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72 Rev. Augustus | Rio de Janeiro | v. 22 | n. 43 | p. 72-83 | jan./jun. 2017 40 ANOS DO CURSO DE HISTÓRIA CARLO GINZBURG: O CONCEITO DE CIRCULARIDADE CULTURAL E SUA APLICAÇÃO NOS ESTUDOS SOBRE A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA Leonardo Santana da Silva. Doutorado em História Comparada pela UFRJ. Coordenador e Professor do Curso de História da UNISUAM RESUMO Esta comunicação oral tem como objevo principal realizar uma abordagem filosófica, em que perpasse transversalmente entre si, aspectos antropológicos, históricos e socioculturais, no que diz respeito ao conceito de circularidade cultural proposto pelo historiador italiano Carlo Ginzburg – conhecido como um dos pioneiros no estudo da micro-história – e sua aplicabilidade no campo reflexivo sobre o processo de desenvolvimento da música popular brasileira. Neste caso, aqui tratado especificamente, nós ateremos a um dos gêneros musicais de nossa música popular – o choro – sem negarmos a existência desta discussão em outros gêneros musicais aqui ou alhures. Assim sendo, parremos de três máximas que fundamentam a nossa discussão, quais sejam: o próprio conceito de circularidade cultural; o diálogo deste referido conceito com as categorias filosóficas do pensamento bakhniano e, por fim, a noção de um hibridismo cultural do ponto de vista teórico-metodológico e historiográfico. Palavras-chave: circularidade cultural – hibridismo cultural – música popular brasileira CARLO GINZBURG: THE CONCEPT OF CULTURAL CIRCULARITY AND ITS APPLICATION IN THE STUDIES ON BRAZILIAN POPULAR MUSIC. ABSTRACT This oral communicaon is aimed at providing a philosophical approach that pervades across each other, anthropological, historical and socio-cultural aspects, with regard to the concept of cultural circularity proposed by Italian historian Carlo Ginzburg - known as a pioneer in study of micro-history - and its applicability in the reflecve field on the development process of Brazilian popular music. In this case, here specifically addressed, we will keep to one of the musical genres of our popular music - crying - without denying the existence of this discussion in other musical genres here or elsewhere. Therefore, we leave three maxims that underlie our discussion, namely: the concept of cultural circularity; the concept of this that dialogue with the philosophical categories of Bakhn’s thought and, finally, the noon of a cultural hybridity point of theorecal and methodological and historiographical view. Key-Words: cultural circularity – cultural hybridity – Brazilian popular music Se pudéssemos enumerar uma quandade qualquer de palavras-chave para representar o conceito de circularidade cultural formado excepcionalmente pelo historiador italiano Carlo hp://dx.doi.org/10.15202/19811896.2017v22n43p72 CORE Metadata, citation and similar papers at core.ac.uk Provided by Portal de Revistas UNISUAM (Centro Universitário Augusto Motta)

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CARLO GINZBURG: O CONCEITO DE CIRCULARIDADE CULTURAL E SUA APLICAÇÃO NOS ESTUDOS

SOBRE A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

Leonardo Santana da Silva.Doutorado em História Comparada pela UFRJ.

Coordenador e Professor do Curso de História da UNISUAM

RESUMO

Esta comunicação oral tem como objetivo principal realizar uma abordagem filosófica, em que perpasse transversalmente entre si, aspectos antropológicos, históricos e socioculturais, no que diz respeito ao conceito de circularidade cultural proposto pelo historiador italiano Carlo Ginzburg – conhecido como um dos pioneiros no estudo da micro-história – e sua aplicabilidade no campo reflexivo sobre o processo de desenvolvimento da música popular brasileira. Neste caso, aqui tratado especificamente, nós ateremos a um dos gêneros musicais de nossa música popular – o choro – sem negarmos a existência desta discussão em outros gêneros musicais aqui ou alhures. Assim sendo, partiremos de três máximas que fundamentam a nossa discussão, quais sejam: o próprio conceito de circularidade cultural; o diálogo deste referido conceito com as categorias filosóficas do pensamento bakhtiniano e, por fim, a noção de um hibridismo cultural do ponto de vista teórico-metodológico e historiográfico.

Palavras-chave: circularidade cultural – hibridismo cultural – música popular brasileira

CARLO GINZBURG: THE CONCEPT OF CULTURAL CIRCULARITY AND ITS APPLICATION IN THE STUDIES ON BRAZILIAN POPULAR MUSIC.

ABSTRACT

This oral communication is aimed at providing a philosophical approach that pervades across each other, anthropological, historical and socio-cultural aspects, with regard to the concept of cultural circularity proposed by Italian historian Carlo Ginzburg - known as a pioneer in study of micro-history - and its applicability in the reflective field on the development process of Brazilian popular music. In this case, here specifically addressed, we will keep to one of the musical genres of our popular music - crying - without denying the existence of this discussion in other musical genres here or elsewhere. Therefore, we leave three maxims that underlie our discussion, namely: the concept of cultural circularity; the concept of this that dialogue with the philosophical categories of Bakhtin’s thought and, finally, the notion of a cultural hybridity point of theoretical and methodological and historiographical view.

Key-Words: cultural circularity – cultural hybridity – Brazilian popular music

Se pudéssemos enumerar uma quantidade qualquer de palavras-chave para representar o conceito de circularidade cultural formado excepcionalmente pelo historiador italiano Carlo

http://dx.doi.org/10.15202/19811896.2017v22n43p72

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Ginzburg, certamente termos tais como classes sociais, cultura, sociedade, relações culturais, antropologia e história, além das noções de um conceito que romperia com a obsoleta e superada ideia dicotômica que existe no entremeio da cultura elitista e da cultura popular, seriam os termos mais adequados que apareceriam neste item como linha de frente, isto é, como fio condutor de nossa reflexão a respeito desta representação do conceito de circularidade cultural proposto por seu autor.

De qualquer forma, por objetivarmos alcançar tais reflexões é que pretendemos utilizar o conceito de circularidade cultural como mais uma das ferramentas apropriadas para se analisar realidades históricas similares, que são constituídas de uma forma ou de outra por diferenças culturais e, consequentemente, pela tramitação de elementos culturais comuns existentes no ambiente das diferentes classes sociais que fazem parte de qualquer sociedade.

Abandonando totalmente uma história em que os historiadores mais remotos eram acusados de querer conhecer ou investigar somente os feitos dos “grandes” personagens, o estudo da história já há algum tempo não é mais entendido assim. Cada vez mais a busca, a preocupação e o interesse dos historiadores estão direcionados para aqueles personagens mais anônimos, considerados inferiores diante daqueles personagens supostamente mais importantes e que por algum período de tempo haviam sidos deixados de lado, ocultados e ignorados, ocupando um mero status de personagens coadjuvantes.

Nesta perspectiva, o desafio proposto pelo historiador Carlo Ginzburg em uma das suas obras de fôlego, intitulada de O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição, buscava revisitar o terreno da cultura para analisar os diferentes discursos existentes entre a cultura dominante e a subalterna, construindo assim um pensamento em que o enfrentamento entre estes dois níveis de cultura jamais se sobreporiam uma à outra, sobretudo no tocante a uma possível admissão de uma assimilação direta da cultura dominante pela cultura ou pela camada popular. Dessa maneira, revisitando os estudos bakhtinianos foi que Ginzburg acabou encontrando inspiração para postular o seu douto conceito de circularidade cultural. Ou seja, o termo circularidade bastante presente nas obras de Mikhail Bakhtin e seu Círculo serviu para que o historiador Carlo Ginzburg corroborasse a presença de uma comunicabilidade que transcorria de maneira dialógica, circular e, por conseguinte, de forma mútua e recíproca – para utilizarmos mais especificamente os termos originais bakhtinianos – entre a cultura das classes subalternas e das dominantes existentes em uma Europa pré-industrial. Devemos salientar que esta obra de Carlo Ginzburg, por ser um livro clássico da historiografia italiana e leitura obrigatória para historiadores independentemente de qualquer nacionalidade, dispensa qualquer tipo de apresentação mais profunda, em se tratando do seu conteúdo.

Feitas as devidas implicações, a grosso modo e sob a ótica de aspectos generalizantes concernentes ao cenário panorâmico desta obra referendada, passemos então ao mapeamento de elementos corroborativos à existência de uma circularidade entre culturas dominantes e culturas subalternas no contexto sócio-histórico de uma sociedade camponesa italiana situada em uma Europa pré-industrial do século XVI, defendida pelo historiador Carlo Ginzburg como sendo a dinâmica dialógica entre os níveis culturais pertencentes ao erudito e popular em que, tanto os elementos culturais das classes dominantes quanto os elementos das classes subalternas, mantém uma relação entre si, filtrando à sua maneira os elementos pertencentes às suas respectivas classes, de modo que houvesse uma interação cultural entre as duas culturas.

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Partindo-se desta premissa, ao identificar explicitamente tais fenômenos, quais sejam: o de um “relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo” (GINZBURG,1987, p.13) os resultados significativos provocados pelo próprio choque entre uma cultura dominada e uma cultura hegemônica; o relacionamento complexo que Menocchio obteve com a cultura escrita, sobretudo em virtude daqueles livros que ele havia lido e do modo como os havia lido, nutrido por aquelas informações a tal ponto que chega às conclusões de uma cosmogonia bem peculiar sobre a origem do mundo, a partir de uma interpretação que presumidamente advinha de uma cultura oral que não era, certamente, um patrimônio particular do caso Menocchio, e sim pertencente cotidianamente a um possível e vasto segmento dessa sociedade europeia do século XVI, foram e continuam sendo indícios bastante contundentes, a nosso ver, que contribuíram para que o historiador Carlo Ginzburg propusesse a formulação de um pressuposto teórico-metodológico conhecido como circularidade cultural, semelhante àquele já proposto por Mikhail Bakhtin, cuja ideia principal pode ser facilmente resumida, sem corremos o risco de perder a sua compreensão: a ideia de uma circularidade dialógica da linguagem.

A fundamentação desta tese defendida por Ginzburg ganha tamanha consistência e expressividade, na medida em que este historiador consegue reconstruir a trajetória de um discurso dialógico que Menocchio desempenhou diante do tribunal do Santo Ofício. Dentre outros aspectos, é possível perceber então o processo de circularidade cultural entre duas culturas distintas através do discurso proferido por Menocchio. Desta forma, estes discursos acabaram ganhando sentido, consubstanciando, portanto, o conceito proposto por Ginzburg. É por meio então de muitas passagens textuais que Carlo Ginzburg vai expressar detalhadamente a sua tese. Inúmeros trechos transcritos diretamente da documentação dos dois processos inquisitoriais abertos contra Menocchio, entremeados de propícios comentários feitos pelo próprio autor, são as tônicas que ditaram o tom de uma análise minuciosa a despeito de um quadro rico, repleto de informações sobre ideias, fantasias, sentimentos, atividades econômicas, aspirações, comportamentos, cotidianos, graus de instrução – como é o caso do próprio Menocchio, que sabia ler e escrever – permitindo que Ginzburg reconstruísse um fragmento do que se denominava supostamente de cultura da classe popular ou das classes subalternas, colocando de fato em discussão a definição e a relação entre estas culturas. Estas aspirações de Carlo Ginzburg podem ser notoriamente percebidas nos primeiros parágrafos do prefácio à edição italiana do O queijo e os vermes.

As discussões direcionadas para se repensar a definição do termo cultura como sinônimo de conjunto de crenças, atitudes e “códigos de comportamentos próprios das classes subalternas num certo período histórico” (GINZBURG,1987, p.16) é, no mínimo, relativamente tardio, sendo este conceito emprestado da antropologia cultural. Só a partir do conceito de cultura primitiva, uma noção de consciência equivocada do colonialismo unida a outra noção pesada vinda da opressão de classe, “é que chegou de fato a reconhecer aqueles indivíduos outrora definidos de forma paternalista como camadas inferiores dos povos civilizados que possuíam cultura” (GINZBURG,1987, p.17). Estes argumentos não foram convincentes o suficiente para dar conta de toda uma complexidade cultural que uma sociedade qualquer possuiria. Neste sentido, as indagações que movimentaram as argumentações de Ginzburg acabaram perpassando todas

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estas reflexões, em se tratando de quais seriam as verdadeiras relações entre a cultura das classes subalternas e das classes dominantes:

Até que ponto a primeira está subordinada à segunda? Em que medida, ao contrário, exprime conteúdos ao menos em partes alternativos? É possível falar em circularidade entre os dois níveis de cultura? Os historiadores só se aproximaram muito recentemente – e com certa desconfiança – desses tipos de problemas. Isso se deve em parte, sem dúvida alguma, à persistência de uma concepção aristocrática de cultura. Com muita frequência ideias ou crenças originais são consideradas, por definição, produto das classes superiores, e sua difusão entre as classes subalternas um fato mecânico de escasso ou mesmo de nenhum interesse; como se não bastasse, enfatiza-se presunçosamente a “deterioração”, a “deformação”, que tais ideias ou crenças sofreram durante o processo de transmissão. Porém, a desconfiança dos historiadores tem também um outro motivo, mais imediato, de ordem metodológica e não ideológica. Em comparação com os antropólogos e estudiosos das tradições populares, os historiadores partem com uma grande desvantagem. Ainda hoje a cultura das classes subalternas é (e muito mais, se pensarmos nos séculos passados) predominantemente oral, e os historiadores não podem se pôr a conversar com os camponeses do século XVI (além disso, não se o compreenderiam). Precisam então servir-se sobretudo de fontes escritas (e eventualmente arqueológicas) que são duplamente indiretas: por serem escritas e, em geral, de autoria de indivíduos, uns mais outros menos, abertamente ligados à cultura dominante. Isso significa que os pensamentos, crenças, esperanças dos camponeses e artesãos do passado chegam até nós através de filtros e intermediários que os deformam. [...]Porém, os termos do problema mudam de forma radical ante a proposta de se estudar não a “cultura produzida pelas classes populares”, e sim a “cultura imposta às classes populares. (GINZBURG,1987, p.17-18).

É neste contexto emaranhado de ambiguidades referente à definição sobre conceito de cultura popular que se encontra Menocchio. Completamente o oposto de uma concepção de cultura popular em que considera as classes dominantes responsáveis pela distribuição generosa de subprodutos culturais que são passivamente assimilados pelas as classes subalternas das sociedades pré-industriais, a hipótese de uma influência recíproca entres as culturas, sejam elas quais forem – muito bem definida por Mikhail Bakhtin e reaproveitada por Ginzburg – parece muito mais plausível.

O fato mais instigante e, ao mesmo tempo, bem complexo, é o de se estabelecer até que ponto se pode avançar na crença de que os eventuais elementos de uma cultura hegemônica são encontráveis na cultura popular, sendo este o resultado de uma aculturação deliberada ou espontânea, e não o inverso? A investigação feita por Ginzburg, no tocante caso de Menocchio, se não nos revela, com todas as letras impressas de modo garrafais, um contato direto desse simples camponês que exercia a profissão de moleiro com uma cultura dominante, pelo menos nos dá respostas um tanto satisfatórias a partir da observação de que as ideias proferidas por Menocchio, embasadas em determinadas leituras, demonstram um discurso muito claro, objetivo, seguro e bastante exacerbado, sem abandonar as crenças populares e os elementos obscuros das mitologias camponesas.

Concepções que perpassam por questões concernentes às aspirações utópicas de renovação social, ao radicalismo religioso e ao naturalismo tendencialmente científico são temas inseridos no mais profundo âmago de Menocchio – e isso é bem nítido em seus diálogos

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com os inquisidores –, pois salta aos nossos olhos “a impressionante convergência entre as posições de um desconhecido moleiro friulano e as de grupos de intelectuais dos mais refinados e conhecedores de seu tempo [...]”(GINZBURG,1987, p.25-26). Esta convergência de ideias, supostamente pertencentes a dois mundos diferentes, reacende e nos aproximam a todo vapor da problemática conjectural da circularidade entre culturas, proposta primeiramente pelo Círculo bakhtiniano e pujantemente corroborada posteriormente por Ginzburg nesta sua obra.

Os pontos e contrapontos que Menocchio tecia para argumentar ferozmente contra princípios dogmáticos da Igreja e as próprias ideias dogmatizantes que ele acabaria apresentando para se pensar soluções frente aos problemas religiosos e teológicos que a Igreja possuía, acabaram despertando com maior intensidade a hipótese de uma aflorada circularidade de ideias compostas por diferentes formas de conhecimentos, das quais Menocchio possivelmente teria bebido. A Reforma Protestante, a Contra Reforma, a imprensa e o possível contato direto com grupos hereges são elementos que aguçaram a hipótese sugerida por Ginzburg, a respeito de uma possibilidade de um movimento de circularidade cultural no contexto social ao qual Menocchio pertencia. Tendo em vista estas suspeitas sobre a existência de uma circularidade cultural no cotidiano de Menocchio, Ginzburg vai pinçar uma série de indícios que fundamentariam tais suspeitas, analisando mais profundamente em que medida se daria este grau de influência e até que ponto estes elementos haviam desempenhado algum tipo de influência na formação das opiniões dele, assim como sobre a própria vida cotidiana de Menocchio.

Esta quantidade de leituras que Menocchio realizou para formular suas ideias remete, certamente, a um quadro cultural em que ele absorve uma cultura registrada nas páginas impressas dos livros que leu e uma cultura oral que aprendera através de suas tradições culturais. Neste sentido, tanto as páginas impressas quanto o conhecimento de uma cultura oral serviram de elementos cruciais para que Menocchio fundamentasse suas teorias.

Partindo-se desse raciocínio, considerando os exemplos referentes aos postulados reflexivos sobre a visão de mundo proferida nos discursos de Menocchio, é possível perceber com clareza uma confluência de pensamentos que são produzidos no bojo dos grupos populares e no círculo avançado da mais alta cultura. Essa rede interpretativa que se forma a partir dos grupos populares com sua cultura oral, concomitantemente à presença constante de um círculo cultural advindo das classes dominantes, não afasta, em hipótese alguma, que o mais importante para Menocchio era a interpretação dos textos do que as suas fontes propriamente ditas. Não obstante Menocchio perfilar suas opiniões por meio de uma confabulação de pensamentos, ainda que estas suas interpretações partissem do que lia nesses textos, inúmeros trechos do O queijo e os vermes nos aludem que suas explicações aparentemente estavam mais voltadas para um contexto de ascendência e linhagens tradicionais orais do que para os próprios textos.

Seu radicalismo religioso, embora tendo ocasionalmente se nutrido de temas da tolerância medieval, ia muito mais ao encontro das sofisticadas teorizações religiosas dos heréticos contemporâneos de formação humanista. Vimos, portanto, como Menocchio lia seus livros: destacava, chegando a deformar, palavras e frases; justapunha passagens diversas, fazendo explodir analogias fulminantes. Toda vez que confrontamos os textos com suas reações a eles, fomos levados a postular que Menocchio possuía uma chave de leitura oculta que as possíveis relações com um outro grupo de heréticos não são suficientes para explicar. Menocchio triturava e reelaborava suas leituras, indo muito além de qualquer modelo

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estabelecido. Suas afirmações mais desconcertantes nasciam do contanto com textos inócuos, como As Viagens, de Mandeville, ou a Historia del Giudicio. Não o livro em si, mas o encontro da página escrita com a cultura oral é que formava, na cabeça de Menocchio, uma mistura explosiva. [...] Empregando uma terminologia embebida de cristianismo, neoplatonismo e filosofia escolástica, Menocchio procurava exprimir o materialismo elementar, instintivo, de gerações e gerações de camponeses. (GINZBURG,1987, p.116-132)

Infelizmente, não podemos retratar aqui todos os exemplos, que não são poucos, que Ginzburg, em seu O queijo e os vermes, nos oferece. Todavia, os indícios remontam a um vasto número de exemplos que nos aproximam da crença de que havia a existência de uma circularidade cultural no contexto social do qual Menocchio fazia parte. Deste modo, o importante é percebermos que estes mesmos indícios nos ajudam a compreender, da mesma forma, toda uma relação sociocultural em que duas sociedades estão afastadas temporalmente por no mínimo três séculos de diferença: é o caso do Brasil no contexto do vigente regime político imperial do final do século XIX e da Itália pertencente a uma Europa pré-industrial do século XVI. O que estamos querendo dizer é que esta distância geográfica-temporal entre os dois países não anula a presença marcante do processo de circularidade cultural que houve tanto no caso específico de um moleiro camponês que serviu de exemplo representativo de uma mentalidade sociocultural de uma determinada sociedade inserida em uma determinada época, como é o próprio caso de Menocchio, quanto no caso peculiar da música popular brasileira composta por seus diferentes gêneros musicais como aconteceu com o choro – nosso objeto de estudo.

A conclusão a que podemos chegar, ao estudar as opiniões que Menocchio proferia na enunciação de sua cosmogonia ou até mesmo nas suas mais veementes críticas feitas diretamente aos preceitos cristãos católicos, é um belo exercício teórico interessado, minimamente, em evidenciar as contradições sociais, os conflitos ideológicos e as relações de classes no âmbito cultural, principalmente em se tratando da incidência e da dissidência entre uma cultura hegemônica e uma cultura popular. É bem ousado e ao mesmo tempo dificultoso identificar tantas especificidades a partir de uma análise inquisitorial, como foi o caso peculiar deste moleiro, porém a riqueza de detalhes que este personagem apresentava era o suficiente para se reconstruir hipoteticamente não só a cultura popular que Menocchio carregava subjetivamente em si mesmo, como também a personificação de um complexo processo de circularidade cultural existente no seio de uma classe subalterna tão bem representada na figura de Menocchio.

O mérito da questão desta primorosa obra de Carlo Ginzburg é exatamente a oportunidade que o autor nos proporciona de constatarmos as peculiaridades deste mundo camponês do século XVI. Através da vida deste moleiro falastrão, temos a oportunidade de conhecer mais sobre o cotidiano e a circularidade sociocultural que pairava sobre a vida camponesa daquela época. Eis então alguns dos exemplos das peculiaridades cotidianas e desta da suposta circularidade cultural que cercava a vida camponesa daquela época: o moinho como lugar de encontros e relações socioculturais; o papel socioeconômico do moleiro; a circularidade de ideias em um ambiente hostil predominantemente, à primeira vista, como sendo um mundo estático ou fechado em suas próprias mentalidades; crenças; valores sociais; valores espirituais; valores morais; a repercussão do resultado de interação cultural; choques entre costumes, tradições, pensamentos medievais e pensamentos modernos que ocupavam concomitantemente o mesmo espaço, assolando as classes dominantes e as subalternas; os limites e avanços relacionados

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a uma presença filosófica, teológica e religiosa entre o catolicismo e o protestantismo diante de certa resistência da sociedade camponesa, que conhecia e persistia em praticar uma antiga religião camponesa pré-cristã transmitida oralmente por várias gerações.

Todas estas questões acabaram sendo evidenciadas a partir da coadunação de vozes, espaços, manifestações de concepções provenientes de um discurso dialógico inerente ao pensamento de Menocchio. A simultaneidade entre a ansiedade de Menocchio em se livrar da acusação de heresia pelo tribunal do Santo Ofício e a necessidade obsessiva de expor suas ideias aumentou ainda mais a probabilidade do encontro circular entre um pensamento produzido por uma corrente culta e outra popular. A maneira como Menocchio lidava com os livros que tinha lido e a forma como os havia lido nos oferecem motivos suficientes para suspeitarmos de que Menocchio não reproduzia um discurso que era simplesmente embasado nas opiniões e teses alheias. Suas conclusões, assim como suas afirmações, demonstram um trabalho de reelaboração original que Menocchio realizava em suas leituras. Desta forma, cada vez se torna mais nítida a presença de uma circularidade entre estas correntes culturais, uma ligada à cultura considerada erudita e outra naturalmente ligada às correntes culturais populares.

Ao captar de fato e com muita sutileza as nuances desta circularidade de culturas que estavam permanentemente ao redor de Menocchio, isso possibilitou que o próprio moleiro friulano formasse sua cosmovisão a partir dos elementos conceituais e linguísticos com os quais entrara em contato. Se trouxermos este fenômeno de circularidade cultural paralelamente para a realidade de uma análise de nosso objeto de estudo, perceberemos que esta circularidade de culturas está totalmente ligada aos conceitos bakhtinianos que rementem à ideia de uma interpenetração e ressignificação entre as formas culturais das camadas populares e das culturas “eruditas” promovidas pelas elites já especificadas e analisadas nesta tese.

O discurso dialógico representado pelos conceitos bakhtinianos é praticamente retrabalhado pelo historiador Carlo Ginzburg sob a égide de uma ideia de circularidade cultural como força máxima de uma expressão conceitual que tem como objetivo assinalar categoricamente um procedimento na prática, no que diz respeito a uma relação de trocas e reapropriações entre diversas culturas congênitas em diferentes classes sociais. Em muitos momentos da narrativa sobre a vida e o contexto sociocultural de Menocchio, foi possível presenciarmos o afloramento de algumas analogias extraordinárias que se sucederam por meio das mais profundas e significativas diferenças de linguagens ocorridas a partir do diálogo entre uma cultura camponesa considerada subalterna e outra cultura mais ligada aos setores avançados, subtendidas como classes dominantes.

Aceitar ou explicar estas relações análogas como um mero desenvolvimento cultural que acontece em uma escala hierárquica e que é imposto socialmente de cima para baixo seria o mesmo que acolhermos uma insustentável tese, segundo a qual se defenderia a concepção de que a cultura e as ideias, de um modo geral, seriam frutos diretos e exclusivos de uma “privilegiada” classe dominante. Ao contrário disso, a não aceitação ou não explicação desta tese infundada, simplista e generalizante traria, para o centro da discussão, uma conjectura mais complexa em que a hipótese que se sustenta de maneira mais plausível é a de uma relação recíproca, circular e dialógica entre as culturas das classes dominantes e as das classes subalternas, existente em qualquer contexto sócio-histórico, o que não seria diferentemente na Europa do século XVI ou no Brasil dos séculos XIX e XX. Neste último caso, o da não aceitação de uma tese tão simplista

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assim, significaria o rompimento com um discurso evasivo e com a própria reprodução, sem qualquer critério crítico, de um discurso pífio proferido por uma classe dominante que deseja evidentemente se perpetuar como tal.

Em uma situação em que uma cultura se apresenta de forma, quase que exclusivamente oral, como é o caso da cultura das classes subalternas da Europa pré-industrial, a sua tendência é de não deixar pistas, ou quando muito, deixar pistas distorcidas. No que tange ao caso específico ocorrido no contexto sócio-histórico em que o Menocchio se encontra inserido, um valor sintomático se apresenta. Como bem nos instiga o historiador Carlo Ginzburg, um caso limite como o de Menocchio,

[...] repropõe, com força, um problema cuja importância só agora se começa a perceber: as raízes populares de grande parte da alta cultura europeia, medieval e pós-medieval. Figuras como Rabelais e Bruegel não foram, provavelmente, exceções notáveis. Todavia, fecharam uma época caracterizada pela presença de fecundas trocas subterrâneas, em ambas as direções, entre a alta cultura e a cultura popular. O período subsequente, ao contrário, foi assinalado tanto por uma distinção cada vez mais rígida entre cultura das classes dominantes e cultura artesanal e camponesa quanto pela doutrinação das massas populares, vinda de cima. [...]Esse renovado esforço de obter hegemonia assumiu formas diversas nas várias partes da Europa; mas a evangelização do campo por obra dos jesuítas e a organização religiosa capilar baseada na família, executada pelas igrejas protestantes, podem ser agrupadas numa mesma tendência. A ela correspondem, em termos de repressão, a intensificação dos processos contra bruxaria e o rígido controle dos grupos marginais, assim como dos vagabundos e ciganos. O caso Menocchio se insere nesse quadro de repressão e extinção da cultura popular(GINZBURG,1987, p.230-231).

Após esta citação, duas rápidas observações, porém importantes, devem ser feitas. A primeira está direcionada para esta hegemonia que assume, sem qualquer tipo de pudor, uma posição discrepante em tentar extirpar uma cultura popular a partir de uma repressão radical em nome de um ideal coercivo, filosófico e teológico que convencia somente a si próprio na crença de se ocupar uma posição que estava acima do bem e do mal. Este fato, que se iniciou na Europa pré-industrial do século XVI e que, certamente, se estendeu por outros períodos cronológicos, não difere muito das perseguições contra os grupos populares considerados pejorativamente minoritários, por pertencerem a uma cultura afro-brasileira, e que se faziam profundamente presentes em nosso país, nos frementes anos iniciais do século XX.

Assim sendo, os bêbados, vagabundos e desordeiros, adjetivos desqualificativos que eram empregados aos brasileiros afrodescendentes, e ainda as rodas de samba, o candomblé, as rodas de capoeiras e os encontros socioculturais através do choro – neste último caso, talvez um pouco menos – foram alvos de perseguições estupidamente espantosas, reforçando assim, uma ideia de racismo e de extinção de uma cultura popular, ranço indelével de uma mentalidade que ainda insistia em permanecer nos moldes escravistas.

A segunda observação que queremos fazer diz respeito às matrizes populares que compunham grande parte da alta cultura europeia, medieval e pós-medieval destacadas na citação anterior, e que em nada difeririam dos casos de hibridismos em outras culturas e, não menos importante, no caso da cultura brasileira. Para não falarmos de algo que seja diferente da música brasileira, que é o leitmotiv principal desta nossa pesquisa, queremos trazer como

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exemplo a própria música produzida por Villa-Lobos, mundialmente considerado o maior compositor brasileiro de música clássica.

Tal afirmação anterior se confirma através do simples fato da obra de Heitor Villa-Lobos ser a mais tocada pelas orquestras de todas as partes do mundo. Este é apenas um dado estatístico detalhado, o que já não é pouco, mas nos dá uma real dimensão da importância e da respeitabilidade que tem a obra musical deste compositor brasileiro. O exemplo mais significativo, portanto, é o fato da obra de Heitor Villa-Lobos carregar consigo inúmeros elementos da cultura popular brasileira, principalmente aqueles elementos culturais direcionados para os aspectos folclóricos, indígenas e afro-brasileiros.

Nesse sentido, para comprovarmos tais afirmações, basta recuperarmos as rodas de música popular frequentadas por Heitor Villa-Lobos, assim como o conjunto de 12 obras musicais intitulado Choros e as Bachianas Brasileiras número 2, cujos movimentos musicais estão distribuídos em quatro partes – Prelúdio (O Canto do Capadócio), Ária (O Canto da Nossa Terra), Dança (Lembrança do Sertão) e Tocata (O Trenzinho do Caipira) – materializando, de certa forma, as suas inúmeras viagens pelo interior do país, em busca de conhecer as diferentes culturas existentes nesse complexo Brasil, que é composto certamente de muitos Brasis. Seguramente, sem qualquer dúvida, estas viagens e os círculos musicais frequentados por Heitor Villa-Lobos influenciariam na performance de como este compositor deveria compor suas próprias obras, tão bem aceitas e reverenciadas no âmbito da música clássica em nível mundial.

Em meio às transformações socioeconômicas, políticas e culturais que marcaram profundamente o nosso país durante o processo de transição do século XIX para o século XX, a sociedade brasileira testemunhou a emergência de se estabelecer e reconhecer a entrada em cena de novos atores socioculturais nos diferentes espaços públicos ou privados que serviam como ambientes de sociabilidades.

Analisando sob a luz do conceito de circularidade cultural proposto por Ginzburg, estes diversos espaços de sociabilidades e as diferentes formas de produção, divulgação e circularização da música popular urbana (representada pelo seu gênero chorístico), entre as esferas erudita e popular por meio das edições, do consumo das vendas de partituras; do fonógrafo, do gramofone e da vitrola elétrica; das bandas civis, militares e dos grupos de choro; do rádio, do teatro, do cinema; das festas coletivas e da imprensa, são exemplos contundentes alusivos à existência de um processo de circularidade cultural bem evidente na cidade do Rio de Janeiro daquela época em particular.

A circulação de músicos diletantes ou profissionais entre os meios musicais distintos em determinados contextos sócio-históricos é outro perspicaz exemplo que comprova este processo de circularidade cultural que se forma pelo meio da interligação e reapropriação contínuas originárias das culturas das classes dominantes e das culturas provenientes das camadas sociais subalternas. Sem contar com o próprio processo de hibridismo cultural e musical que o choro perpassa, na medida em que há, na construção estrutural deste gênero musical híbrido, a incorporação de tendências musicais diversas. Desta forma, revela-se, portanto, a talentosa capacidade que tinham estes músicos, estes compositores chorões, desde os primórdios, em amalgamar experiências culturais e musicais das classes dominantes e subalternas através da combinação dos ritmos dos salões da corte com as especificidades da musicalidade afro-brasileira.

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O denso entrecruzamento de signos comportamentais, textuais e, principalmente, entre os signos musicais sonoros advindos das mais variadas práticas musicais e meios sociais, serve como estreitamento de laços que abrem espaços para um convívio mais próximo entre os setores heterogêneos no espaço físico-geográfico da sociedade carioca, diminuindo, até certo ponto, condutas sociais mais rígidas, que acabavam separando e rotulando esses espaços destinados aos momentos de sociabilidades, bem como as próprias práticas musicais representadas por suas respectivas classes sociais.

Deste modo, o processo de circularidade cultural permitiu, em certa medida, a emergência de novas práticas culturais que abarcavam, em um mesmo espaço sociocultural, a participação de uma classe popular e de uma classe dominante. O som dos grupos musicais dos chorões nas ruas, nos palcos, nos coretos e nos salões das elites brasileiras transformou-os em ambientes de ampla circulação cultural entre as classes sociais, permitindo assim, guardada as devidas proporções, uma mínima convivência harmoniosa, ou pelo menos, a aceitação e reconhecimento sociocultural de uma classe mais abastada, que tinha em seu favor a produção musical que era tocada nas rodas de choro.

Considerações finais

Na verdade, as categorias filosóficas do pensamento bakhtiniano, tais como dialogismo, carnavalização, polifonia, gêneros do discurso, vozes do discurso entre outras, somadas ao próprio conceito de circularidade cultural proposto por Carlo Ginzburg e ao próprio conceito categórico de hibridismo cultural propostos, por exemplo, em Néstor Canclini ou Peter Burke, não podem ser transformadas em meras categorias metodológicas, científicas ou academicistas.

Estes postulados filosóficos, sobretudo aqueles conceituados por Mikhail Bakhtin e Ginzburg, devem de ser utilizados como categorias filosóficas para se pensar teoricamente as múltiplas formas de signos de linguagem e suas respectivas influências interna e externa com a cultura, com a arte, com a linguagem humana, com as diferentes correntes teórico-filosóficas e com as diversas disciplinas.

Nesta perspectiva, o cenário analítico, no tocante a estas discussões filosóficas e teórico-metodológicas propostas no campo específico desta comunicação, caminham para o sentido do que já se afirmaria no século VI a.C., pelo o filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso, considerado pela historiografia como sendo o “Pai da dialética”: “nada neste mundo é permanente, exceto a mudança e a transformação” (VIEIRA, 2001, p. 67).

Ou seja, em outras palavras, este não seria o devir da história? Imediatamente respondemos sob a crença, segundo nossa ciência e consciência, acreditando piamente que o mundo enquanto vontade, perspectiva e devir, sob a égide de se analisar indivíduos de espirito livre ou não, com suas diferentes e dialogantes paixões, culturas, vicissitudes, vontades, paradoxos, instintos, pensamentos, mentalidades, elucidações em distintos contextos históricos, como bem nos asseguraria, por exemplo, o pensamento do filósofo Friedrich Nietzsche, verdadeiramente este é e deve sempre ser a força motriz da História: uma busca sob a luz na contramão em direção a uma procura por “razões puras”, “verdades absolutas”, “mundo ideal” e uma “história fechada em si mesma”, o que nos levariam a um exacerbado equivoco e a um niilismo total, no tocante ao que seria o conveniente sentido da História!

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