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CAPÍTULO 5 – O SISTEMA DE FORMAÇÃO MUSICAL Para completar a audição das vozes que constroem as “polifonias” do sistema de avaliação do ensino superior de música irei ocupar-me, no presente capítulo, do sistema de formação musical, constituído por uma rede (i) de instituições que proporcionam o ensino formal de música, (ii) de organizações que visam práticas amadoras e/ou formação informal e (iii) de indivíduos que ensinam a título particular. O peso relativo de cada um destes grupos de actores no sistema varia de país para país no que diz respeito aos níveis não superiores deste ensino. Quanto ao nível superior - que é o que interessa no âmbito do presente trabalho - ele é sempre ministrado em instituições de ensino, que podem revestir a forma de (i) escolas autónomas (muitas vezes ministrando igualmente formação profissional nas áreas do teatro e da dança), integradas no sistema universitário ou politécnico dos respectivos países; (ii) faculdades ou departamentos de escolas de Artes integradas num ou noutro desses subsistemas; (iii) faculdades ou departamentos integrados em universidades, mantendo muitas vezes as suas designações de origem, como “conservatório” ou “academia de música”; (iv) escolas autónomas não integradas no sistema de ensino superior dos respectivos países, dependendo de outras tutelas que não as da Educação ou do Ensino (Cultura, por exemplo). Embora cada instituição de ensino superior de música apresente traços identitários próprios e específicos, é possível discernir um conjunto de características comuns – mesmo para além das diversas fronteiras nacionais – que permitem falar num tipo de organização: a organização escola superior de música. É esta organização-tipo que me proponho analisar, enquanto contexto dos modelos de avaliação a investigar, na medida em que é ao nível da instituição que são actualizados, em modelos praticados e através duma “voz” própria, os modelos normativos que consubstanciam os princípios (a”voz”) do sistema político-administrativo em matéria de avaliação. E se essa actualização assume formas diferenciadas em cada instituição, não é possível deixar de detectar lógicas comuns de acção, decorrentes da inscrição dessas instituições em “mundos” comuns e da sua forte dependência da “voz” do sistema de produção artística/musical, atrás analisado com o objectivo principal de ajudar a elucidar as interacções em curso nas instituições de ensino superior de música. De acordo com a perspectiva construtivista adoptada no presente trabalho (ver Capítulo II), a organização escola superior de música será analisada enquanto “constructo humano ou [...] conjunto humano estruturado” (Bernoux, 1985, 138), um sistema de acção concreto que “coordena as acções dos seus participantes através do mecanismo de jogos relativamente estáveis e que mantém a sua estrutura, isto é, a estabilidade dos seus jogos e as relações entre estes, por meio de mecanismos de regulação que constituem outros jogos” (Crozier & Friedberg, 1977, 286). Num mundo em que se verifica “a explosão das estruturas clássicas e uma multiplicação dos actores que podem ser simultâneamente considerados como internos e 163

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CAPÍTULO 5 – O SISTEMA DE FORMAÇÃO MUSICAL Para completar a audição das vozes que constroem as “polifonias” do sistema de avaliação do ensino superior de música irei ocupar-me, no presente capítulo, do sistema de formação musical, constituído por uma rede (i) de instituições que proporcionam o ensino formal de música, (ii) de organizações que visam práticas amadoras e/ou formação informal e (iii) de indivíduos que ensinam a título particular.

O peso relativo de cada um destes grupos de actores no sistema varia de país para país no que diz respeito aos níveis não superiores deste ensino. Quanto ao nível superior - que é o que interessa no âmbito do presente trabalho - ele é sempre ministrado em instituições de ensino, que podem revestir a forma de (i) escolas autónomas (muitas vezes ministrando igualmente formação profissional nas áreas do teatro e da dança), integradas no sistema universitário ou politécnico dos respectivos países; (ii) faculdades ou departamentos de escolas de Artes integradas num ou noutro desses subsistemas; (iii) faculdades ou departamentos integrados em universidades, mantendo muitas vezes as suas designações de origem, como “conservatório” ou “academia de música”; (iv) escolas autónomas não integradas no sistema de ensino superior dos respectivos países, dependendo de outras tutelas que não as da Educação ou do Ensino (Cultura, por exemplo).

Embora cada instituição de ensino superior de música apresente traços identitários próprios e específicos, é possível discernir um conjunto de características comuns – mesmo para além das diversas fronteiras nacionais – que permitem falar num tipo de organização: a organização escola superior de música.

É esta organização-tipo que me proponho analisar, enquanto contexto dos modelos de avaliação a investigar, na medida em que é ao nível da instituição que são actualizados, em modelos praticados e através duma “voz” própria, os modelos normativos que consubstanciam os princípios (a”voz”) do sistema político-administrativo em matéria de avaliação. E se essa actualização assume formas diferenciadas em cada instituição, não é possível deixar de detectar lógicas comuns de acção, decorrentes da inscrição dessas instituições em “mundos” comuns e da sua forte dependência da “voz” do sistema de produção artística/musical, atrás analisado com o objectivo principal de ajudar a elucidar as interacções em curso nas instituições de ensino superior de música.

De acordo com a perspectiva construtivista adoptada no presente trabalho (ver Capítulo II), a organização escola superior de música será analisada enquanto “constructo humano ou [...] conjunto humano estruturado” (Bernoux, 1985, 138), um sistema de acção concreto que “coordena as acções dos seus participantes através do mecanismo de jogos relativamente estáveis e que mantém a sua estrutura, isto é, a estabilidade dos seus jogos e as relações entre estes, por meio de mecanismos de regulação que constituem outros jogos” (Crozier & Friedberg, 1977, 286).

Num mundo em que se verifica “a explosão das estruturas clássicas e uma multiplicação dos actores que podem ser simultâneamente considerados como internos e

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externos “ (Amblard et al., 1996, 42) justifica-se a utilização do conceito de sistema de acção concreto na sua reformulação mais recente: a de sistema de acção organizada, enquanto contexto de acção marcado pela interdependência estratégica entre os actores (Friedberg, 1993, 15). Estes actores são indivíduos dotados da capacidade estratégica de fazer escolhas com base nas zonas de incerteza dos contextos de acção em que actuam, escolhas essas que visam ou manter ou alargar o seu poder de acção (Amblard et al., 1996, 25).

Este conceito de actor estratégico foi alargado pela sociologia das lógicas de acção, que o concebe também como “histórica e culturalmente constituído [...] mobilizando sistemas de equivalência, operando traduções ou sendo ele mesmo traduzido” (id., 204) e de cujo encontro com “a situação de acção [...] nascem as interacções que permitem a materialização das lógicas de acção” (id., 205).

É nesta materialização das lógicas de acção que é possível apreender a construção da ordem local, resultado quer das interpretações locais duma ordem externa, quer da formulação de normas e regras internas. Na matéria em análise, essa “ordem local” são os modelos de avaliação praticados, num exercício de regulação autónoma, em determinados contextos específicos – as escolas superiores de música.

A passagem da perspectiva funcionalista da organização, assente na estrutura considerada “um facto objectivo” (Bush, 1995, 42) e onde os cargos e não as pessoas são relevantes, para a perspectiva interaccionista da acção organizada, centrada na subjectividade dos indivíduos e no primado das suas interacções, não implica a negação da relevância das estruturas, na medida em que elas determinam grande parte do contexto de acção e, portanto, dos recursos dos actores (Crozier & Friedberg, 1977, 44).

Assim, a organização escola superior de música será considerada na sua vertente formal tanto quanto na tentativa de apreensão das lógicas de acção. Estas serão, por sua vez, descritas e analisadas com base não num único, mas em vários modelos, no pressuposto de que, por um lado, “nenhuma organização pode ser explicada usando apenas uma abordagem [...] não existe uma única perspectiva capaz de apresentar um quadro total para a compreensão das instituições educativas” e de que, por outro, a relevância de cada teoria varia de acordo com o contexto (Bush, 1995, 142).

Para a análise formal da organização escola superior de música – e na linha de outros trabalhos que utilizam o mesmo modelo (Barroso, 1995; Vasconcelos, 2000) - mobilizarei o modelo das configurações estruturais proposto por Mintzberg (1990, 1995) por me parecer um modelo que articula com pertinência os conteúdos das organizações – isto é, o trabalho nelas desenvolvido – com as formas que elas revestem. Com base neste modelo, caracterizarei a organização escola superior de música como uma burocracia profissional, pelas razões que enunciarei.

Numa tentativa de apreensão da globalidade da escola superior de música (estruturas e acção), complementarei a perspectiva estruturalista de Mintzberg com outros modelos de análise que me parecem adequados para interpretar as lógicas de acção no tipo de organização em causa, circunscrevendo-me apenas aos aspectos que se afiguram relevantes para o efeito.

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1 – A INSTITUIÇÃO ESCOLA SUPERIOR DE MÚSICA COMO ORGANIZAÇÃO 1.1 – A BUROCRACIA PROFISSIONAL NO MODELO DAS CONFIGURAÇÕES ESTRUTURAIS DE MINTZBERG Na perspectiva de Mintzberg (1990) é possível propor uma tipologia das organizações segundo a sua configuração estrutural, tendo este autor identificado sete tipos, a saber: (i) a organização empreendedora (ou “estrutura simples”); (ii) a organização mecanicista (“burocracia mecanicista”); (iii) a organização profissional (“burocracia profissional”); (iv) a organização divisionalizada (“estrutura divisionalizada”); (v) a organização inovadora (“adhocracia”); (vi) a organização missionária; (vii) a organização política. Os traços que permitem distinguir os tipos de organizações uns dos outros e categorizá-las de sete maneiras diferentes são os que resultam da forma como se articulam entre si os mecanismos de coordenação do trabalho, as componentes-chave da organização, os principais parâmetros de concepção do trabalho e os factores de contingência. Mintzberg considera (1995, 21) que “são suficientes cinco mecanismos de coordenação para explicar as maneiras fundamentais pelas quais as organizações coordenam o seu trabalho: ajustamento mútuo, supervisão directa, estandardização dos processos de trabalho, estandardização dos resultados e estandardização das qualificações dos trabalhadores”. O primeiro mecanismo é o que funciona no caso das organizações pequenas e simples, o segundo torna-se necessário quando a organização cresce um pouco, o terceiro responde aos casos em que o conteúdo do trabalho é especificado ou programado (id., 23), o quarto quando é possível estandardizar os resultados do trabalho, especificando as dimensões do produto ou o desempenho a atingir e o quinto quando não é possível qualquer das anteriores estandardizações e o controlo só pode ser feito pela definição, a priori, das qualificações (da formação) daqueles que vão executar o trabalho. Quanto às componentes da organização, Mintzberg identifica as seguintes (id., 43-53): (i) o centro operacional, que compreende todos os membros que executam o trabalho básico relacionado directamente com a produção; (ii) o topo estratégico, constituído pelos membros com responsabilidades globais na organização, designadamente no âmbito da supervisão, da gestão e da estratégia; (iii) a linha hierárquica, que liga o centro operacional ao topo estratégico; (iv) a tecnoestrutura, composta pelos analistas que se ocupam da adaptação (necessária às mudanças verificadas no ambiente) e do controlo da estabilização e da estandardização dos padrões de actividade da organização; (v) o apoio logístico, assegurado pelo pessoal e pelas unidades que apoiam a actividade principal da organização, mas exercendo funções fora do fluxo de trabalho operacional (id., 50). No que se refere aos parâmetros de concepção dos postos de trabalho individuais na organização, Mintzberg considera como principais: (i) a especialização do trabalho, (ii) a formalização do comportamento necessário ao desempenho do mesmo e (iii) a formação e a socialização exigidas (id., 91). A especialização do trabalho pode ser considerada na

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sua dimensão horizontal (a sua “latitude ou amplitude”) - podendo essa dimensão ser alargada quando o trabalhador é chamado a desempenhar uma maior variedade de tarefas associadas à sua tarefa principal - e na sua dimensão vertical, quando se verifica uma diferenciação entre a execução do trabalho e a sua administração – podendo também aqui verificar-se um alargamento, com o trabalhador a ser chamado a desempenhar um posto que não só implique mais tarefas mas também mais controlo sobre o seu trabalho. Na formalização do comportamento, Mintzberg refere (i) a formalização por posto de trabalho, com a indicação ao titular do posto das fases do trabalho, sua ordem, duração, etc.; (ii) a formalização pelo fluxo do trabalho (“os músicos de orquestra trabalham a partir de partituras de música que especificam para cada um o seu papel numa dada sinfonia”, id., 106) e (iii) a formalização por regras válidas para todos e para todas as situações, muitas vezes explicitadas em regulamentos, e que constituem a vertente burocrática da organização. Como formação, Mintzberg entende “os processos através dos quais se transmitem os conhecimentos e as competências relacionadas com o trabalho” enquanto por socialização “o processo pelo qual se adquirem as normas da organização” (id., 119), distinguindo, quanto à primeira o trabalho que é fortemente racionalizado, simples e de fácil aprendizagem e o trabalho que exige conhecimentos e competências de formação longa, que é complexo e não racionalizado, reservando para este caso a designação de trabalho profissional (id., 120). Quanto à socialização, Mintzberg considera-a “o rótulo usado para o parâmetro da concepção através do qual a organização socializa formalmente os seus membros para seu benefício” (id., 121). Outros parâmetros de concepção são os relativos (i) à superestrutura (agrupamento em unidades e dimensão das unidades); (ii) às relações laterais (sistemas de planeamento e de controlo e ligações laterais); e (iii) ao sistema de decisão (descentralização vertical; descentralização horizontal) (id., 90). Assim sumariamente apontados os elementos mobilizados por Mintzberg para descrever as sete configurações das organizações, irei agora avançar para a descrição daquela que se afigura mais pertinente para analisar a organização escola superior de música – a burocracia profissional. A burocracia profissional caracteriza-se como aquela que tem, no seu centro operacional, uma vasta maioria de profissionais (no sentido, já referido, que Mintzberg atribui ao termo), os quais exercem a sua actividade com um elevado grau de autonomia relativamente à organização em que trabalham, podendo mesmo afirmar-se que o seu compromisso não é com esta, mas com os seus “clientes” (por ex., alunos ou doentes, para citar os casos de dois tipos de organização – escolas e hospitais – que podem ser descritas como burocracias profissionais).

Dada esta característica do corpo operacional, o controlo é exercido pela estandardização das qualificações. Por um lado, a especialização e a complexidade das tarefas a desenvolver exigem uma formação longa, específica e certificada, de modo a dar

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garantias de que o profissional detem as competências adequadas à função. Por outro, não podendo o controlo ser feito no decurso do trabalho, a organização tem que assegurar, em momento anterior, esse controlo, o que é feito através da citada estandardização das qualificações, definindo-se previamente aquelas que são necessárias para o preenchimento do posto de trabalho, segundo os princípios burocráticos defendidos por Weber (1994, 14). Aliás, também a estrutura deste tipo de organização é burocrática e toda a sua coordenação é assegurada pelos padrões que pré-determinam o que deve ser feito (Mintzberg, 1995, 381). O centro operacional, por exemplo, funciona a partir de um reportório de programas-padrão: os programas que “os profissionais são capazes de realizar e estão prontos a utilizar – e que são aplicados a situações que já foram relatadas, pré-determinadas, estandardizadas e que são consideradas contingências” (id., 383). Aos profissionais compete, numa primeira fase, “categorizar as necessidades do cliente em função do grau de contingência, o que indica que programa-padrão deve ser utilizado” e, numa segunda, aplicar ou executar esse programa (id., 383). Deste ponto de vista, a burocracia profissional tem como uma das suas principais tarefas o diagnóstico, embora de forma relativamente limitada, uma vez que “a organização procura associar uma contingência pré-determinada a um programa-padrão”. Nesta perspectiva, a burocracia profissional coloca-se entre a burocracia mecanicista, que não tem qualquer fase de diagnóstico, respondendo automática e estandardizadamente a cada estímulo, e a “adhocracia”, que possibilita um diagnóstico aberto, permitindo procurar “uma solução criativa para um problema único” (id., 384). O centro operacional é a parte mais importante da burocracia profissional, determinando a configuração e as funções das restantes partes da organização. Assim, enquanto o apoio logístico está bastante desenvolvido porque tem como principal função apoiar o centro operacional, as restantes componentes são reduzidas, o que permite definir este tipo de organização como uma estrutura achatada, com uma linha hierárquica curta, uma pequena tecnoestrutura e um reduzido topo estratégico. Este desenho decorre do facto de a burocracia profissional ser uma estrutura muito descentralizada, quer na dimensão horizontal, quer na vertical, porque funciona na base do poder do profissional. Este poder tem como fontes legitimadoras não só as características do seu trabalho – demasiado “complexo para poder ser supervisionado por um superior hierárquico ou estandardizado pelos analistas” (id., 386) – mas também o facto de os seus serviços serem muito procurados, o que lhe confere “uma mobilidade que lhe permite exigir uma autonomia considerável no seu trabalho” (id., 386). Isto permite aos profissionais controlarem não só o seu próprio trabalho como as decisões administrativas que os afectam, através do controlo da linha hierárquica, “o que os profissionais fazem assegurando que os seus membros sejam ‘dos seus’ ” (id., 388). Os profissionais realizam grande parte das tarefas administrativas, através da sua participação em conselhos ou comissões e mesmo os administradores a tempo inteiro

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“têm que ser membros da profissão, de preferência eleitos pelos operacionais ou pelo menos têm que ser nomeados com o seu consentimento” e este poder dos operacionais leva a que as burocracias profissionais sejam vistas como organizações colegiais (id., 389). Mas a natureza democrática da hierarquia profissional (cujo poder reside na especialização) não se reproduz na outra grande componente da burocracia profissional – o apoio logístico, sujeito a uma hierarquia não-profissional (cujo poder reside na função) que tem a natureza de uma burocracia mecanicista, na medida em que cada cargo está sob a direcção de um cargo superior. Estas hierarquias paralelas são, muitas vezes, problemáticas, como assinala Blau ( cit. por Mintzberg, 1995, 391): “A investigação indica que a orientação profissional no sentido dos serviços e a orientação burocrática no sentido do respeito pelas normas constituem pontos de vista do trabalho que se situam em pólos opostos, e que a sua presença conjunta cria muitas vezes conflitos nas organizações” A resolução desses conflitos é uma das principais tarefas da gestão de topo, a quem compete a coordenação das duas hierarquias paralelas, bem como a coordenação das negociações entre os diversos grupos de profissionais, aos quais os administradores do nível mais elevado não podem impor soluções, sobretudo quando se trata de problemas directamente relacionados com o trabalho especializado desses profissionais. Outra das funções principais da gestão de topo é a de gerir as relações entre o interior e o exterior da organização profissional, defendendo os seus profissionais junto dos stakeholders externos e tentando obter destes o máximo de recursos para a organização. A capacidade de gestão do administrador, nestas questões, dá-lhe maior ou menos poder: por um lado, os profissionais, ao “delegarem” estas tarefas no administrador – o que fazem como forma de se poderem concentrar no exercício da sua profissão -, estão a conceder-lhe um poder acrescido; por outro, se o administrador tiver sucesso nestas matérias verá o seu prestígio – logo, o seu poder – aumentar no seio da organização (id., 393). Em resumo, pode dizer-se que nas burocracias profissionais em que , como já se disse, os administradores, mesmo a tempo inteiro, têm que ser membros da profissão, o poder “é conferido aos profissionais que dedicam uma grande parte dos seus esforços ao trabalho administrativo em vez do seu trabalho profissional” e que só mantêm esse poder se os profissionais considerarem que eles servem eficazmente os seus interesses (id., 394). Relativamente aos factores de contingência, Mintzberg considera que o ambiente é o factor principal que leva à criação das burocracias profissionais, sendo estas caracterizadas por um ambiente “complexo e estável –suficientemente complexo para exigir a utilização de procedimentos que exigem anos de formação formal, contudo suficientemente estáveis para que estas competências possam ser bem definidas e, de facto, estandardizadas” (id., 396).

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Por seu lado, o sistema técnico (o conjunto dos processos pelos quais se realiza o trabalho) não é muito regulador nem muito automatizado, uma vez que estas burocracias servem directamente clientes, os quais têm necessidades e interesses diversificados. Aliás, os profissionais resistem fortemente “à racionalização das suas competências – à sua divisão em tarefas mais simples – porque isso os torna programáveis pela tecnoestrutura, destroi a base da sua autonomia e conduz a estrutura para uma forma de burocracia mecanicista” (id., 397). As burocracias profissionais apresentam, ainda segundo o mesmo autor, duas vantagens para os profissionais no seu seio: por um lado, permite-lhes um exercício democrático do poder, conferindo-lhes uma ampla autonomia, que os dispensa mesmo de se coordenarem entre si; por outro, essa autonomia permite-lhes aperfeiçoar “as suas competências, livres de interferências” (id., 401). Mas esta autonomia dos profissionais coloca, do ponto de vista da organização, problemas de coordenação, de autonomia e de inovação. No primeiro caso, o controlo possível (pela estandardização das competências) é insuficiente para resolver as necessidades de coordenação não só entre os profissionais e o pessoal de apoio logístico, mas também entre os próprios profissionais, porque as burocracias profissionais não são “entidades integradas. São sim “colecções de indivíduos que se reúnem para partilhar recursos e serviços de apoio comuns, mas que em tudo o mais desejam ser deixados em paz” (id., 402). No que respeita à autonomia, esta pode representar um problema no caso de profissionais “que são incompetentes ou que não são conscenciosos”, uma vez que o controlo do exercício profissional por parte da hieraquia é problemático, como já se disse, possibilitando amplas margens de manobra aos profissionais, que podem ignorar “as necessidades reais dos seus clientes” e até mesmo “as necessidades da organização” (id., 404). Finalmente, os problemas de inovação põem-se porque a burocracia profissional “é uma estrutura inflexível, bem adaptada à produção dos seus resultados estandardizados mas não à inovação”, não só porque é difícil mudar o pensamento convergente em que se funda a ordem desta configuração para o pensamento divergente necessário à inovação, mas também porque, dado o peso da democracia “basista” (porque assente nos profissionais que constituem o corpo operacional), se torna necessário uma unanimidade ou, pelo menos, um amplo consenso quanto às inovações a introduzir (id., 405). 1.2 – OUTROS MODELOS DE ANÁLISE ORGANIZACIONAL

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Assim esboçados, em traços largos, algumas das características e dos problemas da burocracia profissional (modelo que considero elucidativo dos modos de funcionamento da organização escola superior de música) apresentarei, também resumidamente, algumas das linhas gerais de outros modelos que me parece poderem vir a completar um olhar integrado e abrangente sobre este tipo de organização, complementando a perspectiva estruturalista de Mintzberg. Embora seja geralmente aceite (Davies & Morgan, 1994, 147) a existência de quatro modelos organizativos principais no que se refere às instituições de ensino superior (o burocrático, o colegial, o político e o anárquico), o certo é que estes não esgotam a vida deste tipo de organização no seu todo. As instituições de ensino, em geral, são sistemas debilmente articulados, em que cada componente, sem deixar de interagir com as restantes, conserva também “a sua própria identidade e alguma evidência da sua separação física ou lógica”(Weick, 1994, 120) e nos quais “ a estrutura está desligada do trabalho técnico e a actividade está desligada dos seus efeitos” (Meyer & Rowan, 1992, 71). Esta fraca articulação organizacional permite identificar lógicas de acção diferenciadas de acordo com as diversas componentes da organização e exige uma pluralidade de modelos para as apreender. Consequentemente, irei considerar não apenas os quatro modelos mencionados mas ainda mais três que considero pertinentes para a análise do tipo de organização em causa. 1.2.1 – O MODELO BUROCRÁTICO O modelo burocrático descreve “uma organização formal que procura a máxima eficiência através de uma abordagem racional da gestão” (Bush, 1995, 35). Na sua descrição como ideal-tipo, Weber considera que a organização burocrática tem metas bem definidas, fixadas e controladas pela pessoa ou pelo grupo que se encontra no topo da pirâmide de uma hierarquia estabelecida de forma a que cada nível comporte um determinado número de cargos ou funções, prenchidos por indivíduos com determinados perfis ou qualificações pré-definidos, que são responsáveis perante o nível imediatamente superior e perante quem presta contas o nível imediatamente inferior. Esta estrutura, geralmente piramidal, é legitimada pelo poder legal de que a organização é dotada, o qual assenta em critérios racionais e investe os funcionários na cadeia de comando, enquanto a posição de cada um neste sistema de clara divisão do trabalho é legitimada pela sua competência, com o mérito (baseado nas qualificações e na experiência) a determinar também a progressão nas carreiras. O poder legal manifesta-se nas seguintes características duma organização burocrática – tipo: (i) uma organização contínua de funções oficiais ligadas por regras; (ii) uma esfera de competências definida, a qual inclui a esfera de obrigações, a autoridade necessária para o exercício dessas obrigações e a definição clara dos necessários meios de imposição e das condições da sua utilização; (iii) a organização dos cargos segundo o princípio da hierarquia; (iv) a regulação das condutas por regras técnicas ou por normas; (v) a

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completa separação entre o pessoal administrativo e a propriedade dos meios de produção ou administração; (vi) a completa ausência de apropriação do seu cargo oficial pelo indivíduo nele investido; (vii) a formulação e o registo, por escrito, dos actos administrativos, das decisões e das regras, mesmo nos casos em que a discussão oral é a regra ou é mesmo obrigatória (Weber, 1994, 12, 13). Na perspectiva burocrática, a organização é vista fundamentalmente “como uma estrutura de órgãos e funções, como uma estrutura social formalmente organizada [...] e em que a contribuição pessoal dos membros é subestimada, uma vez que o seu comportamento deve reflectir as posições pré-determinadas na estrutura e não tanto as suas qualidades ou a sua experiência individual” (Estêvão, 1998, 178), centrando-se a atenção nas estruturas e não nas pessoas que compõem essas estruturas, que se tornam quase “invisíveis” nesta concepção organizacional. Enquanto modelo aplicável às instituições de ensino, é possível rever, nas características apontadas à burocracia, alguns traços dessas instituições. Como assinala Hughes (cit. por Bush, 1995, 37), “As escolas e os “colleges”, especialmente se forem grandes, correspondem, em grande parte, à especificação que Weber fez da burocracia, como é patente na sua divisão do trabalho, nas suas estruturas hieráquicas, nas suas regras e regulamentos, nos seus procedimentos impessoais e nas sua práticas de recrutamento com base em critérios técnicos”. Mas enquanto modelo a prosseguir, a perspectiva burocrática suscita muitas reservas na sua aplicação às instituições de ensino, na medida em que se teme que os seus princípios se sobreponham aos princípios pedagógicos e educacionais. Contudo, há ainda defensores deste modelo, como Lunga (cit. por Bush, 1995, 37), o qual considera que apesar da “...enorme tradição que vê a burocracia em termos pejorativos [...]a burocracia tal como foi descrita por Weber é ainda a forma mais apropriada para facilitar a concretização dos objectivos educacionais” Na verdade, o modelo burocrático não pode ser acolhido como o único olhar válido sobre as organizações educativas (como o best way para a sua gestão eficaz), nem rejeitado porque totalmente inadequado à sua “leitura”. Este modelo é útil para a comprensão de muito do que nelas acontece, mas não “esgota” o modo como essas organizações funcionam ou como devem ser geridas, uma vez que ele nos permite apreender apenas o funcionamento “conjuntivo” daquelas organizações, isto é, aquele onde “ se ligam objectivos, estruturas, recursos e actividades e se é fiel às normas burocráticas” (Lima, 1991, 6, sublinhado no texto). Ora este tipo de funcionamento não é o único que se verifica, porque mesmo quando, do ponto de vista jurídico-normativo, a escola está formalmente organizada e estruturada de acordo com um modelo imposto uniformemente por todo o país, a actualização do modelo apresenta variações de escola para escola, evidenciando a aplicação, no plano da acção organizacional, de lógicas diversas da lógica racional-legal que informa o plano das orientações para a acção (id., 3), num modo de funcionamento que Lima (id, 6)

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classifica de “disjuntivo”, cartacterizado pela separação de objectivos, estruturas, recursos e actividades e pela produção de regras alternativas, rompendo a conexão normativa e promovendo a “desconexão de facto” (id., 6, sublinhado no texto). Este “modo de funcionamento díptico da escola como organização” demonstra a existência duma “ordem burocrática normativamente consagrada, decretada e imposta” mas igualmente a de uma outra ordem que, contemplando também “os actores e a acção organizacional, outro tipo de estruturas e de regras” pode ser analisada na pesrpectiva do modelo anárquico ou da “anarquia organizada” (id., 4, 5). 1.2.2 – O MODELO ANÁRQUICO O modelo anárquico foi desenvolvido por Cohen & March a partir de estudos feitos numa organização escolar, a universidade americana, que estes autores consideram “o protótipo de uma anarquia organizada” (Cohen & March, 1994, 109), definindo como tal qualquer organização que tenha como propriedades gerais (i) objectivos problemáticos; (ii) tecnologia pouco clara; (iii) participação fluida. Contrariamente à abordagem burocrática, a perspectiva anárquica considera que os objectivos das organizações não são, muitas vezes, suficientemente claros e delimitados para orientar a acção do modo racional preconizado pelo modelo burocrático, verificando-se, de facto, que a organização é mais “uma colecção solta de ideias sempre em mudança do que uma estrutura coerente” e que ela “descobre as suas preferências através da acção, mais do que actua com base em preferências” (id., 109). As escolhas operam-se por processos que não são orientados por objectivos consistentes e partilhados (id., 110) e os objectivos só são clarificados através do comportamento dos membros da organização (Bush, 1995, 112). As finalidades formalmente fixadas para a organização são vistas, nesta perspectiva, como formalmente desligadas da sua efectiva prossecução por parte dos diversos actores, acentuando-se não só o seu carácter vago e obscuro, como a sua incapacidade para orientar o comportamento (id., 120). Relativamente à tecnologia, Cohen & March consideram que a organização anárquica “não entende os seus próprios processos”, funcionando “na base de um simples conjunto de procedimentos de tentativa-erro, resíduos da aprendizagem de acidentes em experiências passadas, imitação e invenções nascidas da necessidade” (Cohen & March, 1994, 109). Nestas organizações, não é possível apreender, com clareza, como é que “os resultados emergem das suas actividades” (Bush, 1995, 112), especialmente naquelas que servem clientes e que têm que adaptar a sua tecnologia às necessidades do cliente individual. Quanto à participação dos membros da organização na vida desta, os citados autores chamam a atenção para o facto de essa participação variar de duas maneiras: por um lado, os participantes não são sempre os mesmos, em diferentes ocasiões; por outro, o tempo e o esforço que dedicam à organização variam de membro para membro. Os membros da

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organização “entram e saem das situações de tomada de decisão” (id., 114), o que impede que as decisões sejam tomadas na sequência lógica descrita pelo modelo burocrático e pelos outros modelos formais, sendo o processo de decisão orientado segundo o “modelo do caixote do lixo” (Cohen & March, cit. por Bush, 1995, 117). Este modelo vê uma oportunidade de escolha como “um caixote do lixo, onde vários problemas e soluções são despejados pelos participantes. A mistura de lixo num determinado caixote depende, em parte, das etiquetas afixadas nos caixotes alternativos, mas depende também do lixo que está a ser produzido naquele momento, na mistura de caixotes disponível e da velocidade com que o lixo é recolhido e retirado de cena” (id., 117). É na intersecção de problemas, soluções, participantes e oportunidades de escolha que é possível compreender a “racionalidade outra” da perpectiva anárquica, muito longe da racionalidade lógico-dedutiva dos modelos formais. Deste ponto de vista, a actividade de gestão é difícil, pelo que este modelo, contrariamente a outros, não é orientado para a acção, procurando explicar mais do que alterar as “circunstâncias humanas” (Willower, 1979, 32). As características assinaladas por Cohen & March para identificar uma anarquia organizada foram estabelecidas com base nos seus estudos sobre a universidade americana, mas encontram-se igualmente noutras instituições de ensino superior e nas escolas, em geral. Na sua condição de organizações que servem clientes, as instituições escolares empregam tecnologias (processos de trabalho) que não são, em grande parte, estandardizáveis nem generalizadamente perceptíveis ao nível da organização: por um lado, o professor não actua sempre da mesma maneira em todas as turmas, por outro, ninguém sabe exactamente o que faz o professor na sala de aula (excepto os presentes). Estas afirmações ganham ainda maior pertinência no caso do ensino individual, como acontece nas disciplinas nucleares dos cursos de música, superiores e não superiores. Quanto à indefinição de metas, finalidades ou objectivos as instituições de ensino são reconhecidas como “padecendo” deste “mal”que tende a agravar-se quando, às escolas não superiores, se pede que desempenhem cada vez mais papéis (de escolarização, mas também de socialização, de integração, de orientação profissional, etc.) e num contexto em que às instituições de ensino superior se atribuem explicitamente objectivos que dantes estavam “camuflados”, como a formação para as necessidades do mercado, agudizando a clareza formal das funções do ensino superior, agora obrigado a gerir a sua retórica e as suas práticas entre o “profissional” das exigências externas e o “liberal” do mundo académico. Já a fluidez da participação se verifica quer num quer noutro tipo de instituições basicamente pela mesma razão: a falta de tempo, pois segundo os teóricos da anarquia a “variação substancial na participação decorre mais de outras exigências de tempo aos

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participantes (do que das características da decisão em estudo)” (Cohen & March, 1994, 112). No entanto, na instituição de ensino superior essa fluidez de participação é agravada pelo facto de, numa burocracia profissional, o compromisso dos profissionais ser, antes de mais, com a profissão, não com a organização (Mintzberg, 1995, 386) o que determina a escolha das suas prioridades, no que diz respeito ao tempo e ao esforço que estão dispostos a dar à organização. Os traços organizacionais descritos, presentes nas anarquias organizadas, mas também noutros tipos de organização, resulta do facto de elas serem, em menor ou maior grau, sistemas debilmente articulados, definidos por Weick com base na ideia de que “os acontecimentos articulados são mutuamente reactivos, mas [...] cada acontecimento preserva também a sua própria identidade e alguma evidência da sua separação física e lógica” (Weick, 1994, 120). Nesta perspectiva, algumas organizações têm partes que são altamente racionalizadas, sendo possível identificar as conexões entre elas, e outras que não podem ser analisadas “através de assunções racionais” (id., 119), como é o caso das instituições escolares, onde se encontram inúmeros elementos que evidenciam uma desconexão “racional” entre si: meios/fins; professores/materiais; votantes/assembleia de escola; administradores/sala de aula; processo/resultado; professor/professor; pai/professor e professor/aluno (id., 122). Também Meyer & Rowan (1992) consideram que, nas escolas, coexistem componentes articuladas e outra não articuladas e que aquelas desligam as suas estruturas, fortemente articuladas, das suas actividades, debilmente articuladas, de forma a permitir flexibilizações locais que lhes permitam uma constante adaptabilidade e as transformem em produtoras de regras locais e não em meras reprodutoras de normas gerais centralmente fixadas (Lima, 1991, 11). Mas como demonstraram Daft & Becker na sua formulação do modelo de organização de “núcleo dual”, o grau de articulação entre o núcleo técnico, que inclui os processos de ensino/aprendizagem e o núcleo administrativo e institucional varia conforma as circunstâncias, verificando-se uma forte articulação quando “o núcleo técnico está submetido [...] a uma administração activa e influente, enquanto a articulação débil entre os núcleos está normalmente associada a um grau mais elevado de profissionalismo docente e de inovação técnica” (Tyler, 1987, 321). 1.2.3 – O MODELO COLEGIAL O modelo colegial inclui as teorias que consideram que o poder e a decisão, nas organizações, devem ser partilhadas entre os seus membros, distinguindo-se os que defendem uma colegialidade restrita (limitada a alguns desses membros) e uma colegialidade pura, com todos os membros a terem “uma voz igual na determinação das políticas” (Bush, 1995, 52).

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Trata-se de um modelo fortemente normativo que, em maior grau do que qualquer outro, prescreve mais do que descreve o modo como funciona a organização e a melhor maneira de a gerir, com base no princípio da democracia, o que faz considerar este modelo “cada vez mais como ‘o modelo oficial da boa prática’” (Wallace, cit. por Bush, 1995, 52). O modelo colegial baseia-se num certo número de assunções: (i) a de que os membros da organização partilham um conjunto de valores comuns, decorrentes da socialização que se desenvolve durante a sua formação e nos primeiros anos de prática profissional; (ii) a de que os membros da organização estão de acordo sobre os objectivos desta, os quais lhes servem de guias para a acção; (iii) a de que, em consequência das anteriores assunções, as deliberações são tomadas por consenso e acordo entre todos; (iv) a de que a estrutura organizacional é um facto objectivo, que tem um significado claro para todos os membros; (v) a de que essa estrutura é horizontal, com todos os participantes a terem o mesmo peso nas decisões; (vi) a de que o líder da organização não é um chefe, mas um primus inter pares cujo papel é o de “facilitador de um processo essencialmente participativo” (id., 54, 61-65). O poder atribuído aos indivíduos, no modelo colegial, é legitimado, tal como nas formas burocráticas de organização, pelo saber especializado que detêm (Lazega, 1999, 643), o que torna este modelo especialmente adequado para organizações que, como as escolas, dispõem de um elevado número de profissionais, cujo “saber especializado” torna difícil uma regulação de tipo hierárquico/autoritário, aconselhando uma regulação horizontal/democrática. Os professores têm “a autoridade de especialistas, que contrasta com a autoridade de posição associada aos modelos formais” e essa autoridade é necessária quando as decisões têm que ser tomadas numa base individual e não de forma estandardizada (id., 53). O modelo colegial, ainda quando formalmente adoptado por uma organização, não funciona exactamente na base das assunções acima referidas. Por um lado, nem sempre se verifica o consenso entre os seus membros, que actuam com base nos seus próprios valores e interesses, mais dos que nos partilhados. Este modelo democrático tende, pois, a subestimar o conflito e o facto de que este existe, ignorando que o consenso não é mais do que o resultado de lutas/discussões que determinam “a prevalência de um grupo sobre outros” (Baldridge et al., cit.por Bush, 1995, 68). Por outro lado, a colegialidade, que se exerce através da participação num número mais ou menos elevado de conselhos, comissões e grupos, implica um processo de decisão lento, que consome demasiado tempo a actores que, em muitos casos – como nas escolas, por exemplo – gostariam de o gastar noutro tipo de actividades, mais directamente ligadas ao exercício da sua profissão. Finalmente, o poder hierárquico acaba muitas vezes por prevalecer sobre o poder colegial, não só porque este “raramente interfere na autoridade de posição dos líderes oficiais”, mas também porque são estes que têm que prestar contas “ao órgão de governo e aos vários grupos externos” (id., 68).

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O modelo colegial foi progressivamente adoptado nas instituições de ensino dos vários níveis, mas a “diluição” de responsabilidades e o dilletantismo de gestão a ele associados têm vindo a determinar a preconização de limites ao modelo, no actual quadro retórico neo-liberal de maior autonomia e correspondente maior responsabilização e transparência das instituições de ensino, no que diz respeito à sua gestão. 1.2.4 – OS MODELOS SUBJECTIVOS Os modelos subjectivos abrangem todas as abordagens que se centram “nos indivíduos dentro das organizações e não na instituição como um todo ou nas suas subunidades” (Bush, 1995, 93). As organizações são vistas como construções sociais (como “invenções sociais”, Greenfield, 1994, 81) que, tal como qualquer outra realidade social, são constantemente criadas e reconfiguradas. Neste conjunto de abordagens – onde se incluem, por exemplo, as correntes fenomenológica, interaccionista, construtivista, accionista – a realidade social é vista como o resultado da acção dos indivíduos em interacção e este primado do sujeito sobre as estruturas sociais, do actor dotado de autonomia própria sobre o agente determinado por forças externas (Boyne, 2001, viii), implica que se considere que, numa organização, o importante são “as crenças e as percepções dos membros individuais e não tanto o nível institucional ou os grupos de interesses” (Bush, 1995, 94). Os diferentes significados atribuídos pelos indivíduos aos factos e às situações dependem dos seus valores, do seu passado e das suas experiências pessoais e profissionais e as diferenças entre os valores de cada um podem gerar conflitos, com acentua Greenfield: “O conflito é endémico nas organizações. Surge quando vários indivíduos ou grupos têm valores opostos ou quando têm que escolher entre valores aceites, mas incompatíveis” (id., 96). A centralidade dos indivíduos na vida organizacional determina a rejeição da ideia de objectivos da organização: o que existe são objectivos individuais, relacionados sobretudo, como sugere Coulson, com “ a auto-estima da pessoa, a progressão na carreira, a satisfação no trabalho” (id., 101). Quanto aos objectivos formalmente imputados à organização, eles não são mais, segundo Greenfield, do que “as preocupações de momento e as intenções da coligação organizacional dominante”, isto é, “os objectivos pessoais dos indivíduos mais poderosos” (id., 101), o que leva a considerar a gestão como uma forma de controlo por parte dos dirigentes máximos da organização e faz depender uma gestão eficaz mais das qualidades pessoais dos indivíduos que ocupam posições de chefia do que do poder do cargo em que foram oficialmente investidos. De igual modo, não é possível falar de uma estrutura objectiva e desligada dos indivíduos: a estrutura organizacional “é um resultado da interacção dos participante e não uma entidade fixa, independente das pessoas dentro da organização [...] uma descrição do comportamento [...] a estrutura descreve o que as pessoas fazem e o modo como se relacionam” (id., 102) e, deste ponto de vista, os processos e as relações são

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mais importantes do que a estutura, uma vez que, como sublinha Hoyle, “os grupos constroem novas realidades no quadro de instituições relativamente resistentes” (id., 103). As críticas a estes modelos respeitam sobretudo (i) ao seu carácter muito normativo, na medida em que reflectem “as atitudes e as crenças dos seus defensores” sem construir verdadeiras alternativas à teoria convencional ;(ii) à falta de indicação clara sobre a natureza da organização no seio da qual acontecem os comportamentos e as interpretações; (iii) ao extremo individualismo dos significados pessoais, que levaria a considerar que existem tantas interpretações como pessoas, quando a prática demonstra que esses significados se agrupam em clusters que permitem algumas generalizações; (iv) ao facto de não servirem como guias para a acção, limitando-se a chamar a atenção dos líderes para a necessidade de ter em conta os valores dos indivíduos dentro da organização (id., 105, 106). Apesar destas limitações, os modelos subjectivos são úteis enquanto “olhares” parciais sobre as organizações, que ajudam a complementar outros, sendo também aplicáveis às organizações educativas. Por exemplo, a importância atribuída aos significados pessoais justifica-se num tipo de instituição onde se cruzam pessoas com motivações e histórias pessoais e profissionais diversas (professores, alunos, pessoal não docente), o que leva a considerar que, mesmo dentro do mesmo grupo, possa haver diferenças de visão e de interpretação: “A escola não é a mesma realidade para todos os professores [...]. Há tantas realidades [...] quantos professores” (id., 94). Por outro lado, esta perspectiva é congruente com o facto de as organizações escolares serem instituições que lidam com “clientes” que devem ser individualmente considerados nos seus interesses, valores e necessidades, permitindo complementar as perspectivas mais formais de outros modelos, que são úteis para explicar a organização como um todo e o seu relacionamento com o meio externo, mas não conseguem lançar luz sobre os comportamentos individuais dos seus membros (id., 108). 1.2.5 – OS MODELOS POLÍTICOS Os modelos políticos englobam as teorias que vêem as organizações como “arenas políticas, cujos membros se empenham numa actividade política com vista à prossecução dos seus interesses” (id., 73), podendo definir-se a política como “ o uso do poder para conservar ou obter o controlo de recursos reais ou simbólicos” (Bacharach & Lawler, cit. por Afonso, 1994, 61). O facto de os interesses dos vários membros ou dos vários grupos duma organização serem, muitas vezes, divergentes e antagónicos origina conflitos, cuja resolução tem que ser obtida através de processos diversos de negociação. Os modelos políticos assentam, pois, no triângulo interesses divergentes/ conflito/negociação. Se aceitam o conflito como endémico nas organizações (Bush, 1995, 73) não deixam também de considerar as possibilidades da sua superação, que tornam a vida colectiva possível, havendo correntes que acentuam o conflito, centrando-se “na mudança, na desintegração conflitual e na coerção” e perspectivas “integracionistas”, que privilegiam “a estabilidade, a integração, a coordenação, o consenso” (Dahrendorf, cit.

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por Afonso, 1994, 58,59). Também Burns (id., 60) realçou que a vida organizacional é constituída tanto pelo consenso como pela divergência, classificando os grupos de interesses nas organizações em cliques e cabalas, “segundo o seu empenhamento com o statu quo ou com a inovação”. Na perspectiva construtivista da análise estratégica, o poder dos membros das organizações é visto como “uma relação e não como um atributo dos actores” (Crozier & Friedberg, 1977, 65), uma relação recíproca de “troca desequilibrada de possibilidades de acção” (Friedberg, 1993, 113) entre actores que detêm margens de liberdade diferentes, em função da “amplitude da zona de incerteza” (Crozier & Friedberg, 1977, 72) pertinente que dominam. As capacidades de negociação dos vários indivíduos ou grupos dependem, de facto, do grau de poder de que dispõem e que tem origem em diversas fontes, exaustivamente categorizadas pelos diversos teóricos das organizações, consoante a concepção que adoptam relativamente a este conceito. Afonso (1994, 55), por exemplo, refere três dessas concepções: o poder como mercadoria, o poder como recurso, o poder como produto duma interacção social. Retomando aquilo que escrevi em trabalho anterior (Gonçalves, 2001, 74-76), referirei aqui algumas dessas fontes, que então como agora me parecem as mais presentes no tipo de organização em estudo. Começarei por referir uma das perspectivas mais abrangentes das fontes de poder, que é a apresentada por Morgan (1997, 171). Para além de considerar o próprio poder como uma fonte de poder, este autor entende-o como o resultado (i) da autoridade formal; (ii) do controlo dos recursos; (iii) da utilização da estrutura organizacional, das regras e dos regulamentos; (iv) do controlo dos processos de decisão; (v) do controlo do conhecimento e da informação; (vi) do controlo das fronteiras; (vii) da capacidade para enfrentar a incerteza; (viii) do controlo da “organização informal”; (ix) do controlo de contra-organizações; (x) da gestão do significado; (xi) da gestão da relação entre os sexos. Na perspectiva da análise estratégica a incerteza constitui-se como a principal fonte de poder, a partir da qual Crozier (1963, 202) identifica dois tipos de poder: o poder do especialista, ou seja, o do indivíduo que controla uma determinada fonte de incerteza com base na sua capacidade pessoal, e o do poder hierárquico funcional, isto é, “aquele de que dispõem certos indivíduos, decorrente da sua função na organização, para controlar o poder do especialista e, no limite, substituí-lo”. Em trabalho posterior (Crozier & Friedberg, 1977, 83) estes autores distinguem “quatro grandes fontes de poder correspondendo aos diferentes tipos de fontes de incerteza pertinentes para uma organização: as que derivam do domínio de uma determinada competência e da especialização funcional; as que estão ligadas às relações entre uma organização e o seu, ou melhor, os seus meios; as que nascem do domínio da comunicação e das informações; por fim, as que decorrem da existência de regras organizacionais gerais”.

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As condições em que actores com diferentes “porções” de poder e interesses divergentes conseguem cooperar no desenvolvimento da vida colectiva têm sido objecto de estudo por parte de diversas correntes, de que referirei as convencionalistas e a da sociologia da tradução. Com base no conceito de “mundos”, as primeiras distinguem dois tipos de acordo entre “mundos”: o “entendimento” e o “compromisso”, caracterizados em função da dimensão da transacção negociada, da sua durabilidade e do seu grau de estruturação (Amblard et al., 1996, 96,97). A sociologia da tradução – entendida esta como uma operação “que permite estabelecer um elo inteligível entre actividades heterogéneas” (Callon, cit. por Amblard et al., 1996, 136) – realça o papel das redes sócio-técnicas (que incluem humanos e não-humanos) na “reconstituição dos processos pelos quais se fazem os factos” (id., 138). Numa tentativa de ultrapassar as divergências entre as dinâmicas de integração e as de ruptura na vida social, a sociologia das lógicas de acção pretende conciliar “as sociologias que analisam as condições do acordo e as que privilegiam a importância das relaçõs de poder” (id., 201), fundamentando-se na tese do “agir comunicacional de Habermas” (id., 204), segundo a qual os modos de coordenação da acção “ora privilegiam o acordo ora o cálculo estratégico”, variando a utilização dos modelos teóricos em função da cada caso concreto, sendo necessário “ o recurso à pluralidade dos modelos para apreender a pluralidade das lógicas” de acção (id., 203, 204). Como salienta Bush (1995, 74) “ a relevância dos modelos políticos para as instituições educativas é reconhecida quer pelos académicos quer pelos práticos”. Diversos estudos levado a cabo em universidades e escolas permitiram considerar, por exemplo, relativamente às primeiras, que “ o modelo político capta as realidades da vida no ensino superior melhor do que as perspectivas formais ou colegiais” (id., 74) e relativamente às segundas que “o futuro da análise organizacional das escolas está [...] na compreensão da micropolítica da vida escolar” (Ball, 1989, 25, sublinhado no texto). Um dos trabalhos mais significativos de aplicação do modelo político ao ensino superior foi o desenvolvido por Baldridge, que construiu “uma nova interpretação política do governo da universidade”(1994, 57), um “modelo político que aponta para cinco focos de análise: estrutura social, processos de articulação de interesses, fase legislativa, formulação da política e execução da política” (id., 62) e que o próprio resume da seguinte forma: “Uma estrutura social complexa gera múltiplas pressões, muitas formas de poder e de pressão que actuam sobre os decisores, uma fase legislativa traduz estas pressões em política e, por fim, uma fase de execução dessa política gera ‘feedback’ sob a forma de novos conflitos” (id., 64). Quanto a Ball, e com base em dados empíricos recolhidos em escolas, procurou lançar as bases para uma teoria organizacional alternativa à tradicional ciência da educação, centrando-se num conjunto de conceitos que se podem contrapor aos desta e que “mostram uma diferença importante no que diz respeito àquilo que se salienta e aos

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axiomas que se privilegiam” (Ball, 1989, 25). Estes conceitos-chave são, fazendo a correspondência entre a perspectiva micropolítica e a ciência das organizações: poder/autoridade; diversidade de objectivos/coerência de objectivos; disputa ideológica/neutralidade ideológica; conflito/consenso; interesses/motivação; actividade política/ tomada de decisões; controlo/consentimento (id., 25). Quanto às fontes de poder relevantes para as organizações educativas, Bush (1995, 80 – 82) identifica seis : (i) o poder decorrente da posição oficial ocupada; (ii) a autoridade conferida pela especialização ; (iii) o poder pessoal, carismático ou de outro tipo; (iv) o controlo das recompensas; (v) o poder de coerção; (vi) o controlo dos recursos. Embora os modelos políticos se focalizem demasiado nos interesses dos grupos, fazendo perder de vista a organização como um todo, e se centrem nas dinâmicas de conflito, menosprezando as condições de colaboração que efectivamente possibilitam a construção de resultados partilhados, eles são sem dúvida úteis para compreender e “trabalhar” as diferentes perspectivas grupais em acção nas organizações, permitindo complementar, para efeitos de análise das instituições de ensino superior, como para outros tipos de organização, algumas das abordagens igualmente pertinentes para o efeito. 1.2.6 – O MODELO INSTITUCIONAL O modelo institucional é mais uma das “alternativas à perspectiva racionalista das organizações” (educacionais mas não só), constituindo “não um sistema teórico unitário mas uma família de conceitos e assunções teóricas relacionadas” (Ellström, 1992, 10). O “velho” institucionalismo nasceu nos anos 50 do século XX, com os trabalhos desenvolvidos por Philip Selznick, que postulou uma diferença entre “organização” e “instituição”, definindo a institucionalização duma organização como “a emergência de padrões ordenados, estáveis e socialmente integradores a partir de actividades instáveis, debilmente organizadas ou meramente técnicas” (Selznick, 1996, 271). Segundo a sua perspectiva, o processo de institucionalização duma organização permite-lhe construir os traços identitários e as competências que lhe permitirão distinguir-se das restantes, devendo essa construção ser entendida como uma resposta aos meios interno e externo da organização (id., 271). Sem negar a importância de outros processos de institucionalização como a criação da estrutura formal, a criação de normas informais, o recrutamento selectivo, os rituais administrativos e as ideologias, Selznick considera que os valores têm um lugar central na teoria das instituições e que “precisamos de saber que valores é que importam no contexto a considerar, como introduzi-los na cultura e na estrutura social da organização e de que maneira eles são enfraquecidos ou subvertidos” (id., 271). O “novo” institucionalismo, que “compreende uma rejeição dos modelos do actor-racional, um interesse nas instituições como variáveis independentes, uma viragem para as explicações cognitivas e culturais…” (DiMaggio & Powell cit. por Selznick, 1996, 273), focaliza-se na legitimação como a força motora dos actores organizacionais. A

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legitimidade é vista como um imperativo organizacional, que obriga a justificar determinadas formas e práticas, induzindo o isomorfismo institucional na medida em que “as organizações tendem a modelar-se segundo organizações similares do seu campo que consideram ter mais legitimidade ou maior sucesso”. Esta tendência foi também verificada por DiMaggio & Powell (cit. por Selznick, 1996, 273) : “A ubiquidade de certos tipos de arranjos estruturais pode ser atribuída mais a processos miméticos universais do que a qualquer prova concreta de que os modelos adoptados melhoram a eficiência” Segundo estes mesmos autores, o referido isomorfismo institucional poderá assumir três formas: (i) isomorfismo coercivo, quando resulta ou de pressões de uma ou várias organizações sobre outra que dela(s) depende ou de pressões da própria instituição para se comportar segundo as expectativas da sociedade em geral; (ii) isomorfismo mimético, como forma de a organização responder à incerteza quando não estão disponíveis orientações claras sobre as acções a desenvolver e parece mais simples imitar outras organizações que são vistas como modelos de sucesso; (iii) isomorfismo normativo, como resultado da profissionalização, quando os membros das profissões recebem formações idênticas e são socializados numa mesma visão do mundo ou quando os membros das profissões interagem no seio de relações ou associações profissionais e trocam ideias entre si (Mizruchi & Fein, 1999, 657). O “novo” institucionalismo acentua a importância dos mitos e dos rituais na construção das estruturas formais da organizações, sendo essas estruturas consideradas como o reflexo “dos mitos dos seus[das organizações] meios institucionais”, complementados por rotinas como as dos “rituais racionalizados de inspecção e avaliação”que, por serem vistos como ameaçadores, tendem a ser evitados pelas organizações (id., 273). O que também sai reforçado na perspectiva neo-institucional é a ideia de a estrutura formal “ser criada dentro dum quadro recebido e construído de cultura e constrangimento”, devendo ser vista como “um produto adaptável, que responde às influências do ambiente, incluindo as definições culturais de propriedade e legitimidade” (id., 274). Para além das questões da institucionalização e da legitimidade institucional, Ellström acentua como tese central do modelo institucional a racionalidade contextual, ou seja, a noção de que “nem tudo o que acontece nas organizações é necessariamente desejado ou o resultado de processos de decisão conscientes”, sendo as acções determinadas por “diferentes constrangimentos e possibilidades contextuais” (Ellström, 1992, 11), com as intenções dos actores e a s suas acções a manifestarem-se de forma muito pouco articulada. Esta fraca articulação verifica-se, ainda, entre as várias componentes das organizações actuais, que são complexas do ponto de vista interno e sujeitas a influências de meios externos diversos e cada vez mais amplos (locais, nacionais, mundiais), sendo o tema da incoerência nas organizações complexas um dos mais tratados pela corrente neo-institucional, que vê estas organizações “mais como coligações, governadas por múltiplas

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racionalidades e por uma autoridade negociada, do que como um sistema unificado de coordenação” (Selznick, 1996, 275). Esta organização pós-burocrática, que acentua a desarticulação, permitiria a diversidade, a flexibilidade e a autonomia que garantiria às organizações a adaptação óptima aos seus meios e condições seguras de sobrevivência. Como conclui Estêvão (1998, 204) relativamente às organizações educativas privadas, o modelo institucional apresenta contributos pertinentes para o estudo das instituições educativas, que são cada vez mais sistemas abertos e dependentes dos meios externos. Mesmo as instituições públicas, tradicionalmente organizações “domesticadas”, com o “sustento” assegurado, se têm vindo a tranformar em organizações “selvagens” que “lutam pela sobrevivência” (Carlson, cit. por Bush, 1995, 13), pelo que a atenção ao/dependência do meio obrigam a ter em conta as reflexões da perspectiva institucional. 1.2.7 – OS MODELOS CULTURAIS Os modelos culturais centram-se nos aspectos informais das organizações, “nos valores, crenças e normas dos indivíduos na organização e na forma como estas percepções individuais se agregam em significados organizacionais partilhados” (Bush, 1995, 130). A palavra cultura encontra-se aqui utilizada na sua acepção antropológica, como um “sistema de significados partilhados, cognições, simbolos e experiências que são expressas nos comportamentos e nas práticas dos membros do grupo de pertença (uma “tribo”) e que lhe dão definição social e um sentido de associção” (Beare et al., 1989, 177) e não no sentido estético/literário/artístico de “acções e realizações, expressões ou produtos incluídos na classificação abrangente de “belas-artes” e que se acredita que têm um valor intrínseco, independente de qualquer valor comercial, real ou pessoal” (id., 178). Na primeira das referidas acepções, a cultura tem sido entendida ou como uma dimensão da organização (perspectiva da psicologia social e das teorias da gestão) ou como sendo a própria organização (perspectiva antropológica) (Chambel & Curral, 1995, 179). Tal como assinalei em trabalho anterior (Gonçalves, 2001, 62), com os estudos sobre a cultura organizacional a assumirem “um progressivo relevo para a análise das organizações [...] evidenciando, entre outros aspectos [...] as regras que presidem às práticas utilizadas pelas organizações, assim como os modos através dos quais são efectuadas as escolhas organizativas, formadas as expectativas no seio das organizações e desenvolvidos os processos de decisão” (Crespi, 1997, 215), a retórica das organizações passou a incorporar a noção de cultura como uma constante, dando importância (i) à “visão partilhada” (Senge et al, 1999, 298); (ii) à adequação do estilo de liderança à cultura organizacional (Tyson & Jackson, 1992, 168); (iii) à construção de uma cultura de empresa (Ostroff, 1999, 11); (iv) ao compromisso baseado nos valores (Wickens, 1998, 4); (v) à ”cultura, visão, missão” (id., 71); e (vi) à natureza da tarefa na determinação do sistema de valores e da cultura organizacional (Drucker, 1996, 83).

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O reconhecimento de que a organização é ou tem uma cultura é acompanhado da noção de que essa cultura pode e deve ser “trabalhada”, competindo aos líderes máximos da organização o papel de defender a cultura “oficial” da organização, ao mesmo tempo que a sua posição institucional lhes dá um poder acrescido de fazerem prevalecer os seus próprios valores e visões, impedindo a emergência de “contra-culturas” que os possam pôr em causa (Beare et al., 1989, 199). Na aplicação dos modelos culturais/simbólicos às instituições de ensino são particularmente pertinentes o modelo de Beare, Caldwell & Millikan (Beare et al., 1989, 176) e o “modelo das quatro culturas”, de Handy (Handy & Aitken, 1986, 83 – 95). O primeiro modelo assenta (i) nos valores, enquanto “ linhas de orientação para a acção, critérios com os quais avaliamos (ou reflectimos sobre) as nossas acções [...] e as atitudes e comportamentos dos outros” e que “tal como a cultura, não são herdados geneticamente, mas aprendidos e inculcados desde o nascimento” (Beare et al., 1989, 180), (ii) na filosofia, considerada como “uma declaração coerente acerca dos valores próprios” que fornece “um foco teórico e conceptual para as actividades, reflectindo um conjunto de valores formalmente adoptados” pela organização (id., 185) e (iii) na ideologia, que “força deliberadamente o pensamento e a acção para determinadas linhas [...] sendo geralmente mais focalizada e mais limitada que a filosofia” (id., 185). Destas bases intangíveis derivam três tipos de manifestações tangíveis/simbólicas: (i) as conceptuais/verbais (metas e objectivos; currículo; linguagem; metáforas; histórias da organização; heróis da organização; estruturas organizacionais); (ii) as comportamentais (rituais; cerimónias; ensino/aprendizagem; procedimentos operacionais; regras e regulamentos; recompensas e sanções; apoios psicológico e social; padrões de comportamento com os pais e a comunidade) e (iii) as visuais/materiais (instalações e equipamento; artefactos e recordações; brasões e divisas; uniformes) (id., 176). O segundo modelo – que, como salienta O’Neill (1995, 108), “proporciona uma ponte útil entre os conceitos relacionados de cultura e estrutura” – identifica quatro culturas “todas observáveis nas escolas, tendo cada escola a sua própria mistura” e sendo “todas boas no lugar certo” (Handy & Aitken, 1986, 83 – 95). Essas quatro culturas são as seguintes: (i) a cultura de clube, representada graficamente por uma teia de aranha, com a chave da organização situada no centro, circundado por círculos progressivamente mais amplos de íntimos e de influência, sendo a organização concebida como uma extensão da “aranha” ou pessoa que a dirige ou fundou; (ii) a cultura de papéis (role culture), simbolizada por um templo grego, em que os pilares são as “caixas” que contêm o título da função e o nome do indivíduo e em que o telhado é a coordenação de topo, sendo a organização concebida como um conjunto de papéis articulados de forma lógica e organizada e para os quais se procuram “ocupantes” e não “indivíduos”; (iii) a cultura da tarefa, representada por uma rede, que pode puxar os seus fios conforme as necessidades, sendo a organização concebida como um conjunto de grupos de talentos e de recursos aplicados a um projecto, problema ou tarefa, grupos esses adaptáveis em função das necessidades; (iv) a cultura das pessoas, simbolizada por estrelas agrupadas em constelação, sendo a organização concebida como um suporte mínimo para o desenvolvimento das actividades dos seus profissionais.

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Estes tipos “puros” de cultura aparecem sempre associados, numa organização, sendo a sua combinação influenciada pela dimensão, pelo fluxo do trabalho, pelo meio e pela história da organização (id., 91 – 92). 2 – A ESCOLA SUPERIOR DE MÚSICA COMO BUROCRACIA PROFISSIONAL 2.1 – O CENTRO OPERACIONAL Na organização escola superior de música a parte mais importante é o centro operacional, onde o trabalho desenvolvido está a cargo de profissionais, que exercem a sua actividade com um elevado grau de autonomia e que respondem às necessidades dos seus “clientes” de forma de tal modo individualizada que o núcleo central da actividade de ensino – as disciplinas nucleares – é leccionado na proporção de 1 para 1. Esta relevância do corpo operacional permite, desde logo, caracterizar esta organização-tipo como uma burocracia profissional, cujo core business é a produção de cursos/diplomas, bem como de actividades musicais decorrentes directa ou indirectamente do currículo (audições, concertos e outros espectáculos musicais). Contudo, esta actividade produtiva da escola superior de música – ou de qualquer outra de ensino superior artístico – não se esgota na formação/certificação, uma vez que a instituição é, muitas vezes, procurada não tanto para esse efeito, mas também (e, nalguns casos, sobretudo) como um lugar de informação e de socialização (Moulin, 1997, 317, 322), o que a torna “mais num local de passagem, de circulação, de interferências, de paradoxos e de polémicas do que num local onde se construiria um saber e onde se consumiriam passivamente técnicas” (Marcadé, cit. por Moulin, 1997, 315). Esta característica, determinada pela importância das redes informais na construção das carreiras artísticas, conforme anteriormente descrito, acentua a ambiguidade dos fins deste tipo de instituição. Esta ambiguidade de fins encontra-se hoje mesmo no que diz respeito à actividade de formação/certificação, que é a oficialmente reconhecida e afirmada na retórica dos documentos produzidos sobre e pela organização. Com efeito, nem sempre os conteúdos e tecnologias de ensino são congruentes com o tipo de “produto” final que essa retórica afirma oferecer. Assente no reportório da música ocidental “erudita”, o currículo da escola superior de música foi progressivamente estruturado para formar o executante (o profissional) e depois o intérprete (o artista) (Gonçalves, 2001, 19), com o reportório solista a prevalecer mesmo no caso dos instrumentos de orquestra cujos intérpretes, na sua maioria, nunca serão solistas e com a formação na disciplina nuclear (Instrumento, Canto, Composição, Direcção) a prevalecer sobre as outras (aliás, em número muito reduzido na fase inicial da criação dos conservatórios), as quais têm tido designações significativas quanto ao

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lugar que ocupam na hierarquia curricular: disciplinas anexas, complementares, de apoio, secundárias. As observações de Lartigot & Sprogis (1991, 51) a propósito dos conservatórios não superiores franceses demonstrando que estas instituições estão organizadas sobretudo com base na aprendizagem dos instrumentos e que a orquestra “serve de referência, mas está ausente das aprendizagens”, uma vez que “cada instrumento de orquestra é ensinado numa classe” é parcialmente válida para as instituições de ensino superior de música, em geral, onde os alunos têm alguma prática de orquestra mas onde continuam a fazer a aprendizagem do seu instrumento sobretudo na sala de aula, com o seu professor individual e com base no reportório solístico e não orquestral desse instrumento. Para além desta ambiguidade, já “tradicional” quanto ao tipo de músico que deve formar e que ocorre dentro de um mesmo mundo (o da inspiração), as mudanças sócio-económicas e tecnológicas ocorridas nas últimas décadas têm introduzido outras ambiguidades, decorrentes da necessidade de acolher valores dos mundos industrial e comercial e que obrigam a organização escola superior de música a adaptações, nas quais se tem socorrido da débil articulação das suas actividades. Assim, as instituições que demonstram capacidade de inovação relativamente a estas mudanças conseguem manter o “núcleo duro” da sua tecnologia (reportórios-base ou “programas-padrão”, na terminologia de Mintzberg, e metodologia de ensino individualizada), respeitando a autonomia dos profissionais-chave da organização, que operam com base na sua formação e experiência pessoais, ao mesmo tempo que constroem, em volta desse núcleo central, uma constelação de novas oportunidades de formação, com as quais pretendem responder (ou demonstrar que respondem) às novas necessidades dos seus clientes e do meio institucional de que retiram o apoio indispensável à sua sobrevivência, assegurando assim o capital de confiança sem o qual perecerão. Estas novas necessidades decorrem de três factores principais: (i) a preocupação com a empregabilidade dos diplomados pelo ensino superior; (ii) a aprendizagem ao longo da vida; (iii) o novo conceito de músico. Todos estes factores, que analisarei seguidamente, têm (ou deveriam ter) implicações no sistema de produção (oferta de formação e tecnologias do ensino/aprendizagem) e no sistema relacional (abertura à comunidade, articulação com os sectores profissional e cultural). Uma das grandes preocupações que, nas últimas décadas, os poderes públicos vêm demonstrando com o ensino superior é o da empregabilidade, num mundo onde se verificam, a um ritmo crescente, mudanças técnicas e tecnológicas significativas. Como oportunamente referi (ver Capítulo I), o ensino superior é cada vez mais visto, pelo poder político, sobretudo como um locus de formação para mercados de trabalho altamente competitivos, à escala mundial, devendo os investimentos nele feitos ter resultados “lucrativos”, isto é, garantir elevadas taxas de empregabilidade.

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A indução das instituições de ensino superior nesta via predominantemente “utilitária” (Bleiklie, 1998, 299) é feita através (i) do incitamento à mudança de paradigma desse ensino, com a passagem do processo educativo centrado no ensino para o processo centrado na aprendizagem e (ii) do processo de avaliação de cursos e instituições. O novo paradigma de ensino, actualmente dominante em termos retóricos, encontra fundamento em duas lógicas diferentes: a do mundo académico e a do mundo político. Na perspectiva do primeiro estamos perante o perfilhar de uma abordagem construtivista, segundo a qual “a aprendizagem não é uma recepção passiva de informação, mas um processo contínuo e activo pelo qual o estudante constrói e reconstrói as suas concepções dos fenómenos”, com base nas suas concepções e crenças prévias (Tynjälä, 1999, 364, 365). O construtivismo “enfatiza a compreensão em vez da memorização e da reprodução da informação e assenta na interacção social e na construção de sentido”, chamando a atenção para a natureza situacional e contextual da aprendizagem e considerando que “as situações em que aprendemos e o modo como aprendemos afectam o que aprendemos e como o transferimos para novas situações” (id., 365). Embora esta concepção se possa aplicar a todos os níveis da educação, ela pode ser considerada especialmente adequada ao ensino superior e às suas instituições, designadamente às universitárias, que têm também por missão produzir conhecimento, pelo que a criação de “ambientes de aprendizagem construtivistas para os estudantes universitários está em harmonia com a outra missão das universidades, a de fazer investigação”, ao mesmo tempo que pode ser vista como “uma pré-condição para produzir competências relevantes para a aquisição de capacidades profissionais para as tarefas mal definidas e complexas dos dias de hoje”(id., 366). Do ponto de vista dos poderes públicos, a lógica em acção é a da implicação, categoria que “corresponde a uma conversão organizacional e conceptual dos modos de acção pública em matéria social” (Le-Strat, 1996, 81) e a um modelo de acção emergente que se apoia “na implicação do utente para se desenvolver, para preservar a sua produtividade e para garantir a qualidade da sua prestação” (id., 84). Centrar o ensino no aluno é transferir para ele a responsabilidade pela sua formação e pelo seu sucesso, implicá-lo como responsável único ou altamente determinante do seu projecto pessoal de vida, passando a aprendizagem a ser vista como uma realidade social complexa onde o factor implicação “não é o menor”, a partir do momento em que “a sociedade já não consegue produzir as estruturas normativas capazes de socializar e de integrar a massa dos seus membros, sendo então pedido a cada indivíduo que prove ser capaz de se integrar” (id., 94, 71). Ambas as perspectivas fundamentam outro princípio presente, nas últimas décadas, na retórica dos documentos oficiais nacionais e internacionais sobre o ensino superior e a missão das suas instituições: o da aprendizagem ao longo da vida. Se o indivíduo é o principal construtor do seu conhecimento e do seu sucesso pessoal e profissional, compete-lhe assegurar-se ( e demonstrar à sociedade) que está empenhado num processo contínuo de formação que lhe permitirá, em cada momento, responder às

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necessidades de um meio em permanente e acelerado ritmo de inovação e transformação técnica e tecnológica, mas também económica e social, numa era de globalização, migrações, alterações demográficas, etc. Deste ponto de vista, a aprendizagem ao longo da vida surge como um locus que garante, aos poderes políticos, um “capital de conhecimento” sempre actualizado para responder às necessidades do mercado e à concorrência internacional, ao mesmo tempo que assegura às instituições de ensino superior uma feliz oportunidade de recrutamento de novas “clientelas”, num momento em que se verifica uma diminuição demográfica dos “clientes” tradicionais e uma disputa acrescida por alunos, num contexto em que o subfinanciamento dessas instituições pelo orçamento público torna determinante para a sua sobrevivência a contribuição directa dos estudantes através das respectivas propinas. Os processos de avaliação do ensino superior são uma das principais formas de regulação das “velhas” missões do ensino superior, que agora ou são “desocultadas” (no referente à empregabilidade) ou reforçadas (no que respeita à aprendizagem ao longo da vida). Se uma e outra eram já preocupações/funções do ensino superior, a sua explicitação crescente vem-se revelando na forma como os documentos enquadradores e orientadores do ensino superior exigem das instituições que prestem informação clara e transparente aos diferentes stakeholders sobre as formações que oferecem, numa lógica de dupla implicação: a das instituições, responsáveis pela informação “eficaz”, que permitirá as “boas” escolhas e a dos stakeholders, responsáveis por essas escolhas, aquelas que permitirão (i) aos estudantes, garantir a sua empregabilidade à saída da formação inicial e, depois, ao longo da vida e (ii) às entidades empregadoras, recrutar os perfis adequados às suas necessidades, dentro da diversidade disponível e sobre a qual elas se deverão informar. Outro dos indicadores da “deriva” utilitarista do ensino superior é a implicação crescente do mundo laboral nas actividades de avaliação do ensino superior, como demostra, por exemplo, o caso dos Países Baixos (ver Capítulo 3): onde anteriormente se falava em “representantes do mundo profissional” fala-se agora, no projecto de lei sobre o ensino superior, de “representantes das entidades empregadoras”. O mérito académico (científico, humanístico ou artístico) é progressivamente substituído, de forma mais ou menos implícita, pelo mérito “industrial”, pela constante procura da eficácia e da eficiência das respostas às necessidades do mercado, a satisfazer pela implicação de instituições e indivíduos no processo de formação para essas necessidades. A ambiguidade de fins da instituição escola superior de música – tal como a de qualquer outra do mesmo nível - é, assim, agravada pelo novo contexto decorrente das questões assinaladas e ainda, muito especificamente, pela necessidade, face a esse contexto, de uma nova definição de artista e de músico e de novas formas de articulação das suas actividades com os sectores criativos e culturais. O artista deve agora ser visto essencialmente como um “comunicador”, um criativo capaz de transmitir a sua “visão da realidade”, mas para que essa mensagem seja entendida é necessário preparar os públicos e aí o artista tem um papel fundamental, juntamente com os docentes, administradores e

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divulgadores (Mundy, 1998, 57), devendo as instituições de formação ter em conta as novas dimensões profissionais exigidas pelo mundo do trabalho artístico. Se “a comunicação através da forma de arte é talvez o único dom que não pode ser ensinado”, já “a capacidade para trabalhar com pequenos grupos, falar em público, utilisar eficazmente os media e interagir com as audiências [...] são capacidades que podem e devem ser adquiridas”, bem como a de “compreender a indústria com que terá que lidar e aprender a manipulá-la para bem do seu trabalho: usar, antes de ser usado” (id., 56, 57). O artista deve “explorar a arte em todo o seu potencial e não apenas aprender as técnicas artísticas” e, deste ponto de vista, as instituições de ensino deverão “identificar a diferença entre conhecimento e capacidades e ter em conta, para além dos seus interesses, as necessidades dos públicos e a economia política a que estas dão forma” (id., 57). O artista deve ser preparado não da forma predominantemente “abstracta” e descontextualizada que informava a tradição do currículo das escolas artísticas, mas para o exercício profissional simultaneamente diverso e “situado”, em contextos múltiplos e diversificados. Apesar de muitas vezes, os currículos não terem tido em conta essa realidade, o facto é que, por exemplo, “não existe nenhum músico de orquestra que não seja também ou músico de câmara, ou solista, ou membro de um conjunto especializado em Música Antiga ou Música Contemporânea, ou docente, ou compositor ou cientista musical” (Röbke, 2006, 3) e cada vez mais a “comunicação” da obra artística, como oportunamente referi, ocorre fora dos lugares tradicionais da sala do museu, da sala de concerto ou do palco do teatro. A ambiguidade de fins é, pois, também reforçada pela complexidade crescente das profissões musicais, e o que as instituições mais actualizadas advogam é o reconhecimento de igual dignidade a diversas formas do exercício profissional, na linha da identificação de um “código genético para o músico, com quatro papéis principais: compositor, intérprete, líder e professor” (Youth Music, 2002, 5). Esta tendência pode ser caracterizada como uma mudança de perspectiva que eu designaria como a da substituição de uma perspectiva piramidal sobre as profissões musicais, com o solista no topo da pirâmide e o crítico na base (“quem não sabe fazer, critica”…), entremeados de outros profissionais nos diversos níveis da pirâmide (Fig.2), por uma perspectiva molecular que desejavelmente incorpora no mesmo indivíduo o potencial para o desempenho de diversas actividades profissionais, todas com o mesmo nível de dignidade, reconhecendo igual “qualidade” a diversas formas de trabalho na área da Música (Fig. 3). O reconhecimento duma maior diversidade de funções a desempenhar pelo músico profissional implica uma formação ao longo da vida, não só por limitações de tempo curricular ao nível da formação inicial, mas também porque garante a preparação adequada aos “desafios decorrentes de um mercado de trabalho em rápida mutação, no qual os músicos devem cada vez mais moldar a sua carteira de actividades flexível em resposta aos novos contextos criativos e interpretativos e às novas oportunidades

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proporcionadas pelo trabalho situado no cruzamento das artes, no cruzamentos de culturas e no cruzamento de sectores”(Renshaw, 2005, 2). Esta questão da crescente ambiguidade dos seus fins, decorrentes das pressões da empregabilidade, da formação ao longo da vida, dos novos contextos sócio-profissionais e dos novos perfis de formação tem sido reconhecido por grande número de instituições de ensino superior de música, que vêm debatendo, internamente e em fóruns de debate internacionais, as estratégias para fazer face às mudanças em curso. A título de exemplo, cite-se o relatório do congresso sobre educação e formação artísticas denominado “Um contexto diferente”, realizado em Kent em 1995 e que enumera alguns dos aspectos mais importantes do “novo contexto” e algumas das correspondentes respostas das instituições (EUCLID, 1996, 10). Segundo este relatório, ao “Novo espaço sócio-económico (mobilidade)” as organizações de ensino respondem com (i) o desenvolvimento de cursos em associação; (ii) colaboração via Internet; (iii) trabalho no estrangeiro; (iv) aulas sobre as realidades culturais e sócio-económicas de países estrangeiros. Os “Novos bens e serviços para a sociedade pós-industrial” são encarados através (i) da interdisciplinaridade e da modularização dos currículos, para mais flexibilidade; (ii) do interesse em novas áreas: necessidades sociais, educativas, etc.; (iii) do desenvolvimento de novos currículos; (iv) da focalização em domínios específicos (terceira idade, necessidades especiais); (v) da captação de novas populações estudantis para além das “clássicas”. O “uso das novas tecnologias para o desenvolvimento das comunicações” é feito como (i) um auxiliar do ensino; (ii) como uma ferramenta de gravação ou de design; (iii) como um meio de comunicação; (iv) como um espaço criativo. À “Necessidade de capacidades mais sofisticadas” as instituições respondem com (i) novos métodos de ensino; (ii) novas relações estudante/docente; (iii) desenvolvimento curricular; (iv) diversificação e focalização; (vi) uso das novas tecnologias. Já quanto à necessidade de “Experiência de trabalho para fazer face ao novo mercado de emprego”, as respostas são (i) os estágios; (ii) o convite a profissionais como professores-visitantes; (iii) a colaboração com profissionais em contextos de trabalho reais; (iv) workshops e seminários com profissionais; (v) aulas de marketing, gestão, legislação, etc. Como se verá quando me referir às três instituições de ensino superior de música onde desenvolvi a componente empírica do presente trabalho, este tipo de instituição adopta algumas ou todas as estratégias acima enunciadas, com maior ou menor intensidade consoante as pressões das políticas dos respectivos países sobre a organização e a avaliação do ensino superior, em geral. Mas mesmo nas mais “avançadas”, na resposta aos novos contextos e ao correspondente acréscimo de ambiguidade, as inovações introduzidas não afectaram o núcleo central da actividade produzida no corpo operacional, conforme já referi, convivendo em “articulação débil” com os conteúdos e as tecnologias de ensino/aprendizagem tradicionais.

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A situação assinalada é congruente com a caracterização da organização escola superior de música como burocracia profissional, dominada pela “cultura” dos profissionais que nela operam. Num “mundo” onde predomina a lógica da reputação, e num ensino largamente baseado numa aprendizagem do tipo mestre/aprendiz (paradigma da “tecnologia fluida” de ensino), o nome (renome) do profissional/artista que lecciona as disciplinas nucleares é determinante, continuando esses profissionais a ocupar o topo da hierarquia docente, não só porque são os guardiões da tradição que a escola de música, enquanto “conservatório”, pretende conservar - mesmo quando actualiza as formações oferecidas - mas também porque nas áreas artísticas e muito especialmente na musical, os estudantes não procuram escolas, mas professores: na ausência de possíveis constrangimentos (dificuldades financeiras, distância geográfica, etc.) os estudantes escolhem a escola onde lecciona um determinado professor com o qual pretendem trabalhar a sua disciplina principal (Instrumento, Canto, Composição, Direcção Coral ou de Orquestra, etc.).

FIGURA 2 - PROFISSÕES MUSICAIS PERSPECTIVA PIRAMIDAL

Crítico

Administrador/Gestor

Animador/Monitor

Professor no ensino regular

Professor no ensinoespecializado

Músico de orquestra/coralista

Músico de Câmara

Solista/ Compositor

/Maestro

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FIGURA 3- PROFISSÕES MUSICAIS PERSPECTIVA MOLECULAR

INTÉRPRETE

PROFESSOR/ ANIMADOR/

COMUNICADOR ADMINISTRADOR/

GESTOR/ PROGRAMADOR

COMPOSITOR/ ARRANJADOR

CRÍTICO/ DIVULGADOR

A esta predominância simbólica do artista-professor acresce a sua predominância numérica na instituição escola superior de música, o que torna este tipo de instituição no exemplo máximo da organização com uma participação fluida dos actores, neste caso, dos docentes, cuja actividade principal está fora da organização, e que se deslocam a esta por vezes apenas algumas horas por semana ou à qual nem se chegam a deslocar, como referirei oportunamente. Mas esta participação fluida verifica-se também por parte dos outros actores do corpo operacional, os estudantes. Dadas as características muito particulares da construção da carreira artística, assinaladas no capítulo anterior, os estudantes aproveitam toda e qualquer oportunidade de apresentação pública, tendendo a aceitar trabalho em projectos que considerem importantes para a sua carreira. Esta atitude verifica-se mesmo em detrimento da sua formação e, por maioria de razão, explica por que é que os estudantes deste tipo de instituição demonstram tão pouca disponibilidade para tarefas extra-curriculares (mesmo que sejam exclusivamente artístico-musicais) ou para participação nos órgãos de gestão da escola ou na associação de estudantes (cuja constituição é, muitas vezes, difícil). Acresce que, em muitos casos, a opção por uma via profissional artística se faz tardiamente (por vezes após outros estudos superiores que as famílias “obrigaram” os estudantes a fazer), pelo que os estudantes já estão em idade de se bastarem economicamente a si próprios, devendo exercer uma actividade remunerada que compense a ausência ou insufuciência de bolsas de estudo.

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Por estas razões, a participação dos estudantes na vida organizacional limita-se, em geral, à comparência às aulas e a outras actividades curriculares, com vista à obtenção do diploma. Embora este ganhe cada vez mais importância face aos novos contextos profissionais, a sua obtenção não é vista como tão urgente que impeça os estudantes de a colocarem em segundo plano face a oportunidades de trabalho que se lhes ofereçam ou de repetirem o ano para continuarem a ter aulas com o docente da disciplina nuclear. Esta última situação é avalizada pelos docentes, mesmo quando o nível alcançado é já muito bom, na perspectiva de que devem dar aos alunos o máximo apoio no desenvolvimento das suas capacidades artísticas e técnicas, garantindo-lhes as condições para a expressão da sua singularidade, respeitando o ritmo e a evolução de cada um. De acordo com esta perspectiva, os “profissionais” recusam a estandardização de métodos e processos, garantindo uma autonomia assente em tecnologias pouco claras que lhes asseguram liberdade de acção. Em resumo, no centro operacional da organização escola superior de música identificam-se traços duma burocracia profissional e duma anarquia organizada e lógicas de acção baseadas fundamentalmente nos princípios dos “mundos” da reputação e da inspiração. 2.2 – A LINHA HIERÁRQUICA Na organização escola superior de música, a linha hierárquica está estruturada segundo os princípios da hierarquia profissional, isto é, estão previstos órgãos de decisão constituídos pelos profissionais da instituição - os docentes - sendo alguns desses órgãos alargados à participação dos estudantes e, menos frequentemente, ao pessoal não docente. Dada a sua constituição maioritária por “pares”, o modelo da tomada de decisão é, formalmente, o colegial, com os profissionais partilhando uma mesma cultura a decidirem, por consenso ou maioria, as questões que cabem na sua esfera de competências, bem como os conflitos decorrentes dos interesses divergentes que inevitavelmente se manifestam na vida da organização. O funcionamento da linha hierárquica, com base nos órgãos e estruturas da escola superior de música e nos princípios dos modelos colegiais e políticos que lhes estão subjacentes, apresenta algumas dificuldades neste tipo de organização, caracterizada pela participação extremamente fluida dos seus profissionais, como já se referiu. A indisponibilidade de grande maioria desses profissionais para o exercício de funções que não sejam estrictamente pedagógicas leva a que as instituições procurem reduzir o número dos seus órgãos permanentes, de forma a garantir a operacionalidade desses órgãos e o regular funcionamento da instituição. Este desideratum torna-se difícil de conseguir nos casos em que esta, por se integrar num determinado tipo de organização no sistema de ensino superior do seu país, é obrigada a dotar-se dos órgãos genericamente fixados para esse tipo de organização, sem

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que essas orientaçõs gerais tenham em conta as características muito específicas das carreiras profissionais dos actores que devem constituir esses órgãos. Tais características tornam particularmente agudo o problema da falta de tempo dos docentes para integrarem os órgãos e estruturas da instituição, problema esse que é mais acentuado, mas não exclusivo deste tipo de organização, sendo sentido nas instituições escolares, em geral (Watkins, 1993). Esta redução do número de órgãos e estruturas é também desejada num tipo de organização onde os profissionais querem trabalhar com grande independência e autonomia. A organização escola superior de música, como qualquer outra burocracia profissional, caracateriza-se por uma “cultura das pessoas”, na terminologia anteriormente citada de Handy, na qual a organização é vista como um suporte mínimo facilitador da actividade profissional individual dos profissionais no seu seio. Por outro lado, também não é fácil mobilizar esses profissionais para uma participação mais intensa na administração e gestão da organização e para as acções de formação necessárias para requalificar os docentes, nestas como noutras escolas dos diversos níveis, para funções que ou são novas ou apresentam novos contornos, em tempos de profundas mudanças na vida destas instituições. Como referi quando caracterizei as carreiras artísticas, para a grande maioria dos seus professores, a instituição de ensino superior de música não é percepcionada como o seu principal local de trabalho, mesmo quando aí exercem funções a tempo inteiro e quando é da actividade na instituição que retiram o grosso dos seus rendimentos. Dificultada na sua estruturação e no seu funcionamento pelas características de um corpo profissional dominante, de participação fluida e utilizando tecnologias pouco claras, de forma altamente autónoma, a linha hierárquica representa uma componente da organização fortemente articulada, segundo um modelo burocrático de divisão do trabalho por vários tipos de órgãos e estruturas articulados entre si, que se espera que funcionem de acordo com a lógica da colegialidade aconselhada pela ou fundamentada na composição “profissional” dessas estruturas de gestão intermédia. Em resumo, a linha hierárquica da organização escola superior de música apresenta características de uma burocracia profissional, desafiada por traços anárquicos da organização e por processos de decisão micropolíticos no cruzamento duma cultura de colegialidade com uma “cultura das pessoas”. 2.3 – A TECNO-ESTRUTURA E O APOIO LOGÍSTICO Numa burocracia profissional, a linha hieráquica é acompanhada por uma pequena tecno-estrutura e por um apoio logístico de considerável dimensão. Num tipo de organização em que a coordenação do trabalho é feito, sobretudo, com base na estandardização das qualificações e onde não é possível estabelecer

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especificações muito claras sobre o trabalho a realizar, o trabalho da tecnoestrutura, composta pelos analistas que concebem, planeiam ou asseguram o trabalho dos operacionais (Mintzberg, 1995, 49), limita-se – ou deveria limitar-se, segundo a concepção do modelo – a controlar essas qualificações. Contudo, com a crescente autonomia e correspondente exigência de prestação de contas verificada nas instituições de ensino superior, a estandardização tende a fazer-se com base também nos processos e nos resultados, determinando um aumento dos analistas na organização, agora centrados em aspectos cuja estandardização não é, contudo, congruente com as características da burocracia profissional. Quanto ao apoio logístico, ele apresenta dimensões consideráveis numa burocracia profissional não só porque “dado o elevado custo dos profissionais, faz sentido oferecer-lhes todo o apoio possível, para os poder ajudar e para fazer com que outros executem os trabalhos rotineiros que podem ser formalizados” (id., 385) mas também porque o grau de especialização do trabalho desenvolvido neste tipo de organização exige apoios técnicos e tecnológicos, bem como espaços e equipamentos que implicam o recurso a meios humanos com qualificações especializadas. No caso da organização escola superior de música refiram-se, a título de exemplo, os serviços de apoio a auditórios e a pequenas salas de espectáculos, aos estúdios de gravação, aos estúdios de ensaio, à manutenção de instrumentos, à divulgação das actividades artísticas para captação de públicos e patrocínios, etc. As características do tipo de apoio logístico acima referido, que acresce ao apoio mais comum e generalizado em todas as organizações escolares (serviços académicos, de pessoal, financeiros, etc.) acentuam algumas clivagens nas relações entre as duas hierarquias paralelas que se confrontam na burocracia profissional, a saber, “uma para os profissionais, no sentido ascendente e que é de natureza democrática e a outra para as funções de apoio logístico, no sentido descendente e que tem a natureza de uma Burocracia Mecanicista”, sendo que nesta hierarquia não-profissional “o poder e o estatuto estão associados à função e não aos indivíduos”(id., 391). Com efeito, na burocracia profissional que é a escola superior de música, mesmo no apoio logístico pode dominar, em certos sectores específicos, uma lógica profissional e não uma lógica burocrática, o que dificultará o exercício do poder segundo esta lógica, relativamente a determinados serviços ou especialistas de apoio e aumentará as tensões tradicionalmente existentes entre “a orientação profissional no sentido dos serviços e a orientação burocrática no sentido do respeito pelas normas” (Blau, cit. por Mintzberg, 1995, 391). Em resumo, na tecno-estrutura e no apoio logístico da organização escola superior de música cruzam-se as lógicas da burocracia profissional e da burocracia mecanicista, o que se verifica também noutros tipos de instituições de ensino superior, mas que é aqui acentuado pelo facto de o mundo dominante ser o da inspiração, domínio do não previsível, do não mensurável, do incompatível com especificações, estandardizações e submissão a normas exteriormente definidas.

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2.4 – O TOPO ESTRATÉGICO Uma das principais funções do topo estratégico duma burocracia profissional é, justamente, o de dirimir as questões suscitadas pelo confronto entre as duas lógicas que se justapõem neste tipo de organização. Se os conflitos resultantes dos interesses divergentes podem ser resolvidos por via hierárquica relativamente ao apoio logístico, com o corpo operacional o gestor tem que entrar em negociação, uma vez que a sua situação de primus inter pares não lhe permite impor soluções aos profissionais da organização, tanto mais que só manterá o seu poder se estes considerarem que ele serve eficazmente os seus interesses (Mintzberg, 1995, 394), estando ainda formal e culturalmente condicionado pelo modelo colegial de decisão que deve ser seguido neste tipo de organização. Acresce que as características de ambiguidade da burocracia profissional, no que respeita ao funcionamento do corpo operacional (com participação fluida e tecnologias pouco claras) tornam difícil ao topo estratégico um controlo muito apertado e uma imposição hierárquica de regras e procedimentos. No caso específico das instituições de ensino de música, essa dificuldade é acentuada pela relação dual que é dominante em grande parte do processo de ensino/aprendizagem e na qual é problemática a introdução de um terceiro elemento, sendo alguns aspectos desse processo completamente impossíveis de controlar. Se os modelos políticos, culturais, colegiais e de ambiguidade ajudam a compreender as lógicas de acção do topo estratégico no interior da burocacria profissional,em geral, e da organização escola superior de música, em particular, a sua actividade para o exterior parece ser melhor explicada com recurso aos modelos burocrático e institucional. Por um lado, cabe-lhe demonstrar aos stakeholders – sobretudo àqueles de quem depende mais directamente a sobrevivência da organização – (i) que respeita e faz respeitar as orientações para a acção, mais ou menos formalizadas, que deles recebe e (ii) que a instituição actua de acordo com as normas, procedimentos e recomendações que lhe são impostas, competindo-lhe ainda (iii) garantir que as regras e regulamentos internos são objecto de divulgação e informação para o exterior. Para citar como exemplo o aspecto que aqui mais interessa – o da avaliação – relembre-se o imenso corpus documental a que ela tem dado origem, num crescendo burocrático que é tanto mais acelerado quanto mais antigos forem o modelo e as práticas da avalição, procurando-se controlar e estandardizar aspectos da vida organizacional que dantes se regulavam de modo informal e que não era preciso justificar, nem interna nem externamente. Por outro lado, numa situação de escassez de recursos e de disputa por esses bens raros, cabe ao topo estratégico promover a adaptação da organização às exigências e constrangimentos que vão surgindo, em ritmo cada vez mais acelerado, de forma a

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garantir a sobrevivência da instituição. Essa adaptação será tanto mais fácil quanto menos articuladas forem as diversas componentes da organização, como acontece nas instituições educativas, embora a cultura tradicional nelas vigente, sobretudo no caso das instituições públicas dos países com administrações centralizadas, não favoreça uma transição rápida para a abertura ao meio exterior e para um reconhecimento imediato da sua dependência face a este. Também nesta perspectiva a função reguladora da Avaliação é determinante, pela pressão que impõe sobre as instituições ao definir aquilo que os poderes públicos entendem como relevante e que vai ser objecto de averiguação para determinar se a instituição deve ou não ser apoiada. A necessidade de justificação institucional assim intensificada – também aqui em graus diferentes, consoante a antiguidade das políticas e das práticas de avaliação – obriga o topo estratégico a dirimir outro conflito: o que ocorre entre os interesses do mundo académico e, no caso em análise, artístico (do qual emana e cujos princípios partilha e é obrigado a defender) e os dos mundos industrial e comercial cujos princípios tem que perfilhar, de forma a tornar a sua instituição eficaz, eficiente e competitiva, demonstrando que responde às necessidades que lhe são impostas pelos stakeholders externos, designadamente por aqueles que a financiam, do Estado às famílias e aos estudantes. Esta situação torna cada vez mais difícil o exercício das funções de dirigente de topo, enquanto interface entre mundos com princípios por vezes totalmente divergentes e tem levado, em muitos casos, ao recrutamento de profissionais de fora do mundo académico para a gestão das instituições de ensino superior, mesmo no caso daquelas – como as de Música – que fazem da sua especificidade uma arma contra algumas das evoluções não desejadas nas políticas que as afectam. Em conclusão, julgo poder dizer-se que as diversas componentes da burocracia profissional de que a organização escola superior de música constitui um exemplo funcionam de modo relativamente desarticulado, o que permite, por um lado, identificar modelos de organização/gestão e lógicas de acção específicos de cada uma delas e intuir os conflitos e necessidades de acordo ou compromisso deles decorrentes e, por outro, considerar que estão potencialmente aptas, cada uma na medida do que for conveniente e possível (face ao seu grau de articulação relativo), às alterações necessárias à adaptação e sobrevivência da instituição no seu conjunto.

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