20
201 CAPÍTULO X A LEI “MARIA DA PENHA ” – Nº 11.340/06 Sumário • 1. Introdução: 1.1. Objetivos gerais; 1.2. Constitucionalidade da Lei “Maria da Penha” – 2. Co- mentários à Lei nº 11.340/06 – artigo por artigo: 2.1. Disposições Preliminares; 2.2. Conceito de violência doméstica e familiar; 2.3. Formas de violência doméstica e familiar; 2.4. Competência para processar e julgar a violência doméstica e familiar; 2.5. Sujeitos: 2.5.1. Ativo: 2.5.2. Passivo; 2.6. Medidas integradas de prevenção; 2.7. Assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar; 2.8. Atendimento pela autoridade policial; 2.9. Ação penal; 2.10. Procedimentos; 2.11. Medidas protetivas de urgência; 2.12. Possibilidade da prisão; 2.13. Atuação do Ministério Público; 2.14. As atribuições cíveis; 2.15. As atribui- ções penais; 2.16. O Ministério Público deve ser ouvido; 2.17. O Ministério Público deve ser comunicado; 2.18. Assistência judiciária; 2.19. Equipe de atendimento multidisciplinar; 2.20. Disposições transitórias. 1. INTRODUÇÃO Um antecedente legislativo à Lei nº 11.340/06 ocorreu em 2002, após a pu- blicação da Lei nº 10.455, que acrescentou ao parágrafo único do art. 69 da Lei nº 9.099/95, a previsão de uma medida cautelar, de natureza penal, consistente no afastamento do agressor do lar conjugal na hipótese de violência doméstica, a ser decretada pelo Juiz competente para o caso. Outro antecedente ocorreu, como dissemos anteriormente, com a Lei nº 10.886/04, que emprestou roupagem típica própria ao delito de violência doméstica, no art 129, § 9º e 10, do CP – le- são corporal. Em abril de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, órgão responsável pelo recebimento de denúncias de violação aos di- reitos previstos no Pacto de São José da Costa Rica e na Convenção de Belém do Pará, atendendo denúncia do Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e do Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), publicou o Relatório nº 54, o qual estabeleceu recomendações ao Brasil no caso Maria da Penha Maia Fernandes 1 por flagrante violação dos direitos humanos. A Comissão concluiu que o Estado Brasileiro não cumpriu o previsto no artigo 7º da Convenção de Belém do Pará e nos artigos 1º, 8º e 25 do Pacto de 1. O nome dado à Lei nº 11.340/06, “Maria da Penha”, é uma justa homenagem à biofarmacêutica, mili- tante dos direitos das mulheres que, por duas vezes, foi vítima de tentativa de homicídio pelo marido. Por causa disso, ela ficou paraplégica, mas o agressor só foi punido 19 anos e 6 meses depois, assim mesmo com uma pena de apenas 2 anos de reclusão.

Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

201

Capítulo Xa lei “maria da penha” – nº 11.340/06

Sumário • 1. Introdução: 1.1. Objetivos gerais; 1.2. Constitucionalidade da Lei “Maria da Penha” – 2. Co-mentários à Lei nº 11.340/06 – artigo por artigo: 2.1. Disposições Preliminares; 2.2. Conceito de violência doméstica e familiar; 2.3. Formas de violência doméstica e familiar; 2.4. Competência para processar e julgar a violência doméstica e familiar; 2.5. Sujeitos: 2.5.1. Ativo: 2.5.2. Passivo; 2.6. Medidas integradas de prevenção; 2.7. Assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar; 2.8. Atendimento pela autoridade policial; 2.9. Ação penal; 2.10. Procedimentos; 2.11. Medidas protetivas de urgência; 2.12. Possibilidade da prisão; 2.13. Atuação do Ministério Público; 2.14. As atribuições cíveis; 2.15. As atribui-ções penais; 2.16. O Ministério Público deve ser ouvido; 2.17. O Ministério Público deve ser comunicado; 2.18. Assistência judiciária; 2.19. Equipe de atendimento multidisciplinar; 2.20. Disposições transitórias.

1. INTRODUÇÃO

Um antecedente legislativo à Lei nº 11.340/06 ocorreu em 2002, após a pu-blicação da Lei nº 10.455, que acrescentou ao parágrafo único do art. 69 da Lei nº 9.099/95, a previsão de uma medida cautelar, de natureza penal, consistente no afastamento do agressor do lar conjugal na hipótese de violência doméstica, a ser decretada pelo Juiz competente para o caso. Outro antecedente ocorreu, como dissemos anteriormente, com a Lei nº 10.886/04, que emprestou roupagem típica própria ao delito de violência doméstica, no art 129, § 9º e 10, do CP – le-são corporal.

Em abril de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, órgão responsável pelo recebimento de denúncias de violação aos di-reitos previstos no Pacto de São José da Costa Rica e na Convenção de Belém do Pará, atendendo denúncia do Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e do Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), publicou o Relatório nº 54, o qual estabeleceu recomendações ao Brasil no caso Maria da Penha Maia Fernandes1 por flagrante violação dos direitos humanos.

A Comissão concluiu que o Estado Brasileiro não cumpriu o previsto no artigo 7º da Convenção de Belém do Pará e nos artigos 1º, 8º e 25 do Pacto de

1. O nome dado à Lei nº 11.340/06, “Maria da Penha”, é uma justa homenagem à biofarmacêutica, mili-tante dos direitos das mulheres que, por duas vezes, foi vítima de tentativa de homicídio pelo marido. Por causa disso, ela ficou paraplégica, mas o agressor só foi punido 19 anos e 6 meses depois, assim mesmo com uma pena de apenas 2 anos de reclusão.

Page 2: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

202

Stela Valéria SoareS de FariaS CaValCanti

São José da Costa Rica pelo fato de que havia se passado mais de 19 anos sem que o autor do crime de tentativa de homicídio de Maria da Penha fosse levado a julgamento. Recomendou o prosseguimento e intensificação do processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respei-to à violência doméstica contra a mulher no Brasil e, em especial recomendou “simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias do devido processo” e “o estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gra-vidade e às conseqüências penais que gera”.

A partir daí as organizações não-governamentais brasileiras e estrangei-ras com sede no Brasil iniciaram discussões entre si e com representantes da Secretaria Especial de Políticas para as mulheres, com finalidade de elaborar o texto da proposta de lei que incluísse políticas públicas de gênero, medidas de proteção às mulheres vítimas e punição mais rigorosa para os agressores. Muito embora a iniciativa legislativa tenha sido do próprio Poder Executivo, que apresentou o PL nº 4.559 no final de 2004, ele foi fruto de anos de discus-sões entre o Governo brasileiro, a comunidade internacional, de organizações governamentais e também do apelo de milhares de mulheres brasileiras vítimas de discriminação de gênero, agressões físicas, psicológicas e sexuais no seio familiar. Assim o projeto de lei foi concebido e encaminhado ao Congresso Nacional, encontrando ambiente favorável para tramitar e ser aprovado pri-meiramente na Câmara e, no dia 4 de julho de 2006, no Senado Federal (PLC 37/06), criando mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil – VDFM.

Satisfazendo às expectativas das entidades de defesa dos Direitos das Mu-lheres e em cumprimento ao preceito do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres e da Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, a Lei “Maria da Penha”, nº 11.340/06, foi finalmente sancionada. A nova lei vem atender ao clamor contra a sensação de impunidade despertada em muitos pela aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais aos casos de violência doméstica e familiar praticada, especialmente, contra a mulher.

1.1. Objetivos gerais

A Lei nº 11.340/06 apesar de não ser perfeita, apresenta uma estrutura ade-quada e específica para atender a complexidade do fenômeno da violência do-

Page 3: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

203

CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06

méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência às vítimas, po-líticas públicas e punição mais rigorosa para os agressores. É uma lei que tem mais o cunho educacional e de promoção de políticas públicas de assistência às vítimas do que a intenção de punir mais severamente os agressores dos delitos domésticos, pois prevê em vários dispositivos medidas de proteção à mulher em situação de violência doméstica e familiar, possibilitando uma assistência mais eficiente e a salvaguarda dos direitos humanos das vítimas.

Consagra um novo microssistema jurídico de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Embora se trate de diploma legal recente, muito já foi feito por sua plena efetivação. Pesquisa Ibope/Themis (Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero) revelou que 68% da população brasileira conhe-ce a lei, dos quais 82% reconhecem sua eficácia no enfrentamento à violência doméstica e familiar. A consulta foi realizada entre 17 e 21 de julho, com 2.002 entrevistados em 142 municípios brasileiros.2

Publicada no Diário Oficial da União, de 8 de agosto de 2006, a nova lei passou a vigorar no dia 22 de setembro de 2006, 45 dias após a sua publicação, conforme estabelece o art. 46, excluído o dia da publicação oficial da lei e incluí-do o dia final, atendida a regra geral contida no art. 132, caput, do Código Civil de 2002 e no art. 1º, caput, da LICC de 1916.

Não há dúvida de que o texto aprovado constitui um avanço para a sociedade brasileira, representando um marco indelével na história da proteção legal con-ferida às mulheres. Entretanto, não deixa de conter alguns aspectos que podem gerar dúvidas na aplicação e, até mesmo, opções que revelam uma formulação legal afastada da melhor técnica e das mais recentes orientações criminológicas e de política criminal, daí a necessidade de analisá-la na melhor perspectiva para as vítimas, bem como discutir a melhor maneira de implementar todos os seus preceitos.

A fim de colaborar com o processo de implementação da nova Lei, o Minis-tério da Justiça, por meio do Pronasci (Programa Nacional de Segurança Públi-ca com Cidadania), instituiu a ação de efetivação da Lei Maria da Penha, que prevê, entre outras medidas, o apoio financeiro e institucional aos Tribunais de Justiça dos Estados para criação de Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher. Essa ação, encampada pela Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, em parceria com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e o Conselho Nacional

2. Disponível em: <http://1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u430760>. Acesso em: 17 ago. 2008.

Page 4: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

204

Stela Valéria SoareS de FariaS CaValCanti

de Justiça, possibilitou, no primeiro semestre de 2008, significativo aumento do número dos Juizados de combate à violência doméstica e familiar no Brasil. Até março de 2008 havia 18 Juizados e ao final do 1º Semestre esse número pratica-mente dobrou, atingindo 35 juizados.3

1.2. Constitucionalidade da Lei “Maria da Penha”

Muito se tem discutido acerca de eventual inconstitucionalidade da Lei “MARIA DA PENHA”, em razão de ter como foco apenas a mulher vítima da violência doméstica, o que estaria criando um privilégio e estabelecendo uma desigualdade injustificada. Estes são, apertada síntese, os argumentos utilizados pelos defensores da sua inconstitucionalidade:

(a) feriria o princípio da isonomia entre os sexos, estabelecido no art. 5º, I, da CF. Neste ponto é oportuno destacar que a lei “Maria da Penha” atribui à mulher um tratamento diferenciado, promovendo sua proteção de forma especial em cumprimento às diretrizes constitucionais e aos tratados internacionais ratificadas pelo Brasil, tendo em vista que, como dissemos, a mulher é a grande vítima da violência doméstica, sendo as estatísticas com relação ao sexo masculino tão pequenas que não che-gam a ser computadas.

A Lei nº 11.340/06, a fim de dirimir qualquer dúvida quando a sua consti-tucionalidade estabeleceu logo no Título I, das disposições preliminares, o se-guinte, in verbis:

Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência domés-tica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violên-cia Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Como vemos, a própria lei reconhece que o Estado brasileiro tem obrigação assumida quando da ratificação dos tratados internacionais citados, de promo-ver o amparo das mulheres vítimas da violência doméstica e criar mecanismos eficientes para viabilizar sua ampla proteção. Como dissemos anteriormente, no capítulo em que tratamos da discriminação positiva, as iniciativas de ações

3. Disponível em: <http://1.folha.uol.com.br>. Acesso em: 17 ago. 2008.

Page 5: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

205

CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06

afirmativas, que esta nova Lei é um exemplo, visam a corrigir a defasagem entre o ideal igualitário predominante e/ou legitimado nas sociedades democráticas modernas e um sistema de relações sociais marcado pela desigualdade e hierar-quia. Tal fórmula tem abrigo em diversos dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro precisamente por constituir um corolário ao princípio da igualdade, constante no art. 5º I, da CF. Nesse contexto, a proteção das mulheres vítimas da violência doméstica é plenamente justificável em razão da constatação empírica da sua grande ocorrência e dos graves problemas sociais que dela decorrem. Logo, não há que se falar em inconstitucionalidade desta lei, pois não fere o princípio da isonomia entre os sexos, muito pelo contrário, aplica a igualdade não apenas formal, mas material entre os gêneros.

Estabelece a melhor doutrina que a correta interpretação desse dispositivo torna inaceitável a utilização do discrímen sexo, sempre que o mesmo seja eleito com o propósito de desnivelar materialmente o homem e a mulher; aceitando--o, porém, quando a finalidade pretendida for atenuar as desigualdades, como ocorre na ampla maioria dos casos de violência doméstica, em que é flagrante a situação de vulnerabilidade da mulher vítima em relação ao agressor. Com isso não queremos dizer que todas as mulheres brasileiras estão em situação de hi-possuficiência em relação aos homens, mas apenas aquelas vítimas da violência doméstica. Conseqüentemente, além de tratamentos diferenciados entre homens e mulheres previstos pela própria constituição (art. 7º, XVIII e XIX; 40, §1º, 143, §§ 1º e 2º; 201, §7º), poderá a legislação infraconstitucional pretender atenuar os desníveis de tratamento em razão do sexo4.

(b) por suposta ofensa ao art. 98, I, da CF que prevê a criação dos juiza-dos especiais criminais, já que a Lei nº 11.340/06 vedou sua aplicação à violência doméstica. A fragilidade dessa argumentação se percebe da singela leitura do art. 98, I, da Constituição, que reza:

A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:

I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimento oral e sumaríssimo, permitidos, na hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.

4. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 69. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. Estudos de Direito Constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 10. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 220.

Page 6: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

206

Stela Valéria SoareS de FariaS CaValCanti

Esta breve leitura já basta para demonstrar que cabe à lei infraconstitucional estabelecer quais as infrações penais sujeitas à transação e aos demais institutos despenalizantes da Lei nº 9.099/95. Aliás, é a própria lei infraconstitucional que define quais as infrações penais de menor potencial ofensivo e, portanto, da alçada do Juizado Especial Criminal: art. 61, da Lei nº 9.099/95, com redação dada pela Lei nº 11.313/065.

Verifica-se, pois, uma relação de regra e exceção: são infrações penais de menor potencial ofensivo e, portanto, da competência dos Juizados Especiais Criminais sujeitas, assim, aos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, todas as infrações penais cuja pena máxima cominada não exceda a 2 (dois) anos, ex-ceto aquelas que, independentemente da pena cominada, decorram de violência doméstica ou familiar contra a mulher, nos termos dos arts. 41, c/c art. 5º e 7º da Lei nº 11.340/06.

No dia 09.02.2012, o Supremo Tribunal Federal julgou conjuntamente as Ações Declaratória de Constitucionalidade no 19 e Direta de Inconstitucionali-dade no 4424, ocasião que reconheceu, por maioria, a constitucionalidade da Lei Maria da Penha que afastou a aplicação da Lei 9.099/95 para os casos de violên-cia doméstica, e conferiu interpretação conforme à Constituição para atribuir a natureza de ação penal pública incondicionada para os crimes de lesão corporal leve e culposa.

Importante ressaltar que, desde a primeira edição desta obra, já defendía-mos estas teses que saíram vencedoras com as decisões do STF, para júbilo do movimento de mulheres do Brasil e todos que atuam no combate à violência doméstica no país.

Depois destas decisões, a lesão corporal em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher deve ser processada pelo Ministério Público, mesmo sem representação da vítima. E que não pode ser julgada por juizado especial, como se fosse de “menor potencialidade ofensiva”, mesmo em caso de lesão corporal leve.

O Supremo Tribunal Federal confirmou a validade constitucional da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), em seu todo, com base no voto do relator, ministro Marco Aurélio, para o qual a lei não ofende o princípio da isonomia ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher,

5. Art. 61. Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contra-venções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.

Page 7: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

207

CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06

que é “eminentemente vulnerável quando se trata de constrangimentos físicos, morais e psicológicos sofridos em âmbito privado”.

Os ministros consideraram que todos os artigos da lei – que vinha tendo interpretações divergentes nas primeira e segunda instâncias – estão de acordo com o princípio fundamental de respeito à dignidade humana, sendo instrumen-to de mitigação de uma realidade de discriminação social e cultural.

2. COMENTÁRIOS À LEI Nº 11.340/06 – ARTIGO POR ARTIGO

2.1. Disposições preliminaresLEI Nº 11.340 de 07.08.2006 – DOU 08.08.2006

Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mu-lher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

TÍTULO I DISPOSIÇÕES PRELIMINARES

Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência domés-tica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violên-cia Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportu-nidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Art. 3º Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efeti-vo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultu-ra, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

§ 1º O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sen-

Page 8: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

208

Stela Valéria SoareS de FariaS CaValCanti

tido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 2º Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições ne-cessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.

Art. 4º Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Comentários:

Depois de realçar os objetivos da lei, o Título I apresenta as DISPOSI-ÇÕES PRELIMINARES. Cria mecanismos para coibir e prevenir a violên-cia doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacio-nais ratificados pela República Federativa do Brasil. Dispõe, ademais, sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, estabelecendo medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Inicialmente, podemos observar claramente a intenção do legislador ordiná-rio de construir um aparato legal voltado à proteção das MULHERES vítimas da violência doméstica e familiar, em face dos índices estatísticos alarmantes no concernente a esta forma de criminalidade na família, bem como por serem elas as maiores vítimas. Além de apresentarem resposta positiva às reivindicações dos movimentos de mulheres e do sistema internacional de proteção aos direitos humanos que clamavam pela elaboração de uma legislação específica sobre a violência doméstica e familiar no Brasil.

Importante ressaltar que não é correto pensar que apenas a mulher pode ser vítima da violência doméstica, já que da redação do art. 9º, do art. 129, do CP depreende-se que qualquer pessoa, seja homem ou mulher, pode ser vítima desta forma de criminalidade. O que a lei limita são as medidas de assistência e pro-teção, estas sim, aplicáveis apenas às mulheres vítimas da violência doméstica e familiar.Trata, portanto, dos direitos básicos e da implementação de políticas públicas destinadas a tornar efetivos esses direitos (arts. 1º a 3º), consagrando ainda interpretação similar à contida na Lei de Introdução ao Código Civil de 1916 (art. 4º – na interpretação desta lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar, o título II (da violência doméstica e familiar contra a mulher) se preocupa em prever e conceituar os contextos, for-

Page 9: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

209

CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06

mas e condutas que implicarão violência doméstica e familiar contra a mulher (arts. 5º e 7º)6

Vem reforçar, nos arts. 2º e 3º, o que já fora estabelecido pela Constituição Federal de 1988, em seus arts. 5º e 226, §5º, ou seja, o princípio da igualdade formal e material, além dos direitos fundamentais, reafirmando que “toda mu-lher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para vi-ver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao tra-balho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”.

Alguns autores criticam a lei nesse ponto, dizendo que ela foi redundante e obvia ao reafirmar todos estes direitos constitucionais, porém, acredito que a intenção dos legisladores foi apenas relembrar a todos e reforçar o que já está es-tampado na Constituição, tendo em vista que nos casos de violência doméstica e familiar os direitos fundamentais básicos das mulheres são violados diariamente pelos agressores7.

Neste caso, a obviedade tem motivação específica. Helena Omena Lopes de Faria e Mônica de Melo corroboram esta nossa afirmação:

[...] É inegável, historicamente, que a construção legal e conceitual dos direitos humanos se deu, inicialmente, com a exclusão da mulher. Embora os principais documentos internacionais de direitos humanos e praticamente to-das as Constituições da era moderna proclamem a igualdade de todos, essa igualdade, infelizmente, continua sendo compreendida em seu aspecto formal e estamos ainda longe de alcançar a igualdade real, substancial entre mulheres e homens [...]8.

6. NOGUEIRA, Fernando Célio de Brito. Notas e reflexões sobre a Lei nº 11.340/06, que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. JUS NAVIGANDI, Teresina, ano 10, n. 1146, 21 ago. 2006. Disponível em:<http//www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8821>. Acesso em: 25 ago. 2006.

7. NUCCI, Guilherme de Souza. Série Estudo, Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n. 11, out. 1998, p. 373. Para este autor, “o óbvio não precisa constar em lei, ainda mais se está dito, em termos mais adequados, pelo texto constitucional de maneira expressa e, identicamente, em convenções internacionais, ratificadas pelo Brasil, em plena vigência”.

8. FARIA, Helena Omena Lopes; MELO, Mônica de. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: RT, 2006, p. 861.

Page 10: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

210

Stela Valéria SoareS de FariaS CaValCanti

Para promover os direitos fundamentais, nada mais importante que o in-vestimento maciço do Estado em políticas sociais. As políticas sociais são determinadas por ações que representam a qualidade de vida de um povo e devem ser estendidas a toda a população. São aquelas definidas pela primeira necessidade, ou seja, o trabalho, a educação, a saúde, a habitação, a segurança etc. O Estado é o devedor dessas políticas, principalmente quando se trata de direitos sociais, cuja prestação é exigida do Estado, obrigado a colocar à disposição da sociedade o serviço correspondente ao direito à proteção e segu-rança, por exemplo. Nesse contexto, deve o Estado promover políticas públicas visando à segurança das pessoas contra todas as formas de agressão, violação e violência.

Por esse motivo, o art. 3º, § 1º, reconheceu a obrigação do poder público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) de desenvolver políticas que visem a garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações do-mésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, proporcionando--lhes segurança. Qualquer omissão do Estado brasileiro nesse campo configura publicidade negativa junto à comunidade internacional, possibilitando sanções e represálias9.

2.2. Conceito de violência doméstica e familiarTÍTULO II

DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patri-monial:

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de con-vívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as espo-radicamente agregadas;

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

9. CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica. São Paulo: RT, 2006, p.26.

Page 11: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

211

CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

Art. 6º A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos.

Comentários:

Como dissemos anteriormente, a lei delimita o seu atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, por entender que a lógica da hierar-quia de poder em nossa sociedade não privilegia as mulheres, bem como que estas são as maiores vítimas desta forma de criminalidade. Assim, busca atender aos princípios de ação afirmativa que têm por objetivo implementar ações dire-cionadas a segmentos sociais historicamente discriminados, como as mulheres, visando a corrigir desigualdades e promover a inclusão social por meio de polí-ticas públicas específicas, dando a estes grupos um tratamento diferenciado que possibilite compensar as desvantagens sociais oriundas da situação de discrimi-nação e exclusão a que foram expostas. Apesar de a lei tratar especificamente da violência doméstica contra a mulher entendemos que o crime de violência doméstica pode ter como sujeito passivo também os homens, em razão do que dispõe o art. 129, parágrafo 9º, do CP.10

O caput do artigo 5º da Lei nº 11.340/06 define violência doméstica e fami-liar contra a mulher como toda espécie de agressão (ação ou omissão) dirigida contra mulher num determinado ambiente (doméstico, familiar ou de intimida-de), baseada no gênero (feminino) que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

O art. 5º apresenta, pela primeira vez no Brasil, uma conceituação jurídica para o problema da violência doméstica e familiar, tendo em vista que anterior-mente à Lei Maria da Penha, apenas a sociologia, a antropologia e a psicologia tinham conceitos e denominações específicas para este grave problema social. A Lei Maria da Penha foi bastante corajosa ao apresentar esta conceituação, posto que ampliou, sobremaneira o conceito desta forma de violação dos direitos hu-manos das mulheres. Agora, qualquer ação ou conduta que cause morte, lesão,

10. Art. 129, parágrafo 9º, do CP. Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônju-ge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.

Page 12: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

212

Stela Valéria SoareS de FariaS CaValCanti

sofrimento físico, sexual, psicológico e dano moral ou patrimonial (inovações da lei) pode ser considerada violência doméstica, desde que seja praticada no âmbito das relações domésticas ou familiares.

O Código Penal estabelece que é violência doméstica a lesão corporal pra-ticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, com quem convivia ou tenha convivido... assim, a melhor interpretação desta nor-ma é no sentido de que ela pode ter como sujeito passivo qualquer dessas pessoas relacionadas, independentemente de sexo.

Quanto aos demais tipos penais enquadráveis no conceito amplo de vio-lência doméstica, como o dano (violência patrimonial), a ameaça, a calúnia, a difamação, a injúria (violência moral) etc, a interpretação deve ser restritiva, ou seja, só pode ser considerada violência doméstica se praticado contra a mulher (entendida aquela que, por força do que dispõe o art. 1.517, do Código Civil está apta ao casamento, ou seja, a maior de 16 anos11), já que o art. 5º da Lei nº 11.340/06 dispõe “que para os efeitos desta lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Na prática não há prejuízo para o homem que vier a ser vítima de quaisquer destes crimes praticados no ambiente familiar, já que deverá ser apli-cado o tipo penal específico, dano, ameaça, difamação etc, sem, contudo, poder ser considerado violência doméstica em razão do que consta no seu art. 5º

Por violência doméstica entendemos a ação ou omissão que ocorrer no espa-ço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas (inc. I). Como unidade doméstica entende-se o local em que reside a mulher ou esteja temporariamente fixado domicílio. A violência contra a mulher poderá ser também familiar, desde que praticada por membros de uma mesma família, aqui entendida como a comunidade formada por indivíduos que “são ou se consideram aparentados, unidos por laços natu-rais, por afinidade ou por vontade expressa” (inc. II). Em qualquer relação ínti-ma de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, in-dependentemente de coabitação, podendo ser sujeito ativo marido, companheiro, ex-marido, ex-companheiro, pai, padrasto, namorado etc.

Depreende-se deste dispositivo que quem agredir uma mulher que está fora do âmbito doméstico, familiar ou da relação íntima do agente do fato não está sujeito à Lei 11.340/06. Vale dizer: quem ataca fisicamente uma mulher num

11. Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingir a maioridade civil.

Page 13: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

213

CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06

estádio de futebol, num show musical, em uma praça etc, desde que essa vítima não tenha nenhum vínculo doméstico, familiar ou afetivo com o agressor, não estará sujeito à incidência desta lei. Aplicam-se, nesse caso, as disposições civis, penais e processuais do CP, CPP, CC, CPC12.

Merece comentário também a afirmação de alguns autores, minoritária, contudo, de que a empregada doméstica estaria amparada pela Lei de Violên-cia doméstica. Entendemos que os legisladores ordinários não pensaram em proteger a mulher enquanto desempenhando atividades laborais, para tanto já existia a CLT, e vasta jurisprudência sobre Assédio Moral, entre outras. O que se pretendeu foi proteger a família vítima da violência doméstica, bem como a mulher sujeito passivo dessa forma de criminalidade, portanto, tenho que discordar veementemente daqueles que entendem ser possível aplicar esta lei às relações laborativas domésticas13.

O artigo 6°., afirma que a “violência doméstica contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”, independentemente da pena apli-cada. Cuida-se de dispositivo encomendado para poder dar ensejo a eventual Inci-dente de Deslocamento de Competência, na forma dos arts. 109, V-A e 5º, da CF, dispositivos introduzidos pela Emenda Constitucional nº 45. Vale salientar que os crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher continuam, em princípio, sendo da competência da Justiça Estadual. Assim como são, em princípio, qualquer crime contra os direitos humanos em razão de a competência da Justiça Federal em casos tais pressupõe a procedência do Incidente de Desloca-mento, julgado pelo STJ, por iniciativa do Procurador-Geral da República.

2.3. Formas de violência doméstica e familiarCAPÍTULO II

DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

12. GOMES, Luis Flávio; BIANCHINI, Alice. Aspectos criminais da Lei de Violência contra a mu­lher. Disponível em: <http://www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8916>. Acesso em: 29 out. 2006.

13. DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha da Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 42.

Page 14: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

214

Stela Valéria SoareS de FariaS CaValCanti

II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cau-se dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e per-turbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, hu-milhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contu-maz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que con-figure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instru-mentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Comentários:

Seguindo orientação da Convenção de Belém do Pará e de outras recomen-dações internacionais, o artigo 7º da lei define claramente as formas de violência contra a mulher. De acordo com o “Modelo de Leyes y Políticas sobre Violência Intrafamiliar contra las Mujeres”, publicado em abril de 2004, pela Unidad, Género y Salud da Organização Mundial de Saúde – OPS/OMS, toda legislação política e pública deve incluir as definições de violência contra a mulher em cada uma de suas manifestações: física, sexual, psicológica, moral e patrimonial14.

Esta inclusão constituiu um grande avanço para a proteção dos direitos das mulheres, em face da ampliação da definição de violência doméstica contra a mulher contida em seu texto, bem como pelo reconhecimento explícito da vio-lência doméstica como violação dos direitos humanos. Anteriormente à edição da lei “Maria da Penha” só era considerada violência doméstica a lesão corporal que ocasionasse dano físico ou à saúde da mulher. Após a entrada em vigor desta nova lei qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão,

14. Art. 5º Disponível em: <http://www.in.gov.br/materias/xml/do/secao1/2238113.xml>. Acesso em: 8 de ago. 2006. Disponível em: <http//www.coc.fiocruz.br/hscience/vol4n3/art_cecilia.html>. Acesso em: 2 abr. 2006.

Page 15: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

215

CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06

sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial à mulher é considerada violência doméstica.

Segundo estabelece a Lei 11.340/06, a violência doméstica e familiar tem como modalidades: a violência física, sexual, psicológica, moral e patrimonial.

Como violência física entende-se qualquer conduta que ofenda sua integri-dade ou saúde corporal. Como modalidade criminosa, podemos relacionar vá-rios delitos como por exemplo: a contravenção de vias de fato15, o delito de lesão corporal, em suas formas leve, grave ou gravíssima, e os crimes contra a vida, homicídio, aborto, induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (arts. 129, §9º e §10, 121, 125, 122 do CP). Consistem em socos, tapas, pontapés, empurrões, queimaduras, dolosa, visando, desse modo, ofender a integridade ou a saúde da mulher. É a forma mais comum de violência doméstica, apresentada desta forma por várias pesquisas nacionais e estrangeiras16.

A violência psicológica é considerada qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipula-ção, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chanta-gem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer ou-tro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. É um conceito bastante amplo e abrangente. A violência psicológica é uma das mais comuns e menos reconhecidas formas de violência doméstica, a própria vítima, muitas vezes não a reconhece como algo injusto e ilícito. Porém, seus graves

15. A Lei nº 11.340/06 estabeleceu em seu art. 41 que “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 25 de setembro de 1995”, retirando a competência para processar e julgar esses delitos dos Juizados Especiais. Nesse contexto, é importante ressaltar que a Lei nº 11.340/06 ao estabelecer, no art. 41 que a Lei nº 9.099/95 não mais se aplica aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, não englobou na restrição, as contravenções penais. Logo, entendemos que para as contravenções penais praticadas com violência doméstica ainda podemos aplicar a Lei dos Juiza-dos Especiais, a exemplo da contravenção de vias de fato, que continuará a ser apurada por T.C.O. (Termo circunstanciado de ocorrência) e encaminhada ao Juizado Especial Criminal para processo e julgamento, art. 21 do Decreto Lei nº 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais). Nada mais justo, tendo em vista que, nesses casos, não se distingue quem é o agressor e quem é a verdadeira vítima, não sendo prudente aplicar a Lei Maria da Penha e seus mecanismos de proteção e punição.

16. Pesquisa do DataSenado concluiu em seu Relatório Analítico que das mulheres entrevistadas, 50% sofreram violência física, 11% sofreram violência psicológica e 17% já vivenciaram todos os tipos de violência. Secretaria de Pesquisa e Opinião Pública. Coordenação DataSenado – Serviço de Pesquisa de Opinião. Disponível em:<http://www.senado.gov.br. Acesso em 20.08.07. Neste sentido também foram os resultados da Pesquisa de Campo realizada em 2006/2007, pelo Laboratório de Direitos Humanos da Ufal, com 100 vítimas da violência doméstica em Maceió.

Page 16: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

216

Stela Valéria SoareS de FariaS CaValCanti

danos à integridade física, mental e psicológica da vítima são amplamente reco-nhecidos pelos profissionais da saúde, sendo considerado um problema de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde – OMS. Por esta definição podem ser considerados violência psicológica os crimes de: ameaça, cárcere privado, constrangimento ilegal, violação de domicílio, entre outros (arts. 147, 148, I e 146, 150 do CP). A ação penal, no caso da ameaça, continua sendo pública con-dicionada à representação e nos demais casos a ação é pública incondicionada.

A violência sexual é conceituada como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que li-mite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos. A intenção dos legisladores foi clara. Dirimir qualquer dúvida ainda existente, de que é possível tipificar como crime de estupro e atentado violento ao pudor, arts. 213 e 214, do CP, o sexo não consentido e forçado praticados por marido, companheiro, namo-rado contra suas esposas, companheiras, namoradas etc. Apesar de a jurisprudên-cia ser farta e a doutrina indicar a gravidade deste tipo de ação e a possibilidade de tipificação penal, alguns operadores do direito, por preconceito e discrimi-nação contra a mulher, ainda deixavam de aplicar a norma legal, justificando a relação afetiva e de coabitação existente entre agressor e vítima. Agora não resta dúvida de que a violência sexual é VD, e, portanto, passível de punição penal e moral. A ação penal, nesses casos é privada, exceto se a vítima for pobre na for-ma da lei, quando então será pública condicionada à representação da ofendida.

A violência patrimonial é entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. Esta é uma das mais co-muns modalidades de VD. Geralmente quando ocorre a agressão e a mulher é obrigada a sair de sua residência, o agressor se aproveita desta situação e destrói bens e objetos pessoais da vítima, acarretando-lhe sérios transtornos e prejuízos. Assim, veio em muito boa hora esta conceituação mais ampla, posto que agora estes atos são reconhecidos como violência doméstica e passível de punição mais rigorosa. O dano é o delito que pode ser reconhecido como violência doméstica, segundo o Código Penal brasileiro, sendo de ação penal pública incondicionada.

A violência moral é descrita como qualquer conduta que configure calúnia, difamação, injúria, inclusive denunciação caluniosa (art. 339, do CP). Caluniar alguém é a imputação falsa de fato definido como crime. Difamar alguém é

Page 17: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

217

CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06

imputar-lhe fato ofensivo à sua reputação. Injuriar alguém é ofender-lhe a digni-dade ou o decoro. Os tipos penais de calúnia, difamação, injúria são crimes de ação penal privada, arts. 138, 139 e 140 do CP.

2.4. Competência para processar e julgar a violência doméstica e familiar

Em face desta definição mais abrangente da violência doméstica, compreen-dendo ação ou omissão física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral prati-cadas contra a mulher e ocorrida no âmbito das relações familiares, entendemos que a partir da vigência da Lei nº 11.340/06, a competência para processar e julgar todos os delitos que se enquadrem neste conceito será do juiz natural (nas comarcas de juízo único), do juiz criminal para o qual o processo for distribuído (nas comarcas com mais de um juízo) ou do juiz titular do juizado de violência doméstica (nas comarcas em que forem instalados juizados com competência específica) que poderá ser criado pelos Estados brasileiros, em face do que de-termina o art. 14 desta lei. Assim, os crimes sexuais (estupro, atentado violento ao pudor); crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação); crimes de dano e ameaça; crimes de constrangimento ilegal e cárcere privado; crime de tortura; constante na Lei nº 9.455/97, desde que praticados no âmbito familiar serão de sua competência.

Exceções: as exceções a essa regra ficam por conta das competências defi-nidas na Constituição Federal – júri, crimes da competência da Justiça Federal, crimes da competência da Justiça Militar – entre outros. No caso específico do homicídio (crime doloso contra a vida, art. 121, do CP) a competência continua sendo do Tribunal do Júri, incluindo-se o sumário de culpa (fase instrutória pre-liminar). Não será de imediato das varas criminais específicas, nem dos juiza-dos de violência doméstica quando criados, a não ser nos casos de comarcas de varas únicas ou com competência exclusiva criminal. Contudo, se o Tribunal de Justiça do estado encaminhar lei à Assembléia Legislativa estabelecendo com-petência geral, como ocorreu com a Lei do Estado do Pará, não vejo qualquer inconstitucionalidade, já que o procedimento será mantido em todos os seus termos. Diga-se a mesma coisa em relação à competência da Justiça Federal: uma agressão do marido contra a mulher dentro de uma aeronave ou navio será da competência da Justiça Federal, art. 109, CF. Ademais, a lei nova não prevê a criação destes juizados no âmbito da Justiça Federal17.

17. GOMES, Luis Flávio; BIANCHINI, Alice. Aspectos criminais da Lei de Violência contra a mu­lher. Disponível em: <http://www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8916>. Acesso em: 29 out. 2006.

Page 18: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

218

Stela Valéria SoareS de FariaS CaValCanti

Entendemos que apesar de a competência para processar e julgar os crimes contra a vida ser do Tribunal do Júri, nos casos de homicídio, na modalidade ten-tada, podem ser aplicadas todas as medidas cautelares de urgência constantes na nova lei pelo juiz competente para instruir o processo. Também não cabe mais a aplicação da Lei nº 9.099/95, a teor do disposto no art. 41 in verbis: “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independente-mente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 25 de setembro de 1995”.

Assim, no caso de violência doméstica ou familiar contra a mulher não mais se lavra o termo circunstanciado (mesmo quando a infração não conta com pena superior a dois anos), senão, procede-se à abertura de inquérito policial (com a medida paralela prevista no art. 12, III e §§ 1º E 2º, da Lei nº 11.340/06), a de-núncia deverá vir por escrito, cujo procedimento será o previsto no Código de Processo Penal.

Todas as novas regras de competência estabelecidas pela Lei nº 11.340/06 foram dotadas de incidência imediata (no mesmo dia 22.09.06), por força do art. 2º, do CPP (princípio da aplicação imediata da lei genuinamente processual). Mas os crimes ocorridos até 21.09.06 continuarão regidos pelo direito anterior (mais benéfico), como veremos detalhadamente adiante, item 5.16.

2.5. Sujeitos

2.5.1. Ativo

A Lei Maria da Penha denomina o sujeito ativo das causas de violência do-méstica como “agressor”, seguindo orientação de outras áreas do conhecimento, como a sociologia, a psicologia e a antropologia, tratando-o desta forma em vários dos seus artigos (Ex.: art. 5º, inciso III).

Ademais, estabelece a referida lei, no parágrafo único do art. 5º, que as re-lações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual, logo, depreende-se da análise deste dispositivo que tanto pode ser sujeito ativo dos delitos de violência doméstica o homem como a mulher, seja heterossexual ou homossexual e que a palavra agressor está posta como gênero.

A Lei nº 10.886/04 criou uma nova circunstância para o delito de lesão cor-poral, estabelecendo como violência doméstica a lesão corporal “provocada em ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem con-vivia ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”, art. 129 § 9º e 10, do CP, logo podem ser sujeitos ativos e passivos do delito de VD tanto o homem quanto a mulher.

Page 19: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

219

CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06

2.5.2. Passivo

Contudo, veio a Lei n. 11.340/06 e criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Logo, o sujeito passivo da Lei Maria da Penha, que não pode ser confundido com o sujeito passivo do crime de lesão corporal só pode ser a “ofendida”. O que impõe interpretação no sentido de que esta é tão-somente a mulher. Assim, todas as medidas de prevenção e proteção só podem ser aplicadas às mulheres vítimas da violência doméstica e familiar.

2.6. Medidas integradas de prevençãoTÍTULO III

DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

CAPÍTULO I DAS MEDIDAS INTEGRADAS DE PREVENÇÃO

Art. 8º A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamen-tais, tendo por diretrizes:

I – a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação;

II – a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às cau-sas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas;

III – o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o es-tabelecido no inciso III do art. 1º, no inciso IV do art. 3º e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal;

IV – a implementação de atendimento policial especializado para as mu-lheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher;

V – a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres;

VI – a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros ins-trumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de pro-gramas de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher;

Page 20: Capítulo X a lei “maria da penha” – nº 11.340/06 · 203 CaPítulo X – a leI “marIa da Penha” – nº 11.340/06 méstica – VD ao prever mecanismos de prevenção, assistência

220

Stela Valéria SoareS de FariaS CaValCanti

VII – a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia;

VIII – a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia;

IX – o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Comentários:

O art. 8º é uma norma de cunho propedêutico, que propõe a necessidade de estabelecer uma rede de proteção e ação integrada dos órgãos públicos co-mo Poder Judiciário, Ministério Público, Defensorias públicas, com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação a fim de unir esforços para aplicar de forma articulada e efetiva a presente lei de proteção às vítimas.

Estabelece diretrizes básicas que devem ser observadas pelo Governo Fede-ral, Estados e Municípios para que dentro de suas esferas de competência pos-sam contribuir para a organização desta rede de proteção e amparo às mulheres em situação de violência, inclusive propõe a celebração de convênios, protocolos e ajustes, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da VDF – violência doméstica e familiar.

Fomenta também a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, con-cernentes às causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados na-cionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas. Esta é uma medida bastante salutar tendo em vista que o Brasil não tem o hábito de realizar pesquisas públicas sobre problemas sociais relevantes como a violência doméstica. A maioria das pesquisas existentes e apresentadas neste livro foram realizadas por organizações não governamentais, institutos de apoio às vítimas e grupos de mulheres que as organizaram com o intuito de dar maior visibilidade ao problema.

Outro item relevante estabelecido no inciso IX, do art. 8º é o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da vio-lência doméstica e familiar contra a mulher, pois se sabe que a educação, desde