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1 MESSIAS EXORCISTA: COMBATE AOS ESPÍRITOS IMUNDOS E A ESTRUTURA DO EVANGELHO DE MARCOS (Exegese de Mc 1.21-28) Antonio Lazarini Neto Orientador: PROF. DR. PAULO AUGUSTO DE SOUZA NOGUEIRA SINOPSE Pertence ao senso comum atribuir-se à forças malévolas os dissabores que ocorrem ao ser humano, desde intentos pessoais que não dão certo até fenômenos naturais, tais como terremotos, enchentes, etc. A Deus, credita-se a paz entre os povos e as bem-aventuranças da vida. A imaginação do demoníaco é sempre muito forte, evocando imagens de seres horrendos que aparecem com asas de morcego, chifres, rabo e em cores flamejantes e tenebrosas que, apesar de assombrar o dia-a-dia das pessoas, acabam sendo nada mais do que tentativas de explicar e “personalizar” a realidade abstrata do mal. Este estudo tem por objetivo fazer uma análise literária do texto de Marcos 1.21-28, procurando investigar uma possível influência de tradições populares de povos e culturas antigas sobre a redação do Evangelho segundo Marcos em sua forma de descrever os relatos de exorcismo (Para isto, examinaremos as concepções do mal em várias correntes de tradição numa seqüência histórica relativa para vislumbrar como ao longo do tempo os povos têm imaginado o mal). A hostilidade, o dualismo, a luta cósmica parecem constituir elementos comuns percebidos nas fontes literárias da antiguidade. Todavia, o Evangelho de Marcos tende a fazer um uso particular da figura de demônios e espíritos imundos contrapondo-os a Jesus. Na Bíblia Hebraica, Satanás e os demônios fazem parte do cenário, mas são quase que ignorados e servem aos propósitos soberanos de Iahweh, enquanto que nos relatos de exorcismo tais figuras adquirem uma importância fundamental. Tudo o que ameaça a ordem estabelecida por aquele grupo social onde a narrativa se concentra acaba sendo identificado como manifestações de demônios e espíritos malignos.

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MMEESSSSIIAASS EEXXOORRCCIISSTTAA:: CCOOMMBBAATTEE AAOOSS EESSPPÍÍRRIITTOOSS IIMMUUNNDDOOSS EE AA EESSTTRRUUTTUURRAA DDOO EEVVAANNGGEELLHHOO DDEE MMAARRCCOOSS

(Exegese de Mc 1.21-28)

Antonio Lazarini Neto

Orientador:

PROF. DR. PAULO AUGUSTO DE SOUZA NOGUEIRA

SINOPSE

Pertence ao senso comum atribuir-se à forças malévolas os dissabores que ocorrem ao ser humano, desde intentos pessoais que não dão certo até fenômenos naturais, tais como terremotos, enchentes, etc. A Deus, credita-se a paz entre os povos e as bem-aventuranças da vida.

A imaginação do demoníaco é sempre muito forte, evocando imagens de

seres horrendos que aparecem com asas de morcego, chifres, rabo e em cores flamejantes e tenebrosas que, apesar de assombrar o dia-a-dia das pessoas, acabam sendo nada mais do que tentativas de explicar e “personalizar” a realidade abstrata do mal.

Este estudo tem por objetivo fazer uma análise literária do texto de Marcos

1.21-28, procurando investigar uma possível influência de tradições populares de povos e culturas antigas sobre a redação do Evangelho segundo Marcos em sua forma de descrever os relatos de exorcismo (Para isto, examinaremos as concepções do mal em várias correntes de tradição numa seqüência histórica relativa para vislumbrar como ao longo do tempo os povos têm imaginado o mal).

A hostilidade, o dualismo, a luta cósmica parecem constituir elementos

comuns percebidos nas fontes literárias da antiguidade. Todavia, o Evangelho de Marcos tende a fazer um uso particular da figura de demônios e espíritos imundos contrapondo-os a Jesus.

Na Bíblia Hebraica, Satanás e os demônios fazem parte do cenário, mas são

quase que ignorados e servem aos propósitos soberanos de Iahweh, enquanto que nos relatos de exorcismo tais figuras adquirem uma importância fundamental. Tudo o que ameaça a ordem estabelecida por aquele grupo social onde a narrativa se concentra acaba sendo identificado como manifestações de demônios e espíritos malignos.

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ABSTRACT

It belongs to the common sense to attribute to dark devilish power occasional

misfortunes such as non-successful plans, natural phenomena like storms and floods.

To God we only associate peace, happiness and hope of a good life.

Human imagination of demoniac is strong, calling on mind bizarre images

with bat wings, tails when not also flame colored in a tentative to explain and “to

personalize” the image from abstract reality of evil.

This work has the objective to analyze Mark 1:21-28, searching a eventual

influence of popular traditions of people and ancient cultures over the gospel

according to Marc, considering the exorcisms description we can find in the book

(So we will exam the conceptions of evil according to some traditions in a historic

sequence to see in a long run how people call on mind the evil).

The hostility, the dualism, the cosmic battle seems to be common elements in

ancient literary sources. However, the Mark's gospel tends to do an use peculiar of

the demons' illustration and filthy spirits opposing them to Jesus.

In the Hebraic Bible, Satan and the demons are itself part of the scenery, but

they are almost ignored and serve the sovereign purpose of Iahweh, while in the

exorcism accounts such beings has vital importance. All the threats the natural order

established on a social group where the narrative takes place is identified as demonic

and devil spirits manifestation.

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SUMÁRIO: INTRODUÇÃO 1. O Domínio da Crença em Demônios..................................................06

2. O Dualismo do Novo Testamento: Cristo versus Diabo................... 07

3. Possessão e Espíritos Imundos...........................................................10

4. Referencial Teórico.............................................................................11

CAPÍTULO I: HERANÇAS E INFLUÊNCIAS NA QUESTÃO DO MAL NO MEDITERRÂNEO 1. Judaísmo e suas antigas tradições acerca do Mal............................... 13

2. O Período Persa e a sistematização dos demônios.............................. 24

3. Helenismo: Período de Sincretismo e Criatividade............................ 33

4. Efeitos das práticas imperiais Romanas na Galiléia Antiga............... 43

5. Conclusão............................................................................................ 51 CAPÍTULO II: AS DEFINIÇÕES E CARACTERIZAÇÕES DO MAL NA LITERATURA JUDAICO-CRISTÃ

1. A tradução da LXX: Deuses e Ídolos viram Demônios..................... 54

2. O Testamento de Salomão: Magia e Exorcismo................................ 58

3. O livro dos Jubileus e o Mastema...................................................... 68

4. O Testamento dos Doze Patriarcas e “Belial”....................................77

5. Conclusão........................................................................................... 84 CAPÍTULO III:

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MARCOS 1.21-28: ESPÍRITO IMUNDO NA PRIMEIRA AÇÃO PÚBLICA DE JESUS DESCRITA EM MARCOS 1. Considerações acerca do Estilo de Marcos........................................ 87

1.1. Estilo Literário: tradição oral e textualidade.................................................. 87 1.2. Estilo Gramatical: vocabulário, sintaxe e estruturação.................................. 90 1.3. Estilo Redacional: Inconfundível fundo semítico.......................................... 95

2. Demônios e Espíritos Imundos na redação de Marcos: visão

panorâmica........................................................................................101

2.1. Mc 1.21-28: Confronto Inaugural na Sinagoga de Cafarnaum................... 104 2.1. Mc 5.1-20: Confronto em Gerasa............................................................... 107 2.2. Mc 7.24-30: Confronta na Região de Tiro.................................................. 113 2.3. Mc 9.14-29: Confronto na Descida do Monte da Transfiguração.............. 119 2.4.Considerações Finais................................................................................... 124

3. Marcos 1.21-28: Exegese e Aproximações.......................................130

3.1.Texto Grego e Tradução.............................................................................. 133 3.2.Crítica Textual e Moldura da Narrativa....................................................... 135 3.3.Comentário: Estrutura, Semântica e Análise Léxica................................... 137

CONCLUSÃO...................................................................................... 156 APÊNDICE I:........................................................................................ 160 COLABORAÇÃO ARQUEOLÓGICA: CAFARNAUM NA ROTA DAS CARAVANAS PARA DAMASCO – PROJEÇÕES SOCIAIS

1. Tell Hum: A Localização da Antiga Cafarnaum............................... 162

2. Cafarnaum: Lugar de Curas e Milagres nos Evangelhos.................. 165

3. As descobertas arqueológicas no sítio em Tell Hum........................ 167 BIBLIOGRAFIA................................................................................... 177

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ABREVIATURAS ARA = Almeida Revista e Atualizada ARC = Almeida Revista e Corrigida AT = Antigo Testamento C.H. = Corpus Hermeticum LXX = Septuaginta NT = Novo Testamento NTS = New Testament Studies TestXII = Testamento dos Doze Patriarcas

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INTRODUÇÃO

1. O Domínio da Crença em Demônios

Estudos1 mostram que a imaginação popular atribui ao mal tudo o que está

fora da compreensão humana e distante de uma explicação razoável, criando figuras

e ícones que representem o demoníaco. Nota-se que a idéia do mal tem suas variantes

conforme o momento histórico, o contexto sócio-econômico-político-cultural do

local, a cosmovisão do povo e a identidade do grupo social. Tais ícones concebidos

pela imaginação popular talvez tenham o seu papel como um mecanismo intrínseco à

raça humana.

No mundo antigo, a maioria das pessoas olhava para o universo e o via

habitado por seres invisíveis que, embora transcendentes no sentido da

impossibilidade – via de regra – de serem vistos ou tocados, sua presença interferia

no mundo e na vida visível dos humanos. Segundo Elaine Pagels, “os antigos

egípcios, gregos e romanos imaginavam deuses, deusas e seres espirituais de diversos

tipos, enquanto alguns judeus e cristãos, monoteístas ostensivos, falavam cada vez

mais em anjos, mensageiros celestiais de Deus, e alguns até em anjos decaídos e

demônios”.2

Também no Antigo Testamento encontramos “traços de uma semelhante fé

popular em espíritos”.3 Pagels salienta que “a conversão do paganismo ao judaísmo

ou ao cristianismo implicava, acima de tudo, transformar a maneira como o

indivíduo encarava o mundo invisível”.4

Assim, a história da religião vem colecionando crenças acerca do mal, vendo

seres celestiais e demoníacos no encalço dos homens, na tentativa de pegá-los,

possuí-los ou oprimi-los. As Pseudo-Clementinas, texto judaico-cristão do 2º século,

dizia que os demônios ardem em desejos de entrar nos corpos, porque, não obstante

sejam espíritos, desejam comer, beber, ter relações sexuais. Por isso se introduzem

1 Como é o caso de: LINK, Luther. O Diabo: a Máscara sem Rosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 2 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações S.A., 1996. p.14. 3 BAUER, Johannes B. Dicionário de Teologia Bíblica. São Paulo: Editora Loyola, 1988. p.273. 4 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás p.14.

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nos corpos dos homens para ter aqueles órgãos dos quais precisam para seus

objetivos.5

Pagels alega que na tradição judaico-cristã, as descrições de anjos e anjos

decaídos apontam para um interesse pelo mundo particular dos relacionamentos

humanos. Para ela, os “Evangelhos são sobre amor, mas desde que a história que

contam envolve traição e assassinato, incluem também elementos de hostilidade que

evocam imagens demoníacas”.6 No Evangelho de Marcos, por exemplo, o ministério

de Jesus é caracterizado como envolvendo uma luta incessante entre o Cristo e os

demônios que, ao que parece, pertencem ao “reino” de Satanás (cf. Mc 3.23-27).

Para que os cristãos reforçassem sua própria identificação com Deus demonizavam

seus adversários, fossem eles judeus, pagãos ou dissidentes cristãos, aos quais

chamavam de hereges. Para Pagels, isso reflete a “tendência universal de considerar

o próprio povo como humano e ‘desumanizar’ os outros povos”.7

2. O Dualismo do Novo Testamento: Cristo versus Diabo

No NT, Jesus e seus discípulos contam com a presença de um inimigo

implacável – Satã, “tramando incessantemente a ruptura da fidelidade ao Senhor e

pondo a perder os seus corpos e almas”.8 Pagels ressalta que “os autores dos

evangelhos compreenderam que a história que tinham que contar pouco sentido faria

sem Satanás”9. A idéia é que a traição e conseqüente morte de Jesus faziam parte de

um vasto conflito cósmico, onde a batalha final ainda não fora travada, muito menos

vencida.

No Evangelho de João, aos judeus que rejeitam os ensinamentos de Jesus é

dito: Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos (Jo 8.44).

Apesar de João não falar diretamente em exorcismos, não deixa de identificar o

5 Veja: Pseudo-Clementinas, IX, 10, PG, 2,248. 6 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.15. 7 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.17. 8 NOGUEIRA, Carlos R.F. O Diabo no Imaginário Cristão. p.26. 9 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.34.

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“mundo” e os judeus como os opositores de Jesus. “O clima apocalíptico típico do

começo do I séc. ainda está presente, embora se expresse em imagens diferentes.”10

Segundo os sinóticos, na Palestina, ao tempo de Jesus, havia uma

proliferação demoníaca sem precedentes, o mundo dos evangelistas estava dominado

pela crença em demônios. Nesse cenário, que evoca uma guerra cósmica, Jesus é

apresentado como “um tipo de fazedor de milagres que age com a autoridade de

origem divina, mas sem a mediação das formas, rituais e instituições através das

quais esse poder divino costuma se manifestar”.11

O texto da tentação de Jesus na Fonte Q, que parece estar “mais bem

conservado na versão de Lucas”12, cujo registro se encontra em Lc 4.1-13 com

paralelo em Mt 4.1-11 (Marcos contém um resumo do relato – Mc 1.12-13; João não

faz menção ao fato), está relacionado com a batalha escatológica entre o bem e o

mal. Schiavo diz que, neste relato da tentação, “Jesus, levado por Satanás,

contempla seu domínio terrestre e é desafiado a se submeter a ele”.13

O Evangelho de Marcos, entre os sinóticos, chama a atenção pelo volume de

material referente à atividade exorcista de Jesus. Para Marcos, Jesus vive num

confronto direto com Satanás, simbolizado pela Lei judaica (Mc 1.21-28), pelas

legiões romanas na Decápole (5.1-20), pelo preconceito (7.24-30), pela doença (9.14-

29), ou pelo templo (11.15-18).14 Em sua concepção, os demônios são “espíritos

imundos”, os quais tornam “os homens incapazes de entrar em contato com Deus,

incompatíveis com a sua natureza” (...) “também podem ser alienantes, apoderando-

se do homem, despersonalizando-o, e possuindo-o”.15

Para o Apóstolo Paulo, Satã governa aqueles que não aceitaram a palavra de

Cristo. Ele cega os incrédulos para que não vejam a luz do Evangelho (cf. 2Co 4.4).

Em Atos 26.18, Lucas narra como Paulo teria definido sua tarefa, conforme lhe fora 10 SCHIAVO, Luigi. O Mal e suas Representações Simbólicas. p.78. 11 CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico: A vida de um Camponês Judeu do Mediterrâneo. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1994. p.192. 12 SCHIAVO, Luigi. A Apocalíptica Judaica e o Surgimento da Cristologia de Exaltação na Narrativa da Tentação de Jesus (Q 4.1-13). Revista Orácula – número 1(2005), p.4. 13 SCHIAVO, Luigi. A Apocalíptica Judaica. p.14. 14 SCHIAVO, Luigi. O Mal e suas Representações Simbólicas. p.78. 15 SCHIAVO, Luigi. O Mal e suas Representações Simbólicas. p.78.

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revelada por Jesus na visão do caminho de Damasco: para lhes abrires os olhos e os

converteres das trevas para a luz e da potestade de Satanás para Deus. Para Paulo,

as coisas que os pagãos sacrificavam eram a demônios e não a Deus (cf. 1Co 10.20),

e a Epístola aos Efésios, dá voz ao sentido de guerra espiritual experimentado pelos

cristãos de seu tempo, ao avisar que não estavam lutando contra meros seres

humanos, mas “contra os principados e as potestades, contra os dominadores deste

mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes” (Ef

6.12).

O Livro do Apocalipse retrata uma interessante visão da história mítica,

apresentando traços fortes de um dualismo radical. Nele, encontramos “visões

horripilantes e irracionais, invocando imagens proféticas tradicionais de animais e

monstros, para caracterizar os poderes de Roma, que identifica com o diabo e

Satanás”.16 No cap. 12.1-11 “tem-se a visão do céu, o conflito celeste entre anjos e a

expulsão para a Terra do Dragão (a Antiga Serpente, o Diabo, Satanás)”.17 Nessa

narrativa, à semelhança de Gn 6.1-4 e 1Enoque 6-7, encontramos a interpretação que

relaciona a origem do mal à queda dos anjos.

Na literatura neotestamentária todo o Universo passa a ser encarado como

dividido entre dois reinos: o de Cristo e o do diabo. Enquanto Jesus se vê incumbido

na missão de destruir o reino do Mal, Satã se esforça de todos os modos para impedir

a expansão do reino do Cristo. Desse modo, o diabo conta com o auxílio de uma

multidão de demônios inferiores que levam os homens a rejeitarem a Jesus e afligem

os seres humanos com sofrimentos físicos.

O texto do Novo Testamento reflete uma atmosfera de luta. Segundo o

registro de João, Jesus havia dito que “o príncipe deste mundo já está julgado” (Jo

16.11), criando uma atmosfera de otimismo brilhante e de certeza da vitória final,

antecipando o fim da dominação do Mal, o que certamente animava os cristãos do

primeiro século. Isso se dava pelo fato de que, aos olhos de todos, “Satã e seus

exércitos estavam em uma posição de dependência absoluta frente a Deus e de total

16 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.153. 17 SCHIAVO, Luigi. O Mal e suas Representações Simbólicas. p.81.

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impotência no enfrentamento com o Messias”.18 Conclui-se que no NT tudo que

afasta os homens de Deus é uma “manifestação do diabo”.19

3. Possessão e Espíritos Imundos

Um grande desafio ao nosso estudo é entender a concepção que o autor do

Evangelho de Marcos tem do mal e, conseqüentemente, o significado que ele

pretende dar ao fenômeno da possessão ao utilizar o termo pneuma akátharton

(espírito imundo) para designar o mal que possui a pessoa. Marcos “personifica”

quase sempre o mal na figura do espírito imundo ao descrever possessões e

exorcismos.

Pelo menos ao que se refere à Bíblia Hebraica, o Antigo Testamento, não era

comum o uso dessa expressão, ela aparece apenas uma vez em Zacarias 13.2:

“Acontecerá, naquele dia, diz o Senhor dos Exércitos, que eliminarei da terra os

nomes dos ídolos, e deles não haverá mais memória; e também removerei da terra os

profetas e o espírito imundo”. A LXX traduziu por to pneuma to akatharton a

expressão hebraica ruah tame. A palavra tame e seus derivados ocorrem 279 vezes,

sendo aproximadamente 64% em Levítico e Números e 15% em Ezequiel,

geralmente com o sentido de impureza cerimonial.

Já nos escritos extracanônicos do judaísmo tardio a designação “demônio”

aparece relativamente poucas vezes. Esses seres malfazejos geralmente são

chamados “espíritos” (Jubileus 10.5,8; 11.5; 19.28; Enoque Etíope 15.1-12; 19.1;

1QS 3.24), bem como “espíritos maus” (Jubileus 10.3,13; 11.4; 12.20; Enoque

Etíope 15.8s; 1QM 15.14: “espíritos de perversidade”), “espíritos impuros” (Enoque

Etíope 99.7; ver Jubileus 10.1), “espírito de Mastema” (Jubileu 19.28) ou “espíritos

de Beliar” (Testamento de Issacar 7.7; Testamento de Dã 1.7; Testamento de José

7.4; 1QM 13.2,4,11s.; CD 12.2; ver Testamento de Rúben 2.2)20. Isso pode nos

conduzir a pensar que as concepções do mal condensadas na narrativa de Marcos

18 NOGUEIRA, Carlos R.F. O Diabo no Imaginário Cristão. p.27. 19 NOGUEIRA, Carlos R.F. O Diabo no Imaginário Cristão. p.26. 20 BAUER, Johannes B. Dicionário de Teologia Bíblica. p.274-275.

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parecem refletir mais a imaginação da literatura apócrifa e pseudepigráfica do que

aquela expressa no Antigo Testamento.

4. Referencial Teórico

Essa pesquisa usará como referencial teórico o conceito de

aculturação, analisando até que ponto a cultura judaica substituiu seus padrões

tradicionais por outros, em decorrência da assimilação de elementos culturais de

grupos sociais com quem manteve contato regular em circunstâncias anteriores, bem

como na época de Jesus. Compreender as articulações entre as diferentes peças do

conjunto social, ou seja, a economia, a política, a estrutura social, as heranças

culturais e cultuais, nos ajudarão a entender o imaginário coletivo no qual o texto de

Marcos está envolvido, levando em consideração que o homem é produtor e produto

da cultura, abrangendo os vários aspectos e dimensões da vida societária.

A população de Israel, especialmente da Galiléia e de seus arredores,

representava uma mescla de culturas herdada das “idas” e “vindas” do povo judeu

aos cenários de cativeiro Babilônico e Assírio e da dominação dos impérios persa e

romano. Desse modo, período de tempo do qual se ocupa nossa pesquisa constitui-se

uma era dominada por sérias conturbações sociais em Israel, palco de batalhas

militares e de sucessivas tentativas de libertação nacional patrocinadas por

movimentos populares. Os contemporâneos de Jesus viveram no mundo romano e

partilharam de muitas de suas percepções ao mesmo tempo em que as combateram.

Outro conceito sobre o qual trabalharemos nesta pesquisa diz respeito

à linguagem simbólica, de como ela reflete e transforma a experiência de vida de um

determinado grupo social, cuja intenção é a percepção das limitações dos galileus no

que se refere à pureza nestas narrativas onde “espíritos imundos” são mencionados,

estrangeiros e cidades estrangeiras na Palestina (Decápole), mulher estrangeira com

filha possuída por um demônio, puro e impuro na dieta alimentar, etc. As estruturas

sociais e as instituições estabelecidas impõem sentido a realidade vivida pelo grupo.

Será necessário compreender a luta e a elaboração de sentido para recuperar a figura

real do que está sendo descrito.

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CAPÍTULO I:

HERANÇAS E INFLUÊNCIAS NA QUESTÃO DO MAL NO MEDITERRÂNEO

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1. O JUDAÍSMO E SUAS ANTIGAS TRADIÇÕES ACERCA DO MAL

O povo de Israel se originou das muitas tribos existentes na antiga

Mesopotâmia, e, portanto, herdou naturalmente um sistema de crenças religiosas

estreitamente ligadas ao conjunto de mitos e práticas hieráticas existentes naquela

região.

Para Peter Stanford, muitas das “noções cristãs que ainda hoje são tidas como

autênticas jamais teriam evoluído, ao menos em termos práticos, se não houvesse a

proteção da semente-mãe que foi o judaísmo”.21

Luigi Schiavo considera que se a crença no mal fazia parte desde sempre da

teologia de Israel, sobretudo da religiosidade popular, ela se expandiu no judaísmo

tardio. Ressalta ainda que, o demônio como “figura independente do mal, é difícil de

ser identificado no Antigo Testamento por ser fruto de uma grande mistura cultural,

com influências da magia, da religiosidade popular, do ritualismo apotropáico oficial,

do simbolismo poético (...)”.22

Stanford considera que “a ele [diabo] são creditados alguns antepassados nas

antigas civilizações do Oriente Próximo (...); não há um começo relevante capaz de

explicar sua proeminência e todos os seus poderes, mas a sua proximidade com

outros deuses não deve ser ignorada”.23 Ao que parece, as antigas civilizações

tendiam a ver “bem e mal” como duas faces de uma mesma divindade. Exemplo

disso é o Egito, onde Seth e Horus representavam o deus benigno do sol, enquanto o

outro era o deus malévolo do deserto. A felicidade, segundo criam, estava em

encontrar a harmonia (ou ma’at) entre essas duas forças conflitantes.

De fato, é possível se verificar nos textos mais antigos, anteriores ao exílio

babilônico (séc. VI a.C.), quando o conceito “diabo” era ainda inexistente, que aquilo

que nas religiões pagãs é considerado como vindo das potências demoníacas é

atribuído diretamente ao Deus Iahweh, único autor do bem e do mal. Se houvesse 21 STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003.p.25 22 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole: Exegese, História, Conflitos e Interpretações de Mc 5.1-20. São Bernardo do Campo, SP: UMESP, 1999. p.133. 23 STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. p.XXIII.

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alguma manifestação do mal só poderia vir dele, pois só havia ele. Em Is 45.6,

encontramos: “Para que se saiba, até ao nascente do sol e até ao poente, que além

de mim não há outro; eu sou o SENHOR, e não há outro”. O vulto diabólico do

Senhor manifesta-se particularmente nos episódios ligados à libertação de seu povo

da escravidão egípcia, nos quais Iahweh aparece sob o aspecto tipicamente satânico

do tentador.

Esse Deus, “tido como único responsável pelos males existentes no mundo,

era apresentado com traços mais diabólicos do que divinos [ou, pelo menos, tão

diabólicos quanto divinos]”24, pois conforme Deuteronômio 28.63 dentre as ameaças

nefastas de maldição, Ele “se alegrará em vos fazer perecer e vos destruir”. Em

Lamentações 3.38 encontramos a seguinte questão retórica: “Acaso não procede do

Altíssimo assim o mal como o bem?”

Para o judaísmo tardio, a singularidade e transcendência de Iahweh já haviam

sido aceitas como básicas para o conceito de Deus. Menos repetidamente no Antigo

Testamento do que nos livros deuterocanônicos ou não canônicos do judaísmo,

encontramos referências à singularidade de Iahweh que correspondia a uma nova

compreensão da realeza de Deus (cf. Ml 1.14; Sl 103.19; 145.1s.). Em face dessa

visão da realeza divina, a transcendência de Deus era vista como distante. Todavia, a

área entre Iahweh e o homem estava longe de ser “vazia”, pois “estava ocupada pelo

mundo intermediário dos anjos, que constituía um elo entre o Deus distante e o

homem”.25

O Deuteroisaías, como Israel no período dos reis, ainda cria que o bem e o

mal vinham de Iahweh, o criador da luz e das trevas, da paz e da tribulação (cf. Is

45.7). Aos poucos, os homens convenceram-se de que Iahweh poderia fazer apenas o

bem e de que o mal, em face disso, teria uma origem diferente. “Essa origem era

vista como sendo incorporada a Satã, antagonista de Iahweh.”26

24 MAGGI, Alberto. Jesus e Belzebu, Satanás e Demônios. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2003. p.18. 25 FOHRER, Georg. História da Religião de Israel. São Paulo: Edições Paulinas, 1983. p.466. 26 FOHRER, Georg. História da Religião de Israel.p.467.

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Na concepção de Stanford esta visão de Iahweh como o único e responsável

pelo mal começa a ser corroída no Livro de Jó, ou “porque nele foram proclamados

os dilemas e as dúvidas que sempre afligiram a humanidade, ou por ele ter sido um

documento subseqüente”.27 De fato, pode se considerar o Livro de Jó como a

primeira aparição de Satã (não menção do nome), mas aqui ele ainda está sob as asas

de Iahweh.

Todavia, não se deve esquecer que o nome “Satã” (Satanás) aparece

anteriormente em 1Crônicas 21.1. Segundo o cronista, Davi fora induzido a fazer o

censo por Satã: “Então, Satanás se levantou contra Israel e incitou a Davi a levantar

o censo de Israel”. Aqui Satã assumira uma função anteriormente atribuída a

Iahweh, pois o autor de 2Samuel 24.1 relata que “tornou a ira do SENHOR a

acender-se contra os israelitas, e ele incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai,

levanta o censo de Israel e de Judá”. Essa diferença de relatos que são tidos como

paralelos pode ser compreendida considerando Satã como o lado mau de Iahweh ou

considerando Satã como o agente que realiza o mal sob as ordens de Iahweh (ou seja,

nos moldes de Jó).

Fohrer lembra que “no começo do período pós-exílico encontramos as

primeiras menções de Satã, mas como parte do mundo de Iahweh, um membro da

corte celestial (Zc 3.1s.; Jó 1.6s.; 2.1s.) que aparece com outros membros diante de

Iahweh para uma audiência, apresenta-lhe um relatório e recebe instruções de

Deus”.28 Satã assemelha-se a uma espécie de promotor público, que aponta os erros

dos homens, segundo o modelo das cortes reais do Antigo Oriente.

Embora os inimigos externos de Israel fossem considerados seres sobre-

humanos, tais seres eram vistos, em geral, como animalescos e monstruosos.

Todavia, as imagens mitológicas escolhidas para descrever a luta contra compatriotas

judeus não eram grotescas, mas com “mais freqüência identificavam seus inimigos

judeus com um membro importante, ainda que traiçoeiro, da corte divina a quem

chamavam de o Satanás”.29

27 STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. p.XXXI. 28 FOHRER, Georg. História da Religião de Israel. p.467. 29 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.65.

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Assim, na Bíblia Hebraica, Satanás não aparece como o líder do Império do

Mal. Suas aparições em Números (22.21-35) e em Jó (1.6-12; 2.1-7) eram de um

servo obediente, um anjo (heb. malak – “mensageiro”). Carlos R.F.Nogueira,

reportando-se à tradição bíblica veterotestamentária, diz que “a idéia do mal é algo

indefinido, ou seja, ele existe, mas não é incorporado em uma determinada

personagem”.30

Para Joanne K. Kuemmerlin-McLean, a discussão da identidade, natureza e

papel dos demônios no Antigo Testamento é bem complicada, entre outras razões,

pelo fato da tradução ser geralmente problemática. As traduções são influenciadas

por muitos fatores: evidência filológica e tendências da época, teologia, e decisões

prévias relativo à compreensão do termo “demônio” e os próprios modos de

interpretar cada texto em particular. Também a identificação e a compreensão de

demônios no Antigo Testamento são fortemente influenciadas pelo contexto maior

dentro do qual é discutido esse tema; contextos passados incluíram “magia e

feitiçaria, religião “popular", rituais apotropáicos oficiais, simbolismo poético(...)”.31

“Em hebraico, os anjos eram quase sempre chamados ‘filhos de Deus’ (bene

elohim) e imaginados como formando as fileiras hierárquicas de um grande exército

ou como membros de uma corte real”,32 recorda Pagels. Os anjos eram enviados

para cumprir uma missão específica autorizada e permitida por Deus, embora isso

pudesse não ser apreciado pelos seres humanos. Satanás não era necessariamente

maligno, mas enviado para determinadas tarefas, ainda que incomuns, como o anjo

da Morte no relato de Êxodo fora enviado a matar os primogênitos do Egito.

Maggi recorda que no Antigo Testamento “Satanás não é considerado como

inimigo de Deus, mas sempre dos homens e é empregado para indicar um obstáculo,

o adversário, ou uma ação do adversário”.33 Podemos notar esta mesma percepção

em Pagels, quando escreve:

30 NOGUEIRA, Carlos R.F. O Diabo no Imaginário Cristão. p.15. 31 KUEMMERLIN-MCLEAN, Joanne K. Demons. In: FREEDMAN, David Noel (editor-chefe) The Anchor Bible Dictionary (vol. 2) New York, USA, 1992.p.139. 32 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.66. 33 MAGGI, Alberto. Jesus e Belzebu. p.29.

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“A presença de Satanás numa narrativa era usada para explicar

obstáculos ou reveses inesperados da fortuna. Os autores hebraicos

atribuíam com freqüência infortúnios ao pecado humano. Alguns, contudo,

invocavam também esse personagem sobrenatural, o Satanás, que, por

ordem ou permissão do próprio Deus, bloqueava ou se opunha a planos e

desejos humanos. Esse mensageiro, porém, não era necessariamente

maligno. Deus o enviava, como enviava o anjo da morte, para cumprir uma

missão específica, embora uma missão que os seres humanos talvez não

apreciassem.”34

Schiavo lembra que no Antigo Testamento “Satanás é originalmente um ser

humano: Davi é considerado um Satanás (= adversário) pelos generais filisteus que

se preparam para a guerra contra Israel”35. Tal referência encontramos em 1Sm 29.4:

“que não aconteça que no combate seja um Satanás (!j"ßf') – Satan) contra nós”. O

inimigo de Salomão chamado Rezom também é um Satanás em 1Reis 11.23:

“Também Deus levantou a Salomão outro adversário (!j'êf'– Satanás), Rezom, filho

de Eliada, que havia fugido de seu senhor Hadadezer, rei de Zobá”. Para Johann

Maier o significado do nome Satanás se situa “no âmbito das relações intra-humanas

e em confrontações sociais”.36

Para Pagels, “a tradição israelita define “nós” em termos étnicos, políticos e

religiosos como “o povo de Israel”, ou “o povo de Deus”, contra “eles” – as (outras)

nações (em hebraico ha goyim), os inimigos estrangeiros de Israel, não raro

caracterizados como inferiores, depravados em sua moral e mesmo potencialmente

amaldiçoados”.37 Dessa forma, as tradições judaicas menosprezam as nações,

levando os israelitas a serem muitas vezes agressivos na sua hostilidade contra as

nações consideradas inimigas. Segundo Fohrer, “uma noção era que havia anjos de

povos e nações, que asseguravam a irrestrita soberania de Iahweh sobre as nações

34 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.66-67. 35 SCHIAVO, Luigi. O Mal e suas representações simbólicas. p.67. 36 MAIER, Johann. Entre Los dos Testamentos: Historia y Religion em la Época Del Segundo Templo. Salamanca: Ediciones Siguime, 1996. p.36. 37 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás p.62.

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(Dt 32.8-9; Is 24.21); em Dn 4.14, o verdadeiro governo do mundo parece ser

delegado a eles sob a autoridade soberana do Altíssimo”.38

Os profetas do Antigo Testamento invocaram os monstros da mitologia

Cananéia para simbolizar os inimigos de sua nação. O autor de Isaías, por exemplo,

celebra o triunfo de Deus sobre figuras mitológicas tradicionais – sobre Leviatã,

“serpente veloz” e o dragão, “serpente sinuosa” e “o monstro que está no mar” (cf.

27.1).

Segundo Schiavo há dificuldades no Antigo Testamento (diferente do que

acontece no mundo cristão posterior) quanto à identificação de Satanás com o

império do mal em função de três razões: “a primeira devido ao monoteísmo judaico,

intolerante diante da emergência de outras figuras divinas; depois por não existir uma

única e mesma palavra no AT para indicar o Mal e Satanás; enfim, porque a idéia de

demônio como personificação do mal evoluiu com o passar do tempo, se tornando

sempre mais complexa, negativa e ligada à origem do mal”.39 Aparentemente,

assevera Stanford, Iahweh “não deixa qualquer espaço para que alguma coisa possa

se aproximar de uma personificação do mal, mas (Ele mesmo) é a inspiração que está

por trás da selvageria mostrada pelos israelenses em relação aos seus inimigos”.40

Na verdade, os judeus não possuíam uma demonologia definida. Não há no

Antigo Testamento uma idéia clara da queda do anjo, o que há são sentenças que

originalmente são dirigidas a reis, e mais tarde na nossa teologia moderna e

sistematizada foram atribuídas à queda de Satanás. Uma dessas sentenças, remonta à

descrição de Isaías da queda de um grande príncipe e se encontra em Isaías 14.12-17:

“Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filho da alva! Como

foste lançado por terra, tu que debilitavas as nações! Tu dizias no teu

coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o

meu trono e no monte da congregação me assentarei, nas

extremidades do Norte; subirei acima das mais altas nuvens e serei

38 FOHRER, Georg. História da Religião de Israel. p.466. 39 SCHIAVO, Luigi. O Mal e suas Representações Simbólicas.p.67. 40 STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. p.29.

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semelhante ao Altíssimo. Contudo, serás precipitado para o reino dos

mortos, no mais profundo do abismo. Os que te virem te

contemplarão, hão de fitar-te e dizer-te: É este o homem que fazia

estremecer a terra e tremer os reinos? Que punha o mundo como um

deserto e assolava as suas cidades? Que a seus cativos não deixava ir

para casa?”

Outra, dirigida ao rei de Tiro, encontra-se em Ezequiel 28:12-19:

“Filho do homem, levanta uma lamentação contra o rei de

Tiro e dize-lhe: Assim diz o SENHOR Deus: Tu és o sinete da

perfeição, cheio de sabedoria e formosura. Estavas no Éden, jardim

de Deus; de todas as pedras preciosas te cobrias: o sárdio, o topázio,

o diamante, o berilo, o ônix, o jaspe, a safira, o carbúnculo e a

esmeralda; de ouro se te fizeram os engastes e os ornamentos; no dia

em que foste criado, foram eles preparados. Tu eras querubim da

guarda ungido, e te estabeleci; permanecias no monte santo de Deus,

no brilho das pedras andavas. Perfeito eras nos teus caminhos, desde

o dia em que foste criado até que se achou iniqüidade em ti. Na

multiplicação do teu comércio, se encheu o teu interior de violência, e

pecaste; pelo que te lançarei, profanado, fora do monte de Deus e te

farei perecer, ó querubim da guarda, em meio ao brilho das pedras.

Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura, corrompeste a

tua sabedoria por causa do teu resplendor; lancei-te por terra, diante

dos reis te pus, para que te contemplem. Pela multidão das tuas

iniqüidades, pela injustiça do teu comércio, profanaste os teus

santuários; eu, pois, fiz sair do meio de ti um fogo, que te consumiu, e

te reduzi a cinzas sobre a terra, aos olhos de todos os que te

contemplam. Todos os que te conhecem entre os povos estão

espantados de ti; vens a ser objeto de espanto e jamais subsistirás.”

Porém, os judeus possuíam “os seus rûah raha – espíritos malignos, enviados

por Deus como punição. Esses espíritos, contudo, não tinham existência própria,

traduzindo em sua caracterização uma preocupação de inculcar no povo hebreu, de

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maneira indestrutível, a idéia de um Deus único, todo-poderoso, senhor do Bem e do

Mal, por temor que o contato com outros povos e as tradições de sua região de

origem levassem à adoração de outras divindades”.41

Algumas vezes o Antigo Testamento fala de um “espírito mau” que confunde

os homens; mas trata-se de um espírito que vem de Deus (1Sm 16.14-23; 18.10;

19.9; ver também 1Rs 22.21-22). Desenvolveu-se aí um conceito de espíritos do

mal, possivelmente incorporando aquilo que fora originalmente um espírito do mal

ou da mentira emanado de Iahweh. É o caso do relato de 1Samuel 16, onde é dito que

“tendo-se retirado de Saul o Espírito do SENHOR, da parte deste um espírito

maligno o atormentava” (v.14). Não temos a informação do tipo de tormento que

este espírito causava, porém é através desse fato que Davi se torna escudeiro (cf.

v.21) de Saul e o verso 23 nos dá conta de que “quando o espírito maligno, da parte

de Deus, vinha sobre Saul, Davi tomava a harpa e a dedilhava; então, Saul sentia

alívio e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele”. Todavia, o capítulo

18 de 1Samuel atribui a um espírito maligno o acesso de raiva que Saul

experimentou contra Davi: “No dia seguinte, um espírito maligno, da parte de Deus,

se apossou de Saul, que teve uma crise de raiva em casa; e Davi, como nos outros

dias, dedilhava a harpa; Saul, porém, trazia na mão uma lança, que arrojou,

dizendo: Encravarei a Davi na parede. Porém Davi se desviou dele por duas vezes”

(v.10-11). Desta vez, nem a harpa de Davi trouxe paz ao atormentado Saul.

“Anteriormente, só de infortúnios externos os demônios tinham sido

acusados; agora, apareciam também sob a forma de tentadores que incitavam os

homens ao mal moral, ao pecado”42 nos lembra Fohrer.

Também são conhecidos “os espíritos de mortos que se podem evocar (1Sm

28.13; aqui designado como ‘elohim, “ente divino”)”.43 No meio do povo judaico, os

invocadores de espíritos dos mortos não deveriam ser tolerados (Lv 19.31; 20.6, 27 e

Dt 18.11). Esses tais foram expulsos do país pelo rei Saul (1Sm 28.9).

41 NOGUEIRA, Carlos R.F. O Diabo no Imaginário Cristão. p.16. 42 FOHRER, Georg. História da Religião de Israel. p.468. 43 BAUER, Johannes B. Dicionário de Teologia Bíblica. São Paulo: Loyola, 1988. p.273.

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Algumas expressões na Bíblia Hebraica têm sido identificadas como

personificações de Satã. Tais termos invocam imagens mitológicas:

• Azazel: O termo encontra-se em Levítico 16.8,10,26: “lançará

sortes sobre os dois bodes: uma, para o SENHOR, e a outra, para

Azazel Mas o bode sobre que cair a sorte para Azazel será

apresentado vivo perante o SENHOR, para fazer expiação por

meio dele e enviá-lo a Azazel no deserto. Aquele que tiver levado o

bode a Azazel, lavará as suas vestes, banhará o seu corpo em água

e, depois, entrará no arraial”. Tem sido entendido como o nome

próprio de um demônio do deserto. A etimologia é incerta; pode

ser bode (‘ez) que desaparece (‘azal), ou o bode que “remove” os

pecados do povo (= bode emissário, algumas traduções em

português entendem assim). “No livro apócrifo de Enoque etíope é

o chefe daqueles anjos (“filhos de Deus”) que se misturaram com

os “filhos dos homens” (Gn 6.2-4)”.44

• Se’irîm: o termo se’ir (pl. se’irîm) significa “bode”. “Mas nos

textos a serem citados já é um demônio capriforme, figura, aliás,

comum e compreensível entre nômades e agricultores. O bode

agressivo, robusto, peludo e fedorento, prestava-se perfeitamente

para se transformar num ser nocivo e temido”.45 Levítico 17.7

Iahweh diz a Moisés que “nunca mais oferecerão os seus

sacrifícios aos demônios (~rI§y[iF. – se’irîm), com os quais eles se

prostituem.” O cronista diz que “Jeroboão constituiu os seus

próprios sacerdotes, para os altos, para os sátiros (~yrI+y[iF. –

se’irîm) e para os bezerros que fizera” (2Cr 11.15). E Isaías

profetiza que “nela [nas ruínas de Babilônia], as feras do deserto

repousarão, e as suas casas se encherão de corujas; ali habitarão

os avestruzes, e os sátiros (~yrIßy[if. – se’irîm) pularão ali” (13.21).

44 DATTLER, Frederico. O mistério de Satanás:Diabo e Inferno na Bíblia e na Literatura Universal. São Paulo: Edições Paulinas, 1977. p.14. 45 DATTLER, Frederico. O mistério de Satanás. p.14-15.

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A tradução do termo para “demônio” origina-se nas versões grega

(LXX) e latina (Vulgata). Alguns textos usam a palavra “sátiros”

por ser uma preferência dos mais modernos.

• Tsiyyîm: Em Isaías 34.14, o profeta faz um discurso escatológico

anunciando que “as feras do deserto (‘~yYIci – tsiyyîm) se

encontrarão com as hienas, e os sátiros clamarão uns para os

outros; fantasmas ali pousarão e acharão para si lugar de

repouso”. “Tsiyyah é “aridez”; os tsiyyîm, portanto, são animais

que habitualmente moram em lugares abandonados e em estepes,

tais como os chacais, os gatos selvagens, os linces, etc.”46 A idéia

de demônios morarem em lugares desérticos se reflete em livros

posteriores como Tobias, que escreve que “o anjo Rafael pegou no

demônio e o ligou no deserto do Alto Egito” (8.3).47

• Lilit: O texto já citado de Isaías 34.14 faz menção a esse termo ao

dizer que “fantasmas (outras versões usam “animais noturnos” =

tyliêyLi – Lilit) ali pousarão e acharão para si lugar de repouso”.

Segundo Dattler, “nas lendas rabínicas é um espectro que,

disfarçado de mulher bonita, atrai e mata as crianças; outras vezes é

a esposa de Adão anterior a Eva e, por isso, mãe dos demônios”.48

Lilith é uma entidade isolada na fé popular, que corresponde ao

demônio assírio da tempestade Lilitu e habita no meio das ruínas

(cf. Is 34.14).

• Shedim: Dt 32.17, em meio a recordações acerca dos feitos de

Iahweh e lembranças relacionadas à vida do povo, diz-se que

“sacrifícios ofereceram aos demônios (~ydIVe – Shedim), não a

Deus; a deuses que não conheceram” (Veja também Sl 105.37). O

singular shed está ligado a shaddad/shûd, que significa “potente”, 46 DATTLER, Frederico. O mistério de Satanás. p.15. 47 Também no Novo Testamento é dito que quando o espírito imundo sai do homem vai para lugares desérticos (cf. Mt 12.43; Lc 11.24). 48 DATTLER, Frederico. O mistério de Satanás. p.16.

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evocando a imagem da tempestade e do trovão. “Shedu, em assírio,

são os touros alados postados às entradas dos palácios”.49

• Elîlîm: os ídolos são chamados de Elîl, mas em algumas poucas

ocorrências traduziu-se por “demônio”. Essa identificação de

ídolos com demônios encontramos em Sl 95.5, onde algumas

versões em português (e, neste caso é Sl 96.5) traduziu Elîlîm por

“ídolos”, outras por “coisas vãs”, mas a LXX traduziu Elîlîm por

daimovnia50 (daimónia = demônios): “Porque todos os deuses dos

povos não passam de demônios (~yli_ylia/ – Elîlîm); o SENHOR,

porém, fez os céus.” Paulo também identificava ídolos com

demônios conforme registrado em 1Co 10.20: “Antes, digo que as

coisas que eles sacrificam, é a demônios que as sacrificam e não a

Deus; e eu não quero que vos torneis associados aos demônios”.

Ao que parece, houve dois fatos que determinaram mudanças significativas

no modo de ver o mal no Antigo Testamento. O primeiro, é o cativeiro na Babilônia,

que teve uma influência decisiva para a formação de uma demonologia mais

definida. Os caldeus desenvolveram uma riquíssima demonologia – legiões de

entidades semidivinas em cinco classes, cada uma com “sete demônios” e cada classe

com seus atributos distintos, apesar de não consistirem necessariamente em espíritos

malignos. Oriundas desse fundo comum mesopotâmico são as lendas do demônio

que mora no deserto – Azazel (cf. Lv 16.8-10, traduzido pela ARA como “bode

emissário”), a quem, no dia da expiação se envia um bode no qual o Sumo sacerdote

carregou todos os pecados do povo (Lv 16.21), e as de Lilith – a primeira e

insubmissa mulher de Adão e, posteriormente, demônio da luxúria.

Para Stanford, “o exílio foi um momento crucial na formação da identidade

judaica” 51, pois com esta experiência o povo se viu obrigado a repensar suas certezas

anteriores, principalmente o “status de povo escolhido de Deus”. A natureza

arbitrária de Iahweh provocou um retorno às Escrituras e um interesse paralelo por 49 DATTLER, Frederico. O mistério de Satanás. p.16. 50 a versão LXX assim traduziu: 95:5 o[ti pa,ntej oi` qeoi. tw/n evqnw/n daimo,nia o` de. ku,rioj tou.j ouvranou.j evpoi,hsen 51 STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. p.27.

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superstições, folclores e mitos. “Essa tradição oral serviu de alento para que eles

seguissem em frente num cenário de escuridão, abandono e confusão”52.

Um segundo fato refere-se a tradução da Bíblia Hebraica para a língua grega,

a chamada dos Setenta ou Septuaginta (LXX), quando floresce o demoníaco em

novas nuances de hostilidade contrapondo-se à forma mais reservada como descrita

no AT. Segundo Luther Link, “mais de trezentos anos antes de Cristo, um fator de

resultados imprevisíveis fora introduzido pelos judeus alexandrinos: ao verterem o

Antigo Testamento para o grego, traduziram o satan hebraico para o grego

diabolos”.53

Pouco a pouco, “todos esses desenvolvimentos levaram à noção de uma

esfera organizada do mal, hostil à soberania de Iahweh, dentro da qual seres do mal

operam como anjos de Satã para afastar os homens do domínio de Deus”54.

2. O PERÍODO PERSA E A SISTEMATIZAÇÃO DOS DEMÔNIOS As definições dualistas e as concepções do mal, bem como as idéias acerca de

anjos e demônios são resultado de um conjunto de tradições antigas. Johann Maier

acredita que “a cenografia das cortes soberanas influenciou nas representações de

Deus do mundo celestial, e é possível que a corte persa com seu cerimonial

característico fornecesse a orientação decisiva”.55

Luigi Schiavo faz uma considerável reflexão acerca das mudanças na visão

do mundo celestial no pós-exílio:

“No pós-exílio muda o conceito de mal: o contato com os

grandes impérios mesopotâmicos, a organização piramidal de sua

52 STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. p.27. 53 LINK, Luther. O Diabo: a Máscara sem Rosto. p.24. 54 FOHRER, Georg. História da Religião de Israel. p.468. 55 MAIER, Johann. Entre Los dos Testamentos. p.37.

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corte, seu fasto, sua religião cósmico-astral, seus mitos, etc.,

impressionaram bastante os olhos dos judeus que para lá foram

deportados. Deus é imaginado dentro de um panteão, em companhia

de muitos seres divinos; e “jogado” sempre mais pra cima, para o céu,

longe da humanidade. E quanto mais distante, mais poderoso. O

homem se torna pequeno diante de tanta magnitude: não é mais livre,

responsável pelos seus atos, mas dependente de uma lei e de seres

superiores. Tudo está determinado – e também o mal – personificado

num ser vivo – Satanás – que desenvolve papéis de acusador e espião

dos homens, chegando a induzi-los ao pecado, até ser considerado o

adversário e o inimigo de Deus. Os destinos da humanidade sempre

mais dependem do céu.”56

Desse modo, os indícios são de que a mitologia persa exerceu uma influência

significativa no modo de pensar o mal nas religiões antigas. A Pérsia possui 25

séculos de história e vários povos – como os Árias (os nobres) do grupo dos Indo-

Europeus, vindos provavelmente da Índia Meridional e os Iranianos, que são um

ramo dos Árias – habitaram aquele velho país, que compreende o vasto planalto do

Irão (hoje, o Irã), na Ásia Anterior. O grande fundador do Império Persa, Ciro II,

destronou o rei dos Medos, venceu o rei da Lídia e tomou a Babilônia (538 a.C.),

tornando-se senhor de toda Ásia Ocidental. “A partir de então, o povo persa ou

iraniano tomou o seu lugar na história, após os assírios-babilónios”.57 Localizados

anteriormente nas Montanhas do Curdistão, os persas eram um povo também

iraniano.

Os persas possuíam escrituras sagradas, denominadas coletivamente de

Avesta. Estes escritos remanescentes somam “apenas um quarto do original, e mesmo

esta parte recebeu uma forma escrita apenas nos séculos V ou VI d.C. Até então, sua

preservação dependeu quase totalmente da transmissão oral, de uma geração a outra,

nas escolas sacerdotais”58 (Thomas Bulfinch chama o conjunto de livros sagrados

56 SCHIAVO, Luigi. O Mal e suas Representações Simbólicas. p.72. 57 LAMAS, Maria. Mitologia Geral: o Mundo dos Deuses e dos Heróis (vol.V). Rio de Janeiro: Editorial Estampa, 1973.p.124. 58 COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá: as Origens das Crenças no Apocalipse. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.112.

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dos antigos persas de Zendavesta59, Lamas diz que são conhecidos como Avestá ou

Zandavestá60).

Zoroastro, como tornou-se mais conhecido (esta é a forma grega do nome

“Zaratustra”) tem sido considerado o reformador da religião que o precedeu e “veio a

considerar toda existência como gradativa atualização de um plano divino”.61 “A

época em que viveu é duvidosa, mas é certo que seu sistema se tornou a religião

dominante na Ásia Ocidental a partir do tempo de Ciro (550 a.C.) até a conquista da

Pérsia por Alexandre Magno”.62 Segundo Norman Cohn, os estudos mais recentes

têm constatado que Zoroastro “viveu em um período muito anterior, em alguma

época entre 1500 e 1200 a.C., quando os iranianos já eram pastores assentados, mas

não agricultores”.63

A crença de Zoroastro aponta para duas forças fundamentalmente opostas

atuando no universo – uma do bem e a outra do mal. Em seus hinos, Zoroastro

parece assumir que estava familiarizado com um mito em que este dualismo é

elencado na forma de dois espíritos que são opostos, porque ele diz:

“Eu falarei dos dois espíritos

De quem o mais santo disse ao destruidor no começo da existência:

Nossos pensamentos, nem nossas doutrinas, nem as forças de nossas mentes,

Nossas escolhas, nem nossas palavras, nem nossas ações,

Nem nossas consciências, nem nossas almas concordam.”64

O Avesta inclui dezessete hinos compostos pelo próprio Zoroastro, os Gathas.

“Parece que a mitologia original da Pérsia teria sido do tipo da que existia na Índia 59 BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia: Histórias de Deuses e Heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. p.369. 60 LAMAS, Maria. Mitologia Geral.p.125. 61 COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá.p.109. 62 BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia.p.369. 63 COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá.p.109. 64 HINNELLS, John R. Persian Mythology. New York, USA:The Hamlyn Publishing Group Limited, 1973. p.49.

“I will speak of the two spirits Of whom the holier said unto the destroyer at the beginning of existence: Neither our thoughts nor our doctrines nor our minds’ forces, Neither our choices nor our words nor our deeds, Neither our consciences nor our souls agree.”

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ariana, cerca de mil anos a.C. – a mitologia dos Hinos Védicos”.65 Nos extratos mais

antigos da tradição iraniana são encontrados alguns nomes que se assemelham a

esses hinos, como Yima – que na Pérsia acabou se tornando Jamshid – é o mesmo

que o deus védico Yama, o deus dos mortos na Índia. “O deus do fogo, Atar,

apresenta a mesma natureza e as mesmas funções de Agni, Haoma é o mesmo deus

conhecido como Soma e a deusa-rio Saravasti figura em ambos os panteões [ou seja,

o persa e o védico].”66

Segundo os ensinamentos de Zoroastro, havia um ser supremo. Todavia, esse

ser supremo criou outros dois seres poderosos com os quais pretendia dividir sua

própria natureza até o ponto que lhe parecia conveniente. Ormuzd67 (chamado pelos

gregos Oromasdes), considerado um ser bom e a fonte de todo bem, permaneceu fiel

ao seu criador. Ariman (Arimanes), por sua vez, é o autor de todo mal que há na

Terra porque rebelando-se não permaneceu fiel ao seu criador. “Ormuzd criou o

homem e deu-lhe todos os recursos para ser feliz, mas Ahriman frustrou essa

felicidade, introduzindo o mal do mundo e criando as feras, plantas e répteis

venenosos.”68 Lamas salienta que no mundo persa bem e mal eram bem definidos

pelo seu próprio antagonismo: “o deus era o antidemônio; e o demônio era o

antideus”.69

As forças do bem são regidas por Ormuzd. “Ele era, é e será; em outras

palavras ele é eterno, mas no presente tempo ele não é onipotente porque está

limitado por seu arquiinimigo, o Espírito Mau”.70 Para a imaginação persa, sob a

influência do Zoroastrismo, Ormuzd é ainda todo perfeito e não era associado com o

mal. Por isso, não é de se estranhar que condene o Deus descrito no AT como mau

porque ele permite a sua criação e, posteriormente, até mesmo o seu próprio filho

sofrer. O sofrimento é considerado como mau e de Deus só pode vir alegria, prazer,

luz, vida, beleza e saúde.

65 LAMAS, Maria. Mitologia Geral.p.124. 66 COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá.p.113. 67 Outros autores também o chama de Ahura-Mazda. 68 BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia.p.369. 69 LAMAS, Maria. Mitologia Geral.p.141. 70 HINNELLS, John R. Persian Mythology.p.50.

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Mas na concepção persa, havia seres ou “aspectos” de Deus que ele mesmo

tinha criado. Um ser intermediário era “Spenta Mainyu, o “Espírito Santo”,

representante de Ahura Mazda [Ormuzd], embora dele não se distinguisse”.71

Segundo Hinnells, na compreensão Zoroastra esse Espírito Generoso ou Criativo

“pertence só a Deus, mas os outros aspectos são facetas de Deus que o homem pode

compartilhar: eles são os meios pelos quais Deus chega ao homem e aproximações

do homem a Deus”.72 Outros seis seres então foram criados para auxiliar o poderoso

Ormuzd, conhecidos coletivamente como Amesha Spentas (santos imortais):

• Vohu Manah era uma dessas figuras divinas imaginárias, a Boa

Mente ou “Bom Pensamento”73. Vohu Manah era imaginado como

o protetor dos animais e visto como “a personificação da sabedoria

de Deus”74.

• Asha, a Verdade, a “mais bela dos imortais, representa não apenas

a oposição à mentira, mas também a lei divina e a ordem moral no

mundo”.75 Era protetora do fogo.

• Kshathra Vairya, o “Domínio (exercido corretamente)” 76, é o

mais abstrato dos imortais. “Ele é a personificação da vontade,

majestade, domínio e poder de Deus”77. Era protetor dos metais.

• Armaiti, a Devoção, é a personificação da fiel obediência, da

harmonia e adoração religiosa. Era protetora da terra.

• Haurvatat e Ameretat, Integridade e Imortalidade. “Considerando

que estes dois seres femininos sempre são mencionados juntos nos

textos, eles são lidados em conjunto”78. Haurvatat é a

71 COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá.p.117. 72 HINNELLS, John R. Persian Mythology.p.50. 73 COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá.p.117. 74 HINNELLS, John R. Persian Mythology.p.52. 75 HINNELLS, John R. Persian Mythology.p.52. 76 COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá.p.117. 77 HINNELLS, John R. Persian Mythology.p.52. 78 HINNELLS, John R. Persian Mythology.p.52.

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personificação do significado da salvação para o indivíduo.

Também podia significar a “saúde perfeita”.79 Ameretat é o outro

lado da salvação, ou seja, a imortalidade. Esta protege as plantas,

enquanto a primeira, protege a água.

• Sraosha pode ser traduzida por Obediência ou Disciplina, é uma

das mais populares figuras do Zoroastrismo. “Como o ritual do

Zoroastrismo é uma força potente que destrói o mal, assim Sraosha

é descrito como um guerreiro em armadura, o melhor combatente da

Mentira”.80 Assim Sraosha protege o mundo à noite quando os

demônios saem para rodeá-lo.

Cohn lembra que todos esses “Santos Imortais” estão “subordinados a Ahura

Mazda [Ormuzd] e atuam apenas de acordo com sua vontade”.81 Essas figuras

imaginárias também teriam participado na ordenação do mundo criado.

Segundo os estudiosos, embora os textos persas deixem o leitor sem nenhuma

dúvida acerca da natureza horrível e vil do mundo demoníaco, raramente este é

descrito em termos tão claros como se faz com o mundo divino. “Angra Mainyu, ou

Ahriman como seu nome aparece no dialeto Médio-Persa, é o líder de hostes

demoníacas. (...) Ele é demônio de demônios, e mora em um abismo de trevas

infinitas no norte, a casa tradicional dos demônios”.82 Parece que antes de se tornar o

espírito do mal, Ahriman teria sido um deus subterrâneo, pois foram encontradas

“nos templos mitríacos, que eram, de preferência, em grutas ou cavernas,

dedicatórias ao Deo Arimanio”.83 Isso se aproxima consideravelmente da crença

hebraica de que Satanás antes fora um querubim da guarda celestial, perfeito e

formoso (cf. Ez 28.12-19; Is 14.12-15).

Angra Mainyu contava com uma enorme quantidade de demônios que se unia

para destruir o mundo “bom” criado por Ormuzd. “Tudo o que prejudicasse o gado

79 LAMAS, Maria. Mitologia Geral.p.143. 80 HINNELLS, John R. Persian Mythology.p.53. 81 COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá.p.117. 82 HINNELLS, John R. Persian Mythology.p.54. 83 LAMAS, Maria. Mitologia Geral.p.143.

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ou destruísse as colheitas era personificado como um demônio. (...) As regiões

inóspitas além dos limites das terras ocupadas e das pastagens eram lugares temidos,

nos quais não se entrava sem risco de vida. Nas trevas noturnas também proliferavam

demônios.”84

Também toda tendência dos seres humanos que levasse à transgressão de

alguma ordem – como a ira, a inveja e a preguiça – era vista como demoníaca.

Considerava-se atuação demoníaca tudo o que assaltava o corpo humano como a

doença, a fome, a sede e até mesmo a velhice. A morte era imaginada como o triunfo

de demônios.

Os demônios mais importantes eram conhecidos como daevas. Este termo

fora tradicionalmente aplicado a todos os seres divinos, sem qualquer distinção, mas

Zoroastro e seus adeptos compreendiam os daevas como “a contrapartida negativa

dos Santos Imortais”.85 Um texto litúrgico conhecido como Vendidad menciona os

cinco demônios mais poderosos e sinistros: Indra, Saurva, Nanghaithya, Taurvi e

Zairi. Parece não haver acordo entre os estudiosos acerca do que representam tais

demônios. Eles podem figurar um conflito por terras, onde inimigos são considerados

demônios ou, até mesmo, deuses reverenciados por ladrões de gado. Mas segundo o

estudo de Cohn, no Vendidad, os cinco arquidemônios “aparecem no exorcismo que

acompanha a limpeza ritual de uma pessoa contaminada, por exemplo, pelo contato

com um cadáver.”86

Segundo o Bundahishn,87 o demônio que induz à anarquia e a embriaguez é

Saurva. Taurvi e Zairi são responsabilizados pelo veneno introduzido nas plantas e

nos animais, provocando assim a seca e a fome. Nanghaithya parece ter sido um

demônio da morte. Cohn conclui que segundo estes antigos documentos persas, “os

grandes daevas eram as personificações supremas das forças do caos, menos

destrutivas e fatais apenas do que seu criador e comandante, o próprio Angra Mainyu

84 COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá.p.127. 85 COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá.p.128. 86 COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá.p.129. 87 Este é um documento que consiste em uma reelaboração da cosmogonia de Zoroastro feita por posteriores gerações de teólogos zoroastrianos que, “embora tenha recebido sua forma final no século IX ou X d.C., faz inúmeras citações diretas de fontes anteriores, algumas delas contendo material bem arcaico”. Veja: COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá.p.117.

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ou, como veio a ser chamado, Ahriman”.88 Toda esta sistematização das forças do

mal parece ter sido posteriormente partilhada com outras culturas, sendo assimilada e

seguida por outros povos.

Aeshma é “o demônio da ira, fúria e afronta, a personificação da brutalidade,

constantemente buscando incitar discussão e guerra. (...) Seu presunçoso trabalho no

mundo é posto em cheque por Sraosha, a encarnação da obediência e devoção

religiosa, a força que libertará o mundo da ira no final de tudo.”89 O termo Druj,

Mentira ou Decepção, é freqüentemente usado como uma designação para Angra

Mainyu ou para um demônio particular, ou ainda para uma classe de demônios na

qual o mais notório é Azhi Dahaka. Esse ser, imaginado com três cabeças, seis olhos

e três mandíbulas, era claramente pintado com mais cores mitológicas do que a

maioria dos demônios. Hinnells o descreve como alguém cujo corpo “está cheio de

lagartos, escorpiões e outras criaturas vis (...)”.90

Acerca da natureza do mal na imaginação persa, Hinnells conclui:

“O caráter total do mal, então, é negativo: seus objetivos são

destruir, corromper e deformar. Seu grande trabalho é trazer sofrimento e

morte, a corrupção e aparente destruição da principal criação de Deus, o

homem. Tudo o que é horrível no homem e no mundo, o mal físico e

moral, é o trabalho de Ahriman. Os Zoroastrianos não têm o problema

teológico do mal no mundo que a maioria das religiões monoteístas tem

que lutar, isto é, por que Deus permite sofrimento. A resposta dos

Zoroastrianos é: ele não permite. O mal é um fato que Deus não pode

atualmente controlar, mas um dia ele será vitorioso. A História é a cena da

batalha entre duas forças.”91

A esperança persa é que o mundo “bom” de Ormuzd será purificado de todo

mal introduzido e mantido por Ahriman. Quando isso acontecer, “a própria aparência

do mundo mudará. A terra será achatada por uma inundação abrasadora, de modo 88 COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá.p.130. 89 HINNELLS, John R. Persian Mythology.p.54. 90 HINNELLS, John R. Persian Mythology.p.54. 91 HINNELLS, John R. Persian Mythology.p.56.

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que sua superfície se tornará uma única planície nivelada (...)”.92 Será então um

ambiente perfeito e os seres humanos viverão em perfeita harmonia, pois “Ahriman e

seus sequazes serão condenados às trevas eternas”.93

“O que se encontra adiante, no final dos tempos, é um estado do

qual foram eliminadas todas as imperfeições; um mundo em que todos

viverão para sempre em meio a uma paz que nada pode perturbar; uma

eternidade em que a história terá cessado e nada mais poderá acontecer; um

domínio inalterável, sobre o qual o deus supremo irá reinar com uma

autoridade que permanecerá inconteste para sempre.”94

É possível que a religião persa tenha sido uma importante influência no

Judaísmo e, conseqüentemente no Cristianismo primitivo: “foi um rei defensor da

primitiva religião de Zoroastro [Ciro] que pôs fim ao cativeiro de Babilônia e

permitiu aos judeus que se reconstituíssem como corpo religioso”.95 Maier salienta

que em meio a esta reconstituição está “a crescente demonização da história e da

criação”.96

A prática religiosa persa acabava sendo simples, pois não usavam templos,

nem altares ou imagens, restringindo seus ritos ao alto das montanhas onde

ofereciam sacrifícios. Também adoravam o sol e o fogo, como emblemas de Ormuzd,

a fonte de toda luz e pureza, mas não os consideravam como divindades

independentes. Os responsáveis pelos ritos e cerimoniais religiosos eram os

sacerdotes, conhecidos como magos. “Os conhecimentos dos magos relacionavam-se

com a astrologia e os encantamentos, em que se tornaram tão célebres, que seu nome

passou a se aplicar a toda sorte de mágicos e feiticeiros”.97

92 COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá.p.136. 93 BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia.p.370. 94 COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que Virá.p.137. 95 LAMAS, Maria. Mitologia Geral.p.124-125. 96 MAIER, Johann. Entre Los dos Testamentos. p.37. 97 BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia.p.370.

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3. HELENISMO: PERÍODO DE SINCRETISMO E CRIATIVIDADE

O domínio grego, que se deu a partir de 323 a.C., exerceu uma forte pressão

cultural no mundo oriental que sinalizava uma tendência a globalização social e

econômica por uma imposição geral de costumes e tradições. “As transformações

políticas, sociais e econômicas do mundo oriental apresentam, como se pode supor,

profundas repercussões na vida religiosa”.98

O autor de 1 Macabeus já no capítulo 1 destaca o domínio de Alexandre, “que

se fez senhor das províncias e dos reis das gentes” (1Mac 1.5). Após sua morte,

Antíoco IV, “o ilustre”, passou a reinar no “ano cento e trinta e sete do reino dos

gregos” (1Mac 1.11). Segundo o autor deste livro, um grupo judeu – chamado por ele

“filhos iníquos” – aconselhou o povo de Israel a fazer aliança com as gentes que se

achavam em torno deles, sob a alegação de que males vieram sobre eles quando se

apartaram desses povos (cf. 1Mac 1.12). Assim, receberam o “poder de viver

segundo os costumes dos gentios” (1Mac 1.14) e até edificaram em Jerusalém um

colégio “conforme os ritos das nações” (1Mac 1.15). Não demorou muito para que,

com o apoio daquele grupo de “filhos iníquos”, o Rei Antíoco escrevesse ao povo

pedindo que todos fossem um só e “cada qual abandonasse a sua lei” (1Mac 1.43).

“Nos anos que sucederam o retorno dos judeus do exílio, tanto o pensamento

quanto o comportamento social desse povo foram influenciados pela Grécia,

particularmente nas classes mais altas, que passaram a adotar atitudes helenizadas

visando se colocar acima das massas”.99 Ao que parece, a princípio, o helenismo

estivera bem difundido entre as elites. “Era um fenômeno que se manifestou também

muito mais nas metrópoles do que no interior (...) Mas, com o tempo, ninguém podia

se subtrair à influência de uma helenização generalizada. (...) Em toda parte viviam

judeus na tensão causada pela ligação ao Deus único e à Torá, de um lado, e pelo

ambiente não-judeu politeísta, de outro”.100

98 PETIT, Paul. A Civilização Helenística. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1987. p.63. 99 STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. p.44. 100 TILLY, Michael. Assim Viviam os Contemporâneos de Jesus: Cotidiano e Religiosidade no judaísmo Antigo. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p.16.

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Para Tcherikover “simpatias e antipatias culturais têm uma certa base social.

Um fato é que os portadores da idéia da helenização não estavam distribuídos entre

as várias classes da sociedade judaica, mas era completamente limitado a uma classe,

isto é, à aristocracia governante de Jerusalém”.101 Os indícios são de que talvez a

maioria do povo, nas cidades e nos campos, ficara inconformada com as ordens de

Antíoco. Matatias com seus cinco filhos (cf. 1Mac 2.1-5), tendo-se recusado a entrar

“na classe dos amigos do rei” (1Mac 2.18) e convidando o povo que o seguisse

(1Mac 2.27), deu início a uma revolta armada em 167 a.C.

“A partir deste momento, a sociedade judaica se fragmentou:

brigas e intrigas pelo poder, pelo exercício do sacerdócio e pela

interpretação da lei estão na origem do surgimento das diferentes

facções e grupos: fariseus, asmoneus, essênios, saduceus, etc. Nesta

conjuntura extremamente conflitiva interpretou-se a realidade como

uma grande batalha cósmica, onde estavam contrapostas, de um lado

as forças de Deus com seus anjos (a comunidade judaica que

permaneceu fiel); e do outro, Satanás com seus exércitos (os

estrangeiros helenistas e seus aliados judeus).”102

O desenvolvimento religioso no quadro social do povo judaico neste período

é marcado pela formação dessas tendências partidárias. “No todo, sobrepõem-se aqui

tendências de delimitação para preservação da identidade e de renovação religiosa da

sociedade judaica àquelas de retirada frente às suas crises”.103 Petit considera que

neste tempo “o crescente divórcio entre a elite e a massa favorece o irracional, o

místico, e mesmo o extático, violento e frenético”,104 tornando o sincretismo

religioso, como conclui Eliade, “a nota dominante”105 de um tempo de muita

abertura à outras crenças e surpreendente criatividade.

101 TCHERIKOVER, Victor. Hellenistic Civilization and the Jews. Peabody, Massachusetts – USA: Hendrickson Publishers, 1999.p.118. 102 SCHIAVO, Luigi. O Mal e suas Representações Simbólicas.p.73. 103 STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang. História Social do Protocristianismo: Os primórdios do Judaísmo e as Comunidades de Cristo no Mundo Mediterrâneo. São Paulo: Paulus e Sinodal, 2004. p.165. 104 PETIT, Paul. A Civilização Helenística.p.65. 105 ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Idéias Religiosas – Tomo II – Vol. 2. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. p.42.

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“A antiga corrente dionisíaca do século VI, que os tiranos

haviam favorecido, reaparece mais virulenta em seu “entusiasmo”

apaixonado, a partir do contato com deuses novos, estranhos, mágicos

e consoladores, que influenciam poderosamente os gregos isolados

entre os indígenas, como sucede no Egito, Mesopotâmia, cidades

sírias e palestinas e nas pequenas cidades fundadas no coração da

Anatólia (...) No conjunto, o tempo trabalha em prol da unificação

(formação de uma koiné religiosa) e da difusão crescente de alguns

deuses universais”.106

Segundo a análise de Stegemann, no que se refere a correntes fundamentais,

deve-se mencionar, “além da crescente concentração no estudo da Torá como um

todo, de um lado a formação de concepções apocalípticas e esotérico-místicas ou

messiânicas e, de outro lado, as buscas por santificação da vida por meio da

observância estrita especialmente das prescrições de pureza até as concepções

ascéticas da vida”.107 Tais correntes influenciaram grupos tão diferentes como o dos

fariseus e dos essênios, assim como movimentos menores de revolta ou resistência

revolucionário-social e movimentos carismático-ascéticos ou messiânico-proféticos.

As especulações escatológicas e apocalípticas desenvolvem-se sob o impulso

da observação da oscilação dos astros. Um fatalismo astral torna-se instrumento para

explicar o destino. “O homem não apenas se sente solidário dos ritmos cósmicos,

mas também descobre que é determinado pelos movimentos das estrelas”.108

Somente alguns que possuíam a convicção de que certos seres divinos são

independentes do destino e de que lhe são mesmo superiores escapavam dessa

concepção pessimista.

O deus grego mais popular no período helenístico (também romano) era

Dionísio. A mitologia de Dionísio era tão viva que as “artes plásticas, sobretudo as

decorações dos sarcófagos, inspiravam-se amplamente em episódios mitológicos

famosos, em primeiro lugar os acontecimentos da Infância de Dionísio (o nascimento

106 PETIT, Paul. A Civilização Helenística.p.65-66. 107 STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang. História Social....p.165. 108 ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Idéias Religiosas.p.43.

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miraculoso, a joeira) e a redenção de Ariadne, seguida do hierós gámos”.109 O maior

dos feitos de Dionísio fora trazer sua futura esposa Ariadne de volta dos infernos.

Esta era, naquela época, o símbolo da alma humana. Portanto, a crença era de que

Dionísio além de libertar a alma da morte, também se unia a ela em “núpcias

místicas”.

“Embora não seja prudente afirmar que ele [Dionísio]

desempenhava um papel escatológico antes da época romana (a

promessa de imortalidade bem-aventurada aos iniciados em seus

Mistérios), podemos contar entre as razões de seu sucesso o fato de

ser o dispensador da Alegria mística, o protetor das mulheres

(freqüentemente negligenciadas, até então, nos cultos) e dos artistas –

atores de teatro, sobretudo –, e o patrono eleito dos tíasos de

‘Bacantes’”.110

O culto de Cíbele e os Mistérios de Átis111 também ajudam a compor o

cenário religioso do mundo helenista. Antes de ter sido introduzido em Roma, o culto

de Átis e de Cíbele já havia se propagado na Grécia, onde, provavelmente, sofreu

certas modificações.

“Os mistérios helenísticos apelam para comportamentos rituais

arcaicos – música selvagem, danças frenéticas, tatuagens, absorção de

plantas alucinógenas – a fim de forçar a aproximação da divindade, ou

até de obter a unio mystica. Nos mistérios de Átis, o jejum imposto

aos neófitos consiste principalmente na privação do pão, porque o

deus é a “espiga colhida verde”. A primeira refeição iniciatória reduz-

109 ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Idéias Religiosas.p.46. 110 PETIT, Paul. A Civilização Helenística.p.70. 111 Segundo o mito referido por Pausânias (VII, 17:10-12), um monstro hermafrodita, Agdisitis, nasceu de uma pedra fecundada por Zeus. Os deuses decidiram castra-lo e transforma-lo na deusa Cíbele. De acordo com outra variante, do sangue do hermafrodita brotou uma amendoeira. Ao comer uma amêndoa, Nana, filha do rio Sangário, ficou grávida e deu à luz uma criança, Átis. Já crescido, Átis estava celebrando suas núpcias com a filha do rei, quando Agdistis, que o amava, se introduziu na sala do banquete. A assistência foi tomada pela loucura, o rei amputou os seus órgãos genitais e Átis fugiu, indo mutilar-se num pinheiro e encontrando a morte. Desesperado, Agdistis tenta ressuscita-lo, mas Zeus se opõe ao seu desígnio; permite apenas que o corpo de Átis permaneça incorruptível e o único sinal de vida será o crescimento de seus cabelos e o movimento de seu dedo mindinho. Veja: ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Idéias Religiosas.p.50-55.

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se, em suma, a experimentar o valor sacramental do pão e do vinho, o

que raramente está ao alcance das populações urbanas. Quanto à

automutilação dos galos e de alguns fiéis durante os transes extáticos,

ela lhes assegura a castidade absoluta, em outras palavras, o seu

devotamento total à divindade. Tal experiência é muito difícil de

analisar; além dos impulsos mais ou menos inconscientes que

governam o neófito, cumpre-nos levar em conta a nostalgia de uma

androginia ritual, ou o desejo de aumentar a própria reserva de “forças

sagradas” por uma deformidade insólita ou impressionante, ou mesmo

a vontade de sentir-se lançado para fora das estruturas tradicionais da

sociedade por uma imitatio dei total. No final das contas, o culto de

Átis e Cíbele possibilitava a redescoberta dos valores religiosos da

sexualidade, do sofrimento físico e do sangue. Os transes libertavam

os fiéis da autoridade das normas e convenções; em certo sentido, era

a descoberta da liberdade”.112

Uma coletânea de textos denominada “literatura hermética”, que reflete o

sincretismo judeu-egípcio, constitui uma importante fonte de informação acerca da

religiosidade no mundo helenista. Tais textos foram redigidos entre o século III a.C.

e o século III d.C. e distinguem-se duas categorias: o chamado hermetismo popular

(astrologia, magia, ciências ocultas, alquimia) e a literatura hermética erudita, o

Corpus Hermeticum (17 tratados). Ambos são tidos como revelados por Hermes

Trismegisto113 e, cronologicamente, os textos do hermetismo popular são mais

antigos e exerceram um papel importante na época imperial, pois em meio ao terror

da Onipotência do Destino, esses textos revelavam os “segredos da natureza”, graças

aos quais o mago se apropriava de suas forças secretas. Tal conhecimento e,

portanto, domínio da Natureza era possibilitado pela divindade; “o conhecimento da

112 ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Idéias Religiosas.p.54. 113 Uma tradição antiga identificava Thoth com Hermes. Para os escritores helenísticos da época, Thoth era o patrono de todas as ciências, o inventor dos hieróglifos e um temível mágico que teria criado o mundo por meio da palavra. Uma tradição que vai buscar suas origens entre os primeiros Ptolomeus relatava que Thoth, o primeiro Hermes, viveu “antes do dilúvio”; o segundo Hermes, o Trismegisto, lhe sucedeu. Os estóicos identificavam Hermes com o logos. Veja: ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Idéias Religiosas.p.61.

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natureza é obtido através da oração e do culto, ou, a um nível inferior, através da

sujeição mágica”.114

“A importância dessa literatura hermética “popular” não deve

ser subestimada. Ela inspirou e alimentou a História Natural de Plínio

o Velho e a famosa obra medieval conhecida como Physiologus; a sua

cosmologia e as suas idéias mestras (a doutrina das simpatias e

correspondências, em primeiro lugar a correspondência entre

macrocosmo e microcosmo) tiveram considerável êxito desde a baixa

Idade Média até aproximadamente o fim do século XVIII; voltamos a

encontra-las não só nos platônicos italianos e em Paracelso, como

também em cientistas tão diferentes como John Dee, Ashmole, Fludd

e Newton”.115

Os tratados do Corpus Hermeticum apresentam duas teologias inconciliáveis:

uma otimista (de tipo monista-panteísta), e a outra pessimista, caracterizada por um

forte dualismo. Para a primeira, o fato de Deus penetrar o Cosmo torna tudo belo e

bom. O homem ocupa o terceiro lugar da tríade, depois de Deus e do Cosmo. Quanto

mais o homem contempla a beleza do Cosmo, mais ele se chega à divindade e é visto

como “complemento necessário da criação”.

Por outro lado a teologia que compartilha do pessimismo vê o mundo como

fundamentalmente mau:

“Não é obra de Deus, pelo menos do Primeiro Deus, pois esse

Primeiro Deus mantém-se infinitamente acima de toda matéria, está

oculto no mistério do seu ser: só podemos, portanto, atingir Deus

fugindo do mundo, devemos nos comportar aqui embaixo como um

estrangeiro. Lembremos, por exemplo, a gênese do mundo e o drama

patético do homem segundo o primeiro tratado do Corpus, o

Poimandres: o intelecto superior andrógino – o noûs – cria

inicialmente um Demiurgo que modela o mundo, em seguida o

114 ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Idéias Religiosas.p.62. 115 ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Idéias Religiosas.p.62.

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Anthrôpos, o homem celeste; este último desce na esfera inferior,

onde, “iludido pelo amor”, se une à Natureza (Phusis) e gera o

homem terrestre. Daí em diante, o Anthrôpos divino cessa de existir

como pessoa distinta, porque ele anima o homem: a sua vida

transforma-se na alma humana e a sua luz converte-se em noûs. É por

essa razão que, sozinho entre os seres terrestres, o homem é, ao

mesmo tempo, mortal e imortal. No entanto, com o auxílio do

conhecimento, o homem “torna-se deus”. Esse dualismo, que

desvaloriza o mundo e o corpo, sublinha a identidade entre o divino e

o elemento espiritual do homem; tal como a divindade, o espírito

humano (noûs) caracteriza-se pela vida e pela luz. Como o mundo é a

“totalidade do Mal” (C.H., VI, 4), temos de nos tornar “estrangeiros”

no mundo (XIII, 1) para que possamos efetuar o “nascimento da

divindade” (XIII, 7); de fato, o homem regenerado dispõe de um

corpo imortal, é “filho de Deus, o Todo no Todo” (XIII, 2)”.116

Como se pode observar, as concepções mantidas nesta literatura trazem

conceitos soteriológicos e dualistas semelhantes àqueles que encontramos nos

escritos do Novo Testamento. Todavia, ainda que seja imprudência vincular um ao

outro, é muito interessante notar essas idéias e ideais semelhantes.

Em quase todos os níveis as culturas se entrelaçavam. As vestimentas dos

judeus passavam a se assemelhar com o resto do mundo helenístico; tanto homens

quanto mulheres se enfeitavam à moda helenista, conforme se pode verificar de

maneira impressionante em vários murais da sinagoga de Dura-Europos, do século

III d.C., que foi escavada entre 1928 e 1932.117 “Inscrições em lápides da

Antiguidade clássica mostram que mesmo judeus piedosos davam a seus filhos

nomes “pagãos”, como por exemplo, “Isidora” (que significa “presente da deusa

egípcia Ísis”)”.118

116 ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Idéias Religiosas.p.63. 117 Dura-Europos era uma cidade da Síria que se localizava próximo a Palmira, fundada por Alexandre como parte de uma rede de colônias militares que pretendiam fixar o controle dos Selêucidas no Eufrates médio, provavelmente entre 300 e 280 a.C. A cidade servia como um forte ponto de defesa diante de possíveis conflitos militares. 118 TILLY, Michael. Assim Viviam os Contemporâneos de Jesus.p.17.

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As próprias cidades passavam a conter elementos do padrão helenístico,

algumas chegavam a adotar nomes gregos extraídos, ou dos seus fundadores, ou em

homenagem a algum membro da família real.

“Para os monarcas selêucidas, a fundação ou reestruturação de

cidades antigas no estilo helenístico, tornou-se o meio mais eficiente

de consolidar e garantir seu poder. Surge, portanto, na Palestina e,

sobretudo na Transjordânia, um número considerável de cidades com

muitos elementos comuns que serão a base para o surgimento, um

século mais tarde, de uma unidade política autônoma e independente,

uma coalisão das cidades helenísticas da região, a Decápole.”119

Assim, num tempo quando “reis gregos alegaram que descendiam de deuses e

de mulheres humanas, denominando esses seres híbridos de heróis”120 e as “classes

altas dos judeus (talvez os sacerdotes considerados “filhos de Deus”) se deixaram

corromper e foram atraídos pela luxúria, contraindo casamentos impuros com

mulheres estrangeiras”121, a influência decisiva do helenismo “se fazia sentir por

toda parte”.122

Institucionalmente, a religião judaica neste período fundamentava-se

especialmente no templo em Jerusalém. As sinagogas surgem primeiramente na

diáspora e mais tarde na Palestina, porém sem a mesma relevância do templo. Por

fim o cotidiano e os costumes religiosos estavam conformados às famílias ou

economias domésticas e sua piedade na Torá. “O pluralismo religioso não se

inflamava na validade do monoteísmo, da fé na eleição, da Torá e das instituições em

si, mas em posturas diferentes em relação a eles, que, por sua vez expressavam-se em

diferentes ênfases na tradição religiosa e na interpretação da Torá”.123 O que ocorre,

então, é uma “adaptação” ao modo helenista e não uma “renúncia” aos princípios

tradicionalmente estabelecidos. Para Tilly, a maioria daquelas pessoas “aproveitou as

119 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole: Exegese, História,... p.97. 120 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás p.79. 121 SCHIAVO, Luigi. O Mal e suas Representações Simbólicas.p.74. 122 TILLY, Michael. Assim Viviam os Contemporâneos de Jesus.p.18. 123 STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang. História Social....p.165.

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oportunidades que o helenismo lhes oferecia sem se separar, no entanto, da herança

religiosa de seus pais e de suas mães”.124

A importância do templo para o judaísmo no período helenístico estava na

consideração que faziam deste espaço como lugar da presença divina e centro de

identidade nacional e religiosa. Era o centro vital do povo em todos os âmbitos de

sua vida, pois representava o núcleo nacional e cultual. “Essa concentração religiosa

no templo corresponde à sua importância social e política, assim como em parte

também à econômica”.125 O perímetro do templo era lugar de aprender e ensinar.

Algumas vezes, Jesus é apresentado no Evangelho exercendo atividade docente na

área do templo (cf. Mt 21.23; 26.55; Mc 12.35; 14.49; Lc 2.41-52; 19.47; 20.1;

21.37-38; Jo 7.14; 8.2,20; 18.20); outras vezes, curando enfermos neste espaço

considerado sagrado (cf. Mt 21.14).

As sinagogas pareciam existir em número bastante reduzido em Israel em

comparação com a diáspora. Mas elas, que ao que parece surgiram na Palestina no

período pós-macabeu, existiam em Jerusalém, Tibérias, Dor, Cesaréia, Nazaré e

Cafarnaum, conforme atestado nas inscrições de Teódoto de Jerusalém, nos achados

arqueológicos de Gamla, do Herodeion e da Fortaleza de Massada, da metade do

século I d.C., em Josefo, na Mishnah, além do Novo Testamento. Stegemann,

contrariando a tradição, considera que as raízes das sinagogas não se encontram no

exílio babilônico, mas “numa instituição pós-exília que estava encarregada de

realizar tarefas públicas, entre as quais se incluíam também funções religiosas”.126

Para ele, as funções cultuais da sinagoga cresceram, sobretudo, só por volta do final

do segundo templo. Talvez entre a diáspora e a Palestina houvesse uma distinção de

funções das sinagogas, pois na primeira eram locais de oração, de refeições em

comum e de decisões judiciais (a palavra mais comum para sinagoga nestas regiões

era proseuché – “lugar de oração”), enquanto na Palestina serviam tanto à leitura em

voz alta da Torá e ao ensino de mandamentos, como também como hospedaria de

estrangeiros em cômodos especiais. Além disto, é possível que em Israel as

sinagogas servissem a comunidade local como centros de reuniões em ocasiões

124 TILLY, Michael. Assim Viviam os Contemporâneos de Jesus.p.19. 125 STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang. História Social...p.166. 126 STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang. História Social...p.168.

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especiais e como local onde se guardavam diversos bens da comunidade. De certo

modo, a sinagoga fazia parte da rotina de Jesus narrada nos Evangelhos (cf. Mt 12.9;

13.54; Mc 1.21s; 3.1; Lc 4.16; 6.6; Jo 6.59 – há 9 referências a Jesus em atividade na

sinagoga nos 4 Evangelhos).

Além do templo e da sinagoga, a família também era fundamental em Israel

no período helenístico, exercendo um importante papel na “socialização religiosa”. O

cotidiano das casas era determinado pela Torá e seus regulamentos, os quais

configuravam “suas relações sociais, o ritmo do dia-a-dia, do sábado e das festas e o

mundo do trabalho (...) Assim, formou-se, talvez não por acaso, já no período

helenista mais antigo, uma “piedade da Torá” pessoal, cuja manifestação mais antiga

se encontra nos Salmos 1, 19 e 119”.127

“Ao tempo dos primeiros cristãos, a Torá, concluída não antes

do século V a.C., já era a base e o pressuposto da religião judaica

havia séculos. Muitas das normas inalteráveis da “Torá escrita”

tinham caráter atemporal, devendo ser seguidas em qualquer tempo e

lugar. Mas, para muitos problemas trazidos pela vida “moderna”

daquela época, já não havia respostas diretas, porque, durante o longo

período que se passara desde o registro da Torá, muita coisa tinha

mudado. Além disso, uma parte das normas tinha ficado obscura, um

aspecto inaceitável para o espírito helenístico da época, que cultuava o

otimismo do intelecto. Para resolver esse impasse, as normas de vida

da Sagrada Escritura foram sendo adaptadas de caso em caso, abrindo

caminho para um novo direito consuetudinário que permitia a todo

povo judeu viver e agir em cada nova situação de acordo com a

vontade de Deus.”128

As economias domésticas eram terreno fértil para disseminação de numerosas

tradições religiosas e o surgimento de crenças populares, que se desenvolveram no

diálogo constante com as necessidades e possibilidades de seu tempo, sendo

127 STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang. História Social....p.169-170. 128 TILLY, Michael. Assim Viviam os Contemporâneos de Jesus.p.21.

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fundamentais para a compreensão do que a religião poderia significar naquele

contexto e como esse significado afetava as diversas camadas e grupos da população.

4. EFEITOS DAS PRÁTICAS IMPERIAIS ROMANAS NA

GALILÉIA ANTIGA

Politeístas como eram, os romanos não desenvolveram uma mitologia

imaginária própria sobre a origem do universo e dos deuses, mas adotaram em

grande parte os deuses do panteão e da mitologia gregos, embora tivessem

modificado seus nomes. À medida que novas regiões eram conquistadas, também os

deuses desses lugares acabavam sendo incorporados a religião129 romana.

Os romanos tinham a compreensão singular de que tudo está subordinado ao

governo e direção dos deuses. Eram caracterizados pela estrita observância de ritos e

cultos aos deuses, de cujo favor dependiam a saúde e a prosperidade, colheitas fartas

e sucesso na guerra. Desse modo, cumprir fielmente os deveres rituais aos deuses era

mais importante do que uma experiência religiosa individual.

Para Horsley, os romanos determinaram as condições de vida da Galiléia, onde

Jesus vivia e cumpria sua missão:

“Nas décadas anteriores ao nascimento de Jesus, os exércitos

romanos invadiram a região, queimando aldeias, escravizando os

sadios e eliminando os incapazes. Os comandantes militares romanos

designaram o jovem homem forte, Herodes, como “rei” e puseram

tropas à sua disposição para que dominasse os seus súditos. O

Imperador romano instalou na administração da Galiléia o filho de

Herodes, Antipas, que fora educado na corte imperial. Com impostos

129 Por religião romana, entende-se o conjunto de crenças, práticas e instituições religiosas do imperialismo romano no período situado entre o século VIII a.C. e o começo do século IV da era Cristã.

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extorquidos dos galileus, Antipas construiu duas cidades de estilo

romano na Galiléia, que até então não tinha cidade, nem governante

residente. Os governadores romanos como Pôncio Pilatos, nomeavam

e destituíam os sumos sacerdotes que administravam a Judéia de sua

base no templo de Jerusalém. Quando os fariseus e herodianos

quiseram apanhar Jesus em contradição para incrimina-lo,

perguntaram se era lícito pagar tributo ao imperador romano. Jesus foi

executado por ordem do governador romano e morto por crucificação,

uma forma de suplício que as forças de ocupação aplicavam para

aterrorizar povos escravizados, torturando publicamente seus líderes

rebeldes até a morte.”130

Para os romanos a religião possuía um sentido prático. Seus preceitos religiosos

consistiam apenas de diretrizes para a execução correta de rituais e não incorporavam

elementos morais, pois seu caráter legalista e conservador contentava-se em cumprir

com toda exatidão os ritos tradicionalmente prescritos, organizados como atividades

sociais e cívicas. O ceticismo religioso chegou a ser uma atitude predominante na

sociedade romana em face das guerras e calamidades, que os deuses, apesar de todas

as cerimônias e oferendas, não conseguiam afastar. O historiador Tacitus comentou

amargamente que a tarefa dos deuses era castigar e não salvar o povo romano.

A índole prática dos romanos exaltava o desejo de conquista e domínio político

acima de uma imposição de sua religiosidade aos povos dominados. Ao incorporar

ao próprio panteão os deuses dos povos vencidos, os romanos expunham sua política

de conquista. Por não serem detentores de uma teologia elaborada, dificilmente a

religião romana entrava em contradição com as deidades das terras conquistadas, não

tendo como impor aos conquistados uma doutrina própria. Desse modo, os valores

dominantes da cultura romana não foram o pensamento ou a religião, mas a retórica

e o direito. Com as crises econômicas e sociais que atingiram o mundo romano, a

antiga religião era insuficiente para responder às inquietações espirituais de muitos e,

a partir do século III a.C., começaram a se difundir religiões orientais de rico

conteúdo mitológico e forte envolvimento pessoal, mediante ritos de iniciação,

130 HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império: O Reino de Deus e a Nova Desordem Mundial. São Paulo: Paulus, 2004. p.21.

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doutrinas secretas e sacrifícios cruentos. Por isso, antes parece ser justo pensar que o

que mais afetou a Galiléia do tempo de Jesus foram as práticas de dominação e

opressão do imperialismo romano e não a religiosidade romana.131

Stegemann, ao fazer sua abordagem acerca de “movimentos profético-

carismáticos de protesto” no cristianismo primitivo, salienta que “os procuradores

romanos procediam com esses movimentos como se estivessem lidando com

revoltosos ou bandidos sociais”.132 Isso demonstra que a preocupação das forças

romanas de ocupação era nem tanto religiosa, mas política e social, ou seja, a religião

quase sempre servia aos interesses do estado. Para Horsley, “Jesus como profeta

proclamou e estabeleceu a renovação divina do povo na promessa das bênçãos do

reino e em curas e exorcismos dos efeitos debilitantes do imperialismo romano”.133

Esses “efeitos debilitantes” podem nos ajudar a compreender como a experiência de

dominação afetava a visão da Galiléia acerca do mal.

Esse caráter utilitário da religião já podia ser visto entre os romanos no período

de formação original de sua religião, quando a preocupação estava centrada na

satisfação das necessidades materiais, como boas colheitas e a prosperidade da

família e do estado em tempo de paz e de guerra. Entre os deuses mais importantes

dessa época estão Júpiter, deus do céu, o maior deles; Marte, deus da guerra;

Quirino, protetor da paz, identificado depois com Romulus; e Juno, cuja função

principal era dirigir a vida das mulheres. Havia outras deidades menores e estas eram

figuras vagas de funções limitadas e claramente definidas. Como os deuses maiores,

tinham poderes sobrenaturais e, através de rituais adequados, podiam ser induzidos a

empregar tais poderes em prol dos adoradores.

Dentre as expressões e interesses religiosos deste período, encontramos

concepções individuais e sociais de pureza em função de discussões sobre

prescrições, no Novo Testamento e, sobretudo, na Mishnah envolvendo a pureza

cerimonial, a alimentação e a sexualidade.

131 Isso explica por que mais tarde em 313 d.C. o cristianismo fora reconhecido pelo imperador Constantino I, sendo declarado religião oficial do estado em 391d.C. pelo imperador Theodosius I. 132 STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang. História Social... p.195. 133 HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império.p.20.

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“Essas prescrições tinham uma importância especial em termos

de preservação da identidade, sobretudo ali onde os judeus eram

minoria e estavam submetidos a uma forte pressão para assimilar-se

às sociedades majoritárias, ou seja, na diáspora. Mas também na

Palestina existiam motivos suficientes para uma santificação

ostensiva. Pois, por um lado havia regiões em que os não-judeus

compunham uma parcela relevante, se não até mesmo grande da

população total. E, por outro lado, em virtude da dominação

estrangeira quase permanente com suas estruturas de dominação

pagãs ou semipagãs, a coerção à delimitação no sentido de preservar a

identidade não era exatamente pequena.”134

Pagels lembra que “nascendo das controvérsias sobre pureza e assimilação que

se seguiram à guerra dos macabeus, o movimento essênio cresceu durante a

ocupação romana no século I, chegando a incluir quatro mil homens”.135 Os essênios

recontavam a história de Israel na perspectiva de uma guerra cósmica. Eles se

consideravam “filhos da Luz” que se mantinham separados e se opondo

constantemente aos “filhos das trevas”, que era o restante do povo. Para Pagels, se

Satanás já não existisse na tradição judaica, os essênios o teriam inventado!

“Os essênios se posicionavam no centro exato dessa batalha entre

céu e inferno. Embora detestassem os inimigos tradicionais de Israel,

a quem chamavam de kittim (um possível epíteto em código para os

romanos), eles lutavam muito mais renhidamente contra seus

compatriotas israelitas que pertenciam à “congregação de Beliar”. (...)

Eles invocavam Satanás – ou Beliar – para caracterizar a oposição

irreconciliável entre eles e os “filhos das trevas”, na guerra travada ao

mesmo tempo no céu e na terra. E acreditavam que Deus vinha logo

com grandes efetivos, seus anjos sagrados, para enfim derrubar as

forças do mal e iniciar o Reino de Deus.”136

134 STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang. História Social... p.170. 135 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.86-87. 136 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.88.

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O apocalipsismo também parece ser um interesse marcadamente dessa época

helenística-romana. Stegemann considera que “as medidas de coerção política,

econômica e religiosa, cada vez mais militantes, contribuíram decisivamente para a

formação do apocalipsismo”.137 Horsley pode estar com razão quando afirma que

ainda “não descortinamos até que ponto as ações e o programa de Jesus opunham-se

à ordem imperial romana na forma que ela assumira na Palestina”.138 Há quem

considere que embora os judeus estivessem já acostumados com situações

catastróficas de opressão, esta representava uma situação qualitativamente nova.

“Unia-se, então, à opressão econômica e cultural-religiosa uma impotência política

de fato do povo, que, por justamente estar sendo sofrida na própria terra de Israel e

ademais mediada por um estrato superior próprio deficiente, dificultava

extraordinariamente, quando não impedia a possibilidade de retomar os conceitos

tradicionais da esperança”.139 Essa experiência de impotência certamente aumentava

o desejo de antecipação da batalha escatológica, onde o bem finalmente venceria as

forças opressoras do mal.

A palestina foi um dos últimos “cantos” do mundo a ser conquistado e

dominado pelos romanos, tornando Roma a única superpotência remanescente na

região do Mediterrâneo, controlando desde as colunas de Hércules até o Oriente

Médio. Os romanos tinham uma visão “anormalmente deformada dos sírios e dos

judeus, úteis apenas como escravos. (...) Também desprezavam os judeus como

supersticiosos e exclusivistas”.140 Para que os romanos consolidassem seu domínio

global, era fundamental conquistar povos orientais como árabes, sírios e judeus.

“Os generais romanos deixavam orgulhosamente registrado em

incontáveis monumentos públicos que estavam estabelecendo um

império mundial. Numa inscrição no templo de Minerva, em Roma,

Pompeu vangloriava-se de ter aceito a rendição de mais de 12.000.000

pessoas e de mais de 1.500 cidades e fortificações in fides, além de ter

submetido as terras desde a Meótida até o Mar Vermelho. A sujeição

imposta por Roma ao mundo inteiro, a orbis terrarum, era 137 STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang. História Social... p.173. 138 HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império.p.23. 139 STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang. História Social... p.173. 140 HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império.p.27.

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freqüentemente simbolizada pela imagem do globo, que até começou

a aparecer em moedas da República tardia.”141

Os povos conquistados aturavam a sujeição econômica ao Imperialismo

Romano, que cada vez mais salvaguardava suas receitas e, em alguns casos, até as

aumentava. Estudiosos da área dizem que as conquistas militares sistemáticas dos

romanos não supunham que eles mantinham forças militares na maioria das regiões

ocupadas. “O regime imperial só postava legiões regularmente ao longo das

fronteiras, e lá as legiões não operavam tanto como exército de ocupação, mas como

força repressiva, pronta a agir em caso de agitação ou revolta”.142

Mas como conseguiam manter tão vultoso império com extraordinária coerência

e estabilidade? Ao que parece, a estabilidade do império romano estava ligada a uma

categórica interação entre religião e economia, ou seja, o estabelecimento do culto ao

imperador em quase todas as cidades e as extensas pirâmides de relações de

patronato. Cidades inteiras em todo império desenvolveram formas de honrar o

imperador.

Horsley diz que “cidades gregas e ligas de cidades também competiam entre si

pelas maiores homenagens a César, criando jogos semestrais e festivais atlético-

culturais, com grandes sacrifícios para o imperador”.143 Em muitos templos

começavam a aparecer estátuas do imperador ao lado de estátuas de deuses

tradicionais. Em alguns centros urbanos foram construídos santuários ao imperador.

Éfeso, por exemplo, reconstruiu completamente seu centro urbano com espaço

público orientado especificamente para os templos dedicados ao imperador.

A idéia do imperador como Salvador que trouxera paz e realização permeava o

império e mantinha os povos conquistados sujeitos a Roma. Os grandes festivais com

a função de inundar o espaço público com a presença do imperador e envolver

populações urbanas inteiras acabavam envolvendo grandes quantias de dinheiro,

sendo possível sua ocorrência somente sob o patrocínio de magnatas das cidades

141 HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império.p.28. 142 HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império.p.28. 143 HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império.p.29.

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gregas, dos grandes proprietários de terras e dos políticos locais mais eminentes,

gerando “pirâmides de poder econômico e de dependências, que abrangiam desde o

imperador, no ápice, até cada cidade do império”.144

Quando Roma expandiu-se a ponto de ultrapassar o número de um milhão de

habitantes, o fluxo de recursos dos povos e províncias conquistados para a metrópole

imperial se intensificou. Cereais e outros alimentos que abasteciam a imponente

Roma eram fruto da extorsão de povos dominados, que não deixavam de enviar seus

tributos e impostos em espécie. Segundo registro de Josefo, Herodes Agripa II

intimida as multidões rebeldes de Jerusalém lembrando-lhes que os povos

conquistados da África, “além do produto anual, que alimenta a população de Roma

por oito meses do ano, pagam tributos de todos os tipos e de boa vontade destinam

suas contribuições para o serviço do império”.145

Nas áreas menos civilizadas do império, ou seja, fora da metrópole imperial e

das partes que possuíam a mesma estrutura político-econômica e orientação cultural

urbanizada, o controle das massas era feito pela violência militar. A humilhação fazia

parte da vida das áreas dominadas. A honra de um comandante estava em desfilar na

entrada de Roma, exibindo seus ricos despojos de guerra. Esta entrada triunfal

acabava sendo uma procissão puxada pelo general vitorioso que entrava com carros

alegóricos devidamente ornamentados para demonstrar o poder militar dos

vencedores e a derrota humilhante dos vencidos, cujas figuras mais eminentes eram

conduzidas acorrentadas até que, posteriormente, fossem executadas numa

imponente cerimônia. Não é de se estranhar que os povos subjugados relacionassem

sua vida a um “inferno” e seus opressores a “legiões de demônios”, dos quais

ansiavam ser libertos.

Horsley recorda que “a importância da grande vitória romana, particularmente

sobre o povo judeu, de resistência tenaz, está dramaticamente evidenciada no Arco

de Tito (um dos pontos turísticos mais importantes em Roma, na época e nos dias

144 HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império.p.30. 145 JOSEFO, Flávio. Guerra de los Judíos, in: Obras Completas de Flavio Josefo. Buenos Aires: Acervo Cultural Editores, 1961. 2.383.

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atuais) e na descrição completa do historiador judeu Josefo”.146 Em Guerras dos

Judeus, Josefo descreve o massacre que faziam os romanos aos povos dominados,

dentre estes os judeus, e fala de uma longa lista de espólios saqueados do templo em

Jerusalém e até de uma cópia da lei dos judeus confiscada pelos opressores. A

devastação do interior, a queima de aldeias, a pilhagem de cidades, o morticínio e a

escravidão da população eram meios de Roma demonstrar sua força, pois para os

romanos qualquer sinal de fraqueza seria um convite à ruína.

De fato “não há como compreendermos práticas como a crucificação, chacinas e

escravidão, massacres de cidades inteiras e extermínio de povos inteiros, senão como

tentativas intencionais de aterrorizar os povos conquistados”.147 Especialistas como

Horsley considera que “os numerosos exemplos de massacres romanos maciços e de

aniquilação de povos inteiros em represália a revoltas e mesmo quebras menores de

tratados fornecem vários paralelos que tornam absolutamente dignos de credibilidade

os horripilantes relatos de Josefo sobre o brutal tratamento romano dado à Galiléia e

à Judéia”148, o que nos leva a imaginar que, com essa brutalidade ocorrendo na

Judéia e na Galiléia, um impacto (direto ou indireto) deve ter ocorrido sobre pessoas

que tinham acesso à missão e à mensagem de Jesus.

A dolorosa forma de execução através da crucificação adotada pelos romanos

visava um duplo propósito. Um, era infundir pavor nas demais pessoas da população,

visto que o ato de crucificação era feito em lugares elevados com fim de ser o mais

público e notório possível. Outro propósito é que era um modo de humilhação. Em

geral, a crucificação era precedida de outras formas de tortura, como açoites

implacáveis e muitos dos corpos crucificados sequer eram enterrados, sendo

friamente deixados na cruz como presa para aves de rapina e animais selvagens. Na

Palestina o ressentimento era intenso em face de tamanha carnificina e tão requintada

desumanização.

Para Horsley “a morte e a escravidão de dezenas de milhares de galileus e

judeus em torno da época do nascimento de Jesus deve ter deixado um trauma

146 HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império.p.32. 147 HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império.p.34. 148 HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império.p.36.

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coletivo entre a população”.149 Mas a repressão romana em face da revolta de 66 d.C.

(dos judeus contra Roma) talvez tenha sido mais traumática, pois “tendo esmagado

os exércitos judeus, os romanos estupraram, roubaram e massacraram milhares de

habitantes de Jerusalém e deixaram a cidade em ruínas”.150 Também “as forças

militares romanas massacraram e escravizaram os habitantes e destruíram as suas

casas e aldeias, especialmente nas áreas de atividade de Jesus, em torno de lugares

como Nazaré e Cafarnaum”.151 É certo que tudo isso criava uma “atmosfera de

desgaste”, ameaçando o modo de vida tradicional da Galiléia e Judéia.

5. CONCLUSÃO:

A concepção judaica referente a figura de Satanás estava concentrada numa

relação de subordinação a Iahweh, onde esse ser desconhecido e invisível não era

considerado independente de Deus, mas servia como instrumento em suas soberanas

mãos para disciplinar os homens que não faziam sua vontade e testar a fé de outros,

como no caso de Jó. Talvez por esta razão Deus era visto numa proximidade maior,

como “andando com o povo e entre o povo”. Porém, esta afinidade com o divino vai

ganhando distância à medida que as idéias acerca do mal vão sendo melhor

elaboradas.

A dominação persa parece ter tido uma influência fundamental neste

distanciamento. Com a sistematização dos demônios, onde o mundo acaba sendo

concebido como cheio de espíritos maus separados e organizados em complexas

hierarquias, criou-se uma idéia de um espaço intermediário repleto de seres invisíveis

– era a corte divina. A grandeza, a opulência e o poder da monarquia persa se fazia

presente no imaginário coletivo das pessoas.

No período helenista já se nota que as culturas se entrelaçam numa

considerável profundidade, onde uma camada do judaísmo cede espaço as tradições e

culturas de um mundo já em processo de globalização. A “fragmentação” parece ter

149 HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império.p.36. 150 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.26. 151 HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império.p.40.

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sido o marco desse tempo. Desse modo, o próprio povo deixa de se ver como “um

grupo” lutando contra os inimigos externos e passa a se ver como um povo

fragmentado constituído de “fiéis” às tradições do antigo judaísmo e “infiéis”

(aqueles que cederam aos costumes e práticas gentílicos). Toda esta conjuntura de

conflito fez com que a realidade fosse vista como uma batalha de proporções

cósmicas entre judeus fiéis que formavam as forças de Deus e estrangeiros helenistas

seguidos por judeus traidores que formavam as forças do mal.

Com sua cruel e ambiciosa dominação, os romanos contribuíram para que os

judeus atribuíssem ao reino do mal – Satanás e demônios – tudo o que os mantinham

numa situação de opressão e sofrimento. Assim, o desejo de libertação de forças

opressoras torna-se crescente à medida que o caos vai sendo instalado pelo poder que

oprime o cotidiano de uma sociedade já bastante confusa em função das

circunstâncias adversas que sempre a rodeia.

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CAPÍTULO II

AS DEFINIÇÕES E CARACTERIZAÇÕES DO MAL NA LITERATURA JUDAICO-CRISTÃ

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1. A TRADUÇÃO DA LXX: DEUSES E ÍDOLOS VIRAM DEMÔNIOS

A tradução da Bíblia Hebraica para a língua grega, conhecida como

Septuaginta (que daqui por diante usaremos LXX para nos referirmos a ela), “já tinha

surgido no século III a.C., no Egito, por causa da necessidade de transportar para a

língua das comunidades judaicas daquela região”.152 Ela expressa uma transição na

forma de ver o mal na antiguidade.

O texto hebraico contém ligeiras referências ao mal e ainda deixa “pistas da

possível presença do politeísmo e das superstições primitivas entre os judeus”.153

Porém, onde seres intermediários, próprios do mundo mitológico, aparecem no

Antigo Testamento foram traduzidos pelo termo grego “demônio” na LXX.

Sabemos que os autores da Bíblia Hebraica enfatizaram o domínio de Iahweh

sobre todas as coisas, mas usaram algumas expressões hebraicas nebulosas que

acabaram sendo identificadas com hordas de demônios na versão grega. Palavras tais

como “bode” (~rI§y[iF. – se’irîm), “aridez” (‘~yYIci – tsiyyîm), “animais noturnos”

(tyliêyLi – Lilit), “poderes ou potências” (~ydIVe – Shedim), “ídolo” (~yli_ylia/ –

Elîlîm), foram vertidas para “demônios” na LXX. A questão é: o “sentido nefasto”

dado a tais expressões pelos tradutores da LXX está correto? O entrelaçamento de

mitos e culturas já presente na época da produção desta versão está refletido na

tradução? Se os autores do Novo Testamento tiveram mais facilidade de acesso à

LXX, podemos dizer que a sua visão do mal acaba sendo primariamente da versão

grega e não dos autores da Bíblia Hebraica?

Embora não possamos afirmar com segurança que a versão grega da Bíblia

Hebraica – cuja produção se deu no Egito – tenha sido influenciada pela cultura,

mitos e imaginário da época, ela parece ser uma importante “dobradiça” na

demonologia de Israel, marcando uma transição significativa no modo de conceber o

mal dos escritos do Novo Testamento.

152 TILLY, Michael. Assim Viviam os Contemporâneos de Jesus.p.16. 153 STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. p.34.

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É bastante interessante analisar os textos onde ocorrem essas mudanças, que

podem ser entendidas ou não como imaginação popular que aqui fora absorvida.

Dattler diz que, “via de regra, as personificações pertencem ao mundo dos mitos e

das fábulas”, mas – segundo ele – “devem ser excetuados da norma geral alguns

textos bíblicos em que o autor fabrica personificações premeditadas e estilísticas;

nesses casos, falamos melhor de pura poesia. Já os nomes empregados para tais

fenômenos convidam a suspeitarmos de sua origem natural e material”.154

A seguir, passo a demonstrar as ocorrências onde a LXX verte para

“demônio” as expressões hebraicas já mencionadas acima.

Levítico 16:8 – precisamos observar primeiramente que os tradutores da LXX não

verteram para “demônio” a expressão Azazel (lzE)az"[]) que aparece em Levítico

16.8,10, mas utilizaram a expressão avpopompai,w| (apopompáio) que sugere ter o

sentido de uma “cabra que se manda embora”, que parece ser uma tentativa de fazer

uma tradução literal de Azazel (lzE)az"[]) como se fosse da raiz `az (z[eî – lit. “Cabra

fêmea”; cf. Lv 7.23; Nm 15.27; Pv 27.27 (plural – ~yZIß[;) entre outros; mas também

poderia ser da raiz z[; – lit. “forte, poderoso, potente”; cf. Sl 59.4; Is 43.16, etc.).

Em Levítico 16.26, onde o texto hebraico diz que “aquele que tiver levado Azazel

(lzE)az"[]) lavará as suas vestes”, a LXX utiliza uma longa expressão para explicar

Azazel: to.n ci,maron to.n diestalme,non eivj a;fesin (tón chímaron tón

diestalménon eis áfesin – lit. “o bode reservado para remir”).

Levítico 17:7 – O texto hebraico utiliza o termo ~rI§y[iF. (se’irîm) para fazer

referência às instruções que Iahweh estava passando para Moisés com respeito ao

povo de Israel. O povo deveria oferecer sacrifícios exclusivamente a Iahweh (17.5) e

não mais aos ~rI§y[iF. (se’irîm). Se’irîm, que significa “bode”, recebe na LXX toi/j

matai,oij (toîs matáiois) como tradução, que tem o sentido de “coisas vãs”, “fútil”,

“sem valor”. Em Atos 14.15 pode ser traduzida por “ídolos”. Talvez tenha sido esse

o sentido que a LXX quis dar a expressão hebraica ~rI§y[iF. (se’irîm). Por que muitas

154 DATTLER, Frederico. O mistério de Satanás. p.13.

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versões em português traduz por “demônios”? A resposta parece estar na Vulgata

Latina que toma ~rI§y[iF. (se’irîm) do hebraico, que na versão grega tornou-se toi/j

matai,oij (toîs matáiois), e verte para daemonibus (demônios).155 Mas é curioso

perceber que a LXX é bastante versátil na tradução de se’irîm, pois em outros textos

traduz a expressão por “demônios” (Is 13.21; 34.14 que veremos abaixo).

Deuteronômio 32:17 – Neste texto, Moisés recorda o passado de Israel, fazendo

duras repreensões ao povo pela sua infidelidade a Iahweh. A Bíblia Hebraica diz que

Israel oferecera sacrifícios aos ~ydIVe (Shedim), que sugere uma referência a

“poderes”, “potências” ou “forças”. Os tradutores da LXX optaram pela expressão

daimoni,oij (daimoníois) para dar um sentido grego aos Shedim (~ydIVe).

2Crônicas 11:15 – Aqui, “Jeroboão constitui os seus próprios sacerdotes, para os

altos, para os se’irîm (~yrI+y[iF.) e para os bezerros que fizera”. Neste caso, a LXX

traduziu – à semelhança de Lv 17.7 – se’irîm por toi/j matai,oij (toîs matáiois) e,

mais uma vez, a Vulgata é a responsável pela introdução da palavra “demônio” (qui

constituit sibi sacerdotes excelsorum et daemonum vitulorumque quos fecerat).

Salmo 96:5 – “Porque todos os deuses dos povos não passam de ídolos; o SENHOR,

porém, fez os céus”. A expressão hebraica para “ídolos” é ~yli_ylia/ (Elîlîm). Na

LXX (cuja numeração passa a ser 95.5) é transformado em daimo,nia (demônios).

Sem essa identificação do tradutor da versão grega de “ídolos” com “demônios”, a

compreensão mais razoável do que o salmista escreve seria que para Iahweh, os

deuses dos povos não passam de “esculturas”, “imagens”, “projeções plásticas e

artificiais”.

Salmo 106:37 – Esse texto também faz memória ao passado de Israel e relata que na

“experiência êxodal” o povo mesclou-se às nações e, por fim, “imolaram seus filhos

e suas filhas aos ~ydIVe (Shedim = “poderes”).” Na LXX (105.37) os Shedim são

convertidos em daimoni,oij (daimoníois = demônios). No verso seguinte, o 38, o

155 Lv 17.7: “et nequaquam ultra immolabunt hóstias suas daemonibus cum quibus fornicati sunt ligitimum sempiternum erit illis et posteris eorum” (Vulgata Latina)

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texto continua dizendo que “derramaram sangue inocente, o sangue de seus filhos e

filhas, que sacrificaram aos ídolos de Canaã (LXX 105:38 = toi/j gluptoi/j

Canaan); e a terra foi contaminada com sangue”, indicando que shedim tem a ver

com “ídolos” (heb. yBeäc;[] = ’atsabi).

Isaías 13:21 – Em meio a promessas escatológicas, Isaías diz que nas ruínas de

Babilônia pularão os “sátiros”. No hebraico, a expressão é se’irîm (~yrI+y[iF.). A LXX

que em Lv 17.7 e 2Cr 11.15 traduziu por toi/j matai,oij (toîs matáiois), aqui optou

por daimo,nia (daimónia = “demônios”). A razão de os tradutores aqui verterem

se’irîm para daimónia é intrigante. Quais razões os teriam levado à essa diferença de

tradução de um mesmo termo?

Isaías 34:14 – Aqui temos uma combinação de vários termos: ‘~yYIci (tsiyyîm), que

são as “hienas” ou “feras do deserto”; ry[iÞf' (se’ir, o singular de se’irîm), que os

tradutores modernos preferem dar o sentido de “sátiros” e tyliêyLi (Lilit), traduzido

como “fantasmas” (algumas versões traduzem “animais noturnos”). A LXX traduz o

primeiro termo por daimo,nia (daimónia = “demônios”), o segundo e o terceiro por

uma palavra pouco utilizada e de difícil tradução ovnokentau,roij (onokentáurois =

“feras”, “animais selvagens” (?) talvez).

Isaías 65:3 – A repreensão de Deus aos que “ofereciam incenso sobre altares de

tijolos” (conforme tradução da ARA), do hebraico ~ynI)beL.h;-l[; ~yrIßJ.q;m.W¥

(umqattrim ‘al-hallbenim) se transforma no texto da LXX em

qumiw'sin ejpi; tai'" plivnqoi" toi'" daimovnioi" (thymiôsin epí táis plínthois tóis

daimóniois = “ofereciam incenso aos demônios”).

Assim, notadamente os tradutores da LXX “demonizaram” ídolos, nações,

poderes e altares, talvez por já terem absorvido a crença nos demônios, como seres

pessoais contrários a Deus, influência de uma mistura e entrelaçamento de costumes,

superstições e mitos de culturas vizinhas. A oferta de sacrifícios que não se

enquadrava nas prescrições de Moisés, sendo na Bíblia Hebraica caracterizada como

“infidelidade a Iahweh”, transformando-se em “fidelidade aos demônios” na LXX e

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os deuses das nações que se transformam em demônios na versão grega, sugerem

uma influência do dualismo zoroastrino persa. Se Deus e seu povo escolhido

constituem a luz, então tudo que está contra ou fora dos costumes deste povo é trevas

e “cada qual exercendo seu próprio poder no presente”.156

2. O TESTAMENTO DE SALOMÃO: MAGIA E EXORCISMO

O Testamento de Salomão é um texto pseudoepigráfico que teria chegado a

sua elaboração final por volta do século III d.C., composto originalmente por um

cristão, mas a partir de uma composição judaica do século I d.C. A proveniência

geográfica é incerta (Babilônia, Éfeso, Egito), mas Cornelli considera que “as

tradições sobre a magia e sobre Salomão eram conservadas, por exemplo, na

Samaria, e bem documentadas no judaísmo palestino em geral”.157 Em seu conteúdo,

“pretende oferecer um conhecimento bastante completo sobre os demônios e a

maneira de dominá-los”.158 A obra faz referência aos poderes mágicos e exorcistas

de Salomão, confluindo “lendas judaicas e cristãs sobre astrologia, demonologia e

magia”.159

A trama narrada se dá em torno da construção do Templo de Salomão, que

teria ocorrido por volta do século X a.C., mas fora escrito em grego, “o idioma

comum falado em época helenística, bastante próximo, por exemplo, sintaticamente e

estilisticamente ao grego do Novo Testamento”.160

Nesta obra “Salomão aparece como o grande sábio, que no fim de sua vida,

arrependido de seus pecados (idolatria e as muitas mulheres: cap. 26.6), e diante de

seu fracasso político (divisão do reino), decide escrever seu ‘testamento’”161 para

156 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole.p.143. 157 CHEVITARESE, André Leonardo e CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo: Ensaios sobre interações Culturais no Mediterrâneo Antigo. Itu, São Paulo: Editora Ottoni, 2003. p.91. 158 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole.p.155. 159 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento I: Introducción General. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1984. p.281. 160 CHEVITARESE, André Leonardo e CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. p.90. 161 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole.p.155.

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ilustrar “aos filhos de Israel sobre os poderes e classes de demônios e sobre os anjos

que estão por cima deles e, em geral, sobre as realidades últimas”.162

Segundo o autor deste Testamento, enquanto Salomão está construindo o

Templo em Jerusalém, ainda no início da obra, um de seus capatazes – “o rapaz

favorito de Salomão, filho do mestre de obras”163 – é acometido de um grave

abatimento. Preocupado com o rapaz, Salomão o questiona:

“Eu não te amo mais do que todos os trabalhadores do templo? Não dei pra

você o dobro do salário e das provisões? Por que então está emagrecendo sempre

mais a cada dia?”

A resposta do rapaz é que assim ele se encontrava por estar sendo

constantemente atormentado por um demônio:

“Depois do dia de trabalho no templo, ao calar da noite, quanto estou

descansando, um demônio vêm e acaba com metade do meu salário e minhas

provisões. E, além disso, ele agarra minha mão direita e chupa o meu dedão. Você

pode ver como – quando minha alma é turbada – meu corpo desfalece.”

Como seria de esperar, Salomão intercede por seu funcionário e alcança o

favor de Deus. Das mãos do arcanjo Miguel, Salomão recebe um anel mágico. Com

o anel Salomão poderia obrigar os demônios à “revelar-lhe como cada um pode ser

dominado”,164 o que dava ao rei poder para “chamar os demônios, interrogá-los e

escravizá-los (lançando o anel contra o peito deles) para que trabalhem no

templo”.165 “Graças a ele dominará a este nocivo demônio e lhe serão subjugados

muitos outros mais, cuja força e habilidades contribuirão para a construção do templo

de Deus”.166

162 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento I. p.281. 163 CHEVITARESE, André Leonardo e CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. p.92. 164 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole.p.155. 165 CHEVITARESE, André Leonardo e CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. p.92. 166 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento V. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1987. p.325.

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O anel mágico concedido por Miguel era adornado com uma pedra preciosa

que continha uma fórmula mágica gravada, que possui variantes de acordo com a

fonte manuscrita:

• “AAAAA”, 5 alfas, em letras maiúsculas e entrelaçadas entre

elas, formando um círculo;

• As seguintes letras: “k o th r s b i o n k a o a o e l i g o i s s g o a

a e s r o u r t”;

• Uma inscrição que dizia assim: “Senhor Deus nosso, leão, leão;

sabaoth; bionik; aoá, eloí; ioasé, sugeoá; aié; aenioú; ou; ounioú;

eró”.

• Outra inscrição: “Toma cera virgem, constrói um anel e coloca-o

no dedo anular de tua mão. Cerca-o de pergaminho virgem e

escreve, com todo extremo cuidado estes doze nomes: leão,

sabaoth, bioniá, eloí aoá, iaô, iasú, sueioá, aenií, u, uníou, iú,

iró”.

• Ainda outra: “do grande rei Salomão: lthlthi, 40.000, Senhor

Deus nosso: lião, sabaot, aiaó, bioniká, oaleoí, ioasé, sugeó, aaié,

ae, niufiune, iaeso”.167

Tais inscrições, provavelmente, fazem parte de uma tradição posterior

e não pertencia ao Testamento de Salomão primitivo, mas elas podem nos dar

uma idéia de como os antepassados imaginavam aquele anel mágico.

O rito mágico consistia no ato de colocar o anel no peito do demônio,

acompanhado das seguintes palavras: “Vai, Salomão te chama!” Não

importava o que o demônio dissesse, era preciso leva-lo a Salomão correndo.

167 Veja: MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento V. Apéndice III p.387s. e SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole.p.156.

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Após ter descrito o drama do capataz e a resposta de Deus com a

capacitação para exorcizar dada a Salomão, o livro descreve um desfile de

espíritos imundos diante de Salomão:

• Ornias: é descrito como o responsável pelas debilidades do

jovem capataz. Um arcanjo denominado Ouriel ajuda o rei

Salomão a subjuga-lo e forçá-lo a trabalhar nas obras do templo.

Os dois primeiros capítulos do Testamento de Salomão descrevem

essa cena.

• Beelzebul: este é trazido a presença de Salomão por Ornias que

já se encontrava “devidamente selado com o anel mágico”.168 É

considerado o príncipe dos demônios e fica encarregado de trazer

ao monarca os outros demônios. “Beelzebul, o príncipe, não

trabalha no templo, mas senta ao lado de Salomão”.169

• Onoskelis: é um demônio feminino e lascivo pode unir-se com

humanos. Onoscelis é condenada a “trançar as cordas que servem

para a construção do templo (4)”.170 Aparece a Salomão com um

“corpo de uma mulher extremamente formosa”.171

• Asmodeo: ilustra para Salomão sobre os diversos males que

afligem os mortais, sobretudo o mal que faz aos recém-casados.

Seu oponente, ou “anjo contrário”, é Rafael. Segundo o Livro de

Tobias, Asmodeo é vencido com a queima do fígado do peixe com

fel (cf. Tb 6.8,9, 19).

168 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento V.p.325. 169 CHEVITARESE, André Leonardo e CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. p.92. 170 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole.p.157. 171 CHEVITARESE, André Leonardo e CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. p.92.

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• Lix Tetrax: é um demônio que rompe muros, causa febres e

queima tudo o que pode. No cap. 7 do Testamento de Salomão é

condenado a carregar pedras e o anjo que o anula é Azael.

• Engano, Disputa, Clotó, Zale, Delirio, Força, Péssima: trata-se

de sete demônios femininos, príncipes das trevas que provocam os

homens à divisão, conflitos, mentiras, mortes e etc. Foram

obrigados a cavar os alicerces do templo (cap.8).

• Homicídio: é um demônio acéfalo que devora a cabeça dos

homens, porque tem o desejo de possuir uma. O anjo do

relâmpago o anula (cap.9).

• Cetro: tem um aspecto de cachorro, “domina os homens pela

garganta e os reduz a estupidez”.172 Ele é mandado a buscar uma

pedra de esmeralda, a qual os demônios carregavam dia e noite

para clarear o templo para os operários. Seu anjo oponente é o

grande Briateo e sua condenação é cortar mármore para a

construção do templo (cap.10).

• Portador de Leões: é um causador de enfermidades nos homens

e comandante de uma legião de demônios. O Paciente, cujo nome

é Emanuel consegue subjuga-lo. “A legião trabalhará no transporte

de madeira e o demônio em forma de leão na alimentação do

forno”173 que se encontra sempre ardente (cap.11).

• Legião – o Dragão Tricéfalo: este é um espírito tríplice que

torna cegos e mudos os fetos das mulheres e causa nos homens

sintomas semelhantes aos da epilepsia (cair no chão, espumar e

ranger os dentes). Seu anjo oposto é o anjo do Gran Conselho. No

cap.12, é condenado a trabalhar na construção do templo.

172 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole.p.157. 173 CHEVITARESE, André Leonardo e CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. p.93.

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• Obizut: também trata-se de um espírito feminino. Em sua

ferocidade, mata os fetos. Rafael é o seu anjo contrário. Obizut foi

amarrada pelos cabelos e obrigada a louvar a Deus (cap.14).

• O Dragão Alado: resistido por Bezazat, engravida as mulheres e

joga fogo. No cap.14 é destinado a serrar mármore para a

construção do templo.

• Enépsigos: é um demônio feminino das artes mágicas que

“depois de ser acorrentada com uma tripla corrente ela começa a

profetizar a destruição do reino de Salomão, de Jerusalém e do

templo pelos persas, Medos e Caldeus”174 (cap.15). Seu anjo

contrário é Ratanael.

• Cinópego: é um demônio marinho, especialista em naufrágios,

infernizando a vida dos marinheiros provocando náuseas e

morte.Seu anjo contrário é Iamet e foi fechado numa caçarola

(cap.16).

• O espírito de Gigante: “fica nos cemitérios e impede a passagem

dos homens pelo lugar. É exorcizado pelo Salvador que vai vir ao

mundo, e pelo sinal da cruz na testa”175 (cap.17).

• Os 36 espíritos astrais: “governantes das trevas deste

mundo”,176 têm influência sobre as enfermidades e vidas dos

homens. São os “decanos (as divisões) do Zodíaco”.177 O cap. 18

mostra como os homens podem fazer frente a estas influências

174 CHEVITARESE, André Leonardo e CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. p.94. 175 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole.p.158. 176 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento V.p.325. 177 CHEVITARESE, André Leonardo e CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. p.94.

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nefastas e mostra que esses 36 espíritos foram condenados a

transportar água para o templo.

• Effipas: possuidor de vultosa força, é o demônio do vento da

Arábia, que sopra de manhã até ao meio-dia. “Esse será anulado

pelo Anjo que vai nascer da virgem, adorado pelos anjos e

crucificado pelos judeus (cf. 22.20)”.178 “Ele realiza a maravilha

de colocar a pedra angular do templo e manter no ar uma coluna

que havia transportado junto com outro demônio”.179

• Abezetibú: é o demônio do Mar Vermelho que endureceu o

coração de Faraó no Egito,mas ficou submergido pelas águas do

mar. Sua condenação foi embelezar o templo (cap.25).

Tais informações detalhadas são para mostrar as futuras gerações que

“todo demônio tem um nome, está alocado numa constelação e tem um anjo

que o subjuga”180 e orientar acerca de como “neutralizar o poder dos maus

espíritos nas pessoas humanas”.181 O autor da obra intenta convencer os

futuros leitores de que Salomão, no final da sua vida, teria reunido “seus

conhecimentos demonológicos para utilidade das gerações futuras”.182 Para

Schiavo, trata-se de um “verdadeiro tratado de demonologia prática, com

evidentes influências da mitologia grega (cap. 4, 15, 16), da tradição judaica,

que por sua vez se refaz a fontes babilônicas e persas (cap. 5), à tradição

egípcia (cap. 18), e à tradição cristã (cap. 3, 6, 11)”.183

Salomão é uma das figuras mais prestigiadas pela literatura judaica.

Flávio Josefo escreve com entusiasmo e aparente orgulho acerca do

conhecimento desse rei:

178 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole.p.158. 179 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento V.p.326. 180 CHEVITARESE, André Leonardo e CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. p.92. 181 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole.p.158. 182 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento V.p.326. 183 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole.p.158-159.

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“Salomão compôs cinco mil livros de hinos e cânticos e outros

três mil de parábolas e comparações. Redigiu um escrito sobre cada

classe de árvore, desde o hissopo até o cedro, e igualmente sobre

pássaros e toda sorte de criatura terrestre, marinha e aérea. Não havia

na natureza humana nenhuma espécie que não lhe fosse familiar, ou

que ele descartasse sem examina-la: mas ele as encarava todas do

ponto de vista filosófico e revelava o mais completo conhecimento de

suas numerosas propriedades”.184

Josefo também reconhecia que Salomão possuía conhecimento

verdadeiro acerca de demônios:

“E Deus lhe concedeu o conhecimento da arte que se pratica

contra os demônios, em benefício e para a cura dos homens. Ele

compôs igualmente, enfeitiçamentos, graças aos quais as doenças são

aliviadas, e deixou escritas fórmulas de exorcismos que serviam para

expulsar definitivamente os demônios dos possuídos”.185

O Livro da Sabedoria transmite profunda admiração pelo

conhecimento de Salomão:

“Porque ele (Deus) me deu a verdadeira ciência destas coisas

que existem, para que eu saiba a disposição do orbe da terra e as

virtudes dos elementos ... as vicissitudes das estações... as disposições

das estrelas. As naturezas dos animais... o poder dos espíritos e os

pensamentos dos homens... E aprendi todas quantas coisas há

escondidas e não descobertas;...”

O texto de 1Reis 4.29-34, que certamente fora a base para o que

Josefo escreveu acerca do extraordinário conhecimento de Salomão, atesta a

sabedoria especial, prática e abrangente desse rei:

184 JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judias, VIII.44 in: Obras Completas de Flávio Josefo. Buenos Aires: Acervo Cultural Editores, 1961. 185 JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judias, VIII.45.

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“Deu também Deus a Salomão sabedoria, grandíssimo

entendimento e larga inteligência como a areia que está na praia do

mar. Era a sabedoria de Salomão maior do que a de todos os do

Oriente e do que toda a sabedoria dos egípcios. Era mais sábio do

que todos os homens, mais sábio do que Etã, ezraíta, e do que Hemã,

Calcol e Darda, filhos de Maol; e correu a sua fama por todas as

nações em redor. Compôs três mil provérbios, e foram os seus

cânticos mil e cinco. Discorreu sobre todas as plantas, desde o cedro

que está no Líbano até ao hissopo que brota do muro; também falou

dos animais e das aves, dos répteis e dos peixes. De todos os povos

vinha gente a ouvir a sabedoria de Salomão, e também enviados de

todos os reis da terra que tinham ouvido da sua sabedoria”.

Para Alejandro Diez Macho, “o suporte desta trama de ciência popular

demonológica, que é o Testamento de Salomão, é a figura proverbial do

monarca, engrandecida através dos séculos”.186 Cornelli salienta que “as

tradições com o tempo se misturam, resultando num retrato extremamente

vivo das sucessivas reedições e reinterpretações de uma mesma personagem.

Salomão é exorcista e personagem da apocalíptica, rei de Israel e filho de

Davi. Tudo isso ao mesmo tempo”.187

Mas o que este texto pseudepigráfico pretendia ao unir uma

construção com artes mágicas e hostes de demônios? Poderíamos imaginar

uma dura realidade social de trabalho escravo como pano de fundo desta

obra? Ou trata-se da tentativa de “demonizar” o templo de Salomão já que é

“obra de demônios” e havia neste caso uma aversão ao templo? Poderíamos

pensar na obra do templo ou nas entrevistas e cenas demoníacas como um

pretexto para enaltecer o poder e sabedoria de um rei admirado por gerações?

186 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento V.p.326. 187 CHEVITARESE, André Leonardo e CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. p.97.

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Embora seja possível dar uma resposta positiva a cada uma destas

questões, Cornelli considera que o anel é a questão central na trama:

“O anel, o amuleto, é antropologicamente o poder supremo, a

força cósmica, ao alcance da mão (...). É uma participação aqui na

terra do grande poder cósmico de Deus sobre todas as forças do mal.

E tem mais: o poder exorcístico do anel é oferecido, através da

indicação de práticas e fórmulas mágicas, a todo mundo. É

socializado. O poder pelo qual Salomão exorciza os demônios para a

construção do templo é, portanto, disponível – com o anel e as

fórmulas mágicas – para a cura de tendinite (...), sarna e etc.”188

Na opinião de alguns estudiosos189, o princípio da tradição acerca da

cooperação demoníaca na construção do templo é o texto hebraico de 1Reis

6.7: “Edificava-se a casa com pedras já preparadas nas pedreiras, de

maneira que nem martelo, nem machado, nem instrumento algum de ferro se

ouviu na casa quando a edificavam.” A questão gira em torno do verbo

“edificava-se” do hebraico AtênOB'ähiB. (behibbanoto) que, sendo interpretado

reflexivamente, logo foi entendido que “o templo se construiu por si mesmo”.

“A tradição continua indiretamente na obra de Flávio Josefo

(Ant., 8,130), que assegura que o templo foi levantado com a

cooperação especial da divindade, e fica claramente já formulada em

nosso escrito [Testamento de Salomão] e no Talmud Babilônico Git.,

7,1. Nesta passagem se interpreta Ec 2.8 (os estranhos vocábulos

sidda e siddot) como Salomão procurando ‘cantores e cantoras...

demônios e demônias’ para a construção do templo. A mesma

tradição se repete nos textos gnósticos de Nag Hammadi.”190

188 CHEVITARESE, André Leonardo e CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. p.98-99. 189 Macho cita Salzberger e Giversen. Veja: MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento V.p.327. 190 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento V.p.327.

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Não há dúvidas de que o Testamento de Salomão constitui uma rica

fonte para compreensão de crenças, mitos e imaginação de judeus e cristãos

do tempo de Jesus. Ao que parece, o que temos aqui é um acúmulo de

materiais de diversas origens, como a mitologia grega – que pode ter servido

de base para a imagem iconográfica de vários demônios como Enépsigos,

Onoskelis, Cinópego, o dragão alado; a sistematização persa e babilônica –

que fornece as figuras de Asmodeo, Samael e Effipas, acompanhado do

espírito do Mar Vermelho: Abezetibú; da tradição egípcia – a ação dos trinta e

seis decanos e até da tradição cristã, com a figura que é citada nos evangelhos

de Beelzebul.

3. O LIVRO DOS JUBILEUS E O MASTEMA

O Livro dos Jubileus tem sido considerado uma das mais importantes obras

pseudoepigráficas do Antigo Testamento em função de seu conteúdo coerente e por

sua relativa extensão.

“Outro patriota devoto, fazendo causa comum com o velho

partido macabeu, escreveu, por volta de 160 a.C., um extraordinário

livro apócrifo, intitulado Jubileus, insistindo com o povo para que se

mantivesse afastado dos costumes gentios. O que preocupava esse

autor era o seguinte: como podem tantos israelitas, o povo eleito de

Deus, tornar-se apóstatas? Como podem tantos judeus andar pelos

caminhos dos gentios (Jubileus 1.9)? Conquanto ele aceite como

natural a antítese tradicional entre os israelitas e seus inimigos, os

gentios (Jubileus 1.19), nesta altura, mais uma vez, o conflito recuou

para o segundo plano. Ele está interessado nos conflitos provocados

pela assimilação, que cindiam internamente as comunidades judaicas,

e os atribui àquele que é o mais interno dos inimigos, que chama por

vários nomes, mas, com mais freqüência, de Mastema (“ódio”),

Satanás ou Belial”.191

191 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.82.

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O Livro dos Jubileus é uma “obra tipicamente apocalíptica”.192 Trata-se de

uma reelaboração de Gênesis 1, Êxodo 12 que se apresenta como uma revelação

divina feita por um anjo a Moisés no Monte Sinai. “Assim, passam ante os olhos do

leitor a criação, as vicissitudes das primeiras gerações humanas sobre a terra, com a

progressiva queda do gênero humano na iniqüidade, salvo alguns de seus membros, e

suas dolorosas conseqüências”.193 O nome do livro se refere a “divisão que faz da

história em períodos de quarenta e nove anos ou jubileus, por sua vez divididos em

períodos menores de sete anos”.194 Dessa forma, a obra parece estar articulada em

torno de um calendário sabático, que precisava ser observado estritamente.

“É este o verdadeiro eixo cosmogônico de um judaísmo

articulando assim, em oposição a qualquer outro sistema cronológico.

Precisamente esta articulação deu seu nome ao livro, onde todos os

acontecimentos são governados por sua ocorrência e se expressam em

datas de semanas, setenários e jubileus, isto é, semana de dias,

semanas de anos e semanas de semanas de anos”.195

Para o autor de Jubileus, o curso todo da história já está escrito e determinado

por Deus em sete tábuas celestiais e, ainda que o homem seja livre, ele não é capaz

de mudar o curso dos acontecimentos. “A lei promulgada no Sinai é não mais que

uma pequena parte do conteúdo das sete tábuas, escritas desde sempre”.196 Por isso

era importante a observância da lei, considerada imutável. Embora os seres humanos

houvessem caído no pecado, posteriormente, o culto a Deus fora restaurado

centralizado na lei – segundo o autor de Jubileus – por Abraão.

“Abraão restaura o verdadeiro culto divino e o transmite entre

seus descendentes, protegido mais adiante por uma zelosa observância

da lei, baseada tanto num ritual pormenorizado de ações (festividades

e sacrifícios) e omissões (descanso sabático, proibições rituais e de 192 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento I.p.181. 193 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento II. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1983. p.67. 194 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento I.p.181. 195 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento II.p.67. 196 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento I.p.182.

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comércio com gentios, proibição de casamentos mistos) como em

submissão mais estrita a um calendário sabático”.197

O livro dos Jubileus refaz várias passagens do Antigo Testamento “com o

objetivo de adequá-las à sua visão particular”.198 Segundo o autor deste livro, foi

Mastema – não o Senhor – quem ordenou à Abraão o sacrifício de Isaque, registrado

em Gn 22. “Mais tarde, Abraão manifestou preocupação, com medo de ser

escravizado por espíritos malignos que têm domínio sobre os pensamentos dos

corações humanos. Implorou a Deus: salva-me das mãos dos espíritos do mal e não

permitas que eles me afastem do meu Deus (Jubileus 12.20)”.199

Mastema torna-se um “malak Yaweh sobrecarregado, quando ele, e não Deus,

encontra-se com Moisés no deserto, para matá-lo”.200 Moisés também recorre a

Deus, pedindo que salve Israel dos inimigos externos (Jubileus 1.19), que eram os

“gentios” e também para pedir a Deus livramento dos inimigos internos: Não

permitas que o espírito de Belial o domine (Jubileus 1.20).

O Livro dos Vigilantes, uma obra pseudepígrafa famosa e influente, sobretudo

entre os cristãos, que se encontra na “versão mais antiga em 1 Enoque 6-11, também

atestada em manuscritos aramaicos de Qumran (4QEnoque Aramaico)”201, é a

responsável pela introdução da idéia de cisão no céu e da queda dos anjos. Trata-se

de uma coletânea de histórias imaginárias, que faz parte, por seu turno, de outra

coletânea mais ampla, intitulada Primeiro Livro de Enoque.202

O mito conta que anjos nomeados por Deus para “vigiar” (daí o nome

vigilantes) o Universo decaíram do céu. O autor deste relato combina duas versões

diferentes de como os anjos vigilantes perderam sua glória celestial, a partir do

desejo carnal que os “filhos de Deus” sentiram pelas mulheres humanas, conforme

197 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento II.p.67. 198 STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. p.50. 199 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.83. 200 STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. p.50 201 NOGUEIRA, Paulo A. Souza. O Mito dos Vigilantes: apocalípticos em crise com a cultura mediterrânea. p.2 (Artigo não publicado). 202 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.78.

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descrito em Gênesis 6. Uma versão conta que duzentos anjos induzidos por seu chefe

Semeiaza, fizeram um pacto para violar a ordem divina, coabitando com mulheres

humanas, produzindo uma “raça de bastardos, os gigantes conhecidos como nephilim

(“os decaídos”), que gerariam espíritos demoníacos”.203 Esses anjos decaídos

espalhavam a violência entre os homens.

Entrelaçada a essa versão, o relato mostra como o arcanjo Azazel pecou ao

revelar a seres humanos os segredos da metalurgia, que proporcionou aos homens a

fabricação de armas de guerra e às mulheres a confecção de adornos com ouro, prata

e cosméticos. Assim, “os anjos decaídos e sua prole demoníaca incitaram ambos os

sexos à violência, à cobiça e à luxúria”.204 Pagels diz que neste livro anjos decaídos

estimulavam as atividades dos que violavam a aliança com Deus.205

O Mito dos Vigilantes é “relido principalmente no livro dos Jubileus,

capítulos 5,1-11 e 10,1-14”.206 Assim, Jubileus também atribui a origem do mal a

“anjos caídos – os anjos vigilantes –, que se uniram sexualmente com as filhas dos

homens”.207 Essa união imprópria entre seres celestiais e mulheres humanas

contaminou toda a natureza e corrompeu os humanos (Jubileus 7.27). “Na literatura

apócrifa, a luxúria é um dos motivos principais para a queda dos anjos, o que, aliás,

está solidamente enraizado na imagética dos demônios”.208 Para Macho, a obra “dá a

impressão de que o autor pressupõe uma tendência inata do ser humano para a

maldade (10.8)”.209 Para Pagels, a história da queda dos anjos no Jubileus “encerra

uma advertência de natureza moral: se até os anjos quando pecavam, provocavam a

ira e a destruição ordenada por Deus, como podiam os seres humanos ter esperança

de serem poupados?”210 Todos, independente se são anjos ou humanos seriam

julgados eticamente, ou seja, por sua conduta.

“Característico de Jubileus é notar que, após o dilúvio que

destruiu os perversos, Deus fez uma obra nova: ‘Fez pura toda a sua 203 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.78. 204 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.78. 205 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.88. 206 NOGUEIRA, Paulo A. Souza. O Mito dos Vigilantes. p.2. 207 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento I.p.186. 208 STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. p.51. 209 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento II.p.72. 210 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.82.

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obra, uma nova e justa criação, para que não prevariquem nunca e

sejam justos, cada um em sua espécie, para sempre’ (Jub 5.12).

Apesar de tal renovação e purificação, os humanos continuaram

pecando, em razão de sua liberdade e da influência dos poderes

demoníacos de Mastema e suas hostes. Assim, pois, para Jubileus há

uma causa dupla do mal moral, da redução da vida humana e da queda

da natureza depois do dilúvio: a liberdade humana e a ação dos

demônios”.211

Todavia, Mastema está subordinado a Deus (Jubileus 10.7) e, esta situação de

influência, sedução e perdição durará até que chegue o dia do grande juízo (Jubileus

10.8). Neste dia, a erradicação do mal se dará graças a intervenção de Deus.

“Logo se voltarão para mim com toda retidão, com todo

coração e todo espírito. Cortarei o prepúcio de seus corações e de sua

descendência, e lhes criarei um espírito santo, purificando-lhes para

que não se apartem de mim desde esse dia para sempre. Sua alma me

seguirá a mim e todos os meus mandamentos que serão restaurados

entre eles: eu serei seu pai, e eles, meus filhos” (Jubileus 1.23-24).

Esta última expressão talvez tenha sido extraída da promessa feita a Davi com

relação ao seu descendente – Salomão – que construiria o templo do Senhor em

Jerusalém:

“Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; se vier a

transgredir, castigá-lo-ei com varas de homens e com açoites de

filhos de homens.” (2 Samuel 7:14)

“Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; a minha

misericórdia não apartarei dele, como a retirei daquele que foi antes

de ti.” (1 Crônicas 17:13)

211 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento I.p.187.

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“Este edificará casa ao meu nome; ele me será por filho, e eu

lhe serei por pai; estabelecerei para sempre o trono do seu reino

sobre Israel.” (1 Crônicas 22:10)

No Novo Testamento, a expressão aparece aplicada a Jesus na carta aos

Hebreus 1.5: “Pois a qual dos anjos disse jamais: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei?

E outra vez: Eu lhe serei Pai, e ele me será Filho?”

Embora Jubileus tenha uma demonologia menos avançada, por não conhecer

nomes para diversas hierarquias de anjos (todo mal parece estar centralizado na

figura de Mastema, ou Satanás ou Belial), a obra manifesta uma “maior

complexidade e dualismo”.212 Os anjos aparecem divididos entre bons e maus, e os

bons em superiores e inferiores. Estes últimos se encarregam dos fenômenos naturais

(Jubileus 2.2,18) e estão sempre atarefados com eles e não guardam o sábado. Os

anjos superiores são encarregados de servir a corte celestial (Jubileus 1.27) ou de

proteger os homens (Jubileus 35.17) e guardam o sábado.

Os anjos maus teriam diversas procedências, segundo o Jubileus. Alguns, os

“vigilantes” ou “guardas”, são os que desceram à terra para ensinar os humanos

“Leis e justiça” (Jubileus 4.15), mas prevaricaram com as filhas dos homens

(Jubileus 4.21s.). Os anjos superiores teriam os encarcerado após sua “queda” nos

abismos da terra (Jubileus 5.6).

Outros são os chamados “demônios impuros”. Trata-se das almas dos

gigantes – os filhos dos vigilantes (Jubileus 10.1). Do total, nove partes foram

entregues ao suplício e a décima continua – sob as ordens do príncipe Mastema – seu

trabalho de ruína da humanidade (Jubileus 10.7). Tais espíritos malignos semeiam a

violência e o mal, são “cruéis e foram criados para destruir” (Jubileus 10.6). Os

homens poderiam lhes oferecer sacrifícios como a deuses (Jubileus 22.17) e sua

tarefa perdurará até o juízo de Mastema (Jubileus 10.8) ou a instauração do reino

messiânico (Jubileus 23.29).

212 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento II.p.72.

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Segundo a análise de Pagels, no Livro dos Jubileus “a presença deles [dos

demônios] tem dominado o mundo com uma sombra escura, o que leva o autor a

sugerir a ambivalência moral e a vulnerabilidade de todos os seres humanos”.213

Desse modo, nem mesmo os eleitos estavam imunes aos ataques demoníacos e

precisavam se esforçar, pois o destino deles não dependia só da eleição, mas de uma

constante ação moral e, caso esta viesse a falhar, do arrependimento pessoal (às

vezes coletivo) e do perdão divino. A vantagem que os eleitos mantinham não era

imunidade contra o mal, mas a certeza de que teriam ajuda divina nesta luta. Neste

sentido, judeus e gentios não enfrentavam as hostes do mal nas mesmas condições.

Segundo o Jubileus, cada nação contava com um “anjo governante”, ou espíritos

“que podem desencaminhá-las” (Jubileus 15.31). Israel, por sua vez, gozava o

privilégio de ser governado pelo próprio Deus.

No Livro dos Jubileus o dualismo está bem marcado não só pelas figuras de

Deus e seu oponente ou por duas classes de anjos bons e duas de anjos perversos,

mas também por uma “humanidade polarizada” em dois campos: de um lado os

justos – protegidos por seus “guardas” celestiais, e de outro os perversos –

influenciados pelos demônios.

O imperativo de separação dos povos gentios parece estar marcadamente

enfatizado no livro talvez para evitar idolatria e prostituição: “Aparta-te dos gentios,

não comas com eles nem lhes sirva de companhia, pois suas ações são impuras, e

todos os seus caminhos imundícia, abominação e horror” (Jubileus 22.16).

O autor legitima o assassinato, considerando “obra de justiça” contra os

pecadores o que Simeão e Levi fizeram entre os siquemitas prosélitos : “o dia em que

os filhos de Jacó mataram a Siquém lhes foi registrado nos céus o haver feito justiça,

retidão e vingança contra os pecadores, sendo-lhes descrito este ato como benção”

(Jubileus 30.23). Essa história está registrada em Gn 34.1-26. Siquém, um heveu,

teria abusado sexualmente da filha de Jacó – Diná; quando Simeão e Levi – filhos de

Jacó – souberam, “passaram ao fio da espada a Hamor e a seu filho Siquém;

tomaram a Diná da casa de Siquém e saíram. Sobrevieram os filhos de Jacó aos

213 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.83.

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mortos e saquearam a cidade, porque sua irmã fora violada. Levaram deles os

rebanhos, os bois, os jumentos e o que havia na cidade e no campo; todos os seus

bens, e todos os seus meninos, e as suas mulheres levaram cativos e pilharam tudo o

que havia nas casas” (Gn 26.26-29).

A fim de manter a separação entre eleitos e gentios, Jubileus proíbe

absolutamente os matrimônios mistos:

“Se algum homem em Israel quiser dar a sua filha ou irmã a

outro homem de linhagem gentia, morre apedrejado sem remissão,

pois trouxe opróbrio a Israel; a mulher deverá ser queimada com fogo,

pois manchou o nome da casa de seu pai: seja exterminada de Israel”

(Jubileus 30.7).

“Esta lei não tem término de dias, nem perdão e nem remissão,

senão que extermine o homem que houvera profanado a sua filha em

Israel, pois deu sua linhagem a estrangeiro e pecou, contaminando-o.

E tu, Moisés, ordena aos filhos de Israel que não dêem suas filhas aos

gentios e nem tomem para seus filhos as filhas daqueles, pois é algo

abominável ante o Senhor” (Jubileus 30.10-11).

Tudo isso reforçava a imaginação em torno da necessidade de preservação de

uma identidade “ética, mais do que étnica”, ou seja, “moral mais do que nacional”

que, para ser resguardada, precisava estar em constante guerra contra os “de fora”,

que implicava não apenas em uma distância geográfica, mas, sobretudo separar-se de

seus costumes e conduta, considerados demoníacos e “demonizantes”. Não se trata

aqui de uma luta entre judeus e gentios, mas de justos e injustos (embora parece que

o judeu pode ser injusto por não seguir a lei e os mandamentos de Deus, enquanto o

gentio está relegado à condição de injusto de qualquer modo – porque não está

filiado à comunidade eleita!).

Jubileus, assim como o Primeiro Livro de Enoque (especialmente

“Similitudes”), na concepção de Pagels, “abririam o caminho para que os cristãos, no

fim, abandonassem a identidade étnica e redefinissem a comunidade humana, em vez

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disso, em termos da qualidade moral ou filiação à comunidade eleita, de cada

indivíduo”.214

O estudioso Alejandro Diez Macho considera a demonologia de Jubileus o

único ponto de contato com o Novo Testamento. Segundo ele, as idéias centrais de

Jubileus, como a validade absoluta da lei e exaltação ilimitada do povo de Israel, são

totalmente rechaçadas no conjunto do Novo Testamento.215 Os contrapontos feitos à

lei no Sermão do Monte (“ouvistes o que foi dito... Eu, porém, vos digo...” – Mt

5.1s.), o conceito de que “o Filho do Homem é senhor do sábado” (Mt 12.8), a idéia

de que o cristão está morto para a antiga lei e vive para uma nova (Gl 2.19) e toda a

tese da Carta aos Romanos com respeito a justificação pela fé e não pelas obras da

lei, são radicalmente opostos ao espírito que move o Livro dos Jubileus. Também a

idéia de uma “circuncisão espiritual” que é superior à física (cf. Rm 2.25s.,4.9, etc.) e

a abertura sem fronteiras aos gentios rompe toda possível influência ideológica de

Jubileus.

Talvez não seja possível afirmar se aqui se trata de uma influência direta de

Jubileus sobre o Novo Testamento ou se são tradições comuns da apocalíptica e

teologia judaica intertestamentária que encontram também seu lugar nos escritos do

Novo Testamento, mas, no que se refere a angelologia e demonologia, Jubileus e o

Novo Testamento partilham de um solo comum e anterior.

Tanto Jubileus como o Novo Testamento concebem que os demônios são

seres incorpóreos (cf. Mc 3.22 e Jubileus 10.7s.). Os anjos que podem interferir e

controlar os fenômenos naturais (Jubileus 2.2,18) podem ter seus correspondentes

em Apocalipse (Ap 7.1 – “Depois disto, vi quatro anjos em pé nos quatro cantos da

terra, conservando seguros os quatro ventos da terra, para que nenhum vento

soprasse sobre a terra, nem sobre o mar, nem sobre árvore alguma” ou Ap 14.18 –

“aquele que tem autoridade sobre o fogo”). Se Mateus 18.10 trata de “anjo da

guarda”, isso pode corresponder a Jubileus 35.17.

214 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás. p.82. 215 Veja: MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento II.p.74-75.

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Em Judas 6 e 2 Pedro 2.4 fala de “anjos pecadores que não mantiveram seu

estado original” e por isso estão “guardados sob trevas, em algemas eternas, para o

juízo do grande Dia”. Tais frases recordam idéias de Jubileus 4.15s. e 5.1-9; 7.21 e

8.3. Os anjos maus de Jubileus que assediam constantemente a humanidade para

desvia-la de Deus e praticar o mal, são estereótipos mantidos em 1Pe 5.8 (“leão que

ruge, procurando alguém para tragar”) e na experiência da tentação narrada em Mt

4.1s. (e seus paralelos).

A concepção de Paulo acerca dos sacrifícios oferecidos aos demônios como

se fossem a deuses (1Co 10.20) é encontrada em Jubileus 22.17. Com relação ao fim

dos tempos, imaginado como tempo de juízo para as hostes do mal, Mt 8.29

concorda com Jubileus 10.8. Até a liberdade de ação dos demônios que será limitada

durante a época messiânica, conforme registro de Ap 20.2-3, encontra

correspondência em Jubileus 23.29.

Ainda que, como já dissemos, não se possa afirmar com segurança uma

dependência do Novo Testamento do Livro dos Jubileus, o que podemos constatar é

que, quando o assunto é o mal, o Novo Testamento reflete o conjunto de idéias,

medos e matizes demonológicas de Jubileus.

4. O TESTAMENTO DOS DOZE PATRIARCAS E “BELIAL”

O Testamento dos Doze Patriarcas (Test XII) é um pseudepígrafo

considerado notável em função tanto de seu conteúdo dogmático como ético.

“Os paralelos com a literatura qumrânica, as exortações éticas

que refletem uma atmosfera espiritual muito próxima da cristã, as

doutrinas escatológicas e messiânicas, assim como seu espírito

universalista, fazem deste apócrifo um útil instrumento para a

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compreensão do pluriforme judaísmo helenístico tardio e do

cristianismo nascente”.216

A abundância de hebraísmos na versão grega deste texto, que se conserva

íntegra, levou os estudiosos a uma suposição de que esta obra foi escrita

originalmente em hebraico.217 Porém, a opinião comum hoje em dia é de que se trata

de um documento escrito em grego mesmo, embora o TestXII dê a impressão de um

grego fortemente semitizante – talvez, porque “o autor fora um judeu bilíngüe

(aramaico-grego), que escreve um grego notadamente influenciado pela versão da

LXX”.218

Parece não haver um consenso referente à datação dessa obra e nem tão

pouco a respeito de sua autoria. Na verdade a data depende das idéias em torno do

autor. Assim, para quem defende uma origem cristã (opinião comum entre os séculos

XVIII e XIX de nossa era) poderíamos ter uma data próxima a 200 d.C. Para os

defensores de uma autoria qumrânica, a data por certo será o século I a.C. Entre os

que admitem um escrito judeu básico, mas com um redator final cristão, a data do

escrito básico estaria entre 200 e 174 a.C., com o texto final por volta do século I

d.C.

Esta obra tem sido considerada um alto modelo de ensino moral. Os textos, ao

mesmo tempo, exalam um tom pessimista, apresentando o presente de forma

negativa e anunciando que tudo está se degradando, como também reafirmam a

crença na salvação, que não visa só aos judeus, mas a todos os homens (Testamento

de Levi 4.4; 8.14; 14.4; Testamento de Simeão 6.5; Testamento de Naftali 8.3;

Testamento de Aser 7.3). Cabe, porém, ao povo judeu um papel preponderante na

instauração deste novo mundo, pois, segundo estes livros, deste povo virá o Messias,

ou “os Messias”, que salvará a humanidade. Assim, no Testamento de Simeão lemos:

“Obedecei a Levi; em Judá sereis redimidos. Não vos levanteis

contra estas duas tribos, porque delas surgirá a Salvação de Deus. 216 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento V.p.11. 217 Para discussão à esse respeito veja: MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento V.p.18, acerca dos argumentos de R.H.Charles. 218 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento V.p.19.

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Deus suscitará de Levi um Sumo Sacerdote e de Judá, um rei e

homem. Este salvará as tribos de Israel e todos os homens” (Test.

Simeão 7:1-2).

Assim, mesmo em meio às dificuldades, a crença de que Deus providenciaria

a Salvação através de um Messias, crescia entre os judeus. Esse Messias, que em

alguns momentos aparece como um sacerdote ou guerreiro (ou, quem sabe, até

duplica-se: um rei e um sacerdote) viria das tribos de Levi e Judá. Acreditava-se que,

com o advento do Messias, a missão histórica de Israel estaria cumprida. Esta

literatura, portanto, buscava motivar o povo, renovar suas esperanças, recuperar seus

ideais afirmando que, apesar da presença crescente do mal no cotidiano, a vitória

final estava garantida.

No TestXII pela primeira vez Satã aparece personalizado na figura de Belial

(ou “Beliar”).219

“Em todos os TestXII se lhe denomina assim alguma vez; em

alguns deles, várias vezes. Beliar é uma corrupção do desqualificado

Beli‘al (= um ser “sem proveito”), denominação freqüente em

Qumran, que também figura em 2Co 6.15. Em 2Ts 2.2-12, Paulo

chama ao anticristo ho anomos (“o sem lei”), qualificação que

procede da tradução de Beli‘al mediante a regra do ’al tiqré ou troca

de vocalização.”220

O autor dessa obra imagina o mundo cheio de espíritos, anjos e demônios que

incitam o homem à verdade ou à mentira (Testamento de Judá 20.1). São os

“espíritos do erro” (Testamento de Rubem 3) que, com sua péssima influência, fazem

os homens pecar (Testamento de Simeão 2.6; Testamento de Judá 19.4; Testamento

de Dã 1.6). Os anjos (ou demônios) causadores de doenças (Testamento de Rubem

1.7-9; Testamento de Simeão 2.12; Testamento de Gade 5.9-11) parecem estar

219 Esse nome “Belial” aparece cerca de 13 vezes no Antigo Testamento, mas sem uma “personificação direta do mal”, sempre se referindo a uma pessoa que comete algum tipo de atrocidade, sendo considerada uma “filha de Belial” ou “testemunha de Belial” (Jz 19.22; 20.13; 1Sm 1.16; 2.12; 10.27; 25.17, 25; 30.22; 2Sm 16.7; 20.1; 23.6; Pv 6.12; 19.28). 220 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento I.p.336.

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vinculados a Iahweh e não a Belial. Já os "maus espíritos", que nos testamentos de

Rúben, de Simeão e de Issacar estão subordinados a Satã ou Belial, são os

tentadores, os que induzem ao pecado (Testamento de Rubem 2 e 3; Testamento de

Simeão 2.7 e 3; Testamento de Issacar 4).

No Testamento de Simeão 2.7, Belial é chamado “o príncipe da mentira”. Não

podemos deixar de notar a idéia paralela em Jo 8.44: “Vós sois do diabo, que é vosso

pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se

firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do

que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira”. Segundo o Testamento de

Aser 1.8 quem se deixa levar pela má inclinação – o que o judaísmo chama de yeser

ra‘ – está dominado por Belial.

No Testamento de Rubem 4.10 entende-se que Belial não tem nenhum poder

sobre os puros. “Segundo uma leitura do Testamento de Zebulon 9.8, Deus mesmo

livrará aos homens de Belial, o qual finalmente será arrojado (Testamento de Levi

18.12) e lançado no fogo pra a eternidade (Testamento de Judá 25.3)”.221

A queda dos anjos está retratada no TestXII em dois lugares. No Testamento

de Rubem 5.5-7 se exorta as mulheres a apartar-se de adornos na cabeça e no rosto,

visando evitar seduzir os homens, pois foi assim que antes do dilúvio seduziram os

anjos vigilantes, os quais se apresentaram em forma humana, com gigantesca

estatura, quando estavam elas “deitadas” com seus maridos; e assim foi como

aquelas mulheres conceberam de seus maridos, mas segundo o desejo que tinham dos

anjos vigilantes, e deram à luz a gigantes.

Um outro texto que aponta para a queda dos anjos é Testamento de Naftali

3.5. Neste, os anjos trocaram a ordem de sua natureza, pelo que o Senhor os

amaldiçoou no tempo do dilúvio, e por sua causa a terra ficou desabitada e sem

frutos. No TestXII os anjos baixaram à terra com uma finalidade boa, mas foram

seduzidos pelas mulheres. “Mais antiga parece ser a tradição do Mito dos Vigilantes

221 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento I.p.336.

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(1Enoque 1-36) que considera que os anjos baixaram à terra com o propósito de

pecar com as mulheres”.222

O TestXII tende a centrar no orgulho e na luxúria a fonte de todos os vícios e

pecados (Testamento de Issacar 7.2), que conduzem inclusive à idolatria

(Testamento de Rubem 4.6; Testamento de Simeão 5.3). O Testamento de Rubem

“projeta-se no alvo mais tradicional do cristianismo, ou seja, o de Adão e Eva, com

Eva incitando Adão ao pecado e por conseqüência servindo de exemplo para que as

mulheres terrenas pudessem seduzir os Anjos Guardiões [“ Vigilantes”].”223 Na

verdade, no TestXII as mulheres são consideradas inerentemente más (Testamento de

Rubem 5) e a maior culpada nos deslizes sexuais (Testamento de Judá 10.3-5;

15.5s.). O ideal completo da serenidade está na continência sexual.

O autor desta obra vê a humanidade dividida em dois grupos radicalmente

opostos: os filhos da luz e os filhos das trevas. No TestXII, particularmente nos de

Aser e Benjamin, se reflete um dualismo de bons e maus; os maus são os diprosopoi,

os que têm duas “caras”, boa e má (Testamento de Aser 3.1); os bons são

monoprosopoi, de uma só “cara” (Testamento de Aser 4.1; 6.1). O autor considera

que o mal não é unicamente exterior ao próprio homem (há homens bons e maus),

senão que está presente dentro de cada homem, expresso em duas inclinações ou

vontades:

“Deus tem dado aos filhos dos homens dupla diaboulia (=

conselho), duas classes de atos, dois lugares de juízo e duas metas

finais. Todas as coisas são duplicadas, uma frente a outra. Há dois

caminhos: o do bem e o do mal, e dois conselhos em nosso peito os

discernem” (Testamento de Aser 1.3-5).

O Testamento de Levi, em 18.12, faz promessas de libertação futura das

forças do mal:

222 Para uma argumentação completa veja: MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento I.p.337-339. 223 STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia. p.50-51.

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“E Belial será limitado por ele. E concederá aos seus filhos a

autoridade para pisotear os espíritos maus”.224

Os anjos são figuras muito importantes para o autor dessa obra, que são vistos

– e isso parece ser comum no judaísmo – como espíritos revestidos de um corpo

etéreo, cuja sublimidade às vezes é representada apresentando-os “vestidos de branco

e de luz”225 (Testamento de Levi 8.2). Todavia, o Testamento de Levi 4.1 também

considera a existência de “espíritos invisíveis”.

O Testamento de Naftali 8.4 apresenta Miguel como o chefe dos setenta anjos

que descem do céu para ensinar suas línguas às setenta nações que ocupam a terra.

Miguel é conhecido na Bíblia Hebraica como “defensor de Israel”:

“Nesse tempo, se levantará Miguel, o grande príncipe, o

defensor dos filhos do teu povo, e haverá tempo de angústia, qual

nunca houve, desde que houve nação até àquele tempo; mas, naquele

tempo, será salvo o teu povo, todo aquele que for achado inscrito no

livro.” (Daniel 12:1)

“Então, me disse: Não temas, Daniel, porque, desde o primeiro

dia em que aplicaste o coração a compreender e a humilhar-te perante

o teu Deus, foram ouvidas as tuas palavras; e, por causa das tuas

palavras, é que eu vim. Mas o príncipe do reino da Pérsia me resistiu

por vinte e um dias; porém Miguel, um dos primeiros príncipes, veio

para ajudar-me, e eu obtive vitória sobre os reis da Pérsia.” (Daniel

10:12-13)

Os anjos são imaginados no TestXII como seres presentes na vida dos

homens. “Velam para que a história siga o curso fixado nas tábuas celestes e,

conseqüentemente, intervém constantemente na vida dos humanos”.226

224 CHARLESWORTH, James H. (Editor) The Old Testament Pseudepigrapha – vol.I. New York: Doubleday, 1983. p. 795. “And Beliar shall be bound by him. And he shall grant to his children the authority to trample on wicked spirits.” 225 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento I.p.331. 226 MACHO, Alejandro Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento I.p.334.

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Anjos podem ser agentes de revelação: O anjo de Deus revela a Jacó o crime

de Rubem (Testamento de Rubem 3.15); Jacó contempla em visão um anjo

(“potestade”) acompanhando Judá para que não caia (Testamento de Judá 3.10); o

anjo de Deus revela a José a intenção maldosa da mulher egípcia (Testamento de

José 6.6); o anjo diz a Judá que Levi é mais querido do que ele (Testamento de Judá

21.5).

Os anjos também são vistos como instrutores ou orientadores das questões da

vida: Rubem é instruído por um anjo a respeito das mulheres: elas são mais

propensas ao espírito de fornicação do que os homens (Testamento de Rubem 5.3);

também mostra a Judá que tanto o rei quanto o mendigo, as mulheres dominam

(Testamento de Judá 15.5).

Também os anjos são defensores dos filhos da luz: José é liberto das mãos de

seu irmão Simeão por um anjo enviado por Deus (Testamento de Simeão 2.8); os que

fazem o bem são cuidados pelos anjos (Testamento de Naftali 8.4).

Os anjos também podem ser instrumentos de juízo: O anjo de Deus mata a

Er227 – o filho primogênito de Judá – na terceira noite de seu casamento (Testamento

de Judá 10.2). Nos últimos dias, um anjo guiará as tribos de Levi e Judá (Testamento

de Dã 5.4).

Assim, no TestXII tais seres angelicais podem interferir na vida humana,

trazendo conforto (Testamento de Dã 6.5), proteção (Testamento de José 6.7) e

conduzindo as almas dos justos à vida eterna (Testamento de Aser 6.6).

Tendo em vista que o mundo está cheio de seres celestiais que interferem na

vida tanto para o bem quanto para o mal, e “Belial, chefe dos anjos caídos, coloca-se

como adversário e rival de Deus e disputa a soberania sobre os humanos, seus

subordinados, incitando os homens à fornicação, à inveja, ao ciúme, à cólera, ao

assassinato e, principalmente, à idolatria, ou seja, à adoração dos deuses

227 Genesis 38:7 “Er, porém, o primogênito de Judá, era perverso perante o SENHOR, pelo que o SENHOR o fez morrer.”

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estrangeiros”228, no Testamento de Levi 19.1 os leitores são desafiados a fazer uma

escolha:

“E agora, meus filhos, vocês têm ouvido tudo. Escolhei por

vós mesmos a luz ou as trevas, a Lei do Senhor ou as obras de

Belial.”229

5. CONCLUSÃO:

Parece ficar claro que a LXX exerceu uma “influência literária” nos demais

escritos que a usam como base de leitura do Antigo Testamento. A partir dela,

floresce um novo juízo do demoníaco em que deuses, altares, nações e ídolos são

identificados com entidades demoníacas. Assim, a LXX constitui ao meu ver uma

importante “dobradiça” no modo de perceber o universo do inexplicável que é

contrário aos preceitos de Iahweh na, se assim podemos chamar, “evolução do

conceito do mal”.

Nota-se, então que as influências culturais de tradições de povos

circunvizinhos a Israel começaram a ser “textualizadas”, ou seja, aquilo que era

entrelaçado pelo contato com as idéias e os costumes de outros povos tornou-se

“texto”, literatura que tem poder de ser absorvida por outras literaturas e, num

processo de reelaboração e articulação, vai delineando o pensamento das pessoas

acerca do mal.

Dessa forma, a literatura considerada apócrifa e pseudepígrafa traz uma

importante contribuição para a compreensão de textos canônicos que abordam a

figura de Satanás e dos demônios. Nela encontramos uma imaginação

interessantemente fértil e mística acerca de poderes do mal que exercem influência

no cotidiano das pessoas, misturado a um desejo de controle das situações que não

são bem vindas à vida humana, por infundirem dor, sofrimento e aflição.

228 NOGUEIRA, Carlos R.F. O Diabo no Imaginário Cristão. p.20-21. 229 CHARLESWORTH, p. 795. “And now, my children, you have heard everything. Choose for yourselves light or darkness, the Law of the Lord or the works of Beliar.”

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Com exceção do Testamento dos Doze Patriarcas, onde o mal parece estar

condensado na figura de “Belial”, o Testamento de Salomão e o Livro dos Jubileus –

que representam bem esse tema na literatura extra-canônica – tendem a ampliar cada

vez mais o número de demônios e anjos maus que, formando um grande exército

muito bem organizado, penetram a dimensão da vida dos seres humanos a fim de

atormentá-los. Talvez a quantidade definida (inclusive com nomes e funções

específicas) de espíritos malfazejos seja produto da necessidade de explicar a

quantidade e a variedade de angústias que acometem o ser humano sem uma

justificativa racional.

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CAPÍTULO III

MARCOS 1.21-28: ESPÍRITO IMUNDO NA PRIMEIRA AÇÃO PÚBLICA DE JESUS

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1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DO ESTILO DE MARCOS

1.1. Estilo Literário: tradição oral e textualidade

Enquanto Mateus começa sua perspectiva da história de Jesus com genealogia

judaica (Mt 1) e o historiador Lucas com o reconhecimento de seu benfeitor, bem

como de seu objetivo (Lc 1.1-4), Marcos apresenta somente um título: “O início do

Evangelho” (1.1). “Ao fazê-lo, introduziu nova forma literária na Antiguidade.”230

Para Myers, Marcos estrutura seu prólogo usando o termo “evangelho”

recorrendo ao “pretexto da autoridade”.231 Seu texto, já de início identifica o

evangelho com “Jesus Messias” (1.1). O encerramento do prólogo (1.14) traz o

próprio Jesus proclamando o evangelho que é identificado como “proveniente de

Deus”232. Por fim, o evangelho é apresentado como objeto de fé: O tempo está

cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho

(1.15).

Segundo consideram os estudiosos, anteriormente a Marcos havia o processo

da transmissão oral das tradições de Jesus na pregação, na catequese, na liturgia e nas

numerosas formas da vida da comunidade cristã primitiva. Posteriormente, outros

como Mateus, Lucas, João e autores de escritos considerados apócrifos “tomam o

gênero do evangelho criado por Marcos, o imitam e o aperfeiçoam”.233 Joachim

Gnilka lembra que “a transmissão oral das tradições de Jesus corre paralela a

Marcos, sobrevivendo e perdurando até os tempos dos pais apostólicos”.234

Os indícios são de que a tradição oral tinha predominância na antiguidade e

por isso, a palavra falada era o discurso padrão até nos círculos mais educados. A

comunicação textual era tão somente viável para uma classe considerada elite, 230 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos (Grande Comentário Bíblico). São Paulo: Edições Paulinas, 1992. p. 126. 231 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 127. 232 Marcos 1:14 “Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho de Deus”. Observe que é a primeira menção ao nome divino na narrativa. 233 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos –Mc 1-8.26 (vol I). Salamanca: Ediciones Sigueme, 1986, p.21. 234 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 21.

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constituída pelos setores comerciais, governamentais e burocráticos e para o trabalho

dos escribas. “Não é de se admirar que a textualidade fosse, para a mentalidade

judaica, praticamente sinônimo da própria tradição sagrada.”235 Todavia, isso não

significa que a política da textualidade de Marcos visava legitimar o governo da elite

letrada e nem endossar o legalismo codificado da classe escriba e farisaica que, no

entender do evangelista, subvertiam os imperativos textuais claros da Torá por meio

de sua tradição oral e sua tendência à autojustificação (cf. 7.5s.; 10.2s.).

Diante da possibilidade das tradições orais sobre Jesus estarem sujeitas à

manipulação, Marcos optou pela textualidade. Gnilka entende que essa opção de

Marcos “põe a salvo o caráter histórico da revelação cristã”.236 Todavia, isso não

significa que se saiba com certeza se a sua reconstrução histórica está correta ou

mesmo se Marcos escreveu com essa preocupação com a preservação histórica.

Para Gnilka, Marcos se encontra numa “tradição em que as narrações tomadas

da vida de Jesus já vinham sendo utilizadas há tempos tanto na catequese como na

pregação”237. Na verdade, pode ser que Marcos tenha textualizado para a Igreja de

seu tempo e de seu espaço geográfico o que pessoalmente havia aprendido e

comprovado na práxis catequética e missionária.

Segundo Cranfield, “a evidência aponta para Marcos não como sendo um

artista literário criativo, mas um compilador extremamente honesto e

consciencioso”.238 Para Myers, “Marcos é autor, com controle sobre seu material,

não mero compilador, dependendo da tradição como escravo”.239

Comparando as tradições de Marcos com as fontes dos logia, “se comprova

facilmente que o evangelista se encontra em um lugar da história da tradição em que

o material narrativo referente a Jesus já se havia desenvolvido abundantemente”.240

Na compreensão de Gnilka, o “evangelista dispõe de uma coleção de discussões 235 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.127. Observe que no Novo Testamento a maioria dos verbos e substantivos usados para a redação são associados à “escritura”. 236 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.23. 237 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 23. 238CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark (The Cambridge Greek Testament Commentary). Cambridge University Press, 1963, p. 16. 239 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 129. 240 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 24.

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galiléias (cap. 2), de uma fonte de parábolas (cap.4), de uma recompilação de

perícopes que tocam casos concretos da comunidade (cap. 10), de um apocalipse de

limitada dimensão (cap.13)”.241 Assim, para a composição de Marcos não foi

determinante uma consignação cronológica. Sua narrativa derivou-se de pontos

objetivos: o trabalho prático da comunidade, a pregação e a instrução.

Mas, lançando mão da Crítica das Formas, há quem considere muito do

material narrativo de Marcos e muitos dos ditos atribuídos a Jesus como criação da

igreja primitiva. De acordo com este ponto de vista, o material que Marcos recebeu

era evidência do que Jesus veio significar para a fé cristã mais do que o que

realmente tinha sido em sua vida histórica; desta última era somente evidência

indireta.

Não se pode deixar de observar que na imagem de Jesus na tradição anterior a

Marcos, de forma especial nos relatos de milagres e nas controvérsias, a autoridade

do Jesus terreno é fortemente destacada. Isso pode estar relacionado com a fé que

possuía a comunidade que está por trás destas tradições, para qual Jesus se impunha

frente a um mundo submetido a ele qualificando o momento presente como tempo de

salvação escatológica, a concretização (parcial ou plena) da esperança apocalíptica.

Gnilka entende que Marcos tomou as tradições em sua variedade:

“Ao olhar o material de tradição que flui para o

evangelista, que deveria sinalizar seu lugar histórico-teológico,

ensina que Marcos devia estar possuído de uma forte vontade

de integração. Ele tomou as tradições em sua variedade. Apesar

de que não pode afirmar-se com toda segurança, se tem a

impressão de que apenas deixa de fora pouco do que pode

recolher. (...) Se efetivamente existiu essa inclinação a impedir

que se perdesse o menos possível e a recolher o maior número

de elementos, isso pode ser uma força importante que levasse a

consignar por escrito o evangelho. Porque não só existia o

241 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 24.

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perigo de que valiosíssimas tradições foram presas do ouvido,

senão que havia também a possibilidade de que se falara

excessivamente delas e de que perderam sua conexão

interna.”242

Todavia, a variedade de tradições não deve conduzir ao pressuposto de que as

comunidades primitivas trabalhavam apenas com perícopes fragmentadas de Jesus,

“senão com uma imagem integral da vida de Jesus, a qual com toda segurança estava

firmemente estabelecida na fé das comunidades, mas além delas também na

realidade vivida e testemunhada por pessoas que ainda viviam.”243 Willi Marxen

entende que a variedade procede da unidade. “Esta unidade é anterior à tradição

sinótica e se reflete nela, ainda que às vezes o faça de maneira descontínua.”244

Cranfield, ao falar sobre os propósitos do escrito de Marcos, sugere que

“pareciam ser suprir necessidades catequéticas e litúrgicas da igreja [...], apoiar sua

fé em face da ameaça de martírio e prover material para pregadores missionários.”245

Assim, a literatura de Marcos, mais do que nos aproximar das realidades nos

aproxima do que verdadeiramente interessou à tradição da qual o autor se serve.

Poderíamos dizer que o texto preserva os interesses da oralidade.

1.2. Estilo Gramatical: sintaxe, vocabulário e estruturação

O Evangelho de Marcos fora escrito num grego singelo e popular que

“apresenta surpreendentes afinidades com a língua falada, tal como aparece nos

papiros e nas inscrições”.246 O uso freqüente da partícula de coordenação kaiv (em

vez de dev) tem sido considerado a característica mais clara do grego de Marcos,

dispensando o uso de partículas, conjunções e particípios de subordinação, visto que

o evangelista não emprega períodos amplos de narração. O relato da mulher com

242 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.26. 243 MARXEN, Willi. El Evangelista Marcos: Estudio sobre la Historia de la Redaccion del Evangelio. Salamanca: Ediciones Siguime, 1981. p.15. 244 MARXEN, Willi. El Evangelista Marcos. p.16. 245 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p. 14-15. 246 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1980.p.74.

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hemorragia em 5.25 e o uso de três diav com infinitivo perfeito na descrição do

endemoninhado de Gerasa em 5.4 é excepcional.

No entanto, calculam os estudiosos que Marcos tenha 1.270 palavras distintas.

Destas, 79 não aparecem em nenhum outro lugar no Novo Testamento; porém, 41

delas aparecem na LXX. Das palavras restantes, 7 são hapax legomena: ejkperissw'"

(ekperissos14.31), e[nnuxa (ennyksa1.35), ejpiravptw (epirápto2.21), ejpisuntrevcw

(episyntrécho 9.25), kefaliovw (kephalióo 12.4), promerimavw (promerimáo 13.11),

uJperperissw'" (hyperperissos 7.37).

Algo que merece especial atenção em Marcos é o uso de palavras latinas

como dhnavrion (denárion), kenturivwn (kentyríon), kh'nso" (kênsos),

kodravnth"(kodrántes), kravbatto"(krábattos), legiwvn(legión), xevsth"(kséstes),

spekoulavtwr (spekoulátor) e a frase iJkanovn poiei'n (hikanón poiêin) = satis

facere. As palavras kenturivwn (kentyríon), xevsth" (kséstes), spekoulavtwr

(spekoulátor) e iJkanovn poiei'n (hikanón poiêin) são peculiares de Marcos, enquanto

as demais aparecem em outros evangelhos. Taylor diz que “a presença de quase

todas estas palavras nos papiros indica que pertencem ao koinê, porém sua freqüência

no evangelho de Marcos sugere que o evangelista escreveu em um ambiente

romano”.247

Também se deve dar atenção ao uso de diminutivos que Marcos faz. Em 5.23 e

7.25 usa o termo “filhinha” – qugavtrion (thygátrion),para denominar a filha de Jairo

e da mulher siro-fenícia respectivamente. Em 3.9 faz uso de “pequeno barco” -

ploiavrion (ploiárion); em 5.39 usa “criancinha” - paidivon (paidíon) em 5.41, 42

“menininha” - koravsion (kopásion); em 6.9, “sandálias” - sandavlion (sandálion);

em 7.27s. “cachorrinhos” - kunavrion (kynárion); em 7.28 usa “migalhas” - yicivwn

(psichíon); em 8.7, usa “peixinhos” - ijcquvdion (ichthýdion); e em 14.47, ao se referir

a “orelha” ferida do servo do sumo sacerdote, Marcos usa um diminutivo wjtavrion

(hotárion). A linguagem de Marcos é coloquial, não tendo as palavras

necessariamente um significado diminutivo.248 Desse modo, não devemos concluir

247 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.68. 248 Por isso, muitas destas palavras nas versões de Marcos em português não aparecem traduzidas como diminutivos.

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que a orelha de tal homem fosse particularmente pequena, mas que o “evangelista a

emprega porque gosta deste tipo de linguagem”.249 Quanto as expressões kunavrion

(kynárion) e ploiavrion (ploiárion) parecem ter sido empregadas num sentido

diminutivo mesmo.

Marcos usa freqüentemente o verbo eijmiv com particípio. Somam 16 usos,

frente a 3 de Mateus, 28 de Lucas, 10 de João, 24 de Atos, 4 de Paulo e 1 de 1Pedro

2.25. Ademais, uma abundância de particípios tais como 1.21 -

proselqw;n h[geiren... krathvsa" (proselthón égeiren... kratésas); 1.41 -

splagcnisqei;" ejkteivna"... h{yato (spalagchnistheis ekteinas... hepsato) entre

outros (5.25s; 14.67; 15.43) são construções freqüentes em Marcos.

Outra característica sintática de Marcos é a duplicação da negação. Em 1.44,

por exemplo, a recomendação de não dizer nada já subentende que não poderá dizer

a ninguém, mas Marcos prefere a redundância enfática: {Ora mhdeni; mhde;n ei[ph/"

(hora medení medén eipes). Caso semelhante encontra-se em 5.3:

kai; oujde; aJluvsei oujkevti oujdei;" ejduvnato aujtovn dh'sai (kai oudé alysei oukéti

oudeis edynato autón dêsai). Outras ocorrências são: 2.2; 3.20,27; 5.37; 6.5; 7.12;

9.8; 11.14; 12.14; 14.25,60,61; 15.4,5; 16.8; etc. Por 8 vezes, Marcos usa a

construção negativa ouj mhv (ou mê). Moulton considera a expressão muito enfática,

mas rara no restante do Novo Testamento e nos Papiros. Segundo ele, encontramos

ouj mh “13 vezes em citações do Antigo Testamento no Novo Testamento, e

abundantemente nos evangelhos, quase exclusivamente em Logia. Em todos estes,

temos certamente ou provavelmente originais Semíticos.”250

O uso que Marcos faz do presente histórico também é relevante. Estudiosos

têm alistado 151 exemplos onde ocorre esta construção neste evangelho. Em 72

casos o verbos empregado é levgei (légei) ou levgousin (légousin), Na LXX essa

construção não é comum, exceto em 1Reis onde aparece 151 vezes. Taylor entende

ser “evidente que este emprego popular é muito característico do estilo de Marcos.

Só o excessivo uso que Marcos e João fazem desta construção sugere a possibilidade

249 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.68. 250 MOULTON, James Hope. A Grammar of New Testament Greek-vol. I. Edimburgo: T&T Clark, 1908. p. 188-189.

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de um influxo aramaico.”251 No estilo indireto, podemos observar que o presente

(2.1) e o perfeito (15.44,47; 16.4) expressam o ponto de vista do narrador. Em 16.4,

Marcos acrescenta o comentário de que “a pedra era muito grande”.

A omissão dos sujeitos através do uso de plural impessoal tem sido observada

como característica do escrito de Marcos. Em 1.22, por exemplo, diz que “estavam

espantados” com o ensino de Jesus. Mateus neste caso prefere acrescentar o sujeito

“as multidões” (cf. Mt 7.28) e Lucas “eles” (cf. Lc 4.32). Tal construção é comum

em Marcos em 1.30,32,45; 2.3,18; 3.2,32; 5.14,35; 6.14,33,43,54; 7.32; 8.22;

10.2,13,49; 13.9,11; 14.12. Para Taylor, “Marcos omite os sujeitos, não

necessariamente porque substitua a primeira pessoa do plural pela terceira, senão

porque sabe muito bem a quem se refere”.252 Na sua concepção, esse modo de

registro usado por Marcos indica que ele está mais próximo do testemunho primitivo

do que Mateus e Lucas.

Também é próprio de Marcos o uso de h[rxanto (erksanto) como verbo

auxiliar. Essa construção aparece nada menos que 26 vezes (1.45; 2.23; 4.1; 5.17,20;

6.2,7,34,55; 8.11,31,32; 10.28,32,41,47; 11.15; 12.1; 13.5; 14.19,33,65,69,71;

15.8,18) e é indubitavelmente característico do estilo de Marcos. Em alguns destes

exemplos h[rxanto significa “começou” e nos outros expressa vagamente o começo

de uma ação. Para Taylor, “os evangelistas posteriores se sentiram muito

incomodados ante esses 26 exemplos de Marcos, dentre os quais Mateus toma apenas

6 e Lucas 2”.253

Do ponto de vista da construção das orações, uma das características mais

notáveis do estilo de Marcos é o uso da conjunção kaiv para simples coordenação das

orações, em vez de empregar particípios ou orações subordinadas. Das 88 seções em

que podemos dividir o texto de Marcos, 80 começam com a conjunção kaiv, e apenas

em 6 exemplos a segunda palavra é dev (comparando esses números a 159 seções em

Mateus, com 38 começando com kaiv e em 54 ocorrências a segunda palavra é dev).

251 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.69. 252 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.70. 253 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.71.

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Para os estudiosos isso indica que o uso de kaiv na LXX no lugar do w hebraico teve

influência na redação de Marcos.

Marcos utiliza assíndeton muito mais que Mateus ou Lucas, ou seja, omite

partículas e conjunções254 que servem de nexo ao texto. Com exceção de passagens

retóricas, esse procedimento é um pouco distante da língua grega, sendo mais

característico do aramaico. Quando se observa os textos paralelos nas vezes em que

Marcos emprega o assíndeton nota-se que Lucas preserva-o 2 vezes e Mateus em

nenhuma vez. Para Taylor “é evidente que o assíndeton é característico tanto do

estilo de Marcos como das sentenças”.255

Também são características do estilo de Marcos as construções truncadas ou

incompletas, que Mateus e Lucas evitam ou trocam. Há quem tenha enumerado 13

exemplos disso: 3.16s; 4.31s; 5.23; 6.8s; 11.32; 12.19, 38-40; 13.14; 14.49, nos quais

inclui 4 construções incorretas: 3.8; 4.8; 7.19; 10.29s e, além disso, 3 exemplos:

4.26; 7.2-5; 13.34 que não têm paralelo em Mateus ou Lucas. Alguns destes

exemplos são simples parênteses como em 7.3 – uma explicação sobre os ritos de

purificação judaicos, o comentário “assim considerava puro todos os alimentos” de

7.19 e “porque todos consideravam João como profeta” de 11.32. Os demais

exemplos, “ilustram o caráter popular do grego de Marcos”.256

Estruturalmente, Marcos parece ter duas divisões que naturalmente se nota. O

registro do diálogo entre Jesus e seus discípulos em 8.14-21 funciona

analepticamente, retroagindo na narrativa a símbolos e situações como barco e pão.

Esse é o fim da primeira parte da narrativa. A segunda parte abre a narrativa com

uma situação nova e um ambiente geográfico distante. Eles estão em Cesaréia de

Filipe (8.27s) e uma outra conversa de Jesus com seus discípulos, incluindo aqui a

confissão de Pedro, marca o início das predições acerca da paixão, introduzindo

símbolos prolépticos tais como a cruz.

254 Exemplos disso são: 3.35; 4.28; 5.39b; 6.26; 8.29b; 9.24; 10.9; 11.14; etc. 255 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.72. 256 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.72.

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Myers observa que entre esses dois ‘atos’ do teatro marcano existe o episódio

sobre a cura do cego (8.22-26). Segundo ele, “esta cena tem função transitória,

servindo de ponte entre as duas metades”.257 A perícope do cego de Betsaída remete

tanto para trás na narrativa, pois completa uma intenção descrita em 6.45 de uma

viagem ainda não terminada a Betsaída (cf. 6.53), como para frente, pois transporta o

tema cegueira para a segunda parte da narrativa de Marcos através da antecipação da

cura do cego de Jericó descrita em 10.46-52. Assim, não se pode deixar de observar

que a primeira grande seção narrativa da segunda parte, começa e termina com curas

de cegos.

A primeira parte passa-se na Galiléia e em torno dela, sendo primeiro

Cafarnaum e depois o mar da Galiléia representantes do meio gravitacional da

narrativa. Myers considera que há “movimento dialético entre as ‘periferias’

simbólicas (“deserto”) e o ‘centro’ (sinagoga)”.258 Todavia, em 1.5; 3.22 e 7.1

indicam um movimento implícito de Jerusalém para Galiléia.

A segunda parte está construída sobre o mundo narrativo da primeira, mas

move-se em sentido contrário. A narrativa é apresentada por meio do deslocamento

da Galiléia para Jerusalém e, na cidade de Jerusalém, movimenta-se dialeticamente

entre a “periferia” (Betânia) e o “centro” (templo). Em 16.7 encontramos uma

orientação aos discípulos e especialmente a Pedro que retorne a Galiléia. Para

Myers, esse final dá a narrativa um “caráter circular” e funciona para “reabrir a

narrativa do discipulado, que fora encerrada no clímax trágico da segunda parte”.259

1.3. Estilo Redacional: a possibilidade de um fundo semítico

O estilo redacional de Marcos aponta para uma dependência do aramaico. É

difícil determinar se tal dependência se dá em função de uma tradução de um suposto

original aramaico ou de uma tradição aramaica na qual o grego do evangelho se

apóia. Ainda que encontremos estudiosos do Novo Testamento que defendam com

257 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos.p.146. 258 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos.p.147. 259 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos.p.148.

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todo rigor uma tradução de um original aramaico (como é o caso de C.C.Torrey,

Wellhausen – em parte, Nestle e Dalman), no geral, há uma tendência entre os

estudiosos de rechaçar a hipótese de uma tradução direta, embora reconheçam que o

grego de Marcos é um “grego de tradução” ou, pelo menos , que está muito próximo

da tradição aramaica.

Para W.F.Howard “o grego [de Marcos] segue sendo grego, mas um grego de

tradução; não quer isso dizer que Marcos traduza um escrito aramaico, senão que

reproduz uma kathvchsi" [catequese] aramaica”.260 Os últimos estudos do

problema têm concluído que especialmente quando os sinóticos referem-se às

palavras de Jesus é subjacente uma fonte de sentenças ou uma tradução aramaica,

porém as provas ainda não permitem determinar se tais fontes são textuais ou orais.

Taylor entende que nas “seções narrativas do evangelho de Marcos, no diálogo

e nas sentenças pronunciadas por pessoas distintas de Jesus, o uso quase exclusivo de

assíndeton, o emprego de pronome proléptico aramaico, e o uso excessivo da

construção coordenada podem considerar-se razoavelmente como uma mostra do

grego que escreveria um judeu de língua aramaica.”261 A opinião da pesquisa mais

recente considera que há boas razões para falar de um fundo semítico no grego do

evangelho de Marcos, assim como há motivos para presumir a existência de fontes

aramaicas que, todavia, poderiam ter sido orais; bem como afirma que o evangelista

emprega uma tradição aramaica, porém ir além disso é entrar no terreno da

especulação.

A Crítica das Fontes também tem sido um fator importante, não somente porque

respeita a fonte Q, Marcos, M e L, como também na relação com as fontes ou

estratos de fontes que são subentendidas no evangelho de Marcos. Se os

“semitismos” ou aquilo que parece ser semitismo, aparecem em algumas narrativas

ou em classe de narrativas mais que em outras, as provas podem ser um fator

importante para determinar o caráter histórico e as origens deste evangelho. “Se se

objeta que este é um exemplo em que se explica obscurum per obscurius, diríamos

260 W.F.Howard in MOULTON, James Hope. A Grammar of New Testament Greek-vol. II. Edimburgo: T&T Clark, 1908. p. 481. 261 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.78.

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que ao menos conhecemos o perigo e que havemos de prestar maior atenção crítica

aos resultados”262, considera Taylor.

Diante dessas considerações, devemos olhar para os semitismos de Marcos

primeiramente na construção de frases e, depois, nas distintas partes da oração. No

que se refere ao estilo e estrutura das frases percebe-se em Marcos semitismo na

ordem de palavras: há um predomínio freqüente do verbo no início da frase. Uma

conexão radical com a tradição aramaica também se vê no uso de aliteração,

assonância e paronomasia nas parábolas do semeador (Mc 4.3-9), da semente que

cresce em segredo (4.26-27) e do grão de mostarda (4.30-32) – quando se traduz

inversamente ao aramaico –, nas sentenças de 9.38-45 e em outras muitas seções de

Mateus e Lucas.

O uso excessivo que Marcos faz de kaiv nas cláusulas coordenadas não é difícil

de se detectar; todavia, difícil é determinar se trata somente de cultura elementar263

ou de uma influência do aramaico, onde (esse tipo de uso)é muito mais freqüente do

que no grego. Segundo Taylor, é “arriscado chegar a esta última conclusão, se em

uma sentença ou narração não se pode detectar outros indícios mais claros que

revelem giros próprios da língua aramaica.” 264 Ele aponta que estudiosos duvidam

que os imperativos justapostos sem nenhuma partícula de união, como por exemplo

2.11: e;geire a=ron (égeire aron – “levanta-te, toma”); 4.39: siw,pa( pefi,mwso

(siôpa pephímoso – “acalma-te, emudece”), possam qualificar-se de “não gregos”; no

entanto, concordam que são mais freqüentes no hebraico e no aramaico que no grego.

Outro tipo de construção que aparece no grego clássico e nos papiros, sendo

mais característica do hebraico e aramaico, são casos pendentes seguido por

pronomes redundantes. Exemplo disso se vê em 1.34 (D): kai. tou.j daimo,nia

e;contaj. evxe,balen auvta. avp´ auvtw/n (kai tous daimónia échontas eksébalen autá ap’

autôn); 6.16: }On evgw. avpekefa,lisa VIwa,nnhn( ou-toj hvge,rqh (hón ego

apekephálisa Ioannen, houtos egerthe) 7.20: To. evk tou/ avnqrw,pou

evkporeuo,menon( evkei/no koinoi/ to.n a;nqrwpon (to ek tou anthôpou

262 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.78. 263 Veja: MOULTON, James Hope. A Grammar of New Testament Greek-vol. I. p.12. 264 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.79.

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ekporeuómenon, ekeino koinoi tón anthôpon); 13.11: avllV o] eva.n doqh/| umi/n... (all’

hó eán dóthe hymin). Ainda que tais construções não são particularmente semíticas,

sua preponderância nas sentenças de Jesus pode apoiar a idéia de que aqui

encontramos uma tradição traduzida para o grego.

Em orações subordinadas pode ter havido uma tradução errada do “de”

aramaico. O de pode ser pronome relativo, sinal do genitivo, ou uma conjunção e,

portanto, pode ser traduzido por o{" (hós – o qual), o{ti (hóti - porque), o{te (hóte -

partícula temporal – quando, enquanto, tanto quanto) ou w{ste (hoste - por esta

razão, portanto, assim). Essa pode ser, concordam muitos estudiosos, a causa de

divergências em manuscritos de vários textos. Em 9.38, por exemplo, quando João

traz a informação para Jesus a respeito de um exorcista desconhecido: Mestre, vimos

alguém que, em teu nome, expelia demônios, e nós lho proibimos, porque não nos

seguia, surge essa possibilidade, onde B e a lêem o{ti oujk ajkolouqei' hJmi'n (hóti

ouk akolouthei hemin - porque não nos seguia), enquanto D e A lêem o{" (o qual) e

colocam a oração anterior depois de daimovnia, razão esta de encontrarmos as

versões em português do Almeida, tanto a Corrigida como a Atualizada versando

assim: Disse-lhe João: Mestre, vimos um homem que, em teu nome, expelia

demônios, o qual não nos segue; e nós lho proibimos, porque não seguia conosco.

Todavia, esse e outros casos podem ser considerados uma questão de interpretação

deliberada e não necessariamente de tradução errônea.

Taylor afirma que “a estrutura das frases de Marcos não é uma prova suficiente

para demonstrar, por si mesma, que o evangelho é uma tradução de um original

aramaico; mas, por outro lado, essa estrutura sugere poderosamente o emprego de

uma tradição aramaica e, talvez, de fontes.”265

Quanto às diversas partes da oração, Taylor nota em algumas passagens de

Marcos que se usa ou se omite o artigo de forma incomum. Exemplos do uso de

artigo são: 6.55 - toi/j kraba,ttoij (tois kpabátois - nos ou em leitos); 10.25 (B) -

dia. th/j trumalia/j th/j r`afi,doj (dia tês tpymalias tês raphídos - pelo buraco da

agulha), entre outros. Como exemplo de omissão do artigo é citado: 2.21 - sci,sma

265 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.81.

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(schísma - rasgo); 6.35 (D) - to,poj (topos - lugar); 9.15 (D) - pa/j o;cloj (pás ochlos

- toda multidão) e 14.62 (D) - duna,mewj (dynámeôs - poderoso). Mas Taylor admite

“não ser certo que estes casos sejam semitismo”266. Não se deve deixar de notar

também que a maioria dos casos citados aparece em D e o próprio Taylor diz ser

“duvidoso o valor de D”.267

Outra semelhança com o aramaico é que às vezes um pronome, cujo uso

parece redundante, é inserido para dar ênfase, como em 6.17 - Auvto.j ga.r o`

~Hrw,|dhj (autos gár hó Herodes - pois o mesmo Herodes) e em 8.38 - evn th/| do,xh|

tou/ patro.j auvtou/ (em te dókse tou patrós autou - na glória de seu pai). Também o

uso de pronome reflexivo como em 10.26 - le,gontej pro.j e`autou,j (légontes prós

heautous - disseram pra si mesmos ou entre si) e 14.4 - h=san de, tinej

avganaktou/ntej pro.j e`autou,j (êsan dé tines aganaktountes - alguns indignaram

entre si) reflete o uso aramaico, onde o “dativo ético substitui o pronome

reflexivo”268.

Também o uso de numerais cardinais no lugar de ordinais pode ser observado

em 16.2 - th/| mia/| tw/n sabba,twn (te mia tôn sabbátôn - no primeiro dia da semana),

onde mia/| (um) está no lugar de prw'to" (prôtos - primeiro). Embora este seja um

uso greco-judaico, sua distribuição no Novo Testamento (Mt 28.1; Lc 24.1; Jo 20.1,

19; At 20.7; 1Co 16.2) indica que tem um sentido quase técnico. Mas é possível

afirmar com maior segurança que semitismo há no uso de numeral cardinal com

sentido adverbial em 4.8 - e]n tria,konta kai. e]n e`xh,konta kai. e]n e`kato,n (hén

triákonta kai hén eksêkonta kai hén ekatón - a trinta, a sessenta e cem por um).

Howard Clark Kee, em seu estudo sobre a terminologia das histórias de

exorcismo em Marcos (The Terminology of Mark’s Exorcism Stories. NTS, 14, 1968.

p.232-246) admite que “o fato que ejpitima'n [epitimân - repreender como em Mc

1.25 e 9.25 - evpeti,mhsen] nas exposições de exorcismo dos sinóticos é o

equivalente da raiz semítica, r[g, como encontrado em vários dos textos de Qumran,

266 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.82. 267 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.82. 268 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.82.

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tem sido notado por vários estudiosos”.269 Ele conclui que “um fator significativo

que liga àquela forma específica de esperança [escatológica] como foi expressado na

literatura do judaísmo sectário é o termo r[g (= ejpitima'n), pelo qual deveria a

palavra de comando trazer os poderes hostis sob controle.”270

Para Helmut Koëster271 é indiscutivelmente alto o número de semitismos nos

escritos do Novo Testamento. Segundo ele, “semitismos podem surgir quando um

texto particularmente é traduzido do aramaico para o grego, isto é, da língua

vernácula das populações não helenizadas da Síria e da Palestina. Podem também

ocorrer quando um autor escreve num ambiente de língua aramaica ou quando uma

tradição mais antiga usada num escrito do Novo Testamento foi formulada num

ambiente assim.”272 Além da possibilidade de que a fonte das histórias de milagres

usada por João no seu evangelho tenha sido traduzida direto de um escrito aramaico,

“somente o Evangelho de Marcos parece ter usado fontes gregas que foram traduções

diretas de originais aramaicos,”273 pondera Koëster.

Estes dados podem levar à uma hipótese de que o evangelho de Marcos fora

escrito originalmente em aramaico, porém o mais seguro parece ser que suas

sentenças e muitas de suas narrativas se “movem em um âmbito de tradição

semítica”.274 Dessa forma, devemos perguntar se de fato o evangelho de Marcos

sofre uma série de corrupções devido ao impacto da influência helenista, ou se sua

inclinação se projeta até os pagãos, todavia o núcleo de sua tradição é judaico-

cristão.

269 KEE, Howard The Terminology of Mark’s Exorcism Stories. NTS, 14, 1968. p.232. 270 KEE, Howard The Terminology of Mark’s Exorcism Stories. p.246. 271 KOËSTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento: História, Cultura e Religião do Período Helenístico. São Paulo: Paulus, 2005. 432p. 272 KOËSTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento, p.121. 273 KOËSTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento, p.121. 274 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.88.

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2. DEMÔNIOS E ESPÍRITOS IMUNDOS NA REDAÇÃO DE

MARCOS: VISÃO PANORÂMICA

Em Marcos há quatro relatos de exorcismo. O primeiro, alvo principal de

nossa investigação aqui, ocorre na sinagoga em Cafarnaum, descrito em 1.23-28,

onde um homem “possesso de espírito imundo” (1.23) enfrenta Jesus aos brados,

sendo este o primeiro ato público do ministério de Jesus segundo a narrativa de

Marcos.

O segundo se encontra em 5.1-20 e ocorre num cemitério em Gerasa, onde um

homem “possesso de espírito imundo” (5.2) sai dos sepulcros clamando ao “Filho do

Deus Altíssimo” (5.7) que não o atormentasse.

O terceiro acontece numa casa nas regiões de Tiro (7.24), conforme descrito

em 7.24-30, e trata-se da filhinha de uma mulher siro-fenícia que se encontrava

“possessa de um espírito imundo” (7.25). Neste caso, a pessoa possessa não está na

presença de Jesus e não há descrição dos seus sintomas e nem de suas reações em

face do exorcismo.

O quarto relato se encontra em 9.14-27 e, ao que parece, ocorreu na rua por

ocasião da entrada de Jesus numa cidade após descer do “Monte da Transfiguração”

(cf.9.2, 9, 14). O local, embora incerto, é presumivelmente nos arredores da Galiléia

ou mesmo na própria Galiléia, pois em 9.30 é dito que “e, tendo partido dali,

caminharam pela Galiléia, e não queria que alguém o soubesse”. Neste caso, trata-

se do filho de um homem que desde a infância se encontrava possesso por um

“espírito imundo” (9.25) que o tornava mudo e surdo (9.17, 25) e trazia sobre ele

outros efeitos que lembram os sintomas da epilepsia.

Myers percebe em Marcos uma estratégia narrativa ligada à apocalíptica,

caracterizada entre outros elementos por um dualismo apocalíptico radical, em que

“a nova ordem de Jesus (narrada como o “reino de Deus”) se opõe fundamentalmente

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à velha ordem conservada e defendida pelos escribas”.275 Assim, os relatos de

conflito e exorcismo tornam-se “veículo narrativo” para discutir e subverter a velha

ordem. A nova ordem, por sua vez, “é transmitida mediante narrativas de conversão,

milagres e cura, ação simbólica e ensinamento parenético”.276

Ligado a esse dualismo, Myers acrescenta uma relação da narrativa de Marcos

com o “mito do combate” apocalíptico. “Desde o primeiro confronto no deserto

entre Jesus e seus anjos de um lado, e Satanás e suas feras selvagens de outro (1.12s),

é claro que existe mais do que a luta de Jesus com a ordem dos escribas do que ‘os

olhos vêem’. É comparação com a ordem satânica, tal como está claramente

articulada na parábola apocalíptica da casa do homem forte (3.23-27277)”278, pondera

Myers. Conforme Raymond Brown, Jesus é “provado e contradito por Satanás ou

pelos demônios que já detêm o controle – uma prefiguração do desfecho da história

da paixão”.279 Parece estar claro que, conforme as palavras de Myers, “o exorcismo é

o principal veículo para articular o mito de combate apocalíptico entre os poderes (e

seus favoritos terrenos) e Jesus (como enviado do reino).”280

Vicent Taylor vê que, na composição de Marcos, “a seleção de material sofre a

influência de seu interesse por exorcismos” e pela “apocalíptica de seu tempo”.281

Essa influência pode ser justificada pela "interdependência das formas literárias e as

influências que operam na vida da comunidade”282 que Bultmann afirmou, conforme

recorda Howard Clark Kee. Essa interdependência é melhor compreendida fazendo

uso da distinção feita por N. Petersen (1980), citada por Myers, entre o que chama

“tempo da narrativa” e “tempo do discurso”. Mais adiante, Myers clareia essa

275 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 137. 276 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 138. 277 Marcos 3:23-27: 23 Então, convocando-os Jesus, lhes disse, por meio de parábolas: Como pode Satanás expelir a Satanás? 24 Se um reino estiver dividido contra si mesmo, tal reino não pode subsistir; 25 se uma casa estiver dividida contra si mesma, tal casa não poderá subsistir. 26 Se, pois, Satanás se levantou contra si mesmo e está dividido, não pode subsistir, mas perece. 27 Ninguém pode entrar na casa do valente para roubar-lhe os bens, sem primeiro amarrá-lo; e só então lhe saqueará a casa. 278 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.138. 279 BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 243. 280 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.183. 281 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos. p. 129. 282 KEE, Howard Clark. Community of the New Age: Studies in Mark’s Gospel. Macon GA: Mercer University Press, 1983. p.12.

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distinção de Petersen chamando-a de “momento narrativo” do texto e “momento

histórico” do leitor.283

De posse dessas indicações de que Marcos de fato constrói sua narrativa sob a

influência apocalíptica dualista onde se enfatiza “confrontos de poder”, as narrativas

de exorcismo tornam-se alvo importante de investigação. Luigi Schiavo conclui que

“dado o número considerável de exorcismos na atividade de Jesus, eles fogem do

gênero literário mais amplo milagres, para constituir um gênero próprio, que

chamamos relato de exorcismo.”284

Antes de tudo, é preciso recordar que o mal é apresentado em Marcos

primeiramente na figura de Satanás tentando Jesus em 1.12-13285. “Apesar de

Marcos não nos oferecer uma descrição detalhada da tentação de Jesus, é de se supor

que sua motivação é cristológica, mas tem a ver também com o exercício da função

messiânica.”286 É possível que a versão de Marcos seja resultado de uma crença

largamente difundida entre os judeus de que nos últimos dias o espírito mau seria

derrotado através de uma grande demonstração de poder, o que torna seu relato da

tentação uma “descrição mitologizante da obra redentora levada a cabo por Jesus,

que em sua condição de Filho de Deus e portador do Espírito Santo (1.10-12) derruba

o império de Satanás.” 287

Nos paralelos desta narrativa da tentação em Mateus288 e Lucas289, o tentador é

designado como diabo, mas Marcos utiliza preferencialmente Satanás, identificado

como adversário de Cristo em 8.33, ocasião da repreensão a Pedro – Arreda,

Satanás! – e em 3.23-26 na discussão com os escribas: Então, convocando-os Jesus,

lhes disse, por meio de parábolas: Como pode Satanás expelir a Satanás? Se um

283 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.144. 284 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole: Exegese, História, Conflitos e Interpretações de Mc 5.1-20. São Bernardo do Campo, SP: UMESP, 1999. p.62. 285 Marcos 1:12-13 12 E logo o Espírito o impeliu para o deserto, 13 onde permaneceu quarenta dias, sendo tentado por Satanás; estava com as feras, mas os anjos o serviam. 286 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.66. 287 BROWN, Raymond E. Comentário Bíblico San Jerônimo – Tomo III – Novo Testamento I. Madrid, Ediciones Cristiandad, 1972. p.68. 288 Mateus 4:1 A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. 289 Lucas 4:1-2 Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi guiado pelo mesmo Espírito, no deserto, 2 durante quarenta dias, sendo tentado pelo diabo. Nada comeu naqueles dias, ao fim dos quais teve fome.

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reino estiver dividido contra si mesmo, tal reino não pode subsistir; se uma casa

estiver dividida contra si mesma, tal casa não poderá subsistir. Se, pois, Satanás se

levantou contra si mesmo e está dividido, não pode subsistir, mas perece.

No episódio da tentação, “cada um dos lados (...) tem seus respectivos

‘cúmplices’ míticos. Jesus recebe ajuda dos anjos enquanto sobrevive no meio de

‘animais selvagens’.”290 Na concepção de Brown, “as afirmações de que Jesus foi

testado por Satanás (...) insinuam ao leitor, desde o princípio, que a proclamação que

Jesus faz do reino encontrará grandes obstáculos”.291

A seguir, analisaremos de forma esquemática os 4 relatos de exorcismo

descritos em Marcos, a fim de entendermos seu papel no conjunto estrutural do

Evangelho, para depois retornarmos em detalhes ao primeiro exorcismo.

2.1. Mc 1.21-28: Confronto Inaugural na Sinagoga de Cafarnaum:

A narrativa do endemoninhado da sinagoga tem por sujeito Jesus. “Seu

ensino”, segundo Taylor, “e o tom de autoridade, a auréola sobrenatural de sua

pessoa, sua reação ante o mal, a ordem eficaz e a culminação da expulsão são pontos

que chamam a atenção do leitor.”292 Marcos relata menos ensinamentos de Jesus que

Mateus e Lucas, porém, diferente destes relaciona de uma forma mais estreita “a

atividade docente de Jesus com sua auto-revelação”.293 Gnilka lembra que a

“mudança de lugar e de tempo – Cafarnaum, sábado, sinagoga – marca o começo da

perícope.”294

Myers chama a atenção para a importância da forma da narrativa como chave

para a compreensão de seu conteúdo. “Como fará muitas vezes, Marcos começa

construindo um ambiente: Jesus avança a passos largos sinagoga a dentro (eiselthon,

1.21). O episódio termina quando o cenário é “desfeito” com sua saída (exelthontes,

290 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.170. 291 BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. p. 207-208. 292 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 187. 293 BROWN, Comentário Bíblico San Jerônimo. p.71. 294 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 89.

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1.29)”.295 Para Myers essa construção de ambiente faz parte uma estratégia narrativa,

ou seja, o chamado “ambiente simbólico”, onde “em uma sentença Marcos

movimenta Jesus das margens simbólicas para o cerne da ordem social judaica

provincial: sinagoga (espaço sagrado) em um sábado (tempo sagrado)”.296

Embora seja interessante perceber a ‘sacralidade’ do espaço e do tempo

naquela circunstância, talvez concluir que se trata de estratégia narrativa de

reprodução simbólica do conflito social seja um fator limitador às possibilidades de

compreensão do texto. Todavia, Myers esclarece mais adiante que, para ele, “ação

simbólica não significa ação que foi meramente metafórica, destituída de cunho

concreto e de caráter histórico [...]” usa o termo para se referir a “ação cujo

significado fundamental, ou seja, poder, está relacionado com a ordem simbólica em

que ela ocorreu”.297

O verso 22298 menciona o ensino com autoridade (dida,skwn wj evxousi,an) de

Jesus e a reação que ele provoca nos ouvintes, mas não nos é dito o conteúdo do

ensino. Segundo Howard Kee, Marcos conta o início do ministério com “um

relatório esquematizado da autoridade que caracteriza o ensino de Jesus”.299

Os versos 23 a 28 contêm elementos essenciais de um relato clássico de

exorcismo, ou seja, a presença do demoníaco, intento de resistir, ordem de expulsão

dada pelo exorcista, saída do demônio e reação da multidão que assiste.300 Na

descrição da reação de reconhecimento dos que estavam presentes se faz referência

de novo ao ensino de Jesus, mas desta vez (v.27) o novo ensino (didach. kainh.) tem

relação com a atividade e a autoridade de expulsar espíritos imundos. “Marcos nota o

efeito temor-inspirador do ensino na audiência.”301 Desse modo, parece que na

intenção narrativa de Marcos a didach. kainh. de Jesus tem mais um caráter de 295 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 181. 296 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.181. 297 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 187. 298 Marcos 1:22 Maravilhavam-se da sua doutrina, porque os ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas. 299 KEE, Howard The Terminology of Mark’s Exorcism Stories. NTS, 14, 1968. p.242. 300 Veja: GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.89; MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 182; SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole... p.60-63; TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos. p. 190-192. 301 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. Grand Rapids: Eerdmans, 1993. p.73.

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poder que conteúdo, ou seja, é o ensino de Jesus contraposto ao poder do demônio.

Seu ensino, segundo Brown, “constituía uma forma daquela mesma autoridade que

demonstrava ao derrotar o império de Satanás”.302

As personagens dessa narrativa são: Jesus, o espírito imundo e aqueles que

estavam presentes na sinagoga. “O homem endemoninhado aparece em um segundo

plano, detrás do demônio que o domina”.303 Quanto aos discípulos de Jesus é feita

apenas uma alusão a eles como acompanhantes logo no início da perícope (v.21

“entraram em Cafarnaum”) e também no desfecho (v.29 “saindo eles”).

Howard Kee, em seu estudo sobre a terminologia usada nos relatos de

exorcismo em Marcos considera esse primeiro episódio paradigmático. Segundo ele,

“os detalhes apresentados em Mc 1.25-26 não se preocupam com as particularidades

da cura, mas com as manifestações da luta - spara,xan ... fwnh/| mega,lh| - que

acompanha o ato do exorcismo. A palavra do demônio torna claro que a luta não é

momentânea, mas é parte de um conflito mais amplo, do qual isso é apenas uma fase.

[...] Não havia a intenção, como era o caso dos contadores helênicos ambulantes de

narrativas, de glorificar quem realizava o ato. Ao contrário, às pessoas era dito que

identificassem seu exorcismo como evento escatológico, que servia para preparar a

criação de Deus para sua lei que estava para vir.”304

Para Myers, Kee não vê que, como ação simbólica, “esse exorcismo inaugural

começa a especificar a geografia política do contexto apocalíptico iniciado no deserto

(1.12s).”305 Para ele, “o exorcismo representa ato de confronto na guerra de mitos em

que Jesus afirma sua autoridade alternativa” e somente uma interpretação sócio-

simbólica “pode explicar por que o exorcismo está em jogo no contra-ataque dos

escribas dirigido a Jesus posteriormente em 3.22ss.”306 Embora Myers tenha razão

neste aspecto, não podemos desprezar a percepção de Kee quanto as poucas

referências à cura propriamente dita e o detalhamento na descrição da batalha que

evoca um confronto apocalíptico. Nada é dito a respeito do estado em que o homem

302 BROWN, Comentário Bíblico San Jerônimo. p.71. 303 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 89-90. 304 KEE, The Terminology of Mark’s Exorcism Stories. p. 243-244. 305 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 183. 306 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 183.

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ficou após a libertação – diz-se apenas que “saiu dele” (1:26 evxh/lqen evx auvtou/). No

entanto, antes de sair, “agita-o violentamente e brada em alta voz”.

Trabalhando sob a hipótese de que Marcos consiste em um texto que passou

por um processo de reelaboração, Gnilka afirma que esse relato de exorcismo

manifesta numerosos elementos semíticos formais. “toi'" savbbasin [tois sabbasin

- aos sábados] se baseia na transcrição do aramaico schabtha/savbbata.

Especialmente a justaposição de jIhsou' Nazarhnev [Iesou Nazarêne - Jesus

Nazareno] e oJ a{gio" tou' qeou' [hó hágios tou theou - o santo de Deus] depende do

som similar Jeschua Hanesri – nazri ha-elohim. Um colorido semita também tem

oi=da, se ti,j ei=( o` a[gioj tou/ qeou/ [oida se tís ei, hó hágios tou theou - sei quem é,

o santo de Deus] em lugar de oi'da su; ei' oJ a{gio" tou' qeou' [oida sy ei hó hágios

tou theou - sei que tu és o santo de Deus], fwnh/| mega,lh| [phône megále - grande

voz] em vez de um advérbio, a[nqrwpo" ejn pneuvmati [ânthopos em pneumati -

homem com um espírito]. Tudo isto fala em favor da hipótese de que o documento

anterior nasceu em solo palestino.”307

Não há dúvidas que se trata de um relato importante que, por ser o primeiro

enfrentamento descrito no Evangelho de Marcos, oferece detalhes acerca da tradição

histórica de Jesus, sua missão e sua atividade exorcista.

2.2. Mc 5.1-20: Confronto em Gerasa

Fazendo uma análise discursiva (que olha para o texto como um discurso e

analisa a posição e a intenção do narrador) desse relato de exorcismo, Schiavo

considera que “o narrador conta a história a partir da própria perspectiva, mas

também a partir dos olhos dos personagens.”308 Segundo ele, há a inserção de alguns

diálogos diretos e vários comentários que auxiliam na compreensão do

acontecimento. “Ele procura ficar neutro, mas não consegue evitar se deixar envolver

307 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.90-91. 308 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole... p.49.

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emotivamente pela dramaticidade da história. [...] parece que ele queria tocar o

coração do leitor contando em detalhes realísticos o sofrimento do homem”.309

Nesse caso, o relato se distingue do primeiro (1.21-28), onde não há uma

preocupação em relatar o estado do homem, mas a manifestação do espírito imundo.

Em Cafarnaum, a sinagoga, o sábado, a comparação entre o ensino de Jesus e dos

escribas, a dramaticidade da saída do espírito imundo e a constatação eufórica da

multidão roubam a cena. Mas na terra dos gerasenos, a descrição minuciosa do

estado em que se encontrava aquele homem chama a atenção, “os elementos

coloridos e imaginativos são mais fortes”.310

O texto possui uma riqueza de detalhes como se pode notar abaixo:

“Entrementes, chegaram à outra margem do mar, à terra dos gerasenos. 2 Ao

desembarcar, logo veio dos sepulcros, ao seu encontro, um homem possesso de

espírito imundo, 3 o qual vivia nos sepulcros, e nem mesmo com cadeias alguém

podia prendê-lo; 4 porque, tendo sido muitas vezes preso com grilhões e cadeias, as

cadeias foram quebradas por ele, e os grilhões, despedaçados. E ninguém podia

subjugá-lo. 5 Andava sempre, de noite e de dia, clamando por entre os sepulcros e

pelos montes, ferindo-se com pedras. 6 Quando, de longe, viu Jesus, correu e o

adorou, 7 exclamando com alta voz: Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus

Altíssimo? Conjuro-te por Deus que não me atormentes! 8 Porque Jesus lhe dissera:

Espírito imundo, sai desse homem! 9 E perguntou-lhe: Qual é o teu nome?

Respondeu ele: Legião é o meu nome, porque somos muitos. 10 E rogou-lhe

encarecidamente que os não mandasse para fora do país. 11 Ora, pastava ali pelo

monte uma grande manada de porcos. 12 E os espíritos imundos rogaram a Jesus,

dizendo: Manda-nos para os porcos, para que entremos neles. 13 Jesus o permitiu.

Então, saindo os espíritos imundos, entraram nos porcos; e a manada, que era cerca

de dois mil, precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do mar, onde se

afogaram. 14 Os porqueiros fugiram e o anunciaram na cidade e pelos campos.

Então, saiu o povo para ver o que sucedera. 15 Indo ter com Jesus, viram o

endemoninhado, o que tivera a legião, assentado, vestido, em perfeito juízo; e

temeram. 16 Os que haviam presenciado os fatos contaram-lhes o que acontecera ao

309 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole... p.49. 310 BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. p. 214.

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endemoninhado e acerca dos porcos. 17 E entraram a rogar-lhe que se retirasse da

terra deles. 18 Ao entrar Jesus no barco, suplicava-lhe o que fora endemoninhado

que o deixasse estar com ele. 19 Jesus, porém, não lho permitiu, mas ordenou-lhe:

Vai para tua casa, para os teus. Anuncia-lhes tudo o que o Senhor te fez e como teve

compaixão de ti. 20 Então, ele foi e começou a proclamar em Decápolis tudo o que

Jesus lhe fizera; e todos se admiravam.”

Esta narrativa, que contém paralelos em Mateus 8.28-34 e Lucas 8.26-39,

pertence à categoria dos relatos de milagre311, mas dado o seu caráter dramático,

quebra características do gênero, contendo pormenores detalhados acerca do

“encontro com o possesso, sua periculosidade, seu receio ante o exorcista, o

exorcismo (propriamente dito), a prova de que os demônios saíram e a impressão que

o episódio causou nos que ali assistiam”.312 Brown chama a atenção para “a extensa

descrição da violência do homem; a necessidade que os demônios têm de lugar pra

ficar, levando-os a transferir-se para os porcos e o retrato detalhado do homem

curado”.313

Gnilka admite a possibilidade desse “detalhamento” ser “produto de um

estágio que está próximo à narração oral”314, não sendo necessário supor que trata-se

de uma elaboração e ampliação. Taylor, discutindo a leitura redacional de Bultmann,

assevera que o “relato não adquiriu a forma típica dos relatos de milagre que passou

por toda uma sucessão de narradores, senão que se aproxima consideravelmente às

recordações de uma testemunha ocular”.315

Aparentemente o relato está distribuído em 4 cenas:

1ª cena: v.1-10 – o interesse está centralizado no endemoninhado (sua

condição, sua miséria, sua fúria, sua reação diante de Jesus);

2ª cena: v.11-12 – a narração passa focalizar a manada de porcos;

3ª cena: v. 14-17 – se concentra nas pessoas do lugar;

4ª cena: v. 18-20 – volta novamente ao que dantes estava endemoninhado.

311 Veja: GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.232. 312 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.318. 313 BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. p.214. 314 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 233. 315 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.318.

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Taylor diz que “estamos ante um pequeno drama em quatro atos, de forma

rudimentar”.316 No entanto, ele não acredita que o evangelista tenha se servido de

sua imaginação para criar uma narração artística, pois “a multidão de detalhes

espontâneos da narração [...] estão tomados de realidade”.317 Fazendo uma citação

de Weiss, Taylor conclui: “Sempre nos vêm à mente a idéia mais natural, a saber,

que aqui se nos refere a tradição de um episódio que na realidade sucedeu.”318

Mas, evitando negar que a opressão política dos romanos sobre a Palestina e

arredores pudesse gerar doença mental, Myers diz que “a interpretação socioliterária

lê o exorcismo de maneira mais ampla como ação simbólica pública”.319 Segundo

ele, “o endemoninhado representa ansiedade coletiva em face do imperialismo

romano”320 e o evangelista usa frases que impregnam significado político,

identificando Jesus neste exorcismo com “os exércitos de César”.321 Assim, para

Myers, “na estratégia narrativa de Marcos, os exorcismos da sinagoga e do geraseno

representam o desafio inaugural de Jesus aos poderes”.322

A cena descrita chega a ser chocante. O homem é “duplamente maldito e

imundo, pois está possesso por um espírito imundo e habita nos sepulcros”.323

Gundry nota que Marcos relaciona a descrição do homem saindo dentre os sepulcros

“com a impureza ritual de tumbas da mesma maneira que ligará depois com a

impureza ritual de porcos (v.11-13). Mas ambos os acoplamentos refletem o

ambiente judeu subjacente no qual a história foi contada originalmente, não os

interesses de Marcos ou da audiência principalmente gentia dele que comia comidas

em necrópoles e considerava porcos ritualmente limpos à extensão de os oferecer em

sacrifício como também come-los.”324

316 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.318. 317 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.318-319. Taylor acredita na origem petrina da narração. Veja também: CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p. 175. 318 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.318. 319 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 240. 320 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 240. 321 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 240. 322 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 241. 323 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 236. 324 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.248.

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O endemoninhado possui todas as características de alguém que é portador de

problemas mentais. Segundo o Talmud, uma pessoa mentalmente perturbada possuía

os seguintes traços: fica vagueando durante a noite; passa a noite nos sepulcros; rasga

suas vestes e destrói o que se lhe dá.325 Até aquele momento, nada era capaz de deter

aquele homem, embora em repetidas ocasiões o tivessem prendido com cadeias e

grilhões.

Segundo Gnilka, a fala do endemoninhado “está relacionado com a estrutura e

até com o vocabulário utilizado em 1.23s.” Porém, aqui ele designa Jesus como

“Filho do Deus Altíssimo” (diferente de 1.24 “Santo de Deus”). “A menção do nome

poderia dar a impressão de que o demônio pretende adquirir poder sobre Jesus. Na

antiga literatura mitológica, raríssima vez o demônio menciona o nome do

exorcista.”326 Segundo Gundry, “Marcos deseja mostrar o reconhecimento do

espírito de poder superior na pessoa de Jesus.”327 Quanto à expressão “Filho do Deus

Altíssimo”, Gnilka observa que é raramente usada no Novo Testamento,

aproximando-se das designações divinas “Deus do céu” e “Senhor do céu” e “se

refere a um nome divino que tem sua pré-história na confrontação do judaísmo com

o helenismo”.328 O adjetivo uyi,stou (hypsístou - Altíssimo = ao equivalente

hebraico ‘eliôn) é uma “típica designação gentílica aplicada ao Deus de Israel (cf. Dn

3.26; 4.2)”.329

O nome “Legião” – legiw.n (v.9) não aparece em nenhuma outra parte e é

atribuído ao espírito imundo que possuía o homem. Os indícios são de uma relação

com a pluralidade330. O episódio seguinte assegura a pluralidade dos espíritos

imundos: “Então, saindo os espíritos imundos, entraram nos porcos; e a manada,

que era cerca de dois mil, precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do mar,

onde se afogaram.” (v.13)

325 Veja: GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 236. 326 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 237. 327 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.249. 328 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 237. 329 BROWN, Comentário Bíblico San Jerônimo. p.88. 330 Veja: TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 324; GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 238.

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Acerca da expressão legiw.n (legião), Myers considera que esse “latinismo” só

“possuía sentido no mundo social de Marcos: uma divisão de soldados romanos”.331

A partir desse indício, é possível constatar nos versos de 9 à 13, como já feito por

Luigi Schiavo (também Myers) um vocabulário militar.332 Pode se tratar, segundo

Schiavo, de “perseguição, ocupação militar ou de guerra”.333 Assim, o que então

parece ocorrer é uma inversão de identidades, pois o perseguidor, aquele que oprime

(legião), agora é banido e precipitado ao mar pelo oprimido. Isso acaba por constituir

um “desencontro simbólico”.

A técnica exorcista de Jesus neste caso parece uma tentativa de ludibriar os

demônios, ou seja, o pedido da legiw.n de ir para os porcos é atendido (v.10, 12),

mas os porcos se precipitam no mar e morrem afogados. Porém, isso pode se abrir

para coisas mais simbólicas, visto que há uma distância não muito pequena do local

onde estão até o mar. Desse modo, precipitar no mar pode significar “voltar pra

casa”, visto que o mar era imaginado como morada de serpentes, monstros e dragões,

o lugar do Leviatã (cf. Jó 41.1; Sl 74.13-14; 104.26; Is 27.1).

O sucesso do exorcismo provoca reações variadas. Os criadores de porcos

(v.14) são testemunhas diretas. “Somente neste momento eles adquirem importância

para o narrador”.334 Sua reação é de fuga e de serem os delatores do que aconteceu

às pessoas das cidades e dos campos. “Os mais afetados são os proprietários dos

porcos, mas fica afetado também todo o lugar em cuja circunscrição aconteceu esse

sucesso”.335

A reação dos habitantes da cidade (v.15), após ouvirem o “relato das

testemunhas que presenciaram [...] que incluía também a sorte da manada de

porcos”336, consistiu em solicitar a Jesus que abandonasse seu território. Para Gnilka

“este exorcista agora consiste num intranquilizante para eles.”337 Jesus parecia ser

331 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. p. 238. 332 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole... p.83. Também MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. p. 241. 333 SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole... p.83. 334 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 239. 335 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 239. 336 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 239-240. 337 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 240.

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para eles um mago perigoso. Vincent Taylor diz que os habitantes daquela terra

“ainda que ficaram impressionados ao ver o possesso curado, quando ouviram o que

havia passado com os porcos, se convenceram de que Jesus constituía um perigo

público, pelo que pedem que se vá”.338

A reação do homem liberto (v.18) se destaca positivamente pela sua intenção

de seguir Jesus. Esse pedido poderia transparecer um temor de que “a população não

estivesse em condições de lhe permitir integrar-se na sociedade”339. Embora o pedido

não seja aceito, todavia, é substituído por uma tarefa: ele teria que ir aos seus, à sua

casa. Gnilka diz que a “despedida do curado forma parte do estilo de relatos de

milagre”.340 No entanto, a ordem de ir aos seus e “anunciar” não implica

necessariamente na tarefa de pregar. O verbo avpa,ggeilon (apangeilon - v.19) – que

é um termo típico da linguagem missionária cristã (cf. Atos 15.27; 26.20), já fora

utilizado no v. 14 (avph,ggeilan) para a notícia dos criadores de porcos, num sentido

completamente neutro.341 Talvez a melhor forma de ver essa questão seja

compreender que o relato de Marcos encerra com a “aceitação social do homem que

havia sido libertado de uma situação terrível.”342

2.3. Mc 7.24-30: Confronto na Região de Tiro

Essa narrativa está localizada entre duas ocorrências importantes. Na

cronologia da narrativa, ela é antecedida pelo ataque de Marcos ao código de pureza

mantido pela halakah – a tradição oral farisaica343 e o apelo a korban (7.1-23)

338 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 327. 339 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 240. 340 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 240. (Comentário em nota de rodapé nº 363) 341 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 327 e GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 240. 342 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.240. 343 Para KEE, Howard Clark, “em uma passagem que mostra que a base da comunidade em Marcos entrou em contato com um ambiente judeu - conseqüentemente pureza ritual é um assunto importante - e que as leis de purificação servem a comunidade marcana como um ponto de partida numa compreensão de pureza como uma qualidade exclusivamente moral, temos evidência de que não é esperado daqueles a quem Marcos se dirige que tenham um detalhado conhecimento das Leis sobre o

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fazendo repetidas vezes antítese entre a Escritura e a tradição oral (cf. 7.8; 7.9; 7.10).

Imediatamente após a descrição da libertação da filha da mulher siro-fenícia (7.24-

30), está a descrição de uma cura na região da Decápolis de um homem cuja

deficiência estava na fala e na audição (7.31-37).

Para Myers estes episódios, entre tantos outros, são “arquetípicos” e “ampliam

e aprofundam o escopo da abrangência social do reino, que foi primeiramente

apresentada pelo convívio de Jesus com cobradores de impostos e pecadores em

2.14s.”344

Com relação ao paralelo de Mateus 15.21-28, o texto possui suas distinções,

faltando alguns detalhes acrescidos por Mateus, todavia preservando outros detalhes

não mencionados no relato de Mateus, como se observa abaixo:

Marcos 7.24-30 Mateus 15.21-28 24Levantando-se, partiu dali para as terras

de Tiro e Sidom. Tendo entrado numa casa,

queria que ninguém o soubesse; no entanto,

não pôde ocultar-se,

21Partindo Jesus dali, retirou-se para os

lados de Tiro e Sidom.

25 porque uma mulher, cuja filhinha estava

possessa de espírito imundo, tendo ouvido a

respeito dele, veio e prostrou-se-lhe aos pés. 26 Esta mulher era grega, de origem siro-

fenícia, e rogava-lhe que expelisse de sua

filha o demônio.

22 E eis que uma mulher cananéia, que viera

daquelas regiões, clamava: Senhor, Filho de

Davi, tem compaixão de mim! Minha filha

está horrivelmente endemoninhada.

23 Ele, porém, não lhe respondeu palavra. E

os seus discípulos, aproximando-se,

rogaram-lhe: Despede-a, pois vem clamando

atrás de nós. 24 Mas Jesus respondeu: Não

fui enviado senão às ovelhas perdidas da

casa de Israel. 25 Ela, porém, veio e o

adorou, dizendo: Senhor, socorre-me!

que é puro e o que é impuro (7.3) e que eles não fazem nenhuma tentativa para observa-las”. (cf. Community Of The New Age: Studies in Mark’s Gospel, p. 148) 344 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 245.

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27 Mas Jesus lhe disse: Deixa primeiro que

se fartem os filhos, porque não é bom tomar

o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos.

26 Então, ele, respondendo, disse: Não é bom

tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos

cachorrinhos. 28 Ela, porém, lhe respondeu: Sim, Senhor;

mas os cachorrinhos, debaixo da mesa,

comem das migalhas das crianças.

27 Ela, contudo, replicou: Sim, Senhor, porém

os cachorrinhos comem das migalhas que

caem da mesa dos seus donos. 29 Então, lhe disse: Por causa desta palavra,

podes ir; o demônio já saiu de tua filha. 30

Voltando ela para casa, achou a menina

sobre a cama, pois o demônio a deixara.”

28 Então, lhe disse Jesus: Ó mulher, grande é

a tua fé! Faça-se contigo como queres. E,

desde aquele momento, sua filha ficou sã.”

Gnilka compreende que neste relato o milagre está subordinado ao diálogo. “O

milagre se encontra a serviço do diálogo e este não pode existir independentemente

do relato que o enquadra.”345 Segundo Taylor, “o principal interesse na narrativa está

centrada na atitude de Jesus ante os gentios [...] com detalhes que revelam seu caráter

primitivo, como por exemplo, a localização do episódio, a busca inútil (de Jesus) de

solidão, a resposta engenhosa da mulher, o agrado que tal resposta causou em Jesus,

a breve referência a cura [...].”346 Para Brown, “é difícil explicar a conexão deste

diálogo com o milagre, pois as palavras de Jesus se aplicariam melhor ao seu ensino

que a uma cura (cf. Mt 7.6)”.347

A narrativa começa em 7.24 com a retirada de Jesus para as regiões de Tiro, na

costa fenícia. Isso reflete a “intenção de Jesus de passar despercebido, objetivo que

não consegue”.348 Sua fama se havia difundido para além da Galiléia e a gente que

vivia na região fronteiriça entre as duas regiões já ouvira falar dele.349 Marcos

registra que ele não queria que ninguém soubesse que estava ali (v.24b). “O

propósito da viagem não é registrado. [...] Parece que Jesus queria privacidade”350,

conclui Cranfield. Taylor concorda que “a finalidade desta viagem não era

345 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 337. 346 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 408. 347 BROWN, Comentário Bíblico San Jerônimo. p.101. Mateus 7.6 diz: “Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem.” 348 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.337. 349 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 411. 350 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p. 246.

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missionária, pois nem se menciona os discípulos e nem há indicação de que Jesus

estivesse fugindo para libertar-se das ameaças de Herodes Antipas.”351

Para Myers, a frase “ele entrou em uma casa e não queria que ninguém

soubesse” (7.24) sugere que “a intenção dessa pequena viagem ao longo da parte

síria era a de se afastar para reflexão.”352 Todavia, há estranheza nessa idéia: por que

Jesus se retiraria para as regiões de Tiro e ainda entraria na casa de alguém em uma

cidade para refletir? Parece ser mais comum nas narrativas evangélicas perceber o

deserto ou os montes ermos, como “espaços de reflexão”353 para Jesus, do que

cidades e povoados (que normalmente eram “espaços de ação”). Portanto, se é

possível indicar que a viagem não contemplava propósitos missionários, tão pouco

optar pela intenção de um tempo para reflexão será uma melhor opção.

A hostilidade das autoridades judaicas descrita em 7.1-23 agora é contrastada

nitidamente com a fé da mulher siro-fenícia em 7.24-30. Brown alega que

“dificilmente é por acaso que Marcos coloca em seqüência uma controvérsia sobre

comida e a surpreendente fé de uma pagã que vai espontaneamente até Jesus: esses

eram os assuntos mais graves que dividiam os primeiros cristãos”.354

Gnilka considera que aqui “o evangelista não intenta manifestar que Jesus

transgride as prescrições judaicas de pureza porque a casa era pagã, senão que sua

intenção corre paralela ao segredo messiânico e afeta a idéia de revelação.”355 O fato

é que uma mulher invade essa casa e se joga aos pés de Jesus pedindo para exorcizar

sua filha (v.25). “Marcos acrescenta, como que para dar realce, que a mulher é grega,

siro-fenícia, em outras palavras, gentia.”356 Cranfield, analisando a expressão

~Ellhni,j (v.26), afirma que “ela não era grega por nacionalidade, como as palavras

seguintes mostram. Então, a palavra tem que significar ou fala e cultura gregas ou

351 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 411. 352 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 252. 353 Oberve, por exemplo: Mc 1.35; 3.13; 6.46; 9.2; 14.32 354 BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. p.218. 355 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 339. 356 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 252.

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então gentia, pagã”.357 Marcos, pois, como observa a maioria dos intérpretes,

“descreve a mulher por sua religião e por sua nacionalidade”.358

O favor que a mulher pede tem como alvo sua filha que “estava possessa de

espírito imundo” (7.25). A resposta de Jesus “deixa que primeiro saciem os filhos”

(v.27), infunde um tom de severidade à narrativa e, “não é igualitária, uma vez que

coloca os judeus em primeiro lugar (filhos) e refere-se aos gentios como cães”.359 A

expectativa era que Jesus a acompanhasse até sua casa onde se encontrava sua

filhinha enferma, mas o que acontece a seguir é o desentrave de um diálogo onde, a

princípio, a solicitação da mulher é rechaçada. “A recusa de Jesus é, pois, não só

compreensível, mas até esperada; e, de fato, ele parece bem duramente repelir suas

solicitações defendendo a honra coletiva dos judeus.”360 A fala de Jesus projeta uma

“imagem que nos conduz à mesa comum na qual se come e onde os filhos estão

reunidos”.361

A réplica da mulher é indiscutivelmente inteligente e surpreendente: “Sim,

Senhor; mas os cachorrinhos, debaixo da mesa, comem das migalhas das crianças”

(v.28). Gnilka realça que “somente na boca dela põe Marcos o tratamento de Senhor

dirigido a Jesus”362. Segundo ele, por causa deste título há um certo caráter de

confissão nas palavras da siro-fenícia. Para Taylor, esse vocativo Ku,rie, que o

evangelista “põe muito acertadamente na boca da mulher, aparece somente nesta

passagem do Evangelho, a não ser que também a leiamos em 1.40 e 10.51”.363

Myers diz que Jesus “concede o que ela pede, não por causa da sua fé, e sim

por causa de seu argumento”.364 Todavia, Gnilka acredita que Jesus “reconhece a fé

que fora expressada nesta contestação, apesar de não fazer menção à ela”365,

357 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p. 247. Veja também: TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.412. 358 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 412. 359 BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. p.218. 360 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 252. 361 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 341. 362 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 341. 363 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 413. 364 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 253. 365 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 342.

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lembrando que o texto paralelo de Mt 15.28366 acrescenta: “Ó mulher, grande é a tua

fé!” Taylor assegura que “a mulher não nega a verdade das palavras de Jesus, mas as

completa”.367 De qualquer modo, Jesus se deixa vencer pela mulher, o que – como

bem disse Myers – é uma “impressionante reviravolta de acontecimentos, decorrente

do poderoso domínio verbal de Jesus sobre seus adversários no Evangelho”.368

Ao contrário do que se esperava, Jesus não acompanha a mulher até sua casa,

mas pede que ela se vá assegurando que sua filha fora liberta do mal que a possuía.

Não há testemunhas do milagre, apenas a constatação da mãe. Taylor diz que

“Marcos tem por costume narrar como Jesus realiza as curas tocando os enfermos

(1.31s.; 3.10; 5.41; 6.5, 56; etc.) ou mediante sua palavra eficaz (1.25;5.8; 9.25).369

Neste caso, Jesus exorciza à distância e não podemos deixar de notar que o próximo

milagre descrito, o do surdo-gago (Mc 7.31-37), descreve um incomum e

aparentemente mágico contato de Jesus com a pessoa alvo da cura. “Ele até coloca

sua saliva na língua do mudo e usa a fórmula aramaica transcrita Effatha”.370

Gnilka lembra que somente neste relato de milagre Marcos utiliza o termo

kli,nhn (v.30), cama elegante (nos outros lugares fala de kravbato"). “Talvez queira

indicar com este termo a posição economicamente ajustada daquela mulher”.371 No

entanto, o uso pode ser acidental e por apenas uma palavra (e um móvel da casa) não

se deve concluir o status de uma pessoa. Ademais, o termo é usado em 4.21 no

sentido de cama comum de uma residência: Vem, porventura, a candeia para ser

posta debaixo do alqueire ou da cama (kli,nhn - klínen)? Mateus usa kli,nh para

designar a maca de um paralítico em 9.2 e 6, Lucas faz o mesmo em 5.18: kai. ivdou.

a;ndrej fe,rontej evpi. kli,nhj a;nqrwpon o]j h=n paralelume,noj (kai idou andrés

phérontes epí klínes ânthropon hós ên paralelyménos - e vieram uns homens

carregando sobre um leito um homem, o qual estava paralítico). Em Apocalipse 2.22,

na carta à Igreja em Tiatira, a ameaça contra Jezabel consistia em fazê-la prostrar-se

“de cama” (kli,nhn), usada nesse caso como sinônimo de ficar doente.

366 Lembrando que há paralelo deste relato somente em Mateus 15.21-28. Lucas não registra esse episódio. 367 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 413. 368 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 253. 369 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 409. 370 BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. p.218. 371 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 342.

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Do ponto de vista narrativo, surpreende no relato a mudança de terminologia:

filha/filhinha – quga,trion /qugatro.j (7.25, 26, 29) muda para menina – paidi,on

(v.30); espírito imundo – pneu/ma avka,qarton (7.25) muda para demônio –

daimo,nion (7.26, 29, 30). Talvez haja um jogo de palavras no verso 27:

labei/n/balei/n – tomar/lançar.372

2.4. Mc 9.14-29: Confronto na descida do Monte da Transfiguração

Este episódio, marcado por uma riqueza de detalhes que lembra o relato de

5.1-20 (o possesso geraseno) e evoca a “luta pela fé”373 e a relação de um pai com

seu filho enfermo à semelhança de 5.21-43 (Jairo e sua filha), encontra-se na

estrutura narrativa de Marcos após a experiência da Transfiguração (Mc 9.1-13)

vivida por Jesus e presenciada por Pedro, Tiago e João (cf. 9.2). O evento, cujo local

é incerto, embora presumivelmente nos arredores da Galiléia ou mesmo na própria

Galiléia (9.30), possui paralelos sumarizados em Mateus 17.14-21 e Lucas 9.37-42 e

está descrito em Marcos nos seguintes termos: 14 Quando eles se aproximaram dos discípulos, viram numerosa multidão ao

redor e que os escribas discutiam com eles. 15 E logo toda a multidão, ao ver Jesus,

tomada de surpresa, correu para ele e o saudava. 16 Então, ele interpelou os

escribas: Que é que discutíeis com eles? 17 E um, dentre a multidão, respondeu:

Mestre, trouxe-te o meu filho, possesso de um espírito mudo; 18 e este, onde quer

que o apanha, lança-o por terra, e ele espuma, rilha os dentes e vai definhando.

Roguei a teus discípulos que o expelissem, e eles não puderam. 19 Então, Jesus lhes

disse: Ó geração incrédula, até quando estarei convosco? Até quando vos sofrerei?

Trazei-mo. 20 E trouxeram-lho; quando ele viu a Jesus, o espírito imediatamente o

agitou com violência, e, caindo ele por terra, revolvia-se espumando. 21 Perguntou

Jesus ao pai do menino: Há quanto tempo isto lhe sucede? Desde a infância,

respondeu; 22 e muitas vezes o tem lançado no fogo e na água, para o matar; mas, 372 Veja: GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 339. 373 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 309.

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se tu podes alguma coisa, tem compaixão de nós e ajuda-nos. 23 Ao que lhe

respondeu Jesus: Se podes! Tudo é possível ao que crê. 24 E imediatamente o pai do

menino exclamou com lágrimas: Eu creio! Ajuda-me na minha falta de fé! 25 Vendo

Jesus que a multidão concorria, repreendeu o espírito imundo, dizendo-lhe: Espírito

mudo e surdo, eu te ordeno: Sai deste jovem e nunca mais tornes a ele. 26 E ele,

clamando e agitando-o muito, saiu, deixando-o como se estivesse morto, a ponto de

muitos dizerem: Morreu. 27 Mas Jesus, tomando-o pela mão, o ergueu, e ele se

levantou. 28 Quando entrou em casa, os seus discípulos lhe perguntaram em

particular: Por que não pudemos nós expulsá-lo? 29 Respondeu-lhes: Esta casta não

pode sair senão por meio de oração e jejum.

Na redação de Marcos, a semelhança de Mateus, o encontro de Jesus com a

multidão que assistia uma discussão entre os escribas e seus discípulos é subseqüente

à “transfiguração”. Esta aproximação da experiência da transfiguração com o relato

de 9.14-29 difere da perspectiva de Lucas, pois para este, o episódio teve lugar no dia

seguinte (Lc 9.37).

Myers considera o assunto da impotência dos discípulos como a “estrutura

central” do trecho que deve nos auxiliar na interpretação do exorcismo.374 Gnilka

sugere que “a incapacidade para curar é a causa da disputa e oferece aos adversários

a oportunidade para reprovar os discípulos”375. Myers diz que o “ponto focal não se

situa na cura milagrosa do menino, pois não há relato de admiração ou espanto algum

depois de 9.27; ao contrário, o interesse está em saber: “Por que não podemos

expulsa-lo?” (9.28)”376.

De fato, a idéia de eficiência aparentemente permeia toda a passagem. No

verso 18, segundo a explicação do pai do menino, foi solicitado a eles que

expulsassem o demônio, mas “estes foram incapazes de fazê-lo”377. A expressão ouvk

i;scusan significa literalmente que “não tiveram forças”, “não foram capazes”. “Os

374 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.309. 375 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos –Mc 8.27-16-20 (vol II). Salamanca: Ediciones Sigueme, 1986, p.53. 376 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 309-310. 377 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 474.

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discípulos haviam tentado e falhado”378. Para Gnilka, “surpreende a freqüente

aparição de duvnasqai(dynasthai - 4 vezes). Isso indica que se debate a capacidade

de fazer milagres”379.

Myers ainda considera que, “secundariamente, o episódio é estruturado em

torno da dialética de fé e dúvida/falta de fé”380. Assim, pontua as seguintes falas do

texto:

1. Pedi aos teus discípulos que o expulsassem e eles não conseguiram.

2. Ó geração incrédula, até quando terei de continuar convosco?

3. Se podes fazer alguma coisa, ajuda-nos e tem compaixão de nós.

4. Se eu posso! Tudo é possível para aquele que crê.

5. Eu creio! Ajuda-me na minha incredulidade!

“A questão relacionada à razão pela qual os discípulos não puderam expulsar o

demônio enfurece Jesus: é uma geração incrédula (9.19).”381 O pedido do pai contém

uma carência de fé implícita: “Se tu podes” (9.23). “Este discurso revela o problema

central do episódio: a luta pela crença, pela fé”382. Cranfield considera que na

passagem “o interesse principal estava no fracasso dos discípulos devido à sua

negligência na oração”383. O diálogo do verso 23 em diante cria, “junto ao

dramatismo do acontecimento da cura, outro clímax novo e superior: o da luta pela

fé”384.

Marcos afirma que o filho tinha um espírito mudo (9.17), descrevendo os

sintomas de sua enfermidade “empregando quatro verbos de forma pessoal”385.

“Enquanto nos relatos de exorcismo o demônio se apresenta por sua própria

iniciativa a Jesus, aqui outra pessoa pede pelo enfermo”386 Quando o espírito se

apodera (katala,bh| - katalábe) dele, relata Marcos, o derruba (rh,ssei - rêssei), e o

378 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p. 301. 379 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol II) p. 52. 380 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 309. 381 BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. p.221. 382 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p. 309. 383 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p.299. 384 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol II) p. 57. 385 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 473. 386 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol II) p. 53.

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faz espumar pela boca (avfri,zei - aphrízei), rilhar os dentes (tri,zei - trízei) e

consumir-se (xhrai,netai - ksêrainetai) ou ficar completamente exausto.387

Para Gnilka, nas palavras de Jesus do verso 19 “a contraposição da geração

incrédula não é Jesus crente, senão o Filho de Deus, que já não permanecerá por

muito tempo nesta terra (cf. 9.7)”388.

Quando o menino é trazido à presença de Jesus, os sintomas anteriormente

descritos são vistos pelos presentes, pois o espírito imediatamente o agitou com

violência (9.20 - to. pneu/ma euvqu.j sunespa,raxen auvto,n – to pneuma eythys

synespáraksen). “Jesus pergunta desde quando se passava isso ao menino”389.

Conforme Gnilka, a “pergunta de Jesus acerca de quanto tempo dura a enfermidade

pretende acentuar a gravidade da situação do enfermo”390. Uma enfermidade que

dura desde a infância demonstra a extensão do sofrimento do “pai intercessor”.

O relato torna-se prolongado não em função do exorcismo em si, mas devido a

descrição detalhada e repetitiva das condições do endemoninhado e do diálogo entre

Jesus e o pai do menino acerca da fé necessária para aquele momento (cf. 9.17-24).

O verso 25 contém a descrição do exorcismo, onde pela primeira vez no relato

o “espírito mau” que possuía o garoto é chamado espírito imundo (tw/| pneu,mati tw/|

avkaqa,rtw|)391. O verso 26 relata a fúria com que o espírito deixa o menino:

clamando e agitando-o muito, saiu, deixando-o como se estivesse morto, a ponto de

muitos dizerem: Morreu. A brusca retirada do espírito imundo remonta ao primeiro

relato do possesso na sinagoga em Cafarnaum que semelhantemente agitando-o

violentamente e bradando em alta voz, saiu dele (1.26). No verso 27 “Jesus, que lhe

dá a mão e o põe de pé, aparece afinal como um vencedor sobre os mortos

387 Veja: TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 473 e GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol II) p. 53. 388 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol II) p. 54. 389 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 475. 390 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol II) p. 54. 391 Cf. Marcos 9:17 pneu/ma a;lalon; Marcos 9:20 pneu/ma e Marcos 9:25 To. a;lalon kai. kwfo.n pneu/ma.

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(h;geiren... avne,sth - êgeiren...anéstê)”392. Taylor nota que “não se descreve a

impressão que o episódio produz nos circunstantes”393.

O relato termina com uma conversa entre os discípulos e Jesus no interior de

uma casa. No lugar de uma confirmação, vem, numa espécie de “apêndice”394, um

doutrinamento especial aos discípulos. “Este liga com a incapacidade dos discípulos

para ajudar o menino”395. A resposta de Jesus aos discípulos faz com que a narrativa

encerre com o foco voltado para os discípulos. Para Gnilka, “o problema que se

apresenta aqui não é o de Marcos, mas sim de uma comunidade que, no exercício de

sua atividade exorcista, chega a experimentar os limites de sua capacidade e se sente

desconsertada”.396

A réplica de Jesus repousa sobre o fato de que “esta espécie só pode se

expulsar com oração”.397 A imensa maioria dos manuscritos acrescenta à oração o

jejum. “Não obstante, há que considerar o texto ‘só com a oração’ como original,

porque um acréscimo de jejum é mais plausível que sua supressão”.398 O leitor de

Marcos fica com uma sensação de mistério diante das últimas palavras de Jesus.

Faltava aos discípulos uma vida de oração ou somente um tipo de oração poderia ser

eficiente naquela circunstância? Essa performance exorcista de Jesus pode ser

relacionada com o relato da sinagoga em Cafarnaum, pois lá os presentes ficam

surpresos: Todos se admiraram, a ponto de perguntarem entre si: Que vem a ser

isto? Uma nova doutrina! Com autoridade ele ordena aos espíritos imundos, e eles

lhe obedecem! (1.27)

Nos versos posteriores a esse relato, encontramos um fato que chama a

atenção. João diz a Jesus que encontrou um exorcista que não era do grupo dos

discípulos, mas que expulsava demônios em nome de Jesus (9.38). Segundo Marcos,

João teria dito a Jesus que fora intolerante com o exorcista e o proibiu de continuar

392 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol II) p.56. 393 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.477. 394 Taylor define os versos 28 e 29 como apêndices. Veja TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 477. 395 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol II) p.56. 396Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol II), p.56. 397 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.477. 398 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol II) p.56-57.

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sua atividade exorcista (9.28b). Todavia, a tolerância de Jesus se vê em suas

palavras: Não lho proibais; porque ninguém há que faça milagre em meu nome e,

logo a seguir, possa falar mal de mim. Pois quem não é contra nós é por nós (9.39-

40). Mais que mera tolerância, Jesus demonstra interesse pela continuidade da

atividade exorcista e por isso é incisivo: Não lho proibais (9:39 Mh. kwlu,ete auvto,n

- me kôlyete autón).

A questão é que os efeitos do nome de Jesus no exorcismo, até mesmo quando

usado através de um exorcista independente, realça o poder de Jesus. Para Gundry,

“Marcos podia pretender usar um pouco de ironia para com os doze dizendo para o

exorcista independente que deixasse de fazer isso que eles tentaram recentemente e

não conseguido”. 399

2.5. Considerações Finais

Por esta rápida análise panorâmica que fizemos no Evangelho de Marcos,

percebemos que há farto material que, submetido a cuidadosa investigação, confere

riqueza à compreensão do demoníaco no texto canônico.

Apresento abaixo um quadro comparativo de vários detalhes dos relatos de

exorcismos em Marcos para que, por meio dele, visualizemos as semelhanças e

diferenças do “esquema” libertador deste evangelho:

Mc 1.21-28 Mc 5.1-20 Mc 7.24-30 Mc 9.14-29

Localidade

Cafarnaum

Gerasa

Regiões de Tiro

Na descida do

Monte da

Transfiguração

Talvez as aldeias

de Cesaréia de

Filipe (cf. 8:27)

Âmbitos de

Atuação

Sinagoga

Sepulcros

(Decápole)

Casa (estrangeira)

Rua (?)

(numa das aldeias

399 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.510.

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125

de Cesaréia)

Pessoa

Possessa

homem

homem

Menina

(filha de uma

mulher)

Menino

(filho de um

homem)

Forma de

Apresentação

Espontânea (surge

na sinagoga)

Espontânea (surge

em meio aos

sepulcros)

Mãe se apresenta

e intercede

Pai se apresenta e

intercede

Possível elemento mágico

Ensino de Jesus

1.27 – “O que é

isto? Um novo

ensino com

autoridade,...”

?

Palavra da mãe

7:29 – “Por causa

desta palavra,

podes ir; o

demônio já saiu de

tua filha.”

Oração

9:29 – “esta casta

não pode sair

senão por meio de

oração”

Estrutura da cena – Início e

Desfecho

1:21 logo no

sábado, tendo

entrado na

sinagoga

1:29 saindo eles

da sinagoga

5:1 chegaram à

outra margem do

mar, à terra dos

gerasenos

5:21 Tendo Jesus

voltado no barco,

para o outro lado

7:24 Levantando-

se, partiu dali para

as terras de Tiro e

Sidom

7:31 De novo, se

retirou das terras

de Tiro e foi por

Sidom até ao mar

da Galiléia

9:14 Quando eles

se aproximaram

dos discípulos,

viram numerosa

multidão...

9:30 E, tendo

partido dali,

passavam pela

Galiléia

Ordem de Jesus

1:25 “ Cala-te e

sai desse homem”

5:8 “ Espírito

imundo, sai desse

homem!”

7:29 “... podes ir;

o demônio já saiu

de tua filha.”

9:25 “Espírito

mudo e surdo, eu

te ordeno: Sai

deste jovem e

nunca mais tornes

a ele.”

Fala do

1:24 Que temos

nós contigo, Jesus

Nazareno? Vieste

para perder-nos?

5:7 Que tenho eu

contigo, Jesus, Filho

do Deus Altíssimo?

Conjuro-te por Deus

que não me

Não fala

Jesus está distante

do

endemoninhado

Não fala

9:20 quando ele

viu a Jesus, o

espírito

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espírito imundo

Bem sei quem és:

o Santo de Deus!

atormentes! imediatamente o

agitou com

violência, e, caindo

ele por terra,

revolvia-se

espumando.

Saída do espírito imundo

1:26 agitando-o

violentamente e

bradando em alta

voz, saiu dele.

5:13 Então, saindo os espíritos

imundos, entraram nos porcos; e a

manada,(...) precipitou-se

despenhadeiro abaixo, para dentro

do mar, onde se afogaram.

7:30 achou a

menina sobre a

cama, pois o

demônio a deixara

9:26 E ele, clamando e

agitando-o muito, saiu, deixando-o

como se estivesse morto, a ponto de muitos dizerem:

Morreu.

Desse modo, algumas conclusões preliminares podem ser constatadas:

2.5.1. A Expressão: pneu'ma ajkavqarton

Em todos os relatos de exorcismo Marcos utiliza a expressão pneuma

akátharton (pneu'ma ajkavqarton) pra se referir ao fenômeno de possessão: no relato

do possesso da sinagoga em Cafarnaum (Mc 1.21-28) – três vezes; no relato do

possesso geraseno (Mc 5.1-20) – quatro vezes; no relato da mulher siro-fenícia que

roga por sua filha endemoninhada (Mc 7.24-30) – apenas uma vez e, no relato do

menino surdo e mudo (Mc 9.14-29) – uma vez; porém, neste último há de se

considerar o uso da expressão pneuma (pneu'ma) por outras três vezes com os

adjetivos mudo (v.17 - pneu/ma a;lalon), mudo e surdo (v.25 - to. a;lalon kai.

kwfo.n pneu/ma) e sem acompanhamento de adjetivo, como é o caso do verso 20:

quando ele viu a Jesus, o espírito imediatamente o agitou com violência.

A expressão pneu'ma (espírito) aparece muitas vezes em Marcos. Das 23

ocorrências neste evangelho, “14 contém a expressão pneu'ma ajkavqarton (ou

igual) = daivmwn ou daimvonion.”400 O adjetivo ajkavqarton vem da expressão

kaqarov", usada para descrever pureza ritual e moral. Neste caso, o chamado “alfa

400 PNEUMA. In: Theological Dictionary of the New Testament (vol VI). Friedrich, Gerhard (org.). Gran Rapids, Michigan: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, p.396.

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privativo” faz a expressão significar aquilo que é contrário à pureza, sendo, portanto,

“impuro”.

2.5.2. Referência ao daimo,nion

Com exceção do relato da mulher siro-fenícia (Mc 7.24-30), Marcos descreve

possessão e exorcismo sem fazer referência a demônio (daimo,nion). A condição a

que alguns indivíduos estão submetidos na narrativa marcana é atribuída a espíritos

(pneu,mata). Todavia, seria uma conclusão precipitada dizer que Marcos não

compreende tais anomalias como possessão por demônios. Isso porque, a narrativa

do exorcismo da sinagoga (1.21-28) é seguida por um sumário, que aparentemente é

retrospectivo, no qual em duas ocasiões Marcos identifica o ato de exorcismo como o

de expelir demônio (daimo,nia polla. evxe,balen – “expeliu muitos demônios”

cf.1.34). Em 1.34 vemos: E ele curou muitos doentes de toda sorte de enfermidades;

também expeliu muitos demônios, não lhes permitindo que falassem, porque sabiam

quem ele era. A conclusão de 1.39 é: Então, foi por toda a Galiléia, pregando nas

sinagogas deles e expelindo os demônios (ta. daimo,nia evkba,llwn). A acusação dos

escribas contra Jesus em 3.22 é que ele estava possesso de Beelzebul e era pelo

“maioral dos demônios que expulsava demônios” (evkba,llei ta. daimo,nia).401

Assim, o que parece seguro afirmar é que Marcos prefere descrever o ato em

si da possessão e exorcismo utilizando o espírito (pneuvma) para descrever demônio

(daimo,nion)402. Ademais, além do caso da filha da mulher siro-fenícia (7.24-30) –

onde se usa espírito imundo e demônio (no singular) como termos intercambiáveis –

é preciso considerar o fato de que Marcos classifica as pessoas em tais circunstâncias

como endemoninhadas (daimonivzomai). Em 1.32, após a descrição da cura da sogra

de Pedro (1.29-31), Marcos relata: À tarde, ao cair do sol, trouxeram a Jesus todos os

401 Cranfield afirma que daimo,nion é equivalente a expressão mais judaica pneu'ma akavqarton.Veja: CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p.88. 402 Exceção feita, como anteriormente dito, ao relato da possessão da filha da mulher siro-fenícia (Mc 7.24-30).

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enfermos e endemoninhados (daimonizome,nouj). O geraseno do capítulo 5 é

chamado endemoninhado (daimonivzomai - cf. 5.15, 16, 18).403

2.5.3. Aspecto Inaugural dos Exorcismos

Em Marcos é possível se perceber um aspecto inaugural e desbravador em

cada um dos relatos de exorcismo. A trama narrativa de Marcos faz com que o mal,

descrito nas possessões por demônios e espíritos imundos, surja em oposição a Jesus

sempre quando o espaço geográfico ainda é desconhecido. É no início da campanha

em Cafarnaum (1.21), na chegada à outra margem do mar – em Gerasa (5.1), na

retirada para as regiões de Tiro (7.24) e nas regiões próximas a Cesaréia de Filipe404

(8.27; 9.14) que ocorrem os exorcismos. Não se deve negligenciar que o padrão

narrativo de Marcos é localizar as possessões no espaço geográfico da Galiléia e

imediações.

Outra observação que merece ponderação são as relações existentes entre as

várias perícopes que compõem o relato de Marcos. O quadro abaixo relaciona alguns

temas, terminologias e cenas paradigmáticas:

Mc1.21-28 5.1-20 7.24-30 9.14-29

Antes

1.16-20 Convocação de

Discípulos

4.36-41 Jesus acalma a tempestade no

mar

7.1-23 Debate acerca

das leis de pureza

9.1-13 A experiência

da Transfiguração

O Evento

Sinagoga/ensino Mar/estrangeiro Puro/impuro Diálogo sobre

pão

Poder

depois

1.29-31 Cura da sogra

de Pedro

5.21-43 Cura da mulher com fluxo de

sangue; Ressurreição da

7.31-37 A cura de um surdo e gago

8.1-9 Multiplicação

7.30-37 debate acerca de quem é o

maior no reino

403 É preciso dar atenção à observação de Taylor de que a expressão aparece somente quando se descreve uma nova cena: a da chegada dos cidadãos da cidade. Segundo ele, a palavra daimonizo,menon é usada pelo evangelista levando em conta o pensar da gente que havia chegado. Taylor nota que Marcos em 15b chama o possesso de to.n evschko,ta to.n legiw/na (o que tivera a legião). Veja: TAYLOR, p.326. 404 Partindo do pressuposto de que o Monte da transfiguração foi o Hermom.

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filha de Jairo de pães

2.5.4. Aspecto Solidário dos Exorcismos

O texto de Marcos manifesta uma dinâmica onde a prática de Jesus –

especificamente suas curas, exorcismos e ações de solidariedade – confere ao seu

ministério uma preocupação com os socialmente marginalizados, o que o “introduz

no conflito com as autoridades”.405 Difícil é determinar em que nível os conflitos

sociais contemporâneos ao autor influenciam seu escrito.

2.5.5. Aspecto Terapêutico dos Exorcismos

Analisando cada caso de possessão descrito por Marcos nota-se que os

indivíduos apresentados como possessos têm sua vida afetada pelo mal no âmbito

físico, mental ou até mesmo social – como no caso do geraseno que infundia terror

nos habitantes da região ou do menino surdo e mudo que não podia ter uma vida

social comum. Todavia, Jesus não é apresentado exorcizando o “mal moral” das

pessoas, isto é, elas são descritas como estando endemoninhadas, porém não

aparecem cometendo perversidades, mas tão somente estão acometidas por

anormalidades ou limitações físicas e mentais. O possesso da sinagoga aparece como

um louco gritando na hora da reunião; o geraseno vive entre os sepulcros tal como

um andarilho que está fora de si; a filha da siro-fenícia é simplesmente descrita como

“possessa de espírito imundo” (cf. 7.25) e o caso do menino descrito em 9.14-29

lembra os sintomas da epilepsia, além dos limites na fala e audição.

David Powlison desenvolve essa percepção, fazendo uma distinção entre “mal

moral” e “mal circunstancial”. Para ele, o evangelho retrata a possessão por espíritos

malignos como “males circunstanciais – não morais – que machucam e maltratam as

pessoas. (...) ‘Endemoninhamento’ é um fato reconhecido e identificado pela sua

expressão através de condições miseráveis como cegueira, surdez, paralisia,

demência e ataques repentinos.”406

405 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.180. 406 POWLISON, David. Confrontos de Poder. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999. p.69.

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3. MARCOS 1.21-28: EXEGESE E APROXIMAÇÕES

O texto de Marcos 1.21-28 faz parte de uma seqüência de relatos ocorridos na

cidade de Cafarnaum e seus arredores. A passagem é precedida pela apresentação de

João Batista (1.2-8), a narrativa do batismo de Jesus (1.9-10), a resumida descrição

de sua tentação no deserto (1.11-13) e o relato da partida de Jesus para Galiléia com

a convocação dos quatro primeiros discípulos: Simão, André, Tiago e João (1.14-20).

Segue ao relato do possesso na sinagoga em Cafarnaum (1.21-28) a cura da

sogra de Pedro (1.29-31), um sumário de várias curas ao entardecer (1.32-34), a

retirada de Jesus para um lugar solitário (1.35-39) e a cura de um leproso (1.40-45).

No entanto, o contexto da primeira ação pública de Jesus (exorcismo na

sinagoga em Cafarnaum – 1.21-28) pode ter uma dimensão maior e mais abrangente

que o primeiro capítulo de Marcos. Pensando na definição de uma estrutura para a

primeira ação narrativa do Evangelho, denominada por Myers de “primeira grande

ação narrativa,”407 podemos assinalar o mar da Galiléia como parâmetro da

campanha e não a sinagoga, como comumente tem sido abordado (sinagoga em 1.20-

29 e sinagoga em 3.1-6). Assim, o começo da campanha está às margens do mar da

Galiléia em 1.16: Caminhando junto ao mar da Galiléia. A campanha também é

encerrada às margens do mar da Galiléia em 4.1: “Voltou Jesus a ensinar à beira-

mar. E reuniu-se numerosa multidão a ele, de modo que entrou num barco, onde se

assentou, afastando-se da praia. E todo o povo estava à beira-mar, na praia”.

Desse modo, Marcos 3.22-35, o episódio onde Jesus é acusado de expelir demônios

407 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.178.

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por Beelzebul fica dentro do mesmo bloco narrativo de ações de Jesus funcionando

como um “segundo clímax”408 para o exorcismo de Cafarnaum.

Na sinagoga (1.21s) Jesus expulsa um espírito imundo, o que o coloca em

conflito direto com os escribas; em 3.22s, Jesus é acusado de ele mesmo estar

possesso por um espírito imundo (cf. 3.30) e a acusação parte justamente da classe

escriba. “Arrumados em torno desses dois episódios-chave estão relatos sobre a

consolidação da comunidade e cenas de família e do lar (1.16-31; 3.13-35).”409 A

chamada dos discípulos para seguir Jesus em 1.16-20 pode encontrar

correspondência estrutural dentro deste bloco narrativo em 3.13-19 quando são

designados os doze discípulos. Semelhantemente, o exorcismo na sinagoga de 1.21-

28 que cria um atrito indireto com os escribas (cf. 1.22), pode encontrar

correspondência em 3.22-30 com a controvérsia sobre exorcismo, onde o atrito é

direto com os escribas. Jesus em casa com a família de Pedro em 1.29-31 pode ter

correspondência em 3.31-35, ocasião em que Jesus está em casa (cf. 3.20) e tece um

discurso acerca da família, em virtude da chegada de sua mãe e seus irmãos.

Também há dois sumários que sintetizam a dimensão do ministério de Jesus e

articulam a sua expansão geográfica (1.33 - Toda a cidade estava reunida à porta;

3.7-8 - Seguia-o da Galiléia uma grande multidão. Também da Judéia, de Jerusalém,

da Iduméia, dalém do Jordão e dos arredores de Tiro e de Sidom uma grande

multidão) das ações de curas e exorcismos de Jesus junto às multidões:

1:32-34 - À tarde, ao cair do sol, trouxeram a Jesus todos os enfermos

e endemoninhados. Toda a cidade estava reunida à porta. E ele curou

muitos doentes de toda sorte de enfermidades; também expeliu muitos

demônios, não lhes permitindo que falassem, porque sabiam quem ele era.

3:7-12 - Retirou-se Jesus com os seus discípulos para os lados do mar.

Seguia-o da Galiléia uma grande multidão. Também da Judéia, de

Jerusalém, da Iduméia, dalém do Jordão e dos arredores de Tiro e de Sidom

uma grande multidão, sabendo quantas coisas Jesus fazia, veio ter com ele.

408 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.178. 409 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.178.

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Então, recomendou a seus discípulos que sempre lhe tivessem pronto um

barquinho, por causa da multidão, a fim de não o comprimirem. Pois curava

a muitos, de modo que todos os que padeciam de qualquer enfermidade se

arrojavam a ele para o tocar. Também os espíritos imundos, quando o viam,

prostravam-se diante dele e exclamavam: Tu és o Filho de Deus! Mas Jesus

lhes advertia severamente que o não expusessem à publicidade.

Myers lembra que em cada caso “Jesus tem que convencer seus discípulos da

sua necessidade de afastar-se da pressão das multidões (1.35s; 3.9)”410:

1:35 - Tendo-se levantado alta madrugada, saiu, foi para um lugar

deserto e ali orava.

3:9 - Então, recomendou a seus discípulos que sempre lhe tivessem

pronto um barquinho, por causa da multidão, a fim de não o comprimirem.

Todos esses indícios dão ao relato do exorcismo na sinagoga uma importância

na dinâmica redacional de Marcos, visto que utiliza a descrição do exorcismo como

início da atividade pública de Jesus e “como demonstração poderosa de sua nova

doutrina do reino de Deus”.411

410 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.179. 411 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 96.

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3.1. TEXTO GREGO E TRADUÇÃO:

A seguir, apresento o texto original grego de Marcos 1.21-28, seguida de uma

tradução pessoal da passagem:

21Kai. eivsporeu,ontai eivj Kafarnaou,m\ kai. euvqu.j toi/j sa,bbasin

eivselqw.n eivj th.n sunagwgh.n evdi,daskenÅ

E entraram em Cafarnaum; e, logo no sábado, tendo entrado na sinagoga,

ensinava.

22 kai. evxeplh,ssonto evpi. th/| didach/| auvtou/\ h=n ga.r dida,skwn auvtou.j

w`j evxousi,an e;cwn kai. ouvc w`j oi` grammatei/jÅ

E maravilhavam-se do seu ensino, pois ele estava os ensinando como

quem tem autoridade e não como os escribas.

23 kai. euvqu.j h=n evn th/| sunagwgh/| auvtw/n a;nqrwpoj evn pneu,mati

avkaqa,rtw| kai. avne,kraxen

E logo estava na sinagoga deles um homem com um espírito imundo e

gritou

24 le,gwn( Ti, h`mi/n kai. soi,( VIhsou/ Nazarhne,È h=lqej avpole,sai

h`ma/jÈ oi=da, se ti,j ei=( o` a[gioj tou/ qeou/Å

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dizendo: o que nós (temos) contigo, Jesus Nazareno? Tu vieste nos

destruir? Sei quem tu és, o santo de Deus.

25 kai. evpeti,mhsen auvtw/| o` VIhsou/j le,gwn( Fimw,qhti kai. e;xelqe evx

auvtou/Å

E Jesus o repreendeu, dizendo: cala-te e sai (para fora) dele. 26 kai. spara,xan auvto.n to. pneu/ma to. avka,qarton kai. fwnh/san

fwnh/| mega,lh| evxh/lqen evx auvtou/Å

E o espírito imundo, agitando-o e gritando em grande voz, saiu (para fora)

dele.

27 kai. evqambh,qhsan a[pantej w[ste suzhtei/n pro.j e`autou.j le,gontaj(

Ti, evstin tou/toÈ didach. kainh. katV evxousi,an\ kai. toi/j pneu,masi

toi/j avkaqa,rtoij evpita,ssei( kai. u`pakou,ousin auvtw/|Å

E admiraram-se todos de modo que discutiam entre si dizendo: O que é

isto? Um novo ensino com autoridade, também aos espíritos imundos

ordena e eles lhe obedecem.

28 kai. evxh/lqen h` avkoh. auvtou/ euvqu.j pantacou/ eivj o[lhn th.n

peri,cwron th/j Galilai,ajÅ

E logo saiu a notícia dele (sua fama) por todos os lugares em toda

circunvizinhança da Galiléia.

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3.2. CRÍTICA TEXTUAL E MOLDURA DA NARRATIVA:

A narrativa do exorcismo inaugural em Cafarnaum, que possui um paralelo

estrutural e semântico com o segundo exorcismo narrado em 5.1s (possesso

geraseno), contém expressões gregas muito raras, não mais encontradas em parte

alguma do Novo Testamento. Segundo a observação de Myers, “em nenhum outro

lugar do Evangelho Jesus conversa diretamente com o adversário endemoninhado a

não ser nos dois exorcismos inaugurais”.412 De fato, dos quatro relatos de exorcismo

em Marcos (1.21-28; 5.1-20; 7.24-30 e 9.14-29), três descrevem Jesus em contato

direto com a pessoa possessa. Porém, ainda que Jesus mantenha contato com o

possesso no relato de 9.14-29, não há diálogo entre o endemoninhado e Jesus – o

diálogo ocorre entre Jesus e o pai do rapaz possesso (cf. 9.21-24); e, neste caso,

apenas Jesus se dirige ao espírito imundo, mas sem resposta ou agressão verbal (cf.

9.25).

Crítica Textual:

No que se refere à Crítica Textual, o texto não possui problemas relevantes e

há poucas variantes. Em 1.21, a frase eivselqw.n eivj th.n sunagwgh.n evdi,dasken

(tendo entrado na sinagoga ensinava) aparece incluindo o particípio em documentos

alexandrinos (A, B, K, W). a C L D fam. 13 28 565 837 892 omitem o verbo e

lêem como evdi,dasken eivj th.n sunagwgh.n (ensinava na sinagoga). Para Taylor,

trata-se de “uma correção gramatical Alexandrina”413, devendo a frase ser lida sem o

particípio. Cranfield também acredita que “olhar eivselqw.n como uma inserção para

412 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.239. 413 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p.189.

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melhorar a gramática, e a transposição de evdi,dasken como conectada a inserção

seria explicável”.414

Outra variante encontramos em 1.27, onde katV evxousi,an (com autoridade)

pode estar ligado à expressão anterior didach. kainh. (um novo ensino), quanto a

oração seguinte toi/j pneu,masi toi/j avkaqa,rtoij evpita,ssei (aos espíritos imundos

ordena). Manuscritos tais como C K D P 28c 565c 892 entre outros trazem h` didach.

h` kainh. au[th\ o[ti katV evxousi,an kai toi/j pneu,masi toi/j avkaqa,rtoij

evpita,ssei. (que ensino novo é este, porque com autoridade também aos espíritos

imundos ordena). Todavia, a opção didach. kainh. katV evxousi,an\ kai. toi/j

pneu,masi toi/j avkaqa,rtoij evpita,ssei (um ensino novo com autoridade, também

aos espíritos imundos ordena) aparece em manuscritos importantes tais com a B L.

Taylor parece estar com a razão ao afirmar que, “à luz de 1.22 h=n ga.r

dida,skwn auvtou.j w`j evxousi,an e;cwn [pois ele estava os ensinando como quem tem

autoridade], é preferível unir a expressão katV evxousi,an com didach. kainh..”415

Cranfield concorda que didach. kainh. katV evxousi,an (um ensino novo com

autoridade) “é quase certamente o texto correto”.416 Assim, o que produz admiração

nos ouvintes não é somente a novidade do ensino, mas sua autoridade.

Para Gundry, “a repetição de “ensino” e “autoridade” (cf. v. 21-22) completa a

moldura do exorcismo tanto quanto apóia a autoridade de Jesus como um

professor”417. Segundo ele, a omissão do conteúdo do ensino de Jesus, “tende a

favorecer o ensino como atividade em lugar de como assunto”418.

Nos lembra Gnilka que, “para Marcos, a autoridade especial da palavra de

Jesus se manifesta no fato de que está acompanhada de ações poderosas. A derrota

do espírito mal dá a conhecer que chega a soberania de Deus (3.24-27). Com a

414 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p.72. 415 TAYLOR, Vincent. Evangelio segun San Marcos.p. 193-194. 416 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p. 80. 417 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.77. 418 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.77.

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irrupção da basiléia [reino] se inicia o novo. A ação explicita a palavra. Sobre esse

pano de fundo há que ler o exorcismo.”419

Desse modo, parece ser mais coerente entender que originalmente katV

evxousi,an estava ligado à expressão anterior: didach. kainh.. Marcos vê na palavra de

Jesus uma autoridade que o distingue dos escribas que atuavam na província da

Galiléia, por isso “evita a prodigalidade de atuações do exorcista, que não estejam

acompanhadas de sua palavra”420.

3.3.COMENTÁRIO: ESTRUTURA, SEMÂNTICA, ANÁLISE

LÉXICA

Será de grande importância analisarmos cada versículo do relato do possesso

na sinagoga de Cafarnaum (Marcos 1.21-28) para compreendermos os detalhes

literários e lexicais pertinentes ao texto.

Texto Grego Tradução (pessoal) 21Kai. eivsporeu,ontai eivj

Kafarnaou,m\ kai. euvqu.j toi/j

sa,bbasin eivselqw.n eivj th.n

sunagwgh.n evdi,daskenÅ

E entraram em Cafarnaum; e, logo no

sábado, tendo entrado na sinagoga,

ensinava.

Fica claro já no verso 21 que Marcos formulou este episódio como uma

unidade separada. Isso porque nos lembra Schweizer que “não só nada é dito a

respeito de qualquer discípulo acompanhando Jesus, mas mais importante é o fato

que o evento em 16-20 não poderia ter ocorrido no Sábado sagrado, quando pescar e

consertar redes eram estritamente proibidos”.421 Assim, parece estar claro que

Marcos dispõe o verso 21 como uma transição entre duas seções que tinham sido

transmitidas a ele.

419 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.93. 420 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.93. 421 SCHWEIZER, Eduard. The Good News According to Mark. London: S.P.C.K., 1970. p.50.

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Taylor prefere ver a referência a Cafarnaum422 como relacionada a 1.21-28 e

não como a conclusão do relato da vocação dos primeiros discípulos (1.16-20),

tornando o verso 21 um “corte” entre as duas seções.423

A análise de Gundry conclui que a “interrupção súbita de Marcos para o tempo

presente histórico [eivsporeu,ontai – 3ª pes. Plural, presente do Indicativo,

v.média/passiva] que ele abandona imediatamente depois [na seqüência, Marcos usa

os verbos no aoristo particípio, imperfeito do indicativo, presente particípio, aoristo

do indicativo, etc.], pode sublinhar o efeito da chamada de Jesus, como também

realçar o começo de uma nova perícope com movimento topográfico”.424

Podemos dizer, então, que a frase inicial de 1.21 Kai. eivsporeu,ontai eivj

Kafarnaou,m\ (E entraram em Cafarnaum) não forma a conclusão do relato da

chamada dos primeiros discípulos (1.16-20) e, nem tão pouco marca o início do

relato do exorcismo na sinagoga, mas configura uma transição estrutural entre as

duas narrativas as quais Marcos teve acesso.

Essa compreensão nos permite entender que pode ter havido uma distância

temporal entre os eventos narrados em 1.16-20 e 1.21-28, ou seja, o exorcismo em

Cafarnaum não necessariamente, na compreensão de Marcos, ocorreu no dia seguinte

à convocação dos primeiros discípulos. Por isso, Taylor observa que “o evangelista

não fala de sábados sucessivos (...), mas ‘em dia de sábado’,”425 o que significa que,

para Marcos, o exorcismo em Cafarnaum ocorreu num sábado qualquer. “Isto mostra

a indiferença [de Marcos] para assuntos de tempo e local, já que o seu interesse é

centrado no significado que o evento tem para a igreja.”426

A expressão kai. euvqu.j toi/j sa,bbasin (e logo no sábado) pode ser entendida

como “e então em dia de sábado”427, visto que o euvqu.j deste verso pode também ser

traduzido como “assim pois, então”. Quanto à expressão sa,bbasin, é uma palavra 422 Outras referências a Cafarnaum em Marcos aparecem em 2.1 e 9.33. 423 Veja: TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.188. 424 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.73. 425 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.189. 426 SCHWEIZER, Eduard. The Good News According to Mark. p.50. 427 Veja, por exemplo, 2.23: Kai. evge,neto auvto.n evn toi/j sa,bbasin paraporeu,esqai dia. tw/n spori,mwn (e aconteceu atravessar ele, em dia de sábado, as searas)

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semítica que, ainda que em grego pertence à segunda declinação, comumente aparece

no Novo Testamento com terminações da terceira e no dativo plural e, algumas

vezes, também no singular. Há 11 referências ao sábado em Marcos, nas formas

singular e plural. “Conforme o costume entre os judeus, no sábado Jesus vai a

sinagoga”428, lembra Gnilka. Schweizer entende, a partir disso, que “Jesus não era

nenhum revolucionário; ele conformou à vida religiosa normal do seu povo”.429 No

entanto, o que Marcos estava narrando não era Jesus entrando na vida religiosa

“normal” de seu povo, mas uma visita dele à sinagoga onde coisas extraordinárias

(ensino com autoridade, exorcismo) aconteceram.

Já observamos acima que na leitura de eivselqw.n eivj th.n sunagwgh.n

evdi,dasken (tendo entrado na sinagoga, ensinava) deve ser entendida como original

eivj th.n sunagwgh.n evdi,dasken (na sinagoga ensinava), pois o particípio eivselqw.n

deve ser um acréscimo que constitui uma melhoria gramatical Alexandrina, o que

não traz prejuízos à interpretação do texto. Marcos quer realçar que Jesus na

sinagoga se pôs a ensinar. Mais adiante, ele mostrará que embora a sinagoga fosse

lugar de instrução (da Torah e dos Profetas), o que naquele dia ocorreu se distinguia

do ensino que normalmente se tinha ali.

Taylor observa que “Marcos destaca muito o ministério doutrinal, [pois]

didavskw aparece 17 vezes”.430 Alguns exemplos dessas ocorrências são: em 2.13 é

dito que “de novo, saiu Jesus para junto do mar, e toda a multidão vinha ao seu

encontro, e ele os ensinava”. Em 4.1, diz que “Voltou Jesus a ensinar à beira-mar”.

Em 6.2, Marcos registra que “chegando o sábado, passou a ensinar na sinagoga” e

em 6.34, “ao desembarcar, viu Jesus uma grande multidão e compadeceu-se deles,

porque eram como ovelhas que não têm pastor. E passou a ensinar-lhes muitas

coisas.”

O substantivo dida,skaloj aparece 11 vezes em Marcos, sendo 10 ocorrências

do vocativo dida,skale e apenas uma no nominativo (cf. 14.14); e, “em todos os

428 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.91. 429 SCHWEIZER, Eduard. The Good News According to Mark. p.51. 430 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.189.

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casos usado para designar Jesus”.431 Gundry ressalta que “Marcos gosta de exaltar a

estatura de Jesus retratando-o como um professor (cf. 1.27; 2.13; 4.1,2; 6.2,6,34;

8.31; 9.31; 10.1; 11.17,18; 12.14,35,38; 14.49), porque os professores desfrutam alto

respeito no ambiente de Marcos”.432 “Os evangelhos indicam que Jesus, no início,

aproveitou as oportunidades que lhe brindava a sinagoga. (...) A oportunidade que se

oferecia a Jesus era grande, mas naturalmente desapareceu quando aumentaram suas

dissensões com os rabinos.”433

Texto Grego Tradução (pessoal)

22 kai. evxeplh,ssonto evpi. th/| didach/|

auvtou/\ h=n ga.r dida,skwn auvtou.j w`j

evxousi,an e;cwn kai. ouvc w`j oi`

grammatei/jÅ

E maravilhavam-se do seu ensino, pois

ele estava os ensinando como quem tem

autoridade e não como os escribas.

O espanto gerado nas pessoas pela atividade docente de Jesus é sinal visível

de sua autoridade. Para Gnilka, “o verso 22 tem importância para a totalidade da

seção até o 3.12. Ao ouvir a doutrina, as pessoas ficavam assombradas (...) Se

emprega o mesmo verbo para o efeito de uma palavra chocante (cf. 10.26) ou de uma

ação poderosa (cf.7.37)”.434 “A frase kai. evxeplh,ssonto evpi. th/| didach/| auvtou [E

maravilhavam-se do seu ensino] descreve o efeito produzido pelo ensino de

Jesus.”435 Quanto a essas palavras, Cranfield diz que “é muito mais provável que

elas sejam seguramente reminiscência histórica genuína, evidência, não somente da

teologia da Igreja Primitiva, mas da impressão deixada por Jesus na vida dela,

embora seja, é claro, possível às vezes esta característica ter sido somada até mesmo

onde não havia nenhuma base efetiva para isto, conforme a tendência natural da

assimilação de um padrão característico.”436

431 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p. 72. 432 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.74. 433 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.189. 434 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.92. 435 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.189. 436 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p.73.

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O verbo ejkplhvssomai, que ocorre em 6.2; 7.37;10.26 e 11.18, “é um termo

enérgico que indica estupefação [assombro, espanto]”.437 A razão de tal espanto

provocado nos ouvintes é que Jesus ensinava com autoridade e não como os escribas.

Esse contraste com os escribas podia incluir tanto o conteúdo como o modo da

didachv de Jesus.438 Taylor diz que “w`j ... e;cwn [como o que tem] indica o modo

de ensinar”.439

Gundry vê a autoridade (evxousi,an) como o tema central do verso 22:

“O fato de que a autoridade de Jesus surge primeiramente em

uma cláusula editorial explicativa - ga.r e precede o particípio [e;cwn] do

qual é o objeto direto (veja a ordem das palavras no texto grego), mostra

que do ponto de vista narrativo o foco está naquela autoridade. E o fato

de Marcos não dizer que característica do ensino de Jesus exibe

autoridade, mostra que o ponto recai na autoridade como tal. O verbo

forte evxeplh,ssonto (eles estavam surpresos) ou, preservando a metáfora,

‘eles estavam sendo derrubados com surpresa’, põe grande ênfase no

poder subjugador da autoridade de Jesus (veja também: 6.2; 7.37; 10.26;

11.18). (...) O tempo imperfeito de evxeplh,ssonto faz o espanto da

audiência combinar com a atividade de ensinar de Jesus: enquanto

ensinava, a surpresa os subjugava.”440

Segundo Taylor, evxousi,an tem a idéia geral de “poder para atuar”, mas na

LXX e no Novo Testamento seleciona o conceito de “autoridade” mais que o de

“poder”.441 Assim, o exorcismo que estava pra acontecer na sinagoga em Cafarnaum

podia, na visão de Marcos, figurar uma disputa por autoridade. A questão é: entre

quem? Podia ser entre Jesus e as forças demoníacas, ou também podia ser entre

Jesus e os escribas, conforme a leitura sócio-simbólica de Myers. Marcos faz

referência aos grammatei/j (escribas) 21 vezes e sua visão deste grupo não é sempre

437 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.189. 438 Veja: CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p.73. 439 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.190. 440 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.73. 441 Veja: TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.189.

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negativa, se entendermos as palavras de Jesus narradas por ele em 12.34 e dirigidas a

um escriba como reconhecimento e não como ironia: “Não estás longe do reino de

Deus”.

Cranfield assegura que os escribas “nem reivindicaram uma autoridade

imediata; eles antes eram os intérpretes de uma tradição que lhes fora passada. As

pessoas sentiam no modo como Jesus ensinou a reivindicação implícita a uma

autoridade superior àquela da Ordenação Rabínica”.442

Segundo Kee, “nos exorcismos, a autoridade de Jesus será supremamente

manifesta, e é pelos exorcismos que o reino pode ser visto como estando próximo

(cf. 1.15). Nos exorcismos, a autoridade da palavra de Jesus e a autoridade de sua

ação estão unidas”.443

Texto Grego Tradução (pessoal)

23 kai. euvqu.j h=n evn th/| sunagwgh/|

auvtw/n a;nqrwpoj evn pneu,mati

avkaqa,rtw| kai. avne,kraxen

E logo estava na sinagoga deles um

homem com um espírito imundo e

gritou

Toda a atmosfera de autoridade criada pelo ensino de Jesus, conforme Marcos

vinha narrando, agora é desafiada pela presença de um homem. Primeiramente,

Marcos relata que o homem estava na sinagoga (h=n evn th/| sunagwgh). Ou seja, ele

surge na narrativa, mas já estava presente na sinagoga – não entrou (como Jesus

entrou na sinagoga em 1.21 - eivselqw.n eivj th.n sunagwgh.n). O ensino com

autoridade de Jesus é a ocasião para que este homem se expresse. Temos que

observar também que Marcos diz ser a sinagoga “deles” (sunagwgh/| auvtw/n). Depois,

Marcos relata que este homem estava “com um espírito imundo” (evn pneu,mati

442 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p.74. 443 KEE, Howard The Terminology of Mark’s Exorcism Stories. p.242.

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avkaqa,rtw). Nesta expressão – evn pneu,mati avkaqa,rtw –, a preposição evn representa

o hebraico B, que é igual a “com”, “que tinha”. “Lucas descreve o sentido da frase

escrevendo e;cwn pneu/ma daimoni,ou avkaqa,rtou [tinha um espírito de demônio

imundo, cf. Lc 4.33].”444

A expressão pneu'ma ajkavqarton (espírito imundo)é usada por Marcos 11

vezes. Schiavo diz que “trata-se de um espírito que pertence à esfera divina, mas

contrário a Deus”.445 Para Taylor, é provável que com o adjetivo ajkavqarton Marcos

quisesse expressar o seu juízo religioso, não uma forma particular de impureza ritual.

“De acordo com este ponto de vista, a possessão do demônio expõe o homem a uma

impureza que o incapacita para o culto e a amizade com Deus.”446

O Verbo ajnakravzw (gritar, bradar), também utilizado em 6.49 (avne,kraxan)

para descrever o espanto dos discípulos ao verem Jesus caminhando por sobre o mar,

aparece no grego clássico e na LXX, indicando forte e profunda emoção, usado aqui

em 1.23 para enfatizar a força do espírito imundo em tentar se defender contra Jesus.

“Assim, a força de Jesus parecerá muito maior quando ele silencia os espíritos”,447

considera Gundry. Em outras passagens, Marcos usa o verbo simples – kravzw

(3.11; 5.5, 7; 9.24, 26; 10.47, 48; 11.9; 15.13, 14, 39).

Texto Grego Tradução (pessoal)

24 le,gwn( Ti, h`mi/n kai. soi,( VIhsou/

Nazarhne,È h=lqej avpole,sai h`ma/jÈ oi=da,

se ti,j ei=( o` a[gioj tou/ qeou/Å

dizendo: o que nós (temos) contigo,

Jesus Nazareno? Tu vieste nos destruir?

Sei quem tu és, o santo de Deus.

Myers sugere que a frase Ti, hmi/n kai. soi (o que nós temos contigo?)

“transmite desconfiança em face de intruso hostil, a quem aí se dirige com o tom de

444 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.190. 445 SCHIAVO, Luigi. O Mal e suas representações simbólicas: o universo mítico e social das figuras de Satanás na Bíblia. Estudos de Religião 19 (2000), p.80. 446 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.191. 447 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.75.

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desprezo: ‘Tu de Nazaré’!”448 Segundo Taylor, no grego clássico a pergunta

significaria “o que há entre nós?”, mas aqui corresponde provavelmente ao hebraico

%l"ßw" Wnl"-hm; (Js 22.24; Jz 11.12; 1Rs 17.18; etc.) e significa “por que te metes

conosco?”449

Gnilka sugere que a pergunta, que tem caráter de fórmula que se repete no

Antigo Testamento, “rechaça a comunhão e expressa indignação”. Segundo ele,

“quem pergunta o que tem a ver com outro, não quer ter nada em comum com

este”.450 Para Cranfield, a pergunta do espírito imundo poderia ser entendida assim:

“O que temos nós e você em comum?” ou “Por que você se intromete conosco?” ou

“Preste atenção no seu próprio negócio!”451

A expressão hmi/n (nós) indica a pluralidade dos espíritos imundos. Para

Gnilka o uso da primeira pessoa do plural indica que o espírito “fala com ele [Jesus]

por toda sua raça”.452 Assim, nas palavras de Cranfield, “o plural denota os demônios

como uma classe”453 ou, na expressão de Taylor, “se refere à espécie”454. Gundry

pondera que a expressão hmi/n (nós) “poderia incluir o homem junto com o espírito

(...) ou as pessoas na sinagoga com o espírito (uma possibilidade menos provável, já

que o espírito não os controla). No entanto, diante do plural “espíritos imundos” no

v. 27, Marcos provavelmente tenciona que este espírito fale em nome de todos os

espíritos imundos, de forma que o exorcismo presente demonstra o poder de Jesus

acima de todos eles,”455 reforçando assim o combate dualista que Marcos

freqüentemente usa nos relatos de exorcismo.

Essa pluralidade aplicada aos espíritos imundos harmoniza-se com a forma

como Marcos trata o demoníaco em outros relatos de exorcismo. No relato do

geraseno em 5.1-20, a mesma idéia de pluralidade se encontra na fala do espírito

imundo respondendo à pergunta de Jesus acerca de seu nome em 5.9: Legiw.n o;noma,

448 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.182. 449 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.191. 450 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.93-94. 451 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p.75. 452 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p. 94. 453 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p.76 454 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.191. 455 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.75-76.

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moi( o[ti polloi, evsmen (Legião é o meu nome, porque somos muitos). A expressão

to. ge,noj (casta; também pode ser entendida por classe, gênero, raça) em 9.29 no

diálogo de Jesus com os discípulos após o exorcismo do menino surdo e mudo

também pode indicar pluralidade.

A expressão Nazarhne, (Nazareno), ecoa o v.9 quando é dito que Naqueles

dias, veio Jesus de Nazaré da Galiléia e por João foi batizado no rio Jordão. Segundo

Gnilka, “se tem suposto acertadamente que entre Nazareno (nome de origem) e o

título ‘Santo de Deus’ há um jogo de palavras, feito possivelmente pelo conceito de

Nazireu”.456 As expressões “Nazareno e Nazireu” têm sido confundidas porque “elas

são similares em termos de som”457, considera Schweizer. Todavia, a evidência

aponta para Marcos dando preferência a descrição da origem de Jesus. Em 10.47;

14.67 e 16.6, ele voltará a associar o nome Nazareno a Jesus, com a finalidade de

demonstrar que se fala de “Jesus de Nazaré” especificamente. Gundry acredita que

com isso pode haver a intenção de mostrar que o “espírito conhece muito sobre ele

[Jesus] – neste caso, seu nome pessoal e sua cidade de origem”.458

Embora a frase h=lqej avpole,sai h`ma/j (tu vieste nos destruir?) tem sido

sempre interpretada como uma pergunta, Taylor prefere vê-la como “um desafio”.459

Mais que um desafio, Cranfield encara a questão como aceitação do espírito imundo

de que Jesus estava presente para destruí-lo e declara que “o pressentimento dos

demônios se deve ao seu reconhecimento da identidade de Jesus”.460 Taylor lembra

que “entre os judeus estava muito difundida a crença de que no período messiânico

seriam aniquilados os poderes malignos (cf. 1Enoque 69.27; Lc 10.18; Ap

20.10)”.461 A pessoa e o ensino de Jesus supõem uma ameaça apocalíptica aos

poderes demoníacos.

Ao introduzir na fala do espírito imundo a frase oi=da, se ti,j ei=( o` a[gioj tou/

qeou (Sei quem tu és, o santo de Deus), Marcos “converte o reconhecimento dos

456 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.94. 457 SCHWEIZER, Eduard. The Good News According to Mark. p.52. 458 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.76. 459 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.191. 460 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p.76. 461 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.191.

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demônios em cena de revelação”.462 O uso de se (tu) é redundante neste caso e

poderia ser suprimido, mas Lucas o conserva em 4.34 e acaba conferindo ao texto

um efeito de vivacidade.

O título atribuído a Jesus – o` a[gioj tou/ qeou – não é um título messiânico

conhecido e nem tão pouco uma denominação freqüente na Igreja primitiva, como

indicam as passagens onde aparece. Além do texto paralelo de Lucas 4.34, o título

aparece no Novo Testamento em Jo 6.69, na confissão de Pedro. Para Myers, “o

Santo de Deus” é um “título semita que reconhece o status profético de Jesus como

sendo equivalente ao de Eliseu (2Rs 4.9)”.463

Na LXX equivale ao “Santo do Senhor” aplicado à Arão (Sal 105.16). Em

função disso, alguns intérpretes vêem aqui uma referência a dignidade de Jesus como

sumo sacerdote. Sansão também recebe título semelhante em Jz 16.17 (LXX - a[gioj

qeou/). É preferível pensar que “o tratamento de ‘o Santo de Deus’ aponta para a

plenitude carismática de poder que se revela nos exorcismos de Jesus”.464 Em

concordância a essa conclusão, Taylor acredita que Marcos usa o` a[gioj tou/ qeou

para “expressar o sentido da presença de um ser sobrenatural”.465

Schweizer e Cranfield observam ainda que tais “confissões” podem ser

entendidas como “tentativa desesperada de adquirir controle sobre Jesus ou torná-lo

inofensivo, conforme a idéia comum daquele tempo de que usando o nome

precisamente correto de um espírito a pessoa poderia ganhar o domínio sobre ele”.466

Texto Grego Tradução (pessoal)

25 kai. evpeti,mhsen auvtw/| o` VIhsou/j

le,gwn( Fimw,qhti kai. e;xelqe evx

E Jesus o repreendeu, dizendo: cala-te

e sai (para fora) dele.

462 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.94. 463 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos p.182. 464 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.94. 465 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.191-192. 466 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p.77. Veja também: SCHWEIZER, Eduard. The Good News According to Mark. p.51-52.

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auvtou/Å

O verbo evpeti,mhsen (repreendeu), na LXX ejpitimw', ejpitivmhsi" representa

o hebraico root, utilizada para a “repreensão dura de Yahvé”467, denota a “palavra

divina de repreensão (2Sm 22.16; Jó 26.11; etc.)”.468 No grego clássico, este verbo

significa “honrar”, “aumentar o valor” e “censurar”. No Novo Testamento, significa

“repreender”, “admoestar”, “intimar”.469

Para Gnilka, “seu grito [de Jesus] imperativo se contrapõe ao conjuro (oJrkivzw)

característico dos magos gregos e que aparece em 5.7”.470 Gundry considera que “a

ausência de um encantamento, de um apelo para alguma deidade ou poder

sobrenatural, de uma manipulação física – todas as técnicas normalmente usadas em

exorcismos – deixa toda ênfase recair sobre a autoridade própria do comando

simples, mas eficaz de Jesus”.471

Mas Howard Clark Kee se aprofunda no estudo de ejpitimavw (repreender),

por considerá-la essencial à compreensão dos relatos de exorcismo em Marcos. Para

ele, “os estudiosos que viram esta ligação entre o termo Semítico [root, r[g] (via

textos de Qumran) e as narrativas de exorcismo do evangelho, não exploraram o uso

da palavra em todos os textos onde aparece em Qumran, nem examinaram seus

aparecimentos no Antigo Testamento e em outra literatura Semítica antiga”.472

O verbo ejpitimavw é usado em 4.39 para a ação de Jesus de “repreender” o

vento, por ocasião da tempestade no mar. Em 8.30 a palavra é usada para designar a

“censura e repreensão” de Jesus para que seus discípulos não divulgassem ser ele o

Cristo (cf. 8.29). Em 8.33 Pedro é duramente repreendido (evpeti,mhsen). Em 9.25

também é utilizada no sentido de “repreender o espírito imundo” que tornava o

menino surdo e mudo. Lucas usa evpeti,mhsen para designar a “repreensão da febre”

da sogra de Pedro (cf. Lc 4.39 – Marcos não utiliza esse termo nesta narrativa, cf.

467 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.95. 468 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p.77. 469 Veja: TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.192. 470 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.95. 471 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.77. 472 KEE, Howard The Terminology of Mark’s Exorcism Stories. p.232.

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1.31 e nem Mateus, cf. 8.15). Para Gnilka isso “torna claramente manifesta a

intenção [de Marcos] de apresentar Jesus em conexão com concepções bíblicas

antigas, como o Senhor da natureza e das forças que operam nela”.473

Segundo a análise de Kee, a forma como Marcos esquematiza o início de seu

evangelho, colocando a cura do endemoninhado na sinagoga como o primeiro ato

público de Jesus torna clara a intenção de Marcos: “é nos exorcismos que a

autoridade de Jesus é supremamente manifesta, e é pelos exorcismos que o reino

pode ser visto como estando próximo (cf. 1.15)”.474 Segundo ele, na base do seu

estudo do pano de fundo da palavra evpeti,mhsen, não é bastante simplesmente

compará-la com “reprovação”, como se tem feito. Suas implicações em Marcos 1.25

são claras: “Jesus profere a palavra de comando pela qual o demônio, como

representante das forças opostas a Deus e seus propósitos, é superado”.475

Kee conclui que pode ser perigoso comparar o crescimento da tradição dos

evangelhos com o desenvolvimento de tradições concernentes a religiosos

importantes ou figuras filosóficas no mundo Grego:

“O que pode ser negligenciado partindo de tal analogia literária

é que, por mais que muitos retratos pagãos e cristãos podem se

assemelhar um ao outro enquanto o processo culmina na formação

dos evangelhos, ao início a compreensão de exorcismos e curas de

Jesus era radicalmente diferente do significado que formalmente atos

comparáveis tiveram entre os operadores de milagres helenistas. Nas

fontes pagãs, as ações têm significado ou como eventos deles próprios

(relatórios de curas, evidências de poder mágico), ou eles são ditos

para criar uma aura sobrenatural ao redor de uma figura estimada do

passado. Embora seja verdade que nas narrativas do evangelho –

especialmente nas fases posteriores da tradição – esta função sirva em

relação a Jesus, no princípio os exorcismos eram compreendidos num

fundo muito mais amplo que puramente a questão cristológica, quem

473 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.95. 474 KEE, Howard The Terminology of Mark’s Exorcism Stories. p.242. 475 KEE, Howard The Terminology of Mark’s Exorcism Stories. p.242.

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é Jesus? Aquele fundo não era nada menos que o plano cósmico de

Deus pelo qual ele estava recuperando o controle sobre uma alienada

e hostil criação que estava debaixo de sujeição aos poderes de

Satanás. Os exorcismos de Jesus são descritos nas camadas mais

antigas da tradição do evangelho como contribuição ao cumprimento

daquela meta escatológica. Um fator significativo que os liga àquela

esperança de forma específica como foi expressado na literatura do

Judaísmo sectário é o termo r[g (= ejpitima'n), pelo qual significava

a palavra de comando que trazia os poderes hostis sob controle.” 476

Outra expressão que vale a pena ressaltar em 1.25 é Fimw,qhti (de Fimo,w –

aqui, traduzido como “cala-te”), cujo significado básico é “guardar silêncio”.

Segundo Cranfield, “a palavra era usada aparentemente como um termo técnico na

magia por atar uma pessoa a um feitiço, e tem sido sugerido que haja alguma idéia

assim aqui; mas o significado ‘esteja calado!’ é mais provável”.477

Gnilka sugere que aqui “tocamos pela primeira vez na teoria do mistério de

Marcos, o ‘Segredo Messiânico’. É indicado ao demônio que guarde para si o

conhecimento do ser de Jesus.”478 Gundry acrescenta que “o silêncio do espírito

começa o processo de exorcismo, mostra a superioridade de Jesus, e é acompanhado

do comando seguinte para sair imediatamente [e;xelqe evx auvtou – “sai dele”]”.479

Texto Grego Tradução (pessoal)

26 kai. spara,xan auvto.n to. pneu/ma

to. avka,qarton kai. fwnh/san fwnh/|

mega,lh| evxh/lqen evx auvtou/Å

E o espírito imundo, agitando-o e

gritando em grande voz, saiu (para

fora) dele.

476 KEE, Howard The Terminology of Mark’s Exorcism Stories. p.246. 477 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p.78. 478 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.95. 479 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.77.

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Marcos agora chama a atenção para os detalhes do exorcismo que intensificam

a batalha entre Jesus e o espírito imundo. O evangelista descreve a saída do espírito

imundo por meio de duas ações que precedem sua retirada: um movimento brusco

(spara,xan – usado em 9.26 para descrever a violência com que agitou o menino que

possuía, deixando-o em seguida no estado de semimorte) e um grito forte (fwnh/san

fwnh/| mega,lh|). Gnilka considera ser este “um último tormento ocasionado ao

homem que lhe serviu de morada até agora”.480

No grego clássico, sparavssw significa “desgarrar”, “rasgar”, “romper”. Na

LXX, evspara,cqhsan é a tradução da palavra hebraica v[;G" em 2Sm 22.8 (“agitar”,

“sacudir”, “estremecer”). O texto paralelo de Lucas descreve a cena assim: r`i/yan

auvto.n to. daimo,nion eivj to. me,son evxh/lqen avpV auvtou/ mhde.n bla,yan auvto,n

(lançando-o por terra o demônio no meio do povo, saiu dele, sem lhe fazer mal – Lc

4.35). Por isso, “parece que Marcos quer indicar movimento convulsivo”.481

Gundry ainda considera que “pondo a convulsão e o grito depois daquela

palavra de comando, Marcos faz da convulsão e do grito uma demonstração visível e

audível que o comando realmente havia efetuado um exorcismo”.482 Isso estabelece

alguma diferença do relato do menino surdo e mudo em 9.14-29, onde a convulsão

acontece mesmo antes da palavra de Jesus (cf. 9.20); todavia, se repete após Jesus

ordenar a saída do espírito imundo, conforme registrado em 9.26.

A expressão fwnh/san fwnh/| mega,lh| descreve o brado que o endemoninhado

deu durante seu acesso convulsivo. O paralelo de Lucas 4.35 não faz menção à esse

brado e quando Marcos descreve algo semelhante em 9.26 não utiliza a mesma

construção, mas o verbo mais comum para grito: kra,xaj (de kravzw– “gritar”).

“Gritar com grande voz” é uma expressão redundante que demonstra a intenção do

evangelista de, por um lado, descrever a intensidade do sofrimento do possesso e, por

480 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.95. 481 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.193. 482 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.77.

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outro, realçar a grandiosa batalha entre Jesus e o espírito imundo. Como afirma

Gnilka, “seu grito é como grito de morte”.483

Para Gundry, “o barulho do grito não deixa nenhuma dúvida: seu som

inarticulável mostra a eficácia do comando de Jesus para deixar de usar o seu nome e

seu título em sua autodefesa.”

TEXTO GREGO TRADUÇÃO (PESSOAL)

27 kai. evqambh,qhsan a[pantej w[ste

suzhtei/n pro.j e`autou.j le,gontaj(

Ti, evstin tou/toÈ didach. kainh. katV

evxousi,an\ kai. toi/j pneu,masi toi/j

avkaqa,rtoij evpita,ssei( kai.

u`pakou,ousin auvtw/|Å

E admiraram-se todos de modo que

discutiam entre si dizendo: O que é

isto? Um novo ensino com

autoridade, também aos espíritos

imundos ordena e eles lhe obedecem.

O verso 27 registra o assombro das pessoas usando a expressão evqambh,qhsan

(admiraram-se), que é sinônima de evxeplh,ssonto (maravilhavam-se, v.22). “Todos”

(a[pantej) enfatiza a “universalidade de seu espanto e assim o caráter impressionante

do exorcismo”.484 É bom observarmos que o verbo qambevomai(admirar, espantar) é

incomum em relatos de milagre e aparece somente neste. Pode descrever também o

espanto dos discípulos diante de um dito de Jesus, como acontece em 10.24 ao dizer

que “os discípulos se admiraram (evqambou/nto) destas suas palavras” e em 10.32

para expor que os discípulos “maravilhavam-se (evqambou/nto) e seguiam-no

atemorizados”. Para Taylor “este é um termo muito forte usado pelos poetas no

grego clássico, e às vezes na LXX; em linguagem habitual, significava grande

assombro”.485

483 GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos (vol I), p.95. 484 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.77. 485 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.193.

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A respeito da impressão que o episódio causa naqueles que assistem,

Schweizer considera que “a multidão percebe corretamente que o importante não é

este milagre sobre uma única pessoa doente. O que é decisivo é a autoridade de Jesus

que foi exibida pelo milagre, com a qual o ensino de Jesus a todos confronta, e com

que ele quer alcançar a todos”.486

Isso indica que o exorcismo em si não é a causa do espanto, mas a forma como

este acontece. Por isso, Taylor chama a atenção para o seguinte:

“O assombro se deve ao fato de que Jesus expulsa um

espírito imundo com sua palavra, sem recorrer a fórmulas mágicas, mas

também se deve ao seu ensino, como indicam os comentários da

multidão, e, sobretudo, ao sentido do numinoso e sobrenatural produzido

pela personalidade de Jesus. Em contraste com as narrações judaicas e

gregas, nos relatos evangélicos a realidade dos exorcismos não se prova

quebrando uma estátua, nem derramando uma tigela; tão pouco se puxa

o demônio pelo nariz do endemoninhado mediante um anel. Nos

exorcismos praticados por Jesus, basta uma palavra... Em vão

buscaremos nos relatos evangélicos semelhantes manipulações

mágicas.”487

No entanto, como já vimos (p. 125, 136) o “ensino novo com autoridade”

interagia como elemento mágico que promovia o espanto das pessoas. O espanto

causa uma discussão entre a multidão. Marcos utiliza o verbo suzhtei/n (discutiam),

que reaparece em seu evangelho em 8.11; 9.10,14,16 e em 12.28 e mais 4 vezes no

Novo Testamento com o sentido de “discutir”, “perguntar”, “disputar”.

A forma interrogativa Ti, evstin tou/toÈ (O que é isto?) intensifica a estranheza

do povo diante do ocorrido. Em 4.41, quando Jesus acalma a tempestade, em meio a

uma reação de espanto, uma pergunta semelhante é feita pelos discípulos: Ti,j a;ra

ou-to,j evstin o[ti kai. o` a;nemoj kai. h` qa,lassa u`pakou,ei auvtw/|È (Quem é este que

486 SCHWEIZER, Eduard. The Good News According to Mark. p.52-53. 487 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.193.

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até o vento e o mar lhe obedecem?). A diferença é que em 4.41 a pergunta gira em

torno da identidade de Jesus e em 1.27 acerca do seu ensino.

Novamente Marcos retoma a questão do “ensino” e da “autoridade” de Jesus

como já exposto em 1.21-22. Para Gundry, com isso Marcos “completa a moldura

do exorcismo a fim de fazê-lo apoiar a autoridade de Jesus como um professor”.488

Como já vimos anteriormente, segundo a crítica textual parece ser mais coerente

entender que originalmente katV evxousi,an (com autoridade) estava ligado à

expressão anterior: didach. kainh. (ensino novo). Então, trata-se de um “novo ensino

com autoridade”. A expressão kainov" significa novo em termos de “qualidade” e se

distingue de nevo", que significa novo no aspecto “temporal”.489

A descrição da fala da multidão se encerra com o uso de mais dois verbos:

evpita,ssei (ordena) e u`pakou,ousin (obedecem). O primeiro, é um termo comum

usado em 6.27 para descrever a ordem de Herodes para trazer a cabeça de João, em

6.39 para descrever a ordem de Jesus para que os discípulos colocassem a multidão

assentada em grupos por ocasião da multiplicação dos pães e em 9.25 ao se referir à

ordem de Jesus para que o espírito que tornava o menino surdo e mudo se retirasse.

O segundo, reaparece em 4.41 se referindo à obediência dos ventos e do mar

cessando a tempestade por causa da palavra de ordem de Jesus.

É preciso observar que, assim como a pergunta (O que é isto?) de 1.27 se

assemelha àquela feita em 4.41, também a conclusão de quem assiste o

acontecimento sobrenatural também é semelhante. Enquanto em 1.27 o que causa

espanto é o fato de que “aos espíritos imundos ordena e eles lhe obedecem” (toi/j

pneu,masi toi/j avkaqa,rtoij evpita,ssei( kai. u`pakou,ousin auvtw/), em 4.41 trata-se

de “quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem?” (Ti,j a;ra ou-to,j evstin

o[ti kai. o` a;nemoj kai. h` qa,lassa u`pakou,ei auvtw/|).

488 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.77. 489 Veja: TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.193.

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TEXTO GREGO TRADUÇÃO (PESSOAL)

28 kai. evxh/lqen h` avkoh. auvtou/ euvqu.j

pantacou/ eivj o[lhn th.n peri,cwron

th/j Galilai,ajÅ

E logo saiu a notícia dele (sua fama)

por todos os lugares em toda

circunvizinhança da Galiléia

Após o exorcismo, a fama de Jesus parece estar incontida. A notícia dele, ou

do seu ensino com autoridade que incluía o exorcismo, já não estava apenas no

conhecimento do povo local (de Cafarnaum), mas transcorria por toda a Galiléia.

Para Cranfield, a frase o[lhn th.n peri,cwron th/j Galilai,aj , pode significar:

“(1) toda a região ao redor da Galiléia, isto é, inclusive uma área maior que a

Galiléia (cf. Mt 4.24);

(2) ao longo da Galiléia [significando através da Galiléia] (th/j Galilai,aj

sendo um genitivo epixegético explicando peri,cwron);

(3) toda aquela parte da Galiléia que está ao redor (de Cafarnaum), isto é, uma

área menor que o todo da Galiléia.” 490

Taylor acha mais provável que Marcos “se refira aos povos da Galiléia

próximos a Cafarnaum”.491 Esta opinião encontra apoio no texto paralelo de Lucas

4.37, onde assim é descrito: kai. evxeporeu,eto h=coj peri. auvtou/ eivj pa,nta to,pon

th/j pericw,rou (cf. Tradução do Almeida Revista e Corrigida: E a sua fama

490 CRANFIELD, C.E.B. The Gospel According Saint Mark, p.81. 491 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.194.

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divulgava-se por todos os lugares, em redor daquela comarca). Então, “o efeito

deste ato de Jesus expande-se distante além de Cafarnaum”.492

É importante perceber no texto a indicação da rapidez com que a fama de

Jesus corre (cf. euvqu.j – “imediatamente”, “logo”) e também o seu raio de ação (cf.

pantacou – “por toda parte”). A expressão o[lhn (de o[loj – “todo”, “inteiro”) traz a

idéia de “inteiro”, “completo”, indicando que aquela região fora “totalmente”

invadida com a notícia do que Jesus havia feito.

Gundry sugere que em Marcos, até aqui então, “a palavra de Jesus havia

provado ser tão poderosa que tinha compelido as pessoas para deixar a sua ocupação

e o seu pai para o seguir; tão poderosa que tinha transcendido o ensino dos escribas;

tão poderosa que tinha derrotado uma força demoníaca; e tão poderosa que Jesus se

torna a conversa do território inteiro”.493

Taylor ainda lembra que “o principal propósito de Marcos é indicar a profunda

impressão causada no povo por Jesus; provavelmente o resumo pertence à narração

mesma, posto que esta alcança aí seu clímax natural”.494

492 SCHWEIZER, Eduard. The Good News According to Mark. p.53. 493 GUNDRY, Robert Horton. Mark: A Commentary on his Apology for the Cross. p.78. 494 TAYLOR, Vincent. Evangelio Segun San Marcos, p.194.

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CONCLUSÃO

Nessa dissertação, nos propusemos a mostrar que o Evangelho de Marcos está

estruturado em torno das narrativas de exorcismo. Assim, nos dois primeiros

capítulos de nosso trabalho, procuramos demonstrar como entre o povo de Israel a

visão do demoníaco fora elaborada, revista e até transformada pelo contato com

outras culturas e povos, cujos resultados transparecem em literaturas pseudepígrafas.

Nota-se que assuntos que envolviam as carências, as potencialidades, as alegrias e

dissabores da humanidade estavam cercados de complexidade, fazendo com que

surgissem esquemas explicativos para a questão do mal que variavam conforme o

tempo, os espaços e as culturas. Ao que parece, quanto mais complexo,

hierarquizado, horrendo e assustador era o esquema, mais coerente estava com a

imaginação que as pessoas viam representado o mal.

No capítulo três focalizamos o Evangelho de Marcos, fazendo uma análise

literária levando em conta seu estilo e sua construção redacional. Observamos de

forma esquemática os quatro relatos de exorcismo (que contam com a presença de

espíritos imundos) contidos neste Evangelho e sua importância no plano narrativo de

Marcos. Notamos que Marcos reproduz uma tradição do conflito entre o bem e o

mal, tendo como representantes em sua narrativa a Jesus de um lado e os espíritos

imundos de outro. No entanto, Marcos se distancia da forma como o mal é concebido

na Antiguidade (daí a importância do apanhado histórico dos capítulos um e dois), ao

contrapor os demônios e espíritos imundos a Jesus, fazendo assim um uso particular

da figura do mal. Marcos tende a estruturar suas narrativas em torno da figura do

Messias afastando e vencendo os inimigos.

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Desse modo, nossa pesquisa poderá conduzir à conclusão de que as narrativas

evangélicas de exorcismo podem ser o resultado de um fascinante entrelaçamento de

mitos e culturas. Ao nosso ver, isso já é uma grande riqueza para o saber. Todavia,

ao tentar fornecer uma resposta acerca do que tais narrativas pretendiam provocar

nos leitores de Marcos, surgem várias possibilidades. Talvez os relatos de exorcismo

reflitam um conflito intrajudaico, onde em meio a uma guerra cósmica, a

comunidade judaica é vista dividida entre “povo de Deus e povo de Satanás”, onde o

povo de Deus neste caso seria os fiéis ao Cristo. O que traria ao leitor? Consolo,

conformação diante de uma situação difícil, ou provocaria reações – isto é, instigaria

a conduta do povo diante do que estava acontecendo? A discussão está aberta.

A freqüente presença de escribas nas narrativas de exorcismo em Marcos tem

levado estudiosos como Ched Myers a concluir que o sentido desse ato poderoso de

exorcizar demônios é uma reprodução simbólica do conflito social, em que facções

rivais lançavam mão de Satanás para justificar suas diferenças. A rivalidade e o

conflito social ocorreria entre gente mais simples – camponeses, e a chamada “classe

dominante” (escribas, fariseus e grandes proprietários de terras). Essa é outra

possibilidade na forma de ver o exorcismo. Assim, o exorcismo acaba sendo o

principal veículo para articular o mito do combate apocalíptico entre as potestades e

Jesus, instigando seus seguidores a continuarem “exorcizando as forças malévolas da

opressão”.

Também é possível que os relatos de exorcismo volvessem o olhar dos

leitores para a dimensão da guerra cósmica em si mesma. Por esta perspectiva, a

narrativa configuraria o mundo a partir do pressuposto da existência de duas forças

antagônicas, levando o leitor à compreensão de que está inserido numa luta efetiva

contra os poderes do mal, que o prepara para a batalha escatológica.

Seja qual for a possibilidade mais provável do significado do exorcismo para

o leitor de Marcos, parece certo que tais narrativas trariam a convicção de que o mal

poderia ser vencido, seja ele de que tipo, dimensão ou origem fosse.

Quanto à expressão “espírito imundo” usada por Marcos para descrever o que

possui os indivíduos, se não houvesse o relato da possessão da filha da mulher siro-

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fenícia (7.24-30), onde “espírito imundo” é tratado como sinônimo de “demônio”,

poderíamos dizer que o autor deste Evangelho não imagina que “espírito imundo”

seja um demônio, mas um mal que acomete determinada pessoa e ele não sabe

explicar o que é e, então atribui a um “espírito imundo”. Ainda que permaneça a

dificuldade de entender o por que Marcos não chama “demônio de demônio” e a

possibilidade (defendida por Cranfield e outros) deste Evangelho ter passado por um

processo de reelaboração, com a mão de um redator final – o que justificaria uma

inclusão de demônio no texto (se bem que teria que investigar os extratos) – ainda

não podemos afirmar com segurança que Marcos entendia que espírito imundo não

era demônio. A desconfiança de que o evangelista tenha herdado essa terminologia

de literaturas pseudoepigráficas pode justificar o uso do termo, mas talvez precise de

um estudo mais profundo nessas literaturas para explicar a compreensão de tais

autores, se imaginam “espíritos” como seres distintos de “demônios”.

Em princípio, nota-se nos relatos de exorcismo em Marcos que o “espírito

imundo” sai do possuído sem uma definição de pra onde vai depois disso. No caso

do geraseno (Mc 5.1-20), os espíritos imundos pedem para não deixar o país (v.10) e,

depois, para entrar nos porcos (v.12). Isso pode ser um indício de que nestes relatos

o que Jesus faz e como a pessoa fica – antes, durante e após – o exorcismo, é mais

importante para o autor do que o destino do espírito imundo.

Em Mateus e Lucas, dentre os ditos de Jesus, encontramos um relato acerca

do que podemos chamar “pós-exorcismo”, ou seja, do que acontece com o espírito

imundo após o exorcismo – não com o possesso. Mateus 12.43-45 e Lucas 11.24-26

são paralelos quase idênticos. Além de pequenas diferenças redacionais, Mateus

acrescenta uma conclusão: Assim também acontecerá a esta geração perversa. Este

relato diz que “quando o espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos

procurando repouso, porém não encontra” (cf. Mt 12.43, Lc 11.24). Ainda que o

propósito final do relato seja a preocupação em não deixar a casa “varrida e

ornamentada” (Mt 12.44, Lc 11.25), possibilitando a volta do espírito imundo ao

corpo de onde fora expulso, parece que permanecer vagueando seja seu destino.

O texto de Marcos 1.21-28 é importante como um relato paradigmático que

fornece elementos para a compreensão dos demais exorcismos narrados neste

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evangelho. Há muitas semelhanças estruturais e semânticas entre esta narrativa e a do

possesso geraseno (Marcos 5.1-20). É possível que Marcos quisesse associar essas

duas narrativas. Em ambos, uma função missionária do relato se evidencia tanto pela

proclamação do espírito imundo de quem Jesus era, quanto pela fama de Jesus que

corre pela região (ou através do exorcizado que descobre uma “vocação missionária”

como é o caso do geraseno). O espírito imundo exerce uma função ambígua: ao

mesmo tempo que é um “intruso” e precisa ser expulso, também revela quem Jesus é,

autenticando de certo modo sua messianidade. O brado registrado no verso 24 do

cap. 1 é bastante significativo e nos conduz a pensar na relação das narrativas de

exorcismo com a cristologia de Marcos: Que temos nós contigo, Jesus Nazareno?

Vieste para perder-nos? Bem sei quem és: o Santo de Deus! Em 5.7, o “santo de

Deus” (cf. 1.24) é chamado “filho do Deus Altíssimo”: Que tenho eu contigo, Jesus,

Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te por Deus que não me atormentes!

Também notamos que o espaço geográfico onde essas reações dos demônios

surgiam no relato de Marcos é quando Jesus ia para uma região ainda não percorrida

por Ele e, geralmente distante da Judéia. A sinagoga de Cafarnaum, os sepulcros de

Gerasa, a casa de um estrangeiro (de Tiro) e as ruas de uma cidade da Galiléia

parecem constituir ambientes que favorecem o surgimento de espíritos imundos.

Em meio a um mundo abarrotado e aterrorizado por espíritos, Jesus é visto

como taumaturgo que traduz a ação e a presença de Deus como ação salvadora em

favor dos homens, gerando esperança messiânica sobre um povo que procura os

sinais de Deus na terra.

Enfim, esperamos que esta dissertação contribua para a percepção de que a

estrutura do Evangelho de Marcos incorpora as narrativas de exorcismo como relatos

importantes para seu escrito.

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APÊNDICE I:

COLABORAÇÃO ARQUEOLÓGICA:

CAFARNAUM NA ROTA DAS CARAVANAS PARA DAMASCO –

PROJEÇÕES SOCIAIS

As descobertas arqueológicas têm o poder de formar imagens do passado495.

O texto dos Evangelhos no Novo Testamento faz referência a locais definidos por

onde Jesus passou, ou realizou algo, ou até residiu. Muitos estudiosos têm

aproveitado os resquícios destes locais, onde “paleógrafos, filólogos, estudiosos da

numismática, arquitetos e especialistas em epigrafia unem-se no esforço para

decifrar, catalogar, analisar, interpretar e explicar uma cultura, um lugar, um

objeto”496 , para enriquecer o estudo do Jesus histórico. A arqueologia vale-se das

evidências materiais da existência de um povo, cultura ou civilização para explicar

seu surgimento, evolução, apogeu e eventual extinção.497

Segundo Horsley, só nos últimos anos os intérpretes de Jesus começaram a

levar em consideração os resultados das escavações arqueológicas. Antes, a

representação de Jesus como pregador apocalíptico que proclamava uma catástrofe

cósmica parecia não mais corresponder aos ditos que os especialistas consideravam

mais autênticos e alguns começaram a adotar métodos sociológicos e antropológicos

para estudar Jesus em seu contexto social, e a atenção voltou-se para a análise de

495 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História e Sociedade na Galiléia: O Contexto Social de Jesus e os Rabis. São Paulo: Paulus, 2000, p.11. 496 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica. São Paulo: Editora Cristã Novo Século, 2003, p.13. 497 Idem.

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classe e para a história social.498 Somente nas últimas duas décadas os arqueólogos

voltaram sua atenção especificamente para a Galiléia499. Essa arqueologia recém-

desenvolvida da Galiléia tem muito a oferecer para os estudos sobre Jesus.

Contudo, ao utilizarmos os resultados de escavações em sítios arqueológicos

para colocar as fontes literárias num contexto histórico-social precisamos nos valer

de alguns pressupostos.

Primeiro, embora a arqueologia tenha ganhado mais recentemente um papel

importante na compreensão do Jesus Histórico, constitui-se num trabalho marcado

pela complexidade. O trabalho inicial de identificar e classificar os artefatos

encontrados num determinado local é apenas um primeiro passo para a difícil tarefa

de compará-los com os de culturas similares, ordená-los numa seqüência cronológica

e, por fim, relacioná-los ao conhecimento prévio da antiguidade.500

Segundo, o arqueólogo formula hipóteses cujo conteúdo pode ser ou não

confirmado como verdadeiro, na tentativa de reconstruir a vida de um tempo e um

espaço que já não mais existem, traçar o desenvolvimento de um povo que ficou para

trás.501 Há um “abismo” entre nós e aquele tempo, local, cultura, povo. O estudo dos

objetos encontrados em escavações é a tentativa de transpor esse abismo.

E, em terceiro lugar, a arqueologia também possui seus limites e, portanto,

não se deve concluir que ela resolverá todas as questões. Sotelo afirma que suas

limitações são bem evidentes e somente um otimismo exagerado poderia levar a

esperar dela respostas unívocas.502 Esta limitação se acentua pelo fato de que só

recentemente a atenção de estudiosos da arqueologia convergiu especificamente para

a Galiléia e a interpretação das descobertas continua de acordo com o paradigma

498 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p. 12. 499 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p. 13. 500 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 14. 501 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 14. 502 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 14.

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padrão de “judaísmo”, “palestina judaica” ou “eretz Israel”503, havendo assim poucas

distinções de caráter geográfico ou social.

De fato, a Galiléia ficou quase invisível na interpretação histórica e

arqueológica.504 Exceção feita ao exame isolado de sítios de interesse especial,

como Nazaré, Cafarnaum505 e numerosos edifícios de sinagoga, explorações

arqueológicas mais sistemáticas começaram com as expedições a Merom506 e às

aldeias próximas, e em seguida com as escavações a Séforis.507 Sotelo nos lembra

que os objetos encontrados no curso de uma escavação pertencem ao povo que os

criou, são parte do tesouro cultural de uma nação, o que justifica a imposição de

limites ao trabalho do arqueólogo.508

Nossa pesquisa se dará em torno das descobertas no sítio arqueológico em

Tell Hum, o local comumente aceito para assinalar a antiga cidade de Cafarnaum.509

Nosso intento é prover uma compreensão do contexto histórico e social da fonte

literária de Marcos 1.21-28, cujo cenário é Cafarnaum.

1. Tell Hum: A Localização da Antiga Cafarnaum.

Desde 1856, Tell Hum tem sido identificada como a Antiga

Cafarnaum.510 Mas anteriormente pensava em Khan Minya como a possível

503 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p. 13. 504 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p. 13. 505 Há evidência arqueológica de que a aldeia foi estabelecida no início da Dinastia dos Hasmoneus (as moedas mais antigas encontradas no local datam do século II a.C.). O vilarejo, próximo à fronteira da província da Galiléia, situava-se num caminho transversal da rota comercial Via Maris. 506 Merom e Séforis são aldeias da Galiléia que passaram a ser exploradas na década de 80. Para maiores detalhes consulte: HORSLEY, Richard A. “Arqueologia, História e Sociedade na Galiléia: O Contexto Social de Jesus e os Rabis” Capítulo 2 – “Séforis e Tiberíades, monumentos de urbanização” p. 46-64. 507 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p. 13-14. 508 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 15. 509 Cf. CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia - Vol 1 A-C. São Paulo: Editora Hagnos , 2001. Verbete “Cafarnaum” p. 584-585. 510 ACHTEMEIER, Paul J. Harper’s Bible Dictionary. HarperCollins Publishers, New York, 1985. Verbete “Capernaum”, p. 154. Veja também: CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia... p. 584-585; e FREEDMAN, David Noel. The Anchor Bible Dictionary - Vol 1 A-C. Doubledoy, New York, 1992. Verbete “Capernaum” p. 866-868.

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localização de Cafarnaum, com o apoio de vários estudiosos.511 O arqueólogo inglês

Charles Wilson, do Fundo de Exploração da Palestina (FEP) foi o primeiro a

identificar Tell Hum com Cafarnaum, depois de concluir que a sinagoga encontrada

por Eduard Robinson em 1838512 era a mesma construída por um centurião romano,

como relata o evangelho de Lucas (7.5)513. A respeito desta sinagoga e suas

descobertas posteriores discutiremos mais adiante neste estudo.

Tell Hum, o local geralmente aceito para assinalar a antiga cidade, nada

mais é que um montão de ruínas, perto de Betsaida e Tabga514. Localizada na

margem noroeste do Lago Kinneret (Genesaré), na Galiléia, distante 16 Km de

Tiberíades, 3 Km de Tabga e 5 Km do ponto em que o Rio Jordão verte suas águas

ao lago.515 Destruída no século VII, Cafarnaum jamais foi restaurada. Um escritor

do século XII refere-se a Cafarnaum como “um lugar onde pescadores pobres vivem

com suas famílias”.516

Fora dos Evangelhos, Cafarnaum é mencionado pelo historiador Flávio

Josefo e por fontes talmúdicas, assim como em relatórios de peregrinos no período

bizantino.517 Dentre estes, encontra-se evidências fornecidas por Jerônimo (340-420

d.C.).518 Flávio Josefo menciona que Cafarnaum se envolveu na primeira revolta

contra Roma, e fontes talmúdicas relatam que uma comunidade cristã teria existido

ali por volta do século II d.C.519

Dois terços das ruínas pertencem a Custódia Franciscana da Terra

Santa520 desde 1894521; o resto, pelo lado oriental, é propriedade do patriarcado

greco-ortodoxo.522

511 CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia... p. 585. 512 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. Jerusalém: Franciscan Printing Press , 1995, p. 11. 513 Cf. SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 76-77. Veja também: ACHTEMEIER, Paul J. Harper’s Bible Dictionary... p. 155. 514 CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia... p. 584. 515 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 10. 516 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 76. 517 ACHTEMEIER, Paul J. Harper’s Bible Dictionary… p. 154. 518 CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia... p. 585. 519 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 76. 520 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 10-11.

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A estimativa da população de Cafarnaum também tem sido alvo de

debate. Sotelo afirma que Cafarnaum contava com aproximadamente 15 mil

habitantes523. Horsley diz que esta estimativa entre 12 mil e 15 mil habitantes logo

se transformou em base de sustentação de elaboradas propostas para uma ampla

“urbanização” da Baixa Galiléia, especialmente da margem ocidental do lago.524

Loffreda aponta que “em sua máxima expansão, durante o período

bizantino, Cafarnaum podia facilmente contar os 1.500 habitantes.525 Segundo

Horsley, essa extraordinária “urbanização” defendida por aqueles que estimam uma

grande população em Cafarnaum nos tempos de Jesus “tornou-se o fundamento para

uma cultura inteiramente cosmopolita na mente dos estudiosos do Novo

Testamento.526 Loffreda diz que qualquer cálculo de população para o período do

Evangelho é ainda prematuro e só podemos dizer que a população de Cafarnaum era

muito inferior a das grandes cidades do lago.527

Segundo Peter Richardson, Cafarnaum era uma pequena aldeia

camponesa.528 Essas diferenças na estimativa populacional se dão pelo fato de que os

arqueólogos que pesquisavam a Galiléia ainda não haviam levado em consideração a

“capacidade de produção” da terra nas adjacências de um determinado sítio. As

estimativas de população foram recentemente postas em bases mais lógicas, o que

baixaria aqueles números exagerados para aproximadamente um décimo.529 Parece

razoável aceitar a proposta de quem esteve in loco, que é o caso de Loffreda, bem

como considerar que, pelas plantas da cidade e fotos do sítio em Tell Hum, é difícil

imaginar aquela cidade comportando mais que 1.500 habitantes.

521 FREEDMAN, David Noel. The Anchor Bible Dictionary… p. 866. 522 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 11. 523 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 75. 524 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p. 106. 525 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 18. 526 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p. 106. 527 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 18. 528 RICHARDSON, Peter. “What has Cana to do with Capernaum?”. In: New Testament Studies, 48 (2002) p. 330. 529 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p. 106.

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Cafarnaum gozava de uma situação privilegiada, graças aos seus recursos

econômicos da pesca, agricultura, indústria e comércio.530 Era aparentemente

próspera e segura no primeiro século.531 Diz-se que era um próspero centro

comercial e serviu de entreposto entre as regiões norte e leste da Galiléia.532

Mantinha relações comerciais com a Alta Galiléia, Golan, Síria, Fenícia, Ásia

Menor, Chipre e África. Deduz-se isso das moedas e da cerâmica importada destas

regiões.533

A pesca parecia ter importância na subsistência da aldeia, 534 visto que

Cafarnaum controlava pelo menos 8 Km de praia, desde as fontes hoje chamadas de

et-Tabga até o alto Jordão. Loffreda, estando tantas vezes em Tell Hum, diz que

ainda hoje esse trecho do lago é especialmente rico em pesca.535 Porém, a aldeia

parecia ter um setor pobre, onde as casas eram construídas muito rudemente com

pedras de basalto fixadas com pedras menores e terra. O piso era feito de pedras com

terra nas fendas, os telhados eram feitos com ramos, terra e palha.536 Nessa

extremidade mais pobre foram encontrados equipamentos agrícolas como tigelas de

pedra, mós, prensas e moedores manuais, mostrando que a agricultura constituía a

base da economia ali.537 Loffreda, no entanto, argumenta que as casas até hoje

escavadas são bem mais modestas, mas não pobres, tão pouco parecem refletir

profundas desigualdades econômicas-sociais, ao menos na parte que tem

escavado.538

Desse modo, Tell Hum é sem dúvida uma rica fonte de pesquisa, visto

que a impressão de Loffreda, que ali esteve, não é de uma instalação rural surgida

por casualidade, mas um grande povo que construiu sua vida e suas casas de acordo

530 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 18. 531 RICHARDSON, Peter “What has Cana to do with Capernaum?” p. 331. 532 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 76. 533 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 19. 534 RICHARDSON, Peter “What has Cana to do with Capernaum?” p. 330. Cf. HORSLEY, Richard A. “Arqueologia” p. 107-108. 535 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 19. 536 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p. 106. 537 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p. 108. 538 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 20.

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com uma ordenação prévia e harmônica.539 Richardson diz que Cafarnaum dá um

acurado sentido de “lugar” para o Jesus Histórico.540

2. Cafarnaum: Lugar de Curas e Milagres nos Evangelhos.

Cafarnaum é citada diretamente nos Evangelhos 16 vezes, sendo 5 em

João, 4 em Lucas, 4 em Mateus e 3 em Marcos. Foi lugar freqüentemente

mencionado em conexão com a vida de Jesus.541 As escavações de Cafarnaum

facilitam a ambientação de muitas passagens do Evangelho.542

Através de Marcos 2.14 supomos que a cidade era um “centro coletor

de impostos”.543 Talvez um “posto alfandegário”544 (Mt 9.9; Lc 5.27). Segundo

Mateus, Jesus abandonou Nazaré e foi viver em Cafarnaum (Mt 4.13), que passou a

ser, em certo aspecto, “seu próprio povo”545 (Mt 9.1). “Se Jesus foi criado em

Nazaré, escolheu Cafarnaum como sua própria cidade (Mc 2.1)”.546 Cafarnaum era o

centro do ministério de Jesus.547

Lucas 7.1-5 nos informa que a sinagoga da cidade foi construída pelo

centurião do destacamento de soldados romanos ali estacionado.548 Jesus curou o

filho desse centurião, de acordo com o relato de Mateus 8.5-13 e Jo 4.46-54 (além de

Lucas 7.1-10, já citado). Particularmente, Jesus era ativo na sinagoga549 (Mc 1.21;

Jo 6.59) e em casa (Mt 8.14-17; Mc 1.29-34; 9.33). Alguns estudiosos supõem que

foi nas praias do mar da Galiléia, nesse lugar (Cafarnaum)550, que Simão Pedro e

539 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 24. 540 RICHARDSON, Peter “What has Cana to do with Capernaum?” p. 331. 541 CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia... p. 584. 542 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 68. 543 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 75. 544 CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia... p. 584. 545 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 68. 546 CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia... p. 584. 547 ACHTEMEIER, Paul J. Harper’s Bible Dictionary… p. 154. 548 CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia... p. 584. 549 ACHTEMEIER, Paul J. Harper’s Bible Dictionary… p. 154. 550 N.A.

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André abandonaram tudo para seguir a Jesus (Mc 1.16-17)551. Se assim for, os

irmãos Tiago e João também foram chamados por Jesus em Cafarnaum conforme Mc

1.19-20.

Cafarnaum nos Evangelhos é muitas vezes o palco de curas e milagres

de Jesus. Em Marcos 1.21-28, Jesus enfrenta um homem possesso de espírito

imundo na sinagoga em Cafarnaum. Em 2.1-12, Ele cura um homem paralítico. Em

Mateus 8.5-13, cura o servo do centurião. Em Marcos 5.21-43, cura a mulher com

fluxo de sangue e ressuscita a filha de Jairo. Em João 6.59, Cafarnaum é identificada

como o local onde Jesus pregou sobre o “pão da vida”.

Além de o próprio Jesus morar ali, outras casas também são

importantes. Havia a casa de Simão Pedro (Mc 1.29-34), a de Mateus (Mc 2.15-17),

a casa de Jairo, um dos principais da sinagoga (Mc 5.22-24, 35-43), a casa do

centurião romano (Lc 7.1-10) e de Tiago e João que, ao que tudo indica, ali também

residiam.552

A despeito de todo seu trabalho ali, no entanto, Jesus aparentemente se

sentiu rejeitado pelas pessoas de Cafarnaum e amaldiçoou a cidade553 (cf. Mt 11.23-

24; Lucas 10.15). Jesus teria amaldiçoado Cafarnaum porque seus habitantes não

responderam ao seu chamado ao arrependimento.554 A cidade recebeu a denúncia

mordaz quando Jesus condenou sua teimosia como pior que a de Sodoma555. A

condenação foi proferida contra ela, como a cidade incrédula que entrava a obra de

Jesus556.

3. As descobertas arqueológicas no sítio em Tell Hum.

551 CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia... p. 584. 552 Cf. Marcos 1.19-20 e LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 74. 553 ACHTEMEIER, Paul J. Harper’s Bible Dictionary… p. 154. 554 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 76. 555 FREEDMAN, David Noel. The Anchor Bible Dictionary…p. 866. 556 CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia... p. 584.

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Após as escavações feitas pelo inglês Charles Wilson no final do século

XIX, por volta de 1856, outras escavações foram feitas em 1881 comandadas por

H.H. Kitchner. No entanto, esses arqueólogos estavam apenas em busca de peças

cujo valor arqueológico lhes rendessem lucros no mercado de antiguidades.557

O local que já vinha sofrendo com os beduínos que freqüentemente

extraiam alguma coisa de Tell Hum, foi preservado graças ao fato de a ordem dos

franciscanos tê-lo adquirido em 1894. A custódia da cidade, que permanece com os

frades até hoje, impediu que se pilhasse a herança arqueológica de Cafarnaum.558 Em

1905, H. Kohl e W. Waztinger fizeram novos estudos no local como parte de uma

importante pesquisa sobre as sinagogas da Galiléia. De 1905 a 1926, outra dupla,

formada pelos frades franciscanos Wendelin Hinter Keuser e Gaudencius Orfali,

conduziu uma série de escavações no local, que incluiu a sinagoga e os arredores.559

Contudo, um novo impulso nas pesquisas arqueológicas em Tell Hum

veio com os franciscanos Virgilio Canio Corbo e Stanislao Loffreda no ano de 1968.

Suas 19 campanhas de escavações560 se estenderam até o ano de 1986, constituindo

atualmente as mais recentes descobertas do sítio arqueológico em Tell Hum. Nestas

investigações arqueológicas, algumas descobertas foram feitas como veremos a

seguir:

A Cidade - As ruínas de Tell Hum cobrem aproximadamente uma

superfície de seis hectares (aproximadamente 60.000 metros quadrados).561 Os

escavadores franciscanos da extremidade ocidental do sítio acreditam que a “aldeia

de Nahum”562 que existia no tempo de Jesus teve origem no período helenístico,

557 Cf. SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 77. 558 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 77. 559 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 77. 560 O “The Anchor Bible Dictionary” fala de 18 campanhas, Daniel Sotelo fala de 4 séries de escavações (embora este, ao verificar sua bibliografia percebe-se que não está nada atualizado, apesar de ser um livro recente, e não teve acesso direto a materiais do Corbo ou Loffreda), mas o próprio Loffreda fala que foram 19 campanhas de escavações. Cf. LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 7. 561 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 18. 562 O nome Cafarnaum vem do Hebraico – “Vila ou aldeia de Naum”. Cf. CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia... p. 584 e ACHTEMEIER, Paul J. Harper’s Bible Dictionary... p. 154.

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embora tenham encontrado também residências e cerâmica dos períodos do Bronze

Médio/Recente e Persa.563

No que tange a vida econômica do local, as escavações tem descoberto

prensas de azeite, moedores para trigo e cereais, tigelas de pedra e outros objetos e

utensílios. Estes objetos, quase sempre de pedra basáltica564 local, se fabricavam na

mesma Cafarnaum, como parecem demonstrar alguns fragmentos incompletos.

Eram considerados uma preciosa herança familiar. A Manufatura de vasilhas de

vidro constituía outra profissão industrial da população.565

Escavações recentes na área greco-ortodoxa (oriental) de Cafarnaum

encontraram abaixo de uma casa de banho romana do século II ou III os vestígios de

uma construção semelhante do século I, e abaixo dessa apenas restos de uma parede

do Bronze Antigo, sem nada entre uma e outra. A planta desta casa sugere que ela

foi construída para banhistas romanos, e não judeus.566 Um muro quebra-mar foi

construído ao longo do lago (como estação portuária?) nesse mesmo período.567

Epifânio afirma que, até o final do século IV d.C., a população de

Cafarnaum era inteiramente judia: “A tradição que proíbe a toda raça distinta habitar

com eles (com os judeus) está em vigor especialmente em Tiberíades, em Diocesarea

(Séforis), em Nazaré e em Cafarnaum”. Ademais, algumas passagens da Mishna

sublinham o fato de que, durante os três primeiros séculos da era cristã, a população

hebréia de Cafarnaum estava composta de dois grupos distintos: de uma parte os

hebreus ortodoxos e de outra os chamados “Minim”568 ou heréticos.569

563 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p.106. 564 O basalto é uma rocha vulcânica muito comum nos arredores de Tell Hum. 565 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 20. 566 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p.106. 567 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p.107. 568 Em hebraico, “sectários”. 569 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 29.

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Loffreda diz que do contexto se deduz que estes Minim de Cafarnaum

eram os hebreus convertidos ao cristianismo, ou seja, dos judeus cristãos.570 Horsley

diz que as explorações arqueológicas e as referências literárias a Cafarnaum não dão

motivo para imaginar qualquer influência helenístico-romana ou judaica incomum na

aldeia antes dos séculos II e III, a não ser o de uma possível guarnição “real”

estacionada ali por Antipas e seus sucessores, os Agripas.571

O cristianismo parece ter obtido um considerável crescimento em

Cafarnaum. Tal crescimento dos cristãos, diz Loffreda, entre a população de

Cafarnaum se deduz do freqüente uso de pratos de terra gravados com o símbolo

cristão da cruz.572 Esse tipo de cerâmica é encontrado em muitas casas dos bairros

até agora escavados. No princípio do século VII, ao começar o período árabe, muitas

casas foram abandonadas e se tornaram ruínas. Segundo Loffreda, isso permite

supor a saída de parte, ao menos, da velha população de Cafarnaum, tanto hebréia

como cristã. O abandono da sinagoga e da igreja octogonal, ainda afirma Loffreda,

dá a entender que a população de Cafarnaum se converteu pouco a pouco à nova

religião muçulmana.573

A Sinagoga - A sinagoga, de notáveis dimensões, chamava a atenção

por ser construída quase inteiramente com blocos quadrados de pedra branca e cinza,

diferente das casas particulares que eram construídas com pedras escuras de basalto.

Ao que parece, esses blocos eram trazidos de longe e seu peso podia chegar, em

alguns casos, a 4 toneladas.574 Os elementos decorativos em sua fachada provocam

encanto nos visitantes ainda hoje. Um detalhe da arquitetura interna que chama a

atenção é o uso dos frisos, uma pedra decorativa que conecta o topo das colunas que

formam o corredor do extremo norte da sinagoga.575

570 Cf. LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 29-30. 571 Cf. HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p.108. 572 Cf. LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p. 31. 573 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.31. 574 Cf. LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.32. 575 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 80.

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Horsley destaca que o edifício de sinagoga em Cafarnaum, é o mais

minuciosamente decorado da Galiléia, e o que mais se aproxima, em sua decoração,

da arte imperial romana.576 Loffreda diz que não exagerava E. Robinson quando

escrevia que “por custo, trabalho e decoração, o edifício supera tudo quanto temos

visto na Palestina”.577

A restauração parcial da sinagoga iniciada em 1922-1925 por G. Orfali e

depois continuada por Corbo desde 1976, oferece uma idéia de esplendor original do

monumento. Em 1984, todos os elementos arquitetônicos foram reagrupados

segundo critérios tipológicos e funcionais, e cuidadosamente catalogados pelo

arqueólogo Eugenio Alliata. O que se espera deste trabalho prévio é que forneça

bases mais sólidas para reconstruir o edifício.578

Duas colunas na parte interna da sinagoga trazem inscrições em grego e

aramaico, dando a entender que os nomes ali inscritos eram de pessoas que

financiavam a construção de tais colunas. Numa delas (em grego) se lê: “Herodes,

de Monimos e Justo filho com seus filhos erigiram esta coluna”.579

Antes das escavações de Corbo e Loffreda, muitos haviam sugerido que

abaixo da sinagoga branca poderia estar soterrada a sinagoga que Jesus visitou.

Albright, citado por Loffreda, dizia que “ninguém se atreve a demolir esta esplêndida

construção com a esperança aleatória de descobrir os restos subjacentes”.580 Mas a

partir de 1969, Corbo e Loffreda abriram numerosas valas no interior do edifício a

fim de encontrar e estudar os restos arqueológicos ocultos embaixo da sinagoga. Um

dos resultados da investigação foi que a sinagoga se apóia sobre uma plataforma

artificial.581 A sinagoga não teria sido construída em solo virgem, mas sobre

576 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p.127. 577 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.32. 578 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.32. 579 Veja foto da coluna in: LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.40. 580 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.43. 581 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.43.

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escombros de ocupações anteriores.582 Os arqueólogos, estudando essa estrutura

soterrada, dividiram-na em três estratos diferentes.

Estrato A: uma construção abaixo das laterais da sala de oração,

debaixo da varanda e do pátio oriental, com pavimentos de pedra, paredes de pedra

de basalto, portas, escadas e um sistema de drenagem. É evidente que estes variados

elementos pertencem a casas particulares.583 Para Corbo e Loffreda esta era uma

construção do século XIII a.C.584

Estrato B: um pavimento de pedra basáltica que se remonta ao

primeiro século, segundo Loffreda.585 Está embaixo da grande nave central da sala

de oração. Corbo e Loffreda admitem que este pavimento pode pertencer à sinagoga

construída pelo centurião romano, a qual Jesus visitou.586

Estrato C: uma camada de argamassa que media cerca de 30

centímetros de espessura sobre a qual as pedras que pavimentam a sinagoga e o pátio

foram colocadas. Segundo os arqueólogos, isso foi necessário para assegurar que a

sinagoga ficasse no lugar mais alto da cidade, como recomendava a literatura

rabínica.587

Nos três estratos foram encontradas moedas e é com base nelas que se

estima a data de cada uma dessas estruturas. Há uma diversidade de opiniões quanto

à datação da sinagoga branca. Para Corbo e Loffreda ela foi construída entre os anos

350 e 450 d.C. Após as escavações em 1905, Kohl e Watzinger sugeriram que a

construção teria sido erigida no século II d.C.588 Para outros escavadores, como

Wilson e Orfali, a sinagoga que se encontra em ruínas é a mesma que Jesus esteve.

A rejeição do século I como a data para a sinagoga parece encontrar unanimidade

entre os arqueólogos. Isso não significa que uma construção semelhante não tenha

582 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 82. 583 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.45 e cf. Também SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 82. 584 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.45. 585 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.45. 586 Cf. LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.45. 587 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 83. 588 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 82.

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existido no mesmo lugar.589 As evidências apontam para o fato de que a sinagoga

branca não é a que Jesus esteve, estas ruínas encontradas nas escavações seriam de

uma construção posterior, todavia, ocupando o mesmo ou quase o mesmo espaço

geográfico em que estava aquela primeira.

A Casa Octogonal - Em 1929, Orfali descobriu um tipo de construção

no formato octogonal590. Mais tarde, Corbo e Loffreda escavaram o local em busca

da compreensão do que seria aquela distinta obra. Segundo eles, embaixo da casa ou

igreja octogonal, havia uma outra construção que seria do século IV, e esta, seria

uma transformação de residências particulares591 que eram muito mais antigas.

Segundo Corbo e Loffreda essa estrutura original pertenceu ao período romano

antigo (63-70 d.C.).592

A planta da igreja (suposta593) consistia em um pequeno octógono

central, um octógono concêntrico maior e um semi-octógono exterior.594 Segundo

Sotelo, a forma octogonal era usada na construção de igrejas memoriais, em locais

com forte apelo religioso. Essas igrejas tinham como objetivo atrair peregrinos para

lugares considerados santos.595 Horsley aponta que no século IV Epifânio relata que

Cafarnaum estava entre aquelas pequenas cidades judaicas em que José de Tiberíades

queria construir igrejas.596 José de Tiberíades comandava um programa de

construção de igrejas de peregrinação, como foi o caso da “casa de Maria” em

Nazaré e a “casa de Tiago e João” em Tiberíades.

A questão é: Por que aquele lugar era considerado santo? Se for um

memorial, seria um memorial do quê? Corbo e Loffreda constataram que abaixo

dessa estrutura octogonal, nas casas soterradas há uma, que denominam sala nº 1, a 589 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 81. 590 Uma construção oitavada. 591 “Os comuns aparelhos de cozinha, que se espera encontrar em residências normais, estavam ausentes, ao passo que ali havia lâmpadas e jarras, indicando uma modificação radical nas atividades da casa. Cf. CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia... p. 585. 592 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 88. 593 N.A. 594 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.64. 595 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 88. 596 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p.105.

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qual defendem ser a casa de Pedro. Nos muros há muitas inscrições, dentre as quais

duas se referem ao nome “Pedro”. Sotelo diz que “se a palavra “Pedro” foi escrita

por um peregrino que visitava o santuário, não se pode descartar a hipótese de que o

nome seria do visitante e não do apóstolo”.597

Para Horsley o edifício do século IV em Cafarnaum, pequeno para uma

igreja, mas grande para uma sala, não continha traços de vida comunitária e culto.

Grande parte do espaço em torno da grande sala da “casa-igreja” era aparentemente

usada como dormitório para visitantes ou como cercado para seus animais.598

Acerca das inscrições nos muros, embora seu estado de conservação

fragmentário e precário não facilite sua interpretação, para Loffreda se pode,

contudo, deduzir algumas conclusões importantes, que não dão lugar a dúvidas

razoáveis.599 Horsley, no entanto, alega que os grafitos nas paredes eram

principalmente em grego (...) indicando que a construção era usada mais por

visitantes do que pela comunidade local que falava aramaico.600 De fato, Loffreda

observou que das 175 inscrições 151 estão em grego, 13 em siríaco oriental, 2 em

latim e apenas 9 em aramaico.601

Loffreda ainda se vale da descrição da peregrina Egeria, que viveu na

última metade do século IV, feita em latim com respeito à Igreja: “Em Cafarnaum, a

casa do príncipe dos apóstolos (São Pedro) foi transformada em Igreja; as paredes

desta casa têm permanecido até hoje tal qual eram”.602 Ainda um peregrino de

Piacenza, que visitou Cafarnaum em 570 d.C. escreveu: “Igualmente chegamos a

Cafarnaum na casa do bem aventurado Pedro, que atualmente é uma basílica”.603

597 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 89. 598 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p.105. 599 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.60. 600 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p.105. 601 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.60. 602 LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.63. A citação de Egeria em Latim é: “In Capharnaum autem ex domo apostolorum principis ecclesia facta est, cuius parietes husque hodie ita stant, sicut fuerunt”. 603 “Item venimus in Capharnaum in domo beati Petri, quae est modo basilica”. Cf. LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.66.

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O que encanta Corbo e Loffreda é que a sala nº 1 está exatamente

embaixo do octógono central.604 Então a casa-igreja octogonal seria um memorial

para marcar a casa de Pedro e um lugar onde Jesus esteve. Corbo e Loffreda estão

convencidos disso.

Não há dúvida de que o local é memorável, embora não tenhamos

condições de afirmar categoricamente ter sido ali, em tempos remotos, a casa do

Apóstolo Pedro. Por outro lado, apesar da análise crítica de alguns, como é o caso de

Horsley, não há razões suficientes para desprezar a tradição de ser ali a casa do

Apóstolo, visto não parecer possível de qualquer modo confirmar de forma concreta

a ligação da casa-igreja octogonal com Pedro. Segundo Sotelo, é certo que a

construção é um memorial ligado ao ministério de Jesus, levando muitos associá-la à

casa de Pedro.605 Assim, o mais razoável diante das muitas controvérsias é dizer que

este ainda é o lugar mais provável da residência do Apóstolo Pedro.

O Ostracon - Entre os achados nas escavações em Cafarnaum,

encontra-se um pequeno ostracon triangular, um fragmento de cerâmica com uma

inscrição, medindo cerca de 4x5 cm e datado do período entre o romano antigo e o

antigo bizantino (cerca de 200 a 400 d.C.). A inscrição é um achado raro nas

escavações da Palestina.606 Examinando as cerâmicas e moedas encontradas no

mesmo local se chegou a estas datas aproximadas. Mesmo fragmentária, ela é de um

valor enorme para epígrafos e historiadores.607

A interpretação das três linhas inscritas no ostracon com um total de

nove caracteres também tem sido objeto de controvérsia. Para que fizesse sentido

foram acrescentados alguns caracteres e foram lidas em hebraico assim: “purificai a

604 Cf. LOFFREDA, Stanislao. Cafarnaum. p.66. 605 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 90. 606 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 90. 607 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 90.

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escória do vinho, seu sangue, oh! Senhor”.608 Para Corbo, seria um fragmento de um

jarro usado na celebração da eucaristia.

Para Horsley isto é um exemplo perfeito de uma interpretação cristã

exagerada dessa estrutura (se referindo a casa-igreja octogonal609) e dos

remanescentes materiais a ela agregados610, pois segundo uma revisão do texto feita

por J.F. Strange611, muito provavelmente tratava-se de uma jarra comum inscrita com

a mensagem mais doméstica em aramaico: “[nome] o fabricante; vinho que ele

espremeu. Que ele seja para o bem”.612

Essas conclusões diversas devem-se aos pressupostos que guiam o

processo de interpretação, evidenciando que esse pequeno objeto parece não oferecer

subsídio para, a partir dele somente, chegar a uma grande e significativa descoberta

arqueológica. A reconstrução do texto do ostracon mostra como o debate teórico

entra em jogo no processo de interpretação das datas arqueológicas.613

Desse modo, as descobertas em Tell Hum são importantes por trazer em

benefício da pesquisa o ampliar das dimensões do conhecimento acerca da Galiléia

nos tempos de Jesus e seus discípulos. Com isso, entendemos que os desafios são

maiores do que as simples escavações, mas também da interpretação que se faz em

torno delas. Tell Hum ainda não tem todas as respostas, mas parece ser seguro que

se trata da antiga cidade de Cafarnaum.

Os fragmentos de cerâmica com desenhos de cruzes, a igreja

octogonal, bem como a sinagoga parecem demonstrar que em algum momento da

608 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 90-91. Veja também: HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p.105, onde fornece a seguinte inscrição: “Purifica [a jarra de] vinho, [teu] sangue, ó Iahweh” 609 N.A. 610 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p.105. 611 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 91. 612 HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História… p.105. Veja também: SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 91, onde a versão aramaica seria: “N, o fabricante de vinho, vinho que foi espremido. Pode ser muito bom”. 613 SOTELO, Daniel. Arqueologia Bíblica... p. 93.

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história daquele local, judeus cristãos e judeus ortodoxos teriam ali convivido.

Precisar o período em que isso aconteceu pode ser algo não tão relevante para o

senso histórico mais objetivo daquela aldeia. Talvez Sotelo esteja sendo razoável ao

afirmar que a noção de um cristianismo judaico é frágil demais para ser usada além

de qualquer questionamento.614

A casa octogonal é um memorial para os cristãos. Ela pode ser a

demonstração de que casas privadas foram transformadas em templos pelos cristãos

do primeiro século, mas não nos dá a resposta segura de que aquele seria o local da

casa do Apóstolo Pedro.

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