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CAPOEIRA a construção da malícia e a filosofia da malandragem 1800-2010 autor: Nestor Sezefredo dos Passos Neto ("Nestor Capoeira") 2011

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CAPOEIRA a construção da malícia

e a filosofia da malandragem 1800-2010

autor: Nestor Sezefredo dos Passos Neto ("Nestor Capoeira")

2011

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CAPOEIRA a construção da malícia

e a filosofia da malandragem 1800-2010

Trilogia do Jogador, vol. 1

de Nestor Capoeira

(Nestor Sezefredo dos Passos Neto) © 2001 © 2011

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Salve todos capoeiristas; passado, presente, futuro. Para o maestro Pixinguinha, Muniz Sodré, e Mané

Garrincha. In memorian: Demerval Lopes de Lacerda, o mestre Leopoldina

(1933-2007); Marcelo Guimarães, mestre Peixinho (1947-2011).

Outras obras do autor: - No Brasil: O pequeno manual do jogador de capoeira. Rio de

Janeiro: Ground, 1981. Ed. rev e atual.: Rio de Janeiro, Record, 1998.

Galo já cantou. Rio de Janeiro: ArteHoje, 1985. Ed. rev. e atual.: Rio de Janeiro, Record, 1999.

Capoeira, os fundamentos da malicia. Rio de Janeiro:Record,1992.

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A balada de Noivo-da-Vida e Veneno-da-Madrugada. RJ: Record, 1997.

- No Brasil, na área acadêmica: PASSOS NETO, Nestor S. dos (Nestor Capoeira).

Ritual roda, mandinga x tele-real. Disst. de mestrado, ECO-UFRJ, 1995. Orientador: prof. dr. Muniz Sodré.

_____. Jogo Corporal e comunicultura, a capoeira como fenômeno civilizatório com real aptidão comunicativa e transcultural. Tese de doutorado, ECO-UFRJ, 2001. Orient.: prof. dr. Muniz Sodré.

- Nos Estados Unidos: The little capoeira book. Berkeley: North Atlantic

Books, 1995. Capoeira, roots of the dance-fight-game. Berkeley:

NAB, 2001. Capoeira, the streetsmart song. Berkeley: NAB, 2005. - Na França: Le petit manuel du jouer de capoeira. Paris:

Budo/L'Eveil, 2003. - Na Dinamarca: Com BORGHALL, J. Capoeira, kampdans og

livsfilosofi fra Brasilien. Odense: Odense Universitetsforlag, 1997.

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- Na Holanda: Capoeira, een handboek voor speeler. Holand: Elmar,

2003. - Na Alemanha: Capoeira, Kampfkunst und Tanz aus Brasilien.

Berlim: Weinmann, 1999. - Na Polônia: Capoeira. Wroclaw: Patra Purana, 2005. -Na Finlândia: Capoeira. Helsinki: Art House, 2006 - Em Portugal: O Pequeno manual do jogador de capoeira. Lisboa:

Arte Plural, 2009.

SUMÁRIO Prefácio com Nestor Capoeira 1 - UMA ÉTICA NEGRA E ALTERNATIVA Um alô do autor 1.1 - A ética A ética dos gregos e das sociedades

arcaicas

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A ética, segundo Badiou A malícia, a mandinga, e os fundamentos Gambá Velho e a gostosurazinha holandesa 1.2- O corpo O corpo entre os nagôs O corpo na globalização, segundo

Tucherman O corpo na globalização, segundo Villaça Corporalidade - o Jogo 2 - A FILOSOFIA DA CAPOEIRA 2.1 - A malícia Êta mundo enganador O intelectual e a "alegria de viver" O "conhecimento", e a "alegria de viver" A "alegria de viver" e a dor A "alegria de viver" e as brabeiras da vida Aprendendo a ver O credo do "Poder" x o da "Alegria de viver" Como desenvolver a "alegria de viver" A contraparte material Outro enfoque sobre a malícia O dinheiro 2.2 - A ação terapêutica da roda O iniciante O jogador com 5 anos de capoe A "alegria de viver", ou o "poder"? A escolha das atividades práticas A dinâmica terapêutica da roda

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2.3 - A "construção" da malícia, 1800-2000 Rio: os escravos africanos ladinos, 1800-

1850 As maltas, os brabos, e os valentões: 1850-

1920 O malandro e o sambista, 1920-1930 A desconstrução do malandro As contribuições de Bimba e Pastinha, 1930-

1960 A mardade de Bimba As metafísicas de Pastinha A vadiação de Waldemar da Liberdade A contribuição da geração Rio-Sampa,1960-

1980 Mudança em 2005, pela geração nascida em

1975 3 - O "SISTEMA DE ACADEMIAS" Autoritarismo excessivo? Ou "tradição"? A dialética da tradição A tradição, do oprimido e do opressor Estratégias usadas na luta pela hegemonia O sonho de um jovem capoeirsta A estratégia de violência era a única opção? A violência nas rodas A visibilidade e o visual 4 - A FILOSOFIA HINDÚ E A MALÍCIA A finalidade do ser humano O karta e o mestre

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A emoção e a visão do Real O Real dos hindús O "si mesmo" A liberdade O Incondicionado e o transcendente O gozo lúcido Liberdade e amor 5 - O MALANDRO E A FILOSOFIA DA CAPOEIRA O malandro e o trabalho O malandro e o golpista O malandro e o cafetão O malandro e o golpista sexual: a dobradinha O malandro e a Umbanda O aprendizado do malandro O malandro, o sexo, e a espiritualidade 6 - A PULSÃO, O KI, E O AXÉ

Energia: três enfoques homeomorfos Os orixás e a pulsãp Psicanálise e capoeira Pulsão de morte e criatividade Capoeira e a filosofia do real

7 - O IMAGINÁRIO DA CAPOEIRA 7.1 - O valente e o malandro; Ogum e Oxóssi O candomblé da Bahia Os orixás Os cultos africanos no Rio de Janeiro O valente e o malandro 7.2 - Outras entidades na roda

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O sorriso, e a gargalhada da Pombagira Besouro,Manduca,Nascimento;

Bimba,Pastinha 7.3 - Galo já cantou 8 - O RITUAL DA CAPOEIRA 8.1- A roda A roda como espaço geométrico A roda como espaço ritual A roda como espaço místico A roda como modelo social 8.2 - O berimbau 8.3 - Um tipo de jogo para cada toque de berimbau Na academia de Bimba Na capoeira angola O pulo do gato: a razão da diversificação de

jogo 8.4 - O canto 8.5 - Elementos ritualisados 8.6 - A última roda 9 - UMA MÁQUINA DE GUERRA URBANA Apresentação Pano-de-fundo NY x LA O estado contemporâneo no Brasil A marginalidade, a capoeira, e o samba Os anéis da serpente Nômades e sedentários A capoeira como uma estrutura "nômade"

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Reprodução e velocidade Linhas e segmentos A "visão evolucionista" x Clastres Atratores estranhos dos estados caóticos Dispositivos para conjurar o Estado Centros de Poder 10 - OS TRÊS NÍVEIS, A FEITURA DE UM MESTRE A nova identidade, novas exigências para

mestre As novas exigências: o tempo O alto nível técnico Corrupção: a venda de "diplomas de mestre" Meu encontro com mestre Leopoldina Meu encontro com mestre Pastinha Meu encontro com mestre Waldemar Meu encontro com mestre Caiçaras Meu encontro com mestre Bimba 11 - O MÉTODO DE ENSINO 11.1 - Ritual e mito A brincadeira segundo Winnicott Antídoto Uma "aula de iniciação" O mito em ação: planejar uma aula de

capoeira Improvisação e criatividade: receita do

antídoto 11.2 - Os métodos de ensino de nossos dias O desnível entre a malícia, e a performance

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Problema: criatividade x métodos de ensino Jogadores que improvisam: uma exceção Alunos mais experientes, e mais novos, na

roda Deixar o aluno aprender sozinho Não dar treinamentos complicados para

iniciante Treinar o som Diminuir o autoritarismo 11.3 - Os treinamentos mecânicos e repetitivos 11.3.1 -Treinamentos para iniciantes 11.3.2 -Treinamentos para nível médio 11.3.3 -Treinamentos para nível avançado 12- CAPOEIRA NO ESTRANGEIRO 12.1- A expansão no estrangeiro As décadas iniciais, 1970-1990 12.2- "Cultura" x sexo e corporalidade: choque cultural Malandragem x machismo, e o choque

cultural 12.3- Os jovens professores, 20 anos depois, 1990-

2010 A popularização, a partir de 1990 Os mestres gringos 12.4- As razões do sucesso no estrangeiro O sucesso da capoeira entre as mulheres O sucesso da capoeira entre os homens As críticas A parte "social"

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A filosofia, na visão dos estrangeiros A contribuição da capoeira americana e

européia 13 - CONCLUSÃO: O JOGO COMUNITÁRIO Posfácio com Nestor Capoeira 14 - APÊNDICE ACADÊMICO Introdução (no estilo acadêmico) Metodologia Objetivo Outros objetivos Quem é Nestor Capoeira 14- BIBLIOGRAFIA PREFÁCIO COM NESTOR CAPOEIRA

"Com fé e coragem para ensinar a mosidade do futuro estou apena zelando para esta maravilhosa luta que é deixa de erança adequerida da dança primitiva dos caboclos, de batuque, e cadobré originada pelos Africanos de Angola ou Gejes; muitos admira essa belissima luta quando dois camaradas joga sem egoismo, sem vaidade; é maravilhosima e educada." Mestre Pastinha, 1889-1981. (1)

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"Capoeira é mardade" Mestre Bimba, 1900-1974. "Para o bom malandro, o bom negócio é bom pra todo mundo." Mestre Leopoldina, 1933-2007.

Em 1965 conheci Demerval Lopes de Lacerda, o

mestre Leopoldina. Eu cursava o primeiro ano de engenharia na Ilha do

Fundão (RJ), e Leopoldina ensinava capoeira na "Associação dos Alunos". No ano seguinte, quando ainda era um iniciante e aprendiz, Leopoldina me levou pra umbanda e pro candomblé; me enturmou nas rodas de samba; me apresentou um sem número de malandros, golpistas, descuidistas, 171s, a rapaziada do 281, e a turma da pesada; e, como se não bastasse, me levou pra desfilar na V.C.Entende, a ala-show da Mangueira, rodeado por dezenas de mulatas maravilhosas.

Breve me formei engenheiro e, em paralelo, comecei a ensinar capoeira; eu atuava no mundo da classe média, e também vivia o sonho de uma outra realidade onde o malandro e o sambista eram os astros do filme.

Em 1971, aos 25 anos, chutei tudo pro alto, chutei e

saí pedalando: um ótimo e bem pago emprego como engenheiro da Light and Power Company S.A., a

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distribuidora de energia elétrica do Rio de Janeiro; um apartamento de dois quartos, no Cosme Velho, ao lado da academia de capoeira onde treinava e dava aulas; a namorada, e mais uma ou duas filiais; o carro, o som, e todas aquelas coisas que um pequeno burguesinho bem sucedido tem dentro de casa.

Coloquei umas roupas e um saco-de-dormir numa mochila, pendurei o berimbau no ombro, e parti.

Parti para comer aquelas gringas louras, entender que negócio era aquele dos hippies com seu LSD e rock'n'roll, e "conquistar" a Europa.

O Jogo de Capoeira não era o eixo central deste

"projeto europeu", pois inicialmente não imaginava que pudesse fazer sucesso no Primeiro Mundo, aliás "Países Centrais" (na terminologia modernosa da globalização).

Na época, 1971, a capoeira era uma exclusividade de Salvador. Fora isto, havia apenas uma dúzia de academias no Rio e em São Paulo; e uns nucleozinhos modestos em Belo Horizonte e Brasília.

Como é que a capoeira poderia ser sucesso no exterior?

Mas a verdade é que o Jogo foi muito bem aceito. E fui o pioneiro do ensino fora do Brasil, a partir de 1971, na London School of Contemporary Dance.

Desde então, em sucessivas viagens, morei 12 anos lá fora, vivendo de capoeira e "dos meus prestígios". Participei da expansão e popularização, dentro e fora do

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Brasil até a presente data, 2011, quando temos uns 25.000 professores de capoeira no nosso país, e mais uns 2.000 espalhados por mais de 150 países. A capoeira está bombando em todas as grandes cidades do planeta.

Eu escrevi 3 livros de capoeira (Editora Record, RJ:

1981, 1985 e 1992); também fiz um mestrado e doutorado em Comunicação e Cultura (2). Nas minhas viagens, consegui que meus livrinhos fossem traduzidos e publicados em outros países: Estados Unidos, Alemanha, França, Dinamarca, Holanda, Finlandia, Polonia e Portugal; em 2009, emplaquei 100.000 livros vendidos.

Apesar de ainda estar, graças à prática diária do Jogo, em plena forma fisica, usufruindo das rodas e dos prazeres da "vadiação"; a verdade é que já estou na casa dos 60 anos de idade e uma obra mais "pesada" e "acadêmica" tinha razão de ser. Comecei a escrevê-la em 2001 e terminei em 2011. A "obra magna" cresceu, ficou imensa -1.216 páginas - ; resolvi dividir o livro em 3 volumes.

O volume que você tem nas mãos é o primeiro da Trilogia do Jogador e enfoca a Malícia - a "filosofifa" da capoeira. Os dois outros volumes, que serão publicados em 2013, referem-se ao Histórico da capoeira

Eu comparo a malícia à "filosofia da malandragem",

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outra área carente, apesar de alguns romances como os de João Antonio, e trabalhos acadêmicos como os de DaMata. Examino cantos de capoeira, letras de samba, e cantos da umbanda. Enfoco testemunhos de mestres de capoeira, a partir de 1930; e de malandros e sambistas que tive o prazer de conhecer e conviver.

Mostro pontos em comum, e divergências, entre a capoeira e sua ética, e a maneira hindú de ver o mundo, segundo Prajnampad, físico e gurú indiano; e também o enfoque do I Ching, o livro das mutações, comentado por Confúcio séculos antes de Cristo.

Dou um rolê pela psicanálise com Freud e Jung. Cito muitos daqueles caras, tão caros à nossa cultura

ocidental: desde os antigos gregos, até Marx, Einstein, Nietzsche, Baudelaire, a Escola de Frankfurt, Sartre, Artaud, Foucault, Deleuze, Guattari, Winnicott, Hobsbawn, etc e tal.

Passeio pelo mítico do candomblé - uma cosmovisão do mundo que inclui o transe e a incorporação de energias atemporais.

Tento trazer à tona as intimidades da capoeira sob uma ótica brasileira que privilegia a música e o corpo em movimento.

E, obviamente, enfoco as obras literárias e estudos acadêmicos, que começam nos 1800s e vem até nossos dias, num total de mais de 150 autores e 800 citações.

O estudo da malícia - a filosofifa e a ética da capoeira

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- é um terreno praticamente virgem, e é aí que espero perpetuar minhas idéias e minha visão, pelo menos por algumas décadas - um objetivo de todo mestre de capoeira.

Por outro lado, além dos sonhos e objetivos pessoais de "um mestre de capoeira", uma das fontes deste livro foi a pesquisa acadêmica do meu mestrado e doutorado. Muniz Sodré, no início do curso de pós-graduação na ECO-UFRJ, assim sintetizou sua linha de pesquisa:

Procuro determinar os eixos da construção da identidade no Brasil, tanto do ponto-de-vista das classes hegemônicas quanto do ângulo das subjetividades ditas subalternas. Isto implica a análise do pensamento identitário em obras já clássicas da produção intelectual brasileira, dos dispositivos de produção de sentido montados por meios de comunicação de massa e, por outro lado, compreender as estratégias populares de continuidade institucional que interagem com a cultura hegemônica - formas religiosas, lúdicas, atividades cooperativas, etc. -, fixadoras de normas de conduta capazes de configurar alternativas para a ética social imediata.

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Em resumo: as pesquisas se inserem no campo da comunicação, eticidade e cultura pública. (3)

A gente toma uma atitude aqui, outra mais adiante, e

se houver uma coerência, ainda que compreensível somente para nós mesmos; se houver um mínimo de talento e de visão, e muita dedicação e suor; se houver uma infra-estrutura poderosa (no meu caso, a capoeira); depois de três ou quatro décadas chegamos num lugar que é nosso, e de mais ninguém.

Tem sido uma viagem e tanto. E esse "tijolo" - Capoeira, a construção da malícia e a

filosofia da malandragem, 1800-2010 -, o primeiro volume da "Trilogia do Jogador", é a materialização de uma parte desta viagem.

Espero que você curta estas páginas, da mesma forma que eu curti escrevendo-as.

Rio de Janeiro, junho de 2011. Nestor Capoeira. NOTAS: (1) PASTINHA, V.F. (Mestre Pastinha). Caderno e

álbum do Centro Esportivo de Capoeira Angola. Salvador: caderno manuscrito, s/data (aprox. 1960). P. 11a. A grafia original foi mantida.

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(2) PASSOS NETO, Nestor S. dos (Nestor Capoeira). Ritual roda, mandinga x tele-real. Disst. de mestrado, ECO-UFRJ, 1995. Orientador: prof. dr. Muniz Sodré.

_____. Jogo Corporal e comunicultura, a capoeira como fenômeno civilizatório com real aptidão comunicativa e transcultural. Tese de doutorado, ECO-UFRJ, 2001. Orient.: prof. dr. Muniz Sodré.

(3) SODRÉ, Muniz. Identidade e Cultura. Problemas Teóricos da Comunicação VIII. Rio de Janeiro: Doutorado da Escola de Comunicação da UFRJ, 1º semestre de 1998.

1 - UMA ÉTICA NEGRA E ALTERNATIVA "Branco faz letra, Preto faz treta" (Ditado popular dos terreiros baianos apud Muniz Sodré) Fica evidente que, apesar da saga da capoeira

comportar lutas e valentes, ela também traz os traços de uma história. A história de sua ascenção e inserção na sociedade global, bem como o confronto de seus valores

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com os de outras práticas corporais, e também com os de outras classes sociais.

É esta dimensão, a do valor, que traz para a capoeira a questão ética.

Neste capítulo vamos tentar explicitar a Malícia como

uma "Ética Negra e Alternativa" (no jargão acadêmico), ou como a "Filosofia da Capoeira" (no palavreado de meus camarás).

Um alô do autor Quando jovem, adolescente ou quiçás menino,

lembro de ficar deslumbrado com as crônicas sobre futebol do genial teatrólogo, escritor, jornalista, e "pó-de-arroz" (torcedor do fluminense) fanático, Nelson Rodrigues.

À Sombra das Chuteiras Imortais! Cada partida de futebol era um épico; uma Ilíada;

uma Odisséia! Aquiles e Ulisses de chuteiras! A trama que rolava no gramado era perpassada por ações de entidades místicas e forças do além. Paralelo a isto, os cronistas - na pena e nos escritos de Nelson Rodrigues - tornavam-se poetas assediados pelas musas, e/ou filósofos dignos de Sócrates e Nitzche.

Qualquer esporte, por mais empolgante, sempre é, ao

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meu ver, uma coisa muito limitada: juízes (!), cronômetros (!!), vencedor e vencido (!!!), etc..

Nelson Rodrigues, no contraponto, criava a filosofia, a mágica, e o mistério compatíveis com a paixão abissal - o futebol - de um povo - o brasileiro -, que tem na espiritualidade e no misticismo (sem o sentido pejorativo) uma de suas maiores forças e riquezas.

Nelson resgatava as limitações espirituais e filosóficas do esporte bretão.

Mas o projeto de Nelson, que talvez nem fosse

"projeto" na cabeça de seu autor, não vingou. Melhor dizendo, não teve seguidores nos que vieram

depois do "Anjo Pornográfico". Estes outos - exceto João Saldanha e talvez mais dois -, contemporåneos de nossa "globalização", eram apenas mais alguns "idiotas da objetividade" que não enxergavam o "óbvio ululante" - para usar, entre aspas, dois conceitos do genial Nelson Rodrigues.

O insucesso na continuidade não foi por falta de misticismo e espiritualidade dos jogadores - quase todos tem sua preces e mandingas, e não adentram o gramado sem fazer o sinal da cruz, ou traçar rapidamente um "ponto riscado" no tapete verde vegetal. Nem tão pouco a um ralo e azedo ateísmo dos massagistas, preparadores físicos, torcedores; trata-se de uma massa de macumbeiros, cristãos, e espíritas!

O futebol continuou sendo apenas "esporte" - apesar

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de ser a "paixão nacional", nos dizeres da propaganda de uma marca de cerveja -, sem as dimensões da filosofia e da espiritualidade, pois não haviam outros gênios de plantão entre os locutores e comentaristas; nem tampouco entre cartolas e dirigentes; e também pela mentalidade rasa e rasteira típica da midia, no Brasil e no mundo.

Felizmente a capoeira não sofreu as limitações do

futebol; limitações que foram temporariamente expandidas pelas crônicas de Nelson Rodrigues.

A capoeira veio do mesmo caldeirão cultural do samba, da malandragem, do candomblé, da umbanda. E por isso, desde seu início, sempre - a capoeira - foi atravessada pela música, pelo suíngue, pela "filosofia", e pela espiritualidade.

O que faltava era explicitar esta filosofia e esta espiritualidade (já que a música, o berimbau, e o jogo, estão aí, firmes e fortes).

O que faltava era descrevê-la em termos tais que leigos e capoeiristas e letrados e acadêmicos pudessen finalmente entendê-la e apreciá-la em toda sua exuberante, luxuriante, e despudorada beleza: Malícia!

Malícia: Ética e Filosofia Alternativas! Malícia: ética e filosofia alternativa, negra, mulata,

brasileira, marginal. Malícia: Ética e Filosofia da Capoeira!

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No meu primeiro "livrinho", em 1971, na verdade um panfleto xerocado de 40 páginas para meus alunos ingleses da London School of Contemporary Dance, eu falava da malícia - a "filosofia da capoeira". Eu falava do místico, do espiritual, do oculto.

E nunca mais parei de veicular e aprofundar estes conceitos nos meus livros que foram sendo publicados no Brasil e, mais tarde, em oito países;

- em 1981, O Pequeno Manual do Jogador de Capoeira; a chamada na capa dizia: "Descubra a dimensão de um corpo livre";

- em 1985, no Galo Já Cantou: "No Oriente exite o Zen, a Europa desenvolveu a psicanálise, no Brasil temos o Jogo de Capoeira";

- e em 1992, o livro terceiro livro chamava-se , "Os fundamentos da malícia"; e afirmava que a yoga da Índia, e a capoeira do Brasil eram atividades "homeomorfas" - tinham função, de certa forma semelhante, cada uma em sua cultura.

Eu buscava, na herança dos velhos mestres de ontem, os elementos para "criar" uma "filosofia" que atendesse aos anseios e necessidades dos capoeiristas de hoje. Mas sempre tendo o cuidado de, paralelo às viagens metafísicas, também apresentar o Jogo com o seu "Histórico", e os métodos de treinamento que eu tinha usado e ensinado durante décadas, com ilustrações em séries de desenhos, típicos de qualquer manualzinho farjuta de dança, luta, etc.

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Quando li, com uns 50 de idade, no mestrado e

doutorado da ECO-UFRJ, sobre a "dialética da tradição", do Eduardo Coutinho; a importância da "alegria", com Muniz Sodré e Winicott; o lance dos nômades e sedentários, de Deleuze e Guattarri, em Mille Plateaux; a "invenção das tradições" de Ranger e Hobsbawn, etc.; é que caiu a ficha: o mundo acadêmico realmente tinha contribuições positivas e concretas para o entendimento teórico da ética e filosofia do Jogo da Capoeira.

E finalmente em 2001 comecei a elaborar um "tijolo" que englobasse o mestrado e o doutorado com seus autores, meus livros, minhas anotações e memórias.

Um escritor ou estudioso "de verdade" provavelmente teria feito o mesmo trabalho em um ou dois anos. A culpa da demora foi da praia; das noitadas cariocas e das consequentes ressacas; das viagens ao estrangeiro, três a seis meses cada ano; das aulas e rodas de capoeira; e principalmente dos namoros e do gentíl convívio com o sexo "frágil".

1.1 - A ÉTICA A ética dos gregos e das sociedades arcaicas Para os antigos gregos - em especial os estóicos -,

Ética era a procura de uma boa "maneira de ser" ou a

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"sabedoria da ação". Eu gosto disto: a sabedoria da ação! Para os modernos, ética se confunde com moral.

Mas é necessário distinguir ética de moral; e, a partir daí, explicitar a minha concepção de ética, para que o leitor possa saber o que estou tentando dizer com "a ética da capoeira":

Ethos (c/ eta breve) = costume, caráter -> mors, moris

(latim) -> moral Ethos (c/ eta longo) = morada -> ética É deste Ethos, com eta longo no grego - morada, mas

que também abarca o significado de costume e caráter -, que vem "Ética": regras e valores que dão forma à territorialização do sujeito, organizando em vários níveis a morada do grupo num determinado lugar e procurando determinar-lhe os objetos bons ou supremos; o Bem. (4)

Para o homem das sociedades tradicionais ou

arcaicas, a ética - uma ética das virtudes, e não dos puros deveres, como na modernidade - apresenta-se como a regra do ascendente, do ancestral, do "pai fundador"; uma teoria do ser, que indaga sobre as finalidades da existência humana e sobre os meios de atingi-la.

A "regra ética" é outra coisa que a "lei moral" - ethos

com eta breve (grego), traduzido (latim) como mors,

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moris. A "moral" é o conjunto de prescrições normativas, consideradas a partir de coordenadas de tempo e lugar; uma lei (abstratamente) universal que toma a si mesma por objeto.

A partir de Cícero se faz a confusão ética/moral, pela tradução de ethos (com eta breve, do grego) em mors (latim). Confusão que continua modernamente com a ética como uma experiência da consciência individual, algo a ser regulamentado, por exemplo, pelas corporações profissionais (a "ética" médica, dos advogados, etc.; que, na verdade, deveria ser a "moral" médica, dos advogados, etc.; algo que se julga "absoluto e verdadeira", mas que muda com o tempo, e de lugar para lugar).

Por outro lado, havia, entre os gregos da Antiguidade,

uma imbricação entre "ética e política". Muniz Sodré ensina:

Partiam daí as condições para que os cidadãos pudessem adotar um ponto de vista crítico e racional sobre as relações do indivíduo com a comunidade. (5)

Platão afirmava que o conhecimento teórico básico do

cidadão era "o saber essencial da diké, a virtude da justiça"; Aristóteles distinguia "o sentido estrito da justiça (o judiciário) de um sentido geral". (6)

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Diké (a virtude da justiça) implica, assim, uma experiência ontológica, ou seja, uma experiência, ao mesmo tempo mitológica e histórica, do modo como se realiza e se integra toda realidade dentro da Cidade, o que a faz permear todos os níveis da existência humana, sejam reais ou potenciais. No nível real, a vontade de justiça funciona como o valor cívico constitutivo do homem democrático, ao qual se subordina até mesmo a virtude da valentia guerreira. O potencial assinala para a possibilidade que tem o homem justo de afirmar a sua liberdade, superando o real já dado e fazendo aparecer o novo, condição essencial à preservação e ao crescimento do grupo, inscrita como princípio (ético) originário. (7)

Trata-se, aí, da antiga polis (cidade) grega. Sodré explica que, mais tarde, com o cristianismo, a

ética "desloca-se dos quadros comunitários para o mundo inteiro, pregando a igualdade do ser humano".

E em seguida, na modernidade, o pensamento ético vai se tornando laico até chegar à filosofia novecentista, "quando os problemas sociais e espirituais inserem-se na

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história" (finalidades morais, deveres, etc.), reduzida "aos imperativos de funcionamento da sociedade moderna". (8)

A malícia - "ética da capoeira" -, que vamos

apresentar nas próximas páginas, se aproxima muito mais do Ethos, com eta longo do grego antigo, "a regra do ancestral", "valores que dão forma ao sujeito, organizando em vários níveis a morada do grupo num determinado lugar e procurando determinar-lhe os objetos bons ou supremos".

A malícia, que vamos apresentar nas próximas páginas, pouco tem a ver com a "ética", tal como entendida na atualidade, reduzida "aos imperativos de funcionamento da sociedade moderna".

A ética, segundo Badiou A palavra "ética" é a coqueluche de nosso tempo

depois de um longo confinamento nos dicionários e na prosa acadêmica, diz Badiou - um nome que se tornou razoavelmente conhecido nos círculos acadêmicos.

Inicialmente Badiou (9) propõe examinar esta "principal tendência 'filosófica' do momento", mostrando tratar-se de puro niilismo e uma ameaçadora negação de todo pensamento.

Num segundo momento, ao invés de ligar ética a

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"categorias abstratas" (o Homem, o Direito, o Outro, etc.), tenta relacioná-la a situações (específicas e não generalizadas), resgatando-a do discurso da mentalidade conservadora e de uma hipócrita piedade pelos infelizes e vítimas. Badiou faz uma crítica radical da "ideologia ética" e de suas ramificações - a visão do Homem como vítima, a bio-ética, a ética das diferenças, o relativismo cultural, o exotismo moral, etc. -, propondo que na base desta ideologia encontramos o conceito do "Homem Universal" - uma maneira de discriminar todo homem não-branco europeu -, desaguando numa retomada do moralismo religioso ou numa perigosa mistura de conservadorismo e pulsão de morte.

A seguir, Badiou tenta reconstruir um conceito admissível de ética imbricado ao devir das verdades (o Bem) - que dará consistência ao que alguém é. Neste processo, Badiou apresenta a "verdadeira figura do Mal". O "Mal" como a face sombria do "Bem"; uma possibilidade aberta pelo encontro com o "Bem" em seus três aspectos:

- o simulacro (ser o fiel seguidor de um falso evento); - a traição (trocar a verdade pelo interesse pessoal); - o desastre (crer numa "verdade total"). Quando confrontamos a proposta de Badiou (e sua

crítica à "ideologia ética") com a "ética da capoeira" - a malícia -, parece haver algo em comum.

Além disto, as três categorias do "Mal" (de Badiou),

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são áreas bem conhecidas no jogo de capoeira: - o "simulacro" de Badiou, que seria a "capoeira-

esporte" (uma prática com os gestos da capoeira, mas que obedece às regras do esporte, e renega a origen negra e marginal), ou o estilo "eu sou o mais (o único) correto" (que chamaremos de "capoeira-dogma");

- a "traição", que seria seguir normas de conduta da sociedade introjetadas na capoeira;

- e o "desastre", que seria se deixar enganar pela falsidade dos valores do Sistema.

Mas em contraponto, a proposta de Badiou, de uma

ética imbricada ao devir das verdades e que, de certa maneira, define o "Mal" (que seria apenas a face obscura do Bem), causa no capoeirista um sentimento de algo que foi simplificado ao extremo.

Este sentimento talvez seja explicado por um comentário do saudoso mestre Paulo dos Anjos. Sua avó certa vez lhe falou, a respeito do Mal: "não tenha medo, mas não brinque com ele". Ou seja, aí entram outras dimensões muito diversas das proclamadas por Badiou.

Vejamos este canto de capoeira: Meu camarado, o capoeira é muito mais que um lutador que dá pernada. Ele é um artista.

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Sua força é a alegria de viver. Ele conhece a palavra-chave "Amor" e no entanto o capoeirista sabe: a maldade existe. Nestor Capoeira (10) Da mesma forma que enfocamos as idéias de Badiou,

poderíamos enfocar outros expoentes do atual pensamento ocidental. Mas mesmos os que são considerados "alternativos", mesmo os cabeças que criticam as babaquices do "politicamente correto", não conseguem englobar a "filsofia" ou a "ética da capoeira". Não apenas pela falta de uma visão, como a da mãe de mestre Paulo dos Anjos que privilegia a existência de forças e energias atemporais, como no candomblé; mas principalmente devido a malícia estar intimamente ligada a um saber corporal (enquanto os pensadores ocidentais estão fundamentados no intelecto, no saber racional).

A malícia, a mandinga, e os fundamentos Talvez para a Capoeira não seja tão importante "o

que é?" ou "porque?"; mas, sim, "como lidar" com determinada situação (ou pessoa), "como viver" neste nosso mundo. Poderíamos até dizer que, na capoeira, o corpo é mais importante que o intelecto - a sabedoria da ação.

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A ética da capoeira, as vezes chamada de fundamentos ou malícia ou mandinga, é apreendida e absorvida em grande parte através da corporalidade.

Vejamos:

...através desta astúcia específica aos praticantes do jogo denominada malícia, coisa impossível de ser treinada, independe da (boa) forma física, transmitida de mestre a aluno, de capoeirista a capoeirista, (principalmente) através do jogo, (e também através) da convivência, da observação dos altos e baixos que vão pintando através dos tempos. (11)

Muitos jogadores usam os termos "fundamentos",

"mandinga" e "malícia" como sinônimos. Alguns, indagados sobre a diferença , são muito vagos e mostram-se perplexos e mesmo contrariados ao explicitar estes conceitos em palavras.

No entanto, em outras ocasiões, estes conceitos são utilizados de forma diferenciada, mais ou menos da seguinte maneira:

- A malícia: as vezes também chamada de "a filosofia

da capoeira" pelos capoeiristas, é o "saber" que o capoeirista vai adquirindo através dos jogos, com

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diferentes pessoas, em diferentes rodas, através dos anos. É um "saber" que é aprendido pelo corpo, e do corpo extravasa para a mente, e para o "espírito" (portanto, é um saber corporal, e não um saber racional que se aprende com a mente, p. ex., ao estudarmos um livro).

A malícia engloba determinados aspectos como mardade, falsidade, e traição, que não tem exatamente o mesmo sentido destas palavras no dicionário, ou no uso que as pessoas fazem delas. Estes conceitos, para o capoeirista, absolutamente não têm uma conotação negativa; na verdade são qualidades necessárias aos que querem bem jogar capoeira.

- Os fundamentos: a. incluí a malícia (saber corporal); b. conhecer o ritual (por exemplo, como organizar a

roda com os três berimbaus, os diferentes toques de berimbau que "puxam" diferentes tipos de jogo", erc.);

c. o conhecimento da vida e da "filosofia pessoal" dos Velhos Mestres, como Bimba (1900-1974), Pastinha (1889-19810, e muitos outros;

d. e também as estratégias e técnicas corporais de jogo, luta, e treino.

Em suma, os fundamentos incluem "sabedoria corporal" e também "sabedoria racional".

- A mandinga: é um conceito um pouco mais amplo.

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O mandingueiro possui intimidade com a magia, com a feitiçaria, e estes saberes são utilizados durante o jogo e na vida "real": rezas para "fechar corpo", para se "tornar invisível" quando se está sendo perseguido, etc.

Mestre Leopoldina cantava:

Agora sou mandingueiro; agora sou mandingueiro! Olho grande não me pega, nem feitiço me derruba, pois su sei rezar quebrante!

Para existir de fato a transmissão da malícia, dos

fundamentos, e da mandinga, dos mais experientes para o iniciante; assim como a transmissão do axé (a força vital) da capoeira; é essencial a convivência com os Velhos Mestres que na minha juventude - 1960s -,eram Bimba e Pastinha, e outros; e, hoje em dia - 2011 -, são os mestres de mais de 70 anos de idade como Leopoldina (recentemente falecido), João Grande, e João Pequeno.

Gambá Velho e a gostosurazinha holandesa Falou em "corpo" e inevitavelmente aparece a coisa

do "sexo". As mulheres, e o relacionamento sensual e sexual

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com as mulheres, são fatores básicos da maneira do capoeirista "estar e ser no mundo" - aliás, poderíamos dizer o mesmo do sambista e do malandro, que fazem parte do mesmo caldeirão cultural.

Isto em oposição ao relacionamento monogâmico do casamento, que em poucos anos descarta a tesão e o sexo.

E também em oposição a visão do "machismo", onde um homem acredita ter direito a várias mulheres, mas estas mulheres têm de ser "fiéis" somente a ele.

Por outro lado, um livro como este que pretende ser

"sério" e um tanto "acadêmico", corre o perigo de ser chato. Então tive a idéia de colocar, aqui e ali, pequenas crônicas, mais leves, que eu espero serem "divertidas".

É um pouco como no Jogo de Capoeira: existem os golpes (o "rabo-de-arraia", p.ex.) e as quedas (como as bem conhecidas "banda" e "rasteira"); é a parte "séria", que dá peso à capoeira. Mas também existem os "floreios" (os saltos e acrobacias), a "ginga" com o seu suíngue, a música e o berimbau.

No entanto é preciso frisar que o "floreio" e a "ginga" são tão importantes quanto os "golpes e as quedas". E, de forma semelhante, as pequenas estorinhas, como esta do "Gambá Velho e a gostosurazinha holandesa", são tão importantes como os desenvolvimento teóricos "sérios" com muitas citações de autores consagrados. É como se os "desenvolvimento teóricos sérios"

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formassem o esqueleto; mas são as estorinhas que fornecem a carne, a pele, os cabelos, enfim todo o "visual" que o leitor precisa conhecer para melhor entender os capoeiristas - entre eles, o autor deste livro - e a capoeira.

Verão; sol; domingo; onze da manhã; feira de São

Cristóvão; Rio de Janeiro. A roda está formada à sombra de uma grande árvore. Os raios de sol filtrados pela folhagem desenham um

delicado rendado de luz e sombra no chão de terra batida.

Três berimbaus, dois pandeiros, um atabaque e um

agogô. Uns vinte jogadores, respondendo em uníssono ao

refrão puxado por um dos capoeiristas, compõem o círculo dentro do qual estou jogando com um conhecido e respeitado mestre da velha guarda.

Ao redor, umas cem pessoas, a maioria nordestinos - peões de obra, feirantes, domésticas, garçons, camelôs, porteiros de edifício, bebuns, malandrecos, pivetes e desocupados.

Eu tinha, com muita cerimônia e respeito, perguntado

ao velho mestre se ele jogaria comigo. - É um prazer. E, à vontade como se estivesse de pijama e chinelos

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na sua própria varanda, passou um braço ao redor dos meus ombros e me levou até o pé do berimbau, onde nos acocoramos esperando a dupla que estava jogando terminar.

Quando perceberam o coroa agachado frente a mim, esperando sua vez, finalizaram rapidamente a vadiação. O velho capoeirista entoou um canto de louvor a Besouro Cordão-de-Ouro, lendário capoeirista de corpo fechado nascido em Santo Amaro, no começo do século XX, que "bateu na polícia, em soldado e generá".

Adeus Besouro, adeus, adeus, adeus Besouro. Na hora de sua morte, abriu a boca e falou: "Partirei! Do mundo não levo saudade". Em seguida puxou a ladainha e o coro respondeu

repetindo os mesmos versos: Ê, menino é bom... (e apontava para mim, acocorado

à sua frente) Tem fundamento... Sabe jogar... A capoeira, camará! Eu estava pra lá de emocionado. O pé do berimbau, antes do começo de um jogo, é

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um lugar mágico e estranho. É dali que a gente parte pra dentro da roda, pra dentro do Jogo, e pra dentro da capoeira. É como se fosse o portal entre o universo macro do mundo, e o microcosmos da capoeira.

A roda vazia. Os espectadores em volta. O axé da capoeira. Sem falar no calor do verão e no ritmo hipnotizante - toque de angola -, criando um outro estado de espírito e de realidade.

Uma esgarçada nuvem de poeira avermelhada levantada pelos movimentos do jogo anterior pairava perto do chão, numa atmosfera de sonho.

O velho jogador fez sua mandinga - traçou com o dedo um ponto riscado na terra -, inclinou-se na minha direção, me apertou a mão. O rosto e o corpo do velho, salpicados por finos raios de sol, era totalmente humano e ao mesmo tempo tinha qualquer coisa fortemente animal, de onça ou tigre.

Ele apertou minha mão e em seguida, em câmera lenta e sem nenhum esforço, levantou as pernas para o alto, o peso do corpo apoiado nos braços e, antes que eu pudesse imitá-lo, rolou - apenas os pés e mãos tocando o solo, a calça de linho e a camiseta sem mangas imaculadamente brancas - pro centro da roda.

O jogo tinha começado. Ele jogava quase sorrindo. Descontraído, as sobrancelhas arqueavam-se, todo o

rosto em mímica harmônica com a movimentação do

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momento, tal qual inspirado saxofonista. A comparação com o sax no choro - Pixinguinha - é

perfeita: o velho jogava uma angola clássica com muito floreio de cabeça pra baixo; movimentação em pé fluida e sinuosa com súbitas quebradas de corpo; golpes controlados amplos e circulares. Um jogo atemporal que remetia à própria ancestralidade de jogadores de outrora para além das divisões dos estilos da capoeira.

O velho estava em grande forma. E eu, encantado - no sentido mesmo de

encantamento: enfeitiçado -, seguia seu jogo respondendo a seus movimentos, raras vezes tomando a iniciativa, temeroso de quebrar aquela magia que poucas vezes tinha visto e menos ainda experimentado. Além disso - é claro! - eu mantinha minha juventude e agressividade "no sapatinho". Apesar do velho estar em grande forma, ele já tinha mais de sessenta, e eu - naquela época - mal chegava aos trinta. O coroa tinha mais tempo de capoeira que eu de vida.

Me lembro que ele, de pé, quebrou o tronco prum

lado e, ato seguinte, o corpo muito ereto e as pernas juntas, voltou num belo giro com os braços abertos e as mãos espalmadas. Eu me esquivei, me abaixando de modo que uma de suas mãos, desenhando um largo círculo no ar, passou por cima de mim.

Cresci num movimento lento e suingado e me preparei para lançar a perna esticada num largo,

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vagaroso, controlado, e clássico movimento de ataque: a meia-lua-de-frente - uma espécie de resposta, com o pé numa trajetória horizontal circular na linha da cintura, ao seu movimento de mão na altura da minha cabeça.

O inesperado! O velho num movimento lento, de costas e braços

abertos, terminando seu giro. Eu, embebido na estética sinuosa daquele jogo,

começando a executar a meia-lua-de-frente. Súbito, um pé. Melhor dizendo: a sola de um sapato. A sola de um sapato que surgiu do nada, a menos de

um palmo de meu nariz. A sola de um sapato, parando tão subitamente quanto tinha aparecido. A sola de um sapato, imobilizando-se por uma fração de segundo num momento cristalizado - até hoje, tantos anos depois - tal qual límpida fotografia.

O espanto. A adrenalina. Não tive tempo nem pra pensar. Quando dei por mim - expressão clichê perfeita para

aquele momento -, só pude ver o velho já um pouco distante, agachando no pé do berimbau e me chamando com o olhar para que, dali, recomeçássemos o jogo.

Me aproximei ainda um tanto apalermado e fora de

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centro devido à surpresa. O coroa, já acocorado, sorria maliciosamente para mim. Fui me achegando ainda atarantado. O velho levantou-se rápido. Um cotovelo cresceu no meu campo visual, mas agora - meu paternalismo de jovem em relação à velhice espantado pelo susto - meus reflexos funcionaram: desci arqueando para trás, torci o corpo, as mãos tocaram o chão, o tronco girou por cima, e já estava longe, de pé no meio da roda olhando pro velho que agora ria abertamente.

Ele abriu as mãos e estendeu os braços na minha direção, novamente me convidando a me aproximar. Do pé do berimbau entoou um canto, gesticulando comicamente e indicando a sua própria pessoa:

- Urubu come folha? E o coro respondeu: - É conversa fiada! A feira de São Cristovão tinha crescido, tinha virado

moda entre a rapaziada da zona sul do Rio, mas de certa maneira continuava a mesma. Era difícil acreditar que faziam mais de vinte anos que eu não pintava na área. E tinha sido necessário aquela gostosurazinha holandesa - "me disserram que tem um forró muitou legal" - para me deslocar até lá.

Virei a noite tomando cachaça, cerveja, queijo de coalho frito, e dançando forró com a ruivinha.

Estava tudo muito bom. Estava tudo muito bem. Mas, apesar da esfregação ao som da zabumba e do

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nível alcoólico, a coisa tinha rolado pro contexto da amizade. Pro companheirismo de uma jovem iniciante de Amsterdam, com um capoeira experiente do Rio de Janeiro.

- Nosso encontrro foi taaan legal! As vezes eu fico chateada com os mestrres mais nouvos. Não conseguen relaxar e curtir! O tempo inteirro só pensan en sexo, sexo, sexo... é muito chato.

- É normal. É outra cultura. O pessoal daqui é mais ligado no lance da sensualidade. As vezes fico pensando que é o sol e o calor.

- Certo. Tudou bem, a sensualidade. Mas ficar insistindo, insistindo... é chato.

Eu sorri um sorriso amarelo, concordando em gênero,

número e grau: malandramente, e sem fazer grande alarde, a ruivinha tinha jogado a possibilidade de sexo para escanteio.

E naquela do "encontro taaan legal", o dia ia raiando. A noite clareou. Os músicos iam guardando seus instrumentos. E percebi que não ia dar pra dar o bote.

Paciência. De qualquer maneira tinha sido, realmente, uma noite

muito legal. Propus procurarmos uma carne seca desfiada pra

encerrar o expediente. E foi aí que deparamos com a roda de capoeira, praticamente no mesmo local daquela outra de vinte anos atrás.

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Eu ia passar direto mas a gringuinha - novata apaixonada e entusiasmada - quis ver o jogo "purro e no seu habitat naturral, forra da academia".

Eu - naquela de anfitrião gentil - achei "uma ótima idéia".

E como não poderia deixar de ser, mal passado uns dois minutos, um jovem - todo respeitoso - me reconheceu e veio pedir pra jogar comigo.

- Que muito legal! Que muito legal! - bateu palmas a ruivinha cheia da empolgação e espontaneidade que me faltavam.

- Eu nunca te ver você jogar. Vai ser muito bom nesta roda bonita.

Mas o pé do berimbau antes do começo de um jogo é

um lugar mágico estranho. A roda vazia, os espectadores em volta, e o axé da

capoeira. O calor de verão e o ritmo hipnotizante - toque de

angola. Uma esgarçada nuvem de poeira avermelhada

levantada pelos movimentos do jogo anterior pairando perto do chão criando ainda mais uma atmosfera de sonho e irrealidade.

E sem querer e sem perceber, ao me acocorar eu já

estava embarcado. Uma suave euforia e uma sensação de continuidade no tempo - herança!

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E, completamente presente aqui e agora, era também como se eu vivesse a reprise de um filme com os papéis invertidos.

O rosto e o corpo do jovem jogador aococrado à

minha frente, salpicados por finos raios de sol, era totalmente humano e ao mesmo tempo tinha qualquer coisa fortemente animal, de gato ou de onça.

Fiz minha mandinga, cumprimentei o garotão e rolei - apenas os pés e as mãos tocando o chão - pra dentro da roda.

O jogo tinha começado. Quando dei por mim - expressão clichê perfeita para

aquela situação -, o jogo tinha terminado. Eu tinha entrado de tal forma na parada que não senti o tempo passar; na verdade, nem sabia direito o que tinha rolado, tal tinha sido minha concentração no aqui e agora do Jogo. O garotão se aproximou - pude ver que ele estava emocionado -, apertou minha mão e num impulso me deu um forte abraço.

A platéia aplaudiu... deve ter sido um jogo legal. Mas fiquei sentindo que faltava alguma coisa. Como

se eu também tivesse de ter aprontado algum lance magistral e - herança! -, na sequuência, cantado para o jogador mais novo, "urubu come folha?", da mesma forma que aquele velho mestre tinha feito comigo há mais de vinte anos atrás.

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Me benzi no pé do berimbau e fui saindo da roda. A ruivinha veio ao meu encontro. Segurou minhas mãos e engatou o olhar no meu.

- Foi muito, muito legal... muito obrrigado. Tocou meu rosto de leve com a ponta dos dedos e -

eu juro, meu camarado, não é exagero! - seus olhos azuis estavam mareados de lágrimas. Ainda de mãos dadas pegamos um táxi e fomos para um motel.

Naquele mesmo momento, quando íamos entrando no taxi, pude ouvir alguém na roda puxando um canto:

- Urubu come folha? E o coro respondeu empolgado e em uníssono: - É conversa fiada! NOTAS: 4 SODRÉ, M. O social irradiado. São Paulo: Cortez,

1992. Pp.49-54. 5 SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis. RJ:

Vozes, 2006, p. 131. 6 Idem, ibidem 7 Idem, ibidem 8 Idem, ibidem. 9 BADIOU, Alain. L'éthique, essai sur la consciece du

Mal. Paris: Hatier, 1993. 10 CAPOEIRA, Nestor. Galo já cantou. RJ: ArteHoje,

1985, p.107.

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11 Ibidem, p.110. 1.2 - O CORPO O corpo tem sido encarado de formas diversas no

tempo e também conforme o lugar. Já que a malícia - a ética da capoeira - é algo que se

transmite, e se apreende e encarna, com o corpo, e não com a mente (ou através meditação, etc.), vamos ver como entendemos o corpo nos nossos tempos de globalização.

Padre Antônio Vieira, na época da escravidão,

aconselhava, ao rei de Portugal a não dar anistia aos quilombolas (negros fugidos que se refugiavam nos quilombos); e ressaltava que "fugindo e passando-se às matas com todo seu cabedal que não é outro mais que o próprio corpo".

A frase de Vieira atravessa a fantasia ocidental por inteiro: o negro, aí, é classificado como um animal; é só e apenas corpo, sem mente, e sem alma.

No entanto, a verdade é que os africanos dão à corporalidade um estatuto complexo, bem diverso da "simplicidade de um animal".

O corpo entre os nagôs

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A capoeira se desenvolveu no caldeirão cultural afro-

brasileiro, e por isto é interessante entender o corpo dentro deste contexto de raízes africanas.

Muniz Sodré explica (12) que os nagôs, diferente (por exemplo) do zen-budismo, não suprimem corpo a procura de um estado absoluto de "não-ego". O corpo, para o africano, está vinculado ao sagrado, e o sagrado é percebido como uma experiência de apreensão de raízes existenciais.

A experiência sacra é mais corporal - experiência concreta - que intelectual. Mais somática que psíquica - psiquismo entendido como registro de interioridades que não se ritualiza. O africano não acredita num deus que não dance, num fiel que não mexa.

A corporalidade na arkhé - sociedade arcaica mas não necessariamente "primitiva" - não se define em termos exclusivamente individuais mas em termos grupais, ou melhor, em termos ritualísticos do grupo (como vemos, no Brasil, o candomblé e a umbanda). O corpo - que é ritual e grupal - se integra ao simbolismo coletivo na forma de gestos, posturas, direção de olhar, inflexões micro-corporais. Há algo do grupo no corpo. Quando se olha para uma pessoa que é de Oxalá, já se pode adivinhar como esta pessoa é.

No rito, o corpo encontra a totalidade - torna-se

sujeito e objeto -; um outro enfoque diverso da meditação

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com que os orientais querem abolir o ego e atingir a verdade cósmica; e também um enfoque diferente da cultura ocidental que quer comprender (e dominar) o mundo através da mente, do pensamento racional, e da ciência e tecnologia.

O rito, para oa africanos, não é uma técnica externa ao corpo do indivíduo, mas um lugar próprio à plena expansão do corpo.

O rito, para os orientais, é de interiorização; para os africanos, implica uma exteriorização.

O africano tem consciência da importância do rito e o coloca no centro de sua experiência, inclusive para entrar em contato com deus, não através do sacrrdote, mas através do transe (como vemos, no Brasil, quando um médium incorpora um dos orixás, ou uma entidade, numa cerimônia do candomblé ou da umbanda)

Para o cristão, o rito transformou-se numa forma burocrática - a missa, etc. -, deixando de ser uma comunhão direta com deus.

Nos terreiros antigos da Bahia, quando se queria

perguntar "como vai você?", usava-se a fórmula "seu corpo está forte?"

Na minha juventude, entre os capoeiras e a malandragem do samba, era comum perguntar: "como vai essa força?".

O corpo era assim entendido como uma forma de energia, como uma "fôrça"; mais que um simples objeto,

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o corpo era uma energia composta de elementos vegetais, minerais, animais. O mesmo ocorre com os deuses: a divindade está nos deuses, mas também no mineral, no vegetal, e nos homens.

Nesta cultura de arkhé (arcaica) - dos terreiros no Brasil que influenciou fortemente a capoeira baiana que tem "um fio-terra ligado à religião", como Muniz Sodré já nos ensinou (12) -, o que ganha primazia é a relação integrativa do corpo com o território; do corpo com os outros homens, mas também com as águas (Iemanjá, Oxum), os vegetais (Ossãe, Oxossi), os minerais (Ogun, Xangô),etc. Uma relação de integração com a própria realidade do corpo humano constituído por todos estes elementos.

O corpo como um microcosmo; um território tanto físico quanto mítico. Conquista-se o espaço e conquistamos, também, nossa própria pessoa.

O corpo também pode ser concebido como uma porção de espaço com fronteiras e defesas.

Na civilização akan, no atual Ghana e na Costa do

Marfim, o próprio corpo é visto como um conjunto de lugares de culto, como um centro para onde convergem elementos cósmicos, elementos ancestrais; elementos coletivos e individuais se entrecruzam na territoriedade corporal.

O homem arkhé é permeável ao mundo e ao cosmos. A divisão estrutural entre consciente/inconsciente,

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que no mundo ocidental moderno define o psiquê do sujeito, não é a mesma coisa que a abertura originária para mundos compossíveis, para a modulação (como na música, de um acorde maior a outro, menor) existencial - o transe, por exemplo, é uma destas modulações.

O transe, rejeitado por cristãos e zen-budistas - que o

consideram histeria ou intoxicação religiosa -, acontece como experiência de passagem de um plano para outro, como a vivência somática de um princípio cósmico que permite reinterpretar, no aqui e agora, o arkhé (o arcaico, a ancestralidade).

Nada, aí, é "inconsciente", diz Sodré (12), pois o inconsciente é a pressuposição do recalcamento (na visão da psicanálise, típica de nossa cultura ocidental); e, em oposição, no contexto nagô nada está recalcado, pois tudo se ritualiza, tudo se visibilisa na dramaticidade do rito. Divindades e ancestrais, origem e morte, tudo isto se reencontra no instante do deslocamento ritualístico do corpo no espaço, na dança, nos diz Muniz Sodré (12), referindo-se mais especificamente ao candomblé - mas poderíamos ampliar este enfoque, até cert ponto, para a capoeira.

Configura-se, aí, uma estrutura complexa de personalidades, uma estrutura complexa de identidades, na sociedade brasileira, que faz do indivíduo iniciado um verdadeiro templo vivo, uma articulação especial de instâncias psíquicas pertencentes tanto ao registro mítico

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quanto às identificações pessoais. Existe, no candomblé, uma identidade mítica

composta por várias entidades presidida pelo "dono da cabeça" (um determinado orixá) daquela pessoa. A relação entre estas identidades, nos terreiros da Bahia, se designa pela palavra enrêdo (12). Durante toda a vida do iniciado, a identidade mítica vai se desdobrar como uma urdidura ficcional, como um romance plasticamente aberto a outras identificações no mito e na história.

A natureza simbólica do jogo identitário é clara; tudo isto é ilusório, não que seja falso: a identidade é um jogo que se inventa e é construída pelo grupo.

Ao descobrir a natureza deste jogo, relativiza-se todas as certezas naturais e nos aproximamos do outro: amor.

O sujeito é feito, é fabricado (pela família, pelo grupo,

pela sociedade). E a palavra, no terreiro, é justamente esta: "feitura da

cabeça", onde, na iniciação, a divindade (dona da cabeça do iniciado) diz seu nome próprio e o iniciado se compromete a celebrar certas obrigações ritualísticas. A incorporação da divindade pelo iniciado é sempre uma ponte entre o individual e o coletivo, entre o mito e o "aqui e agora" histórico.

Nada há, a ser explicado pela biologia ou psicologia.

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Qual a explicação? O transe seria algo inexplicável? A explicação é: o que há no transe é uma radicalidade ética. (13)

Na capoeira, por sua vez, quando o iniciante é

"batizado", isto é, quando joga pela primeira vez numa roda após um período de aprendizado básico, ele ganha um apelido; um nome novo que o acompanha por toda a sua vida de capoeirista ao ponto de, um mestre (eu, por exemplo), não se lembrar do nome de todos seus alunos (apesar de conhecer bem o "apelido de capoeira" de cada um).

O capoeirista iniciante ganha uma nova identidade. O que está em jogo na capoeira - do mesmo

caldeirão cultural do candomblé, e por ele fortemente influenciado durante as "décadas de ouro", 1920 a 1950, quando praticamente todos os grandes capoeiristas baianos pertenciam ao candomblé, num momento anterior à irradiação da Bahia para o Rio e São Paulo -, é a afirmação de um corpo, dentro de um grupo. Inicialmente do corpo do negro e seus descendentes, historicamente postos à margem. E após meados dos 1900s, o corpo do capoeirista, brasileiro ou não, "feito" dentro do universo da capoeira.

Descendentes - "negro e seus descendentes" -, aí, se

entende tanto no sentido consanguíneo quanto no de

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filiação ideológica e cultural. Negros e brancos foram bons capoeiristas. E o louro

de olhos azuis, que canta em português e joga capoeira numa roda em Berlim, pode eventualmente ocupar simbolicamente o lugar de sua contrapartida negra e brasileira.

O corpo na globalização, segundo Tucherman Mas o que é mesmo o corpo? Tucherman, numa breve história do corpo, nos diz

que: perda, vazio, indiferenciação, desaparecimento; são termos e diagnósticos comuns na "pós-modernidade", com a reinvenção da cultura, com o ciberespaço e a realidade virtual (a TV, o computador, a internet, etc.) pondo em questão a existência do "real" e do seu sentido.

Dentro deste contexto, Tucherman indaga: O que é ser um corpo? O que é ter um corpo?

O corpo pertence ao conjunto de categorias mais persistente na cultura ocidental. Nossa cultura - matriz grega e a judaico-cristã - tem sido uma poderosa construtora de espelhos e imagens

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legisladoras. Entre estas destaca-se a imagem do corpo, em crise na contemporaneidade - próteses, cyborgs, clonagem, engenharia genética, biologia molecular, etc. (14)

Tucherman elabora sua "breve história" a partir do

corpo reinventado, idealizado, modelizado, e constantemente treinado nos ginásios gregos, bem antes de Cristo. Um corpo mediado por um ideal externo - transcendente, antes pensado que vivido -; que o destaca da natureza para a pólis (a cidade) - o cidadão.

Depois, "aparece" o corpo cristão, desligado da cidade: os eremitas e sua escolha pelo deserto, um corpo-para-a-morte, sede dos pecados da "carne", ao qual é prometido o apocalipse que prepara o juízo final, e a ressureição no contexto de uma "civilização da culpa".

No século XIII, temos a conquista de uma autonomia pessoal - não basta pertencer ao grupo e agir no coletivo, é preciso uma transformação em si mesmo -; paralelo ao aparecimento do cavaleiro andante e do amor cortês - que penetra pelos olhos, atinge o coração para então ganhar o cérebro e os testículos.

Finalmente, o corpo moderno; este que vive nas grandes cidades, perdido numa multidão de corpos. E, muito recentemente, este corpo moderno vai ser confrontado pelos corpos que "existem" na realidade virtual criada pela TV (a novela, etc.) e pela internet.

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Nesta transição, a comunidade que enquadrava e

limitava o indivíduo, constituindo um meio familiar onde toda a gente se conhecia e se vigiava, vai se transformar, com a chegada do século XIX, na sociedade anônima e sua vasta população de gente que não se conhece.

Produz-se uma clivagem no indivíduo e no seu corpo, distribuindo-se normas e ambientes.

Instalam-se, no íntimo de cada um, as disciplinas exigidas pelas normas sociais; torna-se visível e ameaçadora a presença de um novo tipo de corpo, o da multidão em movimento, em contraste com a passividade individual.

Por outro lado, o homem crê poder escolher mais livremente a sua condição e seu estilo de vida; que tem direito a um espaço privado junto à família. Paralelamente, temos o Estado cada vez mais interferindo em questões até então fora de sua alçada; as reformas religiosas, novas formas de devoção interior e íntima; a leitura e a escrita, que leva à emancipação da vida comunitária presa à fala e ao gesto; a passagem das sociedades hierárquicas (com seus reis e imperadores) para as sociedades disciplinares (uma disciplina imposta não somente pela fôrça, mas também por uma "segunda pedagogia" exercida pela televisão e seus valores).

E, se Descartes havia liberado a racionalidade

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científica da moral, Kant reintroduz a moral como forma aplicada dos exercícios de racionalidade.

Para o pensamento moderno, o corpo humano,

embora "natural", nasce ligado à razão e à cultura. Posto em confronto com a diferença, o homem moderno assume uma postura passiva e defensiva, um posicionamento que evita qualquer contato físico.

O medo do contato que dera origem ao isolamento dos judeus na Renascença, reaparece robustecido na forma de guetos individuais - multidão e solidão pertencem ao mesmo momento.

Aparece uma biopolítica e um biopoder preocupados

com a proteção da vida, a higiene pública e a preservação do meio ambiente. No entanto, todo este cuidado demonstra a crise do corpo, caudatária da crise da Modernidade.

Tucherman nos diz que o corpo está desaparecendo devido à crise do sujeito moderno perplexo diante das simulações (televisão, internet, etc.) e dos "duplos" que põe em questão a principal noção de realidade das pessoas, tradicionalmente associada à presença tangível e ao suporte material.

Em oposição à nossa tradição ocidental, nas culturas

de sociedades primitivas ou arcaicas - onde poderíamos inserir a capoeira -, assim como em muitas religiões

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orientais, produz-se uma cultura para o corpo, nos diz Ieda Tucherman.

O corpo receberia e traduziria, na sua própria existência, dois conjuntos de forças:

- um conjunto designaria um funcionamento institucional, social e individual, abraçando todas as forças cósmicas do acaso, do não conhecido; neste contexto teríamos os ritos, práticas mágicas, religiosas, etc.;

- o outro conjunto refere-se às outras interferências de energias não controladas: a loucura, a doença, etc.

O corpo na globalização, segundo Villaça Villaça, por sua vez, nos diz:

A reflexão sobre a questão corporal, seu controle e representação, através de mecanismos de abstração, de funcionalização ou de insignificação, cresce hoje em importância. O corpo parece insistir com seu próprio discurso contra os filósofos da linhagem platônica/cartesiana e insiste contra todos os discursos de normalização provenientes do campo médico, jurídico, artístico, etc.

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...A recente valorização da questão corporal como lugar de observação privilegiado problematiza o discurso moderno instrumentalizante do corpo produtor a serviço do capital, e vem, então, em resposta ao silêncio corporal imposto pelas injunções da sociedade cristã que glorificava uma estética da alma e não do corpo. ... O que se faz quando a razão está em crise? ... Viramo-nos para o corpo e seus interesses como caminho do ser e do tornar-se. (15)

Talvez estes dois enfoques - Villaça e Tucherman -,

que analisam a importância e a problemática em relação ao corpo nos dias de hoje, possam esclarecer muita coisa; inclusive o surpreendente sucesso da capoeira - prática ancestral inserida na modernidade -, e de sua ética - alternativa com raízes na africanidade e na marginalidade -, nos "países centrais", onde a atual problemática em relação ao corpo é bem maior que no Brasil (justamente por não existir, na cultura daqueles países do "primeiro mundo", práticas como o samba, o candomblé e a umbanda, ou a capoeira) .

Talvez pudéssemos dizer que, na capoeira, temos a

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corporalidade como pensamento. É através da corporalidade - dos jogos com os outros

dentro da roda aos som do berimbau (as "situações específicas" de Badiou, em oposição às "categorias abstratas") - que se absorve e se aprende a sua "filosofia" (a malícia). Produz-se "uma cultura para o corpo", como apontou Tucherman.

E é desta forma que a capoeira migra, viaja, e se estabelece.

Corporalidade: o Jogo (16) Menino, escuta esta toada: o lance certo, muitas vezes, está errado. Na roda, quem já está classificado, leva sempre um sorriso que desanuvia o lábio ou então, no rosto, uma charada. Nestor Capoeira (17) Eis a "roda de capoeira" formada: um círculo de

jogadores, os berimbaus, pandeiros, atabaque. Aproximemo-nos mais: alguém canta uma chula - um

canto-de-entrada - e todos ouvem com atenção: "Menino, quem foi teu mestre? Meu mestre foi Salomão. Pulava cerca de ponta

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de costas sem pôr a mão. O mestre que me ensinou está no Presídio da Conceição; a ele devo dinheiro, saúde e obrigação. Sou discípulo que aprende, sou mestre que dá lição. E o segredo de São Cosme só quem sabe é Damião, camará". "Menino, quem foi teu mestre?": a importância do

mestre está ligada, como nas sociedades arcaicas, à ética (a regra do ascendente, do ancestral). É através do contato e convivência com o(s) mestre(s) que se transfere o axé da capoeira, de iniciado à iniciante.

Aqui, menciona-se também "Salomão". Não é absurdo pensar que este Salomão seja o mesmo rei dos judeus - cujo símbolo era a estrela de cinco pontas - do Antigo Testamento (embora, talvez, seja apenas o nome do mestre do capoeira de quem compôs a canção).

O Cinco-Salomão (signo-de-Salomão), signo protetor dos capoeiristas, é uma estrela de cinco pontas (18) (um homem com os braços e as pernas abertos) envolvida por um círculo (para proteger contra os males físicos e espirituais) e, algumas vezes, encimado por uma cruz (símbolo de Cristo mas que também representa a encruzilhada, lugar de tomada de decisões - para que lado? -, que pertence a Exú, o mensageiro entre deuses

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e homens, portador do axé). "Pular cerca-de-ponta de costas sem pôr a mão": é a

corporalidade, o saber do corpo, que legitima o status de "mestre".

"O mestre que me ensinou está no Presídio da Conceição": o elo com o passado; a marginalidade - ética alternativa à hegemônica -; exibida como uma comenda ou medalha. E, ao que tudo indica, a passagem do mestre - que pula cerca de costas sem pôr a mão - pelo presídio será breve.

"A ele devo dinheiro, saúde e obrigação": - dinheiro como materialização do axé, a energia que

faz as coisas se moverem e existiram na sociedade (no corpo, o axé pode ser representado pelo sangue); como possibilidade de "fazer a festa", "dinheiro na mão é vendaval", canta Paulinho da Viola;

- saúde: física, mental, e espiritual, sem a qual o corpo não funciona;

- obrigação: com os orixás, com os ancestrais, e com os mais velhos; a obrigação com a ética (dos ancestrais); ponto básico do pensar afro-brasileiro.

"Sou discípulo que aprende, sou mestre que dá lição":

estamos diante de uma nova ordem; as categorias estanques e as "especializações", tão caras à ideologia ocidental, são re-arranjadas.

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"O segredo de São Cosme só quem sabe é Damião, camará": não restam dúvidas, estamos diante de uma confraria cujos ritos, embora apresentados publicamente, só tem significado para aqueles inciados nos mistérios do Jogo.

Agora, o cantor "puxa" a ladainha: " Ê , galo cantou..." E você se surpreende com o súbito calafrio que

percorre a tua espinha, ao ouvir os participantes da roda responderem em uníssono:

"ê , galo cantou, camará." Ao pé do berimbau, dois homens estão acocorados

de cabeça baixa. Parecem perdidos em seus próprios devaneios, ou talvez em alguma forma de concentração interior.

Levantam a cabeça e observam o cantor que continua a "puxar" o canto. O coro vai respondendo e o nível de energia e magnetismo da roda vai crescendo:

" Ê, cocorocou... coro: ê , cocorocou, camará. E, é hora, é hora... coro: ê , é hora, é hora, camará. Vamos s'imbora... coro: ê , vamos simbora, camará. Pelo mundo afora...

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coro: ê , pelo mundo afora, camará." O ritmo lento e hipnótico dos berimbaus vai tomando

conta dos dois jogadores acocorados. Suas mentes estão livres de idéias e pensamentos - estão ali, somente isto.

Despojados de tudo, sentem-se tão antigos quanto o próprio rito do qual vão participar.

O cantor termina a ladainha e o coro responde: "Volta do mundo... coro: ê , volta do mundo, camará... Que o mundo deu... coro: ê , que o mundo deu, camará. Ê, que o mundo dá... coro: ê , que o mundo dá, camará." As mãos dos dois jogadores tocam o chão e traçam

sinais mágicos - "pontos riscados" que "fecham" o corpo e fortalecem o espírito. Em seguida, executam a reverência: apoiados apenas nas mãos, levantam o corpo e as pernas para o alto, a cabeça quase tocando o chão e, lentamente, num domínio total do corpo, voltam à posição acocorada e se encaram: o Jogo começou.

Percebem que à sua frente não está mais o amigo ou

companheiro de treinos, mas sim uma charada; enigmas imprevisíveis e perigosos no diálogo que se inicia.

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Diálogo, não de palavras, mas de movimentos: movimentos de estudo, de ataque, defesa, de enganar; perguntas e respostas na misteriosa linguagem da capoeira.

Os jogadores rolam para o centro da roda, somente os pés e as mãos tocando o chão; o corpo relaxado e movendo-se no suíngue dos berimbaus; os olhos atentos.

O cantor terminou a ladainha; o berimbau médio "dobra" em cima do ritmo do berimbau grave, o berimbau agudo improvisa.

Os dois jogadores percebem tudo isto - o som dos três berimbaus, a batida do pandeiro e do atabaque - enquanto observam-se e fazem, sem esforço, movimentos de cabeça para baixo em câmera lenta, movimentos rentes ao chão como os de uma cobra, ou de um gato, ou de um boto.

Estão totalmente presentes. O passado e o futuro, suas idéias, problemas e ideais

deixaram de existir. Percebem e vivem o momento com uma calma cristalina e uma clareza fotográfica de quem observa o mar, sentado no alto de um rochedo.

Um dos tocadores de berimbau puxa um refrão, ainda

no ritmo lento, e o coro responde. É como se toda a energia da roda fosse canalizada e jogada sobre a dupla de capoeiristas.

O nível de magnetismo continua a crescer.

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Um dos jogadores se aproxima, lento e cauteloso, e executa um movimento de ataque; o outro se esquiva, passando por baixo do golpe. Apesar da aparente lentidão dos movimentos, ambos estão atentos. De repente, uma pernada rápida como uma chicotada; mas o outro tinha previsto o golpe e fugiu na negativa e rolê, negando o próprio corpo ao ataque, evitando-o.

Um dos jogadores gira em pé e se imobiliza com um

braço levantado. Seu par aproxima-se rodopiando rente ao chão e, por preucação, escora com a mão um dos pés de quem fez a chamada - prevendo um ataque inesperado ou uma falsidade. O que estava no chão se levanta e toca a palma da mão do outro, com a sua.

Andam alguns passos à frente, alguns passos atrás, as mãos se tocando... com um golpe rodado inesperado, quem "chamou" quebra o passo-a-dois , mas o outro esquivou e já está longe.

Os berimbaus aumentam o ritmo. O jogo, agora, se desenvolve mais em pé. Os capoeiras quebram o corpo, ameaçam, fazem

fintas. Os golpes partem rápidos, violentos, sem aviso prévio. As defesas são esquivas, fugindo ou entrando por baixo do golpe, derrubando o oponente ou soltando o contra-ataque. Um dos jogadores se imobiliza, e, atento, se aproxima do adversário cumprimentando-o.

Este jogo acabou.

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No pé do berimbau, outra dupla já espera acocorada

e logo partem para dentro da roda. O berimbau continua ditando o ritmo e ensinando. NOTAS: (12) Notas de aula - Probelmas da Teoria da

Comunicação V ECS 586, 8/5/1997 a 15/5/1997 -, do prof. dr. Muniz Sodré.

(13) Ibidem. Vide também, A verdade seduzida, RJ, Codecri, 1983.

(14) TUCHERMAN, Ieda. Breve história do corpo e de seus monstros. Lisboa: Vega Passagens, 1999, pp.11-94.

(15) VILLAÇA, Nizea. Em pauta: corpo, globalização e novas tecnologias. RJ: Mauad, CNPq, 1999, pp. 25-29.

(16) Este texto começou a se estruturar em meu primeiro livro (1981). Mais tarde (1995), foi retrabalhado no mestrado, e num outro livro (1999), at chegar a presente forma.

(17) CAPOEIRA, Nestor. O pequeno manual do jogador de capoeira. RJ: Ground, 1981, p. 27.

(18) Este pentagrama, na Europa, é "o mais famosos símbolo das artes mágicas, a estrela da sorte e do exorcismo", segundo Augusto Meyer (A forma secreta, p.158). Quando desenhado de cabeça para baixo representa a "magia negra". João do Rio, no início dos 1900s no Rio de Janeiro, já mencionava o "Cinco

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Salomão" de uma forma tão casual que é evidente que tratava-se de algo que todos conheciam.

2 - A FILOSOFIA DA CAPOEIRA

Já definimos a malícia em poucas palavras. Vamos, agora, estudá-la em profundidade. 2.1 - A MALÍCIA A malícia, num sentido amplo, é a maneira como o

jogador vê e joga com a vida, o mundo e, especialmente, as pessoas - é uma espécie de "saber" ou "sabedoria".

Num sentido mais restrito, a malícia é o que permite um jogador se antecipar aos ataques do outro; e também "enganar" o oponente, fingindo que vai fazer algo quando, na verdade, está preparando um outro tipo de ataque.

Poderíamos perguntar o que "sabedoria" tem a ver com "enganar o outro": é que, para enganar o outro, é necessário saber como o outro é, e como ele vai agir.

Cada mestre, cada jogador, e até cada iniciante,

explica a malícia da sua maneira. E isto não é errado: é impossível enquadrá-la num conceito fechado, numa "verdade" expressa em palavras; da mesma maneira que é impossível exprimir em palavras "o que é a vida", "o

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que é a arte", "o que é o amor", a "amizade" ou o "ódio". Eu sempre fui um apaixonado pela "filosofia da

capoeira" - a malícia - desde que fui iniciado por mestre Leopoldina (Demerval Lopes de Lacerda, 1933-2007), em 1965.

Nos anos seguintes, conheci os mestres Bimba, Pastinha, Noronha, Waldemar, Caiçaras, Canjiquinha, Paulo dos Anjos, Atenilo, Eziquiel, Bom Cabrito - todos já se foram -, e muitos outros. Sempre que podia, conversava e, sobretudo, convivia e observava como se portavam em diferentes situações. Perguntava, depois de já ter estabelecido um mínimo de camaradagem:

"Mas, afinal de contas, mestre, o que o sr. acha que é essa tal de malícia ?"

As respostas eram as mais variadas possíveis. Algumas eram poéticas e misteriosas, outras engraçadas, ainda outras eram racionais. Com os anos, a capoeira forjou, dentro do meu corpo, e daí para meu cérebro e para as páginas de papel onde eu escrevia, o que é a malícia - ao menos, como Ela se apresentou para mim.

Para começar, vamos dar um exemplo simples e

objetivo. Digamos que João observa Zé Mané jogando com outros. João presta atenção aos golpes mais usados por Zé; se ele é bom em dar quedas; os pontos fracos da movimentação em pé e no chão; as "manias" repetidas constantemente; os floreios acrobáticos, e se

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fica "aberto" nestes momentos, etc. A partir desta observação, João vai levar em conta, e utilizar, os pontos fortes e fracos que observou.

Por exemplo, João vai "abrir" falsamente sua guarda para o golpe preferido de Zé. É quase certo que o Zé Mané vai atacá-lo. Quando vier o ataque, João já está esperando, e o contragolpe já está engatilhado. Se João vai contra-atacar ou derrubar; ou se vai apenas "mostrar" o contra-ataque (ou a queda) sem finalizar; isto vai depender da sua personalidade e do tipo de jogo que está rolando, se era "brincadeira" ou "jogo duro".

Extrapolando esta estratégia, que é usada dentro da

roda, para o dia-a-dia da "vida real", J.L.Lewis, em sua tese de doutorado, comenta lucidamente:

Fingir é certamente uma parte essencial da malícia, e isto gira em torno de regra sociais. O capoeira toma vantagem da vítima que segue as regras do como "se deve" agir. (19)

Êta mundo enganador Poderíamos dizer que, do ponto de vista da

Capoeira, os seres humanos são mediocres, mesquinhos, limitados, falsos, preconceituosos,

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invejosos, covardes e crueis. No jogo, estes sentimentos vem a tona no gestual, na movimentação, e na expressão do corpo e do rosto dos jogadores.

A sociedade na qual vivemos - na visão da Capoeira - também não é melhor: riquezas mal distribuídas, recursos naturais mal utilizados, injustiça social, miséria, guerra e violência; consumismo e controle através da midia, valores falsos e estereotipados. Pois a sociedade na qual vivemos é fruto do que nós somos.

Isso fica bem claro quando escutamos algumas músicas clássicas de capoeira:

"Êta mundo velho e grande, êta mundo enganador. se canto desta maneira foi vovô quem me ensinou" "No céu entra quem merece, na terra vale quem tem; passar bem ou passar mal, tudo na vida é passar" "Iê quer me matar, iê na falsidade" "Urubu come folha? Côro: É conversa fiada!"

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O "urubu", ao qual se refere o canto, não é a ave. O "urubu" somos nós, os seres humanos, que não

somos mansos herbívoros - "come folha? coversa fiada" -, mas, sim, terríveis carnívoros.

A malícia da Capoeira é, então, algo bem mais

profundo e abrangente que o exemplo que demos ao citar o jogo entre João e Zé Mané. A malícia - saber corporal que extravasa para o cerebro - é o "conhecimento da verdadeira natureza do homem" (urubu come folha? ... é conversa fiada). Mas este "conhecimento" deve ser temperado com uma grande dose de "alegria de viver" (dizemos "alegria de viver", "tesão de viver", em falta de um nome melhor).

Esta "alegria de viver" está representado, na roda , pela energia positiva e alto-astral do som que acompanha e rege o Jogo.

A malícia, adquirida no jogo através dos anos,

proporciona o entendimento imediato e intuitivo da personalidade e motivações de outra pessoa. O capoeira vê o outro através a maneira como ele se move, pela sua postura, tom de voz, etc.; esta visão independe da "conversa" deschavada pelo outro. Evidentemente isto é reforçado pela observação (racional, da mente, da cabeça do capoeirista) das ações do outro no dia-a-dia (quando, por acaso, existe uma convivência).

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Na roda, o capoeira prevê os rumos que o jogo do outro vai tomar e "arma" sua estratégia em função deste conhecimento.

Na vida, a mesma coisa. Mas se não faz isso com compreensão e tolerância

("...nós, os seres humanos, somos assim mesmo"); tesão e "alegria de viver"; ele não é capoeirista e não vive a vida da maneira como a capoeira sugere e ensina.

O intelectual e a "alegria de viver" Nesta altura dos acontecimentos, um intelectual, ou

um acadêmico com sólidos conhecimentos dos filosósofos gregos e de conhecidos filosofos contemporâneos, dará um bocejo de tédio, jogara este livro de lado enquanto murmura "isto eu já conheço".

Clement Rosset já dizia, a respeito de Nietszche:

... alegria de viver, gáudio, júbilo, prazer de existir... a idéia ou a intenção de uma fidelidade incondicional à nua e crua experiência do real (20)

Mas apesar de aqui falarmos de uma "alegria de

viver", e - quem sabe? - Nietszche também falar de algo parecido ou igual, há uma diferença básica: Nietsche era um homem regido pela cabeça; nunca foi um mestre de

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esgrima, nunca foi um esportista dedicado à prática do box, nunca foi um amante com um extensa experiência e um profundo conhecimento do sexo.

O mesmo podemos dizer de nosso entediado intelectual, que já leu estas palavras - "alegria de viver" -, mas nunca vivenciou-as; exceto quiçás brevemente no auge de um porre, ou tomando LSD ou cogumelos ou santo-daime ou peyote.

Na capoeira, e nestas páginas, estamos num outro

contexto muito diverso: a "alegria de viver" da qual falamos, e que vamos tentar explicitar nas páginas seguintes, está firmemente imbricada à prática corporal da capoeira - jogo, dança, luta, ritual, música e canto.

Aqui trata-se do corpo, e não da cabeça. É verdade que também podemos atingir um estado

de euforia similar - "alegria de viver" - através a prática do esporte, da dança, das artes marciais, da yoga.

Mas no esporte a "alegria" é obscurecida pela necessidade de ser o "vencedor".

Na dança existe a coreografia que inibe a espontaneidade e a criatividade.

Nas artes marciais apesar de, semelhante à capoeira, existirem o ritual e o sentimento de união com a ancestralidade (o culto aos sensei da passado), fica faltando a música e sobra seriedade.

Na yoga queremos entrar numa outra esfera de

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consciência longe da materialidade mesquinha da vida do dia-a-dia.

Então na capoeira trata-se do corpo, e não da cabeça; mas difere de outras práticas corporais por ter muitas características diversas atuando ao mesmo tempo (jogo, dança, luta, ritual, música e canto, como já dissemos). Então a "alegria de viver", imbricada na capoeira mas que tem de ser trazido à tona pelo esforço pessoal do praticante (como veremos em seguida), é algo que o nosso entediado intelectual, longe de conhecer, desconhece totalmente,

O "conhecimento da verdadeira natureza dos

homens", e a "alegria de viver" Meu camarada, o capoeira é muito mais que um lutador que dá pernada. Ele é um artista, sua força é a alegria de viver. Ele conhece a palavra-chave “Amor” e no entanto o capoeirista sabe: a maldade existe. Será que tu ainda não ouviu o que se anda cantando nas rodas por ai: Galo já cantou, já raiou o dia.

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Nestor Capoeira A malícia ( "conhecimento da verdadeira natureza

dos homens" + "alegria de viver") permite ao jogador "ver" o cenário vivo, brutal e cruel - o mundo em que vivemos -, sem se tornar deprimido, amargo, agressivo, árido; ou preocupado e "sério" em demasia.

O "conhecimento da verdadeira natureza dos homens" vem automaticamente com a prática do jogo.

Mas a "alegria de viver" tem que ser alimentado e desenvolvido por iniciativa pessoal de cada jogador. A "alegria de viver" não vem como uma consequência inevitável do Jogo. A "alegria de viver" não é aquela que vemos na TV; e também não é o "don't worry, be happy" (não se preocupe, seja feliz), "politicamente correto" em alguns círculos moderninhos americanos. A "alegria de viver" é uma espécie de tesão pela vida; uma alegria de estar vivo naquele momento

Você já viu crianças brincando na beira do mar? Elas pulam numa perna só, correm, gritam, fogem

das ondas que "se desmancham na areia", e perseguem-nas incançavelmente na maior alegria, pois estão alimentadas por um outro tipo de energia (de difícil acesso aos adultos, exceto, talvez, nas festas, no carnaval, etc.).

É este estado de espírito que estamos chamando de "alegria de viver": a pessoa está totalmente presente e

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curtindo aquele momento. O "conhecimento", sem o apoio da "alegria", pode se

tornar muito pesado. Pode transformar o jogador numa pessoa incapaz de curtir a vida.

Pois o "conhecimento" traz Poder. E o Poder, sem "alegria de viver", transforma a pessoa em alguém que só se interessa - e é completamente fascinado - pelo "jogos de poder" ("eu sou mais que os outros").

Mas que papo é este de Poder que começa a vir, aos

poucos, para o jogador? Será algum tipo de energia, algum tipo de axé, que

circula dentro do universo da capoeira e atravessa seus praticantes através dos tempos e das gerações?

Certamente. Mas nem todos nossos leitores são "místicos"; muitos

são "pão é pão, queijo é queijo". Então, para estes, podemos dar alguns exemplos materiais e práticos:

- através dos treinos o iniciante vai melhorando seu jogo, e começa a dominar o jogo com os jogadores mais fracos; ele começa a ter mais status dentro da academia;

- seu corpo fica mais forte, flexível, "malhado"; sua postura corporal muda, reflexo do treinamento corporal, de um real aumento da autoconfiaça, e também de uma certa influência da postura dos outros jogadores; as pessoas, na "vida real", começam a achá-lo mais bonito,

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mais interessante; novas e inesperadas portas se abrem (no trabalho, no sexo, no social);

- com uns 5 ou 7 anos de prática, o jogador começa a eventualmente ajudar seu mestre nas aulas e subitamente o jogador se torna um ídolo para os outros alunos e alunas.

A "alegria de viver" e a dor Muniz Sodré nos contou que ouviu Pastinha definir

em diferentes ocasiões: "capoeira é dor". Talvez o velho bluesman, Howling Wolf, de New

Orleans, também dissesse: "o blues é dor". Charlie "Bird" e Billie Hollyday - quem sabe - talvez dissessem: "o jazz é dor".

Vinicius de Moraes, auto-denominado o "branco mais preto do Brasil", cantava que pra fazer um samba "é preciso um bocado de tristeza"; João Gilberto cantava "tristeza não tem fim".

O grande e venerando maestro Pixinguinha brilhava num gênero musical brasileiro chamado "choro" ou "chorinho".

Mas, talvez, imbricado na capoeira, no blues, no jazz,

no samba, na bossa-nova, no choro - que seriam dor e tristeza -, esteja contido, através determinadas práticas corporais e sonoras, o próprio antídoto - elegante e

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sapiente - desta mesma dor e deste mesmo "banzo": aquilo que chamei (um pouco tolamente) de "alegria de viver" (parte da malícia)

A “alegria de viver” e as brabeiras da vida A “alegria de viver” é essencial para o jogador digerir

as brabeiras que rolam na roda e na academia. E que, na verdade, são os reflexos das baixarias que também acontecem na sociedade, mas não são tão evidentes devido às fachadas sociais e ao verniz de civilização - o 171- que maquiam as pessoas e disfarçam os contornos brutais do mundo no qual vivemos:

- pessoas gentís que se tornam rudes, violentas, perversas (quando podem, quando sabem que não vão sofrer retaliação);

- pessoas amistosas e engraçadas que estão sempre numa boa, batendo altos papos, contando histórias, que inesperadamente armam fofocas ou traições (quando existe algo para ganhar, ou, as vezes, sem aparente ganho);

- amigos que se aproveitam da amizade para ter vantagens em certas situações;

- a necessidade de passar por cima dos outros; - o "querer dominar" através da força, inteligência,

dinheiro, ou através do medo; - agressão e violência;

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- o prazer de machucar ou causar danos; - a impossibilidade de ter um dialogo aberto, sem

segundas intenções obscuras; - a necessidade de sempre ir às forras (mesmo num

lance sem querer, no qual o outro não tinha más intenções);

- a necessidade de ser o melhor a qualquer custo; - falta de compreensão e compaixão; - estupidez, burrice, ignorância, grossura, covardia,

mesquinhez, mediocridade, etc., etc. Somente com muito “alegria de viver", uma profunda

compreensão e uma ironia saudável, é possível testemunhar e aceitar tranquilamente tudo isto sem perder a capacidade de se divertir e apreciar a companhia de outros monstros... desculpem-me, eu queria dizer, outros seres humanos.

Há quem diga que a vida é luta, uma verdadeira

briga. O "conhecimento da verdadeira natureza do homem",

que é uma consequência de jogar capoeira com diferentes pessoas em diferentes lugares, vai ajudar o jogador nesta briga, mostrando quem é quem, e como se defender antecipando os acontecimentos. E, se for necessário, como atacar friamente, com mardade, nos pontos vulneráveis; e de tal forma que não haja retaliação, pois foi tudo feito na traição e na falsidade.

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Mas para curtir a vida, isto não é suficiente. Se a vida é briga, o jogador tem de aprender a dançar

dentro da briga; a capoeira é um jogo-dança-luta. E isto só é possível com a ajuda da “alegria de viver”; o jogo só é possível com a energia alto-astral do som dos berimbaus, pandeiro, atabaque, e cantos, que acompanham e regem a roda.

Aprendendo a ver Por outro lado, aos poucos, o jogador começa a

entender que o Jogo não é apenas uma troca de golpes e esquivas, quedas, e movimentos acrobáticos.

O iniciante começa a ver algo que os não iniciados não percebem. O jogador começa a ver "as brabeiras da vida" se manifestarem no jogo, dentro da roda, de uma maneira crua.

Ou seja, através do jogo, o "conhecimento dos homens" já começou a se imbricar ao íntimo do principiante.

Durante o jogo a gente vê emoções e estranhas

reações estampadas nos rostos, e nas expressões dos corpos dos jogadores. E, muitas vezes, o próprio jogador se surpreende com coisas que acontecem dentro de sua cabeça num determinado jogo; e, mais ainda, depois que

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o jogo termina e o jogador relembra do que aconteceu. Surgem emoções de euforia e ódio. Muitas vezes

decorrentes do ego do jogador ter sido ferido. Ou, ao contrário, quando o jogador fere ou "humilha" outro jogador.

O jogador começa a ver os outros, e a si mesmo. sob uma nova perspectiva.

Um sorriso, um abraço cordial, uma conversa inteligente ou simpática, a aparente camaradagem que rola sem esforço nos círculos sociais e familiares; tudo isto que anteriormente lhe indicava "quem é quem", começa a ter menos valor. O "real" começa a ter outra forma e depender de outras referências, diferentes daquelas que anteriormente o orientavam.

O jogador, que está tendo seu corpo e sua cabeça

feitos pelos diferentes jogos com diferentes pessoas, começa a realmente perceber que todos temos uma "fachada social".

Esta fachada só se rompe muito ocasionalmente: nos momentos de crise, de stress; durante as festas e o uso de alcóol e drogas; e também durante o Jogo.

O jogador começa a ver o que existe por trás daquelas "fachadas sociais": algo mais profundo, autêntico, primitivo, e - sejamos sinceros - mais brutal, medíocre, e mesquinho, que é o núcleo de cada ser humano.

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O credo do "Poder" x o credo da "Alegria de viver" O "credo do poder" é o que a malandragem chama

de: a Lei do Cão. Em quase todas as sociedades, do passado e

presente, sempre houve uma minoria dona das riquezas, e uma massa que vivia miseravelmente e trabalhava para sutentá-la. Para manter este estado de coisas, os donos da bola tinham a seu serviço homens armados prontos para sufocar qualquer rebelião. Foi em cima deste modelito que nossa sociedade cresceu e "evoluiu".

Adolf Hitler, governante da Alemanha que por volta de 1939 deflagrou a Segunda Guerra Mundial, tinha uma frase que define bem a lei do cão:

"Quem quer que tenha se detido a examinar a ordem

das coisas, chega a conlusão que a essência do mundo reside no domínio dos mais capazes através do uso da força"

O poeta francês, Baudelaire, também tem algo a

dizer sobre o assunto: "Quer o homem abrace sua vítima na avenida, quer

mate suas presas em florestas desconhecidas, não é ele eternamente o homem?

Isto é: o mais perfeito animal de rapina."

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Em oposição a este "credo do poder", existem

capoeiristas que professam um "credo da alegria de viver". Acreditam que, pela primeira vez em sua história, o ser humano tem recursos materiais para acabar com a fome, a miséria, a ignorância, em todo o planeta.

Existem técnicas modernas e ecológicas de agricultura e pecuária; frigoríficos e enlatados que podem conservar a comida por muito tempo; transportes que podem levar os alimentos para qualquer lugar do globo.

Existem remédios e conhecimentos para prevenir doenças.

Existe a energia solar, a eólica, etc., que podem produzir uma energia limpa e não poluente.

Existem maquinas e computadores para substituir o homem no trabalho duro e alienante, deixando-o mais livre para curtir as artes, a diversão, e a vida.

Existe a Internet e a televisão, que é assistida no alto da mais alta montanha do Tibet, e também na mais remota aldeia da Amazônia. Através delas, poderíamos orientar e educar a humanidade... no entanto o mundo continua esta brabeira que sempre existiu - miséria, guerra, injustiça, ignorância, violência.

O "credo da alegria de viver" acredita que os

capoeiristas, em especial os professores e mestres, devem estar em sintonia com as reais necessidades do

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homem e do planeta nesta nossa Era Espacial; e que uma mudança para melhor é possível.

É verdade que o homem das cavernas, durante milhares e milhares de anos, canalizou grande parte de sua energia para as armas e a matança, por necessidade de sobrevivência. Mais tarde, nos últimos 5 ou 10 mil anos, com a "civilização", isto continuou; nem tanto pela necessidade de sobrevivência, mas pela Lei do Cão. Mas agora estamos vivendo um outro momento: se continuarmos com este "modelito", que também está poluindo o planeta, estaremos ameaçando a própria raça humana como um todo.

É possível melhorar a qualidade de vida das grandes massas que vivem na miséria, sem deixar os ricaços sem seu caviar.

É possível, e essencial, desviar a energia usada na violência e nas guerras (e ainda existe a ameaça apocalítiptica da guerra atômica, apesar de estar na moda a "guerra ao terror"), para atividades lúdicas e criativas.

E a capoeira pode dar sua ajuda e contribuição nesta mudança.

Ser totalmente fascinado e viver em função do Poder

é algo que acontece com bastante frequência no universo da capoeira. Isto afasta o jogador da curtição da vida, e da essência do Jogo.

No entanto, a Capoeira não faz nenhuma crítica

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moralista àqueles que escolheram este caminho. É uma das opções abertas ao jogador. Mas este jogador terá de aturar as respostas que o mundo ira dar à esta escolha. E, por sua vez, o jogador da "alegria de viver" também enfrentará dúvidas e dificuldades, como veremos no próximo capítulo.

Como desenvolver a "alegria de viver" Como desenvolver a "alegria de viver"? Inicialmente - e isto é a base de tudo -, o aprendiz

tem que querer desenvolver esta "alegria de viver"; dar tanto valor à "alegria" quanto ao "conhecimento" (que é muito atrataivo pois está diretamente ligado ao Poder e à violência).

Em seguida, se o iniciante realmente quer esta

"alegria", ele deve buscar a companhia de jogadores e mestres mais velhos que possuam esta "alegria". O problema é que nem todos mestres a possuem e a valorizam (valorizam mais o Poder).

Mas, felizmente para o iniciante, não é necessário a convivência diária com estes mestres que valorizam a "alegria". Aliás, nem sempre esta convivência é possível: há poucos mestres e milhares de praticantes.

Mas, muitas vezes, basta um lampejo, um vislumbre de como alguém (mais velho) lida com a vida, e o

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iniciante, que quer desenvolver sua "alegria de viver", já tem uma direção.

Paralelo a este esforço, para ajudar este iniciante existe o som e os cantos (que o iniciante canta junto com o côro) que acompanham a roda, que criam um ambiente energético e alto-astral. Cada vez que o iniciante participa de uma roda, cantando, batendo palmas, e eventualmente tocando algum instrumento (berimbau, pandeiro, atabaque, agogo), ele é imerso num caudal energético que, homeopaticamente, aos poucos, vai fazendo renascer a "alegria de viver" que ele possuía quando criança, mas que foi podada, castrada, e quase aniquilada pelas exigências do processo de "tornar-se um adulto".

A contraparte material Joga-se capoeira inicialmente por causa da

fascinação que ela exerce; depois vem a paixão, o amor e, até mesmo, o vício pelo Jogo.Esta é a parte que "os olhos não conseguem perceber e as mãos nao ousam tocar", como cantou Paulinho da Viola.

Mas também existe uma contraparte material à qual

os jogadores se dedicam consciente e abjetivamente: a execução dos movimentos, as estratégias de jogo, os golpes, as quedas, as entradas, os diferentes estilos, os

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diferentes toques de berimbau que induzem tipos de jogos diferentes (em cada estilo), os floreios acrobáticos e o controle do corpo, o ritual, o canto, o uso da navalha e arma branca.

E ainda, como extensão, o atabaque (e o candomblé e o maculelê), o pandeiro (e a batucada e o samba); e todo o vasta cultura afro-brasileira da qual a capoeira é parte.

E também o Mundo das Ruas, e a malandragem, onde grande parte da malícia foi desenvolvida.

Tudo isto, que pode ser visto com os olhos e

percebido pelos sentidos, constitui uma imensa área de ação para o capoeirista.

Mas o desenvolvimento do capoeirista, nestes vários segmentos interligados, não é complicado nem penoso, pois depende somente do amor e da atração que o jogador sente pelo Jogo.

O jogador treina e faz as aulas pois quer se expressar melhor dentro da roda.

O jogador joga na roda, pois é na roda que a capoeira se materializa e acontece

O jogador sente que, além do prazer de treinar e exercitar o corpo, além do prazer de jogar; tudo aquilo é saudável para o corpo e para a mente (e, mais tarde, para o espírito). O jogador sente que está sendo mudado, para melhor, pela capoeira; ele ve os resultados em todas as áreas de sua vida.

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Com o tempo, o jogador começa a buscar outros

lugares onde a capoeira é praticada; conhece outros ambientes e outras pessoas; e aos poucos vai sendo organicamente introduzido nas demais partes do todo. A capoeira conduz o jogador por caminhos e atalhos inesperados até que, finalmente, ele conhece, não só a malícia - a parte misteriosa-; mas também toda a contraparte material da capoeira, todo aquele universo.

Outro enfoque sobre a malícia O dedicado aprendiz provavelmente dirá, após ler

estas linhas: "até que não é tão complicado assim". Infelizmente, caro/a leitor/a, para melhor explicar o

que é malícia, devo agora abordar o problema por um outro ângulo.

"Porra, mas logo agora que eu tinha entendido tudo! Logo agora que estava tudo tão claro como uma fotografia!"

Mas vejam só as próprias palavras de nosso aprendiz: "como uma fotografia". E, às vezes, uma só fotografia não é suficiente para descrever algo. A própria polícia usa duas - uma de frente, e outra de perfil - para identificar sua "clientela".

As palavras e os textos escritos funcionam

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razoavelmente bem para descrever determinados objetos; mas para descrever sentimentos ou contextos mais complexos (como é o caso da malícia), as palavras não funcionam tão bem como gostaríamos.

Então já demos uma explicação, como se fosse uma "foto", do que é a malícia: o "conhecimento da verdadeira natureza dos homens" (que vem automaticamente como consequência de jogar com diferentes pessoas em diferentes situações) aliado à "alegria de viver" (que têm de ser desenvolvido pelo próprio jogador).

Agora vamos dar uma segunda "fotografia", vista de um outro ângulo.

Poderíamos dizer, nesta segunda explicação, que a

malícia é uma espécie de esperteza, usada na roda e no dia-a-dia.

Esta malícia não depende do camarada ser forte, técnico, rápido, ter reflexos ou estar em boa forma física.

Para bem entender este "segundo retrato" temos que voltar no tempo, para a época da capoeira marginal, quando a capoeira era proibida por lei, por volta de 1900/1940, antes da "época das academias". Naquela época o mais importante era um tipo de esperteza que tem muito a ver com a filosofia da malandragem.

Os golpes e as quedas existiam mas não eram tão importantes. Pois um jogador pode "detonar" outro na academia ou numa roda-de-rua, com pancadas ou com

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técnica. Mas na vida real, no ambiente da marginalidade, se você detonasse um outro camarada, um mês depois ele poderia te esperar num canto escuro; uma navalhada na jugular e você já era.

Os capoeiras daquela época estavam diretamente

ligados à realidade do mundo das ruas. Eles não viviam a "realidade faz-de-conta" de uma academia, com sua graduação, seu uniforme e seu logotipo.

O básico, naquela época era uma certa malícia que fazia com que você entendesse as diferentes situações. O básico era você comprender quem realmente eram as diferentes pessoas (independente de sua "corda", ou "cordel", ou de ser "treinél" ou "contramestre"; que, aliás, nem existiam no passado). O básico era navegar por mares bravios e revoltos sem que teu barquinho afundasse.

É claro que se você, além da malícia, tivesse uma excelente técnica de jogo, ou de luta, era melhor ainda. Mas o básico para a sobrevivência era a malícia.

A capoeira era uma "escola de vida", e uma "escola

para a vida"; e não um "esporte", ou a "arte marcial brasileira"; ou uma "resistência cultural à sociedade branca hegemônica"; ou uma "academia", ou um "grupo", ou uma "associação ligada a uma Federação".

Naquela época a capoeira era uma espécie de imitação da selva que é o mundo em que vivemos; era

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uma espécie de teatro mágico onde diferentes arquétipos de situações eram encenados e resolvidos ritualisticamente.

Muito disto sobreviveu e existe, até hoje, no Jogo.

Mas este cenário de "teatro mágico" ficou sombreado pela realidade (careta) das academias e dos grupos.

Mas, de uma maneira ou outra, o "teatro mágico" sobreviveu. É por isso que, no Jogo, nós temos o floreio, os saltos e as acrobacias; a parte lúdica (como a saída ao pé do berimbau, as chamadas, etc.); a música. São elementos que permitem que determinadas situações (que acontecem e tornam a acontecer na vida "real") sejam "encenadas" neste teatro mágico que (até hoje ainda) é o Jogo.

E estas situações são resolvidas, no Jogo, de uma maneira "capoeirística", com malícia (a esquiva, o fingir que vai mas não vai, a observação do outro etc.).

Jogando dentro da roda, e (idealmente) se divertindo e curtindo, o jogador aprende uma outra maneira de enfrentar e lidar com as diferentes pessoas, e com os problemas do mundo "real".

A filosofia da Capoeira, a maneira com que Ela lida

com as coisas, é crua, bem-humorada, tem suíngue, é um pouco cínica, poética, e (se necessário) objetiva e cruel.

A capoeira ri das pessoas e do mundo; e ri de si

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mesma. A capoeira permite e abre espaço para a criatividade,

a improvisação, a arte, a poesia, a filosofia, a espiritualidade, o ritmo e a música, e a sensualidade; e também, se necessário, para a violência, para a falsidade, a maldade e a traição.

A capoeira é muito diferente das filosofias ou práticas

que tentam comprender o mundo com a mente, ou através das palavras.

A capoeira é diferente de práticas onde o mais importante é "vencer", como no esporte.

Também é diferente de práticas corporais que querem tirar as pessoas desta "merda" (que eles dizem ser o mundo), e colocá-las num lugar "mais elevado", "mais inteligente", ou "mais espiritual". A capoeira, e sua malícia, não pretendem colocar você "acima" ou "além" deste vale de lágrimas que é o planeta Terra.

A capoeira te ensina a curtir e ter suíngue; a agir e a reagir aqui mesmo; de tal maneira que você possa tirar da vida o que ela tem de melhor,

A capoeira, se necessário, ensina seus jogadores a se defenderem, se esquivando dos obstáculos que vão surgir ou, se necessário, a atacar usando a falsidade e a traição. E o jogador faz tudo isto naturalmente pois encarnou, no seu corpo (e daí para a sua mente) um saber, um axé, que passa de mestre a aluno através dos tempos e das gerações.

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Apesar deste atrativo quadro, é preciso lembrar que a

capoeira, hoje, é praticada e transmitida dentro das academias. E a "academia de capoeira" é regida por um "mestre" que, apesar de ter seu corpo e sua cabeça feita pela capoeira, e que evoluiu muito em relação ao que era; na maioria das vezes evoluiu muito menos do que seria necessário pra que fosse realmente um Mestre (com "M" maiúsculo). (21)

O dinheiro O dinheiro é necessário, não só para sobreviver, mas

também para curtir os lances materiais da vida. E curtir os lances materiais da vida faz parte da maneira de ser do capoeirista.

Menino quem foi teu mestre? Menino quem foi teu mestre? Meu mestre foi Salomão; a ele eu devo saúde, dinheiro e obrigação. Não é que o "menino" deva dinheiro porque pediu

dinheiro emprestado ao mestre. Ele deve porque o mestre iniciou-o na capoeira; e

também ao dinheiro, através das aulas e dos shows, ou

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ainda através dos "prestígios" que ele vai adquirindo e que lhe rendem grana e abrem portas.

Existem uns otários puristas que pensam que ganhar

dinheiro com capoeira é "deturpação". Eles não entendem que a capoeira, além de tudo o

mais, sempre foi uma ferramenta para o capoeirista ganhar dinheiro, e sobreviver, e curtir. Evidentemente, em cada época a maneira como o capoeirista ganahva dinheiro era diferente:

- o capoeira foi capanga e guarda-costas de políticos poderosos na época do Império, e no começo dos 1900s;

- depois, após 1930, com mestre Bimba e os educadores, o capoeirista ganhava dinheiro dando aula e fazendo show para turista;

- hoje, além das aulas e dos shows, o capoeirista vende abadá e camiseta de sua academia; vende berimbau; livro; CD; DVD. Alguns, como eu, fazem até mestrado e PhD em universidade, enfocando a capoeira, e, depois viajam o mundo dando palestra e faturando a grana pra curtir os lances da vida material.

Por outro lado, o dinheiro é algo que fascina os

otários primários e ingênuos: acham que com dinheiro terão tudo e "serão felizes". Mas o provérbio já dizia: "o dinheiro não traz a felicidade para quem não sabe usá-lo".

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É claro que o dinheiro exerce atração sobre o capoeirista. Mas, na verdade, o que realmente atraí, mais ainda, os capoeiristas e mestres de nossos dias (e creio que os de outrora também) é o Poder. O capoeirista percebe rapidamente que o dinheiro é apenas uma faceta vulgar e primária do Poder. E o "poder" vem para qualquer mestre mambembe com meia dúzia de alunos.

NOTAS: (19) LEWIS, J.L Ring of liberation. Chicago: Univ.of

Chicago Press, 1992., p.189. (20) ROSSET, Clément. Alegria, a força maior.

Relume-Damará, 2000, p.35. (21) No entanto sempre é bom lembrar que a capoeira

só sobreviveu por causa da criação das "academias", a partir de Bimba, na década de 1930 em Salvador. Outras manifestações "folclóricas" brasileiras desapareceram, ou sobrevivem mambembamente (e, não raro, "distorcidas" de suas origens e funções originais). Neste mesmo contexto, também devemos citar as "primas" da capoeira, as outras danças-lutas com origens africanas que existiram em muitos outros países do "Atlântico Negro" (como a ladjá na Martinica, o moringue das Ilhas Reunião,etc.), que feneceram aproximadamente após 1930 (nenhuma delas fez o salto de "folclore" - saber do povo - para a "academia"; ou outro tipo de passagem

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que possibilitasse sua sobrevivência). 2.2 - A AÇÃO TERAPEUTICA DA RODA A capoeira é uma coisa maravilhosa; mas é uma

escola dura. Ela funciona como algo "terapêutico"; mas a "terapia",

o esforço para crescer e se tornar alguém, é um processo difícil.

Estas dificuldades geralmente não se apresentam aos iniciantes nos primeiros 5 anos.

O iniciante Nos primeiros 2 ou 3 anos de capoeira, depois da

roda, o jogador se sente mais leve. Mas breve ele está de volta à “sua realidade” onde seus problemas materiais e psicológicos o aguardam.

No entanto ele respirou mais livremente, ficou com a cuca fresca e curtiu durante um breve período de tempo. E com o passar dos anos, estas "imersões temporárias" vão se tornando num "estado de ser" quase que permanente.

Os "problemas materiais" são os mesmos mas não parecem tão sufocantes. Na verdade, estes problemas não mudaram; mas o jogador “cresceu” e os encara de

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um outro patamar. Por outro lado, os "problemas psicológicos" parecem

retroceder, pertubam menos, e alguns começam a parecer ridículos e infantís.

Esta primeira fase do aprendizado é extraordinária.

Mas não é totalmente isenta de tropeços e, até mesmo, desilusões.

Isto porque, quando o iniciante ouve um berimbau pela primeira vez, assiste ao jogo, presencia uma roda; fica deslumbrado. Sente algo no coração e intuitivamente comprende o que é o Jogo de Capoeira.

Se acreditasse firmemente nesta primeira intuição, tudo estaria bem. Mas breve, na prática, esta revelação vai ser obscurecida: o iniciante procura uma academia, entra em contato com os outros alunos mais adiantados, e se coloca sob a tutela de um mestre.

No relacionamento com colegas e mestre aparecem todas as facetas, positivas e negativas, do ser humano e da sociedade na qual vivemos. O iniciante sofre, sente-se impotente, não aceita e não compreende porque algo maravilhoso como a capoeira, ao ser ensinada e praticada, contém as mesmas mazelas e mesquinharias que afligem o resto da humanidade. Na humildade e no desamparo de quem nada conhece, o iniciante se esquece daquela primeira visão.

Em teoria, o embate do iniciante com os aspectos

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negativos de ser humano e da sociedade, dramatizados crua porém ritualisticamente dentro da roda, deveriam ser suavizados pela atuação do Mestre. Na prática, o autoritarismo e a falta de Sabedoria da maioria de professores e mestres - apenas seres humanos -, que canalizam e jogam sobre os alunos suas inseguranças e problemáticas não resolvidas, além das suas fantasias de poder e megalomania, muitas vezes chega às raias do ridículo (como acontece também em outras atividades).

Aqui vão dois exemplos que parecem até ficção da

mais estereotipada. Na verdade, já cansei de ver este filme se repetir: a realidade é, muitas vezes, mais sureal e absurda que a ficção.

Dois capoeiristas estão jogando, um é um aluno, e o outro é um mestre.

O jogo é num toque lento, angola ou benguela da regional, que pedem uma dinâmica com malícia mas sem violência. Num dado momento, inesperadamente, o aluno para uma meia-lua a dois dedos do nariz do mestre.

Pronto! Não precisa mais nada! Está armado o cenário para uma tragi-comédia

shakesperiana de araque. O que aconteceu é algo normal, pode acontecer com

qualquer um. Mas o mestre é apenas, como a maioria,

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um mestre com "m" minúsculo. Seu rosto se torna vermelho. "Que falta de respeito com o Grande Mestre! O que

os outros vão pensar?" O sangue começa a ferver. O "grande mestre" se

torna paranóico; prisioneiro que é da imagem de "Mestre" que faz questão de manter para os outros. E o "grande mestre" e parte para cima do aluno.

O aluno, mesmo sem ser muito experiente, vê que a situação mudou drasticamente: a cara do mestre é um rictus mal disfarçado, ele bufa como um touro enraivecido, os olhos parecem querer saltar para fora das órbitas! O aluno começa a jogar na defensiva sem se expôr, e fica difícil para o mestre pegá-lo de jeito, com classe. E o "grande mestre" perde as estribeiras.

Se este mestre é da capoeira regional, ele parte para

o aluno com golpes diretos e violentos - ponteira, martelo, pisão.

Enquanto o aluno vai se esquivando e fugindo como pode, o mestre vê uma abertura e solta uma meia-lua-de-compasso a mil quilometros por hora. O chute rodado sai zunindo, queimando o ar; mas o aluno está tão assustado e seu nível de adrenalina é tão alto que, por milagre e sem saber como, consegue se esquivar. Aí o "grande mestre da regional" enlouquece: dá dois socos na cara do aluno, agarra e o joga no chão, sai rolando com o coitado, e finalmente começa a estrangulá-lo com

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seu braço de troglodita. Alguns jogadores mais velhos finalmente interveêm,

separando o par. Se o "grande mestre" não é da regional, mas sim da

capoeira angola, ele não pode agir da mesma maneira pois vive criticando os "gorilas da regional".

Então o "grande mestre da angola" morde o lábio até ficar branco para não perder o auto-controle, e tenta dependurar um sorriso esperto no rosto:

"Eu sei que isto faz parte do jogo. Eu sou cabeça feita. Tô tranquilo e na minha".

Mas seu sorriso mais parece uma careta, e é mais ridículo que a máscara de touro enfurecido do regional.

O mestre ginga pra um lado e para o outro, cheio de malícia, e tenta dar uma banda (rasteira em pé) pra derrubar o aluno, e mostrar quem é o Chefe daquela roda; não consegue, o aluno balança mas dá um jeito de se safar.

O mestre tenta outra banda, não consegue de novo. Aí perde a cabeça de vez, e dá uma cabeçada

traiçoeira e viciosa direto na cara do aluno. O aluno está recuando apavorado; escorrega e sem querer escapa da cabeçada; e, de repente, tem uma idéia brilhante. O aluno para no meio da roda, junta os dois pés, fica muito ereto, e levanta uma das mãos fazendo uma chamada para o passo-a-dois!

O mestre teria de parar o jogo, aproximar-se

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lentamente, tocar a mão do aluno, e deixar-se ser levado pelo aluno para a frente e para trás...

Mas já é demais para o "iluminado grande mestre angoleiro". Ele para no meio da roda e põe as mãos na cintura com uma expressão de impotente raiva e estupidez estampada no rosto e vocifera:

"Que porra você pensa estar fazendo? Como é que você, que é um mero aluno, se atreve a chamar um mestre pro passo-a-dois? Você não tem fundamento nenhum? Não conhece a tradição? Esse é que é o problema, hoje em dia! Nenhum respeito pelos fundamentos! Nenhum respeito pelos Mestres!"

E o "grande mestre" sai da roda resmungando, o rosto branco no esforço de parecer respeitável e digno.

O que estes "grandes mestres", tanto o da regional

quanto o da angola, não percebem é que acabaram de assinar um atestado de otário. Mas, por incrível que pareça, conseguem enganar a grande maioria dos iniciantes e, até mesmo, muitos jogadores experientes.

Em terra de cego, quem tem um olho é rei. E assim caminha a humanidade. Apesar disto, sob o fascínio de um Jogo ancestral e

do som do berimbau, o iniciante atravessa aos trancos e barrancos esta primeira fase de alfabetização.

Vamos ver agora uma segunda etapa na vida do

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jogador. Com uns 3 anos de capoeira, e mais fortemente

quando chega aos 5 anos, o iniciante começa a perceber que as incoerências que o faziam sofrer - a violência, os "grupinhos" de alunos graduados, as baboseiras de seu mestre - fazem parte de um todo; fazem parte da vida.

Neste momento, várias coisas podem acontecer. Talvez o iniciante tenha se ligado a um mestre

cabeça-de-bagre, e ao perceber isto procura outra academia.

Talvez ele se conforme e continue na mesma academia pois já fez muitos amigos ali, e se trocar de academia será considerado um "traidor".

Talvez, apesar de seu mestre ser um medíocre (mas, também, um excelente manipulador), o iniciante passe por um verdadeiro processo de "lavagem cerebral" e começa a achar o seu mestre fenomenal.

Talvez o iniciante teve a sorte de cair nas mãos de um dos pouquíssimos Mestres com "M" maiúsculo.

Qualquer que seja o caso, independente do valor do

mestre, novas portas e janelas começam misteriosamente a se abrir para o iniciante (o importante não é o valor de seu mestre; o importante é que o inciante está praticando capoeira). Estranhamente, “coincidências” e encontros “por acaso” vão colocando o jogador numa outra onda vivencial.

São coisas curiosa que acontecem, e até mesmo

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coisas um tanto fantásticas. Era de se esperar que houvessem mudanças no

iniciante; e, em consequência, deveriam haver mudanças (para melhor) nas "respostas" e oportunidades que o mundo dá. Mas o que acontece é que estas "respostas" e novas oportunidades são muito maiores e mais gratificantes que o que seria esperado (em decorrência apenas das mudanças no iniciante).

É como se, de repente, finalmente o iniciante tivesse sido submergido numa corrente energética, num Axé que atravessa o tempo e as sucessivas gerações de capoeiristas. E trespassado por esta corrente energética, o iniciante atraí coisas positivas e fascinantes; portas, antes fechadas, se abrem para ele.

Mas também é agora, depois que o iniciante

"cresceu" e está saindo de sua "adolescência" (em termos de capoeira, independente da idade biológica que ele tem), que algumas escolhas e decisões se tornam problemáticas.

O jogador com 5 anos de capoeira Quando eu digo, "o jogador com 5 anos de capoeira",

eu não me refiro a um cara que está fazendo 2 aulas por semana, e de vez em quando falta uma aula. Me refiro à alguém que, até pode ter tido este envolvimento "light"

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durante os primeiros 2 anos; mas depois se empolgou, e passou a treinar 5 vezes por semana; já sabe tocar berimbau, visita ocasionalmente outras academias, e já jogou em várias outras rodas de outros estilos, etc.

E aqui aparece o divisor de águas entre os que vão

viver a capoeira cultivando e desenvolvendo a “alegria de viver”; e os que também vão viver a capoeira, mas escolhem usá-la primordialmente como uma ferramenta/arma de Poder pessoal.

Na verdade, o jogador trabalha sempre com estas duas facetas; mas em muitos jogadores é evidente que está mais para um "time", do que para o outro.

Esta escolha - “alegria de viver” ou "poder" - existe

em todos os estilos e segmentos da capoeira. Determinado estilo não é primordialmente ligado à “alegria de viver”, enquanto outro é ligado ao "poder".

Por sua vez, a Capoeira não faz uma crítica moral a esta escolha ou àquela. Cada um faz sua escolha, e usufrui as benesses e aguenta o retranco de sua escolha.

A "alegria de viver", ou o "poder"? Vejamos estas duas possibilidades; "alegria de viver"

ou "poder":

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1. Desenvolvendo a “alegria de viver”. Da mesma maneira que a “alegria de viver” ajuda o

jogador a ter prazer e se divertir dentro da roda, a “alegria de viver” vai extravasar da roda para o dia-a-dia do jogador.

O jogador se torna menos tenso, mais tranquilo e relax, menos paranóide. Sem perceber, começa a adotar uma nova e “natural” atitude.

Isto geralmente é o resultado do jogador ter "entendido" determinadas coisas:

Há também uma atitude mental a ser seguida pelo aprendiz, a qual, sem dúvida, facilitará o seu desenvolvimento - físico, mental, espiritual. Esta atitude esta bem expressa em pequenos provérbios populares que são a essência da filosofia da malandragem. Por exemplo: "Quem não pode com mandinga, não carrega patuá" ( cada um deve conhecer seus limites e possibilidades); "Urubu pra cantar demora", ou o equivalente "Bater papo com otário é jogar conversa fora", etc. De todos os provérbios, um dos mais importantes é o que diz: "Valente não

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existe". Isto não quer dizer que o aprendiz tem que ser machão e enfrentar qualquer um. O significado é outro: é importante o principiante não se deixar enganar pela aparência e pela conversa de alguns. A verdade é que todos somos - em menor ou maior grau - inseguros nesta ou naquela área. "Valente não existe". (22)

Ou seja, um problema no caminho do iniciante é que

ele foi educado, e se formou, dentro de uma sociedade machista; dentro de uma sociedade que valoriza os "homens de verdade", que são "corajosos", que vão para a guerra "defender o seu país" (na verdade, defender os interesses e a grana dos que tem o dinheiro e o poder).

O problema é que, esta sociedade onde o inciante cresceu e foi educado e se formou, é uma sociedade de "otários"; e o iniciante se tornou um deles. Por isso existe o aviso: "...é importante o principiante não se deixar enganar...".

No entanto esta escolha - "alegria de viver" (ao invés

do poder) -, mesmo que o principiante esteja de olhos abertos e pensando com a própria cabeça (sem ser um teleguiado, com a cabeça feita pelos valores

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estereotipados da sociedade), não é uma opção que se mantém constante, sem ser questionada pelo próprio jogador que a escolheu.

Por exemplo: vamos imaginar um jogador com bom nível técnico, já com uns 7 ou 10 anos de prática, que escolheu a "alegria de viver" e, em consequência, é um "cara legal" para com os mais fracos e mais novos. Este jogador pode tomar uma porrada de um camarada arrogante e escroto numa roda. Vários jogadores tipo "alegria de viver", que viveram esta situação, me confidenciaram, com decepção, que "a maioria daqueles babacas mais fracos e mais novos (que o jogador protegia e ajudava), se voltaram cheios de admiraçao e puxa-saquismo para o jogador escroto e arrogante que me deu a porrada".

Será que vale a pena ser um cara legal se a maioria das pessoas são uns babacas fascinados pelo Poder?

Será que o melhor não é botar pra fuder? E fodam-se os fracos! 2. Como ferramente/arma de Poder. Outros capoeiristas não escolhem a "alegria de viver"

como seu eixo principal; escolhem usar a capoeira primordialmente como uma ferramenta para adquirir "Poder", e também como uma arma a ser exercitada sobre os outros. É a escolha mais comum, pois a maioria dos mestres está nesta frequência; e seus alunos, em geral, seguem-na.

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Para este segundo grupo, as respostas da Vida são ainda mais impressionantes.

O jogador precisa ver o ser humano escondido (em si e nos outros) por trás do invólucro físico, e da máscara social que apresentamos à sociedade. Se isto nãp acontecer, o principiante será orientado por uma série de falsos conceitos e idéias estereotipadas: o valente machão, os golpes mortais, a superioridade de um tipo de luta sobre outras, "meu grupo é o que está certo, e os outros errados", "meu mestre é superior aos outros", etc. Com o passar do tempo e dos treinos, o iniciante que foi influenciado por estas falsas idéias se transformará num ídolo de pés de barro, um monumento de bases frágeis. Confiará na luta e não no lutador; terá golpes possantes, mas na vida não confiará em si mesmo. Desenvolverá seus músculos e sua técnica, mas não sua força de espírito. Confiará na força de seu grupo, mas, no íntimo, sentirá medo de tudo e de todos, tendo

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necessidade de constantemente acusar os outros grupos e mestres disto e daquilo, para poder se afirmar. Na rua poderá dar porrada num e noutro - e necessitará fazer isto cada vez mais amiúde por causa de sua (falsa) imagem, duramente construída. Mas ao enfrentar alguém de cabeça fria e com um mínimo de recursos de defesa, ficará apavorado, com medo de ser revelada a grande farsa que é sua vida. Na sequência dos acontecimentos, sentirá necessidade de andar armado, e então perceberá que outras pessoas andam armadas também. Num outro nível, mais social que físico, o jogador que seguiu idéias estereotipadas sentirá a necessidade de construir um (falso) discurso e uma fachada social (equivalente à fachada física de músculos e técnica que descrevemos anteriormente). E aqui, também, o jogador viverá no medo de ser descoberto. Não terá mais amigos com aos quais pode verdadeiramente se mostrar, terá apenas

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"alunos" e "inferiores". E, como defesa, terá de usar constantemente o ataque; pois seu discurso e a sua fachada social não correspondem a realidade do que ele realmente é (geralmente uma pessoa totalmente fascinada pelo poder, sem a capacidade de gozar a vida). E a penosa progressão destas paranóias não tem fim, transformando-o num mentiroso; num covarde que persegue os mais fracos; num puxa-saco dos poderosos e dos violentos; num ditadorzinho insatisfeito que nunca consegue se satisfazer. (23)

Na roda, este jogador ligado ao "poder" usa a técnica

e a força para enfiar a porrada nos mais fracos, e breve tem uma turma de puxa-sacos que acham que ele é o maximo. Ou, ao invés da violência e da brutalidade, usa sua técnica e malícia e, na sequência, usa um discurso que o valoriza (sempre dizendo que é um cara muito humilde, etc. e tal).

No entanto, apesar do papo 171 ("eu sou muito humilde"), o jogador do tipo "Poder" realmente assume uma atitude de “humildade” face àqueles que estão mais

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adiantados no jogo (sejam os do caminho do "Poder", sejam os do “alegria de viver”). Mas assim que se sentir superior, vai enfrentá-los no “jogo duro”, até mesmo descambando para a porrada.

Conforme o resultado, vai assumir uma posição mais alta na hierarquia do Poder; ou voltará à antiga posição (no caso de levar porrada; ou o outro desmoralizá-lo dando-lhe, p.ex., uma rasteira, no tempo e na técnica, que o faz cair de bunda no chão). E vai fazer isto de forma "natural"; não existe nenhuma "covardia" no ato de botar o rabo entre as pernas e "voltar à sua antiga posição"; as coisas "são assim mesmo".

Por outro lado, um jogador pode decidir mudar de

uma categoria para outra, conforme os acontecimentos da época, e, quem sabe, mais tarde voltar à sua categoria inicial (ou não).

É bom lembrar que os jogadores de uma categoria jogam com os jogadores da outra, dentro da roda, num ambiente em que não há regras fixas (o que é diferente do esporte, onde as regras definem os relacionamentos entre jogadores). E isto faz com que as fronteiras entre os dois "times" sejam muito frágeis, muito fáceis de transpor.

Além disto, a Ética da capoeira, longe de ser um “politicamente correto” lúdico-não-violento, é a bizarra malícia. Isto facilita o trânsito entre um "time" e outro, pois não há um julgamento moral, e todos conhecem os

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dois lados da moeda. É fácil mudar do time da "alegria de viver", para o

time do "poder". É só começar a dar porrada nos mais fracos, e assumir uma pose arrogante.

Mas o contrário nem sempre é possivel. Mudar do "poder" para o time da "alegria de viver" é

sempre difícil. Pois o cara ficou conhecido como "porradeiro"; os outros "porradeiros" (especialmente os mais novos) vão sempre jogar duro com ele para ganhar prestígio.

E, por outro lado, a turma da "alegria de viver" não vai engolir a mudança do ex-"porradeiro" com tanta facilidade; pois o "porradeiro" passou anos enchendo o saco e pertubando as rodas.

Para passar de "porradeiro" da turma do "poder", para a turma da "alegria de viver", demora anos - no mínimo uns dez.

O jogador, ex-"poder", terá de trabalhar isolado - se afastando dos "porradeiros", e não sendo aceito pelos jogadores da "alegria de viver" -, e ir formando seus alunos, até que, com o tempo, e se ele tiver real carisma, vai finalmente assumir uma posição sua, reconhecida por todos, já na sua maturidade.

Outros "problemas" também surgem para o jogador

com mais de 5 anos de capoeira. Muitas vezes, independente de ser da "alegria" ou do

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"poder", ele sai da roda pesado, chateado, sem entender porque não rendeu mais; e sente falta daquela maravilhosa sensação de leveza e euforia do seu tempo de iniciante.

Evidentemente isto é o resultado de uma mania de perfeição; de ser "sempre bom"; de não aceitar que a vida tem altos e baixos; de esquecer que na capoeira não há juiz, nem vencedor e vencido, e que primordialmente ela é uma "brincadeira" e uma "vadiação".

O cara está contaminado pela competição que grassa na sociedade. Mas mesmo sabendo disto racionalmente, continua insatisfeito pois está "sabendo" só com a cabeça.

A escolha das atividades práticas Na prática o jogador tem um determinado número de

horas que pode (ou que quer) dedicar à capoeira. Digamos que ele dedica 4 horas diárias, e que 2

horas são dedicadas ao treino, e ao jogo na roda; que é o equivalente a fazer "uma aula de capoeira". O que fazer, o que exercitar nas 2 horas restantes?

Esta escolha tem muito a ver com a escolhe de dar

primazia ao "poder", ou à "alegria de viver". 1. O jogador pode escolher:

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- treinar o jogo no "toque de iúna" (da capoeira regional), que puxa um jogo lúdico e harmônico com altos desenvolvimentos artísticos;

- treinar o "miudinho" (criação de mestre Suassuna), um jogo no chão que exige alta técnica e flexibilidade;

- fazer exercícios de alongamento que o tornarão mais flexível, e protegerão seu corpo de distensões. etc.

- treinar os toques de berimbau; treinar o atabaque e as dezenas de ritmos que existem no candomblé; treinar o pandeiro e começar a frequentar as rodas de samba;

- ler livros sobre capoeira; aumentar seus conhecimentos teóricos.

2. Ou o jogador pode escolher: - tomar anabolisantes e malhar muito ferro

(halterofilismo), criando uma massa muscular e desenvolvendo sua fôrça;

- se for um pouco mais informado, em vez de anabolisantes (que prejudicam a saúde a médio prazo) poderá tomar "supletivos alimentares", proteínas sintéticas, etc., e malhar muito ferro (halterofilismo), criando uma massa muscular e uma fôrça quase tão impressionantes quanto à gerada pelos anabolisantes;

- treinar boxe, jiujitsu, muai thai, aumentando seus conhecimentos de luta, aumentando seu poderio bélico;

- participar de lutas livres de ringue, onde aprenderá a dar e a levar porrada, familiarizando-se, na prática, com a violência.

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O jogador que se dedicou mais ao grupo (1) de

atividades, está se tornando um capoeira, e um ser humano, mais completo e mais evoluído.

Mas o jogador que se dedicou mais às práticas do grupo (2), pode entrar na roda e, utilizando da força e de técnicas de violência, dominar o outro. Com a fôrça física e a violência o jogador pode impedir o outro de apresentar seus aspectos lúdicos e artísticos. E pode detonar, na base da "porrada", o outro jogador (que até poderá estar, na verdade, mais adiantado no "geral').

Só depois de uns 15 ou 20 anos de treino é que finalmente os jogadores do grupo (1) estarão prontos a enfrentar os do grupo (2) quando estes últimos levam o jogo para a porrada. Isto acontece porque o "porradeiro" (grupo 2) chegou ao limite do aumento de sua força muscular, e das técnicas de violência; e o jogador do grupo (1) já teve tempo suficiente para desenvolver toda a parte mais sofisticada, e aos poucos foi também dominando as técnicas de violência.

É durante estes 15 ou 20 anos que acontece a "ação terapêutica da roda", semelhante a uma "análise psicanalítica em grupo", mas muito mais profunda, crua, e completa, pois além da palavra e da mente, também envolve o corpo, a luta, a porrada, a dança e o ritual.

Vamos ver, então, o que pode acontecer numa roda tendo em vista a possibilidade desta "terapia capoeira".

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A dinâmica terapêutica da roda Vamos imaginar que a roda está rolando. O ritmo é

são bento grande, um ritmo rápido que facilita o aparecimento (e permite até certo ponto) de um jogo mais próximo à luta.

Dois jogadores com uns 5 anos de prática começam a jogar. Um está mais ligado à "alegria de viver" e, além dos treinos normais, tem exercido as práticas do grupo (1); o outro está se tornando um conhecido "porradeiro", é mais ligado ao lance da conquista do "poder", e tem se dedicado às práticas do grupo (2).

Começam a jogar. Vamos dizer que, neste exemplo fictício que estamos dando, o jogador (1) mostra que tem mais jogo que o jogador (2). Mas, agora, o jogador (2) fechou seu jogo, não se expõe mais, vai atacando (1) utilizando somente chutes diretos e golpes de mão violentos.

O jogador (1) tem duas opções: - ou sai na porrada com (2), entrando num terreno

que não domina e que também não gosta; - ou faz somente um ou dois movimentos e, então, se

aproxima de (2), aperta sua mão e termina o jogo saindo da roda. Neste caso, (2) fica no meio da roda com um sorriso arrogante enquanto a plebe ignara olha-o cheio de admiração!

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Mas eis que um outro jogador - vamos chamá-lo (1*) -, também "alegria de viver", mas com 10 anos de prática, entra na roda e compra o jogo com o "porradeiro" (2) (que só tem 5 anos de capoeira).

O (2) tem duas opções: - começa a jogar cheio de deferência e sorrisos para

(1*). E é bom entender que (2) não se acha covarde por esta atitude, é apenas a lei da selva: se (1*) é melhor então (2) vai botar o rabo entre as pernas;

- ou então, (2) fecha seu jogo e ataca (1*), mas já sabendo que (1*), mesmo sem usar violência, só usando a técnica, vai detoná-lo, ou mesmo ridicularizá-lo, dando uma rasteira quando for atacado por (2), jogando (2) de bunda no chão. E a plebe otária e ignara fica olhando embasbacada para (1*).

Mas eis que um quarto jogador - vamos chamá-lo (2*)

-, que também é "porradeiro", mas tem 10 anos de treino e jogo (semelhante a 1*), entra na roda para jogar com (1*).

Ora (1*), ligado à "alegria de viver", acabou de "dar uma lição" no "porradeiro" (2). Mas (1*) sabe que não tem chances de detonar (2*), e (2*) já atacou (1*).

O que (1*) irá fazer? Sair na porrada, com evidente desvantagem, com

(2*)? Parar de jogar, apertar a mão de (2*) e sair da roda

(deixando o "babaca do 2*" como alvo da admiração

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geral)? Um "intelectual" pode achar estes exemplos ridículos,

e que estas pessoas citadas são primárias e ignorantes. Mas, na verdade, isto também acontece, com outras "roupagens", no meio acadêmico, nas artes, nos negócios, dentro da família, etc., só que de forma velada; e as situações muito raramente chegam a um confronto radical.

Na capoeira, o confronto é sempre radical e acontece diariamente na roda; com o jogador sendo observado por todo o resto de sua comunidade. E é neste contexto que o jogador faz suas opções, como vimos com (1), (2), (1*) e (2*).

Estas opções, que mexem com o ego, com o machismo, com as noções de "covarde" e "valente", com o narcisimo e a vaidade, e com todos os etc dos jogadores, são parte do duro aprendizado que acontece na Roda.

É a Roda com sua (involuntária, efeito colateral) ação terapêntica.

NOTAS: (22) CAPOEIRA, Nestor. Galo Já Cantou. RJ: Arte

Hoje, 1985, p. 125. (23) Ibidem, p.134.