica da autoria. A paginação dupla é, na verdade, dividida em três partes, pois o que está

no centro, o corredor, é que determina o fluir do tempo cotidiano, marcado pelas ações de

uma personagem, o faxineiro do prédio, que limpa, lava, descansa, ouve a música vinda do

c

Page 259: Capítulo V: Análise do material

259

apartamento da vizinha e avança para outros andares. O corredor, como lugar de interações

e de marcação temporal dos acontecimentos da história, constitui o espaço dinâmico dos

encontros, das trocas e das expectativas de transformação.

Quando as crianças se encontram no corredor, as portas abertas permitem o fluxo de

vivências e de intercâmbios, com leveza e vivacidade já esquecidas pelos mais velhos. A

simplicidade com que esses pequenos atores criam turbulência na vida dos adultos alerta-

os para a existência do outro, uma motivação para abrir seus olhos e suas vid

Figura 135 Vizinho Vizinha

as. O texto

erbal acompanha as rupturas impostas na organização das casas e nos modelos já

constituídos, num acúmulo de palavras sem pontuação, sem verbos, que denunciam a

um a todos, uma página onde apartamento da

squerda, corredor, apartamento da direita se transformam em um único espaço renovado

v

construção de um espaço novo, com

e

de convivência. Ali no corredor está o tempo das mudanças, a expansão das relações, onde

o fluxo dos acontecimentos não permite a permanência no mesmo. Por isso, observa-se a

troca permanente de tapete da porta na mulher. A mudança da cor e de padrão vai resultar,

ao fim e ao cabo, como lugar da palavra, do aceno, como que pondo em uso a possibilidade

de proporcionar interações por meio das quais os homens se constituem: “bem-vindo”. O

efeito de presença que naturalmente caracteriza a descrição é tratado plasticamente, de

maneira a que, junto com a fragmentação da narrativa clássica, constitua a proposta

narrativa do livro.

Page 260: Capítulo V: Análise do material

260

O fato de essa obra realizar, com imagens e p

Figura 136 Vizinho Vizinha

alavras, um acúmulo de descrições,

ossibilita construir uma outra zona de sentidos, longe do modo de realização do signo

m sobre a outra. O projeto narrativo desse livro

proveita a plasticidade das imagens e a discursividade do texto e, finalmente, mescla os

do ético que dialoga com a sua riqueza estética.

tela vai se

lterando pelo tipo de ênfase que se quer dar. A história continua, mas a ênfase está ora nos

(plantas e bichos) em diferentes planos: do close à panorâmica,

fastando os elementos e dificultando suas relações; ou aproximando-os, destacando sua

lação de proporcionalidade: ora pessoas, ora pássaros/plantas. As imagens não

substituem o texto, mas complementam, pois dar visibilidade ao tamanho é sinal do

transcorrer, do fluxo do tempo.

p

lingüístico saussureano, em que muitas vezes a relação biunívoca significante/significado

marca a posição das imagens como ilustração da palavra ou do texto e que tende a

reafirmar a supremacia de uma linguage

a

dois para apresentar um resulta

5.5.3 Dimensão do enquadramento

O movimento de aproximação e afastamento dos objetos narrados e comentados nas

histórias infantis apresenta uma característica de visualidade importante: o enquadramento.

Cocô de passarinho, de Eva Furnari, é um livro exemplar: o que está na

a

rostos, ora nos chapéus, nas plantas, nos pássaros. E o tempo que passa é denunciado pelo

tamanho dos objetos

a

re

Page 261: Capítulo V: Análise do material

261

Outro uso possível para o enquadramento é o recorte das telas em O Beijo da palavrinha; a

liberdade do corte ficou por conta da ênfase em determinado objeto, cor ou até mesmo da

abstração que o detalhe muito próximo acarreta.

Todavia, apresento a seguir alguns aspectos que considero relevantes, em se tratando de

formato de livro de imagem sem texto, e que alguns autores preferem chamar “livro de

agem”. Outros preferem “álbum de imagem”, buscando afastar-se do conceito literário

de texto e de livro, em que reina a discursividade verbal. Contudo, frente aos aspectos

observados ao longo desse estudo, acredito poder imprimir, ao aspecto narrativo contido

em certos livros de imagem, seu caráter literário, da mesma forma que se torna viável

pensar o caráter plástico de alguns textos literários.

Foram escolhidas duas diferentes aborda preender a importância desse

onceito em usos específicos das imagens no discurso narrativo: a moldura e a

erticalização, que são tratadas a seguir.

5.5.3.1 O aspecto da moldura O livro O Ratinho que morava no Livro, de Monique Félix, se assemelha tanto à

visualidade das histórias em quadrinhos – etonímias, angulação, posicionamento

e câmera –, quanto à narrativa própria de pequenos contos – poucas personagens, uma

tuação de base, um acontecimento. É o que faz a autora desse quase livro de bolso, cuja

seqüência de quadros constrói a narrativa que se apóia na estrutura tradicional do discurso

verbal, permitindo que a história se constitua a partir da sua carga discursiva.

Seguem abaixo as figuras de 137 a 149 com as reproduções das páginas do livro O Ratinho

que morava no Livro:

um

im

gens para com

c

v

cortes, m

d

si

Page 262: Capítulo V: Análise do material

262

Page 263: Capítulo V: Análise do material

263

Do mesmo modo que as narrativas literárias nos permitem pensar imagens, e através de

imagens – os chamados iconotextos de que nos fala Louvel –, construídas por uma

percepção do mundo já instalada, as imagens permitem pensar palavras, frases, enfim,

textos, ou pensar por palavras, frases, enfim, textos, que construirão sentido. Bakhtin

(2004, p. 38) nos alerta para esse entrelaçamento dos signos ideológicos e para a presença

da palavra como elo discursivo. Diz ele que “nenhum signo cultural, quando compreendido

e dotado de um sentido permanece isolado”. E acrescenta:

É impossível, em última análise, exprimir em palavras, de modo adequado, uma composição musical ou uma representação pictórica. Um ritual religioso não pode ser inteiramente substituído por palavras [...] Todavia, embora nenhum desses signos ideológicos seja substituível por palavras, cada um deles, ao mesmo tempo, se apóia nas palavras e é acompanhado por elas...

Page 264: Capítulo V: Análise do material

264

Dirigido preferencialmente a crianças da educação infantil (o que não impede o prazer de

um leitor adulto e proficiente), o projeto gráfico é simples e requintado. A numeração das

áginas, por exemplo, exerce uma função sofisticada de paratexto: não se numeram as

páginas desenhadas, r

pequena, que ainda não

como numeração das p

interpretação –, a num de páginas não indica muita coisa; basta que as folhas

alidades, mundos no papel desenhados. Faz com que a criança tenha

m entendimento mais rápido das informações explícitas e implícitas no livro, pelo

ratura infantil dentro do conjunto

nalítico proposto por Olson, quando estuda as implicações conceituais e cognitivas da

p

espeitando a delimitação do lugar da ação. Para uma criança

se apropriou formalmente dos conhecimentos escolares básicos –

áginas dos livros didáticos, numeração das linhas de um texto de

eração

estejam grampeadas na ordem da leitura desejada. A proposta dos editores deixa clara a

intenção da obra: “uma seqüência de ilustrações completas em si mesmas, que visa a

desenvolver na criança de qualquer idade a observação e a capacidade de aprender o

sentido da imagem”. A capa é a ilustração do título, mas não da história, esta mais

polissêmica. De qualquer forma, deve ser assim que uma criança não alfabetizada acede à

informação contida no título.

A delicadeza e a suavidade do desenho fazem parte de algumas das estratégias de

orientação de leitura, reforçando a afirmação de Umberto Eco sobre a construção do leitor-

modelo158. É uma realização com técnica de lápis de cor, que se aproxima do modo como

as crianças criam re

u

reconhecimento do modo de fazer, o como fazer.

Pode-se dizer que a história é a procura de uma moldura, no sentido da busca de uma

inscrição, de formas de demarcação. O quadro final, frisado e emoldurado por uma grande

margem branca como um passe-partout, diminui o espaço da ação e aumenta o espaço em

volta, dando nitidez e forma à tela que deverá assegurar a presença do ratinho no ambiente

por ele almejado, definitivamente um quadro, destacando e significando o que ele gostaria

de ser: um ratinho que rói uma espiga de trigo no trigal, um dos cenários da história que só

ele vislumbra. Retomando um viés da análise sobre descrição e representação, é possível

pensar um aspecto da produção desse livro de lite

a

leitura e da escrita. Analisando a representação do mundo pelas imagens, Olson (1997, p.

158 Ver nota na análise da p.2 do livro O jantar fantasma.

Page 265: Capítulo V: Análise do material

265

216) lembra o comentário de Alpers sobre a arte holandesa do séc. XVII, que trocou a

profundidade narrativa pela descrição superficial:

Os quadros eram construídos não como uma mnemônica para temas clássicos lembrados, mas como uma representação de coisas visíveis no mundo. O que não significa que as decisões estéticas não revelem algo sobre os artistas... mas que sua intenção era retratar factual e literalmente eventos concretos.

Esse dado facilita o entendimento da proposta descritiva dos quadros holandeses dessa

época, cuja tradição permitirá sedimentar nuances conceituais, como a idéia de

representação pictural como reprodução fiel da verdade, baseada nos olhos bem abertos

para os fatos da natureza. No caso desse livro, o recorte descritivo do ratinho no trigal é

uma proposta de inserção num mundo de representações, cuja verdade garante uma relação

de confiança com os leitores. Olson (1997, p.226) lembra ainda que os estudos científicos

do séc. XVII permitiram utilizar informações sobre a posição dos sujeitos nas navegações,

substituindo o quadrante pelo relógio mecânico, o que dá chance de se trabalhar com a

longitude, além da latitude. Isso permitiu integrar informações em uma única representação

do mundo: A localização de uma pessoa deixava de ser o “aqui” dêitico e passava a ser

um ponto no mapa.

No caso do livro em análise, o ratinho na moldura é carregado de significações e abre um

se tornar uma história e ser contada.

De fácil leitura, a histó

jogo equilibrado de si

começa com uma folha em

ais forte presença no campo visual. O mesmo acontece com as duas

campo de simbolizações propostas pelo artista. Nesse momento, o ratinho se torna,

graficamente, uma história contada, ele se torna uma 3ª pessoa. Até o final do livro, é como

se nós estivéssemos surpreendendo, no momento presente da ação, o personagem que, ao ir

tecendo o seu enredo, tenta sair do espaço branco em que se encontra. Ele é a primeira

pessoa da história. No entanto, sua busca por um outro espaço que, por enquanto, só ele

vislumbra dentro do livro faz com que se esforce para realizar a viagem: quando consegue,

é emoldurado. É possível, então, ser explicitada a relação que a leitura propõe: observado

por outra pessoa, como um quadro a ser visto, lido e compreendido. É a moldura que

permite a ele

ria vai se desenrolando nas duas páginas, direita e esquerda, num

gnificações, em página dupla: sem margem no papel, a história

branco, à esquerda; a apresentação do ratinho se dá na página

da direita, a de m

Page 266: Capítulo V: Análise do material

266

páginas seguintes: à esq

folha à direita, como qu

por isso, interrompe o f

inverte: ele se dirige pa

nquanto isso, a página ilegiado de leituras de informações, o espera,

m branco, para reiniciar a ação. Sua volta para a página da direita significa a retomada do

u plano em ação e rói a página. Mas nós só nos

ertificamos de sua finalidade quando, em seguida, tendo roído uma boa parte das margens

a chaminé da casa; mais adiante,

utras nuvens e pouca fumaça na chaminé; em seguida, muitas nuvens e chuva, o arco-íris.

Foi o tempo necessário para que o ratinho fizesse seu aviãozinho e voasse para dentro da

página da direita, penetrando no mundo desejado. Ali, sim, ele realiza sua condição: um

personagem em busca de sua história. E vai roer o trigo.

Essa história foi contada considerando a forte presença dos elementos visuais: cada

imagem valendo por si, como um quadro que se completa em cada página, mas deixa

margem a uma expectativa do leitor mirim, em cada dupla página, sobre o que poderá vir a

seguir; por outro lado, as imagens se acrescentam a cada página, enfatizando elementos,

como o tempo da narrativa, a narrativa em contraponto, com tempo e espaços que se

ressignificam. Essa diversidade de recursos permite a participação ativa e autônoma da

a necessária presenç litando uma leitura de mundo em

ue as imagen elhor imaginar. Como diz o r-artista Rui de

liveira159:

uerda, página em branco; o ratinho, na história, empurra o limite da

e uma parede a transpor. Sem conseguir, ele não sabe o que fazer e,

luxo da narrativa; na página seguinte, a posição do animalzinho se

ra a folha da esquerda, como que para refletir e decidir o que fazer.

da direita, lugar privE

e

fluxo narrativo: começa a pôr se

c

da página, ele consegue entreabri-la para nos dar a ver sua verdadeira intenção: ir ao

mundo. Mas que mundo? O da história, o das imagens no papel... Desse modo, a história

dentro da história começa a ser construída pelo animalzinho, o que é o mesmo que dizer a

história do ratinho em busca de sua história. Continua nas páginas duplas seguintes,

sempre da mesma forma: o trabalho dele à esquerda, construindo um móvel para sair do

branco do livro, e a paisagem à direita, que vai indicando o fluir do tempo, pelas

informações climáticas: algumas nuvens e a fumaça d

o

criança, sem a de um adulto, possibi

q s façam-na m ilustrado

O

Sou muito otimista quanto ao futuro da imagem narrativa. Não existem mais nas grandes cidades os contadores de histórias ao redor das fogueiras. Nós, ilustradores, somos os novos "griôs", a narração visual é um elemento civilizatório. Todas as grandes civilizações surgiram de

159 Ver site do autor

Page 267: Capítulo V: Análise do material

267

grandes narrações. A Bíblia, o Gilgamesh, o Mahabharata, Ilíada e Odisséia, até mesmo livros fundamentais para a cultura ocidental como Decameron, Contos de Cantuária, Os Luzíadas, A Divina Comédia, todas estas histórias sedimentaram povos e nações. Portanto, sem exagero, eu vejo a imagem narrativa como um elo, uma trilha entre o abstrato e o concreto. As nossas ilustrações são esfinges que cada leitor decifra à sua maneira.

5.5.3.2 O aspecto da verticalização Cíclico, de José Roberto de Carvalho, é um livro de imagens, inteiramente desenhado, que

conta a história do ciclo da chuva. Para isso, um personagem nordestino suporta o sol

causticante da caatinga. De repente, ele vê um lápis e, com ele, vem a idéia de desenhar

água para refrescar o ambiente. Começa, aí, o ciclo da chuva. O enredo avança mediante o

pensamento do personagem através de balões e a resposta no rosto do sol, como um

diálogo que se estabelece na página dupla verticalizada. As cores vão sendo alteradas de

acordo com a entrada da água até a página dupla final.

A proposta de paginação em folha dupla como unidade de leitura e a leitura verticalizada

transformam o livro tradicional em um objeto renovado e iluminam as finalidades do

projeto editorial, que se estendem tanto na capa quanto na quarta-capa, já apresentando

para o leitor a posição de leitura desejada: feito páginas viradas como um bloco de

Figura 150 Cíclico, página dupla

Figura 151 Cíclico, página dupla

Page 268: Capítulo V: Análise do material

268

desenho, obrigando o leitor a reposicionar mão, corpo e olho para realizar a leitura. O

projeto do livro explicita e acompanha o significado da história: o embate do homem

sertanejo com o calor do Nordeste. Por isso, a posição dos elementos – de cima para baixo

– semantiza a leitura, verticalizando-a: dois personagens, duas folhas – inferior e superior –

o sol e o homem do Nordeste. E o diálogo entre eles é conduzido pelas ações e reações de

um e de outro, em eventos constantes de transformação da natureza. O paratexto é uma

espécie de orelha dobrada, quase como uma nova folha, onde nada se explica, apenas se

sugere uma brincadeira com o tema do livro.

ar soluções. Esse conjunto de dados, o ciclo da chuva e os

btemas agregados a esse tema principal, torna-se relevante para a leitura da criança ou do

jovem, constituindo-se uma rica fonte para a formação humana. Os desenhos são

contemporâneos, com múltiplas técnicas de lápis e caneta, coloridos e preto e branco,

variando a cor e a tonalidade de acordo com o momento do enredo. Por exemplo, quando a

água entra na história, o azul começa a tomar conta da página, transformando-se em

marrom, para o relâmpago de um dia chuvoso. Como o personagem homem está em preto

e branco, é a natureza que se apresenta em cores. Essa distinção ajuda a mostrar suas

transformações, seu ciclo de vida, através de um ciclo de cores, um arco-íris. Por isso, o

que diz respeito ao fazer humano, isto é, o barco de papel, é branco. A única palavra do

texto é uma onomatopéia, tomando um bom espaço da página. Dessa forma, não se vêem

formas simplificadoras ou mesmo redutoras que impeçam uma representação mais

elaborada do conhecimento humano sobre os fatos da natureza. Lido com um bloco

vertical, oferece ao leitor um outro olhar, desfazendo o modelo canônico de leitura, da

direita para a esquerda, de cima para baixo. Nessa proposta, é de cima para baixo e com

atenção à forma plástica, o que impede a linearidade da forma lingüística. Por isso, a

proposta de leitura convida o leitor a tornar-se criativo nos nós da enunciação e nos vãos da

composição, pois são muitos os elementos visuais que deslancham a trama narrativa. A

linguagem imagética traduz-se plena de efeitos vindos da intensidade de cores (por

exemplo, o amarelo do sol), do traço aparentemente rabiscado que delineia o nordestino, da

A predominância da sua natureza gráfica, a partir dos recursos das formas, cores e traços,

dará condições para que a história seja contada. Bem certo que não somente a história é

contada, mas uma série de subtemas pode ser retirada, colaborando com outros níveis de

leitura. Por exemplo, a resistência do homem quando se defronta com situações

antagônicas; a perseverança do nordestino frente ao sol e ao calor; a imaginação como

forma de superar problemas e cri

su

Page 269: Capítulo V: Análise do material

269

mescla entre o guache e riscos no guache (como o céu do sol e o chão marcado pela seca)

t essa forma, esse texto visual é de fácil leitura e se aproxima da realidade das crianças

e hoje, ampliando suas percepções de mundo. O apuro no trato dessa linguagem

ica com as questões estéticas que definem o discurso sobre a

argem, as cores fortes, o traço livre e uma aparente

e c. D

e jovens d

permite uma aproximação r

questão ambiental. A falta de m

sensação de desenho sobre rascunho fazem as imagens realizarem uma proposta mais que

realista, isto é, serem reais. A intenção estética, assim, está presente e orienta a

concretização do conteúdo.

É um livro que pode ser lido por qualquer idade, embora o objetivo do autor tenha sido

claramente o de apresentar uma temática que vai ao encontro de uma faixa etária mais

baixa, própria do primeiro segmento do ensino fundamental. Assim, tem-se uma leitura

com diferentes entradas, seja pelo assunto, pela composição das formas, ou, mesmo, pelas

cores. Aproxima-se de muitas obras, como Vizinho, vizinha, pela importância do projeto

gráfico na orientação de leitura.

Page 270: Capítulo V: Análise do material

270

○ 6 ○ Considerações Finais

Acredito que, ao término deste estudo, seja possível destacar alguns aspectos que indicam

a relevância da pesquisa. Em primeiro lugar, as reflexões apresentadas possibilitam abrir

espaços para trabalhos voltados para muitas e possíveis leituras das crianças. Além disso, a

importância em observar a escrita como imagem – que se desdobra em fragmentos e se

reconstitui em discurso – e a imagem como escrita – que desenha o espaço e se constitui

nas superfícies carregadas de sentidos – redimensiona o olhar de quem deseja superar os

ites teóricos que organizam os conhecimentos tanto em relação à escrita quanto em

não me restringir a uma explicação lingüística de expressões plásticas. A seu

s a respeito de métodos de alfabetização

lim

relação à imagem. O visível e o legível, hoje, são apropriados pluralmente, com as

condições que a contemporaneidade permite, e a escola pode renovar, com esses

elementos, os sentidos da alfabetização.

Penso também que alguns delineamentos que determinei como condutores da pesquisa se

confirmaram, outros, não. Inicialmente, organizei um estudo comparativo entre cartilhas de

alfabetização e livros de literatura infantil para levantar semelhanças e singularidades de

usos nos dois suportes e gêneros. Todavia, percebi imediatamente que essa proposta

empobreceria a dimensão de um olhar mais dinâmico sobre as relações entre imagem e

texto, demarcado antecipadamente por questões específicas aos ambientes de uso. Por

exemplo, o desejo de não tratar especificamente dos processos de aquisição da escrita

permitiu-me

turno, evitar a sobrecarga de consideraçõe

possibilitou-me definir um caminho para dialogar com expressões artísticas no mesmo

gênero e suporte em que se alfabetiza, de forma a cumprir um trajeto de pesquisa

descolado de injunções históricas determinantes, de certa forma, da aplicação de métodos

que pudessem desviar o interesse maior da pesquisa. O uso de cartilhas francesas também

não só não impediram a observação, como enriqueceram o material de investigação, uma

vez que o diálogo com a produção estrangeira amplia os horizontes do estudo.

Page 271: Capítulo V: Análise do material

271

Meu interesse nessa pesquisa foi evidenciar um novo olhar sobre as relações entre a

imagem e o texto verbal que se apresentam em dois impressos para crianças em período

escolar: o livro didático e o livro de literatura infantil. Compreendi imediatamente a

importância de situar a natureza específica de cada um desses livros para ver, só a partir

daí, as possibilidades de experimentação de linguagens que há dentro de cada um. Ou,

melhor, que tratamento é dado às relações entre texto e imagens, sabendo que: 1- suas

naturezas específicas são um dos determinantes das propostas de tratamento; 2- os livros

didáticos não precisam ser, obrigatoriamente, instâncias simplificadoras, uma vez que o

pendor didático tende a supra-organizar os conteúdos; há casos em que, mesmo mantendo

seu papel utilitário e prático de organização de conhecimentos, os projetos pedagógicos

brem espaços para atividades enriquecedoras com texto e imagem. a

Um outro aspecto que desejo enfatizar nessas considerações é a possibilidade de

construção de relações mais imbricadas entre a plasticidade e a discursividade, a exemplo

do conceito de paradoxo apresentado no interior da pesquisa, não só em obras de arte –

como a reprodução da obra do artista Francis Picabia para a capa desta tese – mas também

em materiais escolares que desejam focalizar e enfatizar o domínio dos processos de leitura

e escrita. Tanto em livros de alfabetização de corte puramente lingüístico, como em livros

de literatura infantil com forte experimentação estética, a palavra e a imagem se mantêm

vivas, quando o tratamento dado a elas entende a dinâmica de que fazem parte: seja pela

sua condição linguageira e plástica, seja pela sua sobreposição. Dessa forma, acredito

poder afirmar que o trabalho de formação do aluno e de formação profissional dos

professores deve passar por um sentido mais amplo em que o tratamento estético seja o elo

formador.

No capítulo 1, situei a pesquisa no intuito de melhor dirigir os objetivos da tese. Por isso

mesmo, senti necessidade, no capítulo 2, de que a interrogação a que me propus investigar

fosse contextualizada, explicitando o traçado teórico de alguns campos. Por um lado,

utilizei a perspectiva da História da Educação para relativizar certos conceitos, como o de

aprendizagem, e me propus a refletir sobre o fenômeno do letramento, exaustivamente

discutido até os dias de hoje, mas ainda não totalmente compreendido, para que pudesse

iluminar as preferências metodológicas de um ou outro projeto pedagógico, relativizando

as condições de escolarização de ambas, a linguagem escrita e as imagens.

Page 272: Capítulo V: Análise do material

272

A exploração das cartilhas permitiu definir dois grandes eixos de configuração das imagens

anto a exploração das cartilhas quanto a análise dos livros de literatura infantil

uagem como uma porta que

abre para a interação interlocutiva verdadeira e criativa. O lúdico, neste caso, assume

e, hoje, tomam variadas direções. No momento, a definição de linguagem,

do ponto de vista bakhtiniano, e a dupla natureza da escrita – verbal e gráfica –, defendida

por Anne-Marie Christin, formam a base de sustentação a partir da qual traço meu percurso

investigativo. Com esse aporte, pude aproximar o texto verbal e as imagens, sem

necessidade de circunscrever a temática a outros parâmetros que não fossem o do visível e

o do legível.

e a aprendizagem do sistema de escrita: a imagem e sua relação com o sistema fonológico

e a imagem e sua relação com o sistema semântico-discursivo. Acredito ter sido bastante

valiosa essa divisão inicial, para que eu pudesse explicitar diferentes processos por que

passam as imagens. Historicamente apensadas à relação grafema–fonema, ou ao caráter

lúdico que conquista a criança para o estudo, a presença das imagens em alguns métodos

descortina uma forte relação com a dimensão discursiva. Essa confirmação projeta uma

necessidade de pesquisas futuras mais atentas a trabalhos que fortaleçam o sistema de

escrita sem se limitar à necessária relação significante/significado, constituinte do signo

verbal.

T

permitiram compreender algumas noções que perpassam o trabalho pedagógico e que

muitas vezes se indeterminam: seja porque são aspectos que se superpõem naturalmente

nas atividades, seja porque não são claramente delimitados, ou mesmo porque não são bem

compreendidos em suas especificidades. São eles o lúdico, o educativo e o estético.

Algumas vezes, as cartilhas de alfabetização tratam o lúdico como um aspecto suficiente

para dar prazer às crianças e, com isso, facilitar a aprendizagem infantil, esquecendo-se de

que a exploração estética propicia também prazer e formação dos sujeitos. Por outro lado,

muitos livros de literatura infantil oscilam no âmbito da dimensão do educativo, indo de

textos de formação moral e psicológica, de auxiliares nos processos de aquisição dos

sistemas de escrita, aos que percebem o sentido do jogo de ling

se

uma posição de jogo de orientação social, e o estético, uma dimensão ética.

Tanto o capítulo 3 quanto o 4 indicaram o solo em que assentei as bases teóricas: na teoria

literária e nas artes plásticas, deixando para futuros aprofundamentos questões de ordem

semiótica (já indicadas por Bakhtin em seus escritos de 1929 – Marxismo e filosofia da

linguagem) qu

Page 273: Capítulo V: Análise do material

273

O material analisado no capítulo 5 determinou grande parte das conclusões a que chego.

em para também abstrair (conceituar), e que a palavra possa ter a

ros de literatura infantil. Obtive algum sucesso e muitas

colares e nos que são apropriados pela escola, a dinâmica da

mentos da cultura.

istórico, se coloca como um horizonte para futuros estudos é que a escola, ao constituir

rocessos de conservação e fixidez que constituíram a aprendizagem da escrita, esvaziando

correm, levando-as a perder a vivacidade de seu traço criador. Reafirma-se, todavia, que

ova mentalidade, que amplia a mentalidade letrada e dela se apropria, para novas relações

ontemporâneas que lhe são propostas pelos estudos culturais.

ica ainda a necessidade futura de pensar outros espaços para essa reflexão que não só o

ultiplicidade de interações entre imagem e texto no ambiente escolar. A dimensão

onvivência, talvez mais enriquecedoras, talvez mais livres, a depender da concepção de

Tive a chance de pensar uma outra lógica, mista, de relação imagem e texto, para que a

palavra deixe livre a imag

liberdade de tornar-se análoga. Fui em busca da concretização dessa aposta nos livros

analisados – cartilhas e liv

decepções, posto que a época em que vivemos ainda terá tempo para traduzir maciçamente,

em materiais que são es

cultura explicitada em suas diferentes linguagens em materiais de leituras escolares. De

qualquer forma, é aberto um jogo com a escola cuja dinâmica permite pensar em projetos

lfabetizadores mais integrados aos movia

A interrogação que persiste e que, pela impossibilidade de resposta nesse momento

h

um ideário sobre a imagem para viabilizar sua prática de sala de aula, poderá repetir os

p

a flexibilidade de tipos, de freqüência, de modos de utilização com que as imagens

o

as implicações acerca da aprendizagem da escrita devem reconhecer o surgimento de uma

n

apoiadas na visualidade e na oralidade, integrando-se ao fórum de discussões

c

F

dos manuais didáticos e o dos livros de literatura infantil, para compreender a

m

estética mostra bem que as relações entre imagem e texto podem solicitar outras formas de

c

cada projeto.

Page 274: Capítulo V: Análise do material

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