Capoeira: movimento e malícia em jogos de poder e resistência

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAIS

    Programa de Ps-graduao

    Mestrado em Psicologia

    CAPOEIRA:

    MOVIMENTO E MALCIA EM JOGOS DE PODER E RESISTNCIA.Sonaly Torres da Silva

    Belo Horizonte2007

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    Sonaly Torres da Silva

    CAPOEIRA:movimento e malcia em jogos de poder e resistncia

    Dissertao apresentada ao Mestrado emPsicologia da Pontifcia Universidade Catlica deMinas Gerais, como requisito parcial para aobteno do ttulo de Mestre em Psicologia.

    Orientador: Joo Leite Ferreira Neto

    Belo Horizonte

    2007

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    FICHA CATALOGRFICAElaborada pela Biblioteca daPontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais

    Silva, Sonaly Torres da.S586c Capoeira: movimento e malcia em jogos de poder e resistncia / Sonaly

    Torres da Silva. Belo Horizonte, 2007.140f.

    Orientador:Joo Leite Ferreira NetoDissertao (Mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais.

    Programa de Ps-Graduao em PsicologiaBibliografia.

    1. Capoeira. 2. Foucault, Michel, 1926-1984. 3. Poder. 4. Resistncia(Psicanlise). I. Ferreira Neto, Joo Leite. II. Pontifcia UniversidadeCatlica de Minas Gerais. Programa de Ps-Graduao em Psicologia. III.Ttulo.

    CDU: 394.3

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    Sonaly Torres da Silva

    Capoeira: movimento e malcia em jogos de poder e resistncia

    Dissertao apresentada ao Mestrado em Psicologia da Pontifcia Universidade

    Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre

    em Psicologia da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, rea de

    concentrao processos de subjetivao, Belo Horizonte, 2007.

    ________________________________________

    Joo Leite Ferreira Neto (Orientador) PUC Minas

    ____________________________________

    William Csar Castilho Pereira - PUC Minas

    ____________________________________

    Regina Duarte Benevides de Barros - UFF

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    DEDICATRIA

    A meus pais, Jos e Marli, com gratido e

    amor. A meus irmos Fernando e Juliano,

    com carinho.

    A minha filha Lssia, presena de luz e

    alegria em minha vida.

    A Marco Antnio, pelo amor, pacincia e

    aconchego de l.

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    AGRADECIMENTOS

    IQuando eu aqui chegueiQuando eu aqui chegueiA todos eu vim louvarVim louvar a DeusPrimeiroMorador desse lugar

    Agradeo a Deus, guia e protetor em todos os momentos dessa grande

    ddiva e aventura que a vida.

    Agora eu t cantandoCantando dando louvorT Louvando a Jesus Cristo

    Por que nos abenoou

    Cantando, dando louvor e agradecendo s pessoas que fizeram da trajetria

    deste trabalho um encontro feliz: s amigas e aos amigos, que contriburam para a

    produo desta pesquisa com leitura, sugestes, dilogo, presena.

    Aos membros da Associao de Capoeira Leno de Seda, que me acolheram

    com generosidade, disponibilizando suas experincias e seus saberes.

    equipe do Colgio Padre de Man e ao Centro Universitrio do Leste de

    Minas Gerais - UNILESTEMG, pelo apoio e incentivo.Aos funcionrios e professores do Mestrado de Psicologia da PUC-MINAS,

    em especial ao Professor Dr. Joo Leite Ferreira Neto, que conduziu a orientao

    desta pesquisa com confiana, ateno e sensibilidade.

    h viva meu Deush viva meu Mestre

    A Reginaldo Consolatrix - Mestre Reginaldo Vio - meus agradecimentos,

    reverncia e reconhecimento da generosidade, sabedoria e maestria com queacompanhou minha iniciao na capoeiragem e a produo deste trabalho.

    viva meu DeusI viva meu MestreMestre Vio,Que me ensinouA CapoeiraI a capoeiraCamar.

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    RESUMO

    Este trabalho apresenta um estudo sobre a experincia da capoeira,no intuito de investigar

    a emergncia da resistncia mediante diferentes configuraes de poder. Atravs da

    abordagem da capoeira como experincia, buscamos abarcar a diversidade que a constitui

    e explorar suas conexes com o universo de produo das relaes sociais, da cultura, da

    ancestralidade, do poder, do saber, das resistncias. O conceito de resistncia, neste

    trabalho, inspirado em Foucault e refere-se principalmente capacidade de criao,

    inveno do novo, de diferentes formas de ser e viver. A partir dessa nfase, pretendemos

    pesquisar as diferenas engendradas na prtica da capoeira no decorrer de sua histria e,

    principalmente, como se configura a resistncia na capoeiragem contempornea. Para

    realizao de tal tarefa, desenvolvemos uma pesquisa qualitativa por meio de um estudo de

    caso da Associao de Capoeira Leno de Seda, grupo de Timteo-MG. Ao coligar a

    experincia desse grupo a elaboraes terico-acadmicas, temos o objetivo de promover o

    encontro entre saberes e prticas. Problematizar a capoeira em sua forma historicamente

    singular, articular o conhecimento cientfico s memrias e experincias locais, sem

    hierarquizaes, para alcanar o que permite a constituio de um saber histrico de lutas e

    a utilizao desse saber nas tticas do presente. Na contemporaneidade, diante das formas

    hegemnicas de poder que operam, principalmente, atravs da produo de subjetivaes

    dominadas, capturadas pela lgica do consumo, tendo o marketing como principalinstrumento de controle e de modulao, as experincias que propiciam a singularidade, a

    emergncia de subjetivaes autnomas, so formas de resistncia essenciais.A Capoeira

    Angola, ao articular aspectos heterogneos como msica, dana, ancestralidade,

    ritualidade, luta, rompe contornos subjetivos e produz a conquista da malcia como arte da

    existncia contempornea. A produo da malcia prtica infinita, processo que

    potencializa o conhecimento de si para se transformar continuamente, engendrando

    singularidade. Essa produo constitui-se na relao com o outro, em prticas

    eminentemente coletivas. Portanto, as resistncias na capoeira emergem com a conquistada malcia que produzida na roda, onde o corpo, em festa, conecta universos corporais e

    incorporais, engendra novos campos de possibilidades em processos de singularizao que

    podem alcanar dimenses scio-polticas.

    Palavras-chave: capoeira, Foucault, poder, resistncia, processos de subjetivao, malcia.

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    ABSTRACT

    This paper presents a study about the experience of capoeira. It had the intention of

    investigating the emergency of the resistence different kinds of power. From the capoeira

    approach as an experience, we try to include the diversity that makes it and exploring the

    relationship between this practice and the universe of producing social relationship, culture,

    returning to the ancestral, power, knowledge, resistence. The concept of resistence

    approached on this paper, inspired on Foucault, refers itself to the capacity of creating,

    inventing the new, the different ways of being and living. To make this job , it was developed

    a qualitative research by a specific study on the Associaao de Capoeira Leno de Seda, in

    Timoteo- MinasGerais. In articulating the experience of this group to theoretical-schoolastic

    productions, we had the objective of promoting the association of knowledge and practice,

    creating a situation for the capoeira in its historically singular way, linking the knowledge to

    the memories and local experiences, without creating hiearchy, trying to reach what permits

    the composition of a historical knowledge of fights and the use of this knowledge in currently

    tactics.In contemporaneity, before hegemony ways of showing power that works in producing

    dominated subjectivity, captured by the consuming logic,having the marketing as the main

    tool to control and modulation, the experiences that propitiate the singularity, the emergency

    of autonomous subjective. The Capoeira Angola, articulating heterogenous aspects such as

    songs, dance, ancestrality, rituality, and fights breaks the subjective outlines and makes theconquest of malcia as contemporaneous art. the production of this malcia is an endless

    practice, a process that potencialize self-knowledge to self-transform continuously envolving

    singularity. This production is made in the relationship with the partner in eminent collective

    practices. Therefore, the resistence in capoeira emerges with the conquest of malcia

    produced in the circle, where the body conects body and non-body universes, engenders

    new fields of possibilities in singularizing processes that can reach socio-political dimensions.

    Keywords: capoeira, Foucault, power, resistence, subjective process, malcia.

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    SUMRIO

    1. INTRODUO..........................................................................................................................................................10

    2. O MTODO ..............................................................................................................................................................19

    2.1. Especificidades da pesquisa de campo............................................................................................21

    3. A CAPOEIRA NO BRASIL ...................................................................................................................................273.1. A provenincia de uma tradio..........................................................................................................27

    3.2. No pas escravocrata, dana e luta por liberdade...........................................................................30

    3.3. A vadiao: escapada das tcnicas disciplinares...........................................................................38

    4. A CAPOEIRAGEM DA LENO DE SEDA NAS TRAMAS HISTRICAS ...........................................46

    4.1. Na cidade do apito... desobedea: a capoeira na cidade de Timteo.......................................46

    4.2. A conexo da capoeiragem com a Sociedade Cultural Pasrgada e a emergncia de

    novos acontecimentos...................................................................................................................................54

    4.2.1. Dexeu Fal..................................................................................................................................................................................55

    4.2.2. A Capoeira na Escola Estadual Capito Egdio Lima.................................................................................................56

    4.2.3. A Festa da Criana Pasrgada...........................................................................................................................................61

    4.2.4. Eixos transversais......................................................................................................................................................................65

    5. A CAPOEIRAGEM EM TEMPOS DE MODERNIDADE LQUIDA..........................................................67

    5.1. As tcnicas de governo contemporneas: a modelizao de sujeitos consumidores e os

    atravessamentos no universo da capoeiragem......................................................................................72

    5.2. Os processos de subjetivao e a emergncia da resistncia pela via da singularidade.....77

    5.3. O corpo: das modelizaes dominantes s maquinaes de resistncia...............................83

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    6. CAPOEIRA ANGOLA: TRADIO E CRIAO EM UM DILOGO CORPORAL QUE

    POTENCIALIZA A VIDA.............................................................................................................................................86

    6.1. Angola de Pastinha: filosofia e fundamentos baseados na alegria............................................88

    6.2. Na roda de Angola, grande e pequeno sou eu...............................................................................92

    6.3. A produo da malcia e a arte da existncia na contemporaneidade...................................107

    6.3.1. Ocupar-se de si uma prtica constante, desenvolvida ao longo da existncia............................................107

    6.3.2. A prtica de si como uma ocupao regulada, um trabalho com prosseguimentos e objetivos. ...........109

    6.3.3. Quem quiser cuidar de si deve procurar a ajuda de um outro...............................................................................115

    6.3.4. As artes da existncia abrem campos de produo de subjetivaes autnomas e singulares.............119

    6.3.5. A prtica de si como uma ao poltica..........................................................................................................................121

    7. CAPOEIRA E ATUALIDADE.............................................................................................................................122

    8. CONSIDERAES FINAIS..............................................................................................................................130

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................................................................................137

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    1. INTRODUO

    Neste estudo, pretendemos investigar como emergem resistncias no

    movimento da capoeira. Chamamos ateno para o fato de que o conceito de

    resistncia abordado neste trabalho, inspirado em Foucault, refere-se principalmente

    capacidade de criao, inveno do novo, de diferentes formas de ser e viver.

    Movimento refere-se tanto a se mover e se flexibilizar no ato de capoeirar quanto a

    se mover no mundo, no universo social, estabelecer articulaes entre pessoas e

    grupos, em todos os nveis de foras materiais e sociais. Mobiliza um desejo de viver

    e mudar o mundo em uma experincia de movimento social.

    Por meio da prtica prolongada da capoeira emerge a malcia, que no est

    vinculada raiz da palavra, que pressupe a maldade, o mal, mas a um saber

    conquistado. A conquista da malcia, na capoeiragem, engendra um conhecimento

    de si e do mundo que potencializa a produo de singularidade, em um processo de

    movimento infinito. Portando, investigar a resistncia na capoeiragem implica em

    trilhar um caminho de tradio, luta, contestao e tambm criao, flexibilidade,

    reinveno contnua, articulada ao desejo de produo de novas formas de viver e

    conviver.

    Segundo Foucault (1977), resistncia e poder so conceitos inter-

    relacionados. O poder no algo transcendente ou uma substncia que se possa

    possuir ou delegar, mas algo imanente, que se manifesta como prtica, exerccio. A

    resistncia, por sua vez, inerente ao poder, ou seja: onde h exerccio de poder h

    resistncia:

    H sempre, com certeza, alguma coisa no corpo social, nas classes, nosgrupos, nos prprios indivduos que escapa, de uma certa maneira, srelaes de poder; alguma coisa que no a matria primeira, mais oumenos dcil ou recalcitrante, mas que movimento centrfugo, a energiainversa, a escapada(FOUCAULT, 2003, p. 244).

    A questo que propomos entender como se d essa escapada, como se

    engendra a resistncia na capoeiragem, mediante diferentes configuraes do

    poder.

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    Hartmann (2003), ao discorrer sobre a trajetria de Foucault, aponta que,

    inicialmente, o poder compreendido como relao de foras em um contexto

    assimtrico, enquanto a resistncia contra-fora, negao, contestao que

    emerge no interior dessas relaes. Porm, na seqncia de sua obra, quando

    surge a compreenso de que o poder exercido no somente atravs de tcnicas

    de dominao, mas tambm de processos autnomos de subjetivao, a resistncia

    passa a ser entendida de maneira positiva, como ao que vai alm da reao e se

    realiza na criao.

    O entendimento da resistncia nessa perspectiva, como emergncia de aes

    novas e inventivas, possibilita a passagem para um lugar de produo da diferena

    em um exerccio de liberdade, suscitando no aqui e agora a possibilidade dereinventar a si mesmo, criando, individual e coletivamente, novas formas de viver.

    a partir dessa nfase que buscamos investigar as diferenas engendradas na prtica

    da capoeira no decorrer de sua histria e, principalmente, as configuraes da

    resistncia na capoeiragem contempornea.

    Pontuamos que pesquisar a capoeira nessa perspectiva suscita

    peculiaridades tericas e metodolgicas. A primeira relativa ao campo terico e

    refere-se ao fato de que a abordagem da capoeira no universo cientfico quasesempre se deu pelo vis da cultura: a capoeira como cultura popular, manifestao

    da cultura negra ou da cultura afro-brasileira. Destacamos a importncia de tais

    abordagens, pois entendemos que os objetos culturais so constitudos por meio de

    prticas sociais e histricas, atravessados por formas de sociabilidade, de relaes

    intersubjetivas, de grupos, de classes, da relao com o visvel e com o invisvel,

    com o tempo e o espao, com o possvel e o impossvel, com o necessrio e o

    contingente (CHAU, 1987, p. 122). A capoeira uma prtica cultural, pois seengendrou a partir dessa tenso de foras que se conectam nas prticas sociais

    atravessadas por relaes de poder e resistncia, no contexto da vida com

    entrelaamentos de universos visveis e invisveis, abarcando dimenses do corpo,

    do movimento, dos ritmos, dos desejos, da alegria, da dor, da luta.

    Todavia, Guattari e Rolnik (2005) apontam que a palavra cultura, em

    algumas circunstncias, pode se tornar uma cilada que impede de pensar os

    diversos processos presentes nas prticas sociais e histricas. Conforme os autores,

    h vrios sentidos para o conceito de cultura no decorrer da histria, dentre os quais

    destacamos os de cultura-valor e cultura-alma. A culturavalor corresponde a um

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    julgamento de valor e determina quem tem cultura e quem no tem, sendo usado

    para designar diferentes nveis culturais em sistemas de valor: as culturas clssicas,

    populares, cientficas, artsticas. Nessa perspectiva, a capoeira abordada como

    manifestao da cultura popular brasileira. O sentido da cultura-alma sinnimo de

    civilizao e remete ao fato de que todos tm uma cultura, todos podem reivindicar

    identidade cultural. Com esse sentido, emergem tanto o etnocentrismo quanto uma

    espcie de policentrismo cultural, com vrios eixos etnocntricos. A abordagem da

    capoeira enquanto manifestao da cultura afro-brasileira emerge mediante o

    sentido cultura-alma. Porm, na opinio dos autores, a cultura-alma isola uma esfera

    da cultura em oposio a outros nveis tidos como heterogneos e desconsidera que

    a produo de sentido na cultura de um povo, etnia ou grupo social acontecearticulando esferas diversas, tais como as da arte, da maneira de produzir bens, de

    produzir relaes sociais.

    Chau (1982) tambm aponta alguns riscos ao abordarmos a questo da

    cultura. Enfatiza que, na expresso cultura popular, o termo popular pode ser

    associado ao populismo, uma poltica de manipulao das massas no qual o

    popular, ao mesmo tempo em que deve ser valorizado, tomado como realidade

    bruta que necessita ser educada e controlada. Dessa ambigidade resulta umaimagem de cultura popular ideal, cuja efetivao dependeria de uma vanguarda

    esclarecida(CHAU, 1982, p. 61). Outro risco refere-se ao fato de que, no encontro

    de uma cultura do povo com o autoritarismo das elites, as manifestaes populares

    podem tanto negar ou recusar as culturas dominantes quanto reafirm-las. A autora

    destaca que os dominantes tm interesse em conduzir a noo de popular para a

    noo de nacional, em uma universalizao que impossibilita sociedade

    relacionar-se com suas particularidades, com suas diferenas. Essa lgica deuniversalizao est presente inclusive quando a cultura popular entendida como

    cultura dominada e tende-se a mostr-la como invadida, aniquilada pela cultura de

    massa, (...) envolvida pelos valores dominantes, (...) manipulada pela folclorizao

    nacionalista(CHAU, 1982, p. 63).

    Observamos nessa abordagem a presena constante de dicotomias,

    contrapondo cultura popular e cultura dominante, diversidade e universalidade,

    cultura de massa e cultura de elite. Na viso de Chau (1987), quando tomada pelo

    prisma das dicotomias, a abordagem da cultura pode sofrer reducionismos por estar

    enquadrada em concepes do bem ou do mal, conforme a convenincia

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    ideolgica do pesquisador. Dito de outro modo, a palavra cultura pode tornar-se

    uma palavra-cilada, que nos impede de pensar a realidade dos processos em

    questo(GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 23)

    Na presente pesquisa, pretendemos desvencilhar-nos dessa cilada da

    abordagem dicotmica, no intuito de alcanar a polifonia, a heterogeneidade que se

    conecta e constitui a capoeiragem: os diferentes saberes e culturas, as diversas

    formas de relacionar-se com o outro e com o mundo, as diferentes maneiras de

    produzir bens, o universo da arte, os atravessamentos de poder e resistncias, em

    processos contnuos de transformao e criao, em diferentes tempos e espaos.

    Nessa perspectiva, no vamos discorrer sobre a capoeira no campo da cultura, seja

    pelo vis da cultura-alma, como manifestao da cultura afro-brasileira, ou comocultura popular. Ressaltamos que a capoeira, em seu percurso histrico, foi

    classificada de diferentes formas: como crime, como esporte, hoje figurando nas

    polticas pblicas no campo da cultura. Entretanto, Guattari afirma que a questo

    que se impe na contemporaneidade

    (...) no mais quem produz a cultura ou quais vo ser os recipientesdessas produes culturais, mas (...) como produzir novos agenciamentosde singularizao que trabalhem por uma sensibilidade esttica, pela

    mudana da vida num plano mais cotidiano e, ao mesmo tempo pelastransformaes sociais (...) (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p.29-30).

    Entendemos que essa questo coloca em cena o campo de reflexo para o

    qual pretendemos direcionar nosso trabalho, a saber: como se configura a

    resistncia na prtica da capoeira, ou como a capoeiragem potencializa a criao de

    novas formas de vida.

    Optamos, portanto, por abordar a capoeira como uma experincia. Segundo

    Foucault (1984), uma experincia articula esferas diversas e constitui-se no

    entrelaamento de trs eixos correlatos: a formao dos saberes que a ela se

    referem; os sistemas de poder que regulam sua prtica e as formas pelas quais os

    indivduos podem e devem se reconhecer como sujeitos [...] (FOUCAULT, 1984,

    p.10). Entendemos que pesquisar a capoeira enquanto experincia possibilita

    abarcar a diversidade que a constitui nos entrelaamentos entre saberes, relaes

    de poder e processos de resistncia com maior distanciamento de possveis

    dicotomias.

    Contudo, ressaltamos que a nfase dessa abordagem est em investigar a

    transformao que se produz na capoeiragem, uma vez que a experincia alguma

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    coisa de que se sai transformado, que nos desprende do que somos, em um

    processo de emergncia da diferena (FOUCAULT, 1984). Nesse sentido,

    buscamos, na capoeira, a diferena produzida, as transformaes engendradas

    nessa prtica, tanto na perspectiva individual quanto na coletiva.

    Enfim, entender a capoeira como experincia significa explorar as conexes

    dessa prtica com o universo da produo de bens, relaes sociais, poder, cultura,

    saber, para alcanar os pontos de transformao, a diferena engendrada nos

    processos de subjetivao individuais e coletivos, as formas de resistncia.

    Outra peculiaridade relativa abordagem da capoeira nessa pesquisa de

    ordem metodolgica. Muitos dos pesquisadores que investigam e escrevem sobre a

    capoeira so capoeiristas. Assim, estando imersos no mundo da capoeiragem,vivenciando no corpo essa prtica, apropriam-se de conhecimentos inapreensveis

    queles que, como esta pesquisadora, observam de fora. Reconsiderando, talvez

    fora no seja a palavra mais adequada para designar a perspectiva na qual me

    coloco para investigar a capoeira. possvel que o mais adequado seja considerar

    um espao entre, que fora e dentro. Dentro da roda, no como um dos atores do

    jogo, mas imerso em um universo de sons, movimentos, ritmos, ritualidades que

    envolvem e contaminam todos que se aproximam e se deixam afetar por essaexperincia.

    Dizer da capoeira sem ser capoeirista como entrar na roda de forma

    propensa a escorregar, a no ser suficientemente perspicaz para compreender e

    dizer das nuances e malcias que emergem no mundo da capoeiragem. Segundo

    Abib (2004), esse universo hermtico aos no-iniciados, guardando mistrios e

    segredos inapreensveis racionalidade cientfica, com uma lgica diferenciada, na

    qual predominam outras temporalidades, outras formas de transmisso de saberes,de conceber o divino, outros modos de ser e estar no mundo.

    Ressaltamos que a capoeira uma experincia que articula diversos

    universos: msica, dana, luta, jogo, religiosidade, memria. atravessada por

    relaes de poder e engendra processos de subjetivao que transitam entre a

    tradio e a inveno, a repetio e a criao do diferente. Nessa prtica, so

    engendrados saberes com uma lgica de produo e transmisso singulares, que

    perpassam o movimento, o corpo, a oralidade, a ritualidade e extrapolam a

    racionalidade acadmica cartesiana. Discorrer sobre os sentidos e significados

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    dessa vivncia no universo cientfico uma tarefa peculiar, sujeita a deslizes e

    escorreges.

    Porm, como se canta na roda, escorregar no cair, um jeito que o corpo

    d (...)1. Reconhecemos as possveis dificuldades para articular as elaboraes

    acadmicas s nuances e lgica diferenciada da experincia da capoeiragem, mas

    acreditamos que essa tarefa se torna possvel a partir de uma construo

    metodolgica diferenciada. Uma aproximao mais sensvel, com o intuito de captar

    o movimento, a singularidade de um saber no apenas racional, ou, conforme

    Guattari (1992), um saber que no se manifesta atravs de um conhecimento

    puramente cientfico, mas por intermdio de afetos estticos complexos.

    Nessa perspectiva, necessrio empreender uma construo terico-metodolgica, no intuito de contribuir para a produo de uma racionalidade

    diferente. Conforme Abib (2004), uma racionalidade mais alargada, que possibilite

    apreender essa lgica diferenciada, singular, colocando-a em dilogo com o saber

    acadmico, hegemnico, sem hierarquizaes, dicotomias ou maniquesmos.

    Potencializar o encontro de diferentes saberes e prticas, abrir espaos de dilogo,

    nos quais haja maiores condies de superao por parte dos marginalizados.

    De acordo com Foucault (1986), atravs da articulao de vivncias esaberes regionais com fundamentaes tericas acadmicas, do acoplamento do

    conhecimento cientfico s memrias e experincias locais, que poderemos alcanar

    o que permite a constituio de um saber histrico de lutas e a utilizao desse

    saber nas tticas atuais. Contudo, perguntamos: como estabelecer, neste trabalho,

    essa articulao e esse acoplamento?

    Na viso de Abib (2004), os mestres tm papel fundamental na preservao e

    transmisso dos saberes produzidos na capoeira, uma vez que, nas prticas em quea transmisso do saber est calcada na oralidade, o mestre exerce a funo de

    guardio da histria de seu povo. ele que corporifica a ancestralidade, sendo

    capaz de desvendar, anunciar, rememorar lutas, sofrimentos, alegrias, vitrias,

    vivncias e saberes das geraes passadas, com fora instauradora que rompe o

    presente, conecta o passado e abre novas temporalidades. O autor afirma que a

    funo do mestre na capoeira anloga do poeta na Grcia antiga: a poesia no

    mundo grego tem sentido de produo, a ao de trazer presena algo que

    1 Corrido que se canta na roda. O corrido uma improvisao musical que acompanha o jogo decapoeira.

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    estava oculto. A palavra do poeta aquela que, ao ser pronunciada, desvela o que

    se mantinha encoberto, trazendo tona a verdade, instaurando e mantendo uma

    compreenso de mundo, articulando todo um universo de significados. Para

    Foucault (1995a),

    (...) o poeta aquele que, por sob as diferenas nomeadas ecotidianamente previstas, reencontra os parentescos subterrneos dascoisas, suas similitudes dispersadas. Sob os signos estabelecidos e apesardeles, ouve um outro discurso, mais profundo, que lembra o tempo em queas palavras cintilavam na semelhana universal das coisas (FOUCAULT,1995a, p.64).

    Na capoeiragem, principalmente na Capoeira Angola2, o lugar de mestre

    evoca o poeta: as palavras do mestre ganham dimenso da poesia, palavras vivas

    que fluem semelhana das coisas. Gestos e movimentos produzem linguagens

    poticas que conectam pontos diversos, fundem passado e presente. Partindo da

    relevncia do mestre no universo da capoeiragem, tomaremos seu discurso como

    um dos elos de articulao entre saberes engendrados na capoeira e saberes

    cientficos, evocando esse discurso ao longo de todo o trabalho.

    Observamos ainda que, segundo Foucault (1995), a maneira mais propcia

    investigao sobre poder e resistncia implica no apenas em estabelecer relaes

    estreitas entre teoria e prtica, mas tambm em usar a resistncia como catalisador

    qumico de modo a esclarecer as relaes de poder (FOUCAULT, 1995, p.234).

    Portanto, na tessitura do texto dessa pesquisa, buscaremos guiar-nos pela

    experincia da capoeira, acionando a prtica dos capoeiristas da Associao de

    Capoeira Leno de Seda no decorrer de todo o trabalho.

    Em funo dessa peculiaridade, apresentamos no captulo seguinte a

    metodologia utilizada no processo da presente pesquisa. Nele, descrevemos a

    construo metodolgica, com a especificao das tcnicas utilizadas, e

    apresentamos o grupo pesquisado, uma vez que esse trabalho se configura como

    uma pesquisa qualitativa desenvolvida atravs do estudo de caso da Associao de

    Capoeira Leno de Seda - ncleo de Timteo/MG. Esse grupo foi fundado em 1978,

    2 A capoeira contempornea praticada em dois estilos diferentes. A Capoeira Angola um estilocaracterizado por um jogo com movimentos mais prximos ao cho, em um processo de dilogo

    corporal. Trata-se de um jogo encadeado, no qual o movimento de um capoeirista diretamenteintricado ao de seu contendor, numa articulao contnua de perguntas e respostas corporais.Observa-se, na Capoeira Angola, a manuteno dos rituais e tradies da capoeiragem, umaconexo com a ancestralidade. No captulo seis, apresentamos os fundamentos da Capoeira Angola.

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    pelo mestre Reginaldo Vio3 e seus amigos, na cidade de Timteo, Minas Gerais.

    Atualmente, conta outros ncleos em atuao no Brasil, Itlia e Chile e afiliado

    Associao Brasileira de Capoeira Angola - ABCA de Salvador/BA, instituio que

    referncia brasileira das prticas de Capoeira Angola.

    No captulo trs, acessamos a experincia da capoeira por meio da

    abordagem de alguns pontos que sinalizam mudanas no decorrer da trama

    histrica. Ressaltamos que nosso intento no discorrer sobre toda a histria da

    capoeira no Brasil, mas elucidar pontos de diferenciaes que nos parecem

    significativos. Percorrendo alguns dos fios que se entrelaam na teia dessa

    experincia, pretendemos compreender como essa prtica surgiu no contexto

    brasileiro, como se transformou e engendrou novas resistncias diante de diferentesformas de poder. Priorizamos os pontos que tm conexo com a experincia da

    Associao de capoeira Leno de Seda.

    No quarto captulo, apresentamos a experincia da Associao de Capoeira

    Leno de Seda, sua gnese na cidade de Timteo e alguns acontecimentos que

    expressam como diferentes formas de resistncia emergiam no contexto urbano, em

    conexo com a capoeiragem da Leno de Seda.

    O captulo seguinte discorre sobre a capoeira na contemporaneidade. Nele,buscamos compreender as configuraes de poder contemporneas e como emerge

    a resistncia na prtica da capoeira nesse contexto. Destacamos que, diante das

    capturas capitalsticas dos processos de subjetivao, da produo de sujeitos

    consumidores, a capoeira transforma-se com atravessamentos e capturas de formas

    de poder hegemnicas. Questionamos, ento, se a capoeiragem pode ser, ainda

    hoje, considerada uma prtica de resistncia, ou quais as formas de resistncia que

    se produzem na capoeiragem em nosso tempo.No captulo seis, discorremos sobre a capoeira Angola, no intuito de investigar

    como essa experincia, por meio da conexo entre tradio e inveno, pode

    produzir novas formas de resistncia. Partimos do pressuposto de que roda de

    capoeira se configura como um espao-tempo que abre campos de possibilidades,

    processos de inveno, emergncia da singularidade. Investigamos como essa

    singularidade, produzida na capoeiragem com o processo de construo da malcia,

    pode desencadear uma nova forma de arte da existncia.

    3 Pseudnimo de Reginaldo Consolatrix, mestre de capoeira da Associao de Capoeira Leno deSeda.

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    2. O MTODO

    menino aprenda a ler / menino aprenda a ler.D uma chance a seu saber.Vai e faa capoeira, pra voc se defender.Capoeira tem histria fundamentada em segredos,Quando parece t sria, ela no passa de brinquedo.Nela no se aprende tudo, mais se ganha habilidade.Quanto mais voc pratica mais conhece a liberdade.(MESTRE MOA DO KATEND, 2003)

    Reafirmamos que desenvolver um estudo sobre a capoeira no campoacadmico um desafio, pois significa promover o encontro entre conhecimentos e

    saberes produzidos a partir de lgicas muito diferentes. De acordo com Abib (2004),

    os saberes das cincias contemporneas tm como base uma racionalidade

    herdada do pensamento cartesiano, sustentada pela lgica de verificao analtica,

    de demonstrao da verdade, com pretenso de universalidade. Tal racionalidade

    nem sempre abarca a multiplicidade do real, tampouco as singularidades do

    universo da capoeiragem.Sendo assim, para discorrer sobre a capoeira necessrio reaprender a ler,

    como se canta na ladainha, pois a capoeira tem histrias e saberes fundamentados

    em segredos. Ento, dizer da capoeira no universo acadmico requer uma

    metodologia que possibilite problematizar essa experincia em sua forma

    historicamente singular e reativar saberes locais, (...) para torn-los capazes de

    oposio e de luta contra a coero de um discurso terico, unitrio, formal

    (FOUCAULT, 1986, p.172). Com o intuito de desenvolver um trabalho nessa

    direo, optamos por uma abordagem metodolgica em proximidade com a

    genealogia foucaultiana.

    Esclarecemos que uma abordagem singular, local, no implica em ausncia

    de rigor. Foucault (2003) aponta que um trabalho genealgico tem sua generalidade,

    sua sistematizao e sua homogeneidade.

    A generalidade apresenta-se nos modos de problematizao, na maneira de

    analisar questes historicamente singulares em seus aspectos de alcance geral, e

    significa abrir problemas to concretos e gerais quanto possvel (FOUCAULT,

    2004, p.220). Ao investigarmos a experincia da Associao de Capoeira Leno de

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    Seda, pretendemos problematizar questes locais, singulares, com atravessamentos

    gerais em relao capoeira no Brasil e s formas de resistncia na

    contemporaneidade.

    A sistematizao est na articulao da pesquisa em torno de trs eixos, nos

    quais preciso analisar a especificidade e o intrincamento: o eixo do saber, o do

    poder e o da subjetividade.

    Em relao homogeneidade, trata-se de tomar como domnio homogneo

    as formas de racionalidade que organizam as maneiras de fazer (aspecto

    tecnolgico) e a liberdade com a qual os homens agem nesses sistemas prticos,

    reagindo e modificando o que os outros fazem (verso estratgica). De acordo com

    o autor, a homogeneidade assegurada pelo domnio das prticas, com sua versotecnolgica e sua verso estratgica. Dessa maneira, Foucault contempla, na

    homogeneidade, a diversidade, pois, em cada contexto, em cada local, as verses

    tecnolgicas e estratgicas assumem formas particulares e singulares.

    Entendemos que, na capoeira, essa articulao entre aspecto tecnolgico e

    verso estratgica pode ser observada no processo de aprendizagem, que se d

    durante os treinos e na roda. Nos treinos, h um processo de repetio dos golpes,

    movimentos corporais que so a base da capoeira, institudos desde sua origem.Esses movimentos, como a ginga, o a, o rabo de arraia, apesar das transformaes

    ao longo da histria, preservam uma base que se repete, como uma tecnologia que

    caracteriza a prtica da capoeira. No entanto, comum, no universo da

    capoeiragem, a fala de que h uma capoeira para cada capoeirista, uma vez que

    cada um constri e cria um jeito prprio de gingar, de se movimentar e de jogar.

    Durante o jogo, na roda, aqueles golpes e movimentos adquirem uma verso

    estratgica. Atravs da liberdade de ao, particularidades e multiplicidadesemergem a cada movimento, num processo de inveno singular de cada jogador,

    grupo e/ou linhagem de mestre. Essa articulao entre as verses tecnolgica e

    estratgica pode ser observada tambm nas msicas, nos ritmos do berimbau, nas

    histrias, enfim, em todos os elementos que compem essa experincia que gera

    singularidades. Assim, reiteramos nossa opo por uma abordagem na perspectiva

    genealgica, por entend-la adequada a uma pesquisa sobre a experincia da

    capoeira na contemporaneidade.

    Destacamos, ainda, que compreendemos a complexidade de uma pesquisa

    genealgica e no nos posicionamos como genealogista puro-sangue, mas como

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    pesquisadora que se lana na experincia de investigar a capoeira com a inteno

    de produzir um trabalho terico-tico-poltico, articulando a coerncia terica com as

    formas particulares de produo de saber e subjetivao que emergem na

    capoeiragem.

    2.1. Especificidades da pesquisa de campo

    A Associao de Capoeira Leno de Seda, no decorrer de seus 28 anos de

    histria, atuou e atua em locais e frentes muito diversificadas, sempre ligados amovimentos educacionais, sociais e culturais. Atualmente, os capoeiristas da Leno

    de Seda desenvolvem atividades de capoeira no Brasil e no exterior, em escolas,

    empresas, reas comunitrias e na sede da associao, atuando junto a crianas,

    adolescentes e adultos. Diante dessa variedade de experincias, fez-se necessria

    a utilizao de estratgias metodolgicas diversas e tambm a inveno de modos

    especficos no uso das tcnicas de pesquisa, no processo de investigao sobre a

    histria e as vivncias contemporneas desse grupo.A articulao histrica entre passado e presente colocada aqui no em uma

    relao causa/efeito, mas no sentido de apreender os processos de mudanas

    histricas conectadas aos acontecimentos contemporneos, que tambm esto em

    movimento. Uma atitude histrico-crtica, para abrir um domnio de pesquisas

    histricas e se colocar prova da realidade (FOUCAULT, 2003). Nessa direo, foi

    realizado um estudo de caso da Associao de Capoeira Leno de Seda, tendo

    como foco o grupo da cidade de Timteo. Foram utilizados os seguintes

    procedimentos: pesquisa documental, observao participante, entrevistas

    individuais semi-estruturadas e grupos focais.

    A pesquisa documental constou de leitura e anlise de reportagens, cartazes

    de divulgao, letras de msicas, panfletos, regimentos internos, atas de reunio e

    outros escritos. Foram acessados tambm fitas de vdeo, fotos e CDs gravados pelo

    grupo.

    A observao participante teve incio no segundo semestre de 2005 e tornou-

    se, no decorrer do processo, o que Cruz (1996) denominou uma participao

    observante, significativo envolvimento no cotidiano do grupo e na prtica da

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    capoeira. Essa mudana no uso da tcnica se configurou a partir do primeiro contato

    com o mestre Reginaldo Vio para apresentao da proposta da pesquisa. Nessa

    ocasio, o mestre disse que, para pesquisar a capoeira na Leno de Seda, era

    necessrio experimentar a capoeiragem, colocando o corpo para jogar, pois existem

    aspectos dessa vivncia que s compreende quem pratica. Finalizando, o mestre

    ressaltou: sobre a capoeira eu converso com capoeiristas, no com

    capoeirlogos"4.

    Com a palavra capoeirista, o mestre referia-se s pessoas que vivenciam a

    capoeira com o corpo, enquanto capoeirlogos seriam os que estudam e falam

    sobre a capoeira sem experimentar corporalmente essa prtica, o que equivale

    letra da ladainha5 que diz: vai e faa capoeira, nela no se aprende tudo, mas seganha habilidade. Provavelmente, habilidade para buscar compreender ou alcanar

    os mistrios da capoeiragem.

    Assim, iniciou-se o trabalho de participao observante, incluindo a

    experimentao corporal da capoeira.

    (...) alm de proporcionar o registro objetivo das atividades e eventos, essasituao de aprendiz colocou-me diante de um mundo subjetivo, devivncias emocionais, afetivas, que pesaram muitssimo na minha

    interpretao e anlise(CRUZ, 1996, p.157).

    Em relao s entrevistas semi-estruturadas, a escolha dessa tcnica ocorreu

    em consonncia com alguns aspectos relevantes da capoeira. Abib (2004) observa

    que, na capoeira, a oralidade exerce papel fundamental. por ela que se d a

    transmisso das histrias, das vivncias, dos saberes da capoeiragem. Sendo

    assim, a entrevista de pesquisa inestimvel, principalmente se realizada na forma

    de entrevista reflexiva, ou seja:

    (...) como um encontro interpessoal no qual includa a subjetividade dosprotagonistas, podendo se constituir um momento de construo de umnovo conhecimento, nos limites de representatividade da fala e na busca deuma horizontalidade nas relaes de poder (...) (SZYMANSKI, 2004, p.14).

    De acordo com Szymanski (2004), uma entrevista na perspectiva reflexiva

    deve considerar o momento da entrevista como processo de interao entre

    entrevistador e entrevistado, atravessado por diversos aspectos: emocionais,

    contextuais e de relaes de poder, sistemas de crenas e valores. Assim,

    4Informao verbal obtida em entrevista realizada em 06/02/06. 5 Ladainha um estilo de msica que se canta na roda de capoeira.

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    significados so construdos e a entrevista torna-se um momento de organizao de

    idias e de produo de um discurso para o interlocutor, o que caracteriza um

    recorte da experincia, um saber particularizado. Ratificamos, ento, a relevncia da

    entrevista em uma pesquisa sobre a capoeira, sendo um momento de organizao

    do discurso sobre essa prtica que tem, na oralidade, uma forte tradio de

    transmisso de saberes.

    Nessa perspectiva, foram realizadas cinco entrevistas semi-estruturadas.

    Foram entrevistados o mestre de capoeira da Associao, um contramestre, dois

    professores e a madrinha do grupo. A opo pela entrevista semi-estruturada deu-se

    mediante o fato de que essa estratgia permite focar temas e/ou questes do

    estudo, ao mesmo tempo em que possibilita ao entrevistado abord-los utilizandohistrias e relatos de experincias, com uma margem de liberdade.

    Os entrevistados, ao serem citados no decorrer desse trabalho, so

    identificados pelo nome atravs do qual so conhecidos no universo da

    capoeiragem. Ressaltamos que Mestre Reginaldo Vio, Pepinha, Jorginho

    Escorpio e a Madrinha Flor fazem parte da associao desde sua gnese. No caso

    do Professor Maia, a capoeira e a Associao Leno de Seda que fazem parte da

    histria de sua vida desde a infncia.Com esse universo de entrevistados, acreditamos contemplar duas

    dimenses em relao experincia da Leno de Seda. A primeira diz respeito ao

    tempo de vivncias no percurso histrico do grupo. A segunda refere-se

    diversidade das experincias e ao espao de atuao. Professor Maia atua na ilha

    de Sardegna, na Itlia, onde fundou e coordena as atividades da Associao de

    Capoeira Malta dos Zuavoz e participa ativamente da elaborao e execuo de

    projetos desenvolvidos na sede. Pepinha, Jorginho Escorpio e Madrinha Floratuam na cidade de Timteo, Minas Gerais, e compem, juntamente com mestre

    Reginaldo Vio, o ncleo que orienta e coordena as aes realizadas na Sede da

    Associao.

    Jorginho oferece aulas de capoeira para as crianas do bairro onde mora.

    Pepinha atua como capoeirista contratado pela Rede Municipal de Ensino,

    ministrando aulas de capoeira para crianas de 6 a 15 anos em escolas situadas em

    bairros perifricos da cidade.

    Madrinha Flor pedagoga e, alm de acompanhar as atividades da sede,

    atua como elo entre a capoeiragem e o universo escolar. A funo de madrinha

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    emerge na capoeiragem mediante o ritual do batizado. Conforme mestre Bola Sete

    (CRUZ, 2006), o batizado um ritual de iniciao em que o aluno recebe seu nome

    de guerra na capoeiragem, posto por um padrinho, que pode ser seu mestre, mestre

    convidado ou um capoeirista mais experiente. Nos batizados da Leno de Seda,

    emerge e figura da madrinha, que, conforme Flor, tem a funo de ser elemento de

    apoio, contribuindo para a sensibilizao e busca do equilbrio diante dos conflitos

    nas relaes do grupo na capoeiragem. comum, no universo da capoeiragem

    baiana, que os capoeiristas acessem, atravs do candombl, a fora do feminino

    presente nos aconselhamentos e bnos das suas mes-de-santo. De acordo com

    Mestre Reginaldo Vio6, na trajetria da Leno de Seda, a madrinha coloca em cena

    a dimenso do feminino, uma fora que acompanha, incentiva, aconselha, acolhe,suaviza e equilibra a potncia de luta. Madrinha Flor desempenhou e desempenha

    esse papel no grupo, principalmente para os capoeiristas da primeira gerao de

    crianas que se formaram na Leno de Seda.

    Mestre Reginaldo Vio, no cumprimento de sua funo de mestre,

    acompanha e orienta a prtica da capoeiragem em todos os grupos que compem a

    Associao e dirige os trabalhos e prticas de capoeira da sede, em Timteo. H

    aproximadamente trinta anos, Mestre Vio atua tambm na rea da sade, comoterapeuta em medicinas alternativas inspiradas em tcnicas chinesas ou hindus,

    com prticas de acupuntura, quiropatia, shiatsu, tui-na, leitura corporal, florais e

    homeopatia. Sua experincia no campo teraputico articula-se capoeiragem: para

    ele, a capoeira constitui-se tambm como prtica teraputica. Em seu discurso,

    sobre a capoeira, observamos a presena de vocabulrio e de elementos similares

    queles presentes no campo da sade, o que no expressa apenas uma

    coincidncia de palavras, mas a aproximao em relao a alguns conceitosabordados nessa pesquisa.

    O trabalho com grupo focal foi concebido a partir da interseo entre cinco

    pesquisadores que desenvolviam trabalhos acadmicos em relao histria da

    Leno de Seda: trs monografias de concluso de cursos de especializao nas

    reas de educao e produo cultural e dois trabalhos de dissertao de

    mestrado um na rea de Histria e o outro, nossa pesquisa.

    6 Informao verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.

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    De acordo com Meier e Kudlowiez (2003), o grupo focal uma tcnica que

    propicia o encontro de pessoas ligadas entre si por constantes de tempo e espao,

    articuladas em torno de uma tarefa. Busca-se, nesses encontros, instituir um locus

    facilitador de expresso e propiciar a manifestao de percepo, crenas, valores,

    atitudes e representaes sociais sobre o tema em questo, alm de possibilitar a

    investigao e a produo de conhecimentos.

    Nessa perspectiva, aconteceram trs encontros entre os pesquisadores e

    membros da Associao de Capoeira Leno de Seda, com objetivo de conhecer

    todos os projetos de pesquisas e discutir a histria da Associao. Foram

    apresentados os projetos e seus respectivos objetos de estudo, os pontos de

    conexo das pesquisas com a histria da Leno de Seda e, principalmente, osrelatos, a discusso e a anlise de fatos e acontecimentos que os membros da

    Associao consideram importantes. Simultaneamente, foram colocados

    disposio dos pesquisadores os arquivos documentais da Associao.

    O grupo focal foi de grande importncia para essa pesquisa. Alm de

    propiciar relatos da histria da Associao e lembranas de acontecimentos

    passados, possibilitou ao grupo uma reflexo sobre a Instituio na

    contemporaneidade, engendrando a produo de novos conhecimentos.Destacamos que as diversas atividades desenvolvidas no processo de

    pesquisa, alm de possibilitar ao grupo espaos de reflexo acerca de sua histria e

    experincias contemporneas, desencadearam tambm novos acontecimentos.

    Dessa forma, o processo de pesquisa aproximou-se da abordagem metodolgica

    denominada pesquisa-ao. Minayo (1996), citando Thiollent, aponta que a

    pesquisa-ao se caracteriza como um tipo de pesquisa no qual h uma estreita

    articulao com uma ao ou resoluo de um problema coletivo um processo noqual pesquisador e participantes esto envolvidos de modo cooperativo e

    participativo na realizao da referida ao.

    Ressaltamos que, no presente trabalho, no havia inteno inicial nessa

    direo, todavia, em seu processo a pesquisa constituiu-se como experincia que

    produziu transformaes nas prticas do grupo, da pesquisadora e no prprio ato de

    pesquisar. Essa experincia, atravessada por diferentes fatores, funcionou como

    catalisador de novas aes, novos acontecimentos. Dentre eles, a realizao de dois

    encontros, nos quais se reuniram membros da Associao de Capoeira Leno de

    Seda, pesquisadores e convidados da comunidade: pessoas que estiveram

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    presentes no decorrer do percurso histrico da Associao, educadores,

    representantes do poder pblico, de movimentos sociais, professores universitrios

    e outros.

    O primeiro encontro, denominado Nas voltas que o mundo d - encontro de

    Pesquisadores, foi realizado em agosto de 2006. Nele, foram apresentadas as

    pesquisas em andamento, seus enfoques tericos e as diferentes abordagens da

    experincia da Leno de Seda. No decorrer das apresentaes, os convidados

    participaram com explanaes, questionamentos e debates.

    Entre o primeiro e o segundo encontro, outro acontecimento emergiu: os

    membros da associao, em parceria com a pesquisadora deste trabalho,

    elaboraram um projeto de recuperao e conservao de acervo histrico,encaminhado ao Fundo Estadual de Cultura e, posteriormente, selecionado e

    aprovado. Esse fato desencadeou novas aes, inclusive a realizao de um

    segundo encontro, em dezembro de 2006. Nele, o projeto de recuperao e

    conservao do acervo histrico da Associao foi apresentado comunidade,

    destacando-se a importncia desse acervo para pesquisas sobre a histria da

    Instituio e da cidade de Timteo. Houve tambm reflexes e debates em torno dos

    temas memria, identidade e transformaes nas formas de resistncia queemergem na capoeira e na prtica da Leno de Seda, articulada vida na cidade de

    Timteo.

    Os eventos citados demonstram como o processo de pesquisa produziu

    diferenas na experincia do grupo, tendo sido um dos elementos desencadeadores

    de acontecimentos que alcanaram a comunidade e continuam se multiplicando em

    novas aes, como a alterao, no final de 2006, do regimento da Associao, com

    a incluso de novos departamentos, entre eles, um de relaes acadmicas euniversitrias. Alm disso, houve o planejamento e a organizao do grupo para a

    realizao do trabalho de recuperao do acervo a ser realizado em 2007 e a

    preparao de novo encontro para apresentao da pesquisa, aps sua concluso.

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    3. A CAPOEIRA NO BRASIL: ARTICULAES DE PODER E DE LIBERDADE

    NAS RODAS E NA VIDA

    3.1. A provenincia de uma tradio

    L onde a alma pretende se unificar, l onde o Eu inventa para si umaidentidade ou coerncia, o genealogista parte em busca do comeo doscomeos enumerveis que deixam esta suspeita de cor, esta marca quaseapagada que no saberia enganar um olho, por pouco histrico que seja; aanlise da provenincia permite dissociar o Eu e fazer pulular nos lugares erecantos de sua sntese vazia, mil acontecimentos agora perdidos(FOUCAULT, 1986, p.20).

    comum, no universo da capoeiragem, a discusso sobre a origem da

    capoeira. Alguns afirmam que ela veio da frica, outros, que uma experincia

    produzida em terras brasileiras. Contudo, quando nos propomos a discorrer sobre a

    gnese da capoeira, no buscamos um ponto original, mas investigar como essa

    experincia se engendrou, como se formou a teia que gerou a capoeiragem: os

    inumerveis comeos no processo de sua produo, as marcas singulares, as

    disperses, as conexes de diferentes universos que se entrecruzaram e

    propiciaram o advento dessa prtica no contexto brasileiro - enfim, sua provenincia

    (FOUCAULT, 1986).

    Rego (1968) aponta a dificuldade em se afirmar a origem da capoeira, pois

    existem poucos registros sobre a data da chegada ou sobre a procedncia dos

    negros que aqui aportavam como escravos. Segundo o autor, h historiadores

    africanistas com tendncia a considerar que os primeiros negros aportados emterras brasileiras seriam de Angola. Nas cantigas, nos toques, nos movimentos e

    nas histrias da capoeira, comum a referncia capoeira de Angola, assim como

    a associao de sua origem s danas-rituais do sudoeste da frica. A partir dessas

    informaes, poderamos crer que a capoeira teve sua origem no continente

    africano. Esse discurso corrente no universo da Capoeira Angola, assim como nas

    elaboraes de pesquisadores que defendem uma africanizao dessa experincia.

    Contudo, uma pesquisa sobre a provenincia da capoeira incita-nos a buscar aheterogeneidade do que se imaginava o nico elemento fundante.

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    Abib (2004) sinaliza traos de singularidade no surgimento da capoeira,

    quando diz que ela brotou espontaneamente, de forma heterognea, em diferentes

    locais do Brasil. Aponta que importante considerar a existncia de outras

    manifestaes semelhantes capoeira tal como a conhecemos em nosso pas no

    s na frica, mas tambm em vrios pontos da Amrica. Ressalta que (...) no

    podemos desconsiderar o processo hbrido que caracterizou a formao das

    manifestaes afro-brasileiras e mesmo as afro-americanas(ABIB, 2004, p.87).

    Em relao aos povos africanos que chegavam ao Brasil no perodo da

    escravido, Rego acrescenta que, alm da sua capacidade de imaginao,

    buscavam os negros elementos de outros folguedos e de coisas outras do

    quotidiano para inventarem novos folguedos, como teria sido o caso da capoeira(REGO, 1968, p.32). Mestre Reginaldo Vio, ao discorrer sobre o surgimento da

    capoeira, apresenta alguns dos elementos, ou coisas outras do cotidiano que se

    articularam na produo desse novo folguedo:

    O surgimento da capoeira, eu vejo tambm de uma maneira diferente, claroque no foi uma coisa intencional, foi mais uma coisa que resultou dasconjunturas ali do momento... ningum se props a criar uma luta. E aquiloveio de que maneira ento? Veio da lembrana dos animais da frica, veiodas lembranas das danas primitivas, veio da necessidade de inventarbrincadeiras pras crianas, pros adolescentes, dar pra eles atividade ldica,de prazer (...). Ento, ali se foram cruzando, inclusive, elementos do branco,elementos do ndio, que acidentalmente transitavam ali dentro. (...) Dentrodesse contexto vai resultando - eu imagino - uma coreografia que respondiaquele contexto todo (...). um momento muito rico, um fervedouro, umapanela quente fervendo cultura(MESTRE REGINALDO VIO)7

    A partir da histria contada pelo mestre, observamos que a capoeira uma

    prtica intrincada aos diversos aspectos que atravessam a vida, que traz em si

    elementos da cultura africana e incorpora outros, prprios de uma experincia

    vivenciada no contexto brasileiro, com entrelaamentos heterogneos de diferentesgrupos, culturas, saberes, desejos. Uma acontecimentalizao que, de acordo com

    Foucault (2004), emerge atravs de conexes complexas, com processos histricos

    mltiplos, produzindo ruptura das evidncias:

    (...) onde se estaria bastante tentado a se referir a uma constante histrica,ou a um trao antropolgico imediato, ou ainda a uma evidncia se impondoda mesma maneira para todos, trata-se de fazer surgir uma singularidade(FOUCAULT, 2004, p. 339).

    7 Informao verbal, obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.

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    Entendemos que investigar o advento da capoeria no Brasil implica em buscar

    rupturas diversas: da evidncia de que a capoeira uma prtica de origem africana,

    da evidncia dos contornos de identidade dos grupos e culturas, da evidncia de

    que, diante de um estado de dominao-escravido, toda prtica de liberdade

    cerceada, impossibilitada, sendo a contra-fora a nica forma de resistncia. Enfim,

    buscar as inumerveis rupturas que se abrem e se reencontram em novas

    conexes, produzindo uma experincia singular.

    Compreender a capoeira como acontecimentalizao operar por meio de

    uma desmultiplicao causal, que, na viso de Foucault (2004), consiste em analisar

    os processos mltiplos que constituem o acontecimento. Dessa maneira, investigar a

    provenincia da capoeiragem no Brasil requer analisar a condio de vida dosnegros escravos, as tradies africanas, o encontro entre diferentes etnias africanas

    e brasileiras, o contexto escravista, a conexo de diferentes linguagens. Tais

    processos devem ser descompostos, visto que cada um deles tambm se compe

    em atravessamentos diversos.

    Nessa perspectiva, necessrio considerar a capoeira como um poliedro de

    inteligibilidade (FOUCAULT, 2004, p. 340), cujo nmero de faces indefinido e

    nunca pode ser considerado concludo. Trata-se de um processo de conexesheterogneas, no qual elementos diferentes so postos em relao, de diversas

    formas, sem ponto central ou intencionalidade especfica, por meio da interao,

    fuso e conexo entre danas, msicas, religiosidade, ritualidade, corpos, desejos,

    sonhos, elementos do ndio, do negro, tradio e inveno, em movimento contnuo

    de transformao. A capoeiragem simultaneamente dana-luta-jogo, exerccio de

    alegria e liberdade do corpo na dana, demonstrao de fora, valentia e poder no

    grupo, jogo de dissimulao diante da dominao escravista, contra-fora e luta nasestratgias de fuga do negro escravo. Mediante esse polimorfismo de elementos e

    relaes, ela adquire manifestaes diferentes, a cada tempo e espao, como um

    projtil inteligente, que amadurece na medida em que caminha (MESTRE

    REGINALDO VIO)8.

    Com intuito de investigar, nesse movimento, as mudanas de direo e os

    polimorfismos que emergem, sero pontuadas algumas diferenas dessa prtica no

    decorrer de sua historia.

    8 Informao verbal, obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.

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    3.2. No pas escravocrata, dana e luta por liberdade

    A capoeiragem surgiu no Brasil em um perodo no qual predominava um

    estado de dominao, ou melhor, de dominao-escravido. De acordo com

    Foucault (2004), os estados de dominao acontecem em circunstncias nas quais

    as relaes de poder se encontram cristalizadas, com poucas possibilidades de

    reverso, com mecanismos disciplinares rgidos e coercitivos, ou seja, (...) quando

    um indivduo ou um grupo social chega a bloquear um campo de relaes de poder,

    a torn-las imveis e fixas e a impedir qualquer reversibilidade do movimento (...)

    (FOUCAULT, 2004, p.266).A partir das elaboraes de Domingues e Fiusa (1996), destacamos o estado

    de dominao estabelecido no contexto brasileiro, mediante a relao

    colonizado/colonizador. O Brasil era uma colnia de explorao sob o modelo

    mercantilista. Conforme Bosi (1998), esse mpeto mercantil e predatrio o que

    constituiu, em termos de acumulao de riquezas, a acelerao econmica da

    matriz colonizadora.

    A mo-de-obra escrava estabelece-se em conexo com esse modelo.Segundo Domingues e Fiusa (1996) a escravido do ndio era invivel, pois sua

    captura e venda gerariam negcios internos. Alm disso, o uso de mo-de-obra

    assalariada tambm era inconveniente, por gerar renda que no seria revertida para

    a metrpole. Assim, a escravido de negros africanos configurou-se como a

    estratgia mais conveniente, pois a compra de negros dos traficantes metropolitanos

    gerava mais uma fonte de renda para Portugal, que controlou o trfico negreiro

    desde o sculo XV. Autores apontam que, at o final do sculo XVIII, o Brasil haviarecebido cerca de dois milhes de negros africanos.

    Nesse cenrio, a diferena de cor torna-se o sinal mais ostensivo da

    desigualdade que reina entre os homens; e, na estrutura colonial escravista, ela

    um trao inerente separao dos estratos e das funes sociais (BOSI, 1998,

    p.106). At o sculo XVII, a sociedade brasileira apresentava uma estrutura social

    imvel e estratificada. Havia basicamente dois grupos isolados: de um lado, os

    colonos latifundirios; de outro, a grande massa de negros escravos (DOMINGUES;

    FIUSA, 1996).

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    No escravismo, os senhores colonos latifundirios exerciam plenos

    poderes sobre a vida dos negros que aqui aportavam. O exerccio do poder dava-se

    por meio de mecanismos muito severos, com tcnicas coercitivas como castigos e

    violncias corporais. Um poder exercido com plenos direitos de vida e morte, ou,

    segundo Foucault (1977), um poder de morte, pois o senhor poderia matar seu

    escravo, legitimamente, a ttulo de castigo. Buarque de Holanda (1976) relata que,

    na histria das senzalas, h muitos casos de mortes e deformaes por excesso de

    espancamento.

    Esse poder de morte associava-se a outras formas de dominao, que

    pretendiam gerir a vida. Uma delas era a separao dos negros de uma mesma

    famlia ou grupo. Quando chegavam ao Brasil, os negros se tornavam objeto de umapoltica oficial de dominao. Para evitar laos de solidariedade, grupos e famlias

    eram separadas e etnias rivais eram colocadas lado a lado (CRUZ, 1996).

    Mediante esse poder exercido em relaes de foras assimtricas, as

    possibilidades e margens de liberdade eram estreitas. A resistncia era, quase

    sempre, pelo vis da contestao, negao, reao fora, com revoltas e rebelies

    escravas negras, fugas individuais ou coletivas, rituais religiosos de vingana,

    revoltas armadas.Porm, essa resistncia negativa no era a nica: emergem,

    simultaneamente, estratgias de resistncia positivas. A chegada dos povos

    africanos ao Brasil representava no apenas a chegada de fora de trabalho, mas

    um contingente de culturas, mitos, rituais, jeitos de viver e tradies oriundas das

    terras dfrica. Esses povos inventaram formas de defesa de suas tradies e

    engendraram cdigos e prticas novas, dentre elas, a capoeira, que era, inclusive,

    utilizada pelos negros como um instrumento de luta (...) no qual o saber corporalinscrito em cada perna, brao, tronco, cabea e p podia ser transformado numa

    arma eficaz a servio da sua libertao(ABIB, 2004, p.89). Diante de um estado de

    dominao-escravido, a luta no poderia estar explicitamente manifestada:

    A coreografia que abria o cenrio, com espao para o corpo, tinha umimpulso de resistncia e tomada de conscincia das diferenas culturais, dacondio da escravido, que exigia muito uma prtica de combate. (...) Nomeu entender, a capoeira-dana camuflou a possibilidade do jogo e, alidentro, escondeu a possibilidade da luta(Mestre Reginaldo Vio)9.

    9 Informao verbal, obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.

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    Portanto, mesmo em circunstncias nas quais predominam estados de

    dominao possvel haver resistncia como processo de criatividade, que traz a

    emergncia do novo, do diferente. Nesse

    (...) quadro de adversidade, os negros desenvolveram estratgias desobrevivncia e abriram espaos onde puderam reverter certas relaes dedominao (...). A capoeira foi, sem dvida, uma das expresses utilizadaspelos negros na construo de seus espaos de liberdade (...) (CRUZ, 1996p. 25).

    Na capoeiragem, a construo de espaos de liberdade produz-se na

    conexo dana-luta-jogo, com atravessamentos de msica, ritmos, rivalidades,

    desejos, culturas, ritualidades: corpos, movimento e ritmos abrindo campos de

    possibilidades para inventar novas formas de viver e conviver. comum imaginarmos a capoeira nascendo no contexto rural, nas senzalas

    das fazendas, nos quilombos. Todavia, na opinio de Nestor Capoeira (1998), no

    contexto da cidade que seu crescimento e sua transformao foram mais

    expressivos. Reis (1997) declara que no existem pesquisas histricas acerca da

    capoeira dos sculos XVI a XVIII, o que dificulta a reconstituio do processo de

    deslocamento da capoeiragem do campo para a cidade.

    Rego (1968) cita a opinio de Nascentes10

    , segundo o qual o termo capoeirasurge a partir dos escravos que traziam capoeiras de galinhas para vender no

    mercado. Enquanto o espao de venda no era aberto, eles divertiam-se jogando

    capoeira. Cruz (1996) ressalta a importncia da capoeiragem como elemento de

    socializao dos negros e espao de interao de diferentes universos scio-

    culturais, no contexto urbano. Com as elaboraes desses autores, podemos

    observar que emergiam formas diferentes de manifestao da capoeira nos

    encontros que aconteciam nas ruas da cidade. Nesse contexto, essa experincia

    ganhou maior visibilidade, fora e intensidade.

    Segundo Buarque de Holanda (1976), a vida dos escravos nas cidades era

    mais amena, com maiores possibilidades de convvio. Os encontros que aconteciam

    no convvio urbano favoreciam o agrupamento dos negros e propiciavam tanto a

    manifestao e a conservao de tradies culturais comuns quanto a conexo

    entre povos de origens diversas e condies culturais diferentes, engendrando

    novas formas de expresso. De acordo com Abib (2004), nesses novos espaos de

    10 Antenor Nascentes autor do Dicionrio Etimolgico da Lngua Portuguesa, publicado em 1932.

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    socializao, emergiu uma cultura escrava de rua, com manifestaes diversas,

    dentre elas a capoeiragem.

    A prtica da capoeira agregava diversas etnias africanas e produzia uma nova

    maneira de lidar com as diferenas culturais, em uma experincia que entrelaava o

    exerccio livre do corpo com o ritmo, a dana - a uma potncia de luta, frente

    brutalidade a que eram submetidos os negros escravos. Na cidade do Rio de

    Janeiro, no sculo XIX, os capoeiristas eram figuras de destaque nas comunidades

    negras, tanto por sua agilidade corporal e habilidade de luta quanto por qualidades

    de liderana e companheirismo.

    A expanso e maior visibilidade das culturas negras de rua despertaram o

    temor da elite livre, criando mecanismos repressivos severos, que acentuaram asdiferenas entre negros e brancos nos espaos da cidade. Conforme Abib (2004), os

    primeiros documentos histricos nos quais aparece o termo capoeira so relativos

    cidade do Rio de Janeiro e dizem respeito a ocorrncias policiais.

    Segundo Reis (1997), os decretos que puniam os capoeiristas vinculavam a

    pratica da capoeira a pessoas negras e apresentavam uma dupla preocupao:

    punir o corpo e inibir o atrevimento e a audcia dos escravos capoeiras, sem

    acarretar prejuzos econmicos a seus senhores, ou seja, uma punio aplicadameticulosamente, ao nvel das autoridades policiais.

    Observamos aqui o fortalecimento de novos mecanismos no exerccio do

    poder, que se desloca da morte e passa a gerir a vida. De acordo com Foucault

    (1977), o poder sobre a vida biopoder desenvolveu-se a partir do sculo XVII, em

    dois eixos principais que perpassavam as relaes com o corpo: as disciplinas

    antomo-polticas e as biopolticas da populao. As disciplinas antomo-polticas

    do corpo humano centraram-se no corpo como mquina, utilizando tcnicasminuciosas para o investimento na sua docilidade, na ampliao de suas aptides,

    na extorso de sua fora, no crescimento de sua utilidade. Com as biopolticas, o

    exerccio do poder centrou-se no corpo-espcie, mediante intervenes e controles

    reguladores da populao, com nfase nos processos biolgicos e patolgicos e,

    tambm, nas condies que podem fazer tais aspectos variarem. Nas tramas

    histricas, o exerccio de poder emerge de formas variadas. Assim, as disciplinas

    antomo-polticas e as biopolticas esto presentes simultaneamente e, muitas

    vezes, associadas.

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    Na cidade do Rio de Janeiro, no sculo XIX, mediante a prtica da

    capoeiragem, observamos o exerccio do biopoder com predominncia das

    disciplinas antomo-polticas do corpo, pois a punio dos capoeiristas no deveria

    ser a morte, nem poderia ser aplicada para extinguir totalmente sua fora, mas

    dosada de maneira a resguardar parte dessa fora para a utilizao de seu senhor.

    Todavia, a predominncia das disciplinas antomo-polticas no exclua as

    biopolticas, ao contrrio: articulava-se a elas, uma vez que, concomitantemente,

    havia uma gesto da vida da cidade.

    Reis aponta que a punio do corpo era motivada pelo fato de, nele,

    materializar-se a rebeldia, o inconformismo escravo. Porm, o corpo do capoeira,

    supliciado pelo poder, o mesmo corpo insurgente que transgride a rgida hierarquiaescravista e, ao faz-lo, toma a forma de um contra-poder (REIS, 1997, p.42). As

    medidas repressivas, portanto, no conseguiam impedir a capoeiragem.

    Em meados do sculo XIX, a experincia da capoeira adquire novas formas, e

    dois pontos de diferena se destacam. O primeiro relativo ao perfil dos

    capoeiristas. At ento, a capoeira era considerada uma prtica de negros escravos.

    A partir de 1850, os registros policiais revelam uma ampliao no espectro de seus

    praticantes, abarcando tambm pessoas livres, artesos, imigrantes de diversasetnias. O segundo ponto de mudana refere-se forma de organizao dos grupos,

    com o surgimento das maltas. Se, at aquele momento, as manifestaes da

    capoeiragem eram tidas como espontneas ou ocasionais, a partir das maltas esse

    formato muda, com o aparecimento de grupos organizados.

    As maltas constituam uma unidade fundamental de atuaes planejadas dos

    capoeiras, na cidade do Rio de Janeiro. Eram compostas por grupos com trs, vinte,

    cem, duzentos integrantes, numa forma de resistncia associativa. De acordo comAbib (2004), as maltas aglomeravam parcelas marginalizadas da populao: negros

    escravos, libertos, trabalhadores pobres, desocupados, arruaceiros, biscateiros,

    delinqentes, valentes, imigrantes portugueses, franceses, ingleses e outros que

    compartilhavam os mesmos lugares sociais dentro do universo de miserabilidade

    (MELO, 2001, p. 182).

    Observamos, aqui, os primeiros registros histricos de estratificao na

    experincia da capoeira. Reis (1997) informa que as maltas possuam organizao

    interna hierrquica, com chefias, ajudantes, cabos de esquadra, classes internas

    que expressavam papis especficos a serem cumpridos por seus integrantes, que

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    eram identificados por cores, sinais, sons, assobios e demarcavam seus domnios

    apropriando-se dos espaos da cidade e conferindo a eles uma lgica popular de

    ocupao. As fronteiras territoriais das maltas eram defendidas rgida e

    violentamente contra a entrada de grupos rivais. De acordo com Cruz (1996), havia,

    inicialmente, vrios pequenos agrupamentos, que se aglutinaram em duas grandes

    maltas: Nagoas e Guayamus.

    A atuao das maltas de capoeiras colocava em foco rivalidades e conflitos

    entre grupos. Constitua-se um ethos guerreiro, que conectava afetos diversos,

    envolvia dramatizaes, coreografias, malabarismos, canes que afirmavam o

    poder do grupo a partir do destaque de personagens clebres, cantigas de desafio,

    brados de guerra, demonstrao de destreza e valentia, atos de violncia,transgresso de normas e regras socialmente institudas. Em determinados

    perodos, como nas festas religiosas ou aparies pblicas previamente anunciadas,

    os confrontos das maltas eram verdadeiros espetculos nas ruas da cidade,

    despertando fascnio e medo na populao (ABIB, 2004).

    O ethos guerreiro, que se intensificava e adquiria novas formas com as

    maltas, participava no apenas dos confrontos pblicos entre grupos rivais, mas

    tambm dos movimentos negros por liberdade, que se articulavam nos subterrneosda sociedade escravista, com a utilizao de estratgias de dissimulao e

    insubordinao, por meio de arruaas, desordem e violentas disputas nos espaos

    urbanos. Os grupos rivais lutavam entre si, mas se uniam contra o inimigo comum: a

    polcia.

    A intensificao da represso policial evidenciava-se nas cenas de violncia

    cotidiana entre os capoeiras e a polcia. Buarque de Holanda (1976) afirma que

    insurreies, crimes, negligncia eram as formas de o escravo protestar. Essaefervescncia sinalizava

    o carter iminente de uma rebelio escrava, prestes a ser desencadeada,tendo em vista o forte poder de organizao desses desordeiros que, acada dia, mostravam com maior evidncia, serem sim, capazes desfazer aordem estabelecida pela sociedade colonial-escravista(ABIB, 2004, p. 94).

    Contudo, ao mesmo tempo em que a capoeira era considerada uma ameaa

    ordem vigente e enquadrada como contraveno penal, com severa represso

    policial, identificamos outros pontos de contato entre os capoeiras e os soldados;entrelaamentos de poder e resistncia na capoeiragem. Cruz (1996) informa que os

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    militares praticavam jogos proibidos com negros e pardos e aprendiam capoeira com

    os escravos nas ruas, praas e praias da cidade. Soldados capoeiristas participavam

    de apresentaes pblicas das maltas e integrantes das maltas tambm abriam

    desfiles militares com acrobacias, danas e cantos. No obstante essas conexes

    pela via da ludicidade, do jogo, observa-se tambm o uso instrumental da

    capoeiragem no universo militar.

    Segundo Reis (1997), as instituies policiais recrutaram capoeiristas

    cariocas, tanto a partir de atos voluntrios quanto com prises arbitrrias e

    alistamento forado, principalmente quando as tropas precisavam de maior

    contingente. Durante o perodo da Guerra do Paraguai, a intensificao da incluso

    dos capoeiras na instituio militar compunha uma estratgia para fortalecer astropas e tambm para retirar das ruas os elementos indesejveis ao sistema. Essa

    guerra custou a vida de milhares de negros. Porm, o recrutamento forado de

    capoeiras no era garantia absoluta de seu adestramento. Muitos capoeiristas

    permaneciam ligados s redes de relaes sociais que os vinculavam s suas

    maltas(REIS, 1997, p. 57).

    As maltas, alm de sua potncia guerreira, de suas apresentaes ldicas

    nas praas, festas e folguedos da cidade, tambm se conectavam a movimentospolticos, articuladas monarquia. Reis (1997) aponta que, logo aps a abolio, foi

    formada uma milcia basicamente de capoeiras, arrebanhando os libertos. Esse

    exrcito de rua, a Guarda Negra, atuava principalmente nos comcios republicanos e

    agia, por ocasio das eleies, cercando o local de votao e hostilizando os

    adversrios de seu chefe poltico. Eram comuns os embates violentos entre as

    maltas e os republicanos. Em contrapartida, os capoeiras podiam atuar sem sofrer

    maiores perseguies da policia imperial.Com a Proclamao da Repblica, instituiu-se dupla oposio aos

    capoeiristas: eles eram considerados inimigos polticos e inimigos sociais. Eram

    caracterizados como vagabundos, assassinos, arruaceiros e insufladores de greves,

    pois tambm se articulavam ao incipiente movimento operrio que se formava. Na

    viso de Melo (2001), aos olhos da elite daquela poca, o universo da capoeiragem

    constitua-se como

    (...) fora de trabalho livre e mercenria, primariamente ligada monarquia.O capoeira pobre, mestre no manejo da navalha, andava em grupos,identificava-se pelo uso de fitas amarelas e vermelhas nos braos, morava,em geral, em cabeas de porco (cortios), servia aos homens do estado,

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    polcia, ao jogo do bicho, aos operrios e no servia a ningum. Eramediante a perspectiva republicana um mero dejeto social (MELO, 2001,p.186).

    Nessa elaborao, observamos o carter difuso e hbrido da prtica da

    capoeiragem: com grupos heterogneos, ela no se prendia a nenhum partido

    poltico, instituio ou ideologia e mantinha-se margem do sistema, no

    enquadrada ordem e s regras institudas. Assim, os capoeiras tornaram-se o

    principal alvo da policia nos primeiros tempos da Repblica, processo que culminou

    com a criminalizao da capoeira em 1890 (REIS, 1997). Contudo, essa

    criminalizao e a severa represso policial no extinguiram a experincia da

    capoeira. Na opinio de mestre Reginaldo Vio,

    Essa realidade histrica potencializou muito as possibilidades da capoeira, aponto de ela ganhar um status de um instrumento destacado, teorizado eelaborado dentro do Cdigo Penal, definindo punies para utilizao dela.Quero dizer, chegou uma hora em que a capoeira virou um plo dereferncia de resistncia, de luta nesse sentido mais amplo, que incomodouo prprio Estado. Nesse momento ela ganha uma expresso poltica. (...)Quando o poder se coloca diante de uma manifestao popular, simples,alegre, festeira, se posta diante dela e elabora cdigos para resistir, a gente j inverteu a lgica de quem resiste e quem se impe. a capoeira maisuma vez subvertendo as coisas. Essa dimenso poltica potencializada abrehorizonte na histria para a capoeira se colocar (MESTRE REGINALDO

    VIO)

    11

    .

    Observamos, com o depoimento do mestre, que a capoeira alcanou fora no

    contexto social e constituiu-se em um ethosguerreiro com grande potncia, a ponto

    de passar a figurar no Cdigo Penal, o que demonstra que o Estado precisou criar

    codificaes para se contrapor a essa fora. Na elaborao do mestre, destacamos

    dois aspectos em relao ao intrincamento entre poder e resistncia na experincia

    da capoeira. Primeiramente, buscamos compreender como a criminalizao se

    converteu em novos horizontes para a capoeira. Entendemos que, diante dessenovo contexto, a prtica da capoeiragem demandou mais camuflagens, espertezas e

    artimanhas, nova forma de articulao dos grupos e criao de novos cdigos como,

    por exemplo, o Toque de Cavalaria: quando a capoeiragem acontecia, nas ruas e

    praas das cidades, um dos capoeiristas ficava de tocaia, com a atribuio de

    sinalizar, atravs de um toque de berimbau diferenciado, quando a polcia estava

    chegando. Ao ouvi-lo, os capoeiristas dispersavam-se e escapavam de ser presos.

    11 Informao verbal, obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.

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    Todavia, Nestor Capoeira (1998) enfatiza que as transformaes na prtica

    da capoeira no emergem apenas como disfarce mediante a represso policial, mas

    tambm como luta no sentido mais amplo: uma estratgia social multifacetada, que

    articula a utilizao de formas violentas de contestao, a solidariedade grupal e um

    refinado modo irnico de lidar com as agruras da vida(ABIB, 2004, p.95).

    Diante dessa experincia, o Estado elabora cdigos para governar. Esses

    cdigos no se limitam criminalizao, mesmo porque a insero no cdigo penal

    no impediu que a capoeiragem continuasse a acontecer nos espaos da cidade.

    Aqui conectamos o segundo aspecto a partir do depoimento do mestre Vio: a

    mudana na forma como o Estado se posiciona diante da capoeira. O mestre, ao

    dizer da capoeira, enfatizou a dimenso alegre, festeira presente nessa experincia.Essa dimenso ldica o cdigo penal no conseguiria conter.

    3.3. A vadiao: escapada das tcnicas disciplinares.

    Em cada freguesia um africano com uma responsabilidade de ensinar, parafazer dela sua arma contra seu perseguidor, (...) se comunicavam noscantos improvisados, danava e cantava enredos, inventava truques,piculas, para dar volta no corpo, escondendo chicote, inventando misria, ocorpo todo faz miserr, cabea, mo, pernas, e s consegue com manhas(MESTRE PASTINHA apudDECNIO, 1996, p.44).

    A vadiao o termo utilizado pelos capoeiristas para designar a prtica da

    capoeiragem na qual predomina a ludicidade, a brincadeira, a alegria de

    experimentar o corpo com liberdade de movimento em conexo com o ritmo, com o

    rito, com outros corpos ou, conforme mestre Reginaldo Vio, em uma manifestao

    festeira. Sodr (1988) destaca que a festa, no universo das culturas negras,

    destinava-se renovao das foras, pois a dana, o ritmo e o rito que a

    caracterizam territorializam o corpo do indivduo, realimentando a fora csmica. Na

    viso de Cruz (1996) os capoeiristas, por meio da festa, da luta e da dana, ampliam

    sua potncia e alcanam maior poder de realizao. A intensificao da vadiao na

    capoeiragem sinaliza a diferena na emergncia da resistncia. Essa transformao

    na forma de resistncia remete a mudanas na forma de poder.

    No processo de transformaes econmicas e polticas, atravessadas por

    ideologias liberais modernas, lutas abolicionistas, revoltas e fugas negras,

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    manifestaes dos artistas e intelectuais, engendrou-se o fim do regime

    escravocrata e a Proclamao da Repblica no Brasil. Nessa trama histrica,

    observamos formas de exerccio do poder com o uso de novas tcnicas de governo.

    De acordo com Foucault, governar sempre um equilbrio verstil, com

    complementaridade e conflitos entre atos de coero e processos, nos quais o

    comportamento construdo e modificado por si mesmo. As tecnologias

    governamentais abarcam uma forma de governar aes a partir de dois mecanismos

    simultneos e relacionados: o governo do outro sobre si e o governo de si sobre si

    mesmo (HARTMANN, 2003).

    Revel (2005) aponta que as tecnologias governamentais podem ser

    observadas no conjunto das instituies, procedimentos, anlises, reflexes e tticasque permitem o exerccio de uma forma especfica e complexa de poder e que tm

    como alvo a populao, a construo da gesto poltica global sobre a vida dos

    indivduos, atravs da biopoltica. As biopolticas, associadas s disciplinas,

    constituem tcnicas de governo que operam, inclusive, por meio da distribuio dos

    indivduos no espao, do controle do tempo e da ao (FOUCAULT, 1987).

    Na cidade do Rio de Janeiro, no incio do sculo XX, observamos como as

    biopolticas atravessaram a experincia da capoeira. De acordo com Cruz (1996), areorganizao dos espaos na cidade, nesse perodo, estabelece um processo de

    mudanas radicais, com o intuito de alinhar a sociedade brasileira aos padres

    culturais e econmicos europeus. Em nome da higiene, do saneamento e do

    progresso, efetivou-se a desapropriao e a demolio de casares que abrigavam

    parcelas marginalizadas da populao. A pobreza urbana era desalojada e

    transferida para outras reas, (...) que se tornaram os depositrios das tradies

    marginalizadas pelas elites (CRUZ, 1996, p.90). Nesse contexto, a represso capoeira e sua criminalizao, alm do controle da ao, tm uma dimenso

    associada higienizao do espao urbano, pois a capoeiragem distanciava-se dos

    modelos culturais europeus e estava ligada ao mundo das culturas de rua, s

    manifestaes de festas, danas, jogos e lutas compartilhadas pelas parcelas

    marginalizadas da populao.

    Abib (2004) aponta que, provavelmente, nunca uma experincia cultural

    causou tanta preocupao aos dirigentes brasileiros. Contudo, longe da cidade

    burguesa letrada, eram criados espaos da alegria, onde formas expressivas ligadas

    ao candombl, ao samba e capoeira, aconteciam e atravessavam os hbitos e as

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    criaes dos indivduos da cidade, inclusive com a participao de membros do

    senado, da marinha, do exrcito e de representantes da elite intelectual (CRUZ,

    1996).

    A prtica da capoeira nesses espaos adquire contornos diferentes: se, com a

    experincia das maltas, a luta ganhou maior visibilidade na