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1 A produção textual de um estudante ao final do ensino médio 1 Carlos Alberto Faraco 2 Gostaria, nesta minha apresentação, de trazer à reflexão de vocês alguns dos muitos aspectos que envolvem a produção escrita dos concluintes do ensino médio. Meu objetivo principal é pôr sobre a mesa elementos que nos permitam situar a redação do ENEM no seu contexto social amplo; e mais especificamente no contexto da Educação Básica. Assim, nosso foco aqui estará menos na redação em si e mais no contexto em que ela é produzida e avaliada. Não podemos esquecer que a educação básica completa universalizada ou seja, a educação que alcance todos os jovens de 15 a 17 anos é, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, uma exigência das sociedades contemporâneas. Diferentemente do que ocorria no início do século XX, época em que a educação média era, no mundo inteiro, um nível educacional para poucos, a educação média completa passou a ser, no início do século XXI, o nível educacional mínimo a ser garantido universalmente. Sabemos muito bem hoje que a sociedade na contemporaneidade só avança de maneira sustentável se garantir, pelo menos, educação básica de qualidade para todos. Não há efetivos avanços sociais, econômicos, culturais, tecnológicos se apenas poucos concluírem o ensino médio; ou, pior, se muitos concluírem mas sem alcançar o domínio das competências cognitivas indispensáveis para qualquer cidadão. Nós no Brasil temos, infelizmente, alguns déficits historicamente acumulados nessa área. Não conseguimos ainda universalizar a Educação Média quando os países mais avançados já o fizeram entre 1950 e 1960. Estamos, portanto, meio século atrasados neste quesito. Pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2008, 84% dos jovens de 15 a 17 anos estavam na escola. No entanto, apenas 50% estavam no Ensino Médio (ou seja, apenas a metade estava no nível compatível com a idade). 34% estavam ainda no Ensino Fundamental e 16% dos jovens estavam fora da escola. 1 Texto apresentado na abertura do Encontro de Supervisores de Avaliação de Redações, promovido pela DAEB/ INEP. Brasília, 30/08/2014. 2 Professor Titular (aposentado) de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Paraná.

Carlos Alberto Faraco - A Produção Textual de Um Estudante Ao Final Do Ensino Médio

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    A produo textual de um estudante ao final do ensino mdio1

    Carlos Alberto Faraco2

    Gostaria, nesta minha apresentao, de trazer reflexo de vocs

    alguns dos muitos aspectos que envolvem a produo escrita dos

    concluintes do ensino mdio.

    Meu objetivo principal pr sobre a mesa elementos que nos

    permitam situar a redao do ENEM no seu contexto social amplo; e

    mais especificamente no contexto da Educao Bsica. Assim, nosso foco

    aqui estar menos na redao em si e mais no contexto em que ela

    produzida e avaliada.

    No podemos esquecer que a educao bsica completa

    universalizada ou seja, a educao que alcance todos os jovens de 15 a 17 anos , desde o fim da Segunda Guerra Mundial, uma exigncia das sociedades contemporneas.

    Diferentemente do que ocorria no incio do sculo XX, poca em

    que a educao mdia era, no mundo inteiro, um nvel educacional para

    poucos, a educao mdia completa passou a ser, no incio do sculo

    XXI, o nvel educacional mnimo a ser garantido universalmente.

    Sabemos muito bem hoje que a sociedade na contemporaneidade

    s avana de maneira sustentvel se garantir, pelo menos, educao

    bsica de qualidade para todos. No h efetivos avanos sociais,

    econmicos, culturais, tecnolgicos se apenas poucos conclurem o

    ensino mdio; ou, pior, se muitos conclurem mas sem alcanar o

    domnio das competncias cognitivas indispensveis para qualquer

    cidado.

    Ns no Brasil temos, infelizmente, alguns dficits historicamente

    acumulados nessa rea. No conseguimos ainda universalizar a Educao

    Mdia quando os pases mais avanados j o fizeram entre 1950 e 1960. Estamos, portanto, meio sculo atrasados neste quesito.

    Pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD) de

    2008, 84% dos jovens de 15 a 17 anos estavam na escola. No entanto,

    apenas 50% estavam no Ensino Mdio (ou seja, apenas a metade estava

    no nvel compatvel com a idade). 34% estavam ainda no Ensino

    Fundamental e 16% dos jovens estavam fora da escola.

    1 Texto apresentado na abertura do Encontro de Supervisores de Avaliao de Redaes,

    promovido pela DAEB/ INEP. Braslia, 30/08/2014. 2 Professor Titular (aposentado) de Lngua Portuguesa da Universidade Federal do Paran.

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    A consequncia de estarmos to atrasados quanto oferta de

    Ensino Mdio que, segundo os dados do IBGE (PNAD/ 2008), apenas

    23,8% da nossa populao adulta (de 25 a 64 anos) tm o Ensino Mdio

    completo quando na Alemanha, nos EUA e na Rssia este ndice est em

    torno dos 90%.3

    Somos ainda, ento, uma sociedade com baixo ndice de

    escolaridade e, claro, baixo ndice de letramento. Nossas relaes com a

    linguagem escrita e com a cultura letrada so ainda muito limitadas. H

    claras dificuldades com a leitura e compreenso de textos; e grandes

    dificuldades com a produo de textos, conforme se observa

    cotidianamente com os alunos do Ensino Superior: suas dificuldades so

    indicadores relevantes porque so estudantes que concluram a Educao

    Mdia.

    Esta a condio sociocultural ampla em que se d a educao das

    nossas crianas e jovens. Nosso sistema educacional vive sob este

    desafio: como ampliar a escolaridade e o letramento da populao

    brasileira num contexto sociocultural limitado, para no dizer

    relativamente adverso. Basta lembrar aqui que muitos educadores tm a

    tarefa de ensinar a escrever, mas eles mesmos no dominam

    suficientemente a escrita ou no escrevem regularmente.

    no interior desse complexo quadro que vai ocorrer o ENEM um exame de avaliao geral da educao mdia que inclui uma prova de

    produo de um texto; e que deixou de ser apenas um exame de

    diagnstico e passou a ter carter classificatrio para efeitos de ingresso

    na educao superior, o que amplifica enormemente nossa

    responsabilidade de avaliadores.

    no interior desse mesmo complexo quadro sociocultural que ns

    atuamos avaliando a redao produzida pelos candidatos.

    Por isso, penso que, embora ns, no momento da avaliao,

    devamos pr, obviamente, nosso foco no texto em si, no podemos e no

    devemos perder de vista o quadro sociocultural amplo em que a redao

    do ENEM se d.

    Acredito que, em termos ideais, podemos dizer que h um relativo

    consenso sobre o perfil que deve ter o egresso dos 12 anos da Educao

    Bsica. Em linhas gerais, espera-se que ele seja capaz de pensar

    3 Os dados citados no texto so do IBGE. Constam da publicao Sntese de indicadores

    sociais uma anlise das condies de vida da populao brasileira (Rio de Janeiro, 2009), acessvel tambm pelo seguinte endereo eletrnico (consultado em 28/08/2014):

    http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicso

    ciais2009/indic_sociais2009.pdf

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    matemtica e cientificamente; tenha as referncias bsicas para

    compreender a histria e o funcionamento da sociedade em que vive; e,

    em lngua portuguesa, esteja apto a ler e compreender um texto de

    mediana complexidade e de escrever um texto legvel (coerente e claro),

    adequado s caractersticas de um determinado gnero de amplo uso

    social (informativo ou argumentativo) e que corresponda s expectativas

    socioculturais que recobrem a modalidade escrita formal da lngua, ou

    seja, que o texto se mostre adequado em termos de morfossintaxe e de

    ortografia.

    Da decorre o fato de o ENEM incluir, entre suas provas, a de

    redao. Temos essa crena de que o domnio da expresso escrita uma

    competncia essencial de quem completa a educao bsica.

    O candidato , ento, solicitado a escrever em at 30 linhas e

    utilizando a modalidade escrita formal do portugus brasileiro

    contemporneo um texto argumentativo-dissertativo. A prova fornece

    textos motivadores e espera que o aluno, conjugando dados desses textos

    e conhecimentos obtidos em sua formao escolar, produza um texto

    sobre o tema proposto, expressando seu ponto de vista e sustentando-o

    coerentemente com argumentos.

    Nossa avaliao da redao do ENEM, como em outras situaes

    semelhantes, se faz com base num certo modelo do que seja um bom

    texto. Temos, em princpio, portanto, uma certa rgua para medir a maior

    ou menor aproximao do texto do candidato a um nvel timo.

    Vamos, ento, detalhar um pouco os critrios que compem essa

    referncia de medida para verificar se a temos, de fato, partilhada. No

    vamos aqui discutir a matriz de avaliao (que ser trabalhada no correr

    deste Encontro), mas levantar alguns aspectos conceituais que esto, de

    certa forma, subjacentes matriz.

    Podemos dizer que um texto escrito qualquer pode ser apreciado a

    partir de, pelo menos, quatro planos articulados: o plano interacional, o

    plano textual, o plano gramatical e o plano grfico.

    O plano interacional diz respeito ao fato de que escrevemos para

    algum ler, ou seja, o texto um evento de comunicao e tem um

    destinatrio. Esse destinatrio poder ser uma pessoa muito bem

    definida e individualizada (como numa carta ou num e-mail pessoal) ou

    um leitor genrico (com o qual trabalha, por exemplo, a imprensa).

    Por outro lado, nossa escrita uma prtica situada no interior de

    uma determinada atividade social. Quando escrevemos estamos no

    interior de alguma das inmeras esferas sociointeracionais estamos na esfera das relaes pessoais prximas, familiares; ou em esferas menos

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    prximas como o jornalismo, o ensino, a cincia, o sistema jurdico; ou

    estamos em meio a uma das muitas dimenses do mundo do trabalho ou

    da criao literria, entre muitas outras. Cada uma dessas esferas admite

    diferentes tipos de textos, concretizando cada uma toda uma tradio

    discursiva historicamente construda.

    Ao escrever para um determinado destinatrio e no interior de uma

    determinada atividade social, temos objetivos a alcanar e selecionamos

    temas e tpicos a tratar.

    No plano interacional, h, portanto, mltiplos elementos inter-

    relacionados (onde estamos situados; a quem nos dirigimos; com que

    objetivos; sobre que assunto) que condicionam a nossa produo. Tendo-

    os como referncia, tomamos decises, fazemos recortes, delineamos um

    cenrio que enquadre essas decises e recortes e oriente a sua

    textualizao.

    O redator imaturo revela sua imaturidade no plano interacional por

    no atrelar adequadamente sua escrita s condies da interao verbal. O

    redator imaturo no se d conta dos condicionantes de seu texto e, por

    isso, derrapa, por exemplo, nas caractersticas do gnero (num texto

    argumentativo confunde fatos e opinies; ou afirma sem sustentar a

    afirmao com argumentos; ou escolhe argumentos aleatrios e

    incoerentes).

    tambm indicador de imaturidade interacional o uso de

    vocabulrio inadequado ( o redator que usa termos tcnicos de forma

    imprecisa; ou usa gria num texto formal sem marcar que se trata de um

    uso monitorado para alcanar determinado efeito de sentido; ou,

    acreditando que se deve escrever difcil, usa palavras raras sem ter clareza de seu significado e assim por diante). Por fim, o redator imaturo

    no plano interacional do texto escrito recorta mal o contedo e

    sobrecarrega o texto com um excesso de ideias fragmentadas.

    Passando agora para o plano textual, podemos dizer que este o

    plano da construo do texto propriamente dito, do objeto lingustico que

    vai alcanar nosso interlocutor, desse todo que muito mais que a soma

    de suas partes porque sua significao pressupe uma organizao

    hierarquizada e sequencial dos contedos e uma amarrao entre as

    partes.

    O grande desafio do processo de textualizao justamente este:

    dar forma linear, unidimensional, a uma estrutura que

    multidimensional. O desafio aqui manter sob controle a dimenso linear

    prpria do signo lingustico de tal modo que se garanta que o

    multidimensional ou seja, os mltiplos elementos do plano interacional em suas mltiplas inter-relaes no se perca ou fique prejudicado na

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    passagem para o unidimensional. H um custo operacional para dar

    unidade temtica e unidade estrutural ao texto, custo este que cobra de

    quem escreve um planejamento, uma antecipao, uma anteviso do que

    vai ser a totalidade.

    O redator imaturo revela sua imaturidade no plano textual por se

    deixar controlar pela linearidade do signo e vai dando forma ao texto

    medida que vai preenchendo as linhas sem ter uma viso prvia do

    conjunto, sem se orientar pela anteviso do todo. O redator imaturo parte

    para a escrita do texto sem um plano de voo. O texto resulta falho em sua

    coerncia, em sua sequncia, na amarrao entre as partes, em sua

    clareza.

    O plano gramatical, por sua vez, diz respeito construo das

    sentenas e dos perodos em conformidade com as caractersticas

    morfossintticas da variedade lingustica que a tradio discursiva definiu

    como adequada para cada tipo de texto no interior de uma determinada

    atividade socioverbal.

    Estamos, agora, no plano infratextual (esto em pauta as estruturas

    das sentenas e dos perodos) e no plano da acomodao da expresso s

    expectativas sociais referentes variao lingustica.

    No caso da redao do ENEM, como se trata de um texto

    dissertativo-argumentativo, acrescenta-se a exigncia de que ele seja

    escrito na modalidade formal do portugus brasileiro contemporneo

    porque esta que as tradies discursivas aliaram ao texto dissertativo-

    argumentativo. H, nesse sentido, uma certa redundncia nessa exigncia.

    Mas, considerando que nem sempre todos os segmentos sociais tm

    clareza sobre isso, a redundncia necessria.

    O redator imaturo revela sua imaturidade no plano gramatical ao

    usar caractersticas morfossintticas inadequadas ao tipo de texto que est

    produzindo. Ou porque no aprendeu a transitar pela variao lingustica

    ou porque no tem domnio das caractersticas morfossintticas da

    variedade que deveria usar.

    Por fim, o plano grfico diz respeito ortografia e formatao

    do texto no espao do papel (marcando, por exemplo, a paragrafao).

    um plano que tem um baixo custo operacional se as formas ortogrficas e

    as convenes de formatao grfica estiverem suficientemente

    automatizadas. Se temos de forar a memria a cada passo para recuperar

    a forma ortogrfica das palavras, isso interfere negativamente na

    construo do todo do texto, desviando a ateno dos aspectos que no

    so, nem podem ser, automatizados.

    Facilmente reconhecemos o redator imaturo no plano grfico

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    porque suas insuficincias so visveis a olho nu. Talvez por isso, por ser

    to fcil de reconhecer, que a escola e o senso comum deem tanto peso

    ao erro ortogrfico. Ele tomado como o grande indicador de que a

    pessoa no sabe escrever.

    Um pssimo texto mas sem maiores problemas ortogrficos

    costuma receber melhor avaliao social e educacional do que um bom

    texto com problemas ortogrficos. A imaturidade ortogrfica decorre, em

    geral, de uma alfabetizao mal feita, mas principalmente de uma

    carncia nas prticas letradoras. Ela no se revela, obviamente, em

    pequenos lapsos (a que todos ns estamos sujeitos pelas prprias

    caractersticas do nosso sistema ortogrfico), mas pela presena de muitas

    e recorrentes inadequaes.

    Por fim, o plano grfico inclui o uso dos sinais de pontuao.

    Trata-se de marcas grficas, mas cujo uso est condicionado pelo plano

    gramatical e textual. No caso da pontuao, estamos numa interface entre

    o grfico e o estrutural.

    H regras de uso, mas, em geral, elas no so categricas e

    dependem de decises pontuais, tendo como condicionantes, de um lado

    a estrutura sinttica e textual e, de outro, as preferncias estilsticas.

    E incluo aqui a questo das preferncias estilsticas como

    ingrediente da produo escrita porque no podemos nunca esquecer que

    as prticas de escrita tm restries dadas pelas tradies discursivas, mas

    se realizam tambm num amplo espao de liberdade expressiva do qual o

    redator maduro sabe tirar proveito para individualizar sua expresso e,

    desse modo, atrair e seduzir seus leitores.

    Se, por exemplo, h uma forte expectativa social de que o texto

    dissertativo-argumentativo seja redigido na modalidade formal da lngua,

    isso no nos impede de trazer para o nosso texto outras modalidades da

    lngua com o objetivo de criar determinados efeitos de sentido. Estruturas

    prprias das modalidades orais no esto proibidas de ocorrer num texto

    dissertativo-argumentativo. Mas preciso que deixemos claro que se trata

    de um uso intencional e monitorado. dessa forma que mostramos que

    estamos controlando a variao lingustica e no sendo controlados por

    ela.

    Se mais comum contar uma histria cronologicamente, nada nos

    impede de manejar o tempo da narrativa, comeando pelo fim ou

    intercalando o presente e a memria.

    Se h uma expectativa forte de que um texto dissertativo-

    argumentativo faa um percurso dedutivo, nada impede que tomemos o

    caminho contrrio, ou seja, partir da narrativa de um caso particular para

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    alcanar concluses gerais.

    Trago estes poucos exemplos s para lembrar que, embora a

    escrita, seja relativamente recente na histria da humanidade, j tivemos

    tempo suficiente para acumular inmeras possibilidades expressivas que

    esto disposio de quem escreve. Assim, importante no esquecer

    que mais que espao da necessidade e da obrigao, a escrita o espao

    das possibilidades expressivas.

    Dito isso tudo, podemos nos perguntar que tipo de redator o

    estudante que vem fazer o ENEM. O ideal seria que a maioria absoluta

    estivesse posicionada de uma faixa mdia para cima. Ou seja,

    considerando sua idade, que essa maioria mostrasse domnio razovel da

    expresso escrita, mesmo que ainda em processo de maturao.

    Os dados, porm, nos mostram que estamos ainda longe desse

    ideal, mesmo que faamos todos os devidos descontos em considerao

    s dificuldades envolvidas na produo de um texto em curto espao de

    tempo, sob a presso de estar sendo avaliado, sobre um tema que lhe

    revelado na hora e sem direito a consultar instrumentos de apoio

    (dicionrios, gramticas, manuais e pronturios) ou de informao.

    E mais do que isso, temos de dar um grande desconto pelo fato de

    que, em situao de avaliao, o candidato no produz um texto para

    algum ler, mas para algum avaliar sua competncia de escrita. Uma

    prova de redao no um real evento de comunicao. Assim, no plano

    interacional, o candidato tem de saber simular condies reais de

    produo, o que certamente um particular desafio para um jovem

    egresso recente do sistema escolar.

    Mesmo fazendo todos estes devidos descontos, os resultados

    indicam que estamos ainda distantes do ideal. No ltimo ENEM, foram

    avaliados 5 milhes de redaes. Apenas 480 alcanaram a pontuao

    mxima. 100 mil receberam zero. Apenas 10% do total alcanou nvel

    bom, ou seja, somaram mais de 700 pontos.

    Esses dados so claro indcio de que o sistema escolar est

    deixando de oferecer adequado nvel de letramento para boa parte dos

    nossos jovens concluintes da educao bsica.

    Sabemos que, apesar de todas as discusses, de todos os debates e

    de todas as recomendaes dos documentos oficiais, o sistema escolar

    continua sem uma pedagogia do letramento, sem uma pedagogia da

    produo de texto.

    A produo escrita ainda pouco praticada e ocorre sob condies

    insatisfatrias. Num recente artigo para a revista da Olimpada da Lngua

    Portuguesa Na ponta do lpis (nmero 24 maio de 2014, p. 6-11), a

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    profa. Lvia Suassuna, da Universidade Federal de Pernambuco,

    discutindo justamente a avaliao da produo escrita, diz, com base nas

    pesquisas que desenvolve sobre este tema (p. 7):

    Na maioria das nossas escolas, a produo escrita

    aparece pouco, est abandonada. Das prticas de

    linguagem desenvolvidas em sala de aula, a escrita a mais

    frgil. Trabalha-se mais com a leitura que a escrita,

    principalmente a escrita cuidada, que vai e volta, retorna

    para o aluno, confrontada, discutida.

    Alm disso, ela ressalta que o foco da avaliao continua sendo

    posto apenas no plano gramatical e no plano grfico, como se estes

    bastassem para a produo de um bom texto. O plano interacional e

    textual esto, em geral, ausentes das concepes e das prticas

    pedaggicas correntes na disciplina de lngua portuguesa.

    Enquanto persistir essa situao, mudar pouco o perfil do texto

    que teremos para avaliar no ENEM. E as estatsticas se repetiro ano aps

    ano, como tem ocorrido nos nossos outros processos avaliativos da

    educao.

    No me desespero. No sou do tipo apocalptico. Temos de

    entender que se trata de um processo histrico de longa durao e que

    vamos, sem dvida, continuar avanando, embora mais lentamente do

    que gostaramos. Por isso que sou crtico de uma avaliao muito rgida

    e inflexvel da redao do ENEM.

    Sei que esta afirmao problemtica e polmica. Mas preciso

    problematizar e polemizar para aprimorarmos nosso trabalho de

    avaliao; para consolidarmos uma cultura da avaliao e no da

    correo; de apreciao e no de castigo.

    Sou bastante crtico da ideia de se lidar com os textos do ENEM

    tendo como horizonte o princpio da tolerncia zero. A mdia que em geral no produz textos modelares, que no pratica o princpio da

    tolerncia zero consigo mesma exige, at de forma escandalosa, que ns avaliemos as redaes do ENEM com tolerncia zero.

    Em geral, mesmo defendendo a tolerncia zero, a mdia no vai

    alm do plano gramatical e ortogrfico. Reproduz, portanto, o senso

    comum, revelando desconhecer os outros planos constitutivos de um bom

    texto.

    No estou propondo, neste meu argumento, que nos entreguemos

    liberalidade, mas que nos pautemos por uma concepo avaliativa realista

    e pragmtica. Em outros termos, que operemos com certa flexibilidade

    avaliativa tendo sempre presentes as condies de produo da redao

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    do ENEM.

    No podemos nunca perder de vista que estamos avaliando um

    jovem de 17/18 anos, que solicitado a escrever um texto num espao de

    tempo relativamente curto, sob a tenso prpria dos exames, sem acesso

    aos instrumentos de que normalmente se utiliza quem escreve e agravante geral um jovem a quem o sistema escolar nem sempre ofereceu uma educao de qualidade.

    A avaliao nesse caso tem de ser antes holstica do que detalhista

    no se pode nem se deve descer s mincias. No somos revisores e corretores do texto, mas seus avaliadores. necessrio, portanto, medir,

    por critrios mais globais, a maior ou menor aproximao do texto a um

    nvel timo em cada uma das competncias.

    Por isso, no se d propriamente uma nota redao, mas se atribui

    a ela um conjunto de pontos seguindo uma matriz que define nveis (do

    menos ao mais prximo do timo) em cada uma das competncias. Por

    isso tambm possvel que uma redao alcance a pontuao mxima

    ainda que apresente algumas poucas inconsistncias textuais e

    argumentativas, bem como escassos lapsos de ortografia ou de adequao

    lxico-gramatical.

    Isso, como bem sabemos, tem sido, injustamente, motivo de

    escndalo. Ora, ao admitir poucas inconsistncias e escassos lapsos no

    nvel mximo de pontuao, a prpria matriz revela que est fundada

    numa concepo avaliativa realista e pragmtica.

    Infelizmente, a mdia interfere negativamente no nosso trabalho e

    acaba forando algumas decises, no plano poltico, que enrijecem

    excessivamente alguns critrios. Como educadores, devemos, penso eu,

    resistir a isso e continuar buscando calibrar nossa avaliao de modo que

    ela seja criteriosa sim, mas sem ser rgida e inflexvel.

    Lembremos, s para efeito de exemplificao, que mesmo pessoas

    altamente letradas e j maduras na prtica da escrita no tm segurana

    ortogrfica absoluta: pela vida afora temos dvidas e cometemos

    eventualmente pequenos lapsos ortogrficos. Isso no , de fato, um

    problema. apenas consequncia das prprias caractersticas da nossa

    ortografia, que combina transparncia fonolgica (regularidades e

    previsibilidade, portanto) e memria etimolgica (caracterstica

    responsvel por diferentes tipos de irregularidades e imprevisibilidade).

    Se isso comum na vida real das pessoas altamente letradas, por

    que no podemos aceitar sua ocorrncia na redao do ENEM? Por que

    numa redao com pontuao mxima no pode aparecer ocasionalmente

    um lapso ortogrfico, um trousse (com ss em vez de x) por exemplo?

  • 10

    O mesmo se pode dizer do plano gramatical (outro em que a mdia

    gosta de chafurdar). Por que no podemos admitir um ou outro lapso de

    concordncia (um sujeito posposto plural com o verbo no singular); ou

    uma ou outra relativa cortadora?

    Esses so fatos comuns na modalidade formal oral do portugus

    brasileiro e j ocorrem com relativa frequncia nos textos de escritores

    consagrados, mesmo quando submetidos a revisores antes da publicao,

    sinal inequvoco de que so estruturas j estabilizadas no uso formal. Por

    que no podem ocorrer esporadicamente numa redao do ENEM que

    receba a pontuao mxima?

    Acrescente-se a estes eventos da vida real, o fato de que no h,

    seja entre os especialistas, seja entre os instrumentos normativos

    correntes (dicionrios e gramticas), absoluto consenso sobre que

    fenmenos pertencem modalidade escrita formal do portugus

    brasileiro contemporneo. H razovel convergncia quanto morfologia

    dos verbos e a concordncia verbal e nominal; mas h no poucas

    divergncias quanto regncia verbal e a colocao e uso dos pronomes

    (para ficarmos em alguns casos). No h como fugir dessa realidade, que

    no m em si (apenas revela que os autores dos instrumentos

    normativos tm olhares parciais sobre a lngua). No entanto, no momento

    da avaliao do texto do aluno, precisamos enfrentar essas contradies,

    adotando sempre, nesses casos, um parmetro flexvel.

    preciso, portanto, muita cautela e bom senso na avaliao da

    redao de um aluno concluinte do Ensino Mdio para no perdermos o

    norte do que razovel.