CARAVALHO, Joaquim Barradas de - Para uma explicação de Portugal.2.pdf

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  • PARA UMA EXPLICAO DE PORTUGAL

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    PARA UMA EXPLICAO DE PORTUGAL

    11 ANTERO DE QUENT AL

    Tendo em conta o assunto que nos propomos tratar, parece-nos no haver a mnima duvida de que a conferncia sobre as Causas da decadncia dos povo~ pennsulares nos trs ltimos sculos ('), proferida na noite de 27 de Maio de 1871, na sala do Casino Lisbonense, o texto chave. :.;: aquele em que encontramos os pontos fulcrais daquilo a que poderemos chamar a explicao de Portugal de Antero de Quental, ainda que outros textos nos possam trazer contribuies sobre alguns pontos de detalhe.

    1. As Causas da Decadncia. Antero e Herculano.

    Antero, no 29. ano da sua existncia, comea por se perguntar as razes que levaram a Pennsula, depois de desempenhar um papel to importante durante a Idade Mdia e o primeiro perodo do Renascimento, situao de abatimento e insignificncia econmica, social e cultural dos sculos XVII, XVIII e XIX:

    Meus Senhores: a Pennsula, durante os sculos XVII, XVIII e XIX, apresenta-nos um quadro de abatimento e insignificncia, tanto mais sensvel quanto contrasta dolorosamente com a grandeza, a impor-tncia e a originalidade do papel que desempenhAmos no primeiro perodo da Renascena, durante toda a Idade Mdia, e ainda nos ltimos sculos da Antiguidade C). Quais as causas da decadncia 1 Vejamos o texto que melhor sintetiza o seu pensamento:

    Quais as causas dessa decadncia, to visvel, to universal, e geralmente to pouco explicada? Examinemos os fenmenos, que se

    ( I) Conferlncia.J DemocrtJtlctu - Cmaas da decadbzcia dos povos peninsulares nos trs ultimos slcu1os. Discurso pronunciado na noite de 27 de Maio, na sala do Casino LisboDense, por Antero de Quental, Porto, na tiPo Comercial, 1871, fn..8.o, de 48 pginas, seodo uma de advertncia.

    (Z) Pro.ftu, Volume li, Usboa, s/d, p. 92.

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    deram na Pennsula durante o decurso do sculo XVI, perodo de transio entre a Idade Mdia e os tempos modernos, e em que aparecem os germens, bons e maus, que mais tarde, desenvolvendo-se nas sociedades modernas, deram a cada qual o seu verdadeiro carcter. Se esses fenmenos forem novos, universais, se abrangerem todas as . esferas da actividade nacional, desde a religio at indstria, ligando-se assim intimamente ao que h de mais vital nos povos - estarei autorizado C .. ) a concluir que nesses novos fenmenos que se devem buscar e encontrar as causas da decadncia da Pennsula. - Ora esses fenmenos capitais so trs, e de trs espcies: um moral, outro poltico, outro econmico. O primeiro a transformao do Catolicismo, pelo Concilio de Trento. O segundo, o estabelecimento do Absolutismo, pela runa das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das Conquistas longnquas. Estes fenmenos assim agrupados, compreendendo os trs grandes aspectos da vida social, o pensamento; a poltica e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revoluo se operou, durante o sculo XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revo-. luo foi funesta, funestssima. Se fosse necessria uma contraprova; bastava considerarmos um facto contemporneo muito simples: esses trs fenmenos eram exactamente o oposto dos trs factos capitais, que se davam nas naes que l fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilizao. Aqueles trs factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma e pela Filosofia; a elevao da classe mdia, instrumento

    d~ progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, at ao dia em que os destronou; a indstria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar s naes uma concepo nova do Direito, substituindo o trabalho fora, e o comrcio guerra de conquista C). Para Antero existiram portanto trs fenmenos capitais: um de ordem

    moral, outro de ordem poltica, e um terceiro de ordem econmica. O primeiro foi a tranformao do Catolicismo pelo Conclio de Trento.

    O segundo, o estabeleCimento do Absolutismo em consequncia da runa das liberdades locais. O terceiro foi a escalada das Conquistas longnquas.

    Ora, talvez de maneira mais inconsciente d que consciente, ... Antero acusa a dedada do historiador (Herculano) pelo menos desde as Causas da decadncia dos Povos Peninsulares, ... (4).

    Antero fala-nos da transformao do Catolicismo pelo Conclio de Trento. Herculano escreveu a Histria da Origem e Estabelecimento da

    (l) Ibid., pp . .107-108-109. . (4) Joel Seno, Presena de Herculano, in Seara Nova, n.OI 1.194-1195, Lisboa, 2S de

    Novembro e 2 de Dezembro de 1950.

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    Inquisio em Portugal C), depois de ter escrito o Eu e o Clero ('), as Consideraes Pacficas C), as Solemnia Verba (') ...

    Antero fala-nos do estabelecimento do Absolutismo pela runa das liberdades locais. Herculano fala-nos do municipalismo, grande base da diversidade da vida da Nao, a diversidade medieval que se opunha unidade renascentista. Pensamos aqui, sobretudo, nas Cartas sobre. a Histria de Portugal ('), no esquecendo os Apontamentos para a Histria dos Bens da Coroa e dos Foraes ('11), as Cogitaes soltas de um homem obscuro (").

    Finalmente, Antero fala-nos das Conquistas longnquas. Herculano, tinha escrito nas Cartas sobre a Histria de Portugal ('2): Nem descobrimentos, nem conquistas, nem comrcios estabelecidos pelo privilgio da espada, nem o luxo e magestade de um imprio imenso, nos podem ensinar hoje a sabedoria social.

    Antero aprendeu muito com a obra do nosso primeiro e grande histo-riador ('3). Relacionadas com estes trs pontos-chave, encontramos muitas consideraes, mesmo noutros textos de Antero, que provem conscientemente ou no da obra de Alexandre Herculano.

    Assim, ainda nas Causas da decadncia dos povos peninsulares ... :

    Na Idade Mdia a Pennsula~ livre de estranhas influncias, brilha na plenitude de seu gnio, das suas qualidades naturais. O instinto poltico de descentralizao e federalismo patenteia-se na multiplicidade de reinos e condados soberanos, em que se divide a Pennsula, como um protesto e uma vitria dos interesses e energias locais, contra a unidade uniforme, esmagadora e artificial. Dentro de cada uma dessas divises, as Comunas, os Forais, localizam ainda mais os direitos, e manifestam e firmam com um sem nmero de instituies, o esprito independente e antonmico das populaes. E esse esprito no s independente: , quanto a poca o comportava, singularmente democrtico. Entre todos os povos da Europa centraI e ocidental, somente os da Pennsula

    (5) 3 Vols., 9.- ed. (') Opsculos, VoI. lU, 4,- 00. (1) Ibid. (') Ibid. (') Ibid., Vol. V, 4.- 00.. (10) Ibid., Vol VI, 2.- ed. (11) Ibid. (12) Ibid.; Vol V, 4.- 00., p. 140 (13) Ver o nosso livro: Da Hlst6rla-Cr6nlca Hi,,:6riaCilncia,Coleclo Hon

    7lOnte, Livros Horizonte, Lisboa, 1972, especialmente pp. lU.I26; 2. - 00., 1976, PP. 107 .. 109 . .- Antero chama a Femlo Lopes pai da nossa hlstria. nos Esbocetos Biogrficos - O Infante D. Henrique, in Prosas, VoI. I, p. 52, Coimbra, 1921. Ver o ndsso li'Vl'O acima indicado, 1..- ed., pp. 90-91, 2.- 00., PP. 78-79,. Ver ainda e sobretudo: Maria Lcia Perrone tre Faro Passos, O Heri na cCrnica de D. Joo I, de Ferno Lopelf, ed. Prelo, Lisboa, 1974

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    escaparam ao jugo de ferro do feudalismo. O espectro torvo do castelo feudal no assombrava os nossos vales, no se inclinava como uma ameaa, sobre as margens dos nossos rios, no entristecia os nossos horizontes com o seu perfil duro e sinistrO) ('4). Entre todos os povos da Europa central e ocidental, somente os da

    Pennsula escaparam ao jugo de ferro do feudalismo. No nos esqueamos de que Herculano escreveu os Apontamentos para a Histria dos Bens da Coroa e dos Foraes ('5), e sobretudo Da Existncia ou No-Existncia de Feudalismo nos reinos de Leo, Castela e Portugal C).

    Algumas pginas mais, e Antero escreve: E que tristssimo quadro o da nosse polftica interior! As liberdades

    municipais, iniciativa local das Comunas, aos Forais, que davam a cada populao uma fisionomia e vida prprias, sucede a centralizao, uniforme e esterilizadora. A realeza deixa ento de encontrar uma resistncia e uma fora exterior que a equilibre, e transforma-se no puro absolutismo; esquecendo a sua misso, cr ingenuamente que ,os povos no so mais do que o patrimnio providencial dos reis. O pIor que os povos acostumam-se a cr-lo tambm! Aquele espfrito de independncia... da Idade Mdia, adormece e morre no seio popular. O povo emudece; negam-lhe a palavra, fechando-lhe as Cortes; no o consultam, nem se conta j com ele. Com quem se conta com a aristocracia palaciana, com uma nobreza cortem, que cada vez se separa mais do povo pelos interesses e ~los sentimentos, e que, de classe, tende a transformar-se em casta. Essa aristocracia, como um embarao na circulao do corpo social, impede a elevao natural de um elemento novo, elemento essencialmente moderno, a classe mdia, e contraria assim todos os progressos ligados a essa elevao. Por isso decai tambm a vida econmica: a produo decresce, a agricultura recua, estagna-se o comrcio, deperecem uma. por uma as indstrias nacionais; a riqueza, uma riqueza faustosa e estril, concentra-se em alguns pontos excepcionais, em quanto a misria se alarga pelo resto do Pas: a populao dezimada pela guerra, pela emigrao, pela misria, diminui de uma maneira assustadora. Nunca povo algum. absorveu tantos tesouros, ficando ao mesmo tempo to pobre! C,). Herculano tinha escrito nas Cartas sobre a Histria de Portugal:

    O elemento monrquico foi gradualmente anulando os elementos aristocrtico e democrtico, ou, para falar com mais propriedade, os

    (14) P1'ostu. Vol. 11, pp. 95-96. (15) OpflSculos, VoI. VI, 2.- ed. C") Ibid. (i7) Prosas. Vol. 11, pp. 102-.103-104.

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    elementos feudal e municipal, anulando-os no como existncias sociais, mas como foras polticas at que o princpio monrquico se toma a nica fora poltica, que a unidade absoluta se caracteriza rigorosa-mente e, sem aniquilar as classes sociais, as dobra, subjuga e priva da aco pblica. Servas, elas se corrompem rapidamente; a gangrena eiva por fim o prprio trono; e, em menos de um sculo, a nao portuguesa desaparece debaixo das runas da sua nacionalidade e independncia ('8).

    Ainda nas Causas da decadncia dos povos peninsulares ... encontramos o elogio da nossa Idade Mdia, a fazer-nos lembrar Herculano:

    Urna coisa que impressiona quem estuda os primeiros sculos da monarquia portuguesa o carcter essencialmente agrcola dessa socie-dade. Os cognomes dos reis, o Povoador, o Lavrador, j por si so altamente significativos. No meio das guerras, e apesar da imperfeio das instituies, a populao crescia, e a abundncia generalizava-se. A arborizao do Pas desenvolvia-se, a charneca recuava diante do trabalho. As armadas, que mais tarde dominaram os mares, saram das matas semeadas por D. Diniz. No reinado de D. Fernando era Portugal um dos pases que mais exportavam. A Castela, a Galiza, a Flandres, a Alemanha forneciam-se quase exclusivamente de azeite portugus; a nossa prosperidade agrcola era suficiente para abastecer to vastos mer-cados. O comrcio dos cereais era considervel. No sculo XV vinham navios venezianos a Lisboa e aos portos do Algarve, trazendo as mercado-rias do Oriente, e levando em troca cereais, peixe salgado e frutas secas, que espalhavam depois pela Dalmcia e por toda a Itlia. Sustentvamos tambm um activo comrcio com a Inglaterra. As classes populares desenvolviam-se pela abundncia e o trabalho, a populao crescia. No tempo de D. Joo 11 chegara a populao a muito perto de trs milhes de habitantes... Basta comparar este algarismo com o da populao em 1640, que escassamente excedia um milho, para se conhecer que urna grande decadncia se operou durante este intervalo I - Dera-se, com efeito, durante o sculo XVI, uma deplorvel revoluo nas condies econmicas da sociedade portuguesa, revoluo sobretudo devida ao estado de coisas criado pelas conquistas. O proprietrio, o agricultor, deixam a charrua e fazem-se soldados, aventureiros: atra-vessam o oceano, procura de glria, de posio mais brilhante ou mais rendosa. Atrada pelas riquezas acumuladas nos grades centros,

    (18) Opfuculos, VoL V, 4.- ed., pp. 132-133.

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    a populao rural aflui para ali, abandona os campos, e vem aumentar nas capitais o contingente da misria, da domesticidade ou do vcio ("). Finalmente, nas Causas da decadncia dos povos peninsulares ... , trs

    linhas em que Antero, tal como Herculano, ope monarquia centralizada, o municipalismo, a vida municipal:

    Oponhamos monarquia centralizada, uniforme e impotente, a fede-rao republicana de todos os grupos antonmicos, de todas as vontades

    (19) Prosas, VoI. 11, PP. 12,9.130. - Outros textos poderemos citar, ainda das Causas da decadTfcia dos poV03 peninsulares ... , em que de uma maneita mais longinqua ou mais proxim..'l. mais consciente ou menos consciente, a expfu:ao de Portugal de Antero descola da exp1k:ao de Portugal de Herculano. - Vejamos alguns passos lll'ai5 das Causas da decadncia ... : o cris-tianismo sobretudo um sentimento; o catolicismo 6 sobretudo uma Instituio. Um vive da f e da inspimo; o outro do dogma. e da disciplina.. Toda a histria -religiosa, at ao meado do sculo XVI, Dlo mais do que a tramormalo do sentimento cristo na. instituio catlica. A Idade Mdia. 6 O perlodo da transio: h ainda um, e o outro apuece j. Equilibram~. A unidade v-6e, fa.z-se sentir, mas Dio chega ainda a sufocar a vida local e autonmk.u (lbid., P . .110). - cSim, meus senhores! Essa mquina temerosa de compresSo, que foi o c:atoIicismo depois do concilio de Trento, que podia ela oferecer aos povos? A intolerncia. o embruteci. mento e depois a morte! (lbid., p. 117). - c. .. O catolicismo dos ltimos trs sculos. pelo seu principio, pela .. disciplina, pela sua politica, tem sido no mundo o maior iniIniM das naes, e ~rdadeiramente o tmulo das nacionalidades. (lbid., P. 120). - E a ns, espanhis e portugueses, como foi que o catolicismo nos anulou? O c:arolicismo pesou sobre ns DOr todos os lados, com todo o seu peso. Com a Inquisio, um terror invi9vel paira sobre 11 sociedade; a hipocrisia tOl11ll~ um vicio nacional e necessrio; a delalo 6 uma virtude religiosa; a

    e~puJ.so dos Judeus e Mouros empobrece as duas naes, paralisa o comrcio e a indstria, e d um golpe mortal na agricultura em todo o Sul da Espanha; a perseguio dos cristos--IlOVOS faz desaparecer os capitais; a Inquisio passa os mares, e, tor.nano-nos hostis os tndtos, impedindo a fuso dos conquistdores e dos conquistados, toma impossivel o estabele-cimento de uma colonizao slida e duradoim; na Am6rica despovoa as Antilhas, apavora as populaes indtgenas, e faz do nome de oristlo um slmbolo' de morte; o taror religioso, finalmente, corrompe o carcter nacional, e faz de duas naes generosas, hordas de fanticos endurecidos, o horror da civilizalo {lbid., pp. 120-121 l. - ... 0 ideal da educalo jesuttica um povo de crianas mudas, obedientes e imbecis; realizou-o nas famosas Misses do Paraguay; o ,Paraguay foi o reino tios cus da Comparihla de Jesus; pel'feita ordem, perfeita devoo; uma coi5a s faltava, a alma, isto , a dignidade e a vontade, o que distingue o homem da animalidade! &am estes os beneficios que levvamos s raas selvagens da Amrica pelas mos civilizadoras dos padres da Comptnhial Por isso o gnio livre popular decaiu, adormeceu por toda a parte: na arte, na liberatura, na religio (lbid., P. 121) .. - D. Sebastio, o disc1pulo dos jesuftas, vai morrer nos areais de Africa. pela fi catlica, Dlo .peJa nao .. portuguesa. Cados V, Filipe 11, pOem o mundo a ferro e fogo. porque? Pelos interesses espanhis. Pela. grandC'lll de Espama.? NIo: peja grandeza e pelos interesses de Romal...lt (lbid., p. 123) - cEra ess a poltlica nacionol desses reis famosos:. eu chamo a isto simple6mente trair as naes. r- Tal 6 uma das causas, se.nIo a principal, da decadncia dos povos peninsulares. Das influncias deletias ileDhwna foi tio universal, nenhum lanou tio fundas ratzes ... (.lbid., p. 123). - ... h em .todos ns, por mai6 modernos que queiramos seI", h ] oculto, dissimulado. mas 010 inteiramente morto, um beato, Um fantico .ou um jesuIta! Esse moribundo que se er8Uc dentro em ns 6 o inimigo, o passado. II preciso entemi-lo por uma vez. e com ele o esplrito sinistro do catolicismo de Trento (lbid., pp. 123-124) ... - cEsta causa actuou principalmente sobre a vida moral; a segunda, o Absolutismo, apesar de se reflectir no estado dos espfritos, actuou principalmente na vida politica. e social. A hi6t6ria da transformao das monarquias peninwlares longa, e, pam a minha pouca. cincia.. obsoura e at cert& ponto desconhecida; no a poderia eu fazer aqui. Basta dizer que o earcter dessas monarquias du~te a Idade

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    Mdia contrasta singu!armeote com o que lhes encontnunos no sculo XVI e nos seguintes Os reis ento no eram absolutos; e no o eram, porque a vida polttica local, forte e vivaz, no s no lhes deixa -um grande clroulo de aco. mas ainda, dentro desse mesmo cilXUlo, lhes opunha ex:pans!o da autoridade embaraos e uma continua vigilncia. Os privilgios na nobreza e do clero, 'por um lado, e pelo outro, as instituies populares, os municipios. as comunas, equilibra'V3Dl oom ilDIIlS ou menos oscilaes o peso da coroa. Para. as questes sumas, -para os momentos de crise, l estavam as Cortes, aonde todas as classes sociais tinham repl"t!-sentantes e voto. A liberdade era ento o estado normal da PentnsuJa. -. No sculo XVI, tudo isto mudou. O .poder absoluto sssenta-se sobre a rulna das instituies locais (Ibid., p. 124) .- A cabea de Padilla (D. Juan de Padilla,- chefe dos communerCitf, de Toledo) rolou, e com ele, decapitada tambm, caiu a antiga liberdade municipal, A centralizao monrquica, pesada, unifO'.lllle, caiu sobre aPen1nsula como a pedra de um tmulo. A respiraio de milhares de homens SU&peDdeu.se, para se conoentrar toda no peito de um homem excepcio~. de quem o acaso do nascimento fazia um deus. Se, ao menos, esse Deus fosse propicio. bom, provi-dencia.ll Mas a centralizalo do absolutismo, prostrando o povo, corrompia ao mesmo tempo o rei D. Joo lU, esse fantico de ruim condio, Filipe lI, o dem6nio do Meio-Dia, inquisidor e verdugo das naes, Filipe 111, Oarlos IV, 1010 V, Afonso VI. devassos uns, outros desor-deiros, outros ignorantes e vis, sIo bons exemplos da 'lealeza absoluta, infatuada at ao vicio, at ao crime, do orgulho do prprio poder, possessa. daquela loucura cesariana, com. Que a natureza faz expiar aos dspotas e desigualdade monstruosa, que os pe como que fora da humanidado. A tais homens, sem garantias, sem inspecIo. oonfiaram as naes cegamente os seus destino (Ibid., pp. 1~-126). ---Outras monarquias, a francesa por exemplo. sujei-tava.m o povo, mas ajudavam por outro 1ado o seu progresso. Aristocrticas pelas rahes. tinham pelos frutos muito de populares. A burguesia, a quem estava destinado o futuro, erguia-se, comeava a ter \'Oz. As nossas monarquias, porm, tiveram um carcter exclusivamente aristo-crtico: eram.-no pelo princlpio, e eram-no pelos resultados. GovernaV8~ ento pc. nobrezJ. epam a nobreza. As consequncias sabemo-las ns todos. Pelos morgados, vinculou-se a terra, criaram-se imensas propriedades. Com isto, anulou-se a classe dos pequenos ipropriet.rios; li grande cultura sendo entlo impossfveI, e desaparecendo gradualmente a pequena. a agricultura caiu; metade da Penfnsula transformou-se numa charneca: a popula!o decresceu, sem que por isso se aliviasse a mi6ria. Por outro lado, o espmto aristocrtico da monat'Quia. opondo-se natumJmente aos progmlSOS da classe mdia, impediu o desenvolvimento da burguesia, a classe moderna por excelncia, ciYilimdora e iniciadora, j na indstria, j nas cincias, j no comrcio. Sem ela o que podlamos ns ser nos grandes trabalhos com que o espfrito moderno tem trans-formado a sociedade, a inteligncia e a natureza? O que realmente fomos; nulos, graas IDOnafquia aristoortica! Essa monarquia, acostumando o povo a servir. babituando-o inrcia de quem espera tudo de cima, obliterou o sentimento instintivo da liberdade. qUf'!brou a. energia das vontades, adormeceu a .iniciativa; quando mais tarde lhe deram a liberdade. nio 'a com-,preendeu; ainda hoje a nlocompreeode, nem 68.be fazer uso dela. As revolues podem chama:" por ele, sacudi-lo com fora: continua. dormindo \gelI1pre o seu sono secularl (Ibid., pp. 126--127) ..--IA estas influncias cie1et6rias, Il estas duas causas principais de decadncia. uma moral e outra ipOlftica jll!Dfa-se umil terceira, de carcter sobretudo econ6mico: as Conquistas. H dois sculos que os livros, as tradies e a memria dos homens, andam cheios dessa epopeia guerreira, que ~ .. povos peninsulares, atrawssaudo oceanos desconhecidos, deixamm escrita. por todas as part~ do mundo. Bmbalatam-nos com essas histrias, atacA-las quasi um sacrilgio. E todavia esse brilhante poema em aclo foi uma das maiores causas da nORl decadncia. ~ necess.rio diz-lo, em que peze aos nossos sentimentos mais caros de patriotismo tmdiciooal. Tanto mais que um erro econmico 010 necessariamente uma vergonha nacional. No !P()IJto de vKta her~. Quem pode neg.-1o? Foi esse movimento das conquistas espamolas e portuguesas um relmpago brilhante, e por certos lados sublime, da alma intrepida peninsulaD (Ibid .. w. lt27-1~). - A desgraa que esse espfrito guerreiro estava deslocado nos tempos modernos: as na6es modernas estJo condenadas a 010 f'82lerem poesia, mas cincia.. Quem domina nIo i' a mU5a herica da epopea: a Economia PoUtica ( ... ). Ora luz da Economia PoJftilC'a Que eu condeno as Conquistas e o espkito guerreiro. Quizemos refazer os tempos hericos na idade moderna:

    ~: 810 era posslvel; -ca1m.os. Qual , com efeito, o espfrito da ~ Moderna? S o espfritode trabalho e de lrdstria: a riqueza e a vida das Daes tm de se tirar da activi-dade prodUltom, e nIo j da guerra esterilizadOra (IbM., p. 128).

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    soberanas, alargando e renovando a vida municipal, dando-lhe um carcter radicalmente democrtico (2

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    so s vezes piores que os atentados. O que seria escutado e em grande parte esquecido por cem ou duzentos ouvintes, ser agora lido e meditado por milhares, talvez, de leitores. Diz-me que se tomou por pretexto da supresso das conferncias o desagravo da religio ofendida. Erro deplorvel. Ideiaperseguida, ideia propagada: lei perptua do mundo moral, perpetuamente esquecida pelo poder ~).

    2. Conquistas ou Descobrimentos?

    Como vmos, a terceira causa da decadncia, segundo Antero, foram as conquistas longlnquas.

    Lembramos que Herculano, em texto j atrs citado, das Cartas sobre a Hist6ria de Portugal, escreve: Nem descob~entos, nem conquistas, nem comrcios estabelecidos pelo privilgio da espada, nem o luxo e mages-tade de um imprio imenso, nos podem ensinar hoje a sabedoria social.

    Herculano fala em descobrimentos e conquistas. Antero fala em con-quistas longlnquas ('4), ou pura e simplesmente em conquistas CS). Ora estas expresses, o emprego destas palavras, mostra-nos' que a distino entre uma expanso. de conquistadores e uma expanso de descobridores nio entrava ainda, pelo menos de uma maneira clara, na problemtica de Herculano, e muito menos na de Antero. que aquilo a que chamamos comumente, familiarmente, a Hist6ria Geral dos Descobrimentos Marltimos Portugueses nasceu ontem, mas no ante ontem. obra de historiadores e ensastas contemporneos, como Jaime Corteso, Ant6nio Srgio, Duarte Leite, Armando Corteso, Veiga Simes, Vitorino Magalhes Godinho, e outros ainda... E mais: a distino entre uma expanso pacifica e comercial e uma expanso pela conquista era assunto que esperava ainda o seu histo-riador. Historiador que veio a ser um brasileiro, e talvez no inteiramente por acaso: Srgio Buarque de Hollanda, na grande obra da sua juventude, Raizes do Brasil (1').

    (D) A. Supreuio dtl'l Confer'ndas do Cano (1371) a J. P'f in OpWculos, Vot. 1,6.- ed' f pp. 251-253.

    (24) Antero emprega uma vez esta. expresslo, nas Causas da decatlbrda dos povos penin. lIllares ... , in Prorar, Vol. 11, Lisboa, s/d., pp. 107 .. 108-109.

    (25) Antero emprega a palavra conquistas, no texto acima citado, mais 8 vezes (PP. 128--1~133-134-,1:3S) .. AiDdano Vol 11 das Pro." na Relposta 401 jornoIs cal611co.f, empresa 4 vezes a palavra conquistas. Pode ver-se ainda a palavra conquista nas Prosas Dl8persas, ed organizada por Ruy Belo, Bdi&s Presena, Lisboa, 1946 - OI LUlfadal- Ensolo sobre Cam&1 e a sua obra, ma rdQQo a 80Ciedllde portuguelll e ao movimento da Renascena: 2 empregos (PP . IS8-1S9) .-Bnketanto, por uma vez, Antero qnase segue Herculano, quando escreve: C nacionalidade rompe com impulso irresistfvel oS seus limites tradicionais. transborda fremente como um rio caudaloso, e afirma-se na sua plenitude peJas descobertas e peJas conquistaD, cConslderal1el sobr.e a filosofia da hlst6r1a literria portuguesa (A. prop6llto de alguns Uvros recentes), in PtOIll8, Vol. 11, Lisboa, s/d., pp. 228-229. As descoberta e as conquistas fazem lembrar os dscobrlmenlru e conquistas de Alexandre Hen:ulaDo... Mom o galidsmo duco-bertal, a expresslo 6 a mesma.. i.

    (26) Rio de Janeiro, 1936 (Soa ed., Revista, Rio de Janeiro, 1970).

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    Neste luminoso ensaio, so bem expressivas da tese' defendida pelo autor as seguintes palavras: Comparada colonizao espanhola, a obra dos Portugueses distingue-se principalmente pela predominncia de seu carcter de explorao comercial- repetindo assim o exemplo da colonizao a Antiguidade, sobretudo da fencia e da grega; os Espanhis, ao reves, querem fazer do pas conquistado um prolongamento orgnico do seu ('1). Algumas

    pginas mais, e Srgio Buarque de HolIanda, ao falar-nos das caractersticas da colonizao portuguesa, atribui-lhe uma fisionomia mercantil, quase semita (28).

    Entretanto, esta expanso pacfica e comercial dos portugueses, to bem definida pelo grande historiador brasileiro, deve ser entendida como uma dominante, o que no quer dizer que no tenham existido aces com dominantes no ortodoxas... Basta que nos lembremos de Duarte Pacheco Pereira ou D. Joo de Castro na :tndia ...

    Herculano ainda escreve descobrimentos e conquistas: Nem desco-brimentos, nem conquistas ( ... ) nos podem ensinar hoje a sabedoria social. Antero escreve uma vez conquistas longnquas, e depois pura e simples-mente conquistas. Algumas vezes, raras, em vez de descobrimentos, emprega o galicismo descobertas M. Galicismo que, acompanhado de outros, como por exemplo Renascena (~, fez o seu caminho at aos nossos dias.

    Vejamos, para terminar este pargrafo, dois textos de Antero, das Causas da decad~ncia dos povos peninsulares ... :

    A Austrlia tem feito em menos de 100 anos de liberdade o que o Brasil no alcanou com mais de trs sculos de escravatura! Fomos ns, foram os resultados do nosso esprito guerreiro, quem condenou o Brasil ao estacionamento, quem condenou nulidade toda essa costa de frica, em que outras mos podian ter talhado larga uns poucos de imprios! Esse esprito guerreiro, com os olhos fitos na luz de uma falsa glria, desdenha, desacredita, envilece o trabalho manual- o tra-

    (27) Ibid., S .. & 00., p. 67 .. (21) Ibid., P. 79: (29) Ver dois empregos da pa]avra dt!scobuttz3 nas Pro8tu, Vol. 11, LiI!boa, s/d, pp. 99

    c pp. 228-229 (Cawm da dt!Cadlncla... e CoruhraIJes ~ ti filoso/J da hi8t6rta Htt!rria porluguua - A propsito de algun.r livros l't!Centes). EotretaDto a palavra aparece legitima-mente empregada nasCau.wu da dt!CadlncitJ .. " Prosm, Vol. 11: cdacobertas intekct"lio (p. lOS); cdescoberta de uma grande lei cienUficu (p. lOS).

    (30) Antero escreve s.istanatica.mente R~ em vez de Rtmtl.fCimmto. Encontramos este galicismo: 6 vezes nas CQUSQ3 da 'decadhrcku ... , Prdros, Vol. 11, ,PI). 92-95-98-100; 1 vez o'A Morte- de D. l00, PrOStlf~ Vol. 11, p.. 266; 6 vezes nas ConsIdera,fJes sobre a filO8Ofl da hArt6rla literria portuguesa (A propsito h alguns livr08 recentes), p,t00UJ, Vol. 11, PP. 216--221-23()..231; 3 ~ Q'A poeM rrtJ actrUIlldade, ProStU. Vol. 1I,pp. 315 - 316--317;5 vezes nas C4fa8 Nobrt!s Ingle." Prosa.r, Vol. 11, PP. 363-373-377-378; 16 vezes em Veneza. ProIo.J, Vol 11, pp.J96..400.406.40~413-415416; 4 vezes em Uma ediIIo crf tlca de S de Mirandtl, PrOiJaS, Vol. 111, p. 60; ~finalmente 14 vezes lJ8S Pio., Dlspt!rStlS, ed organizada por Ruy Belo, ed Presena, Lisboa, 1966, pp. IS7 .. 1~1S9.

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    balho manual, a fora das sociedades modernas,'a salvao e a glria das futuras ... Mas um fantstico idealismo perturba a alma do guerreiro: no distingue. entre interesse honroso e interesse vil: s as grandes aces de esforo herico so belas a seus olhos: para ele a indstria pacfica s6 prpria de mos servis. A tradio que nos apresenta D. Joo de Castro, depois de uma campanha em frica, retirando-se sua quinta de Cintra, aonde se dava quela extranha e nova agricultura de cortar as rvores de fruto, e plantar em lugar delas rvores silvestres, essa tradio deu-nos um perfeito smbolo do esprito guerreiro no seu desprezo pela indstria. Portugal, o Portugal das conquistas, esse guerreiro altivo, nobre e fantstico, que voluntariamente arruna as suas propriedades, para maior glria do seu absurdo idealismo. E j que. falei em D. Joo de Castro, direi que poucos livros tm feito tanto mal ao esprito portugus, como aquela biografia do heri escrita por Jacinto Freire. Jacinto Freire que era padre, que nunca vira a lndia, e que ignorava to profundamente a poltica como a economia poIltica, fez da vida e feitos de D. Joo de Castro, no um estudo de cincia social, mas um discurso acadmico, literrio e muito eloquente, segu-ramente, mas enftico, sem crtica, e animado por um falso ideal de glria antiga, glria clssica, atravs do qual nos faz ver continuamente as aces do seu heri. H dois sculos que lemos todos o D. Joo de Castro de Jacinto' Freire, e acostummo-nos a tomar aquela fantasia de retrico pelo tipo do verdadeiro heri nacional. Falsemos com isto o nosso juzo, e a crtica de uma poca importante. preciso que se saiba que a verdadeira glria moderna no aquela: exactamente o contrrio daquela. Uma s coisa h ali a aproveitar como exemplo: a nobreza de alma daquele homem magnnimo: mas essa nobreza de alma deve ser aplicada pelos homens modernos a outros cometi-mentos, e de um modo muito diverso .. Foi aquele gnero de heroismo, to apregoado por J. Freire, que nos arruinou! e).

    Como era possivel, com as mos cheias de sangue, e os coraes cheios de orgulho, iniciar na civilizao . aqueles povos atrazados, unir por interesses e sentimentos os vencedores e os vencidos, cruzar as raas, e fundar assim, depois do domnio momentneo da violncia, o domnio duradoiro e justo da superioridade moral e do progresso? As conquistas sobre ,as naes atrazadas por via de regra, no so justas nem injustas. Justificam-se ou condenam-se os resultados, o uso que mais tarde . se faz do domnio estabelecido pela fora. As conquistas romanas so hoje justificadas pela filosofia da histria, porque criaram uma civilizao superior quela de que viviam os povos conquistados. A conquista da india pelos ingleses justa, porque civilizadora.

    (lI) Prosas, Vol. 11, pp. 133-134.

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    A conquista da ndia pelos portugueses, da Amrica pelos espanhis, foi injusta, porque no civilizou. Ainda quando fossem sempre vitoriosas as nossas armas, a ndia ter-nos-ia escapado, porque sistematicamente alhevamos os espritos, aterrvamos as populaes, cavvamos pelo esprito religioso e' aristocrtico um abismo entre a minoria dos conquis-tadores e a maioria dos vencidos. Um dos primeiros beneficios. que levvamos queles povos, foi a Inquisio: os espanhis fizeram o mesmo na Amrica. As religies indgenas no eram s escarnecidas, vilipen-diadas: eram atrozmente perseguidas. O efeito moral dos trabalhos dos missionrios (tantos deles santamente hericos!) era completamente anulado por aquela ameaa constante do terror religioso: ningum se deixa converter por uma caridade, que tem atraz de si uma fogueira! A ferocidade dos espanhis na Amrica uma coisa sem nome, sem paralelo nos anais da bestialidade humana. Dois imprios florescentes desaparecem em menos de 60 anos! Em menos de 60 anos so destrudos dez milhes de homens! Dez milhes! Estes algarismos so trgicos: :lio precisam de comentrios. E todavia, poucas raas se tm apresentado aos conquistadores to brandas, ingnuas, dceis, prontas a receberem com o corao a civilizao que lhes impunha com as armas! Bartolomeu de Las Casas, Bispo de Chiapa, um verdadeiro santo, protestou em vo contra aquelas atrocidades: consagrou a sua vida evanglica causa daqueles milhes de infelizes: por duas vezes passou Europa, para advogar solenemente a causa deles perante Carlos V. Tudo em vo! A obra da destruio era fatal: tinha de consumar-se, e consumou-se el). Que vemos? Sempre a amlgama, sempre todos os povos da Pennsula

    confundidos ... ~ assim que Antero nos fala do nosso esprito guerreiro, d'Esse

    esprito guerreiro, ... o Portugal das conquistas esse guerreiro altivo, ... , e etc., etc., etc ....

    D. Joo de Castro e o livro de Jacinto FreIre... D. Joo de Castro, personagem complexa, complexssima, visto s na aparncia, visto como o heri do cerco de Diu. O D. Joio de Castro real, tudo isso, e mais o intelectual, o militante da burguesia comercial portuguesa, o autor dos Roteiros para a ndia, e sobretudo dessa obra com pginas verdadeiramente revolucionrias, o Tratado da Esfera ...

    Mas deixemos tudo isto para a Concluso deste Capitulo sobre Antero, e sobretudo para mais longe ainda, para a parte final deste estudo, para a nossa. Explicao de Portugal ...

    (32) Ibid., PP. 134-H5.

  • 81

    3. O Iberismo.

    Vrios passos da conferncia sobre as Causas da decadncia dos povos peninsulares. .. so reveladores do Iberismo de Antero de Quental.

    assim que Antero comea:

    Como peninsular sinto, profundamente ter de afirmar, numa assem-bleia de peninsulares, esta desalentadora evidncia (1').

    Para uma assembleia de estrangeiros no passar esta d'uma these histrica, curiosa sim para as inteligncias, mas fria e indiferente para os sentimentos pessoaes de cada um. Num auditrio de peninsulares, no porm assim (34).

    Logo na poca romana aparecem os caracteres essenciais da raa peninsular: ... (15).

    Uma pgina mais, e Antero no deixa lugar a dvidas quando escreve:

    ... no exagerada a expresso daquele poeta que nos chamou, a ns hespanhoes, um povo de nobres (16).

    Outros textos so sintomticos do seu Iberismo:

    Quanto Architectura, basta lembrar a Batalha e a CathedraI de Burgos, ... (37).

    Um estylo e uma literatura nova surgiu com Cames, com Cer-vantes, com Gil Vicente, com S de }\'liranda, com Lope de Vega, com Ferreira. Demos s escolas da Europa sbios com Miguel Servet, precur-sor de Harvey ... C8).

    ... a Arte peninsular ergue nessa poca um vo poderoso com a arquitectura chamada manuelina, ... e com a brilhante escola de pintura espanhola, imortalisada por artistas como Murillo, Velasquez, Ribera C9).

    (31) Ibid., p. 93 (Sublinhados nossos). (34) Ibid. (Sublinhados nossos). (35) Ibid., P. 95 (Sublinhados nossos). (36) Ibid., p. 96 (Subl.inlwlos nos~). (37) Ibid., P. 99. (38) Ibid., p. 100. C') Ibid., p. 101.

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    Com um tal estado dos espritos1 o que se poderia esperar ~,a Arte? Basta erguer os olhos para essas lugubres moles de pedra, que se chamam o EscuriaI e Mafra, ... (40).

    Que triste contraste entre essas montanhas de' mrmore, com que se julgou atingir o grande, simplesmente por que se fez o monstruoso, e a construco delicada, aerea, proporcional e, por assim dizer, espiri-tual dos Jernimos, da Batalha, da catedral de Burgos! el). '0 pensamento de Antero entretanto mais explcito em dois passos

    de um artigo sobre o Portugal Contemporneo de Oliveira Martins, publicado em Paris, em .1884:

    Philippe 11, em runissant le Portugal la couroJllle d'Espagne, . n'a done fait que cueillir un fruit muro L'histoire du Portugal aurait d finir cette poque-l. La restauration nationale de 1640 a t un fait en grande partie artificiel, possible seuleme:Q.t par l'abbatement de l'Espagne, qui avait perdu sa force d'attractioD (42).

    (40) Ibid., P. 104. (41) Ibid., pp. U)4-10S. - .Pode ver ainda nas Causas da decadncia ... : Em tudo isto

    acompanharemos a Europa, a par do movimento geral. Numa coisa, porm, a excedemos, tomando-oos iniciadores: os estudos geogrficos e as grandes navegaes.. As descobertas, qu'! coroaram to brilhantemente o fim do sculo XV, no se fizeram ao acaso. Precedeu-as um trabalho intelectual, to cientifico quanto a pooa o perIDitia, inaugurado pelo nosso Infante D. Henrique, nessa famosa escoh de Sagres, ... (1'. 99) .. ,..,.... cViu-se de quanto em capaz li inteligncia e a energia peninsulares. Por i~ a Europa tinha os olhos em ns. e na iEurO'J)a a nossa influncia nacional era das que mais ,pesavam. Contava-se para tudo com Portugal t, Espa:nhu (P. 99). -:,.. Tudo isto nos prepara para desempenharmos, chegada a Renascena, um lpapel glorioso e preponderante. Desempenhmo-Io, com. efeito, brilhante e ruidoso: os nossos erros, porm, no consentiram que fosse tamb6m duradoiro e proficuo. Como foi que o movimento regenerador da Renascena tio bem preparado, abortou eJ:Itre ns, mostr-lo-ei logo com factos decisivos. Esse movimento s foi entre ns representado por uma gerao 'te homens superiores, a primeira. As seguintes, que o deviam consolidar, fanatizadas, entorpecidas, impotentes, -nlo souberam. compreender nem praticar aquele espmto tio alto c tio livre: desconheceram-no, ou combateram-no. Houve, porm, uma primeira gerao, que respondeu ao chamamento da Renascena: e em quanto essa gerao ocupou a cena,isto . at ao meado do sculo XVI, a Peninsula conservou altura daquela poca extraordinria de criao e liberdade de pensamento. A renovao dos estudos. recebeu-a nas suas Universidades novas ou reformadas, aonde se explicavam os grandes monumentos literrios da antiguidade. muitas vezes m prpria lfngua dos originais. Entre as 43 Universidades estabelecidas na Europa durant~ o sculo XIV, .14 foram fundadas pelos reis de Espanha (P. 100). ~ Fora da ptria guerreiros

    il~tres mostravam ao mundo que o valor dos povos peninsu1ares no era inferior sua inteli. gncia. Se as causas da nossa decadncia exi~ j. la.tJentes, nenhum olhar podia ainda ent~ descobri-las: a glria, e uma glria merecida, s dava lugar admirao (p. 102). - Faamos notar, em primeiro luar, a referncia ao Infante D. Henrique e Escola de Sagres. na tradi-cional linha de uma Histria dos Descobrimentos anterior ao seu verdadeiro wmeo, com Jaime Cortesio, Antnio Srgio, Duarte Leite, Veiga Simes. Armando CorflesIo, Vitorino MagaJhie& Godinho... e etc., etc. ~ Depois, fala-se da inteligncia e da energia peninsulare3. B e. seguir, das 14 Universidades fundadas pelos reis de Espanha.--. Fmalmente, dos povos peninsulares

    (42) Prosas, Voi. 111, Lisboa, 1946, p. 8 (Le PortUg~ Conlempormn ...... OJilveira Martins ..-- Publicado Da Revue Universelle et InJemational~ Paris, 1884. Reproduzido no Opsculo intitulado Oliveira Martins, Usboa, 1894). Sublinbados nossos.

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    Le nouveau Portugal, qui commence cette date-l, n'a rien de l'autre, rien de sa force noble, de son hardi gnie. Ce n'est qu'un triste btar, un tre malingre et malvenu, le produit artificiel de la diplomatie, que son grand ami, l' Anglais hrtique, protege, rudoye, amuse et exploite. De sa seule force, il ne tiendrait pas debout: il est donc juste qu'il paye celui qui le soutient. Il le payera des restes de son noble hritage, de ses colonies, qui s'en iront l'une aprs l'autre grossir l'empire de la nouvelIe reine des mers; il le payera encore en traits de commerce, qui le ruineront au profit de son loyal protecteur. Cela s'appella la glorie use restauration portugaise de 1640 - oeuvre nfaste entre toutes. qui dmembra l' Espagne et compromit pour des siecles, peut - tre pour toujours, l'avenir de la pninsule ibrique CU). Finalmente, no seu estudo Portugal perante a Revoluo de Espanha ... ,

    Antero d-nos a ltima palavra sobre o seu Iberismo. Iberismo que culmina na federao-republicana-democrtica, na repblica democrtica e federal ... :

    ... Portugal, membro amputado desnecessariamente, ainda que sem violncia, do grande corpo da Pennsula Ibrica, vivendo desde ento uma vida particular, estreita talvez mas sua e original, e to apartado do movimento dos outros povos espanhis como se fosse a fronteira, que deles o separa um insondvel oceano ... (44).

    Para toda a pennsula no h hoje seno uma nica poltica possvel a da federao-republicana-democrtica. E, em face desta for-midvel unidade de interesses, de ideias, de vontades, e de aspiraes, que podem as barreiras da nacionalidade significar mais do que uma tradio, um smbolo potico, cujo sentido se perde de dia para dia, at se tornar de todo imcompreensvel, at desaparecer? Moralmente essas barreiras caram j. Para as conscincias mais rectas, para as inteligncias mais seguras dos dois povos, unidas nos mesmos desejos e num pensamento comum, a nacionalidade no passa de um obstculo desgraado, resto das hostilidades fatais de sculos brbaros, e que s por um lamentvel acordo dos interesses da minoria dominante e dos prejuzos da multido ininteligente se tem podido sustentar. Mas esse acordo desfez-se. O irresistvel movimento democrtico da nossa socie-dade vai tornar inevitvel a queda da nacionalidade, nas opinies, a princpio, e mais tarde nos factos, no grande dia do abrao fraternal das populaes da Pennsula Ibrica. A revoluo social idntica para os dois povos: idntica, para os dois povos, deve ser a revoluo poltica ("5).

    ('43) Ibid. (44) Prosas, Vol. 11, Lisboa, s/d, :pp. 66-67 (PortUgal perante a Revoluadr Espanha ... ).

    Sublinhados nossos. (45) lbid., .pp. 77-78, Subli.nh8ldos nossos

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    Mas, perturbado o desenvolvimento lgico da revoluo pela ignorncia, a pusilanimidade, ou a intriga, como nenhum governo estvel, alm da federao, se pode estabelecer em Espanha a violenta anarquia, que se seguir, ser ao mesmo tempo uma prova irrefutvel, ainda que indirecta, da verdade do programa que tramos revoluo, e um sinal para todos os homens inteligentes, sinceros, e corajosos se unirem, sem distino de nacionalidade, em volta da bandeira da repblica democrtica e federal e6).

    Em qualquer dos casos, para todos os elementos moos, inteligentes, activos da sociedade portuguesa, no h outra sada aberta seno esta: a democracia ibrica,' nem outra poltica capaz de ideias, de futuro e de grandeza, possvel em Portugal, seno esta: a poltica do iberismo e7).

    Se no possvel sermos justos, fortes, nobres, inteligentes, seno deixando cair nos abismos da histria essa coisa a que jse chamou nao portuguesa, caia a nao, mas sejamos aquilo para que nos criou a natureza, sejamos inteligentes, nobres, fortes, justos, sejamos homens muito embora deixemos de ser portugueses. Uma nao moribunda uma coisa potica: infelizmente a melhor poesia, em poltica, no passa de uma poltica medocre. Chorar, recordar-se, ou ameaar em sonoros versos, pode ser extremamente sentimental: mas no adianta uma polegada os nossos negcios ... Eu, por mim, pondo de parte toda a poesia e toda a sentimentalidade, contentar-Me-hei de afirmar aos patriotas portugueses esta verdade de simples bom senso: que, nas nossas actuais circunstncias, o nico acto possvel e lgico de verdadeiro patriotismo consiste em renegar a nacionalidade (48).

    (46) Ibm., p. 78. Sublinhados nossos. (47) Ibid., P. 79. Sublinhados nossos. (41) Ibid., p. 82. Sublinhados nossos. - Podem ver-se ainda mais dois textos de Antern

    bem significativos do seu lberismo: Para ns uma Revista tem ainda um carcter e uma utilidade especial: Se os espanhis e os portugueses formam de b muito duas naes distintas, tivemos todavia sempre na organizalo filosfica e sentimental de seus espfritos., na fisiOnomicl das suas literatul'U, no camcter dos seus actos, a afinidade que lhes deu a origem comum de raas e aaclo, tambm igual para ambos os povos, do clima da penfnsula hispnicu (Prosar. Vol ... 11, Lisboa, s/d, pp. 273-274 - Programa da Revista Ocidental); cO que diz Cames a quem, depois de o ter lido com olhos de homem de gosto, o rel com olhos de filsofo? Cames, responde o sr. Oliveira Martins, diz..nos o segredo da nacionalidade portuguesa. Bouv~. com eleito, uma nacionalidade portuguesa - por mais estranha que esta afirmao 1UXT parea, a ns. portugueses do sculo XIX, que no atinamos a encontrar no presente uma causa vivendi . houve uma razlo de ser tanto para as institui6es como para os indivfduos, e uma ideia nacional, espalhada. como a alma colectiva por todo este corpo, entlo vivo e Agi> (~blinhados nossos) (Prosas. VoL 11, Lisboa, s/d., p. 226 - Consldera8es sobre a filosofia da histria Iiterrl~ portuguesa - A propJito de alguris livros recentes).

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    Antero diz-se peninsular. Fala de assembleias de. peninsulares. De audi-trios de peninsulares. Fala da inteligncia e da energia peninsulares. Fala da raa peninsular. -

    Antero escreve ns espanhis. Antero fala da Batalha e da Catedral de Burgos. Fala do Escurial e de

    Mafra. Fala dos Jernimos e da Batalha juntamente com a Catedral de Burgos. Fala da arquitectura manuelina juntamente com Murillo, Velasquez, .Ribera. Fala de Cames e Cervantes; Gil Vicente, S de Miranda, Lope de Vega; fala de Miguel Servet como se se tratasse de um portugus.

    Antero diz-nos que Filipe 11, em 1580, nada mais fez do que colheI um fruto maduro. Para Antero a histria de Portugal devia ter terminado nessa data, pois a Restaurao, em 1640, foi um facto em grande parte artificial. que, para Antero, o novo Portugal que comea em 1640 no mais do que um produto dos interesses da Inglaterra nas colnias portuguesas. E por isso chama Restaurao de 1640 uma obra nefasta porque desmembrou a Espanha e compreendeu, talvez para sempre, o futuro da Pennsula Ibrica. Para Antero, Portugal um membro amputado desnecessariamente... da Pennsula Ibrica ... .

    Em consequncia de tudo isto, Antero prope a federao-republicana--democrtica, afirmando-nos que as barreiras da nacionalidade nada podem perante a unidade de interesses, de ideias, de vontades, e de aspiraes, pois as nacionalidades no passam de um obstculo desgraado, resto das hostilidades ... de sculos brbaros, que s se sustentam por um lamentve1 acordo dos interesses da minoria dominante e dos prejuzos da multido inin teligente ... . Ora, segundo Antero, esse acordo desfez-se: o irresistve1 movimento democrtico da nossa sociedade vai tomar inevitvel a queda da nacionalidade, chegando o grande dia do abrao fraternal das populaes da Pennsula Ibrica. A revoluo social e a revoluo poltica so idnticas para os dois povos.

    Assim todos os homens se uniro sem distino de nacionalidade, em volta da bandeira da repblica democrtica e federal.

    Assim teremos a democracia ibrica, pois a grandeza futura de Portu-gal est na poltica do iberismo.

    Finalmente, e em consequncia, Antero prope que se deixe cair nos abismos da histria essa coisa a que se chamou nao portuguesa, pois. para que sejamos inteligentes, nobres, fortes, justos, teremos que deixar de seI portugueses, A concluir, Antero diz-nos que o nico acto possvel e lgico de verdadeiro patriotismo consiste em renegar a nacionalidade.

    4. Antero e Antnio Srgio.

    Tal como Antero acusa, nas trs Causas da decadncia ... , a influncia, mais consciente ou menos consciente, da obra de Alexandl-e Herculano: tambm, parece-nos, a obra de ensaista da Histria de Portugal ~e Antnio

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    Srgio no nos parece acusar menos a influncia, mais consciente ou menos consciente, da obra de Antero.

    Assim , parece-nos, se nos lembrarmos de dois dos mais importantes ensaios de Antnio Srgio: As duas polticas nacionais eq) e O reino cadave-roso ou o problema da cultura em Portugal (50).

    Certas ideias, ou melhor, a ideia-chave do ensaio de Antnio Srgio, As duas polticas nacionais, encontramo-la nas Causas da decadncia dos povos peninsulares ... e ainda noutros textos das Prosas de Antero.

    Vejamos alguns passos das Causas da decadncia ... : Ora, a liberdade moral, apelando para o exame e a conscincia

    individual, rigorosamente o oposto do Catolicismo do Conclio de Trento, para quem a razo humana e o pensamento livre so um crime contra Deus; a classe mdia, impondo aos reis os seus interesses, e muitas' vezes o seu esprito, o oposto do Absolutismo, esteiado na aristocracia e s em proveito dela governando; a indstria, finalmente, o oposto do Esprito de conquista, antiptico ao trabalho e ao comrcio el).

    Deste passo, relativamente ao assunto deste pargrafo, destacat:nos as ltimas palavras: a indstria, finalmente, o oposto do Esprito de con-quista, antiptico ao trabalho e ao comrcio.

    Depois, nas Causas da decadncia... Antero cita o caso da Inglaterra a propsito de um ensinamento de Adam Smith:

    O capital adquirido pelo comrcio e pela guerra s6 se torna real e produtivo quando se fixa na cultura da terra e nas outras indstrias CZ).

    E em contraste com o caso da Inglaterra, Antero escreve:

    Pelo contrrio, ns, portugueses e espanhis, que destino demos s prodigiosas riquezas extorquidas aos povos estrangeiros? Respondam a nossa indstria perdida, o comrcio arruinado, a populao diminuda, a agricultura decadente, e esses desertos da Beira, do Alentejo, da Estremadura espanhola, das Castelas, a onde se no encontra uma rvore, um animal domstico, uma face humana! e3).

    (.') Ensaios, Tomo 11, Clssicos S da Costa, Lisboa, s/d. (SO) Ibid. (51) Prosas, VoI. 11" Lisboa, s/d, 'pp. l08-U)9. (52) Ibid., p. 129. ('1) Ibid.

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    E ainda:

    Um exemplo, o da agricultura portuguesa antes e depois do sculo XVI, por em evidncia, com factos significativos, essa influncia perniciosa do esprito de conquista no mundo econmico (54).

    Duas pginas mais, e Antero continua:

    Com estes elementos o que se poderia esperar da indstria? Uma decadncia total No se fabrica, no se cria: basta o ouro do Oriente para pagar li. indstria dos outros, enriquecendo-os, instigando-os ao trabalho productivo, e ficando ns cada vez mais pobres; com as' mos cheias de tesouros! Importavamos tudo: de Itlia, sedas, veludos, bro-cados, massas; da Alemanha, vidro; da Frana, panos; da Inglaterra e Holanda, cereais, ls, tecidos. - Havia ento uma nica indstria nacional ... a ndia! Vae-se ndia buscar um nome e uma fortuna, e volta-se para gozar, dissipar estrilmente. A vida concentra-se na capital. Os nobres deixam os campos, os solares dos seus maiores, aonde viviam em certa comunho com o povo, e veem para a Crte brilhar, ostentar ... e mendigar nobremente. O fidalgo faz-se corteso: o homem do povo, no podendo j ser trabalhador, faz-se lacaio: a libr o selo da sua decadncia. A criadagem de uma casa nobre era um verdadeiro estado. O luxo da nobreza tinha alguma coisa de oriental. ( ... ) Lisboa era uma capital de fidalgos ociosos, de plebeus, mendigos, e de rufies eS). .

    ainda nas Causas da decad~ncia dos povos peninsulares ... que Antero escreve:

    Dado o catolicismo absoluto, era impossvel que se lhe no seguisse, deduzindo-se dele, o absolutismo monrquico. Dado o absolutismo, vinha necessapamente o esprito aristocrtico, com o seu cortejo de privilgios, de injustias, com o predomnio das tendncias guerreiras sobre as industriais. - Os erros polticos e econmicos saiam daqui naturalmente; e de tudo isto pela transgresso das leis da vida social, saia naturalmente tambm a decadncia sob todas as suas formas e).

    Se a velha monarquia desapareceu, conservou-se o velho esprito monrquico: quanto basta para no estarmos muito melhor do que nossos avs. Finalmente, do esprito guerreiro da nao conquistadora, herdmos um invencvel horror ao trabalho e um ntimo desprezo pela

    (14) Ibid. (55) Ibid., pp. 1:31-132. (56) Ibid., p. 136.

  • 88

    indstria. Os netos dos conquistadores de dois mundos podem, sem desonra, consumir no cio o tempo e a fortuna, ou mendigar pelas secretarias um emprego: o que no podem, sem indignidade, trabalhar! Uma fbrica, uma oficina, uma explorao agrcola ou mineira, so coisas imprprias da nossa fidalguia. Por isso as melhores indstrias nacionais esto nas mos dos estrangeiros, que com elas se enriquecem, e se riem das nossas pretenes. Contra o trabalho manual, sobre tudo, que universal o preconceito: parece-nos um smbolo servil! Por' ele sobem as classes democrticas em todo o mundo, e se engrandecem as naes; ns preferimos ser uma aristocracia de pobres ociosos, a ser uma democracia prspera de trabalhadores. o fruto que colhemos de uma educao secular de tradies guerreiras e enftica,s! Dessa educao, que a ns mesmos dmos durante trs sculos, provm todos os nossos males presentes. As razes do passado rebentam por todos os lados do nosso solo: rebentam sob a forma de sentimentos, de hbitos, de preconceitos. Gememos sob o peso dos rros histricos. A nossa fatalidade a nossa histria C). Para alm das Causas da decadncia ... , encontramos ainda breves textos

    em que o pensamento de Antero to ou ainda mais claro do que nos passos citados. Assim, em texto de Paris, de 1884:

    En 1850, apres la catastrophe d' Alcacer-Kibir, le Portugal tait rellement morte L'oeuvre f conde et glorieuse de sa vie historique tait accomplie; mais l'ouvrier heroique gisait extnu. L'application en grand, pendant trois quarts de siecle, d'un faux systeme d'exploitation coloniale avait ruin le pays et troubl profondment sa constitution sociale: ... C8). E finalmente, sobre este ponto, duas breves linhas que nos do a ideia

    mestra que havia de vir a ser a ide ia mestra de Antnio Srgio n' As duas polticas nacionais, a poltica de transporte por oposio poltica de fixao:

    Ora ns consumimos as grandes riquezas conquistadas, sem as fixar na indstria: por isso camos na pobreza, de que ainda no nos levantmos, ... C9).

    Vejamos agora dois textos de Antero das Causas da decadncia dos povos peninsulares ... que bem podem ter sido o motor do clebre ensaio

    (57) Ibid., PP. 137-138. (58) Prosas, Vol. 111, Lisboa, 1946, pp. 7-8. Sublinhados nossos. (Le Portugal Contem-

    porain - Oliveira Martins ~ Publicado in Revue Universelle et Internati0vaIe, Paris, 1884-Reproduzido no opsculo Oliveira Martins. Lisboa, 1894.)

    (59) Prosas. VoI. lI, Lisboa, sld, p. 158 (Resposta aos jornais catlicos).

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    de Antnio Srgio sobre O reino cadaveroso ou o problema da cultura em Portugal:

    No. meio dessa pobreza e dessa atonia, o esprito nacional desa-nimado e sem estmulo, devia cair naturalmente num estado de torpor e de indiferena. o que nos mostra claramente esse salto mortal dado pela inteligncia dos povos peninsulares, passando pela Renascena para os sculos XVII e XVllI. A uma gerao de filsofos, de sbios e de artistas criadores, sucede a tribu vulgar dos eruditos sem crtica, dos acadmicos, dos imitadores. Saimos de uma sociedade de homens vivos, movendo-se ao ar livre; entramos num recinto acanhado e quase sepulcral, com uma atmosfera turva pelo p dos livros velhos, e habitado por espectros de doutores. A poesia, depois da exaltao estril, falsa, e artificialmente provocad do Gongorismo, depois da afectao dos conceitos (que ainda mais revelava a nulidade do pensamento), cai na imitao servil e ininteligente da poesia latina, naquela escola clssica, pesada e fradesca, que a anttese de toda a inspirao e de todo o sentimento. Um poema compe-se doutoralmente, como uma dissertao teolgica. Traduzir o ideal; inventar, considera-se um perigo e uma inferioridade; uma obra potica tanto mais perfeita quanto maior nmero de versos contiver traduzidos de Horcio, de Ovdio. Florescem a tragdia, a ode pindrica, e o poema heri-cmico, isto , a afectao e a degradao da poesia ("').

    Essa morte moral no invadira s o sentimento, a imaginao, o gosto: invadira tambm, invadira sobretudo a inteligncia. Nos ltimos dois sculos no produziu a Pennsula um nico homem superior, que se possa pr ao lado dos grandes criadores da cincia moderna; no sau da Pennsula uma s das grandes descobertas intelectuais que so a maior obra e a maior honra do esprito moderno. Durante 200 anos de fecunda elaborao, reforma a Europa culta as cincias antigas, cria seis ou sete cincias novas, a Anatomia, a Fisiologia, a Qumica, a Mecnica Celeste, o Clculo Diferencial, a Crtica Histrica, a Geologia; aparecem os Newton, os Descartes, os Bacon, os Leibniz, os Harvey, os Bufon, os Ducange, os Lavoisier, os Vico - onde est, entre os nomes destes e dos outros verdadeiros heris do pensamento, um nome espanhol ou portugus? Que nome espanhol ou portugus se liga descoberta

    (60) Ibid., pp. 103-104. (Causas da decadncia ... ).

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    de uma grande lei cientfica, de um sistema, de um facto capital? A Europa culta engrandeceuse, nobilitou-se, subiu sobretudo pela cincia; foi sobretudo pela falta de cincia que ns descmos, que nos degra-dmos, que nos anulmos. A alma moderna morrera dentro em ns completamente (61).

    (") Ibid~ P. lOS. (lbid.).

    Joaquim Barradas de Carvalho Professor da Faculdade

    de Letras da Universidade de Lisboa