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CAPÍTULO 4 - O SISTEMA DE PRODUÇÃO ARTÍSTICA/ MUSICAL A consideração do sistema de produção artística/musical no âmbito da presente investigação decorre do facto, já assinalado, de, nas áreas artísticas, se verificar uma conexão muito estreita entre aquele sistema e o sistema de formação, a tal ponto que as duas fases – formação e produção – não ocorrem, na maior parte dos percursos individuais, de forma sequencial, como nas outras áreas, desenvolvendo-se em simultâneo. A análise do sistema de produção artística/musical pretende elucidar as razões desta característica específica e as suas consequências no sistema de formação, designadamente nos aspectos relevantes para a temática da avaliação do ensino superior da Música. O presente trabalho parte da perspectiva de que o sistema de produção artística/musical é um sistema de mediações (Hennion, 1993), onde se cruzam as lógicas dos criadores, dos mediadores e dos públicos. Enquanto criadores/produtores duma obra, os artistas 1 necessitam de uma série de mediadores que a ajudem a alcançar o(s) seu(s) público(s), os consumidores, uma vez que “o consumo completa a produção” e, “no limite, a obra não existe, a obra acontece em cada interacção com o receptor” (Monteiro, 1992, 79, 80). Esta perspectiva construtivista é especialmente pertinente no que diz respeito ao espectáculo ao vivo, que só se completa no momento da sua recepção (Guy, 1992, 92), muito particularmente no que se refere à Música, que é uma arte de mediadores obrigatórios (Hennion, 1992, 117), porque o que podemos apreender não é a música – invisível enquanto objecto - mas o “cortejo das mediações” que permitem essa apreensão (id., 118). Este cortejo de mediações compreende actantes tão diversos como o palco (ou espaço de apresentação/representação), o instrumento, a partitura e a gravação (id., 131), dispositivos materiais que permitem a “tradução” (Amblard et al,1996, 129) da obra e ainda um conjunto de entidades/organizações sem a intervenção (mediação) dos quais essa “tradução” - a passagem do produto do produtor para o consumidor - não se concretiza: agentes, produtores, programadores, gestores culturais, críticos, animadores, jornalistas, mecenas individuais e institucionais, organizações artísticas e culturais tais como orquestras, companhias de ópera, teatros e centros culturais, sem esquecer o Estado (a nível central, regional e local) e as colectividades locais. Analisarei a rede sócio-técnica composta por este conjunto de elementos humanos e não-humanos, partindo da caracterização da actividade profissional artística/musical e do 1 Neste trabalho, o termo artista é utilizado sem qualquer conotação valorativa, visando designar toda a pessoa que exerce uma actividade profissional criativa num sector artístico 127

CAPÍTULO 4 - O SISTEMA DE PRODUÇÃO ARTÍSTICA/ MUSICAL

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CAPÍTULO 4 - O SISTEMA DE PRODUÇÃO ARTÍSTICA/ MUSICAL A consideração do sistema de produção artística/musical no âmbito da presente investigação decorre do facto, já assinalado, de, nas áreas artísticas, se verificar uma conexão muito estreita entre aquele sistema e o sistema de formação, a tal ponto que as duas fases – formação e produção – não ocorrem, na maior parte dos percursos individuais, de forma sequencial, como nas outras áreas, desenvolvendo-se em simultâneo. A análise do sistema de produção artística/musical pretende elucidar as razões desta característica específica e as suas consequências no sistema de formação, designadamente nos aspectos relevantes para a temática da avaliação do ensino superior da Música. O presente trabalho parte da perspectiva de que o sistema de produção artística/musical é um sistema de mediações (Hennion, 1993), onde se cruzam as lógicas dos criadores, dos mediadores e dos públicos. Enquanto criadores/produtores duma obra, os artistas1 necessitam de uma série de mediadores que a ajudem a alcançar o(s) seu(s) público(s), os consumidores, uma vez que “o consumo completa a produção” e, “no limite, a obra não existe, a obra acontece em cada interacção com o receptor” (Monteiro, 1992, 79, 80). Esta perspectiva construtivista é especialmente pertinente no que diz respeito ao espectáculo ao vivo, que só se completa no momento da sua recepção (Guy, 1992, 92), muito particularmente no que se refere à Música, que é uma arte de mediadores obrigatórios (Hennion, 1992, 117), porque o que podemos apreender não é a música – invisível enquanto objecto - mas o “cortejo das mediações” que permitem essa apreensão (id., 118). Este cortejo de mediações compreende actantes tão diversos como o palco (ou espaço de apresentação/representação), o instrumento, a partitura e a gravação (id., 131), dispositivos materiais que permitem a “tradução” (Amblard et al,1996, 129) da obra e ainda um conjunto de entidades/organizações sem a intervenção (mediação) dos quais essa “tradução” - a passagem do produto do produtor para o consumidor - não se concretiza: agentes, produtores, programadores, gestores culturais, críticos, animadores, jornalistas, mecenas individuais e institucionais, organizações artísticas e culturais tais como orquestras, companhias de ópera, teatros e centros culturais, sem esquecer o Estado (a nível central, regional e local) e as colectividades locais.

Analisarei a rede sócio-técnica composta por este conjunto de elementos humanos e não-humanos, partindo da caracterização da actividade profissional artística/musical e do

1 Neste trabalho, o termo artista é utilizado sem qualquer conotação valorativa, visando designar toda a pessoa que exerce uma actividade profissional criativa num sector artístico

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modo de construção das carreiras artísticas, passando por alguns dos principais elos da cadeia de mediações até chegar ao pólo da recepção da obra artística e cultural. 1 - O PÓLO DA CRIAÇÃO 1.1 - CARACTERÍSTICAS DA ACTIVIDADE PROFISSIONAL ARTÍSTICA/ MUSICAL Embora a actividade profissional na área da Música apresente algumas especificidades, a sua análise ganha em ser feita no contexto mais amplo do sistema artístico e cultural onde se desenvolve e de que constitui um subsistema. Numa abordagem sociológica da actividade nas áreas artísticas, a primeira dificuldade é a da definição de quem é ou quem pode ser considerado artista. O conceito de artista é um conceito socialmente construído, de forte ambiguidade, e cuja polissemia está patente nos vários sistemas de classificação (Conde, 1998, 81). As actuais dificuldades de categorização dos artistas (e das suas actividades) e o carácter polissémico do termo inserem-se na própria história do conceito. Segundo a pesquisa realizada por Nathalie Heinich em diversos dicionários e enciclopédias franceses publicados entre os séculos XVI e XIX, a palavra “artista”, como substantivo, “era ainda muito raramente usada no decurso do século XVII [...] e compreendia ao mesmo tempo – nas suas acepções mais antigas – a tradição universitária das “artes liberais”, bem como o caso particular da química e, numa acepção sem dúvida mais recente, o domínio “mecânico” do artesanato, mas com uma conotação laudatória, associada a qualidades singulares” (Heinich, 1990, 7). O enfraquecimento da oposição entre o liberal e o mecânico (entre o “espírito” e a “mão”) vai progressivamente, durante o século XVIII, ajudar a caracterizar o artista como “aquele que trabalha numa arte em que devem coexistir o génio e a mão”, embora os conceitos de artesão e de artista estejam ainda bem longe daqueles que nos são hoje familiares, conforme se pode verificar no dicionário de Trévaux: “Diz-se de um bom sapateiro que é um bom artesão e de um relojoeiro hábil que é um grande artista” (id., 9). A ambiguidade persistente do conceito, na ausência de fronteiras bem delimitadas entre o liberal e o mecânico, o especulativo e o prático, o científico e o artístico, permite a sua deslocação entre o campo mecânico e o campo liberal. E assim o termo, quando “aplicado a uma actividade mecânica, confere-lhe uma espécie de dignidade intelectual, enquanto que num quadro liberal remete para a esfera da execução, da simples manipulação” (id., 10).

No que diz respeito às Belas-Artes é em 1759, no Dicionário portátil das Belas-Artes, de Lacombe, que aparece a primeira definição moderna de artista, caracterizando-se como tal aqueles que exercem “uma das Artes liberais e, singularmente, os Pintores,

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Escultores e Gravadores” (id., 10). Já quanto aos intérpretes de espectáculos ao vivo, só mo início do século XIX (1808) é que o Dicionário de Le Robert introduz uma extensão do conceito à “pessoa que interpreta uma obra musical ou teatral” (id., 11). No caso da Música, a integração do intérprete no conceito responde, de certa forma, ao facto de ser neste século que o músico se torna “um ‘artista’, apagando a imagem do artesão” (Escal, 1997, 22), pela sua progressiva transição de “executante - servidor” ao serviço da Igreja, do Rei ou do Princípe para “criador” livre e independente. O modo de produção deste criador – solitário, utilizando o “dom” como “capital” e a “inspiração” como instrumento, desenvolvido em condições materiais tão difíceis que o tornam, muitas vezes, um marginal – está, aliás, na base da concepção romântica do “artista autónomo”, ainda tão presente nos dias de hoje, mesmo nas instituições de formação, apesar das actuais mudanças nas práticas artísticas, que deveriam implicar inovações adequadas nas perspectivas pedagógicas e formativas dessas instituições (Abbing, 2005, 3). A deriva semântica do termo “artista” foi acompanhada por uma indeterminação da classificação das áreas artísticas. Para citar apenas o caso da Música, verifica-se que a Academia das Ciências e das Artes francesa, no fim do século XVII, a coloca na área das Artes, juntamente com a Aritmética, a Geometria, a Marinha e a Artilharia, enquanto já no século XVIII a “Enciclopédia das Belas-Artes”, de Watelet (1788), integra a “Arte da Música” ou “Linguagem dos sons modulados” no “Quadro das Seis Artes da Linguagem Liberais”, juntamente com a “Arte da Pantomima - Linguagem da acção” e a “Arte da Palavra” - Linguagem dos sons articulados”. Estas “artes ou linguagens cujas produções são transitórias ou instantâneas” são acompanhadas, no referido quadro, pelas três artes “cujas produções são fixas e duráveis”: a Escultura, a Arquitectura e a Pintura (id., 19, 23). As dificuldades na definição do que é uma área/actividade artística - que determinam dúvidas quer sobre o universo a investigar, no caso de estudos sobre estas áreas, quer sobre a sua mais correcta inserção nos campos profissionais categorizados para efeitos fiscais ou estatísticos - persistem nos dias de hoje, em grande parte porque o trabalho artístico, sendo uma actividade, é simultaneamente um acto de criação, cuja “singularidade irredutível” impediria, segundo alguns, a “inteligibilidade comum” da arte (Nicolas-Le Strat, 1998, 23). Acresce que, embora à actividade artística sejam reconhecidas dimensões sócio-cognitivas que pressupõem um capital escolar e intelectual (id., 185) e apesar de a concepção romântica do artista, baseada no dom inato, estar hoje, em grande parte, substituída pela do artista que investe num trabalho árduo de “construção e de interiorização das competências” - como assinala Martinez (2000, 282) a propósito dos cantores líricos - o facto de, por um lado, esse trabalho de formação não ser, muitas vezes, formalmente certificado e de, por outro, não existirem barreiras formais para o exercício da actividade em grande número de áreas artísticas (inscrição numa Ordem, carteira profissional, etc.) priva estas áreas de suportes em que assentar a categorização homogénea que é mais comum nas áreas não-artísticas, mesmo considerando apenas as áreas artísticas tradicionais e não as emergentes.

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A identificação problemática do artista assenta ainda “na ideologia carismática do artista, que não reconhece outro tribunal que não o da sua consciência de artista” a qual não se adequa nem à “racionalidade burocrática do Aesthetical Welfare” nem à “objectivação sociológica pela estatística” (Moulin, 1997, 249). Toda esta problemática suscita dúvidas sobre os critérios a utilizar para a definição da qualidade de artista, fazendo-se Moulin (id., 249) eco dos critérios mais habitualmente questionados: a independência económica (viver desta profissão); a auto-definição (declarar-se artista); a competência específica (ser diplomado por uma escola de arte); o reconhecimento pelo meio artístico. Numa tentativa de identificar os critérios que determinam quem é artista, Frey e Pommerehne sugerem os seguintes (Davies & Lindley, 2003, 1): (i) a quantidade de tempo gasto no trabalho artístico; (ii) a quantidade do rendimento decorrente das actividades artísticas; (iii) a reputação como artista entre o público em geral; (iv) o reconhecimento entre os outros artistas; (v) a qualidade do trabalho artístico produzido; (vi) a filiação num grupo ou associação profissionais de artistas; (vii) uma qualificação profissional em artes; (viii) a avaliação, pelo próprio, da sua condição de artista. Conforme assinalam os referidos autores (id., 1) a tendência daqueles que trabalham sobre as profissões/ocupações culturais, baseada em dados obtidos por inquérito, tende a seguir o critério do lugar no mercado, concentrando-se no primeiro e no segundo critérios acima referidos. Ora bastam estes dois critérios para revelar quão “atípica” é a situação dos artistas relativamente à dos profissionais de qualquer outro sector de actividade. Considerarei sucessivamente o factor tempo e o factor rendimento. Como desenvolverei quando abordar a questão da construção das carreiras artísticas, a principal característica da profissão nestas áreas é o facto de ela se desenvolver não numa única mas em múltiplas actividades. Nas áreas artísticas, os empregos permanentes são assegurados por organizações que representam uma parte limitada do mercado de trabalho: no caso específico da Música, orquestras (civis e militares), companhias de ópera, escolas de música e de dança e ainda, nalguns países, como Portugal, escolas do ensino regular, que absorvem “artistas” formados nas escolas superiores de música sem preparação pedagógica específica, em caso de carência de docentes das disciplinas musicais daquele ensino.

Com excepção das escolas de música (que, por exemplo, no nosso país, quintuplicaram em número nas últimas duas décadas), as restantes organizações referidas, em virtude dos crescentes constrangimentos económicos verificados um pouco por toda a Europa, têm vindo a manter-se numericamente estáveis, quando não a desaparecer ou a reduzir efectivos, ou a contratar preferencialmente à tarefa ou a prazo, num crescendo que torna cada vez mais precária a estabilidade desses empregos permanentes, bem como mais reduzida a sua oferta. Atendendo às características do mercado de trabalho artístico, dominado por essa escassez crescente de empregos permanentes, designadamente no sector das Artes do

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Espectáculo, a necessidade de sobrevivência no meio obriga a uma acumulação de prestações artísticas, porque cada um dos projectos ou empregos temporários não pode, por si só, garantir um rendimento suficiente. E assim, para sobreviver, a esmagadora maioria dos profissionais das artes necessita (de forma provisória ou permanente, conforme a evolução da sua carreira) de construir uma carteira de actividades (não apenas artísticas, mas também para-artísticas ou mesmo não-artísticas) e de assegurar uma diversificação das fontes de recursos, através do trabalho, da família, do cônjuge, dos seus próximos, das ajudas públicas, etc. (Menger, 1993, 1581). A referida multiactividade apresenta, contudo, características diversas ao longo das carreiras artísticas, verificando-se progressivamente a substituição de uma multiplicidade aleatória de actividades para uma concentração em torno de pontos fortes (Menger, 1989, 134) os quais, na melhor das hipóteses, se situarão todos na área específica do profissional em questão. Mas mesmo quando o trabalho artístico não é aquele que ocupa a “fatia” principal do seu tempo, o artista identifica-se em função da sua arte: “Sou um músico, faça o que fizer” (Youth Music, 2002, 5). Por outro lado, o grosso do seu tempo profissional pode ser consumida pelo artista numa actividade não-artística, que lhe permita “pagar” o tempo de que necessita para fazer arte (Abbing, 2002, 1), tornando assim o artista num caso, certamente único, em que o profissional paga para exercer a sua actividade profissional, auto-subsidiando-se através de um “subsídio interno” proveniente de fontes como este tipo de trabalho não artístico, empréstimos ou rendimentos próprios (Abbing, 2004, 3). Esta situação atípica no que diz respeito ao tempo de trabalho enquanto critério para qualificar um profissional reflecte-se consequentemente na questão do peso que os rendimentos provenientes da actividade artística tem no total dos rendimentos do artista. Embora os artistas estejam entre alguns dos profissionais mais bem pagos, “menos de 10% dos diplomados tem potencial para alcançar o estrelato” (ELIA, 2005, 2), sendo o rendimento médio nas artes muito inferior ao das outras profissões (Abbing, 2002, 2,3), com o artista-intérprete na Holanda, por exemplo, a ganhar menos 30% e o artista-criador menos 50% a 90% do que os profissionais em áreas não artísticas comparáveis (Abbing, 2004 a), 2). Tal realidade significa que o rendimento proveniente da actividade artística não só não representa, muitas vezes, a maior parte do rendimento do artista, como não chega sequer para cobrir os custos que ele tem com a actividade artística, o que confirmaram, por exemplo, 40% dos respondentes ao “Inquérito aos artistas jovens portugueses” (Pais, 1995, 44). Como é que os artistas compensam os baixos rendimentos que auferem no exercício da sua actividade artística? Conforme já disse, em primeiro lugar tentam garantir uma carteira de múltiplas actividades, que não só lhes permita um rendimento global satisfatório mas que também lhes garanta, num tipo de trabalho tão precário, uma diversificação dos riscos podendo, conforme a origem dos rendimentos, distinguir-se uma diversificação interna (quando os rendimentos provêm todos de actividades profissionais da área artística do profissional), uma diversificação conexa ou periférica (quando são

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obtidos em acumulação com actividades artísticas fora da área do profissional ou com actividades para-artísticas) e uma diversificação externa (quando a actividade de vocação se acumula com actividades não-artísticas) (Menger, 1994, 20). Em segundo lugar, quando essa acumulação de actividades não é suficiente ou possível – ou mesmo em concomitância com ela – o artista mobiliza os recursos de pessoas que lhe são próximas – pais, cônjuge, amigos, colegas – designadamente fazendo deles “‘accionistas’ da sua empresa artística, o que confere a tantas empresas artísticas do sector uma configuração original, onde se juntam, pelo menos durante algum tempo, “os recursos caseiros e os sacrifícios pecuniários colectivamente consentidos pelo colectivo de trabalho aos recursos do mecenato público, aos apoios ao emprego e às diversas formas de segurança social ” (id., 20). Estamos aqui perante aquilo que Abbing (2004, 3) designa por “subsídios externos” e nos quais inclui os subsídios dos parentes, os subsídios privados e os subsídios públicos. As condições económicas oferecidas pelas actividades artísticas pareceriam, à partida, um factor de desmobilização num investimento pessoal e profissional nestas áreas, o que não se verifica. Com efeito, o que se comprova é que as políticas de subsídios às artes têm produzido um efeito multiplicador no número de artistas que entram no mercado de trabalho, apesar de isso significar um abaixamento médio dos rendimentos. A indiferença dos artistas perante este facto e a sua persistência na entrada numa actividade profissional tão pouco compensatória em termos de rendimento monetário poderão ser explicadas pelo importância que os artistas atribuem ao rendimento a que se poderá chamar não - monetário (id., 1), imaterial (Abbing, 2004 a), 5), psicológico ou moral (ELIA, 2001, 2). Este rendimento simbólico traduz-se na satisfação pessoal e nas representações positivas dos próprios relativamente ao status da sua condição de artistas, as quais são ainda largamente tributárias dos mitos da sacralização das artes e das figuras românticas do dom, da inspiração e da vocação. O reconhecimento social dessa condição tem, para os artistas, mais valor, só por si, do que os proventos materiais que dela retiram. E se esse reconhecimento é tanto mais viável quanto maiores forem os momentos de exposição pública do artista (a sua “produção” pública), compreende-se que um acréscimo no financiamento da actividade artística - como acontece, por exemplo, nos períodos de ampla subsidiarização pública, que tem efeitos multiplicadores no mercado – seja visto como/produza um aumento de oportunidades para o acesso de novos artistas ao mercado, mais do que o aumento dos rendimentos dos artistas existentes.

Esta situação acaba por manter baixos os níveis gerais de rendimento, não só porque o montante global tem que ser repartido por um maior número, mas porque, como os rendimentos dos artistas são especialmente baixos no início da carreira, a entrada de uma massa significativa de jovens nestas profissões baixa a média dos rendimentos durante todo o período que se segue ao acréscimo rápido do número de profissionais no activo (Menger, 1989, 115).

A atracção pelas profissões artísticas é também explicada pelas características - percepcionadas como não rotineiras - do trabalho nestas áreas, uma vez que as actividades pouco ou nada rotineiras (das quais as artes são a “encarnação paradigmática”) garantem satisfações psicológicas e sociais proporcionais ao grau de

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incerteza sobre as oportunidades de sucesso (Menger, 1991, 63), satisfações essas que compensam, de forma provisória ou duradoura, a escassez dos proventos pecuniários. A actividade artística é “hedonista, lúdica ou espiritual” e o exercício dessa actividade é procurado não tanto por razões de rentabilidade económica, mas por uma “necessidade interior” (Heinich, cit. por Le Coq, 2002, 54).

Embora não deixem de reconhecer a necessidade de um “trabalho alimentar” (id., 2002, 168) os artistas aceitarão um sistema de recompensas monetárias baixas também por terem uma tendência maior para o sacrifício relativamente ao seu trabalho do que a maioria dos outros profissionais, como o demonstram estudos sobre a biografia de artistas. A valorização do rendimento simbólico em detrimento do material verificar-se-ia ainda porque, segundo defendem alguns sociólogos, “existe um habitus de convenções e de regras interiorizadas que faz o artista desenvolver e manter as suas preferências ‘desviantes’ ” (Abbing, 2004, 6) ao longo da sua carreira. 1.2 - A CARREIRA ARTÍSTICA Quando, relativamente às áreas artísticas, falamos de carreira, importa ter presente que este conceito, utilizado em termos gerais na sua formulação burocrática – como a sucessão de postos de trabalho de perfis pré-definidos que um trabalhador vai ocupando ao longo da sua vida profissional, em função das suas habilitações, capacidades e experiência - não pode servir de modelo explicativo das trajectórias de profissionalização nestas áreas. Essa “relativa estandardização de percursos, procedimentos e projecções em várias formas de ‘sucesso’ ”, bem como a subjacente “ normatividade corporativa como condições de actividade colectivamente partilhadas [...] no ‘posto’ ou ‘ocupação’ burocrática” atentam contra “dois valores nucleares, fundadores do campo e da condição de artista: o valor da singularidade do criador dobrado do da intemporalidade da sua obra, que deve resistir à ‘degradação do corpo do autor’ ”(Conde, 1996, 4). O conceito burocrático de carreira parece, pois, inadequado às carreiras artísticas, como assinala Moulin (1997, 335), que propõe, em alternativa, o conceito interaccionista como aquele que melhor permite compreender esta problemática nos domínios artísticos. A teoria interaccionista considera as carreiras como os produtos de estratégias de actores em situação de interacções e o termo carreira como aquele que designa “não apenas uma sucessão de posições e de realizações na vida profissional e social, mas igualmente a dimensão subjectiva segundo a qual o indivíduo percepciona a sua existência como uma totalidade, atribuindo-lhe significados” (id., 335-336). Nesta perspectiva, o termo carreira aplica-se quer “a significações íntimas, que cada um conserva preciosa e secretamente, imagem de si e sentimento da sua própria identidade” quer “à situação oficial do indivíduo, às suas relações de direito, ao seu género de vida, entrando desta forma no quadro das relações sociais” (Goffman, cit. por Borges, 2002, 89). Originário do “mundo da inspiração”, cujo princípio organizador comum é a singularidade (Boltanski & Thévenot, 1991, 200) o artista constrói a sua carreira em

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função do “mundo da opinião”, assente na reputação e no renome, podendo dizer-se, como Conde (1996, 5), que a noção de carreira se reporta “às condições institucionais que ‘fazem um nome’”, às condições que permitem a sua (dele, artista) produção num “mercado de reputações” (Menger, 2005, 54). Ainda que a maioria dos artistas não planeie de forma sistemática a sua carreira (ELIA, 2001, 6) e tenha dificuldade em “objectivar verdadeiramente os percursos”, levando ao extremo a consideração da predominância dos factores pessoais sobre as influências social ou familiar (Nicolas-Le Strat, 1998, 107) é possível identificar estratégias comuns nas trajectórias profissionais dos artistas, que demonstram o reconhecimento das condições necessárias à construção do “nome”, sendo que a reivindicação daquela singularidade tanto se aplica ao artista-criador como ao artista-intérprete, porque nas últimas décadas a noção do “autêntico” em arte alargou-se, tendo-se passado de uma arte baseada na criação a uma arte baseada no intérprete (Abbing, 2004, 4), assente no contributo singular da personalidade do artista para a “autenticidade” da obra. O pressuposto de que partem os artistas, no que se refere às suas carreiras, é o de que a sua condição de artista é independente de qualquer percurso de formação (Nicolas-Le Strat, 1998, 106). Com efeito, se a actividade artística não pode deixar de pressupor um capital escolar e intelectual, a aquisição desse capital é representado, quando muito, como uma aprendizagem técnica que acresce mas não substitui o dom (a qualidade que distingue o artista dos comuns mortais), sendo um facto que os diplomas - certificação formal da formação - não têm aqui a relevância determinante de que dispõem noutras áreas, enquanto “sinais institucionais de qualificação” (Menger, 1991, 68). Deste modo, a condição de artista constrói-se não pela posse de determinada formação certificada formalmente mas, como assinala Nicolas- Le Strat (1998, 96), no decurso da própria actividade profissional, o que torna imprescindível a multiplicação de momentos de apresentação pública e o aproveitamento absoluto de todas as oportunidades de produção: “…se não nos damos a ver, ninguém nos vem buscar” (Le Coq, 2002, 148). Este modo de construção da identidade profissional determina uma actividade em constante devir, onde a noção de percurso/carreira enquanto sucessão de etapas construídas umas a partir das outras (as precedentes estabilizadas) não tem sentido, porque o artista é julgado com base naquilo que faz em cada momento e tudo se joga em cada nova audição, em cada novo casting (id., 147). A qualificação artística “não se adquire nem se possui: elabora-se e constitui-se e é, por isso, indissociável do exercício efectivo da actividade, realiza-se ao ritmo regular das representações, das exposições, das manifestações”(Nicolas- Le Strat, 1998, 112). Daqui decorre a característica do trabalho artístico como um “tempo global, onde é impossível distinguir o acesso à qualificação (tempo de formação) e o exercício da actividade (tempo de trabalho)” (id., 112), o que tem, como espero demonstrar a seu tempo, implicações determinantes na cultura organizacional e no funcionamento estrutural das instituições de ensino superior artístico.

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É também esta característica que ajuda a explicar que não são apenas as razões económicas atrás referidas que impelem os artistas à pluriactividade, mesmo quando atingem uma posição que lhes permite concentrar esse pluriactividade na sua área específica. Como já mencionado, nas áreas artísticas, estamos perante “um universo profissional onde os habituais sinais institucionais de qualificação e de competência (os diplomas) não valem ou apenas têm um valor secundário relativamente à experiência acumulada em situações de trabalho” (Menger, 1989, 144). Deste modo, é fácil compreender a importância da multiplicação das situações de trabalho, uma vez que “ o sucesso ou, pelo menos, a esperança de sucesso dependem em grande parte da acumulação de situações de trabalho que permitam ao artista garantir a sua visibilidade, num mercado em que o facto de trabalhar representa, por si só, um sinal de reputação” (Menger, 1993, 1583). A profissionalidade desenvolve-se “por associações sucessivas” e “não corresponde a uma lógica projectiva (projectar-se em função de etapas esperadas) mas antes a uma lógica extensiva e cumulativa (o poder conjuntivo do “e…e…)” (Nicolas- Le Strat, 1998, 107). Esta diversificação do trabalho artístico implica, geralmente, a acumulação sucessiva ou simultânea duma situação de auto-emprego e de situações de trabalho por conta de outrém, predominantemente a tempo parcial e/ou de carácter intermitente. No primeiro caso, os artistas podem actuar quer como free lancers, ajustando a prestação dos seus serviços directamente com a entidade organizadora da actividade, quer como responsáveis por projectos permanentes ou temporários, assumindo muitas vezes, em ambos os casos, atributos empresariais que permitem falar dos artistas como micro-organizações (Borges, 2002, 95), na medida em que asseguram, numa “desmultiplicação de si”(Menger, 1997), uma diversidade de actividades, que se estendem desde a criação da obra ou do projecto até à procura de financiamentos e de espaços (de ensaios e de apresentação), desde a divulgação até à promoção da actividade (Borges, 2002, 95). No segundo caso - trabalho por conta de outrém – ou o artista tem emprego permanente numa grande estrutura (orquestra, companhia de ópera, de dança ou de teatro, instituição de ensino artístico) ou, situação cada vez mais frequente (Abbing, 2004, 8), acumula uma multiplicidade de ligações contratuais, que são a base da organização da sua carreira (Menger, 2005, 46), podendo essa diversidade ser sucessiva ou simultânea, ou seja, como nestas áreas muitas actividades são de carácter temporário e/ou podem ser exercidas a tempo parcial, é situação muito comum um artista estar fragmentariamente empregado (Menger, 1994, 7) dependendo, sequencialmente ou durante o mesmo período de tempo, de um número elevado de empregadores. No caso do trabalho por conta de outrém, identificam-se, pois, dois modos de exercício profissional, em função da duração temporal da relação de trabalho: a permanência e a intermitência, podendo ainda ser considerada uma terceira configuração da actividade, que Nicolas-Le Strat (1998,138) identifica como a permitência, modalidade “associada às manifestações estruturantes da vida cultural local, isto é, às iniciativas pesadas, desenvolvidas ao longo dos anos e com uma continuidade de financiamento assegurada

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(caso dos “grandes” festivais)” e que combina a intermitência da actividade com uma relativa permanência do emprego, uma vez que o pessoal (artistas e técnicos) exerce a sua actividade com o estatuto de intermitente do espectáculo, mas tem garantida uma certa continuidade de recrutamento. Por ser actual e tendencialmente a modalidade do exercício profissional nas áreas artísticas quantitativamente dominante e largamente maioritária nos casos das artes do espectáculo e do audiovisual (tendo até, no caso da França, dado origem ao estabelecimento de um estatuto próprio, o “estatuto do intermitente do espectáculo”) importa desenvolver um pouco mais o modo de exercício profissional da intermitência. Esta modalidade de trabalho, segundo Menger (1991, 62), (i) é caracterizada por uma sucessão de empregos de curta duração, que (ii) podem ser (e são geralmente) exercidos simultaneamente para vários empregadores e, na maior parte dos casos, (iii) desenvolvidas no âmbito de “organizações-por-projecto” (id., 64): organizações temporárias construídas ad hoc para determinado projecto, o qual pode até corresponder a um único espectáculo. A partir da década de 80 do século passado e sob o impulso, designadamente, da Recomendação da UNESCO sobre a condição do artista de 27 de Outubro de 1980, os Estados, designadamente os da Europa Central e Ocidental, incrementaram o seu apoio aos sectores artísticos e culturais, ainda que com intensidade e efeitos diferenciados (UNESCO, 1987). Nos países em que esse apoio teve expressão financeira significativa, o efeito directo desse incremento de meios disponíveis, bem como o seu efeito multiplicador, traduziram-se, sobretudo, no aumento de projectos de duração temporária, à medida dos subsídios ou bolsas concedidos, mas o recurso à intermitência determinado por esta situação conjuntural não deve obscurecer o carácter estrutural desta modalidade de trabalho, que “corresponde a uma procura estrutural de flexibilidade na organização da produção” (Menger, 1994, 7). Esta procura inscreve-se nas estratégias quer de artistas, quer de entidades empregadoras, podendo a organização dos mercados artísticos e os sistemas de profissionalização baseados nesta flexibilidade ser entendidos, na ligação da sociologia da acção e das interacções sociais com a análise económica, como modos de gestão da incerteza (Menger, 1989, 121) associada às actividades das áreas artísticas. No que diz respeito ao artista, as suas estratégias contra a incerteza implicam, como se disse, a constituição de uma carteira de actividades e de recursos e o sistema da intermitência dá-lhe a “garantia duma fluidez do mercado de trabalho e de processos de recrutamento suficiente para que seja preservada a dimensão aleatória do sucesso” (id., 143), dimensão essa alimentada também pela rotatividade de oportunidades que o trabalho nesta modalidade proporciona. Em contrapartida, a flexibilidade da actividade profissional exige do artista uma grande capacidade de adaptação, superior à que requer normalmente o emprego numa organização permanente, estável (Menger, 1991, 67), mas a própria intermitência

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assegura essa capacidade, enquanto multiplicação de oportunidades de trabalho, com “carácter formador e estimulador desta necessária adaptabilidade a uma grande variedade de contextos e de situações de emprego”, ao mesmo tempo que confere “ganhos psíquicos [decorrentes] da autonomia e da independência do trabalho” (Menger, 1994, 8). Por outro lado, construindo-se a sua reputação “em serviço” e a cada momento, como já foi dito, um sistema de trabalho flexível possibilita ao artista a multiplicação das suas oportunidades de exposição pública e, consequentemente, das suas probabilidades de sucesso. Do ponto de vista dos empregadores, o trabalho temporário permite garantir as condições necessárias para responder a mercados instáveis, condições que Stinchcombe identifica como as seguintes (Menger, 1989, 143): (i) um sistema de emprego contratual que utilize pessoal capaz de se adaptar rapidamente às tarefas exigidas; (ii) um sistema de informação rápido sobre as aptidões do pessoal disponível; (iii) uma redução dos custos fixos e, designadamente, dos encargos de administração e das despesas de investimento. No mercado artístico, a avaliação sobre as capacidades do artista faz-se no posto de trabalho, com a entidade empregadora a avaliar, em cada projecto, a competência do artista para a tarefa concreta, através da “acumulação de informações, de indícios reputacionais e de sinais qualitativos (ritmo das contratações, valor e sucesso dos projectos em que colabora, reputação na comunidade profissional, etc.) quanto às capacidades do artista” (Menger, 1991, 69). Este apelo à reputação permite, no caso do trabalho temporário, a informação urgente de que os empregadores necessitam para os seus projectos, cuja curta duração não é compatível com processos muito demorados de desenvolvimento de competências ou de selecção de candidatos, próprios de situações de colaboração a mais longo prazo. A organização por projecto e o trabalho intermitente a ele associado permitem também a redução dos encargos de administração e as despesas de investimento, com o recurso à sub-contratação, ao aluguer de materiais (e não à sua compra), à utilização de espaços cedidos temporariamente, etc., com todas as vantagens que estas possibilidades têm para as entidades empregadoras. Por outro lado, os custos dum projecto são igualmente mais reduzidos quando as entidades empregadoras dispõem de mão-de-obra em quantidade e é também por este motivo que a modalidade do trabalho intermitente interessa aos empregadores. A este factor quantitativo acresce, nas áreas artísticas, o factor qualitativo, com os empregadores a poderem dispor de um numeroso exército de reserva, que lhes permite procurar e promover novos talentos (Menger, 1991, 70). A lógica em acção é a do “mundo” industrial, cujo princípio organizador comum (a eficácia) é garantido pela constante procura da inovação. São, pois, as lógicas de acção conjugadas dos artistas e das entidades empregadoras do sector a determinar o sub-emprego endémico nas áreas artísticas (id.,70) e o excesso estrutural da oferta nestas áreas (Menger, 1994, 4), os quais não devem ser lidos à luz da

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análise económica tout-court, mas como condições estrategicamente estabilizadas, pelos actores implicados, para a gestão do risco nas profissões artísticas. Neste sistema de gestão do risco importa ainda considerar outro actor determinante, o “segurador” ou regime de segurança social. Embora em muitos países este tipo de trabalhador independente, com ligações temporárias a diversos empregadores, não tenha acesso aos regimes de segurança social dos trabalhadores assalariados, estão previstas outras soluções, como acordos colectivos e sistemas de gestão e previdência (organismos de gestão mutualista dos direitos sociais: reforma, doença, licenças), sendo o caso da França muito particular a este respeito, pois foi o único país que instituiu um regime especial para os trabalhadores intermitentes, o regime de emprego-desemprego dos intermitentes (Menger, 2005, 60). Porque esta “excepcionalidade social” (id., 60) ajuda a comprender a especificidade das questões relacionadas com o mercado de trabalho e as profissões nas áreas artísticas – as quais devem ser tidas em conta em matéria de avaliação das formações nestas áreas – importa analisar, ainda que sumariamente, este regime. O contrato de emprego intermitente é “uma forma de emprego pela qual são recrutados pessoais cuja forte maioria não contribui senão de modo efémero para a actividade do sector” (Menger, 1994, s/p). No sistema de emprego intermitente, a situação do artista num determinado período depende quer do nível dos seus cachets, quer do número de compromissos profissionais que acumulou durante esse período (os quais dependem da sua reputação), estando a entrada no regime de segurança do desemprego próprio dos intermitentes dependente da obtenção de um determinado número de cachets no período em referência (Menger, 1994, 14). Esta forma de construção do direito à segurança determina uma “interdependência entre a negociação do nível da remuneração, da duração do contrato e da procura de um número de contratos suficiente para se ficar coberto contra os riscos do não-trabalho” (id., 14) e a utilização desse direito, na prática, pode ser tipificada em quatro comportamentos (id., 17): ( i) um comportamento conforme à lógica de um sistema de protecção contra a precaridade e descontinuidade do emprego, com o artista a recorrer ao regime entre duas situações de emprego; (ii) um comportamento estratégico, com o artista, assim protegido, a poder ponderar mais longamente as oportunidades que surgem, de acordo com os seus interesses, sejam eles artísticos, monetários ou outros; (iii) um comportamento oportunista, com o artista a optar por não trabalhar ou a declarar apenas o número de dias necessário para se manter no regime; (iv) um comportamento desviante, com o artista a trabalhar constantemente, mas a declarar apenas uma parte da sua actividade, para não cair na situação de trabalho de longa duração, que o faria perder o “estatuto” de intermitente. Os efeitos perversos deste regime, bem como o facto de ele acabar por constituir uma grande fatia das fontes de rendimento dos artistas (id., 15), que assim transferem objectivamente grande parte do seu risco profissional para a colectividade, determinaram a oposição crescente das organizações patronais representativas das empresas e das

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entidades empregadoras de todos os outros sectores de economia, as quais protestam contra a carga fianceira crescente dos défices deste regime, que é suportada pelo conjunto dos assalariados e empregadores do sector privado “a título do princípio da solidariedade interprofissional” (Menger, 2005, 20). Esta crise no regime determinou, em 2003, algumas alterações, que se traduzem, grosso modo, (i) numa diminuição do tempo necessário à obtenção do montante mínimo para aceder ao regime (10 ou 10,5 meses contra os 12 anteriores) e (ii) em montantes calculados apenas em actividades de intermitência nos sectores dos espectáculos, do audiovisual e do cinema, bem como num certo número de horas de docência em estabelecimentos de ensino constantes duma lista oficial (anteriormente, 2/3 do montante necessário podia ter sido obtido noutras actividades) (id., 29, 30) Mais do que os efeitos que estas alterações provocaram na situação dos intermitentes – e que terão sido inferiores aos presumidos, quer no que diz respeito à redução dos encargos, quer no que se refere à exclusão em massa de intermitentes – importa aqui sublinhar a originalidade do conflito em questão. Contrariamente ao que se passa nos mercados de trabalho “típicos”, (i) a luta não é contra a flexibilidade, mas pela promoção da hiperflexibilidade (id., 14) e (ii) assenta numa aliança entre os assalariados e os seus empregadores, unidos para desejar “a preservação do sistema, que proteje os primeiros e que permite aos segundos transformar, tanto quanto possível, os seus encargos fixos em encargos variáveis, à medida dos seus projectos e iniciativas, a fim de obter uma abundância de mão-de-obra e um reservatório sobrealimentado de talentos, tudo a um preço imbatível, desde que nada mude quanto ao financiamento do desemprego pelas receitas habituais” (id., 20). Estes dois aspectos são, por si sós, reveladores da “atipicidade” das questões laborais e profissionais nas áreas artísticas e das dificuldades do seu enquadramento na lógica da sociedade salarial dominante, que é a que está subjacente no sistema político-administrativo de avaliação do ensino superior. 2 - O PÓLO DA MEDIAÇÃO Na linha de Becker, a perspectiva adoptada é a de que“ a produção artística resulta de uma interacção constante entre o artista, os seus pares, o seu público, os seus críticos, os seus colaboradores técnicos, os seus difusores, os que encomendam as suas obras ” (Le Coq, 2002, 36). Entre o artista e os seus públicos não se estabelece uma relação directa, verificando-se a necessidade de uma cadeia, mais ou menos longa, que possibilite a ligação entre a obra e os seus receptores num “mesmo encadeamento social e estético” (Nicolas-Le Strat, 1998, 52). Esta natureza colectiva da produção artística não se traduz numa simples sucessão de actividades diferenciadas segundo uma lógica de divisão do(s) trabalho(s) (de criação, de iinterpretação, de divulgação, etc.), mas em “relações de interdependência cuja densidade e mobilidade caracterizam a dinâmica e a validação social da actividade criadora”

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(Menger, 2005, 54). Enquanto “construído”, a arte “é indissociável da agência singular (o artista), colectiva (uma rede), particular (um lugar) que a fez tomar forma” (Nicolas-Le Strat, 1998, 65). Porque a actividade artística é múltipla, não pode concretizar-se sem um processo de cruzamento híbrido de competências, de géneros, de referências, de estilos, o que confere o carácter de “constituição-rede” a essa actividade que “associa, liga, desmultiplica, transborda…” (id., 39). 2.1 – AS FUNÇÕES DAS REDES Sendo uma rede “uma ‘máquina’ formidável de associações e de traduções” (id., 116), ao analisar-se a arte como “uma rede de cooperação organizada convencionalmente para produzir e consumir obras” (Hennion, 1993, 140) importa identificar as diversas funções dessa rede, bem como os mediadores que “traduzem” a obra produzida de forma a permitir o seu consumo pelos diversos públicos. As redes artísticas não são redes de artistas, como assinala Nicolas-Le Strat (1998, 115), porque integram outros tipos de actores implicados na actividade artística. São compostas por pares, que constituem o grupo imediato de referência, de avaliação e de apoio dos artistas, e também por parceiros, constituídos pelas diversas categorias de actores que intervêm no processo de produção artística (Menger, 2005, 47) e desempenham um papel central na regulação do mundo da produção artística. Estas redes têm, antes de mais, uma função de informação. Num sector difuso e altamente concorrencial, onde, quer em termos de formação, quer de estruturação do mercado, se verifica um peso expressivo do informal e do precário, as redes de informação vêm “compensar a ausência de um sistema formal de regulação e a ausência de uma via estabelecida de profissionalização” (id., 138), constituindo-se em mecanismos de estruturação das relações interindividuais que permitem ao sector obter informações sobre os projectos, os papéis e os talentos disponíveis, bem como sobre as características pessoais dos artistas, garantindo uma fonte estável de informação que permite alimentar a constante procura e que facilita aos empregadores os recrutamentos através da identificação das competências com base nas reputações individuais (id., 46, 48). A detenção de informação relevante permite, por sua vez, aos artistas dar-se a conhecer e conhecer as oportunidades de exposição pública indispensáveis à construção das suas carreiras: “…há muito poucas coisas que se passam fora da rede…” (Le Coq, 2002, 122). Entende-se, pois, a importância da detenção dessa informação por parte dos artistas, designadamente no que se refere a novos projectos, apoios eventuais e subsídios públicos (Menger, 1997, 134) e as desigualdades de oportunidades que podem ser geradas entre aqueles que estão já bem integrados “nas redes mais densas de interconhecimento e de troca de informação” e os que não detêm o mesmo nível deste “recurso essencial e imaterial, porque são menos reputados, jovens ou em vias de inserção, demasiado imóveis ou demasiado indiferentes aos jogos sociais que sustentam e orquestram estas trocas de informações e de promessas de recrutamento” (Menger, 2005, 46,47).

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A segunda importante função das redes é a da certificação profissional da actividade artística. Como já se disse, para o exercício desta actividade não são, muitas vezes, requeridos requisitos formais (como diplomas, inscrição em ordens ou associações profissionais, etc.) que imponham barreiras no acesso à profissão e, por outro lado, uma certificação formal da formação não é suficiente para garantir trabalho: o profissionalismo do artista constrói-se em cada oportunidade de trabalho. A qualificação de uma actividade como artística é produzida no próprio movimento da actividade, sendo “a rede que produz a obra [...] a mesma que lhe atribui a sua qualidade artística” (Nicolas-Le Strat, 1998, 51), isto é, a que confere ao artista o seu reconhecimento enquanto profissional do sector. Daqui decorre a importância da multiplicidade de ocasiões de exposição do seu trabalho, pois só a actividade artística “activa”, mesmo quando minoritária relativamente ao conjunto das suas actividades profissionais, permite ao artista percepcionar-se e ser percepcionado como tal. 2.2 – OS “NÓS” DAS REDES As redes, enquanto modo de regulação e de funcionamento da actividade artística, são constituídas por vários “nós”, actantes humanos e não-humanos que, no seu conjunto, constroem a tessitura que permite a “tradução” da obra para os seus destinatários. O primeiro desses “nós” são os próprios artistas, mediadores de si mesmos, quer enquanto primeiros tradutores da obra que criam ou recriam, através da sua apresentação/exposição/representação com recurso aos seus atributos e capacidades pessoais (dom, talento, domínio técnico, competências relacionais e comunicacionais), quer enquanto mini-organizações que se desmultiplicam numa rede de “nós”, quando controlam todo o processo artístico, da criação à produção e ao consumo, como é o caso em muitos projectos artísticos. Mas o artista pessoa não pode nunca apresentar-se descontextualizado, fora do tempo, do espaço e das condições materiais que permitem a sua comunicação com os destinatários da obra. A questão do tempo é especialmente determinante no caso do espectáculo ao vivo, sendo possível identificar, no que se refere ao tempo de apresentação da obra, duas grandes linhas de estruturação tendencial dessa actividade: uma estruturação segundo o tempo anual, que organiza a actividade em função dos meses do ano (a “temporada”, o “festival da Primavera”, os “encontros de Verão”) e uma estruturação segundo o tempo diário, com horários diferenciados em função do carácter que se pretende imprimir ao espectáculo ou /e dos públicos que se pretende visar (um espectáculo só à noite tem mais “solenidade”, mais status (caso das modalidades “clássicas” de apresentação das vertentes “eruditas” das artes) ou é mais “espectacular” (caso dos concertos de músicas ligeiras ao ar livre), um espectáculo à noite com sessões também à tarde pretende captar mais públicos, as matinées destinam-se a grupos muito específicos, como os das famílias, dos jovens, da terceira idade). Quanto ao espaço, este é um actante relevante quer do ponto de vista material, quer do

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ponto de vista simbólico. Como assinala Becker (2002, 111), toda a obra de arte precisa dum espaço e este é tanto mais importante quanto, conforme demonstrou o referido autor, os reportórios e os estilos das obras são amplamente determinados pelos constrangimentos físicos e sociais dos espaços onde estas são traduzidas para os seus públicos-alvo (id., 119). Por um lado, o artista tem que garantir que o espaço se adequa à obra que pretende apresentar, no que se refere às condições físicas e técnicas que são necessárias a uma boa apresentação e recepção dessa obra. Questões como a dimensão, o conforto, a segurança, a iluminação, a acústica, o acesso, etc., são relevantes quer no que se refere a espectáculos, quer a exposições e têm que ser negociadas a cada nova actividade. Também aqui o caso do espectáculo ao vivo é aquele em que mais se faz sentir a importância dos espaços porque, se no caso dos registos gravados (CDs, Vídeos) o contexto dos consumos é indiferente, os lugares onde se faz a tradução do texto musical, dramático, coreográfico, para a sua interpretação pública, o seu consumo ao vivo, tornam-se especialmente “pertinentes, significativos [...] Os lugares falam, têm efeitos paratextuais” (Escal, 1997, 19). Daqui decorre a importância simbólica atribuída aos espaços de apresentação, traduzida na procura de “lugares fortes” (id., 19) para essa “tradução”, muitas vezes extensiva aos próprios lugares de gravação, já que se os lugares do consumo são, neste caso, indiferentes, os contextos de produção são, todos eles, relevantes quer para o prestígio dos artistas e produtores, quer para a garantia de consumo por parte dos públicos visados. O lugar aparece muitas vezes como um selo de qualidade, uma marca distintiva e caracterizadora da identidade do espaço e da qualidade dos projectos que ali são produzidos e/ou acolhidos, podendo mesmo, em certos casos, assistir-se a um “efeito-instituição”, em que a adesão à instituição como contentor se sobrepõe à escolha dos conteúdos precisos do contentor (Conde, 1992, 156). Fora dos “mundos instituídos das artes” (Henry, 2002, 56) o espaço chega a elevar-se hoje à condição de “espaço-projecto”, quando se desenvolvem projectos artísticos em espaços não tradicionais, muitas vezes abandonados ou degradados, como forma de expressão de uma democracia cultural que considera “as populações ou os territórios concretos como determinantes dos processos artísticos” e que está atenta “às práticas artísticas que emergem de grupos não ligados aos mundos instituídos das artes” (id., 56). Nestes espaços-projectos procura-se uma nova concepção de arte, que se pretende mais integrada e proporcionando “um lugar mais amplo à experiência estética proposta a – e vivida por – cada um” (id., 56) Quanto às condições materiais, em geral, que permitem a transmissão da obra, elas incluem desde a apresentação do projecto, a montante da sua produção, para a captação dos recursos (humanos, técnicos, financeiros) até à sua divulgação para a captação de públicos, desde a sua gestão durante o ciclo de vida mais ou menos longo até à sua

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avaliação a posteriori. Do ponto de vista das instituições de ensino superior de Música e da sua avaliação importa averiguar se e em que medida estes aspectos, intrínsecos a uma actividade profissional exercida muitas vezes pelo artista-organização, são tidos em conta na sua formação. Em conclusão, pode dizer-se que o artista é um mediador entre a sua obra (criada ou recriada) e os seus públicos. Mas enquanto “nó” duma rede não trabalha só: todo o processo artístico se desenvolve em cooperação com os restantes “nós” de “redes de artistas fechadas sobre si mesmas, redes que intersectam outras redes de artistas [...] com importantes ligações a grupos, companhias e projectos”, conforme concluiu Borges (2002, 93) a propósito do caso particular dos grupos de teatro portugueses. Um segundo grupo de mediadores importante é o das entidades empregadoras. Nas áreas artísticas, este conceito, associado a uma estrutura de emprego permanente, tem uma aplicação reduzida, na medida em que essas entidades empregadoras, garantes de trabalho duradouro, são minoritárias, no conjunto da oferta de trabalho disponível.

São entidades empregadoras no sentido comum do termo as orquestras civis e militares, os teatros de ópera, as grandes companhias de teatro e de dança, os coros profissionais, os estabelecimentos de ensino especializado nestas áreas e na de Belas Artes (área em que as instituições de carácter permanente, como os museus e as galerias, não podem contudo considerar-se ‘entidades empregadoras’ do sector). Trata-se de um universo em vias de redução, em toda a Europa, quer em número de instituições (caso das orquestras, por exemplo) quer em número de efectivos, substituídos por contratados temporários ou “à peça”. Esta situação decorre da crise do Estado-Providência, que passa também pela redução dos apoios a estas instituições, na sua esmagadora maioria públicas ou semi-públicas, muito dependentes do financiamento dos poderes centrais, regionais ou locais.

Neste contexto, não é de estranhar que assumam cada vez mais relevância as estruturas temporárias, como entidades empregadoras não no sentido comum do termo, mas enquanto configurações de produção artística, com carácter mais ou menos provisório, que oferecem trabalho artístico precário, embora possam, na melhor das hipóteses, garantir uma certa continuidade ao pessoal técnico e à equipa de gestão.

Estas estruturas de produção precárias implicam muitas vezes uma não diferenciação entre espaços de vida e de trabalho, com “os lugares de trabalho, as salas de ensaio, as salas de produção, os escritórios, as oficinas [a situarem-se], frequentemente, na casa de um dos membros do grupo”, fazendo “coincidir as dimensões da vida pessoal e artística”, numa revelação daquilo que se apresenta como um “sinal da fragilidade” dessas estruturas (Borges, 2002, 97). Torna-se, então, conveniente desenvolver estratégias organizacionais que permitam combater a incerteza e precaridade associadas a este tipo de actividade.

A tipologia das situações em que se desenvolve a actividade teatral portuguesa, elaborada por Borges (2002, 91,92) é exemplificativa dos diversos modos pelos quais estruturas frágeis organizam a sua actividade, tendo a autora identificado cinco tipos de grupos teatrais: (i) as companhias-famílias, “nichos de estabilidade que funcionam como

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importantes espaços de formação e consolidação da carreira de um artista, assegurando as experiências artísticas, as informações sobre os projectos existentes e o acesso ao emprego” e que mantêm um núcleo duro de convidados habituais e um núcleo duro fixo de pequenas dimensões; (ii) os grupos micro-empresas, que “funcionam como verdadeiros ‘viveiros de artistas’ e de outros profissionais das artes do espectáculo” e que se assumem como “pequenas empresas de bens artísticos que asseguram a realização de projectos inovadores”, com “os ‘seus’ artistas” a circular “por grupos do mesmo sector, especializando-se num determinado tipo de teatro”; (iii) os grupos-satélites, que são colaboradores permanentes de grupos reconhecidos e com actividade regular e que, sob a direcção dos artistas-fundadores, se apresentam como pequenas estruturas de produção, com carácter experimental e cujos funcionamento e actividade têm subjacente “um denso sistema de redes de relações pessoais e artísticas”; (iv) os grupos-projectos, que se caracterizam por uma actividade desenvolvida individualmente, por iniciativa de um dos membros do grupo, que associa o trabalho do grupo e integra o seu trabalho no trabalho de conjunto; (v) os grupos temporários, que organizam espectáculos em função da sua venda, com um núcleo muito reduzido de membros permanentes e que “são, tendencialmente, os grupos de animação na rua e na escola”.

No outro extremo das estruturas precárias de produção/emprego encontra-se a organização-projecto, configuração hoje progressivamente dominante que conhece, como já se disse, um boom nos períodos de forte subsidiarização estatal e que tenderá a manter-se igualmente nos períodos de redução e instabilidade de financiamentos, como aquela que melhor permite aos empregadores fazer face às incertezas num campo altamente determinado pelo actante Estado. Embora em graus diferentes de país para país, o Estado, seja a nível central, regional ou local, muitas vezes com o apoio de instâncias supra-nacionais, como a União Europeia - “no quadro de fundos estruturais ou de programas específicos” (Moulinier, 2001, 35) -, assumiu na Europa, durante as últimas três décadas, um papel protagonista enquanto regulador/mediador da actividade artística e cultural. No âmbito das suas políticas culturais, e utilizando instrumentos de apoio individual (como as encomendas públicas, as bolsas de criação e de investigação) (Menger, 2001, 105) e de apoio institucional (subsídios a instituições, programas e projectos), os Estados procuram diminuir o fosso entre as obras e os seus públicos, numa acção que se desenvolveu em duas fases: uma primeira, orientada por preocupações de democratização cultural que visavam facultar o conhecimento das obras da “alta cultura” ao maior número possível de públicos, designadamente aos mais desfavorecidos que, sem estímulos e apoios, não teriam acesso a essas obras; e uma segunda fase, a da democracia cultural, em que o Estado legitima a pluralidade de culturas, reconhecendo através dos seus apoios que as diferentes práticas sociais, étnicas, regionais, mesmo as dos grupos mais desfavorecidos ou marginalizados, têm a mesma dignidade das práticas culturais abrangidas pela noção “tradicional” de Cultura, podendo e devendo ser apoiadas como estas. Estas duas fases da acção cultural dos Estados coexistem actualmente como duas

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vertentes complementares, podendo, segundo Moulinier (id., 16, 17) distinguir-se três tipos de estratégias: a estratégia promocional, a estratégia voluntarista e a estratégia interaccionista. A estratégia promocional, ou de marketing, visa “públicos convencidos aos quais são dadas vantagens suplementares” e consiste em “desenvolver a oferta através de subvenções aos prestadores de serviços, de disseminação de equipamentos, de criação de anexos de bairro, de descentralização das operações nas zonas rurais, nos subúrbios e nas cidades pequenas por meio das tournées ou de bibliotecas ambulantes” ao mesmo tempo que se actua sobre a procura, designadamente através da redução de preços, da criação de condições de transporte e de horários facilitadoras de um melhor acesso aos equipamentos culturais, da organização de campanhas de promoção e da formação qualificada dos profissionais da cultura. A estratégia voluntarista visa “alargar e diversificar os públicos das culturas”, bem como “demarcar novos públicos (os escolares, os habitantes dum bairro ‘desfavorecido’) e ir propor-lhes, no local, ‘aventuras culturais’ ”, com o recurso a mediadores, “muitas vezes artistas ou dirigentes associativos”. A estratégia interaccionista é baseada “na relação recíproca entre o artista e uma população ou um grupo, através de oficinas de prática artística, do teatro de rua, de happenings, das residências de artistas”, na linha daquilo que se designa em França, desde os anos 60 do século passado, como a animação sócio-cultural, termo que se traduz na “institucionalização e profissionalização do sector dos equipamentos de bairro destinados ao lazer (casas de juventude, centros sócio-culturais, casas de bairro, etc.)”. Esta última estratégia é muitas vezes criticada, porque “repousa sobre uma concepção relativista da cultura que nega toda e qualquer hierarquia dos valores artísticos e culturais” (id., 17), chegando-se ao extremo de considerar que, devido às “falsas equivalências características dos nossos tempos”, os termos “Arte, artista, cultura são, neste fim do século XX, palavras que já não têm sentido” (Harouel, 2002, 157). Trata-se de um debate que se inscreve na questão mais ampla da legitimidade do Estado para avaliar as actividades culturais que financia, bem como para intervir sobre os conteúdos dessas actividades, em sociedades nas quais se considera que as actividades de criação e de expressão cultural devem desenvolver-se livremente e, designadamente, sem a ingerência do Estado (Urfalino, 1989, 94, 97). O Estado tem, assim, que responder ao dilema de “como conciliar o apoio à cultura reconhecida de qualidade e a regra democrática do respeito da maioria, como evitar o elitismo e o ‘despotismo esclarecido’ fugindo ao populismo e à demagogia”, juntamente com os dilemas das políticas distributivas (“como apoiar a arte sem a controlar”) e das políticas redistributivas (“como estabelecer os “elegíveis” sem definir quem é artista”)” (id., 98). Segundo Urfalino, o Estado tenta resolver estes dilemas através da delegação das escolhas à ‘comunidade artística’, identificando o autor dois mecanismos preponderantes na distribuição directa dos subsídios públicos: um primeiro, que designa como delegação

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implícita, quando a decisão de atribuição e do respectivo montante é tomada pela administração, que actua com base no grau de notoriedade do beneficiário; um segundo, que o autor designa como delegação explícita, quando essa decisão é transferida para uma comissão composta por especialistas (artistas, responsáveis de instituições de difusão, jornalistas) (id., 99). Na ausência dos sistemas corporativos, académicos ou de mercado predominantes noutras épocas, “a acção pública não se pode apoiar em critérios aceites da profissão de artista (cursos de formação, apreciação qualitativa da obra, sanção económica) susceptíveis de circunscrever de modo estável e legítimo os “elegíveis” para o seu apoio” (id., 100), o que leva o Estado a recorrer às “academias invisíveis” designação que este autor define como os “diferentes mecanismos de mediação que permitem decisões de atribuição de apoios, conseguindo para a administração a atenuação duma responsabilidade em matéria de escolhas artísticas” (id., 101). Mas se esta “incorporação, directa ou indirecta, dos campos culturais no seio dos dispositivos institucionais de tomada de decisão” (id., 104) alimenta uma ideia de arte oficial, sustentada ainda pelo papel certificador do Estado relativamente à actividade artística, e se o reconhecimento de culturas específicas e de formas de arte para além das consagradas põe em causa “o fundamento unanimista e universalista da democratização cultural [...] que assentava [...] na ideia de um património cultural comum à nação, se não mesmo à humanidade” (id., 105) nem por isso o Estado, face a este défice crescente de legitimidade, se demite totalmente da sua função de regulador/mediador das actividades artísticas e culturais, não só por razões económicas mas também por razões cívico-simbólicas. A dimensão económica do sector cultural tem conhecido um crescimento constante ao longo das últimas décadas e as actividades culturais têm efeitos directos sobre a economia, mas também efeitos económicos externos, com essas actividades a serem cada vez mais expressamente mobilizados para fins que lhes são extrínsecos, muitas vezes ao ponto de o mundo cultural colocar grandes reservas quer à utilização da cultura para fins que lhe são estranhos, quer à transformação dos artistas em actores ao serviço de fins predominantemente sociais ou económicos (Moulinier, 2001, 117). Se, por um lado, a oferta cultural estrutura e regula a intervenção económica do Estado – que actua em função da “segmentação em diferentes disciplinas, do seu grau variável de legitimidade ou de institucionalização [...] das suas hierarquias…”(Urfalino, 1989, 91) – por outro lado, o Estado é um mediador que regula a oferta, o campo organizacional onde se estruturam as coligações entre os diversos actores, bem como “uma ideologia que visa legitimar o apoio público” pela acção colectiva dos potenciais beneficiários desse apoio, com a corrida aos recursos financeiros a obrigá-los a jogos de concorrência e de concertação, numa estratégia de maximização das suas oportunidades de acesso às subvenções (id., 91). O papel regulador do Estado na economia da actividade cultural veio, assim, determinar em grande parte, a passagem de um processo mediante o qual os artistas se

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emanciparam dos mecenas pela via do mercado para um processo pelo qual o Estado emancipou, em parte, os artistas dos constrangimentos do mercado, com o Estado a substituir-se cada vez mais ao mercado pela multiplicação de iniciativas em todas as áreas artísticas (id., 86). O desenvolvimento de políticas culturais pelo Estado é ainda determinado por uma lógica cívico-simbólica, que as considera como instrumentos ideológicos submetidos às normas da acção pública, devendo a acção cultural do Estado ser justificada pelo interesse que essa actividade tem para a colectividade (id., 97). Segundo outro ponto de vista, essa lógica cívico-simbólica estaria a transformar-se num instrumento do “Estado estético”, que utiliza os programas nos campos das Artes e da Cultura sobretudo para “fortalecer o desenvolvimento de uma ampla cosmética de Estado” constituída em “suporte duma democracia e duma república assustadas com o fraccionamento do espaço social e político [...] e que tem diversos nomes: exclusão, desfiliação, anomia e depressão, dissentimento político” (Ruby, 2000, 7). O estético é mobilizado “pelos homens de Estado e pelos seus ‘especialistas’ da administração cultural, designados agora como ‘mediadores culturais’ ”, para “lutar contra a desagregação da vida colectiva e a violência em público”, partido-se do princípio que poderá servir de base para a consolidação de valores comuns (id., 8, 6) e contrariar a dissolução social do Estado-Nação, que assentava em valores colectivos partilhados a nível nacional. Com o fraccionamento desse âmbito nacional em espaços e tempos locais, o Estado- estético procura fomentar o sentimento de unidade e de pertença a partir de festas, instrumentos de atracção estética que encorajam a partilha e a vivência em comum de sensações de emoção, prazer e alegria, fundadoras de uma comunidade ‘estésica’ ” (id., 8, 9) que substituiu a instrumentalização das Artes e da Cultura à promoção do debate político, anulando “as veleidades de mobilização dos cidadãos e das cidadãs ao fazê-los focar a sua atenção nas modas, nas cerimónias e nos espectáculos nos quais o que importa é ‘sentir qualquer coisa de muito forte’ ” (id., 6). Mas o papel do Estado, nas suas diversas formas e designações (Estado-mecenas, Estado-empregador, Estado-estético), e como mediador/regulador nos campos artístico e cultural, está já a sofrer modificações decorrentes das suas alterações enquanto Estado-Providência, com a crise económica a determinar reduções drásticas nos orçamentos culturais. A fruição gratuita e o apoio público à produção estão a ser progressivamente substituída por “uma cultura submetida ao mercado e pilotada pelo imperativo da comunicação” (Moulinier, 2001, 121). O referido declínio dos financiamentos públicos que, na Europa, começou a afectar a Cultura sobretudo a partir dos anos 90 vem fazer ganhar protagonismo às instituições privadas –designadamente empresas - que, mediante estímulos fiscais mais ou menos atractivos são encorajadas a participar no esforço de financiamento da Cultura, em geral e das Artes, em particular, tornando cada vez mais essas instituições “nas novas estruturas

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que permitiram subtrair a arte à procura social directa” (Moulin, 1993, 182), partilhando cada vez mais essa tarefa com o Estado. O papel destes mediadores privados nos campos culturais levanta algumas reservas, designadamente quanto a uma eventual crescente desresponsabilização do Estado nestas áreas, em matéria quer de financiamento, quer de coordenação e controlo das políticas culturais, bem como relativamente à maior incerteza e irregularidade dos apoios que por esses mecenas são concedidos. Para que possa haver um equilíbrio entre as contribuições pública e privada advoga-se que se exija das políticas públicas as acções estruturantes, definidas como “aquelas que permitem garantir suportes físicos, humanos, organizativos e financeiros às actividades dos agentes criadores” (Silva, 1997, 44) e que se reconheça que “o apoio público é essencial para criar condições e assegurar os meios para que a comunicação recíproca dos sujeitos tente ser verdadeiramente o lugar, sem desequilíbrios, da lógica da comunicação cultural e não de outras lógicas como as da publicidade e do mercado” (Conde, 1989, 121), que são as lógicas que orientam as empresas – principais instituições financiadoras das Artes –, preocupadas com o seu bem próprio, contra a lógica cívica do Estado, que supostamente trabalha para o bem comum cultural. Mas, em contrapartida, a evolução dos modelos de gestão empresarial - que veio acrescentar aos princípios da motivação e da satisfação o da adesão à empresa, em torno de valores comuns, propondo-a assim como um espaço de pertença - transforma a empresa num “lugar social que tem e é uma cultura” (id., 122, sublinhado no texto), com o abandono de uma visão excessivamente tecnocrática e a sua substituição por outra onde os aspectos psico-sociológicos são valorizados. Esta mudança de paradigma, acompanhada do “declínio de ideias colectivistas e o abandono de posturas ideológicas contra a empresa capitalista” (id., 122) vem diminuir as reservas internas e externas contra uma intervenção da empresa na vida cultural, permitindo que “numa situação de escassez de valor (crise de acumulação económica) e de sentido (crise motivacional)” a empresa possa constituir-se como um centro para as referências dos indivíduos, permitindo-lhe afirmar-se como “cidadão” e ver-se relegitimada num contexto social mais aberto, que favorece os investimentos (id., 123, sublinhados no texto). O mecenato cultural desempenha, actualmente, um papel importante nessa relegitimação da empresa, que utiliza a Cultura como instrumento de marketing, promoção e comunicação institucional (Silva, 1997, 42). Para citar um exemplo, o objectivo de “Melhorar a imagem da empresa” aparece como a principal motivação (97%) para o mecenato cultural num inquérito realizado a 100 empresas francesas, logo seguido pela afirmação de que ele “É uma responsabilidade natural da empresa” (56%), numa clara demonstração de como as empresas pretendem ser vistas mais como “cidadãs” com responsabilidades nas sociedades em que se inserem, do que como “caçadoras” de lucros, pois apenas 31% subscrevem o objectivo de “Promover os

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produtos com publicidade diferente” e apenas 2% o de “Pagar menos impostos” (Conde, 1989, 123).

No que se refere aos sectores de actividade artística privilegiados pelo mecenato cultural de empresa, as artes plásticas, a música erudita e o património aparecem em primeiro lugar (id., 124), sem dúvida por serem áreas tradicional e generalizadamente consideradas de prestígio, pressupondo-se que, por “contaminação”, farão aumentar o prestígio das empresas patrocinadoras de eventos nessas áreas.

Mas para além dos mediadores Estado e empresa, haverá que considerar as estruturas do “terceiro sector”, instituições que resultam da associação de agentes, quer criadores, quer consumidores, e que constitui um sector social cuja “lógica de participação militante ou benévola e de quase autoconsumo” o distingue quer das iniciativas do Estado, quer dos objectivos lucrativos das empresas culturais, quer das perspectivas de divulgação e promoção dos apoios mecenáticos (Silva, 1997, 43).

Um outro grupo de mediadores relevantes nos sectores artísticos e culturais é o daqueles que poderão ser designados como divulgadores, de entre os quais se distinguem sobretudo dois grupos: o dos agentes e o dos críticos.

A figura do agente é de primordial importância em sectores nos quais os profissionais se encontram extremamente centrados no seu trabalho de criação/recriação, não desejando ocupar o seu tempo nem as suas energias com as tarefas que vão permitir a passagem desse trabalho de criação às fases da produção e da recepção. Embora nem sempre possam suportar os encargos decorrentes do recurso a um agente, o certo é que assim que atingem um determinado grau de notoriedade, acompanhado de um acréscimo de rendimentos, os artistas delegam num agente as formas sociais do exercício da actividade artística, reconhecendo a importância de encontrar um bom agente (Le Coq, 2002, 134). O agente tem a seu cargo quer o trabalho de promoção do artista, encarregando-se das relações públicas, quer os aspectos legais e financeiros da actividade e esta é geralmente uma ocupação remunerada em função da percentagem das vendas sendo, no caso das artes plásticas, muitas vezes associada a uma actividade de crítico (Moulin, 1997, 211).

A actividade da crítica tem conhecido algumas alterações desde os anos 60 do século XX, quando os críticos funcionavam como “detectores de talentos”, até aos anos 80, durante os quais, no que diz respeito às artes plásticas, os conservadores dos museus passaram a entrar “em concorrência com os críticos na sua função de descoberta e no seu trabalho de reflexão sobre a arte” (id., 207). Os críticos transformaram-se, então, em promotores de artistas, escrevendo em revistas ou jornais especializados, nacionais ou estrangeiros, ou fazendo os prefácios dos catálogos de exposições, falando em conferências em escolas de artes, museus, etc., e organizando exposições em diversos locais, numa trajectória profissional cujo ponto máximo é a direcção de uma galeria ou de um museu prestigiados.

Trata-se de uma actividade profissional que tem grandes afinidades com a actividade artística, na medida em que (i) não são exigidas quaisquer formações ou diplomas específicos; (ii) o único critério de reconhecimento da profissão é o reconhecimento pelos pares; (iii) é desenvolvida em alternância ou simultaneamente para múltiplos empregadores: o artista de quem o crítico é agente, a galeria de que é conselheiro, a

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instituição onde exerce funções de administrador cultural, a empresa da qual é conselheiro artístico, a escola de arte onde ensina, o museu ou galeria para os quais organiza exposições.

A institucionalização da inovação que determinou, em grande parte, a substituição dos críticos pelos conservadores dos museus, verificou-se também nas artes do espectáculo, onde o crescente distanciamento da vanguarda (ou das vanguardas: Conde, 1996, 53) relativamente aos públicos, mesmo eruditos, veio exigir o reforço do comentário e a apresentação verbal da obra, que já tinham, aliás, começado a tornar-se necessários a partir do desenvolvimento, na segunda metade do século XVIII, da edição gráfica, com o compositor a ser “cada vez menos o intérprete da sua obra publicada, impressa”, preocupando-se em comentá-la, “receoso da sua recepção longínqua, anónima e aleatória” (Escal, 1997, 23). Hoje o comentário e a apresentação da obra, a sua “mediação verbal”, revestem-se de tanta importância que, por exemplo, o texto de apresentação de uma obra gravada é frequentemente objecto de análise crítica, a par da interpretação ou da qualidade técnica da gravação, sendo o nome do seu autor, o “intermediário, esse profissional do paratexto” expressamente citado (id., 27).

A crítica no sector musical ocupa-se sobretudo dos intérpretes e da obra gravada, mas alguns críticos podem centrar-se na criação contemporânea, como foi o caso em França, onde vários críticos se associaram num pequeno núcleo de intermediários que organizam os festivais de vanguarda há 15 anos, como forma de resposta aos empresários e organizadores de concertos que “se tornaram um corpo social de quase-funcionários, habituados a fazer sempre os mesmos gestos, no mesmo local, para as mesmas pessoas” (Menger, 2001, 79). Esta intervenção para além da simples mediação verbal ilustra o carácter múltiplo da actividade crítica, que é não só um “nó” da rede de mediações entre a criação e a recepção da obra, mas também constitui ela própria uma rede “de influências, de alianças, de tradições”, bem como um “…encadeamento de associações: associação de critérios, de posturas, de subjectividades” (Nicolas-Le Strat, 1998, 52) que, no caso citado, a levaram a intervir activamente no plano da acção concreta.

Finalmente, não pode deixar de assinalar-se a emergência de um novo tipo de mediador, que corresponde a uma nova profissão especializada: o gestor cultural. A crescente complexidade das componentes económicas, legais e financeiras necessárias para implementar projectos determina que a promoção da cultura já não seja mais “uma prerrogativa dos próprios artistas ou de figuras clássicas como os galeristas, os directores de teatro ou os editores” (Lempen, 2001, 9), mas de profissionais cuja formação especializada é assegurada através de cursos que se vêm multiplicando, na Europa, desde os anos 90 do século passado.

Como profissão relativamente recente, a designação de “gestor cultural” não recobre ainda uma realidade muito circunscrita, podendo falar-se deste profissional enquanto responsável: (i) pelos aspectos culturais de um projecto, de uma empresa ou de um processo (gestor para a cultura); (ii) pela gestão de um projecto cultural (gestor da cultura); (iii) pela articulação dos interesses do artista criativo com os do executivo industrial ou comercial (gestor entreculturas) (Heller, 2001, 22). No entanto, é esta última actividade, a de estabelecer ligações entre “mundos” diferentes, aquela que define a actividade principal do gestor cultural e a que determina a sua função predominante de mediador no sistema de produção artístico-cultural.

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3 - O PÓLO DA RECEPÇÃO

O sistema de recepção/ consumo, nas suas vertentes sociológica e económica, terá que ser analisado no cruzamento (i) das políticas culturais nacionais, (ii) dos desenvolvimentos das tecnologias e das indústrias culturais e (iii) dos novos contextos das práticas artísticas e culturais, que regulam e estruturam o campo de acção do(s) público(s) destinatário(s) e co-construtor(es) da obra.

É a partir da interacção de todos estes factores de estruturação do(s) público(s) que se torna possível identificar as diferentes categorias de recepção da obra artística/musical, bem como as respectivas lógicas de acção.

3.1 – OS FACTORES DE ESTRUTURAÇÃO DO(S) PÚBLICO(S)

3.1.1 - AS POLÍTICAS CULTURAIS

No desenvolvimento das suas políticas culturais nacionais, os poderes públicos desempenham um papel regulador estruturante da actividade de produção artística e cultural, quer de forma directa pela sua acção voluntarista (“executiva”), quer indirecta, pelas suas funções normativa stricto sensu (“legislativa”) e certificadora (“judicial”).

As políticas culturais voluntaristas dos Estados nas suas várias instâncias – centrais, regionais, locais –, justificadas pelo seu interesse para a comunidade, têm tido como modelo dominante, desde a Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, desde o início dos anos 60, o da democratização da cultura dita de ‘qualidade’ (Urfalino, 1989, 97), visando o acesso de reportórios considerados “elitistas” a um muito maior número de destinatários.

A este modelo de “democratização cultural” veio posteriormente acrescentar-se aquele a que se pode chamar o da “democracia cultural”, fundamentada no princípio do “relativismo cultural, ou seja, o reconhecimento de que cada cultura tem a sua própria validade e coerência e não poderá ser julgada a partir dos critérios prevalecentes naquela que nos é mais familiar” (Crespi, 1997, 17, sublinhado no texto).

A “democracia cultural” visa também o alargamento de público(s), mas aqui partindo do alargamento dos próprios reportórios, pelo reconhecimento de “dignidade” a formas de expressão artística e cultural anteriormente afastadas dos apoios públicos, numa política de inclusão que expressamente assume e acolhe o “universalismo das diferenças” (Hutnyk, 2000, 9) e que acrescenta a conquista de novos públicos ao aumento de efectivos do público tradicional, decorrente da política de democratização cultural. O Estado apoia, assim, a oferta - uma oferta agora muito mais alargada – esperando formar uma procura (Urfalino, 1989, 102).

Para além da sua acção “executiva”, o Estado tem ainda uma importante acção regulamentadora e estimuladora do sector das indústrias culturais e do mercado da arte, não só pela sua condição de produtor do enquadramento legal e regulamentar da

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organização dos mercados, mas também enquanto investidor institucional (Menger, 1993, 1590), sem esquecer o seu papel como regulador e promotor da cultura nacional, no âmbito e de acordo com as orientações das instâncias supranacionais em que se integra (caso da União Europeia, para alguns países da Europa, por exemplo) e no contexto internacional em que, por força da mundialização, os bens e serviços culturais de cada país se têm que debater com a concorrência de outros. Estas políticas reguladoras têm impacte nos públicos da Cultura, com as escolhas que são feitas a determinar, expressa ou implicitamente, os públicos privilegiados.

Finalmente, há que referir a função certificadora do Estado, que se exerce através do “juízo” de valor que é percepcionado como sendo feito pelo Estado quando atribui um qualquer tipo de apoio a um indivíduo, a um projecto ou a uma instituição, garantindo-lhes o selo de qualidade que eles não podem obter por outras vias, conforme já anteriormente referido. A intervenção pública é de tal modo relevante que “a consagração torna-se indissociável do grau de apoio do Estado” e “certificação artística e obtenção de apoio público já não podem ser dissociados” (Urfalino, 1989, 104). Se esta associação é determinante do ponto de vista da oferta, ela é-o também do ponto de vista da procura, favorecendo a adesão dos públicos – pelo menos no caso dos mais esclarecidos/informados – aos artistas e às iniciativas que se apresentam com o “aval” dos poderes públicos.

Os graus e os tipos de intervenção do Estado na Cultura não são, contudo, dados adquiridos para todo o sempre, inquestionáveis e imutáveis, mas questões controversas, que suscitam profundas clivagens entre os defensores de uma política liberal e os advogados do intervencionismo relativamente a esta matéria.

Partindo do dilema de que, apesar de todos os esforços feitos, o acesso à Cultura é sinónimo de privilégio de que só alguns podem beneficiar e de que a intervenção estatal incide principalmente sobre as vanguardas, que excluem os “não-iniciados”, os primeiros defendem uma política de não intervenção, negando o problema (Heinich, 2001, 62), enquanto os segundos defendem uma acção cultural voluntarista por parte do Estado, de forma a facultar aos mais desfavorecidos a fruição de obras de qualidade. Esta política teve resultados positivos, em muitos casos, mas também muitos insucessos, sobretudo devido às desigualdades na posse das referências para apreciar obras de acesso difícil (id., 62).

Seria como resposta a estes dilemas que, segundo a autora citada, se teriam desenvolvido outros dois tipos de política, que ela designa como o populismo e o elitismo. No primeiro caso, trata-se de reivindicar “ o direito à diferença, elogiando a cultura popular” o que se, por um lado, permite valorizar formas de expressão reconhecidas como “autênticas”, por outro pode acarretar o risco de “encerrar os mais desfavorecidos na sua privação, reduzindo a ‘arte’ a uma ‘cultura’ de lazer – da televisão ao futebol” (id., 62). No segundo caso, favorece-se a vanguarda, sem preocupações de democratização, o que tem a vantagem de “lisongear o meio reduzido mas prestigiado dos especialistas de arte e dos artistas mais conhecidos” mas também o inconveniente de “excluir os artistas e os públicos menos favorecidos e de atiçar as críticas contra o intervencionismo do Estado” (id., 62).

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Paralelamente a este discurso político sobre as políticas culturais vem-se desenvolvendo, de forma crescente, um discurso económico, identificável quando a política cultural contemporânea se centra em argumentos de política social e de emprego ou nos constrangimentos económicos e tecnológicos. A Cultura é definida não apenas como um campo particular de novas profissões possíveis, mas também como a base de uma reorientação necessária dos mercados de trabalho e da sua apreciação simbólica, numa era em que a transformação das estruturas económicas, com o desaparecimento da sociedade industrial dos séculos XIX e XX, vai afectar os modos do trabalho no futuro, num mundo “onde já não se exercerá uma profissão, mas múltiplas actividades, onde não se prosseguirão carreiras monosequenciais, mas biografias profissionais polisequenciais e experimentais, onde não se terá um único objectivo de vida, mas ‘cachos’ de interesses e de objectivos diversos” (Macho, 2001, s/p).

Neste novo mundo, o papel dos Estados relativamente à Cultura não será o de a utilizar enquanto instrumento de identidade e de unificação nacional, como no apogeu dos Estados-Nação, mas o de a apoiar enquanto capital simbólico do qual se espera que favoreça “o desenvolvimento e a consolidação de sistemas transnacionais ou até mesmo o nascimento de uma sociedade mundial” (id.).

Se as alterações do Estado-Nação irão determinar inevitavelmente reformulações nas políticas culturais nacionais (no sentido apontado por Macho e/ou noutros) a crise do Estado-Providência vai igualmente influenciar essas políticas, como já disse. A crise económica e a evolução ideológica ocorridas nas sociedades desenvolvidas vieram pôr em causa este modelo, questionado também porque, apesar do desenvolvimento de uma política cultural voluntarista, “a não-redução do fosso entre a procura e a oferta reduz o crédito da democratização cultural” (Urfalino, 1989, 103) e mina os alicerces do “Estado - empregador”, evolução do “Estado-mecenas”, para utilizar as expressões de Urfalino (id., 87).

As políticas culturais dos Estados serão, pois, cada vez mais determinadas pelo relativo “apagamento” da intervenção dos poderes públicos e pela importância crescente do sector privado, princípios defendidos, nesta como noutras áreas, pelas correntes neo-liberais dominantes e que aqui convergem não só com os interesses do Estado, a braços com escassez de recursos, mas também com os interesses das empresas que “se empenham, interessadas na melhoria da imagem, em apoiar particularmente as actividades culturais, quer no país onde estão sediadas, quer no estrangeiro” (Lima dos Santos, 1994, 439).

As controvérsias quanto aos dilemas decorrentes das diversas funções possíveis da acção cultural do Estado e quanto às clivagens relativas quer aos papéis do sector público e do sector privado (bem como da “terceira via”) nas áreas da Cultura e das Artes, quer aos eixos nacional e transnacional dessas mesmas áreas, demonstram como é difícil “a tarefa de pensar [...] as cumplicidades e complexidades das políticas culturais” (Hutnyk, 2000, 7).

3.1.2 - OS DESENVOLVIMENTOS DAS TECNOLOGIAS E DAS INDÚSTRIAS CULTURAIS

O desenvolvimento das novas tecnologias tem vindo a permitir novas condições técnicas de criação, produção e reprodução no domínio das diversas expressões artísticas

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e culturais e determinou mudanças radicais no que se refere à recepção e ao consumo nessas áreas, nas sua vertentes endo-domiciliar e exo-domiciliar.

O consumo doméstico de bens culturais disparou vertiginosamente com o acesso individual e familiar a um conjunto de micro-equipamentos, dos aparelhos radiofónicos e televisivos às aparelhagens de alta- fidelidade e aos videogravadores, dos leitores de CDs aos computadores pessoais e aos leitores de CD Roms, dos walkman à Internet, das webcam aos equipamentos de registo e cópia de cassettes, CDs, CDROMs e minidiscos.

Para além das possibilidades que confere do ponto de vista da recepção/ consumo, o desenvolvimento técnico e tecnológico veio alargar também as possibilidades do ponto de vista da produção, uma vez que “os avanços da tecnologia significam que se pode produzir uma gravação no nosso próprio quarto” (Youth Music, 2002, 10), o que significa que, no limite, a cadeia de mediações entre a produção e a recepção se poderá constituir sem elos humanos, apenas com o recurso a mediadores tecnológicos.

Se se verifica hoje, nas áreas das Artes e da Cultura, uma “hegemonia das práticas desenvolvidas no espaço doméstico” (Abreu, 2000, 125) decorrente da mediatização massiva “sustentada pela cadeia interdependente e também interconcorrente de diversas indústrias culturais” (Conde, 1992, 151), algumas destas não deixam de influenciar também o pólo exo-domiciliar da recepção/consumo, como é o caso do Cinema ou das grandes produções musicais que atraem os espectadores familiarizados com o artista ou o grupo graças aos CDs que os divulgam às grandes massas.

Antes de prosseguir, importa lembrar que a expressão indústrias culturais suscita algumas questões. Em primeiro lugar, a legitimidade do uso da própria expressão é posta em causa por aqueles a quem repugna a associação de dois termos pertencentes a mundos diferentes e cujos respectivos princípios organizadores são vistos como mutuamente incompatíveis. Aquilo a que se chama indústrias culturais, “justaposição de palavras destruidora da ideia de cultura [...] são, de facto, as indústrias da distracção”, com a política do “tudo é cultural” a “reconhecer a qualidade de cultura a actividades tão estranhas à verdadeira cultura como a moda, a publicidade ou a gastronomia, a formas de distracção tão negadoras da cultura como a banda desenhada, o rock ou as canções ligeiras” (Harouel, 2002, 175, 176).

Consequentemente, a expressão “consumo cultural” é igualmente rejeitada, com base na oposição, considerada total, entre cultura e consumo, uma vez que “a cultura é aquisição e construção [...] de conhecimentos, de saberes, de pensamentos, de recordações, de reflexões, de comparações…”, enquanto “o consumo assenta numa destruição [...] é fundado sobre o carácter perecível, consumível, do que é objecto de consumo” (id., 209, 210).

Também Adorno chamara já a atenção para os perigos da colagem dos rótulos de cultura e de diversão nas actividades artísticas, considerando que “o desenvolvimento do consumo artístico, ao qual a sociedade atribui funções de divertimento, de prazer individual, torna-se um dos veículos ideológicos da dominação” (Menger, 2001, 16).

Se, apesar das muitas ou algumas reservas suscitadas pela associação dos dois termos, se considerar a expressão indústrias culturais útil do ponto de vista operacional, resta ainda a questão de saber qual o seu conteúdo aceitável, isto é, o que é que pode ou deve

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ser categorizado como indústria cultural, existindo variações mesmo dentro do mesmo espaço económico, como é, por exemplo, o caso da União Europeia (ELIA, 2001, 5). Duma maneira geral, as indústrias culturais abrangem hoje os seguintes domínios: Publicidade, Filme, Arquitectura, Software interactivo de lazer, Mercados de Artes e de Antiguidades, Música, Artesanato, Artes do Espectáculo, Design, Edição, Design de Moda, Televisão e Rádio (sendo todos estes sectores, no Reino Unido, designados igualmente pelo termo de indústrias criativas), e ainda o Património e o Lazer (id., 5).

Trata-se, pois, de um conjunto de actividades que configuram “um sector de produção, reprodução e difusão de bens e serviços culturais de série, regido por critérios prioritariamente económicos” (Lima dos Santos, 1994, 434), e onde são incluídas as actividades privadas, públicas e do “terceiro sector”.

Pelo determinante papel que desempenham na divulgação de bens e serviços, as indústrias culturais, ao mesmo tempo que alimentam os consumos domésticos, contribuem para o aumento crescente “das práticas de saída dirigidas para espaços públicos e orientadas para actividades lúdicas, conviviais e culturais” (Abreu, 2000, 125). Públicos não habituais vão ao Teatro ver os actores da novela televisiva, à ópera ou ao concerto para conhecer ao vivo os intérpretes tornados familiares pelas mais diversas formas de gravação.

Deste modo, os progressos tecnológicos e as indústrias culturais que os alimentam e dos quais se alimentam são um regulador importante da recepção/consumo cultural, com uma tendência crescente nesse sentido, atendendo a que é um dos sectores industriais de maior crescimento (ELIA, 2001, 5), hábil na exploração de novos “nichos” de mercado (cite-se, como exemplo, o caso do sucesso retumbante da denominada “World Music”, vista pela indústria musical, segundo Hutnyk (2001, 21) como um passo em frente “lucrativo [...] excitante, expansivo e popular na música contemporânea”).

3.1.3 - OS NOVOS CONTEXTOS

Se se entender o contexto como “um sítio para a interacção” (Wiggins, 1999, 87), poderá afirmar-se que a passagem do paradigma da democratização cultural para o da democracia cultural, tal como os desenvolvimentos das indústrias culturais, potenciaram o advento de novos sítios para as interacções entre o pólo da criação e o pólo da recepção, bem como o consequente aumento do número e da qualidade dessas interacções, na medida em que determinaram um aumento crescente da recepção/consumo nas áreas progressivamente incluídas em circuitos de produção, estes também agora mais alargados porque legitimados (i) pelo gosto das minorias cujas expressões passaram a ser valorizadas, (ii) pela adesão das massas às expressões veiculadas mundialmente pelos media de grande expansão, e (iii) pela acção dos poderes públicos, empenhados em fomentar a integração social através de actividades destinadas a sectores desfavorecidos ou marginalizados e de festas e comemorações vistas como momentos que contribuem para essa integração colectiva.

Os públicos expandem-se com a expansão dos loci socialmente reconhecidos como parte integrante do sector artístico e cultural, sejam eles os novos géneros, os novos locais de apresentação desses (mas também dos géneros tradicionais) ou os novos projectos, com os tempos pós-modernos a fomentarem a “afirmação duma pluralidade de

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trajectórias e estratégias de contaminação e sincretismo de referências em todos os campos artísticos sem excepção” (Baptista, 1999, 99).

Ilustrando a afirmação relativa aos novos géneros e locais, cite-se o caso da Música em Londres onde, segundo um estudo realizado em 2000, foi possível identificar, de forma não exaustiva, pelo menos 50 géneros e subgéneros diferentes praticados profissionalmente (ELIA, 2001, 9), com os músicos a receberem royalties da música tocada – ao vivo, gravada ou transmitida pela rádio e pela televisão – em locais tão variados como bares, hotéis, clubes, restaurantes, cafés, lojas, cinemas, salões de dança, centros de férias, cabeleireiros e salas de espera (id., 9). Esses géneros incluem quer a música clássica, recontextualizada agora para outros fins (ilustração sonora de “spots” publicitários, música de fundo nas esperas telefónicas, nos toques de telemóveis ou nos gabinetes médicos e dentários, por exemplo), quer as músicas contemporâneas, na sua vertente erudita e, sobretudo, nas suas formas populares, agora sob a designação de músicas amplificadas (ou electro-amplificadas)/actuais (Brandl, 2000, 258).

No que se refere aos novos locais, estes estão muitas vezes directamente relacionados com os novos projectos artísticos e culturais que (i) são dirigidos a sectores específicos da comunidade local, desenvolvendo-se em centros para minorias étnicas ou religiosas, para jovens ou para a terceira idade, em hospitais ou centros de saúde, em prisões ou reformatórios ou que (ii) implicam formação fora das estruturas formais e para públicos específicos.

Em ambos os casos está-se perante os desenvolvimentos actuais do movimento radical, surgido nos anos 60 e 70 do século passado, das “artes na comunidade”, que repudiava “a noção tradicional do artista como um profissional ‘inspirado’ produzindo artefactos para serem admirados” e que procurava desenvolver “uma abordagem da arte mais acessível e participada, que dava mais ênfase ao processo, à interacção entre as pessoas, do que ao produto”, questionando, por outro lado, “a arte ‘erudita’ e o domínio dos media e concentrando os seus esforços nas formas de arte vernáculas de grupos que, por qualquer razão, eram vistos como sendo culturalmente desprivilegiados” (Cole, 1999, 141, sublinhado no texto).

Esta perspectiva valoriza o local, com os artistas a desenvolverem obras específicamente criadas para um determinado contexto (site-specific art) ou com determinados actores locais (residências de artistas ou projectos artísticos comunitários), verificando-se mesmo a emergência dos chamados “espaços-projectos” atrás referidos.

Em suma, como assinalava Becker, “ os mundos da arte mudam constantemente, à medida que evoluem o recrutamento dos seus membros, o volume dos recursos disponíveis e os tipos de públicos” (Brandl, 2000, 291), sendo vital para as instituições de formação estarem atentas a todos estes sinais, designadamente quanto à última variante assinalada: os públicos, que vão permitir completar e dar sentido à obra para cuja produção essas instituições preparam.

3.2 - PÚBLICOS E LÓGICAS DE ACÇÃO

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Da oferta decorrente da intersecção dos campos das políticas culturais, dos progressos tecnológicos e dos novos contextos decorre uma sectorialização da procura que obriga a falar de “públicos” ou “categorias de recepção” (Hennion, 1993, 17) no plural. Construída a noção de público como “uma lógica social de acesso a um bem ou a um serviço ‘público’ e de uso do dito bem ou serviço [...] o singular deixa então de ter sentido, havendo mesmo tantos públicos quantos conjuntos de pessoas obedecendo às mesmas lógicas” (Guy, 1992, 89) de recepção/consumo duma oferta cada vez mais diversificada por força das interacções nos três campos atrás referidos.

Na tentativa de apreensão de algumas das lógicas dominantes neste jogo de oferta e de procura de bens e serviços culturais procurarei cruzar diversas variantes que operacionalizam a sua recepção/ consumo.

Neste exercício, parto do princípio de que essa recepção é um processo de co-construção/ reconstrução da obra, segundo a perspectiva construtivista atrás assinalada, mas tendo em conta que (i) essa actividade, apesar de activa, não é necessariamente crítica ou subversiva (Lima dos Santos, 1994, 423), desde logo porque (ii) ela é elaborada a partir dos produtos culturais/simbólicos a que cada indivíduo tem acesso (id., 423) e estes estão desigualmente distribuídos, condicionando a recepção e determinando uma categorização da procura segundo o “capital cultural” dos diversos públicos.

Mesmo no caso dos consumos de massa, onde se torna mais difícil uma diferenciação dos consumidores, os produtos são apropriados e reinterpretados segundo lógicas diferentes: “Uma série de televisão americana como Dallas, que teve um sucesso quase mundial, desde os bairros de lata de Lima, no Perú, até às vilas saharianas da Argélia, não foi compreendida da mesma maneira nem vista pelas mesmas razões num determinado local, num determinado meio social”, porque “por mais estandardizado que possa ser o produto duma emissão, a sua recepção não pode ser uniforme e depende muito das particularidades culturais de cada grupo, assim como da situação em que se encontra cada grupo no momento da recepção” (Cuche, 2001, 75).

Partindo da estrutura da oferta, importa esclarecer que o universo subjacente às minhas considerações é apenas o das áreas artísticas da Música e daquelas onde a Música – área central do presente trabalho – tem ou pode ter um papel relevante: Dança, Teatro, Cinema e sector audio-visual, em geral. Distinguirei nestas áreas três tipos de oferta - os produtos das indústrias culturais, os espectáculos ao vivo e os “produtos” culturais comunitários – a que me parecem corresponder lógicas distintas.

Do ponto de vista da procura, partirei da noção estrutural de “agregados receptores” proposta por Conde (1992, 154) para caracterizar a recepção/consumo segundo a sua dimensão, distinguindo como “audiências” os agregados de maiores dimensões (como os da TV ou do cinema), como “públicos” os de dimensões intermédias (como os do teatro) e como “clientelas” os de dimensões reduzidas (como os da ópera) (id., 154). A cada um destes tipos procurarei fazer corresponder uma ou mais categorias segundo o respectivo capital cultural, com base na distinção sugerida por Heinich (1992, 16) entre as pessoas vulgares, depositárias do senso comum, os eruditos (os que descodificam o sentido das obras e interpretam os seus significados) e os estetas (os que se interessam sobretudo pelas qualidades formais, avaliando-as como especialistas), procurando articulá-las com as lógicas diferenciadas que determinam (Ver Quadro 3).

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Esta categorização permite dar conta do facto de a recepção não se reduzir ao momento da fruição, implicando igualmente a mobilização de “todo um passado de múltiplas referências” (Lopes, 1996).

Os produtos das indústrias culturais – que induzem, sobretudo, práticas endo-domiciliárias – são caracterizados pelas suas condições de produção e de consumo em massa, alimentando-se duma constante actualização/renovação da oferta não só para satisfação da procura presente como para o estímulo a futuras procuras.

Concomitantemente, e na linha dum movimento geral de “desestandardização dos bens de consumo” (François, 2006, 183), assiste-se agora a uma preocupação de diferenciação, a um esforço no sentido de responder de forma mais individualizada à diversidade das novas procuras, estimulada pelo esbatimento de tradicionais clivagens sócio-culturais, o qual se verifica em consequência de factores como “a elevação das classes médias, alargamento do sistema escolar, democratização dos acessos ao consumo cultural e disseminação estética produzida pelos media e por novos suportes ‘distintivos’ (publicidade, moda, design) porque estatutariamente requalificados” ( Conde, 1992, 146).

Esta tendência é especialmente notória na indústria discográfica, que requer uma procura fortemente segmentada, sendo economicamente compensada pelo facto de responder à diversificação actual dos usos, estilo e géneros em música (Coulangeon, 2005, 123).

O paradigma da massificação é informado por uma lógica industrial (Boltanski & Thévenot, 1991, 252), que visa uma produção estandardizada e cuja eficácia decorre da constante inovação que, no caso das indústrias culturais, diz respeito tanto aos “continentes” (hardware) como aos contéudos (software), aos elementos técnicos como aos humanos.

O paradigma da diferenciação corresponde a uma lógica comercial (id., 241), com a oferta a lutar, em termos concorrenciais, pela identificação dos novos “nichos” de mercado e pela satisfação, ao melhor preço, das necessidades dos consumidores, transformados em clientes pela desmassificação do consumo nas suas formas diferenciadas. Estamos aqui no quadro da “concorrência pela diferença”, através da qual as indústrias culturais, na sua maioria oligopólicas, procuram asseguar a sua hegemonia no mercado (Coulangeon, 2004, 75)

O agregado receptor por excelência dos produtos das indústrias culturais são as audiências, no caso do primeiro paradigma sob a forma a que chamarei audiências-consumidoras: grandes massas de receptores dispersas no tempo e no espaço, sendo este, numa era de globalização, um espaço mundial (embora limitado àqueles que detêm os recursos financeiros e os conhecimentos básicos para usufruir desses produtos).

O capital cultural das audiências é o das pessoas vulgares, os detentores do senso comum. Alargando a todos os tipos de consumo de massas os conceitos de familiaridade e proximidade, mobilizados por Conde (1992, 149) para caracterizar os consumos de “alta cultura” proporcionados pela mediatização cultural, direi que as audiências actuam, enquanto consumidores, segundo o princípio de familiaridade, baseado no reconhecimento (id., 149): consome-se porque se reconhece o produto que é oferecido e esse produto é, muitas vezes, baseado em clichés, “factos recorrentes” percebidos “como

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um ‘lugar-comum’, isto é, partilhado e retomado por várias pessoas diferentes”, o qual assenta “numa partilha com os outros”, conforme assinala Rudent (2000, 96) a propósito do cliché musical.

Essa sensação de reconhecimento, associada ao sentimento de partilha com um “grupo de pertença” – ainda que este possa estar fisicamente disperso ou seja mesmo apenas virtual – permite identificar aquilo a que chamarei uma lógica de integração neste tipo de recepção/consumo das audiências: determinado produto é procurado e consumido porque faz parte de determinado mundo que se conhece/ domina e a que se pertence ou onde se pretende ser aceite. Trata-se de uma lógica claramente determinante, por exemplo, dos comportamentos juvenis, nesta como noutras actividades sociais.

Embora os consumos culturais assentes no reconhecimento (familiaridade) não evoluam necessariamente para consumos baseados no conhecimento (proximidade), tal pode acontecer, com parte das audiências a aumentar o seu capital cultural e a alterar a sua procura constituindo-se, no âmbito do paradigma da diferenciação, naquilo a que chamarei audiências clientes: grandes grupos com necessidades e interesses mais delimitados do que os das audiências consumidoras e satisfeitos pelas indústrias culturais “eficazes”, que respondem através da referida estratégia da diferenciação, passando dos modelos universais de “pronto-a-vestir” aos modelos “por medida”.

Nos espectáculos ao vivo – domínio, por excelência, das práticas exo-domiciliárias – distinguirei os “eruditos” dos “populares”. No primeiro caso, a lógica da oferta é, sobretudo, a do renome: renome dos artistas implicados, renome do local de apresentação, renome dos próprios patrocinadores. Esta procura de renome destina-se a satisfazer os interesses do agregado receptor privilegiado que é, neste sector “elitista” do mundo erudito, a clientela, constituída sobretudo por eruditos e estetas actuando segundo uma lógica de distinção: consome-se o espectáculo porque se pertence a um círculo restrito que se distingue das grandes massas e porque se possui o capital cultural necessário para o interpretar (e para o “traduzir” àqueles que o frequentam por razões de prestígio social ou de aspiração cultural mas que não detêm tal capital).

No segundo caso, a lógica da oferta é uma lógica sobretudo comercial, destinada a captar um agregado receptor pouco homogéneo, que é o público, consumidor dos espectáculos entre uma lógica de integração – caso dos grandes concertos de músicas amplificadas – e uma lógica de distinção – caso dos espectáculos de “ballet” ou dos espectáculos de teatro e de música com programas baseados em autores clássicos conhecidos do “grande público” (geralmente por via de adaptações das suas obras), bastando, num caso e noutro, a detenção de um capital cultural ao nível do senso comum e de uma informação cultural mínima.

Por produtos culturais comunitários entendo uma oferta artística que utiliza as artes como um meio para a prossecução de objectivos não prioritariamente artísticos, que visa mais os processos que os produtos e que encontra as suas raízes no movimento das “artes na comunidade” já anteriormente referido. Com mais expressão nuns países do que noutros, esta modalidade de oferta inclui actividades formativas e educativas destinadas a sectores bem delimitados da comunidade (crianças, jovens, deficientes, desempregados, terceira idade, doentes, jovens delinquentes, reclusos, minorias étnicas ou religiosas, etc), bem como espectáculos montados com a participação de elementos destes ou de outros

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sectores comunitários (recorde-se, por exemplo, a realização, por iniciativa da Casa da Música da ópera Demolição, com a participação dos moradores de um bairro degradado (Aldoar) da cidade do Porto).

A lógica que orienta esta oferta é uma lógica cívica, que visa proporcionar mais oportunidades de expressão e de participação – em suma, de cidadania - a indivíduos ou grupos com necessidades especiais. O agregado receptor é aqui a clientela: cada oferta é dirigida a um grupo restrito e bem delimitado, o modelo “por medida” é aqui a norma. Em congruência, o capital cultural dos receptores varia em função da oferta: embora a generalidade das ofertas, nesta modalidade, seja dirigida a pessoas vulgares, dotadas apenas de senso comum, pode haver casos em que exista um capital cultural com um mínimo de erudição ou especialização na área, como no caso de acções de formação de amadores (aos quais se exige, muitas vezes, um certo grau de conhecimentos) ou em actividades que envolvem expressões artísticas étnicas ou regionais (cujos destinatários são já “especialistas” nessas expressões).

A lógica do agregado receptor é uma lógica de inclusão: os destinatários (ou quem decide por eles, visto que muitas destas clientelas não são totalmente autónomas para tomar decisões por si) optam por consumir estes produtos porque os percepcionam como potencialmente facilitadores da sua maior integração (ou reintegração), visibilidade ou reconhecimento social, utilizando as oportunidades de participação em actividades artísticas como meios para lutar contra as formas de exclusão, individual ou grupal, de que são vítimas por força da pobreza, da marginalização, da doença, da delinquência, etc.

Os aspectos acima esboçados podem ser sintetizados nos termos do Quadro 3.

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QUADRO 3 - PÚBLICOS E LÓGICAS DE ACÇÃO (ARTES DO ESPECTÁCULO E ÁUDIO-VISUAIS)

TIPOS DE OFERTA

LÓGICAS DA OFERTA

AGREGADOS

RECEPTORES

CAPITAL

CULTURAL

LÓGICAS DOS

AGREGADOS

RECEPTORES

Industrial

Audiências consumidoras

Senso comum

Integração

Produtos das indústrias culturais:

-massificados

-diferenciados

Comercial Audiências

clientes

Senso comum Integração

Renome

Clientelas

Erudito/espe-cialista

Distinção

Espectáculos ao vivo:

-eruditos

-populares Comercial Públicos Senso comum Integração/Dis-tinção

Produtos culturais comunitários

Cívica Clientelas Variável de

acordo com as clientelas

Inclusão

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