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CARMEN MIRANDA, INDUMENTÁRIA E IDENTIDADE CULTURAL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA O ENSINO DE HISTÓRIA
VALNIA CLÉLIA CRÊS LOPES1
PROFª DRª ROSANA STEINKE2
RESUMO
O presente artigo busca discutir, dentro do Ensino de História, a partir de aspectos diversos, uma melhor compreensão a respeito das relações estabelecidas entre Brasil e a política da boa vizinhança, empreendida pelos EUA, na década de 1940. Elegendo como temática a figura da atriz-cantora Carmen Miranda, a proposta é empreender uma reflexão sobre aspectos de sua indumentária e o uso de sua imagem como representação do Brasil nos anos deste período. Para isso, centra sua atenção em alguns trechos do filme Entre a Loira e a Morena, utilizando-se, portanto, do cinema e suas representações como objeto de análise. Almeja-se construir uma narrativa didático-pedagógica que auxilie o aluno a refletir sobre as relações sociais e políticas e como estas se dão em um sentido que passa também pela criação de uma identidade cultural. Objetiva-se, por meio de tais recursos, ampliar o leque de possibilidades na abordagem do ensino de História, com ênfase na discussão das imagens, pretendendo-se trabalhar os diversos símbolos presentes na indumentária de Carmen Miranda. Palavras-chave: História cultural. Ensino de História. Indumentária.
ABSTRACT This paper aims to discuss, within the History teach, from several aspects, a better understanding of the relations between Brazil and the policy of good neighborhood undertaken by the U.S.A. in the 1940`s. Chosen as the theme picture of actress-singer Carmen Miranda, the proposal is to undertake a reflection on aspects of their costume and the use of his image as a representation of Brazil in this period. To do this, focus your attention on some parts of the film “Between the Blonde and Brunette”, using therefore the cinema
1 Professora da Rede Estadual de Ensino na Escola Estadual Cecília Meireles na cidade de Santa Fé. Graduada em História pela UEM, Com Especialização em Didática e Metodologia do Ensino pela UNOPAR e Gestão Administrativa, Orientação e Supervisão pela Faculdade Palla Atenas. E-mail: [email protected] 2 Professora da Universidade Estadual de Maringá, mestre pela USP, doutoranda em História(UFPR), orientadora deste trabalho. Agradecimentos: À Profª Rosana Steinke pela segura orientação; à UEM pela capacitação; à SEED pela oportunidade da Formação Continuada; aos alunos da Escola Estadual Cecília Meireles.
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and its representations as the object of analysis. Aim to build a narrative-didactic teaching to assist the students to reflect about the social and political relations and how they get along in a direction that also includes the creation of a cultural identity. Our intention is, through such resources, expand the range of possibilities in addressing the History teach, with emphasis on discussion of the picture, intending to work the various symbols present on the costume of Carmen. KEY WORDS: CULTURAL HISTORY. TEACHING OF HISTORY. ATTIRE. INTRODUÇÃO Uma figura singular? Carmen Miranda como objeto de estudo no
ensino de História. A imagem colabora significativamente na construção e
difusão de símbolos e mitos na sociedade. A indumentária, como expressão
cultural de um determinado contexto social, também faz parte de produção
destes. Ao eleger como temática de abordagem a figura da atriz-cantora
Carmen Miranda e propor analisar o significado de sua indumentária e o uso de
sua imagem enquanto representação do Brasil, nos anos de 1930 em diante,
este projeto justifica-se por delinear, a partir de aspectos diversos, uma melhor
compreensão a respeito das relações estabelecidas entre tal período e a
política da boa vizinhança, empreendida pelos EUA.
Centrando a análise em alguns trechos do filme Entre a Loira e Morena,
utilizando-se, portanto, do cinema, como objeto de análise, este projeto procura
construir uma narrativa didático-pedagógica no ensino de História, mostrando
ao aluno que as relações sociais e políticas se dão em um sentido que passa
também pela criação da identidade cultural e que esta se encontra em meio a
uma pluralidade de sentidos. Busca-se, por meio de tais recursos, ampliar o
leque de possibilidades de abordagens no ensino de História.
A formação escolar é, para o professor, uma ação permeada pelo desejo
de construir novos caminhos, de ultrapassar o cotidiano e contribuir,
significativamente, para o estabelecimento de práticas que valorizem a
conquista do saber. Nesse sentido, Napolitano (2004) chama a atenção para o
uso do cinema em sala de aula, considerações essas levadas em conta nas
atividades pedagógicas realizadas neste projeto, por corroborarem com
3
algumas das expectativas que o projeto demanda e por auxiliarem nas
reflexões sobre a própria prática, propondo não apenas trabalhar o cinema - ou
um filme, no caso – como algo ilustrativo para complementar o conteúdo eleito
(NAPOLINATANO, 2004). Conforme Napolitano:
O cinema pode ser considerado uma “nova” linguagem centenária, pois apesar de haver completado cem anos em 1995 a escola o descobriu tardiamente. O que não significa que o cinema não foi pensado, desde os primórdios, como elemento educativo, sobretudo, em relação às massas trabalhadoras (NAPOLITANO, 2004, p. 11).
Embora se tenha conhecimento da existência de vídeos educativos, a
opção foi trabalhar com um recorte específico: um filme comercial, ou seja, um
vídeo que não foi produzido originalmente para se trabalhar em sala de aula,
mas que será objeto de análise no conteúdo de História. Como ressalta
Napolitano (2004), se referindo as obras comerciais em geral, a película
escolhida apresenta uma fruição estética que permite chamar a atenção para o
debate eleito. Para este autor,
Trabalhar com o cinema em sala de aula é ajudar a escola a reencontrar a cultura ao mesmo tempo cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo no qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores sociais mais amplos são sintetizados numa mesma obra de arte. Assim, dos mais comerciais e descomprometidos aos mais sofisticados e “difíceis”, os filmes têm sempre alguma possibilidade para o trabalho escolar (NAPOLITANO, 2004, p. 12).
A partir das sugestões do autor, perguntando qual o uso possível do
filme, se ele estava adequado para a faixa etária na qual seria trabalhado (8ª
série), como abordar o filme dentro da disciplina de História e em um trabalho
interdisciplinar, levando em consideração a cultura cinematográfica dos alunos
(NAPOLITANO, 2004, p. 12), foi possível sistematizar algumas das
possibilidades de uso do cinema na sala de aula.
Conforme Burke (1992), novas perspectivas para o trabalho
historiográfico apontam para uma pluralidade temporal, relacionando o
universal e o plural, o público e o privado. Certa flexibilidade do referencial
teórico dos historiadores, ao lado da ampliação da noção de documento e seu
uso na pesquisa histórica, proporcionam interessantes possibilidades de
análise de diferentes contextos sociais. Frente a tal diversidade, ganha terreno
os estudos na área da História Cultural, com a análise e utilização de
4
documentos antes pouco utilizados, ou nem considerados com tal. Essa
perspectiva vai ao encontro das Diretrizes Curriculares para o Ensino de
História:
A História, no ensino Fundamental e Médio, pode se beneficiar dessa corrente historiográfica, porque ela valoriza a diversificação de documentos, como imagens, canções, objetos arqueológicos, entre outros, na construção do conhecimento histórico. Tal diversidade permite relações interdisciplinares com outras áreas do conhecimento. (...) A abordagem local e os conceitos de representação, prática cultural, apropriação, circularidade cultural e polifonia possibilitam aos alunos e aos professores tratarem esses documentos sob problematizações mais complexas em relação à História tradicional. Deste modo, podem desenvolver uma consciência histórica que leve em conta as diversas práticas culturais dos sujeitos, sem abandono do rigor do conhecimento histórico (PARANÁ, 2008, p. 53).
Levando em consideração que o cinema é sempre ficção e que a figura
do professor é fundamental como mediador entre a obra e os alunos, é
importante preparar a turma antes da exibição de um filme, propondo
desdobramentos articulados a outras atividades e temas. Diante destas
considerações, propõe-se trabalhar com um filme específico, protagonizado por
Carmen Miranda, e discutir a questão da identidade brasileira, a partir de
alguns elementos dispostos na referida película.
Nesse sentido, a indumentária e a linguagem cinematográfica, como
fontes históricas, oportunizam um leque mais amplo de discussão sobre a
época retratada, pois tomados como documento com múltiplos significados,
mostram a possibilidade de uma articulação com o currículo e o conteúdo
discutido nas Diretrizes Curriculares para o Ensino de História para a 8ª série
(PARANÁ, 2008).
Além disso, a linguagem cinematográfica amplia a discussão e insere
figuras, objetos, situações, entre outros aspectos, que nem sempre estão
contempladas nos manuais didáticos, ao mostrar diferentes personagens e
representações e a possibilidade de fazer uma discussão a respeito de alguns
conceitos relacionados ao conteúdo da referida série com a qual foi proposto
trabalhar o filme nas aulas de História.
A primeira metade do século XX apresenta uma série de fatos históricos
(como a Primeira Guerra Mundial, a Crise Econômica de 1929, a Segunda
Guerra Mundial, o surgimento da Guerra Fria) e, de certa forma, mudanças
5
significativas no comportamento da sociedade ocidental. Tais mudanças
podem ser observadas em amplos aspectos, visíveis nas ciências, artes,
arquitetura e também no comportamento, como, por exemplo, na indumentária.
Sendo assim, segundo Braga (2004, p. 71), observa-se que a vestimenta,
principalmente, dos anos de 1930 em diante, traduz a busca pela
funcionalidade e liberdade de movimentos. Com o fim da Segunda Grande
Guerra, percebe-se um novo sistema de produção do vestuário, em escala
industrial, produzindo muitas peças, em diferentes cores, sob diferentes
tamanhos, empreendido principalmente pelos EUA.
Embora a moda, enquanto tendência estivesse delineando, ao longo do
tempo, desde o século XVI, para Souza (1987), só no século XX que ela
adquirirá contornos de uma indústria, aliada, por sua vez, aos meios de
comunicação. Da mesma forma como ela é difundida em larga escala, adquire
cada vez mais uma “linguagem simbólica” (SOUZA, 1987, p.125).
No Brasil, as décadas de 1930 e 1940 se configuram com a implantação
do Estado Novo, somada à política de Roosevelt em relação às nações latino-
americanas e o surgimento da chamada política da boa-vizinhança, com o
intuito de minimizar a influência européia na América Latina, buscando manter
a liderança estadunidense.
O projeto político em torno do conceito “nacional popular” na América Latina articulou-se intimamente com a constituição de um Estado forte e centralizador de cunho intervencionista. Para orquestrar a nova composição política que compunha o cenário nacional, o Estado valeu-se, no plano cultural, do próprio desenvolvimento de uma indústria cultural que também ganhava fôlego com a readequação, na América Latina, de um capitalismo periférico aos novos desígnios de um capitalismo internacional. A indústria cultural, mediante a articulação de uma rede de meios de comunicação de massa, que incluía sobretudo o radio e o cinema nos anos 1930 e 1940, teve papel imprescindível na organização de um repertório simbólico que dialogava com a idéia do nacional popular (BRAGANÇA, 2008, p. 153).
Outro aspecto a ser destacado é o fato de que, a partir dos anos 1920, o
cinema estadunidense se destaca como promotor de comportamento,
influenciando os costumes. Percebe-se que o uso do cinema procurou
legitimar ações políticas desenvolvidas tanto no Brasil como nos EUA,
considerando-o como uma arte de abrangência cultural, social e de grande
capacidade de penetração ideológica.
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Conforme aponta Moura (1988):
A presença mais visível de Tio Sam no Brasil decorreu de uma multiplicidade de fatores e circunstâncias e reproduziu-se desde então mediante uma complexa teia de conexões estabelecidas nos planos econômico, político-diplomático e cultural, tanto ao nível de relações interestatais como intersocietais (...) (MOURA, 1988, p.86).
Mauad (2002) aponta a relação que o cinema dos Estados Unidos
estabelece com a produção cinematográfica da América Latina. Para Mauad
(2002), esta foi desenvolvida com base em parâmetros como a censura do que
poderia ser concebido como próprio, portanto, diferente, da estandardização do
tratamento de temas e personagens, por meio do viés do típico.
Diante de tais aspectos, este estudo, a partir do projeto desenvolvido
no Programa de Desenvolvimento Educacional - SEED/PR, busca promover
reflexões sobre a construção do imaginário histórico, ao traçar a trajetória da
cantora e atriz brasileira Carmen Miranda, entre as décadas de 1930 e 1940,
período no qual a cultura de massas passa a ser significativa para a
construção da política nacionalista, almejando aproximá-lo do universo
simbólico das camadas menos favorecidas que formavam a sociedade
brasileira. Externamente, a política brasileira, nesse período, fundamentava-
se em questões econômicas relativas ao comércio exterior, onde havia uma
competição acirrada entre Alemanha e Estados Unidos.
1- Identidade nacional: entre cores, símbolos e gestos A figura de Carmen Miranda é transformada em símbolo da identidade
nacional e latino-americana por meio de seus filmes e espetáculos, tanto em
nosso país como fora dele, principalmente, por meio do cinema norte-
americano. Em tal contexto, são utilizados elementos que a associavam ao
Brasil, como a imagem da mulher brasileira que canta e dança samba,
retratando o tropicalismo nacional por meio das letras de suas músicas e do
seu gingado, de suas vestimentas e adornos. O papel da imagem e
divulgação de Carmen Miranda nas relações entre o Brasil e os EUA, como
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meio de promover uma aproximação da Política da Boa Vizinhança, também
está associado a um momento em que o cinema é eleito como um meio eficaz
para promover uma relação favorável aos interesses estadunidenses na
América Latina.
Portanto, ao recortar um período da história política e nacional do Brasil
e da Segunda Grande Guerra, o tema permite trabalhar com a imagem
(indumentária) como fonte histórica e possibilita uma interessante reflexão
sobre tais temas, no Ensino de História.
Conforme assinala Bragança (2008), em torno do projeto nacional
popular, o discurso sobre a mestiçagem como fenômeno histórico acabava por
homogeneizar as experiências latino-americanas no intuito de sintetizar um
viés apaziguador e integrador da discussão do nacional. Para Ortiz (1994), não
há uma identidade autêntica, mas sim uma pluralidade de identidades,
construída por diferentes grupos sociais em diferentes momentos históricos.
Por isso, a procura de uma única identidade brasileira que seja verdadeira em
sua essência é um falso problema, pois esta está intrinsecamente ligada a uma
re-interpretação do popular por grupos sociais diversos e também à formação
do Estado.
Segundo Mauad (2002), a aproximação entre as Américas é um tema
que vem de longa data e nele se envolvem questões relacionadas às
identidades e diferenças da multiplicidade de culturas integrantes do mosaico
americano. Ao trabalhar um tema que trata das expressões culturais e como
estas assumem uma significativa dimensão política, em determinados
contextos históricos, a autora pondera sobre como se constrói tal mosaico,
baseado na cultura mexicana, cubana e brasileira. Esta, enquanto
representação social é suporte de relações sociais, segundo o padrão
estadunidense, aprisionando o outro na caricatura de si mesmo (MAUAD,
2002).
Na implementação pedagógica, buscou-se compreender melhor tal
discussão por meio da leitura de diversos textos feitos pelo professor PDE,
elegendo alguns para serem lidos junto aos alunos; os mesmos fizeram
pesquisas na biblioteca da escola e também foi feita uma visita virtual ao
8
Museu Carmen Miranda3
Portanto, iniciamos a implementação do referido Projeto, na oitava série
“A”, com alunos de idade entre 13 e 14 anos, composta por diferentes níveis
socioeconômicos. Esse grupo de alunos, como tantos outros, trás consigo as
idéias pré-concebidas da história como algo distante que não lhes diz respeito,
não se sentem sujeitos ou partícipes da História, porém ao perceberem que o
projeto oportunizava estudar História, por meio da imagem de Carmen
Miranda, ou seja, da indumentária e seus acessórios, houve uma visível
curiosidade do grupo em questão em relação à temática.
. Além disso, foi feita a análise, em conjunto com o
professor, de trechos do filme citado, de fotografias de Carmen Miranda e sua
indumentária; foi ainda promovida uma série de debates, construção de
cartazes, elaboração de uma coreografia, produção de narrativas, junto aos
alunos, apontando a criação e exaltação de alguns símbolos nacionais e
latino-americanos, presentes no filme e, especificamente, na indumentária.
De acordo com Souza (1987), a moda pode ser considerada um
importante instrumento para a compreensão de determinados contextos
sociais. A autora ressalta como, no decorrer do século XIX, a vestimenta
passa por mudanças significativas, que são determinadas por uma série de
fatos políticos, econômicos e culturais, presentes na sociedade deste período,
ou seja, “(...) a vestimenta é uma linguagem simbólica, um estratagema de
que o homem sempre serviu para tornar inteligível uma série de idéias”
(SOUZA, 1987, p.125).
No processo de implementação, houve, inicialmente, a preocupação de
construir uma linha do tempo com os principais fatos históricos da primeira
metade do século XX. Os temas pesquisados pelos alunos foram socializados
em sala de aula, em forma de seminários, onde os mesmos puderam construir
conceitos elementares para fundamentar o estudo que faríamos. Por meio do
estudo e discussão da Unidade Didática: Carmen Miranda e a Política da Boa
Vizinhança (segunda tarefa do curso do PDE) houve uma interação significativa
dos alunos junto ao tema, promovendo a elaboração de questionamentos e
discussões, tomando ciência de fatos históricos envolvendo os temas, tais
3 Museu Carmen Miranda. Foi criado em 1956, com o objetivo de perpetuar a memória da cantora. Localiza-se no Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro.
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como: a biografia pessoal e profissional de Carmen Miranda, a discussão sobre
o papel do cinema na política e na construção de discursos identitários, a
análise da indumentária como documento histórico e a questão da identidade
fragmentada.
Priorizou-se a exibição do filme Entre a loira e a Morena, depois de
apresentada a sinopse do mesmo. Em seguida, foi aplicado um roteiro com
questões para os alunos preencherem e, na socialização de tais questões,
foram trocadas impressões e levantados alguns pontos significativos referentes
ao filme.
Ao longo do processo de aplicação pedagógica do projeto, procurou-se
trabalhar com os alunos o filme como documento histórico, conforme foi
ressaltado anteriormente neste artigo. Acredita-se que o cinema não é mera
“máquina de fabricar ideologias”, pois um filme da mesma forma que molda a
realidade é moldado por ela. Portanto, a película torna-se um documento
histórico e seu valor não está somente por aquilo que testemunha, mas
também, pela abordagem sócio-histórica que autoriza (FERRO, 1992).
2. Stop motion: analisando os detalhes
A partir da sistematização de algumas cenas do filme Entre a Loura e a
Morena (EUA, 1943), levando em consideração o gênero cinematográfico
(filmes musicais) e o momento político em que foi produzido, foram mapeados
elementos para a reflexão da construção do imaginário histórico, no qual
Carmen Miranda está inserida e seu papel como “embaixatriz” da política da
boa-vizinhança.
A indumentária de Carmen Miranda ressalta a exaltação de alguns
símbolos nacionais, ou latinos, presentes na roupa de baiana, nos seus
acessórios (o arranjo na cabeça, o top, os balangandãs, a saia rodada,
sandália de salto plataforma). Passa a idéia de uma “cultura” latina
homogênea, permeada de estereótipos e clichês, conforme será citado a
seguir.
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Imagem 1 e 2: Cartaz de lançamento de Entre a Loura e a Morena (The Gang's All Here), 1943, Twentieth Century Fox. Fonte: Museu Carmen Miranda.
Em Entre a loira e a morena (Entre a Loura e a Morena (The Gang's All
Here), 1943, Twentieth Century Fox. Banana is my business), logo no início,
ouve-se uma voz, cantando a música Aquarela do Brasil. Esta música,
segundo Mauad (2002), foi considerada o samba oficial do Estado novo, pois
valorizava a harmonia social e a prodigalidade da natureza. A seqüência de
cenas que constituem a abertura é caracterizada por um cenário com
Manhatan ao fundo e a chegada de um navio no porto de Nova York, sob a
denominação SS Brazil; o transatlântico descarrega produtos tropicais, como
açúcar, café e frutas tropicais. E é desse cenário que sai Carmen Miranda,
como a própria síntese da relação entre os continentes, envolta a café e
bananas. Ao fundo, a ilha de Manhatan marca visualmente o local do
desembarque (MAUAD, 2002). Os produtos, nesse momento, perderam a
denominação em português e são embarcados ainda em território brasileiro
com legendas em inglês, ou seja, produto para exportação, para ser
consumido pelos estadunidenses, made in Brazil. Logo em seguida, a
seqüência do filme mostra uma diversidade de frutas tropicais, embaladas e
penduradas em uma grande rede que, ao descer, formam o arranjo de frutas
do chapéu que compunha a vestimenta da atriz, repleta de balangandãs.
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Imagem 3: Cartaz do filme Entre a Loura e a Morena (The Gang's All Here), 1943, Twentieth Century Fox. Fonte: Museu Carmen Miranda.
O figurino que compõe o espetáculo está repleto de trajes multicores,
com uma variedade que elegia o amarelo, vermelho, azul, verde, entre outras.
Muitas vezes, essas cores se transformam em sinônimo de brasilidade. Em
contraposição, é perceptível que a vestimenta das atrizes e dançarinas norte-
americanas tem figurino elaborado de forma mais elegante e sóbria, levando
em conta os costumes morais da época, apresentando números musicais
românticos, atendendo aos anseios típicos da classe média americana do
período.
Imagem 4: Cena do filme Entre a Loura e a Morena (The Gang's All Here), 1943, Twentieth Century Fox. Fonte: Museu Carmen Miranda.
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Conforme apontam alguns autores (BRAGANÇA, 2008; MACEDO,
1999), o corpo da baiana é construído fragmentadamente. Tal fragmentação é
notada nas letras das canções, utilizando uma estratégia de bricolage ao
organizar os códigos que a identificam como, por exemplo, a indumentária. Os
traços que contornam o corpo preenchem o espaço indicado pelo discurso da
mestiçagem, que estabelece, na performance da baiana, as marcas da
fronteira que se apresenta entre o morro e a cidade, em um corpo branco que
revela a alma mestiça do povo brasileiro (BRAGANÇA, 2008, p. 154).
Ao analisar a personagem de Carmen Miranda e das cabaretas do
cinema mexicano, Bragança (2008) aponta-os como capital simbólico.
Sobre o corpo destas “representantes do nacional” eram depositadas as discussões em torno de um repertório que se identificava popular na sua interface com os processos de mediação articulados no interior de uma cultura de massa. Em uma apropriação histórica, tais corpos performáticos apresentam-se como textos em ato que apontam para o desvelamento dos processos políticos nacionais latino-americanos e suas relações com a política dos Estados Unidos para a América Latina em meados do século XX (BRAGANÇA, 2008, p. 153).
Carmen e a Banda da Lua, aos olhos do público norte-americano, eram
sinônimos de alegria, ousadia e sensualidade, transmitidas por meio de
performances. Carmen Miranda canta e dança e acaba por notadamente
envolver o público com um repertório recheado de letras que expressam
supostas características e anseios do povo brasileiro, bem como, uma evidente
sensualidade. É a América imaginada pela conjugação de interesses históricos,
isto é, a América Latina lida pela internacionalização dos meios culturais
(MAUAD, 2002).
Neste mesmo filme, em outra cena, a atriz-cantora e um grupo de
dançarinas brasileiras sobem ao palco, como “instrutoras de danças vindas
diretamente do Brasil”; estas interagem com a platéia, composta por senhores,
dentre eles banqueiros, industriais e outros segmentos da conservadora
sociedade norte-americana, que são conduzidos ao palco para aprenderem s
ritmos brasileiros. Esta mesma platéia, em algumas situações, clamava por
Carmen Miranda, se referindo a ela como cigana, selvagem brasileira, dinamite
brasileira (brazilian bombshell). Em outro momento, ocorre o comentário,
realizado por uma senhora deste mesmo grupo: “Já te conheço do jornal ou do
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diário policial?”.
Tais situações demonstram que a representação de Carmem Miranda
tinha seu lugar dentro de um contexto repleto de dualidades, entre o glamour e
o desprezo de alguns segmentos da sociedade da época, tanto nos EUA como
também no Brasil. Para a indústria hollywwodiana, Carmen é associada à
imagem da mulher brasileira que canta e dança samba, que retrata o
tropicalismo nacional por meio das letras de suas músicas e do seu gingado,
de suas vestimentas e adornos.
Imagem 5: Cena do filme Entre a Loura e a Morena (The Gang's All Here), 1943, Twentieth Century Fox. Fonte: Museu Carmen Miranda. Imagem 6: balangandãs. Fonte: Museu Carmen Miranda.
Outro exemplo pode ser lido nas letras de música, como em O que é que
a baiana tem?, na qual se exaltam os brincos e correntes de ouro, a bata
rendada, entre outros elementos da indumentária, como as sandálias
enfeitadas. É essa obra performatizada, compreendendo não apenas o texto,
mas também as sonoridades, os ritmos, os elementos visuais, que interpela a
platéia em uma figura alegorizada (BRAGANÇA, 2008). Tal fato foi motivo de
muita polêmica entre os brasileiros, pois nem todos eram receptivos à imagem
carnavalizada da artista. Talvez, muitos desejassem vê-la glamorosa como as
estrelas norte-americanas com as quais contracenava.
Paisagens luxuriantes, nas quais aparecem elementos de fácil
assimilação com os trópicos, como macacos, bananas, morangos, praias e
coqueiros são constantes no filme, em uma verdadeira profusão de elementos
visuais, criados para representar a América Latina. Neste cenário, entra em
cena uma carroça puxada por um boi, demonstrando certo “primitivismo”,
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resquícios do mundo ainda rural, carregada de bananas e com Carmen ao
centro. Na seqüência, mais um número musical, em meio a um cenário afro-
equatorial, coalhado de bananas gigantescas, morangos e beldades seminuas
do Pacífico Sul, ao som de Aquarela do Brasil. Observa-se, permanentemente,
a preocupação em associar todo este contexto a sensualidade.
Imagem 7: Cena do filme Entre a Loura e a Morena (The Gang's All Here), 1943, Twentieth Century Fox. Fonte: Museu Carmen Miranda. Imagem 8: tamancos plataforma de Carmen Miranda. Fonte: Museu Carmen Miranda.
Em outra cena deste filme, Carmen apresenta-se com uma saia azul,
uma blusa e o turbante listrado de vermelho e branco. Tal conjunto pode ser
associado a Bandeira dos EUA, principalmente pela disposição das cores.
Essa referência é repetida, quase ao final do filme, quando novamente a
brasileira surge de branco e vermelho, com um pequeno detalhe em azul,
repleta de jóias, com sapato plataforma, cantando e dançando o samba. Os
números musicais estrelados por ela exprimiam algo contagiante, repletos de
signos pretensamente tropicais.
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Imagens 9 e 10: Cena do filme Entre a Loura e a Morena (The Gang's All Here), 1943, Twentieth Century Fox. Fonte: Museu Carmen Miranda.
Conforme apontam alguns estudos, é inegável o papel de Carmen
Miranda na construção de um mito nacional (MAUAD, 2002). No entanto, na
construção de uma identidade nacional, com seus respectivos signos, incluindo
aí a sua indumentária, bem como, o modo de dançar e as letras de suas
músicas é assunto a ser considerado. Pode-se ponderar que, mais do que a
imagem da mulher brasileira, a atriz simbolizou uma mistura da mulher latina
(cubana, mexicana, brasileira), por meio destes mesmos signos. Também não
podemos desconsiderar a polêmica em torno de sua figura dentro da política do
referido período e da importância desta artista em tal contexto, pois, como é
sabido, já era conhecida em nosso país bem antes da política da boa-
vizinhança.
Foi necessário, juntamente, com os alunos desconstruir as imagens
(congelando algumas cenas) para que pudessem refletir sobre a sociedade que
as produziu, despertando no educando não só o olhar de curiosidade, mas
também de interesse pelas relações políticas, econômicas e sociais retratas na
película. Desta forma, utilizamos a imagem como fonte documental, ampliando
as possibilidades de uso de outros documentos, além dos escritos, na
construção do processo de aprendizagem da História, como institui as
Diretrizes Curriculares de História (2008), na qual diversas fontes devem ser
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contempladas para ampliação da visão histórica por parte de alunos e
professores.
Como parte das atividades do projeto, os alunos preparam, juntamente,
com a professora de Educação Física da Escola, uma coreografia envolvendo
um poupourri de Carmen Miranda, que foi apresentada na Festa Junina da
Escola, no Salão Paroquial, evento tradicional da comunidade escolar
santafeense. Acredita-se que, ao elaborar uma atividade lúdica, discutindo
pontualmente os signos que fundamentaram a elaboração e a execução da
coreografia e do figurino, se possibilita uma ampliação da percepção desses
mesmos elementos.
Considerações finais Ao trabalharmos com a figura de Carmen Miranda, foi possível
oportunizar aos alunos meios e informações para que os mesmos reflitam
sobre a trajetória da artista enquanto um possível instrumento da política da
Boa Vizinhança e igualmente como um elemento artístico de nossa cultura. Foi
a primeira artista a ser contratada por uma emissora de rádio no Brasil que
recebeu um cachê e foi neste momento que passou a receber uma série de
apelidos, dentre eles, um que ficou imortalizado: a pequena notável.
Apresentava-se com grande desenvoltura, tinha uma preocupação própria com
sua vestimenta e com a representação de sua imagem.
Tal representação, ao mesmo tempo em que forma uma certa imagem da América, conforma um imaginário sobre o ser e agir que americanos, construído com base nas diferenças sociais, políticas, econômicas, climáticas que se acentuam no processo de internacionalização da cultura ocidental (MAUAD, 2002: p. 1).
Como ressalta Mauad (2002), as imagens vão além da mera significação
cinematográfica. Dessa forma, levar adiante um projeto hegemônico naquela
ocasião exigia dos Estados Unidos dispor de corações e mentes de seus
vizinhos latinos. No mais, o gosto pelo cinema, já cultivado pelo brasileiro,
caminhava ao encontro de tal projeto estadunidense, uma vez que valores,
visões de mundo e comportamentos (leia-se o American Way of life) deram
àquele veículo a capacidade de exportar o modelo civilizatório norte-americano
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para a América Latina, se constituindo em uma ferramenta imprescindível da
Política de Boa Vizinhança.
Na produção dos painéis, observamos que vários alunos pesquisaram
fatos históricos e diferentes abordagens envolvendo todos os elementos
discutidos ao longo do projeto, frisando a questão da identidade nacional e a
visão homogeneizada representada pela política da boa vizinhança
empreendida pelos EUA.
Com esta análise, busca-se contemplar a integração do conteúdo de
História do Brasil e História Geral. Bittencourt (2005) ressalta a necessidade de
situarmos devidamente os problemas nacionais e ampliarmos o conhecimento
sobre a realidade brasileira. A partir da contextualização do tema, da leitura e
debate de textos informativos, da análise do filme Entre a Loira e a Morena, da
produção de painéis informativos e da elaboração de uma coreografia entre os
alunos, promoveu-se a construção de elementos que favoreceram o diálogo em
sala e, consequentemente, a construção de narrativas, as quais os alunos
demonstraram por meio de diversos argumentos a construção do
conhecimento histórico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Filmografia
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Sites:
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