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CADERNOS DA EDITORIAL A ALIANÇA DO PENSAR E DO FAZER NA FEIRA DO LIVRO JULHO 2017 Cáritas Editorial Po

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cadernosda editorial

a alianÇa doPensar e do FaZerna Feira do livro

julho 2017

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EDITORIAL CÁRITAS

Praça Pasteur, nº 11 — 2.º, Esq.1000 –238 [email protected]. +351 911 597 808, fax. +351 218 454 221

Índicea alianÇa do Pensar e do FaZer na Feira do livro 3

o Progresso dos PovosPedro vaz Patto 4

«rosto social da religião»joão duque 7

entendimento global e comPromisso com as PeriFeriasamérico Pereira 11

«PobreZa e relaÇões humanas»delfim jorge gomes 18

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a alianÇa do Pensar e do FaZer

a alianÇa do Pensar e do FaZer na Feira do livro

A Feira do Livro de Lisboa abriu as por‑tas, entre os dias 1 e 18 de junho, para mais uma edição no Parque Eduardo VII. A Editorial Cáritas voltou a estar presen‑te com as suas obras no stand da Paulus Editora e realizou, na Praça Amarela, apre‑sentações de duas das suas mais recentes publicações.No dia 8 de junho, a obra de Francisco Vaz, «João Paulo II – O Compromisso pela Paz», foi apresentada pelo Professor Doutor Américo Pereira, que na semana seguinte, dia 16, regressou ao mesmo local para lançar um livro coordenado por si

‑ «Entendimento Global e Compromisso com as Periferias» ‑, um conjunto de textos resultantes de intervenções de diferentes autores na edição de 2016 da Summer School organizada pelas Faculdades de Teologia e de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Esta apresentação está disponível na página 11.Neste caderno apresentamos algumas apresentações e reflexões que podem ser encontradas nas diversas obras da Editorial Cáritas que estiveram disponí‑veis na Feira do Livro.

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o Progresso dos Povos

Pedro Vaz PattoPresidente da Comissão naCional Justiça e Paz (CnJP)

«Hoje, continua a ser evidente como o crescimento económico não gera, por si só, o desenvolvimento humano integral.»

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A AliAnçA do pensAr e do fAzer

Celebramos este ano o cinquentenário da publicação da encíclica Populorum progressio.Podemos considerar esta encíclica do Papa Paulo VI como um marco da história da doutrina social da Igreja, que alguém já equiparou à Rerum novarum, do Papa Leão XIII. A questão social originada pela industrialização, que pela primeira vez foi abordada de forma sistemática numa encíclica papal na Rerum novarum, no final do século XIX, passou a ser encara‑da numa dimensão universal a partir da Populorum progressio. O «próximo» a quem amar e a quem «fazer justiça» pas‑sou a ser qualquer habitante do planeta.Mas o que dizer, hoje, da relevância e atualidade da Populorum progressio?Numa época em que mundo estava divi‑dido em blocos ideológicos, esta encíclica colocou em evidência uma outra dilace‑rante divisão planetária: entre pessoas e povos ricos e pobres: «Os povos da fome dirigem ‑se hoje, de modo dramático, aos povos da opulência. A Igreja estremece perante este grito de angústia e convida cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão» (3). Hoje, que foi derru‑bada essa barreira ideológica, persiste a barreira entre ricos e pobres.O primeiro capítulo da encíclica é dedica‑do à noção que ela apresenta de desen‑volvimento humano integral. E que expli‑cita como o desenvolvimento de todos

os homens e do homem todo. Trata ‑se de ir de encontro à aspiração de realizar, conhecer e possuir mais, para ser mais (6). O crescimento económico é positivo apenas quando é instrumento para ser mais. O desenvolvimento, pessoal e comu‑nitário, é um dever que corresponde aos desígnios de Deus. E supõe a abertura ao Absoluto, porque «o homem pode orga‑nizar a terra sem Deus, mas sem Deus só a pode organizar contra o homem» (42).Esta noção de desenvolvimento foi reto‑mada e aprofundada em encíclicas poste‑riores, como a Sollicitudo rei socialis, de João Paulo II, a Caritas in veritate, de Bento XVI, e a Laudato sì, de Francisco. O nome que o Papa Francisco quis dar ao novo di‑castério do Vaticano dedicado às questões da justiça e da paz alude, precisamente, ao «desenvolvimento humano integral».Hoje, continua a ser evidente como o crescimento económico não gera, por si só, o desenvolvimento humano integral. É mais nítida, hoje, a noção de que des‑te faz parte (como salienta com ênfase a Laudato Sì) o equilíbrio ecológico. Mas também é bom relembrar hoje o valor do desenvolvimento humano, contra um certo ecologismo radical que parece pô‑‑lo em causa.Confiar cegamente nas regras do merca‑do (instrumento que tem as suas virtua‑lidades) não conduz ao desenvolvimento de todos os homens e gera desigualdades

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e injustiças. Isso era evidente há cinquen‑ta anos e hoje (quando as desigualdades se acentuaram como nunca, apesar da di‑minuição da pobreza absoluta) continua a sê ‑lo. A Populorum progressio reafirmou o princípio do destino universal dos bens, ao qual devem subordinar ‑se os direitos de propriedade e de comércio livre. Por isso, «o supérfluo dos países ricos deve pôr ‑se ao serviço dos países pobres» e «a regra que existia outrora em favor dos mais próximos, deve aplicar ‑se hoje à totalidade dos necessitados do mundo inteiro» (49).Paulo VI resistiu, há cinquenta anos, às in‑fluências das teses da redução demográfi‑ca sem limites éticos (37), o que se revela hoje plenamente justificado, numa época de «inverno demográfico» e quando até o governo chinês começa a aperceber‑‑se dos malefícios da sua política do filho único.Atual é a referência ao diálogo de civili‑zações: «Entre as civilizações, como en‑tre as pessoas, o diálogo sincero torna‑‑se criador de fraternidade» (73). Assim como a noção de fraternidade dos povos (43) num tempo em que cresce a hostili‑dade aos imigrantes e o nacionalismo de exclusão.E atual, no tempo de uma «guerra mun‑dial aos pedaços», a ideia marcante da encíclica: «o desenvolvimento é o novo nome da paz» (76).

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A AliAnçA do pensAr e do fAzer

Vivemos ainda sob os efeitos da modernidade. O que é óbvio, tendo em conta que a denominada cultura ocidental se distingue, em grande parte, precisamente pelo processo moderno que a determinou nos úl‑timos séculos. E trata ‑se de algo tão inegável como inevitável.Um dos conceitos mais debatidos no contexto das transformações modernas foi, sem dúvida, o concei‑to de religião. Também porque talvez tenha sido na relação com esse conceito e com a realidade que eventualmente lhe esteja ligada que a modernidade adquiriu características mais vincadas, assim como as sociedades em que ela ganhou mais expressão.O problema começa logo na própria definição de religião. De facto, tal como hoje ainda circula pela rua de modo mais ou menos inquestionado e muitas vezes ainda mais

«rosto socialda religião»

João duquePresidente do Centro regional de Braga da uCP

«Assim, habituamo­­nos a considerar como âmbito do religioso, quando existente, aquele domínio completamente individual relativo à crença em Deus, como ser superior e transcendente.»

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indefinido, a noção comum de religião é, em certa medida, produto da própria moderni‑dade. Dela faz parte a delimitação de campos ou de esferas, que as sociedades denomina‑das desenvolvidas parecem manifestar nas suas estruturas e no seu funcionamento. A mais evidente é a separação entre política, economia, ética e, precisamente, religião. E a tendência mais vincada neste processo foi no sentido de conferir estatuto «público» à política e à economia, e considerar do âmbito privado, porque simplesmente de‑pendente de opções individuais, os campos da ética e da religião.Ora, esta conceptualização – e o seu claro efeito sobre as organizações sociais mo‑dernas – por um lado originou um concei‑to muito redutor de religião e, por outro, foi provocada por essa mesma redução. Assim, habituamo ‑nos a considerar como âmbito do religioso, quando existente, aquele domínio completamente indivi‑dual relativo à crença em Deus, como ser superior e transcendente. Mesmo que a expressão dessa crença, normalmente através do culto, assuma configurações comunitárias, isso parece não eliminar o seu estatuto fundamentalmente privado. E mesmo que as manifestações culturais dessa crença seja evidentes, isso não inva‑lida que se considere a relação individual ao transcendente – nalguns contextos re‑definida como «espiritualidade» – como o núcleo da experiência religiosa.

Destas transformações resultou que se tenha passado a considerar, habitualmen‑te, a religião – nomeadamente o cristianis‑mo – como o conjunto de expressões da crença num ser transcendente e inefável, com pertinência individual, relativamente a uma dimensão da vida que nada tem a ver com a organização pública do quotidiano, considerada profana. E os modelos dessa organização têm sido diversos – desde os que se opuseram a esta opção, forçando os indivíduos a abandona ‑la, passando pe‑los que a toleraram, mas dentro de limi‑tes, até aos que a consideraram benéfica socialmente, mas sempre mantendo a sua dimensão privada.Acontece que o cristianismo – nem sem‑pre com a mesma intensidade, é certo – sempre viu com suspeita esta separa‑ção entre dimensão pública e dimensão privada da atividade humana. Por isso, até chegou a manifestar dificuldade em se aceitar a si mesmo como uma «religião», no sentido moderno do termo. Porque a sua leitura integral exige uma concepção de ser humano como pessoa, ou seja, como sujeito, cuja diversidade de dimen‑sões não permite a divisão do indivíduo em esferas separadas. A assumir ‑se como uma religião, o cristianismo não aceita ser relegado para um estatuto simplesmente privado ou simplesmente transcendente. Trata ‑se de uma interpretação da reali‑dade a partir da sua relação com Deus

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– nesse sentido, numa perspetiva clara‑mente religiosa – mas que diz respeito a todas as dimensões dessa realidade. A sua visão é pois integral e portanto funda‑mental. O que não significa que se possa transformar em integrismo – semelhante às leituras perfeccionistas e puritanas da realidade – ou em fundamentalismo – que procura impor a sua verdade, não res‑peitando as pessoas com interpretações diferentes. Trata ‑se de uma visão integral, com clara noção da historicidade e dos limites da sua condição.A estruturas cristãs – que em geral assu‑mem o nome de Igreja – sempre mantive‑ram vivas expressões desta integralidade da sua perspetiva, das quais sobressaem as denominadas «obras sociais». Essas dão corpo a um espírito religioso que tem consciência de se constituir como realidade concreta, de dimensão pública e cívica, muito para além do conceito mo‑derno de religião.Mas como todos – e inevitavelmente tam‑bém os cristãos – vivemos desse conceito redutor, não é garantido que os agentes dessas expressões sociais, sejam eles insti‑tucionais ou pessoais, tenham consciência da relação entre essas iniciativas «sociais» e a «fé» que professam, considerada «es‑pecificamente» religiosa. Ou seja, pode não existir a consciência de que essas ati‑vidades são propriamente religiosas, pois isso parece contradizer o seu conceito

moderno, individualizante e até mesmo psicologizante. E é evidente que a confi‑guração psicológica da fé predomina nas comunidades cristãs modernas e pós‑‑modernas, em detrimento da sua confi‑guração pública e mesmo política.

Partindo da reflexão histórica e teórica sobre as transformações do «religioso» ao longo da modernidade que nos marca, a presente obra de Roberto Rosmaninho

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Mariz procura investigar indicadores que permitam – ou não – identificar essa consciência em determinadas atividades relacionadas com a Igreja católica, que a complexidade do contexto poderia co‑locar fora do âmbito religioso. Para tal, fundamenta a perspectiva cristã sobre o «religioso» na Doutrina Social da Igreja, melhor fundamento documental para a compreensão da dimensão sócio ‑política da fé cristã. Partindo dessa «identidade» do cristianismo e do pressuposto de que certas realizações da Igreja, como é o caso de muitas IPSSs, correspondem à articulação histórica da dimensão social da fé, procede a uma análise cuidada dos indicadores que revelem consciência ins‑titucional e pessoal desse facto.Trata ‑se, pois, de um importante estudo para melhor compreender – numa pers‑petiva interna, ou seja, partindo do modo como a «religião» cristã se interpreta a si mesma – em que medida as pessoas envolvidas em inúmeras instituições do género estão cientes do seu significado religioso. As conclusões lançam um aler‑ta, que pode ser útil para uma prática auto ‑reflexiva das instituições eclesiais. Ao mesmo tempo, ajuda a compreender certas articulações do fenómeno religio‑so num contexto cultural muito próprio, nomeadamente na Arquidiocese de Braga.Enquanto coordenador do Doutoramento em Estudos da Religião da Faculdade de

Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Católica Portuguesa, em Braga, saúdo de modo especial este trabalho, por repre‑sentar a primeira tese defendida neste curso, que recentemente inaugurou, em Portugal, uma área de estudos que se revela cada vez mais importante social‑mente, como vem confirmando a história mais recente da Europa.

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Este livro consta de um «Prefácio», de uma «Introdução», de nove Capítulos.O tema que orienta as várias reflexões exaradas nes‑ta obra é o do «entendimento global e compromisso com as periferias», que põe num mesmo tabuleiro po‑lítico – entendida a política em sentido nobre de busca de um possível bem ‑comum – quer o sentido de uma universalidade quer a sua superlativação como glo‑balidade que se assume como tal e que, por isso, não esquece que é constituída também pelas periferias.O mundo é mesmo um só e a não assunção do peri‑férico como próprio seu originará uma irrecuperável fractura que porá em termos agónicos grande par‑te da humanidade contra a restante. De notar que provavelmente isso que se considera ser o periférico será numericamente o mais significativo. Infelizmente,

aPresentaÇão do livro

entendimento global e comPromisso com as PeriFerias

amériCo PereiradoCente na FaCuldade de teologia da uCP

«Aqui, podemos encontrar capítulos escritos por especialistas de vários âmbitos do saber, da Engenharia Nuclear, à Filosofia, da Antropologia, à Comunicação Social e à Teologia.»

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ainda este modo de pensar é, se bem que de forma involuntária, etnocêntrico.As preocupações de Francisco, o Papa, que são o pano de fundo teórico que dá horizonte cénico a este esforço de refle‑xão, são objectivas, logo, pertinentes, mas também são urgentes em sua pertinência.«O mundo em que se vive contemporanea‑mente é o mundo em que se globalizou não a instrumentação veicular do bem anti‑‑periférico, mas a sua activa negação, viven‑do nós, aqui e agora, um movimento radi‑calmente agressivo – isto é, realizado por pessoas agressivas – de retorno a formas de relação ética e política entre seres huma‑nos que não se pode não considerar senão como um processo de re ‑escravização, por mais esforços que os seus mentores façam por convencer os seus objectos – a grande maioria dos seres humanos actualmente existentes – do contrário.».«Neste sentido, o movimento do mundo desde o fim da Segunda Grande Guerra tem consistido fundamentalmente numa progressiva eliminação de tudo o que tinha sido obtido em termos de humanização ética e política das relações entre os seres humanos, que culminara na Declaração Universal dos Direitos Humanos, carta de princípios, não carta de valores, isto é, que estabelece algo sem o qual a humanidade não tem futuro, não meras opiniões ou meros ecos de tradições que não respeitem princípios.»

Boa parte da modernidade dedicou ‑se a matar «Deus» e o «Homem». Tal implica consequências. Há que encontrar substi‑tutos e tais substitutos não deixam de ser também produtos culturais. Isso que um qualquer factício conceito de «Homem» não pode substituir – o real ser humano, a real pessoa, os reais homem e mulher – existiram e operaram, agiram enquanto acontecia o que acontecia em Auschwitz, na ausência do deus morto e do Homem nunca nascido.Algumas dessas pessoas anteciparam‑‑se mesmo a Auschwitz, eliminando, para muitos, a negativa possibilidade do seu «pessoalíssimo Auschwitz». Referimo‑‑nos à acção de pessoas como o nunca suficientemente mencionado Aristides de Sousa Mendes; pessoas que não invoca‑ram em vão o nome de Deus, do vivo ou do morto, antes, negando o absolutamen‑te vão, a vanidade da impotência dos dis‑cursos auto ‑apologéticos dos cobardes e a vileza dos oportunistas, salvaram, activa e penosamente salvaram, outras pessoas, assim matando o mal pela raiz, fazendo o bem. Aliás, é este o único modo real, eficaz.Em tais tempos, os «homens» reais es‑tavam também lutando contra todas as formas de fascismo nas diferentes frentes de batalha e morreram aos milhões, sem esperar pela ressurreição filosófica do deus morto que os impotentes querem

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que faça, por eles, mais uma vez e sempre, o seu trabalho em qualquer Auschwitz. Ontem como hoje.Ontem como hoje, são estas pessoas reais as que criam, laboriosamente, sem‑pre, penosamente, muitas vezes, isso que é o real entendimento, entendimento no e pelo bem.Ora, apenas o entendimento, o mais global e efectivo permite isso que deve ser o ou‑tro nome da humanidade: o bem ‑comum.De forma exacta, deveria dizer ‑se «enten‑dimento universal», pois não há verdadei‑ro entendimento passível de perenidade não antecipadamente limitada sem que seja necessariamente universal. Trata ‑se de realizar o bem ‑comum para todas as pessoas, sem excepção, em cada momento, sempre.Não é isto uma utopia, mas a intuição da possibilidade de uma existência política, de base ética, em que todos os seres hu‑manos possam, e, de facto, sejam o melhor que podem ontologicamente ser, em uni‑versal e total harmonia. É este o entendi‑mento como padrão de possibilidade.Ora, este livro, sem manias de grandeza quaisquer, é um singelo contributo para o trabalho em prol do entendimento universal.Aqui, podemos encontrar capítulos escri‑tos por especialistas de vários âmbitos do saber, da Engenharia Nuclear, à Filosofia, da Antropologia, à Comunicação Social e

à Teologia. Trabalha ‑se o tema do «enten‑dimento global» de forma transdisciplinar, aportando reflexões pessoais cientificamen‑te fundamentadas sobre relações a montan‑te e a jusante da «realidade entendimento».O sentido da «globalidade» impõe ‑se, como se depreende da própria leitura in‑tegrada dos vários capítulos, porque a hu‑manidade evoluiu, quer de tal haja suficien‑te consciência ou não, para um modo de existência em que já constitui, sobretudo fisicamente, devido à facilidade das deslo‑cações de pessoas, de bens e até de meios de destruição, um inegável todo. A globali‑zação já não é apenas um processo, é, mes‑mo, já um facto. Pense ‑se no que seria, pela negativa, um surto de varíola que surgisse, por exemplo, num grande evento interna‑cional qualquer e como se «globalizaria» de forma fulminante. Não perceber este novo estado – que tem dimensão verda‑deiramente ontológica, onto ‑ecológica, se se preferir – é estar alienado da realidade.No primeiro capítulo, «Erradicação da pobreza: diagnóstico e soluções», Eugénio Fonseca, traça um lúcido e substantivo perfil das pobrezas, pois são várias, basea‑do em dados fidedignos e que deveriam tornar evidente a dimensão do problema, mormente em Portugal, estudado com detalhe, que revela quer a sua enorme di‑mensão quer a sua profundidade: pobres, muitos e muito pobres, grande parte de‑les. Realidade tendencialmente ignorada,

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num mundo de marketing político que visa a auto ‑promoção da oligarquia junto da oligarquia: estas últimas palavras são da nossa responsabilidade estrita. Sendo a pobreza algo de «económico», no sentido mais vasto desta noção – que é política –, algo como uma crise económica neces‑sariamente agrava a situação dos pobres, a grande periferia económica de sempre. No entanto, a magna questão relativa à pobreza não é a da sua contemplação teórica, mas a da acção que tenha como fim eliminá ‑la. Eugénio Fonseca dedica a parte final da sua reflexão à proposta de soluções pragmaticamente viáveis, a nível global: alteração do sistema económico, política redistributiva mais justa, política de erradicação que incida nos «mais po‑bres», combate ao desperdício, dar voz aos pobres, assunção da pobreza como problema de todos; ao nível de Portugal: maior envolvimento dos chamados «po‑líticos», adopção de uma estratégia inte‑grada, avaliação dos impactos das políticas sociais, reavaliação e adaptação das polí‑ticas susceptíveis de aumentar a pobreza, debate anual na Assembleia da República sobre o problema.No segundo capítulo, Micael Pereira re‑flecte sobre «Cultura e desenvolvimento sustentável numa perspectiva antropoló‑gica», mostrando inequivocamente que apenas a integração sem qualquer des‑valorização ontológica de humanidade e

meio ambiente pode permitir a continui‑dade sustentável das gerações de seres humanos em são convívio com isso que constitui a transcendência física munda‑na, aliás, possível abertura para um outro sentido de transcendência, já metafísica.Em «A necessidade da diversidade cul‑tural», Américo Pereira mostra como a humanidade só é possível como diversa, correspondendo a anulação da diversida‑de à aniquilação do futuro da humanidade.Manuel Cândido Pimentel, no capítu‑lo dedicado ao «Diálogo intercultural e conhecimento. O paradigma da ecorra‑cionalidade», fundamenta o que designa por uma «nova consciência que presida à economia», erguida sobre uma nova forma de racionalidade, a «ecorraciona‑lidade», que consiste numa «disposição do conhecimento, uma tendência à instauração de uma consciência racionalmente aberta ao mistério da natureza na sua alteridade.». O Autor termina apresentando um conjunto de princípios de «interculturalidade dialógica», ancilares do novo modo de racionalidade aqui proposto.No capítulo da responsabilidade de Nelson Ribeiro, «Os Meios de Comunicação ao Serviço do (Des)Entendimento Global», é pensado o multímodo papel dos media num mundo efectivamente globalizado, pondo em destaque o que são as suas con‑tribuições quer para o entendimento quer

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para o não ‑entendimento, mas fazendo ressaltar a incomparável capacidade de colaboração de tais meios para uma real melhoria da existência humana, se usados em tal sentido: «[…] os media podem contribuir para um melhor entendimen‑to entre a humanidade, tal depende dos objectivos que norteiam o uso que deles é feito.».

Margarida Amaral, no capítulo dedicado a «Um olhar cultural sobre a natureza», trabalha reflexivamente a relação entre natureza e cultura, chamando a atenção para que «a compreensão de que existe um elemento comum ao homem e à na‑tureza nos leva a ultrapassar a dicotomia, entendida como separação absoluta en‑tre o natural e o humano, […] a natureza e a cultura». Para tal, a educação assume especial relevo: «Ser um homem culto é, afinal, assumir preocupações ambientais e é compreender que os problemas am‑bientais, sendo um reflexo do seu com‑portamento cultural, só podem ser ate‑nuados recorrendo a uma educação que fomente a própria cultura […]», cultura que é «saber, aprofundamento, procura», não de satisfações efémeras, mas de um sentido propriamente humano em que a natureza é complementar do humano, não sua antítese.No capítulo «O contributo das ciências naturais para a paz», António Marques de Carvalho começa por mostrar como a humanidade chegou ao estado de de‑senvolvimento e ecológico em que se encontra, definindo as ameaças com que nos confrontamos, sem esquecer que o horizonte que permanece válido é o de «uma ecologia integral», como salienta o Papa Francisco. Se, por um lado, «sem uma ampla divulgação dos conhecimen‑tos e da solidez do método científico,

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não será possível assegurar os consensos que, nas democracias, permitirão aos po‑líticos ter a coragem de tomar medidas para cuidar do planeta a longo prazo», por outro, «o conhecimento científico da história da Terra e dos recursos minerais, o conhecimento dos ecossistemas e da biodiversidade e da interacção com as práticas económicas e sociais permitem uma melhor gestão dos recursos para um futuro pacífico e sustentável.».José Manuel Pereira de Almeida, no capí‑tulo dedicado a «Paz e entendimento, ca‑tegorias Teológicas», partindo da consta‑tação antropológica e ética de que «todos podemos trazer uma bomba dentro de nós», interroga: «que ‘bombas’ trago den‑tro de mim?». Percebendo a radicação da violência praticada no seio do «coração violento», assinala a «cultura de violência» em que vivemos, produto humano que não necessita de seres humanos especial‑mente perversos, mas se contenta com «a mediocridade habitualmente aceite»: «a eficácia histórica do mal passa através do consenso à volta de um deixar andar as coisas como elas vão». Reflectindo sobre a «violência legitimada», a «não ‑violência como fraternidade» e «a vida como dom», bem como o papel dos cristãos, aponta o caminho – simples e difícil – para a cons‑trução da paz: «trata ‑se, normalmente, de dever fazer o pequeno bem aqui e agora

concretamente possível para mim.». Uma leitura atenta revela que este bem, ainda que manifestamente ético e político, é, como condição de entendimento e de paz, da ordem do ontológico: é o que é o possível nosso de cada dia.No capítulo dedicado a «A inculturação ou a questão da «evangelização e diálogo cultural”», José Nunes começa por dis‑tinguir «inculturação» de outros termos, que reflectem realidades muito diferen‑tes, como «enculturação» ou «acultu‑ração». Assumindo o termo «cultura» como usado em ciências sociais, mantém a relação com a noção de «factor de auto ‑transcendência e humanização de todo o homem e de todos os grupos hu‑manos». O paradigma de inculturação é o próprio Jesus, que assimilou a sua cul‑tura, transformando ‑a, tendo, por vezes, de combater o que tinha de ser combati‑do porque era factor de desumanização. Expondo os fundamentos antropológicos e teológicos do conceito, bem como o processo de inculturação, percebe ‑se que esta se cumpre quando, fiel ao paradigma: «[…] a sua atitude é a de quem assume recriando a tradição cultural herdada, o assumir da cultura judaica era, para Jesus, uma questão de levar às últimas conse‑quências a realidade da Incarnação […]».Os vários capítulos, na sua diversidade de abordagens, entre muitas outras contri‑

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buições para a compreensão do tema do entendimento global e compromisso com as periferias, mostram que, a acção hu‑mana, num regime de entendimento, mais do que global, universal, tendencialmente elimina as periferias, não através da fácil violência da aniquilação do diferente ou do incómodo, mas através da, por vezes muito difícil, acção ética e política – cul‑tural no seu melhor sentido – de cada ser humano como deposição do bem de que é capaz no tesouro comum (bem‑‑comum) de uma humanidade que chegou a uma fase da sua evolução em que ou vive como um todo tendencialmente em entendimento ou, simplesmente, não tem condições de sobrevivência. O concreto da realidade hodierna parece com forte evidência dar razão a esta tese. A via do entendimento universal humano é, assim, a via única da vida humana, a sua ecologia de possibilidade de futuro.Cumpre, com grande alegria, ao coor‑denador desta obra e director da Escola de Verão / Summer School que lhe deu origem, expressar o mais profundo reco‑nhecimento a todos os que contribuíram para o sucesso de ambas as iniciativas.Renovando os cumprimentos e os para‑béns aos Autores da Obra,Agradeço a generosa paciência de todos.

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Lisboa, 16 de Junho de 2016

Américo Pereira

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Quis a União Europeia escolher o ano de 2010 como o Ano Europeu do Combate à Pobreza e Exclusão Social. Um ano dedicado a colocar a questão da pobreza na agenda governativa dos Estados ‑Membros, despertan‑do a opinião pública, sociedade civil e tecido empresa‑rial para o que deve ser uma causa nacional, europeia e mundial. Na origem do inesperado interesse demons‑trado pela U.E. por esta problemática, encontramos certamente a crise financeira mundial que bateu à por‑ta dos países desenvolvidos, gerando uma inesperada onda de choque, com efeitos secundários arrasadores. Veja ‑se os milhões de pessoas que em todo o mundo perderam o emprego, e que Portugal não foi exceção. Podemos afirmar, que o Ano Europeu procurou aumen‑tar a sensibilização da sociedade para a realidade das pessoas que vivem em situação de pobreza e exclu‑são. Deveria ter sido um ano especialmente dedicado a vivenciar seriamente a solidariedade e a fraternidade, a promover uma sociedade que garantisse a qualidade

«PobreZa e relaÇões humanas»

delFim Jorge gomesVigário ePisCoPal Para o Clero na dioCese de Bragança-miranda

«Quando se fala e propõe este combate à pobreza ou à exclusão social, não significa enfrentar um problema que está para além da fronteira da nossa comunidade, da cidade ou da freguesia onde moramos.»

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de vida, o bem ‑estar social e a igualdade de oportunidades para todos e a garantir que cada um pudesse desempenhar o seu papel, único e irrepetível, na construção da sociedade. Acreditamos neste sonho, que anima a construção de uma comunidade de cidadãos, iguais em direitos. Pois os pobres, os que conhecemos e desconhe‑cemos, como teremos oportunidade de aprofundar, são cidadãos não reconheci‑dos. Logo, a luta contra a pobreza significa reconhecer a cidadania nos e dos mais pobres, enquanto igualdade de acesso, de direitos e respeito pela dignidade de todos os seres humanos, independentemente da sua condição física, mental, económica ou social. E a busca da dignidade começa por ser tarefa de cada um e realiza ‑se mediante a integração social. A coesão social significa igualdade de direi‑tos, partilha de diferenças, valorização da diversidade cultural, respeito por etnias, so‑taques, religiões e tradições. Significa cons‑truir uma unidade que integre a diversidade das comunidades de pertença. A desigualda‑de não está apenas na condição social dos mais pobres ou dos que são considerados excluídos, mas na relação que a sociedade, dita maioritária e normalizada, estabelece com esses cidadãos. Os mais pobres não vivem na sombra. Muitos são trabalhado‑res, com baixos salários, que desempenham atividades pouco qualificadas, algumas de risco com quem nem sempre as empresas

estabelecem um vínculo laboral duradoiro. Muitas são mulheres, sozinhas, com filhos menores a cargo, sem acesso ao mercado de trabalho.Quando se fala e propõe este combate à pobreza ou à exclusão social, não significa enfrentar um problema que está para além da fronteira da nossa comunidade, da cidade ou da freguesia onde moramos. Hoje, como iremos ver, a pobreza está disseminada por todo o lado, já não há zonas imaculadas, ava‑liaremos o papel que as relações de proximi‑dade e de vizinhança poderão desempenhar na superação de situações de crise e como este fator está a ser amplamente aproveita‑do pelos mais recentes estudos económico‑‑sociais no relançamento ou reconstrução do tecido económico. Demonstrar isto mesmo, é objetivo deste trabalho, tentando perceber até que ponto o «contato» que estabelecemos com o vi‑zinho, o «outro», influencia a nossa relação a ponto de querer colaborar na resposta a dar a essa situação. Procuraremos ligar o conhecimento e a ex‑periência de tantos homens e mulheres com as propostas que a Igreja foi dando ao longo dos séculos, de modo a melhor compreen‑der este mundo com as suas desigualdades sem precedentes em toda a história da hu‑manidade. Ir às origens procurar os porquês, perceber os contextos e seguir o «rasto» da pobreza até aos nossos dias, olhando para a realidade a partir do que foi a experiência

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da Igreja e da sociedade neste campo, numa perspetiva de esperança, procurando dar o nosso modesto contributo com um olhar novo e diferente.Perante a situação atual ganham uma enor‑me atualidade as palavras do grande Bispo D. Hélder Câmara, que dizia: «Quem vive onde milhões de criaturas se encontram degradadas e submetidas a condições infra ‑humanas, vendo ‑se praticamente re‑duzidos à escravidão, deverão estar mui‑to surdas para não escutar o clamor dos oprimidos. E o clamor dos oprimidos é a voz de Deus.» Fazer eco deste «clamor» e estar atento a esta voz é o primeiro passo para uma avaliação da situação atual inspi‑rada pela fé. Só assim, aplicando o método da Ação Católica, se poderá passar a uma avaliação não apenas descritiva mas propo‑sitiva que não só interprete os dados da crise atual mas que também procure cami‑nhos de superação da mesma. Porque «O programa do cristão ‑ o programa do bom Samaritano, o programa de Jesus – é «um coração que vê». Este coração vê onde há necessidade de amor, e age de acordo com isso». O relatório sobre o Desenvolvimento Mundial do Banco Mundial é contundente na apreciação que faz sobre a crise financeira global: «No início da crise financeira e eco‑nômica, muitos observadores acreditaram que o mundo em desenvolvimento seria re‑sistente à turbulência nos países avançados.

Contudo, a condição financeira de muitos países em desenvolvimento deteriorou ‑se acentuadamente à medida que a economia mundial retraiu em 2009. Como resultado da crise, cerca de 64 milhões a mais de pessoas no mundo em desenvolvimento devem entrar na extrema pobreza (definida como viver com 1,25 dólares por dia, ou menos) até o final de 2010 com relação à tendência antes da crise… Como resul‑tado da crise mundial, milhões de pessoas que em outras condições teriam saído da pobreza continuarão pobres, e outros mi‑lhões que em outras condições não teriam caído na pobreza ficaram pobres… Apesar das amplas melhorias na infraestrutura na última década, 2,5 bilhões de pessoas do mundo inteiro ainda carecem de serviços de saneamento, 1,5 bilião vive sem eletri‑cidade, 1 bilhão não dispõe de acesso fácil a todas as rodovias utilizáveis em qualquer condição climática, e quase 900 milhões não tem outra opção senão usar água não potável… A África foi duramente atingida pela crise financeira global. O crescimento caiu de 5,0% em 2008 para apenas 1,6% em 2009. O impacto da crise será duradouro. Vinte milhões de pessoas a mais estarão em pobreza extrema em 2015…. A crise finan‑ceira atingiu a Europa e a Ásia Central mais fortemente do que qualquer outra região do mundo e a recuperação será mais lenta do que nos outros lugares. O que começou como uma crise financeira corre o risco

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de se transformar em uma crise social e humanitária, com desemprego crescente e sombrias perspetivas econômicas tornando a vida ainda mais difícil para aquelas pessoas que já são pobres. Antes da crise, o número de pessoas pobres e vulneráveis da região estava projetado para cair em 15 milhões. Em lugar disso, esse número aumentou em 13 milhões em 2009. A pobreza continua desenfreada em muitas áreas e o Sul da Ásia tem a maior concentração de pessoas pobres, mais de 1 bilhão de pessoas vivem com menos de 2 dólares ao dia». Temos aqui duas linhas de pobreza defini‑da pelo Banco Mundial, uma quando esta‑belece um dólar por dia e outra quando apresenta dois dólares por dia, consoante se queira remeter para um caráter mais ou menos extremo do fenómeno. A assistência do Banco Mundial, tem vindo a aumentar em todos os continentes, atingindo novos recordes em empréstimos e apoios em diversos programas de desenvolvimento e subsídios às famílias de modo a atenuar a pobreza. Reconhecemos o esforço que está a ser feito, mas ainda não é o suficiente. Não queremos escalpelizar os números ou fazer o tratamento de dados, queremos contudo, colocar diante dos nossos olhos a realidade assustadora da pobreza e dos pobres, visto que representa objetivamente um dos pro‑blemas mais graves que a sociedade das na‑ções vai enfrentar neste século. A existência de três mil milhões de pessoas, não só de

indigentes e pobres, mas empobrecidos e oprimidos, é um alerta para a mudança de rumo. O relacionamento entre os povos e entre as pessoas tem que mudar. Um novo paradigma de convivência e de relaciona‑mento é necessário, para se atingir uma nova ordem social, económica e política.Será utilizado o método teológico ‑social, partindo da realidade que nos rodeia tendo a preocupação por interpretar os sinais dos tempos, procurando responder à questão social ‑ pobreza e exclusão social ‑ a partir da proposta que o Evangelho nos faz como fundamento e motivação para a ação que se concretiza na promoção da justiça; e dentro deste, privilegiaremos o da ação católica na abordagem que faz à realidade concreta.O trabalho será dividido em três partes: a primeira aborda a evolução do concei‑to de pobre na Sagrada Escritura até ao Pensamento Social da Igreja; a segunda vai procurar demonstrar que a pobreza é o resultado da falência das relações humanas, passando da economia ao compromisso solidário apresentando algumas propostas alternativas que visam diminuir a pobreza e contribuem para a integração social; a ter‑ceira parte tem como objetivo apresentar a mudança de relações interpessoais e en‑tre os estados, como condição necessária para o desenvolvimento humano que tem por horizonte ou fim último o bem comum, apontando, ainda que utopicamente, para a civilização do amor.

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