79
Carolina Isabel Vieira UNIDAS PELO ESPÍRITO: NARRATIVAS SOBRE AS RELAÇÕES DE MULHERES DE UMA FAMÍLIA E SEU PRETO VELHO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para a obtenção de título de Bacharel em Antropologia da Universidade Federal de Santa Orientadora: Prof. Dra. Vânia Zicán Cardoso Florianópolis 2016

Carolina Isabel Vieira UNIDAS PELO ESPÍRITO: NARRATIVAS ...antropologia.paginas.ufsc.br/files/2017/03/TCC-Carolina-Isabel... · de Bacharel em Antropologia da Universidade Federal

Embed Size (px)

Citation preview

  • Carolina Isabel Vieira

    UNIDAS PELO ESPRITO: NARRATIVAS SOBRE AS RELAES DE MULHERES DE

    UMA FAMLIA E SEU PRETO VELHO

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado para a obteno de ttulo de Bacharel em Antropologia da Universidade Federal de Santa Orientadora: Prof. Dra. Vnia Zicn Cardoso

    Florianpolis

    2016

  • Carolina Isabel Vieira

    UNIDAS PELO ESPRITO: NARRATIVAS SOBRE AS RELAES DE MULHERES DE UMA FAMLIA E SEU PRETO

    VELHO

    Este trabalho de concluso de curso foi julgado adequado para obteno do Ttulo de Bacharel em Antropologia, e aprovado em sua forma final pela orientadora e presidente da banca, Professora Vnia Zcan Cardoso e pelos demais membros da banca, Professora Viviane Vedana e Mestra Djna Andrade Torres.

    Florianpolis, 15 de Dezembro de 2016.

    ________________________ Prof. Maria Eugenia Dominguez, Dra.

    Coordenadora do Curso

    Banca Examinadora:

    ________________________ Prof. Vnia Zicn Cardoso, Dra.

    Orientadora Universidade Federal de Santa Catarina

    ________________________ Prof. Viviane Vedana, Dra.

    Universidade Federal de Santa Catarina

    ________________________ Djna Andrade Torres, Ma.

    Universidade Federal de Santa Catarina

  • AGRADECIMENTOS

    - Agradeo primeiramente a todos os meus familiares, minha me Isabel, meu pai Sebastio e meu irmo Vincius, pelo apoio.

    - Prof. Vnia Zikn Cardoso, pela admirvel orientao e pacincia.

    - s grandes amigas Janana e Janara por terem aceitado participar dessa pesquisa e por terem compartilhado da vida delas comigo.

    - Ao Pai Giovani Martins pelas conversas que deram acrscimo a essa pesquisa.

    - Ao querido amigo Pai Benedito de Angola, pelas palavras sbias e participao nessa pesquisa.

    - Ao Prof. Scott Head e a Doutoranda Djna Torres que aceitaram participar da minha banca.

    - A todos os professores do curso de Antropologia Social que de alguma forma contriburam para minha formao.

    - A todos os colegas do curso de Antropologia Social.

    - Aos amigos Suzana, ao Joo e Rmulo, que acompanharam mais de perto minhas indagaes sobre a pesquisa.

    - Prof. Ilka, com suas palavras de apoio.

    Muito obrigada a todos, que de alguma forma contriburam para a realizao da pesquisa.

  • RESUMO

    Atravs de um olhar etnogrfico sobre as narrativas de mulheres, filhas de sangue de uma me de santo, o objetivo desse trabalho passa a ser no somente o contar das estrias das faanhas dessas mulheres na espiritualidade, ou suas semelhanas e diferenas, e suas estrias sobre herana espiritual, mas tambm a emergncia dos conflitos de continuidade dessa herana que o lao de santo. Dar continuidade ao lao de santo significa incorporar os espritos durante a vida inteira, passando por uma srie de obrigaes estabelecidas no universo religioso, obrigaes essas que nem sempre convergem com os objetivos das mdiuns. Busco encontrar como a presena de um esprito de um preto velho d sentido a esses laos entre essas geraes de mulheres conectando-as em outra dimenso, fazendo com que elas estabeleam com ele uma relao de interdependncia para que haja evoluo para o esprito e equilbrio para elas. A relao entre a agncia dessas mulheres e do esprito nem sempre harmoniosa, surgem negociaes conflituosas causando rupturas e estgios liminares, pondo em perigo os laos de santo, sendo impossvel de prever o resultado desses dramas sociais.

    Palavras-chave: Umbanda Almas e Angola. Narrativas. Estrias. Famlia de Santo. Famlia de Sangue. Agncia. Dramas Sociais. Liminaridades. Preto-velho.

  • ABSTRACT

    Through ethnographic eyes about the narratives from the blood daughters of a me de santo, this work aims to tells the stories of these womens spiritual deeds, their similarities and differences and their spiritual heritage history. It also focus on the emergence of conflicts brought about by their religious heritage. In order to continue the religious bonds, the spirits should be able to incorporate them throughout their lives. This also means going through a series of obligations established in the religious realm, sometimes not convergent with the mediums goals. This work seeks to analyze how the presence of a preto velho spirit gives meaning to these bonds throughout generations of women, connecting them to other dimensions and establishing an interdependency relationship with the spirit in order to evolve the spirit and balance their lives. The relationships between these women agency and the spirits arent always harmonious, resulting in conflicting negotiations that cause ruptures and liminal stages and put the religious bond in harm path. These social dramas results are impossible to predict.

    Keywords: Umbanda Almas e Angola. Narratives. Stories. Family of Santo. Blood Family. Agency. Social Drama. Liminality. Preto Velho.

  • SUMRIO

    Introduo...................................................................................................................13

    1. Em busca das estrias de V Ida....................................................................19

    2. As herdeiras e a herana...................................................................................35

    2.1 A Filha Janana.............................................................................................352.2 Relaes de sangue e de santo.................................................................40

    2.3 A presena do preto velho........................................................................44

    2.4 Sobre o preto velho.....................................................................................47

    2.5 A herana Pai Benedito de Angola........................................................50

    3. Ameaas ao lao de santo.................................................................................53

    3.1 A futura herdeira..........................................................................................53

    3.2 O protetor de Janara....................................................................................55

    3.3 Nem fora, nem dentro do santo...............................................................61

    Consideraes Finais..............................................................................................69

    REFERNCIAS.......................................................................................................73

    GLOSSRIO.............................................................................................................77

  • 13

    Introduo

    O primeiro terreiro de umbanda registrado oficialmente (1953) em Florianpolis foi da me de santo (1) Malvina Ayroso de Barros, fundado em 1947. Na dcada de 50, pouco depois, segundo seus praticantes, Almas e Angola foi criada no Rio de Janeiro por Luiz Dngelo e trazida para o nosso Estado por Guilhermina Barcelos, conhecida por V Ida.

    Conta Giovani Martins, autor de um livro muito popular entre os praticantes sobre Almas e Angola, ele mesmo pai de santo, que na dcada de 40, V Ida viajava muito para o Rio de Janeiro a pedido de suas entidades espirituais para buscar fundamentos e reestruturar seu terreiro, onde j realizava sesses com atendimento ao pblico seguindo os moldes da umbanda tradicional (MARTINS, 2006, p.25). Ela frequentou o terreiro no Rio de pai Luiz Dngelo onde pode encontrar tais fundamentos e mais tarde inaugurar junto com ele o primeiro terreiro de Almas e Angola catarinense, em 1951, quando j tinha se tornado uma me de santo.

    Por volta dos anos setenta, V Ida foi buscar fundamentos no candombl, e sua sada causou uma insegurana nos pais de santo de Santa Catarina, pois V Ida era para eles uma liderana, sua sada poderia significar o fim de Almas e Angola. Mas Pai Evaldo, um de seus filhos de santo (2), deu continuidade religio, instituindo novos eventos rituais como os reforos, de sete, quatorze, e vinte e um anos de feitura no santo (3). A experincia de V Ida no candombl fez com que ela aceitasse retornar para Almas e Angola a convite de Pai Evaldo, em 1986. Naquele momento introduziu os assentamentos dos Orixs (4), o jogo de bzios (5) e o sacrifcio de animais (6).

    Giovani Martins1 explica que a umbanda diferente da umbanda Almas e Angola. A principal diferena, segundo ele, que a umbanda possui uma pluralidade ritualstica muito maior do que Almas e Angola, portanto complexo falar da umbanda em si. Almas e Angola tida como um segmento da umbanda, cujas caractersticas buscam uma semelhana ritualstica com o candombl, como obrigaes internas denominadas feituras de orix ou camarinhas, que so atividades onde o

    1 Interpretao do livro dele; popular; discordncias; serve aos propsitos do TCC, que no busca uma discusso dessas prticas e das concepes cosmolgicas. Apresentao reconhecida mais centrada no cenrio onde o campo se desenvolve.

  • 14

    mdium tem sua cabea raspada e fica recluso no terreiro deitado numa esteira por sete dias e oferece sangue de animal aos Orixs (7). Na umbanda tradicional isso no faria parte de seus procedimentos rituais.

    Nas Almas e Angola, o universo mtico baseado na crena em um deus superior, Olorum ou Zambi, na crena nos Orixs e em entidades (8). A palavra Almas est relacionada aos espritos dos negros ancestrais africanos. E aos caboclos, que so os espritos ancestrais dos ndios que habitavam o Brasil, alm de outros espritos que compem as falanges (9) como a de Exu (10), pomba gira (11) e beijada (12). Almas est ligada s incorporaes das entidades espirituais nos mdiuns, trazendo da Aruanda (13), Informaes que auxiliam a parte doutrinria do ritual. J a palavra Angola, aqui empregada, faz referncia ao culto dos Orixs (MARTINS, 2006, p. 33).

    Na cosmoviso de Almas e Angola, os Orixs so divindades relacionadas s foras da natureza, cada qual com suas peculiaridades como dimenso da personalidade e do comportamento dos indivduos. Cada um dos adeptos governado por dois Orixs, sendo um principal e outro o segundo. Em Almas e Angola todos os orixs incorporam nos mdiuns, com exceo de Oxssi (14), o chefe da falange das outras entidades que servem aos Orixs. Esses outros seres espirituais, eguns, preto velhos, caboclos, pombas giras, e os prprios Orixs Exus, so seres que incorporam para dar consultas e evoluir espiritualmente.

    V Ida, em sua trajetria, passou pelas camarinhas na umbanda e no candombl, mas as entidades comearam a aparecer j no incio de sua vida, com apenas oito anos (TRAMONTE, 2001, p. 352) de idade, dando incio a um chamado que lhe rendeu uma vida inteira de trabalho com o santo. Os rituais das religies afro-brasileiras so constitudos por inmeras obrigaes, incorporaes com as entidades, hierarquias, segredos, negociao com os sujeitos espritos, oferendas aos Orixs. Tudo isso demanda uma transformao muito grande na vida dos mdiuns, e estes nem sempre se inserem nesse universo por vontade prpria, muitas vezes dizendo que nem sabem por que passam por tantas situaes difceis em sua vida. Embora no tenham conhecimento sobre o assunto, ou talvez sejam muito jovens, em certo momento, as divindades consideram-no preparado para comear a feitura.

    Essa breve introduo sobre Almas e Angola nos mostra que a trajetria de V Ida tem muita importncia no mbito dessa religio. No entanto, cheguei a sua histria de um modo mais pessoal, atravs de sua neta Janara que minha amiga h mais de dez anos. Eu buscava um campo para meu trabalho de TCC e frequentei muitos terreiros at receber a oferta de minha amiga: queres pesquisar sobre a V Ida?

  • 15

    Como meu interesse estava voltado para as religiosidades afro-brasileiras, fiquei satisfeita com a oferta e resolvi pesquisar inicialmente sobre sua vida. Na vida de V Ida e no meu campo, esto presentes as filhas Janete, Janana e Janara. Janete Barcelos foi adotada por V Ida e me biolgica de Janana. Esta ltima me biolgica de minha amiga Janara, e tambm a principal interlocutora deste trabalho. Foi com Janana incorporada ou no com seu preto velho, Pai Benedito de Angola, que mais conversei sobre essa pesquisa.

    Meu trabalho etnogrfico foi ento realizado para fins de pesquisa acadmica na rea de Antropologia. Adeptos das religies afro-brasileiras, como Almas e Angola tambm esto entre os possveis leitores interessados, assim como a prpria famlia de santo qual se refere esse trabalho. Trata-se de um campo em torno de um drama social, para tomar emprestado um conceito de Victor Turner (1987), em uma famlia de santo, que a famlia de uma conhecida me de santo da grande Florianpolis, chamada V Ida. Nessa pesquisa, me deparei com circunstncias inesperadas, pelas quais fiquei desestabilizada e foi preciso o desapego de minha ideia inicial de pesquisa. A ideia era construir uma biografia dessa me de santo, mas durante o campo encontrei outros elementos que passaram a compor um conjunto de estrias2 das quais emergem suas filhas biolgicas encarregadas de dar continuidade ao seu trabalho espiritual, tendo como base a feitura no santo e a incorporao de um preto velho chamado Pai Benedito de Angola.

    Realizei a pesquisa em conversas informais com Janana e Janara e consultas com o preto velho Pai Benedito. Posterior a isso, em Setembro de 2016, num encontro com o autor Giovani Martins, novos pequenos fragmentos a respeito de V Ida foram acrescentados, algumas perguntas que ficaram pendentes foram retomadas. Usei o whatsapp, que um comunicador instantneo que permite a troca de mensagens atravs do telefone celular, para conversar com Janara sobre o campo e retomar tais questes.

    Depois de transcrever as gravaes das falas, busquei atravs das minhas recordaes refletir sobre o sentido de estar diante das

    2 Adoto o vocbulo estria com o mesmo propsito de Vnia Cardoso, com o sentido de perceber a narrativa sempre como uma fico, considerando que no se trata de negar a verdade do que aqui narrado, mas considerar que toda narrao uma fabulao, uma produo, levando assim necessidade de observar os processos criativos da fala dos personagens, e enfatizando a importncia do modo como essas estrias so narradas (CARDOSO, 2007).

  • 16

    narradoras. Alm de gravar suas falas, anotei nos meus esboos o que elas, tanto Janara quanto Janana, me davam a ver, alm das estrias em si, mesmo que uma fosse calada e a ltima muito falante. Falar de V Ida provocava para elas um olhar nostlgico e brilhante, cujas lgrimas no se continham algumas vezes. Ela foi silncio tambm, uma pausa respeitosa, uma saudade bvia daquelas que s uma filha tem para com sua me que se foi. Ali havia orgulho de serem parte sua, de terem crescido no seu colo e de poderem compartilhar momentos em famlia. Os encontros no meu campo etnogrfico traziam, portanto mais do que um lugar onde as falas estavam presentes, eles passaram a ter uma sobreposio de significados.

    No primeiro captulo, um dos meus objetivos apresentar ao leitor algo do aspecto pblico de V Ida, sua popularidade, baseada em sua ligao com Almas e Angola. Essa estreita ligao se faz notar no s pelo seu alto grau hierrquico dentro dessa prtica religiosa, j que V Ida uma me de santo, mas tambm porque toda a sua vida que foi marcada pelo que ela dizia ser sua misso espiritual dentro dessa religio. Neste captulo, foco em narrativas acerca de suas relaes familiares, buscando conhecer V Ida desde os olhares de suas descendentes, como ela era narrada por essas diferentes vozes. Inclusive, utilizo a vasta obra de Cristina Tramonte sobre as religiosidades afro-brasileiras em Santa Catarina, Com a Bandeira de Oxal (2001), para dialogar com meus informantes e com as (os) leitores (as). A autora traz muitas narrativas da prpria V Ida, a quem resolvi chamar de v e no de me, em virtude de ser chamada assim por muitas pessoas do santo.

    Janana foi quem mais me narrou estrias. Nas suas narrativas, percebi que parte do conhecimento produzido a partir de suas memrias era na verdade parte de um processo criativo seu. Nesse processo criativo, nas inter-relaes que se estabeleciam ali, na minha aproximao com ela, nas consultas que ela fazia com o preto velho, nos goles de cachaa e cigarro que se davam a amplitude do campo.

    O que emerge dessas narrativas era a prpria narradora e seu modo de contar, sua vida, e o significado que ela dava s coisas a partir de sua interpretao de mundo. Mas no s Janana intrprete e protagonista dessas estrias, eu tambm. Ao escrever esse trabalho, coloco disposio dos leitores e leitoras novas possibilidades de fazer o mesmo.

    Dando continuidade ao primeiro captulo, no segundo captulo, Janana assume um protagonismo no campo que d um novo significado a pesquisa. O meu trabalho deixou de ser uma pesquisa sobre a histria

  • 17

    de uma me de santo (V Ida), e passou a ser uma pesquisa sobre a continuidade do lao de santo. A vida pessoal de Janana aparece no s nas presenas de v Ida, mas nas suas ausncias tambm. Descortina-se a questo de como suas filhas adotivas, ainda que no biolgicas, tornam-se de fato filhas de sangue, e como essa relao familiar se estende para uma relao no santo. Aparece tambm a figura do preto velho Pai Benedito de Angola, com suas narrativas em forma de consulta, que retiram parcialmente as mscaras dos sujeitos sociais, para tomar a noo de Goffman (2012) sobre a representao de si na vida cotidiana, qual retorno no captulo 3, fazendo vir tona os problemas que essa famlia estava enfrentando.

    Assim como no primeiro captulo, mantive fidelidade ao modo de narrar, como Janana ou Benedito pronunciavam as palavras, a fim de valorizar sua performance narrativa e, assim, levar em conta no apenas o contedo, mas o modo como esse contedo me era transmitido. As estrias nos permitem diversas interpretaes sobre aquilo que narrado, para isso, preciso pensar na narrativa como uma manifestao imaginria a partir da experincia de cada indivduo. Ao usar as narrativas, carregadas de mltiplos contedos, no busco dar alguma forma a uma estria real, o que busco no campo ir mais alm. Seja l o que for contado, abre-se um leque de possibilidades para as interpretaes e imaginaes, transformando as palavras fixadas dos textos em possibilidades imaginativas (CRAPANZANO, 2005).

    No terceiro captulo aparece a figura de Janara, narrada por Janana, filha desta e de Alceu, seu padrasto. Janara, ela mesma, me oferece poucas narrativas sobre si, e apresenta muitas ausncias no meu campo. Ela emerge, nas narrativas de sua famlia e do preto velho, como a herdeira da espiritualidade de V Ida, aquela que dar continuidade aos laos de santo, num futuro que s pode ser imaginado nesse momento.

    atravs dela que as expectativas de lao de santo so ameaadas. Depois de presenciar muitas consultas suas com Pai Benedito, ao mesmo tempo em que ela desistia do compromisso com o santo, surgiu a doena, a preocupao da me, a preocupao do preto velho e seu perigoso estado liminar, ameaador para si e para os espritos que precisam trabalhar a servio da mediunidade e da feitura com ela.

    Conquanto minha pesquisa tenha se originado por um interesse na biografia de v Ida, ela acabou se transformando pelo encontro com trs mulheres (V Ida, Janara e Janana) e um esprito (Pai Benedito) que de uma forma ou outra est ligado vida de todas elas. Se o lao de sangue

  • 18

    liga essa mulheres, Pai Benedito as conecta em outra dimenso, j que trabalhou com V Ida, agora trabalha com Janana, pretende trabalhar com Janara.

    Mais do que acompanhar as biografias dessas mulheres, minha ateno se voltou ento para as tenses que envolvem essa relao que se estende da relao de sangue para a relao de santo e como ambas so mutuamente atravessadas.

    Nas estrias narradas por elas aparecem muitas passagens conflituosas na vida familiar devido aos compromissos com o trabalho no santo, momentos em que o lao de sangue posto em segundo plano para que o trabalho religioso tenha prioridade. Nas narrativas apresentadas, so constantes os afastamentos de V Ida de seu meio familiar, desde a infncia, quando ela fugiu da casa dos seus pais, at depois de casada, quando ela adotou Janete e Janana e teve que abandon-las para buscar fundamento religioso. Dando sequncia a esses atravessamentos, Janana tambm vai morar em Paranagu-PR, onde permanece trabalhando no santo, mas deixando suas filhas aos cuidados de V Ida. Aquela que, a sua revelia, o preto velho diz ser a herdeira da espiritualidade, Janara, fica morando com V Ida, e depois, sozinha quando V Ida falece. Janara nega que faz parte desse lao de santo entre elas, mas o preto velho Pai Benedito de Angola se torna responsvel pela continuidade desse lao de santo atravs de sua expectativa de realizar esse trabalho com Janara.

    O que encontro no campo o desenrolar de um "drama social" (TURNER, 1987) em que essas mulheres e a entidade ocupam lugar central.

  • 19

    1. Em busca das estrias de V Ida

    Em 2014, na busca de um campo etnogrfico, reencontrei Janara, uma velha amiga que me disse que sua v, aquela a cujo enterro eu havia ido em 2005, era a famosa V Ida. Fiquei intrigada, pois no tinha associado aquela senhora fama que ela tinha. Eu tampouco tinha conhecimento sobre o universo religioso de Almas e Angola. Nos tempos em que a vi preparar um caf, ou varrer a casa, ela era apenas uma senhorinha bem idosa que tinha minha amiga como neta, e que sempre a autorizava a andar de bicicleta comigo pela Avenida da Ponte do Imaruim, Palhoa. Depois de frequentar a graduao em Antropologia, aquele enterro a que assisti anos atrs, se revelou uma despedida de uma famosa me de santo. Decidi pesquisar sobre sua vida pessoal, e desde ento encontrei nessa busca tambm a vida pessoal de suas filhas de sangue, que carregam a responsabilidade de continuar aquilo que V Ida vinha fazendo durante toda a sua vida.

    Na busca de conhecer a vida de V Ida, me deparei com sua filha Janana contando as estrias de seu legado, e assumindo uma presena no campo de quem carrega um tesouro que precisa ser entregue a prxima: a herana espiritual. Nessa trama, encontrei os abalos conflituosos de muitos anseios pessoais, meu e dela, que traaram novos percursos para se pensar uma pesquisa. Percebi que o campo tinha vida prpria, eu no ia encontrar o que fui buscar, e sim algo completamente diferente. Como j dizia Goldman,

    Os discursos e prticas nativos devem servir, fundamentalmente, para desestabilizar nosso pensamento (e, eventualmente, tambm nossos sentimentos). Desestabilizao que incide sobre nossas formas dominantes de pensar, permitindo, ao mesmo tempo, novas conexes com as foras minoritrias que pululam em ns mesmos. (GOLDMAN, 2008, p.7).

    As religiosidades afro-brasileiras sempre me chamaram ateno pelas relaes com a presena de espritos. O fato de ter conhecido pessoas que fizeram histria dentro dela, me fizeram querer compreender essas vidas que lidam com questes sobrenaturais. Gilberto Velho (1987) diz que o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas no necessariamente conhecido e o que no vemos e encontramos pode ser extico, mas, at certo ponto conhecido. No entanto, estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismos como fontes de conhecimento e desconhecimento, respectivamente. Entre essa

  • 20

    familiaridade e exotismo, de amiga, consulente antroploga, suponho que eu no pesquisaria um campo fora do meu interesse pessoal, um campo que no me afetasse, contudo, tambm no falaria de algo naturalizado dentro de minhas prprias experincias.

    Ou, em palavras de Favret-Saada (1990, apud GOLDMAN, 2008), o que caracterizaria o antroplogo essa formao para ser afetado por outras experincias. Por isso que vamos a campo munidos de teorias e voltamos retroalimentando-as, transformando-as: Agitar, fazer pulsar as teorias reconhecidas por meio de dados novos, essa a tradio da antropologia (PEIRANO apud URIARTE, 2012, p. 2).

    Foi necessria tambm uma distncia mnima que me garantisse condies de objetividade, essa objetividade relativa do rigor cientfico no estudo da sociedade, como diria Gilberto Velho (1987, p. 129). Uma objetividade mais ou menos ideolgica e sempre interpretativa. Portanto, uma objetividade relativa que me permitiu observar o familiar e estud-lo, ciente da impossibilidade de resultados imparciais, neutros.

    No meu campo, as filhas de sangue e de santo de V Ida me narraram vrias estrias sobre a existncia da V Ida a partir de suas prprias vidas. Elas trouxeram narrativas de um cotidiano, e tambm falaram da fama que V Ida tinha no meio religioso. Nesse narrar de estrias, emergiam suas qualidades de narradoras, experincias e emoes, e o ato narrativo descortinou suas prprias subjetividades, a maneira como eles compreendiam o mundo.

    Utilizei fontes bibliogrficas para auxiliar minha anlise antropolgica do que tambm vivi empiricamente, pois fui consulente, e sou amiga de todos os sujeitos envolvidos no trabalho. Portanto, minha subjetividade est presente em todo o trabalho (VELHO, 1987, p.130). No deixo de ter feito tambm, a "observao participante", como diria Malinowski (1984), enquanto consulente e confidente nos momentos de desabafo dos sujeitos do campo. Trata-se de um estudo de caso, ou seja, um estudo sobre as filhas de sangue de uma me de santo, as quais conheci mais profundamente num mbito ntimo de suas vidas e sobre as quais falei atravs de minha experincia no campo. Busquei identificar os mecanismos que sustentam e do continuidade a determinadas relaes e situaes.

    A busca comeou na casa de Janara, em Palhoa-SC (2013), quando sua me Janana chegou de Paranagu-PR para ficar alguns dias. Janara aproveitou a ocasio e me fez o convite para ir at l. Fazia muitos anos que eu no via Janana e o seu marido Alceu. Nosso reencontro foi bastante agradvel e me rendeu muitos outros encontros nesse mesmo ano e local, que passou a compor todo o meu campo

  • 21

    etnogrfico. Ali gravei as nossas conversas, recebi consultas com Pai Benedito, tomamos cafs e presenciamos muitas outras consultas de outras pessoas (amigos e parentes de Janara) que vinham falar com o preto velho.

    Ao saber da minha pesquisa, Janana prontamente confirmou que me ajudaria. Numa noite de Sbado, sentamos mesa para iniciarmos nossa conversa de um modo bastante informal, tomando caf e compartilhando outros assuntos aleatrios. Atravs das conversas que tive com ela, obtive fragmentos da infncia da vida de V Ida. Janana contou das coisas que V Ida contava a ela e foi delineando sua narrativa, deixando transparecer seu apreo pelo assunto de que mais gosta, que era tudo o que tangia o universo religioso assim como seu orgulho e admirao por V Ida. Quando conversei com Janana, ela introduziu a infncia de V Ida at o fim de sua vida, e relembrava como sua me lhe contava da sua vida.

    [...] ela tava na mesa, de repente ela olhava na porta e tinha uma mulher l dando gargalhada, era a pomba-gira dela. A ela via o seu Guaracy [uma entidade, o caboclo de V Ida]. A o pai dela, o dindinho Vicente Barcelos, dizia: vamo levar essa guria no padre pra exorcizar porque essa guria t com coisa ruim no corpo dela - A ela j no aguentava mais apanhar de tanto que tentavam levar ela pra ser exorcizada. A ela pegou e se casou com um homem l pra poder sair de casa. [...] E quando ela casou, ela fugiu do homem e veio pra Florianpolis, ela no ficou casada com ele. A foi onde ela conheceu o meu av e a ficaram, a ele cuidou dela. [...] Depois ela voltou pra l pra pedir desculpas pro pai dela, ele j tava com meu av tudo, e foi, tanto que ele vivia na nossa casa, cansei de dar papinha pra ele, que ele j era bem velhinho de barba branca e tudo. Os irmos dela, toda vida dentro de casa da Ida. Ela teve muitos irmos, todos j faleceram, ela teve o tio Joo, que era o mais velho, tia Francisca, o Jos, ela e o Luiz, mas o Luiz era s por parte de pai. A tia Francisca foi a primeira a falecer, com leucemia, o tio Joo de velhice, com quase 90 anos, o tio Z foi, se no me engano, enfarte, e ela um enfarte.

    Nessa narrativa, Janana conta que a famlia de V Ida no aceitava seu dom medinico, ento V Ida teve que fugir com o pretexto de casar. Depois de fugir de casa, ela fugiu do casamento e mais tarde conheceu seu marido, o av de Janana, a quem ele acompanhou at o

  • 22

    fim de sua vida. Anos depois da fuga, V Ida se reconciliou com seus familiares. Sua mediunidade voltada para as religies afro-brasileiras j se apresenta desde cedo, por isso ela era surrada, levada ao exorcismo at decidir fugir. A prpria V Ida contou a Tramonte como foi a sua queda no santo:

    Minha mediunidade comeou com 8 anos. Meu cunhado foi servir o exrcito em Lages, l morreu e enterrou-se. A me dele chorava todos os dias. Um dia levantei, deu um treco na cabea, desmaiei. Era que tinha incorporado em mim, dizendo que se ela quisesse ver ele, estava enterrado na sepultura nmero tal. Foi a primeira incorporao que deu na vida. Minha mediunidade maior foi vidncia, vias as coisas pra um, pra outro Quando eu via coisas boas, tudo bem, mas quando via coisas ruins era terrvel. Uma vez foi na casa de Dona Didi, no Estreito, me deu um treco. Quando acordei estava em casa. Eu tinha momentos de lucidez, s vezes eu voava olha, foi um pandemnio.

    Nessa poca D Malvina tinha vindo do norte! Um dia fui na casa dela. Ela estava esticando o cabelo com lcool e fogo quando deu comigo na porta saltou lcool, pente e fogo, e nisso baixou um tal de Guaracy que hoje sei que foi ele, louvado seja Deus, e disse: Filha, te conheo desde o ventre da tua me, tens essa misso, no podes fugir, vais ter que desenvolver. Eu digo: No acredito, no gosto destas coisas. Mas tem de ser! E s no espiritismo que tu vais voltar a ter juzo bom.

    A comecei com a Malvina peguei a entidade caboclo Guaracy e trabalhei 5 anos com ele. Depois comecei a receber Iemanj, Xang fui me desenvolvendo fui terminar no Rio. (TRAMONTE, 2001, p. 352-353)

    Nesse fragmento narrado pela prpria V Ida, ela conta que acabou sendo iniciada pela me de santo Malvina, outra famosa me da Umbanda em Florianpolis. V Ida conta que no era de sua escolha, como ela diz, foi um pandemnio, ou, No acredito, no gosto destas coisas. Na vida de V Ida, a tenso entre as divindades e ela estiveram presentes por muito tempo. V Ida acrescenta que nada foi fcil no incio:

  • 23

    Foi um sacrifcio tremendo minha mediunidade. Nem eu, nem meu marido aceitvamos [] A fiquei obsedada e as pessoas me levavam, mas eu no acreditava. Eu tinha pavor, sabe? E quando acontecia e me levavam no centro eu achava aquilo uma babaquice tremenda, saa apavorada! Fui daqui pro Rio pra fazerem um trabalho pra eu perder a vidncia. (TRAMONTE, 2001, p.358)

    A oposio familiar, os preconceitos, o medo, so obstculos muitas vezes enfrentados pelos futuros filhos de santo. Vrios pais e mes de santo de Santa Catarina contam situaes similares na obra de Tramonte. No caso de V Ida, lhe coube a auto aceitao para que sentisse que nesse universo mtico ela poderia encontrar a auto realizao, mas no incio tinha pavor, achava tudo uma babaquice, fazendo at um trabalho para perder a vidncia. Mais tarde ela foi atrs de fundamento religioso no Rio de Janeiro, onde aprendeu Almas e Angola, e posteriormente participou de outras prticas como candombl, Nag Ijex (16) e Keto (17).

    L no Rio me desenvolvi, fiz o santo tudo na casa do Luiz Dngelo, de Almas e Angola. Foi onde conheci esse ritual e trouxe pra Santa Catarina Depois fiz candombl, a nao de Porto Alegre, Nag Ijex. Fiz Toryefan (18), Candombl, por ltimo fiz o Keto, faz 40 anos, me senti realizada. Passei por isso tudo porque nada me satisfazia. Eu sentia necessidade de coisas que no conhecia, mas que tinha que ter esses conhecimentos. A prpria espiritualidade me dizia que no era aquilo que eu tinha que fazer, faltava algo, no sei explicar (TRAMONTE, 2001, p. 377)

    Toda sua trajetria foi pautada pelas interferncias das divindades, inclusive seus prprios interesses estavam arraigados a elas. Inmeras formas as suas buscas por fundamento, das mais variadas prticas religiosas. Estas tambm eram as buscas de suas prprias entidades. Suas conquistas lhe fizeram ser reconhecida como uma iniciadora no s de Almas e Angola em Santa Catarina, mas de muitas camarinhas, e uma me de santo que iniciou muitos filhos. Dentre essas filhas, diante de mim estava Janana, que prosseguia com suas narrativas de como era o trabalho nos terreiros com V Ida:

    No terreiro da me os mais velhos da casa - um j era o Bab (19), outro j era o Pai Pequeno (20), outra j era um oborizado (21), n. Ento assim, aqueles que comeavam iam

  • 24

    pra um desenvolvimento espiritual, aqueles que j eram pais de santo, pais pequenos e at mesmo oborizado, que j tinham um pouco mais de firmeza na espiritualidade, n, que tambm no eram todos, eram os escolhidos, porque sempre tem um cabea fraca como diz o outro, pra ajudar no desenvolvimento daqueles mdiuns. Que eram muitos mdiuns entrando, ento tinha que se desenvolver a espiritualidade, e a espiritualidade sendo desenvolvida no mdium tem que ser lapidada, porque eles perdem o controle. Aonde tem, t sempre um pessoa do lado, vai devagar, vai assim, vai assado, no precisa fazer assim, o mdium t a pra trabalhar, vamo trabalhar, fazer bonito, fulano de tal no vacila, deixa o santo tomar conta que ele sabe o que ele vai fazer, porque s vezes a gente vacila [...] O prprio mdium vacila com medo de cair ou de t fazendo alguma coisa que no t vendo, isso e aquilo, entendeu? E a aonde, a a lapidao. O diamante pra ser aquela pedra valiosa preciso ser lapidada. A mesma coisa a espiritualidade, pra vir perfeita, formosa, com bastante vigor e saber o que vai fazer e o que vai falar e o que vai dizer, ela tem que ser bem lapidada. Quantos lugares que s vezes a gente bota o p, vem algum dizer que t com uma espiritualidade e te fala um monte de absurdos, coisas assim que [...] comigo j aconteceu isso. Agora um dia aconteceu isso, uma vez l em Paranagu. Eu tava na casa de uma ex-cunhada minha, a sobrinha dela me convidou, ah, ali embaixo tem um terreiro, vamos, l era umbanda pura, no cho mesmo, cho batido. Vamos l, eu vou l me benzer! e eu tinha, a gente tava meio assim, eu disse ah eu vou l contigo, tomar um passe pra ver se essa coisa ruim me solta assim que a gente [...] a espiritualidade da gente s vezes fica revoltada junto com a gente, ento a gente fica mais pesada ainda. A, cheguei l, era de cho batido o terreiro, tinha bancos em volta assim e os mdiuns em volta ali, ento a gente ficava, ns fazamos at parte da corrente (22), no tinha uma assistncia separada.

    Na cozinha, tomando caf, que Janana nos explica como funcionava o terreiro de V Ida, os aspectos da hierarquia to presentes, o ritual de iniciao obori, o prprio processo de feitura no cotidiano dos mdiuns. Ela fala sem pausas, com uma voz rouca, sempre acendendo um cigarro. Em seguida ela tece comparaes entre o terreiro de V Ida

  • 25

    com esses tantos terreiros onde se fala um monte de absurdos. Nesses outros lugares, Janana insere uma experincia pessoal sua, a espiritualidade da gente s vezes fica revoltada junto com agente. Assim ela vai se incluindo aos poucos sua prpria personalidade narrativa no ato de traduzir o saber para o contar (LANGDON, p.20, 1999).

    Alm de ouvir o contedo da narrativa de Janana, eu pude v-la falando, naquela posio, sentada, gesticulando com as mos, e isso passou a trazer uma profundidade maior nas estrias apresentadas. O modo como Janana narrava trazia uma peculiaridade sua: suas narrativas eram longas, didticas porque ela queria explicar algumas coisas do santo, s vezes confusas porque ela saa de um assunto para outro, sua voz era forte, rouca, interrompida apenas pela tosse do cigarro. Nas falas ela introduziu muitas pessoas que eu no conhecia e buscava dar nfase aos acontecimentos extraordinrios, trazia tambm algumas palavras do santo das quais eu desconhecia.

    Tudo o que exteriorizado vem de uma concepo de mundo, do compartilhar de certos signos, das interaes sociais em que a cultura emerge. Os sujeitos se expressam de forma criativa, como diria Langdon (1999), fazendo uso potico da linguagem e trazendo elementos paralingusticos, como tom, volume, onomatopeia, silncio, ritmo e timbre, que fornecem os efeitos dramticos da narrao. So esses elementos paralingusticos que deram tom ao modo como Janana apresentou essas estrias.

    Na explicao que ela nos d de como funcionava o terreiro de V Ida, aparece o carter potico no s no seu modo de narrar, com muitos gestos e expresses, mas no uso de metforas como o diamante pra ser aquela pedra valiosa preciso ser lapidada, a mesma coisa a espiritualidade. Outro aspecto que se repetia muito em suas narrativas, era o contar de estrias pessoais para explicar as situaes que ela queria me relatar. Janana ensinava por meio de suas vivncias, seus exemplos. Ela falava com espontaneidade, dando pouco espao para que perguntssemos algo, ela quem conduzia os assuntos. Nesse narrar contnuo, Janana passava de um assunto para outro. Para nos situar, Alceu fez uma pergunta. Em resposta, Janana explica e continua a narrativa solta.

    Alceu: Onde que ?

    Janana: Ali na So Joo, no bairro de So Joo, na Janete ali, no tinha aquela rua, na Janete descia [...] eu te mostrei ali uma vez, disse que eu tive no terreiro da Dona Terezinha.

  • 26

    E naquele dia tinha um cara da Bahia fazendo uma visita na casa, um baiano (23) mesmo, um baita de um nego, sabe, a botaram uma cadeira l pra ele, n era uma pessoa de grau de espiritualidade e tudo n, a ele pegou e botou um malandro (24) e me chamou, o malandro dele me chamou. Ali o malandro tava fumando um charuto, ele pegou e disse assim pra mim: filha o que que tu t fazendo aqui? Eu assim: senhor, eu vim tomar uma passe, me descarregar. Ele assim: voc no precisa disso, voc tem uma Bab que zela muito pela sua espiritualidade e quando voc tiver alguma necessidade de descarrego v l naquela outra terra l, porque aquilo l, mesmo velho aquilo l ainda tem muita coisa ainda pra fazer l pela espiritualidade ele falou. Isso aqui, j que tu trabalha naquela terra, eu sou um esprito que j trabalhei com aquela Bab, fez assim na mo com o charuto, apagando o charuto [...] tu no tira da tua carteira, enrola num pacotinho, nalguma coisa, e no tira da tua carteira. Isso aqui vai ser a tua proteo e quando tu chegar l tu conta que falou comigo. O nome dele se no me engano era Nag. A quando eu fui em SC, vim pra c, a eu assim: me, a senhora j trabalhou alguma vez com um malandro com essa linha, que muito de umbanda n, a ela assim: j filha, j trabalhei muito na linha de malandro Nag. A eu contei pra ela, ela deu risada, disse: no fica correndo nada aqui porque pra ti no tem nada enquanto no achar um lugar certo, entendeu? Eu por exemplo, tenho um malandro aqui nessa casa que eu trabalho n, vem um malandro em mim que o mesmo baiano que no caso ele vem nas duas linhas, ele vem como malandro e como baiano que o Z do Coco, que o Z Pilintra, o irmo mais velho do Z Pilintra. Quando entrei nessa casa nem sabia que existia esse tal Z do Coco, simplesmente nem sabia que existia assentamento dele, a um dia eu assim pro dono da casa: Seu Z por que que esse tal de [...] me deixou na cabea que ele Z do Coco e ele s fica l naquele canto, no fundo l e ele no sai dali e fica assim em p pra l e pra c? Ele pegou e disse: Z do Coco meu irmo e aquele canto ali dele tem um assentamento dele ali, tem um fio dele ali. Eu no sabia de nada disso, ento tudo tem um vnculo n e coincidentemente essa senhora ela frequentou o terreiro da minha v aqui em SC, o tio dela era mdium da nossa casa,

  • 27

    tenho foto dele e tudo, o seu Nelo, tambm bem conhecido aqui em Florianpolis, morava no Abrao, que tio dessa me de santo onde eu to indo na casa dela, no Paran, em Paranagu, entendeu?

    Mais do que falar de V Ida, Janana explora a memria de suas prprias experincias com V Ida. E nesse contar era possvel investigar as narrativas como parte da cultura expressiva, como expresses vivas que envolvem drama, criatividade e potica (LANGDON, 1999, p.20). Nessa narrativa, Janana conta sobre uma consulta que teve com um malandro em Paranagu, no tempo em que foi morar com Alceu, quando no estava mais trabalhando na casa de V Ida, nessa consulta ela procura um passe e descarrego. O malandro fala que ela no precisava: voc tem uma Bab (V Ida) que zela muito pela sua espiritualidade e quando voc tiver alguma necessidade de descarrego v l naquela outra terra l. Aps isso ele conta que j trabalhou com V Ida. No intuito de falar sobre V Ida, Janana recorre sempre s suas prprias experincias que possam remeter a algum dado sobre V Ida. V Ida existe, portanto em relao s suas experincias.

    Janana detalha suas estrias, fez assim na mo com o charuto, apagando o charuto [], fazendo gestos que imitam o malandro, tal como um ato artstico que precisa ser pesquisado atravs de sua produo nas atividades da fala (BASSO apud LANGDON, 1990, p.20). Essa demonstrao de Janana, o envolvimento de seu corpo e de sua voz no ato de narrar emergem em sua performance. Por meio dessa forma de expresso, colocando experincias pessoais em relevo, os valores da cultura so organizados de forma a fazer sentido (TURNER apud HARTMAN, 2011, p.204). Seu modo de falar evoca uma perspectiva de mundo intricada naquilo que ela experimenta.

    Depois ela relata como foi contar esse episdio prpria V Ida, dizendo que ela riu e confirmou a veracidade das palavras do malandro - por conseguinte, de sua prpria experincia.

    Janana aproveita a oportunidade para falar do seu prprio malandro, que o mesmo baiano que no caso ele vem nas duas linhas, ele vem como malandro e como baiano que o Z do Coco, que o Z Pilintra. Mais uma vez, ela oferecia explicaes das complexidades que envolvem os fenmenos que acontecem no santo, como um baiano que tambm um malandro. Nesse modo de narrar bastante explicativo reside sua preocupao em me passar tambm os conhecimentos que ela mesma obteve de V Ida.

  • 28

    A me Ida, quando o v faleceu, que ela teve muita, [...] por isso que eu digo pra ti, porque quando tu t na espiritualidade, pelo que eu aprendi com ela, a espiritualidade, tem certas horas que ela manda tu ir buscar mais conhecimento, entendeu? Exemplo, na umbanda, ela tava na umbanda pura, umbanda pura o que? No tem assentamento, no tem, [...] a umbanda pura. Tu trabalha com preto velho, caboclo e a esquerda (25) n, e os orixs, s, certo? A tu vais, a pedir pra ele crescer na espiritualidade, ela foi fazer Alma e Angola. Ento Almas e Angola tinha assentamento nos quatro cantos do terreiro (26), no meio do terreiro que era o dono da casa, no conga (27) que Oxal (28), as coisas que, os segredos da casa, bem mais complexo. A l fora tem a canjira (29), tem a dos exus, tem a das almas. A depois ela foi pra Porto Alegre, a ela fez batuque em Porto Alegre []

    No pretendo discutir sobre essa pureza da umbanda, apenas apresento que V Ida transitou por essas diferentes prticas porque suas entidades a conduziram para isso diante de uma necessidade. Janana me explica a diferena entre Almas e Angola e a Umbanda, diz que na umbanda pura, se trabalha com preto velho, caboclo e a esquerda n, e os orixs. J em Almas e Angola, tem assentamento nos quatro cantos do terreiro, [...] os segredos da casa, bem mais complexo. Ao mesmo tempo em que nos fala no meramente da trajetria de V Ida, mas de seu prprio aprendizado. Janana busca muitas referncias para que seja compreendida por uma interlocutora que claramente pouco sabe sobre os segredos e sua complexidade.

    Batuque uma nao de Porto Alegre. A ela fez [santo] com a me Vilma, ela uma me de santo de Iemanj (30), a ela j cultuava um Bar (31), o tempo, entendeu? A no caso l de Porto Alegre era o Bar. Foi feito o Bar l na rua. um egum que fica cuidando de l, da rua, junto com as outras entidades l, as almas e os Exus. A foi fazer candombl, a fez keto e efan. Fez keto com a [,] efam fez com Luis Cirilo e fez com a Marli de Joinville o outro. S que o que que aconteceu, o Luis [...], eu era menina, um dia tava subindo a rua que tinha no lado da casa de Exu, vi um alguid (32) em cima da casa de Exu, no tempo, no sol, na chuva, era o ot (33) de Xang (34) pra deixar ela louca. Ela [V Ida] vivia mais adoentada do que qualquer coisa, pra ele [Lus] ficar

  • 29

    com o terreiro e ficar com os mdiuns da casa. A eu subi em cima da casinha l, e eu sempre dormia at com medo de cair porque aquilo l era telha dessas antigas, dessas francesas n no era forrado nem nada a canjira, a peguei, fui l, puxei e tirei ela, desfiz aquilo l a ela melhorou.

    Diferente de quando V Ida falava sobre a busca de prticas como keto e efan, para Tramonte, Janana conta o episdio das buscas desses fundamentos em relao ao estado de sade de V Ida, sem esclarecer muito bem que relao Lus, que havia ensinado efan a V Ida, tinha com a doena dela. Novamente, ao contar a trajetria de V Ida, Janana relata nos episdios narrados no s os detalhes de como estava a V Ida, mas sim, o que ela mesma pde fazer para salv-la. Janaina se torna ento protagonista no que at ento parecia ser a histria de V Ida. Ao descobrir o feitio, Janana destruiu-o trazendo de volta a sade a V Ida. H um certo poder em Janana quando ela se coloca nas estrias, mas tambm no fato de que ela quem a narra e que enriquece tais estrias com sua subjetividade.

    Outros sujeitos compem toda essa jornada de vida da V Ida, dentre eles figuras pblicas que intensificam a prpria fama da me de santo. Da advm a importncia que Janana d a falar desses sujeitos conhecidos que procuraram por sua me, porque atravs deles, e de seu reconhecimento, a imagem de V Ida reverenciada e respeitada.

    A fama de V Ida era muito grande, porque alm de ter conseguido ajudar muitas pessoas, V Ida tambm foi muito procurada por figuras famosas no meio poltico e artstico. Polticos como os governadores Esperidio Amin e Jorge Bornhausen, famosos como Gilberto Gil, frequentaram seu terreiro, pessoas com dinheiro ofereceram muitos bens at mesmo em troca de servios espirituais considerados ilcitos, porm tais interesses no estavam de acordo com a concepo de moral de V Ida. Uma narrativa de Janana sobre uma das homenagens que V Ida recebeu de Gilberto Gil um bom exemplo desse tipo de estrias que enaltecem V Ida:

    Ele fez uma composio musical. Ele no queria botar Ida porque no iria encaixar, a ele achou que Ida vinha de Aparecida, as ltimas slabas, assim no caso da Ida n, da ele botou Aparecida. Pode procurar essa msica que existe, e o final dessa msica tem o nome Aparecida que seria em homenagem a Guilhermina Barcelos e infelizmente, at uns tempos atrs teve um, no Face tava l uma promoo no sei o qu, Gilberto Gil, me deu uma vontade, ah fale com

  • 30

    Gilberto Gil, no sei o qu, me deu uma vontade de abrir e tentar dar uma conversada, passar alguma coisa pra ver se ele [...] pra ver se eu tinha algum retorno, mas eu sou uma pessoa assim que eu no [...]. Eu acho assim, sabe, eu sou muito retrada, que tem gente que pensa de outra maneira, assim, ah quer se aproveitar do nome da me Ida. No quero me aproveitar nada, que se fosse pra eu me aproveitar eu tava fazendo como a falecida Shirley falava pra mim, minha filha, bota um terreiro pra ti porque tu no precisa ser feita por ningum, tu j nasceu com esse dom e com essa feitura pelos prprios santos, bota um terreiro pra ti porque tu vai ser uma segunda me Ida.

    A fama de V Ida se espalhou por muitos lugares. Recordo-me da homenagem que foi feita a ela do dia do seu enterro no cemitrio do Itacorubi-Florianpolis. Eu estava ao lado de Janara, vendo tudo de longe. Observvamos centenas de pessoas vestidas de branco, levando coroa de flores, velas e canes. Muitos filhos e filhas de santo, tantos que nem podamos contar. A homenagem de Gilberto Gil surgiu como agradecimento a seu feito de lhe libertar de uma priso em Santa Catarina na dcada de 70, acusado de portar canabis. Gil teria lhe prometido uma casa, e conforto para que ela fosse com ele viver no Nordeste do pas, mas ela recusara porque dizia que seu trabalho era na grande Florianpolis. Janana me disse que era comum a busca de polticos por orientao espiritual no terreiro de V Ida. Essas figuras pblicas foram importantes para a defesa dos terreiros, para o reconhecimento e resistncia intolerncia e preconceito.

    Ao narrar sobre a homenagem de Gilberto Gil, Janana se coloca como uma pessoa muito retrada, preocupada que os outros pudessem pensar que ela queria se aproveitar do nome de V Ida, ao mesmo tempo em que se afirma como uma pessoa que j nasceu com esse dom, ou uma segunda me Ida. Na sua narrativa, no Janana quem diz isso: uma segunda me Ida, esse outro que lhe atribui esse valor, a falecida Shirley. Janana reconta essas palavras, trazendo um novo sentido narrativo, uma autoafirmao dada por essa multivocalidade.

    Janana apresenta vrias semelhanas entre ela e V Ida, algumas vezes suas entidades se assemelham, outras, so as mesmas. Mas entre as duas tambm existem diferenas, suas trajetrias foram diferentes. V Ida fugiu da espiritualidade, mas foi forada a seguir. J Janana, no chegou a fugir, ela foi negligente em algumas pocas, mas tambm no chegou a se tornar uma me de santo. A intensidade dos papis que elas

  • 31

    desempenharam ganharam propores diferentes, devido as suas prprias escolhas e principalmente as escolhas das entidades delas. Portanto, Janana no uma me de santo, apesar de afirmar em suas narrativas que ela tem potencial para isso, mas nunca quis de fato assumir a mesma responsabilidade. Janana cumpre suas obrigaes no santo no terreiro Z Pilintra e Oxum da me de santo Nilda, localizado em Paranagu-PR.

    As narrativas de Janana trouxeram ainda experincias de outros sujeitos, como o baiano ou o malandro. Esses fragmentos que ela trouxe desses outros sujeitos estavam, contudo, dialogando com suas experincias, ainda que estas tivessem alguma relao com V Ida, ela estava sobretudo falando de sua prpria vida.

    A recordao de Janana sobre a V Ida tornou seu prprio protagonismo cada vez mais acentuado nesses eventos do qual narrava. Nos momentos em que estiveram juntas, suas estrias de vida evocaram sua prpria trajetria enquanto detentora de um conhecimento da religio transmitido pela V Ida, o uso da linguagem do santo tambm desloca sua narrativa para um dilogo com um lugar especfico que no pode ser compreendido por pessoas que desconhecem essas religies.

    Dentro dessa perspectiva da linguagem do santo, ela compartilha uma srie de cdigos carregados de significados culturais. Essa uma linguagem tecida pela prpria religiosidade, marcada pelo fenmeno da incorporao, pois no s os espritos so incorporados, mas os modelos culturais tambm, no sentido das prticas corporais e no sentido de que so expressos (exteriorizados) (HARTMAN, 2011, p. 208).

    Diante disso, ao falar das entidades de V Ida com prazer e eloquncia, Janana ganhava mais vivacidade quando se reconhecia em V Ida, pois ela traava similaridades entre as suas entidades e as entidades de V Ida.

    A pomba gira que minha v trabalhava, a gente chamava ela de S Rainha, que era a Rainha das Sete Encruzilhadas n. Por coincidncia, eu tambm trabalho com as Sete Encruzilhadas (35), mas eu ainda tenho que descobrir se ainda a mesma, certo? A me tinha medo dessas coisas de bicho n, ela s chegava na porta a r pulava na mo dela. A tinha duas pomba giras que trabalhavam na mo dela, era a Padilha das Sete Encruzilhadas, que era dela, e a Padilha da Encruzilhada, que era do Dico, o Osvaldo Gonalves, que desfilava de fantasia, que hoje em dia s [...], no sei se ele ainda t vivo porque no tive mais contato. O ltimo contato

  • 32

    que eu tive com ele foi quando a minha me verdadeira, a Janete, faleceu, em 2007. Soube que ele at tava adoentado, ento ele trabalhava com a Padilha da Encruzilhada e ela com as Sete Encruzilhadas e as duas trabalhavam juntas, a ficavam as duas com a r, s viam as patinhas assim . A pomba gira da me Ida, se tinha algum da assistncia querendo demandar, querendo soltar algum p, alguma coisa. Porque tu sabes, infelizmente tem esse tipo de coisas na espiritualidade, pessoas com esprito de porco que prepara as coisas pra jogar dentro no terreiro pra demandar, entendesse? A ela vinha, botava a plvora na palma da mo e soltava a plvora na palma da mo, nunca nenhum vermelho, nem nada. E olha que a mo dela era fina, fina, a pele da mo dela no era assim grossa igual a minha assim era fininha... e nada nada. O Pai Benedito na cabea dela tomava sete litros de cachaa, ele vem na minha cabea ele j bebe um monte, nela bebia mais ainda. Naquela vez que voc falou com o Benedito, ele foi embora. Depois, eu fiquei com algum resduo da cachaa? Ficamos aqui conversando, no fiquei com cheiro nem nada.

    Janana mostra vrios aspectos de vnculo entre as entidades que trabalham com ela e as entidades de V Ida. Essas relaes retomam o contar de suas prprias experincias para contar o que acontece tambm a V Ida. A hiptese de ser a mesma pomba gira, ou no, mostra que seus relatos se do tambm a partir de uma identificao reconhecida por ela. Essas experincias pessoais se tornam muito importantes para que Janana construa sua narrativa.

    Janana me explica que a plvora mostra que a entidade est no corpo do mdium. Quando a V Ida segura a plvora sinal de que a incorporao no falsa, a pomba gira quem est ali. O fato de que V Ida tinha medo de r, mas sua pomba-gira segurava a r na palma da mo, denota a preocupao da narradora em deixar claro que a incorporao real. Janana tambm traz nessa narrativa a presena de Pai Benedito. Na incorporao o preto velho bebe cachaa e fuma cigarro, mas depois que ele sobe, no deixa nenhum resqucio de fumaa ou lcool em seu corpo.

    A espiritualidade que V Ida e Janana carregam a fora motriz que rege e condiciona o olhar de Janana para com V Ida, um misto de admirao e sequncia de vida. O sentimento de carinho e familiaridade

  • 33

    se estende s entidades e toda a legio de espritos que esto ao alcance delas.

    Nessa narrativa, Janana cita pela primeira vez sua me biolgica, Janete Barcelos, que foi adotada por V Ida, e foi tambm feita no santo pela mo da V Ida. Depois que Janete teve Janana, ela a deixou aos cuidados de V Ida, que passou a cuidar da neta como se fosse sua prpria filha. Mais adiante falaremos desses laos familiares que se estenderam para laos de santo. Apenas para situar as (os) leitoras (as), adianto que todas as filhas de sangue de V Ida foram de fato adotadas, e criadas por ela numa relao de me e filha.

    O fato de no ter estado diante da falecida V Ida para escrever esse trabalho, e s colher suas narrativas em citaes na obra de Tramonte, no me trouxe a mesma oportunidade que tive com Janana. No pude presenciar sua performance narrativa, sentar a mesa com ela, fitar suas expresses. Tudo o que obtive foram fragmentos de vrias entrevistas realizadas para analisar aspectos histricos das religies afro-brasileiras em Santa Catarina por outros autores. Tomar conhecimento de uma narrativa escrita diferente de estar l, conversando com o narrador, presenciando o volume de sua voz, seus olhares, o peso de seus corpos e todas as suas peculiaridades. Contudo, as entrevistas na obra de Tramonte importantes dados para o que eu buscava inicialmente realizar nesse trabalho, conhecer a vida de V Ida.

    Perseguindo esse objetivo, atravs de seus laos de sangue, novas estrias se configuravam por meio da relao que V Ida tinha com suas descendentes e do modo como essas filhas concebiam sua existncia. Com essa perspectiva de perceber no s o que me diziam, mas tambm como me diziam, que as sujeitas ganham cor e forma. Foi assim que pude me debruar sobre os olhares delas, fui cmplice de coisas implcitas em suas falas, gestos e sensaes, at mesmo suas aspiraes, e sobre essas coisas implcitas que essa biografia adquire novos significados.

    A busca pela biografia de V Ida atravs da narrativa de Janana transformou meu campo. Ainda que a princpio, eu buscasse apenas o contedo de suas falas, seu carter narrativo no podia deixar de ser notado. Alm de contar a vida da V Ida pelo vis do convvio e das similaridades entre as duas, ela estava compartilhando a sua prpria vida. Quando ela dizia que era retrada, ou a segunda V Ida, quando ela se referia s semelhanas de suas entidades, quando ela contava sobre sua consulta com o Z do Coco, ou sobre quando salvou V Ida de um trabalho feito por seus rivais, Janana se torna personagem central em minha etnografia.

  • 34

    No decorrer do trabalho, mais adiante, surgem questes sobre o lao de continuidade na famlia de santo, e sobre a herana espiritual deixada pela V Ida para suas herdeiras. O protagonismo de Janana nas narrativas abre as portas para muitas estrias de sua vida e da vida de seus familiares, bem como para a presena do preto velho Pai Benedito de Angola nessa trama familiar.

  • 35

    2. As herdeiras e a herana

    2.1 A Filha Janana

    Alm de emergir no contar das estrias do captulo anterior, Janana passa a se tornar protagonista dos prprios contedos que narra, trazendo a sua prpria trajetria de vida. Enquanto ela narrava, tambm sentia a presena de espritos, e essa presena lhe atribua novas qualidades narrativas. O preto velho Pai Benedito de Angola vem falar conosco quando incorpora em Janana, ele vem para dar consultas e para nos contar sobre a perigosa inteno de Janara em abandonar a espiritualidade. Pai Benedito preocupado em dar sequncia aos laos de santo dessa famlia marcada por geraes de mulheres do santo entra numa conflituosa negociao com Janara.

    Quando Janana me contava sobre a vida de V Ida, eu tentava me aproximar dessa imagem que ela criava com suas narrativas, mas conseguia obter apenas uma imagem bastante fragmentada de V Ida, com diferentes passagens de espao e tempo, muitas vezes dando nfase s prprias experincias de Janana. Ela encontrava nas suas prprias memrias algo que fizesse sentido, algumas vezes como testemunha de ter estado l, outras vezes, ela me trazia contedos bastante emblemticos compartilhados pela memria do povo de santo, algo que no pertencia apenas a sua vida particular, mas que era comum a muitos que a conheceram. Essa e outras informaes foram passadas a mim de um modo bastante informal, sem que estivssemos num contexto de entrevista. Foi a partir de nosso convvio que emergiam mais detalhes sobre a vida familiar dessas mulheres.

    Quando se espectador de uma narrativa sobre a vida de um outro, faz-se necessrio uma interpretao de uma interpretao (MALUF, 1999, p. 77), pois, ao mesmo tempo em que Janana fazia sua prpria interpretao da vida de V Ida, caber antroploga e s demais leitoras e leitores uma nova interpretao daquilo que foi escrito. O que podemos experimentar sobre a trajetria de vida de V Ida atravs de uma traduo do saber para o contar que, no contar de Janana, como em toda narrativa h um desejo de demonstrar que as experincias da vida tem uma coerncia, integridade, plenitude e concluso: transmitem uma imagem da vida que e s pode ser imaginrio. (WHITE apud LANGDON, 1999, p.23).

    Nessas estrias emergem aspectos, dimenses, caractersticas de Janana que no esto evidentes, explicitadas no contedo das estrias. Nesse aspecto, do campo emergem os sons e silncios, a presena ou

  • 36

    ausncia dos sujeitos, os afetos, os compromissos, os olhares, as dvidas, os medos, as teimosias, as negligncias e tudo o mais que de alguma forma comunica. O olhar de Janana comunicava seriedade sobre o que estava falando, mais do que suas falas, sua postura me dizia que ela era uma conhecedora da espiritualidade, no por dizer tantas palavras do santo, mas pela propriedade que tinha ao dizer.

    Para o meu trabalho, no somente o contedo tinha importncia, mas tambm os elementos estticos presentes na narrativa de Janana. Fui afetada pelo modo como o conhecimento era transmitido (CARDOSO, 2008, p.191). Alm de sua postura e de sua entonao de voz, nas nossas conversas estavam presentes sensaes, arrepios, pela presena de espritos, da qual falarei mais adiante. Havia sempre algo acontecendo dentro daquele lugar que no pertencia somente ao contedo em si, mas ao momento presente que compartilhvamos. Era um evento visual e sonoro, com cheiro de cigarro e olhares, e modos diferentes de presena. Uma xcara de caf ou outra abriam espao para entrarmos numa conversa mais solta, que permitia Janana protagonizar o contedo das narrativas de um jeito peculiar, pela sua oralidade. Nesse ambiente, abriu-se um espao para um evento narrativo.

    Descortinava-se nesse contar de estrias a forma como esse contedo me era transmitido por Janana, uma mulher morena, de olhos castanhos, cabelos curtos e pintados de loiro, tinha idade entre 40 e 50 anos, falava alto, sempre gargalhando, tinha uma rouquido na voz e uma agilidade para dizer as coisas que lhe vinham a mente. nesse permear entre os eventos narrados (contedo) e eventos narrativos (maneiras de contar narrativas) de Janana (HARTMAN, 2011, p.101), que busco encontrar a vida social, como os atores criam significados atravs do processo da fala como agentes conscientes, interpretativos e subjetivos (LANGDON, 1999, p. 22).

    Pude constatar que a performance narrativa de Janana trouxe novos significados para a biografia de V Ida, se tornando ela mesma, uma experincia significativa nas estrias entre essas vrias geraes de mulheres no santo, e no s um contar distanciado. Havia um gesto de propriedade em Janana de se colocar como responsvel por tudo aquilo que me era dito, principalmente porque ela tambm era do santo, e tudo o que sabia fora ensinado por V Ida. Isso lhe conferia legitimidade - "ningum conviveu mais com ela do que eu". Alm disso, acredito que a experincia de vida dela lhe conferira essa autoridade para falar de V Ida. Era assim que Janana aos poucos falava de si e se representava nessa histria.

  • 37

    A vida inteira fui agarrada na saia dela, de bero. Todo lugar que ela ia eu estava presente. Eu era o, como ela me chamava, o squindim, sabe? Ento deusulivre ela sair sem eu estar junto, a no ser que eu tivesse doente, mas fora isso, direto. Eu desde quando nasci, sempre com minha guia (36) de Iemanj, de cristal, e com a minha roupinha branca n, dentro do terreiro, at no colo. Com sete anos de idade a Iemanj se manifestou na minha cabea e eu na corrente, ela ficou com pena por eu ser muito novinha. Era sada de camarinha de uma outra senhora que trabalhava na casa, que se eu no me engano era Dona Beta, que era sada dela, ela era filha de Xang com Iemanj, e a, quando foi Iemanj, coisa e botaram, ela foi l na me Ida, e tirou, ela era mdium de transporte tambm, puxou Iemanj que tava em mim pra ela. Eu me lembro como se fosse hoje, como se tivesse aqui vendo, a botaram a coroa dela e ela saiu rodando.

    [...]

    A no caso, quando eu completei quatorze anos, treze anos, a sim que comecei a incorporar Iemanj, a incorporar, [...] minha cabocla, sabe, eram as entidades que mais [...] a minha criana, meu er (37), n. Depois de anos a que comecei. Todo mundo saiu falando que eu fiquei transparente, que coisa mais linda, que eu fiquei gigante de uma hora pra outra, e depois um preto velho catimbeiro (38) que era o Pai Benedito, certo? E infelizmente nesse dia que aconteceu, a me Ida no estava no terreiro, ela estava um pouco adoentada e estava na casa dessa me de santo, estava l descansando. A, tudo bem, o Pai que foi passado pra ela e tudo, ela ficou super contente, e logo em seguida, foi em 2000 que foi a feitura da Miriam que foi a feitura que eu participei, que ajudei no que pude, fiquei l cuidando dela, da dona Ida que que precisava sempre de amparo pra caminh, pra muita coisa, e depois eu fui pra Paranagu. Junto com meu companheiro que de l, a depois voltamos, ficamos em Barreiros, depois eu tive um atrito com ela, porque no tem [...] Ela pra mim era minha me que ela que me criou, ento no tem em quem, um filho e uma me que no se tenha atrito, a eu me afastei, a foi quando eu fui, eu morava longe, a em 2003 eu voltei, de volta pra casa dela, fiquei l, a em 2004 ela, no caso 2005 ela veio a falecer.

  • 38

    [...]

    Eu sou filha de Xang com Iemanj, coincidentemente, como me Ida, s que ela era o contrrio, Iemanj com Xang. A o que acontece? Pai Benedito escravo de Xang. Me Ida ainda tava em terra, era viva, passou-se o tempo do desencarne dela e da espiritualidade totalmente se despregar da matria dela. O que acontece? Eu j ia trabalhar com ele, a foi onde ele veio com tudo, que a ele j tava preparado e eu tava preparada pra trabalharmos juntos.

    As histrias de V Ida me foram contadas no s a partir do convvio entre Janana e ela, mas tambm em suas ausncias. Nessas ausncias apareceram novos acontecimentos, como mostra a narrativa acima. Dentre eles, a primeira incorporao do preto velho Pai Benedito. H momentos em que Janana passa por rupturas, quando, por exemplo, ela diz depois eu tive um atrito com ela (V Ida), e fui morar em Curitiba. Fases assim interrompem o convvio momentaneamente para que, depois, as relaes sejam novamente retomadas. nessas oscilaes entre ausncias e presenas que Janana se torna uma sujeita continuamente produzida no narrar de si mesma em estrias sobre sua vida. Da passagem da presena de V Ida at sua ausncia, Janana faz conexes sobre a semelhana de seus Orixs, reforando a continuidade de seu trabalho com o preto velho de V Ida. Quando Janana nos conta as estrias, entramos num processo imaginativo sobre sua identidade, pois falar de V Ida como falar sobre o aprendizado que teve com ela e buscar tecer um reconhecimento que na verdade no ir identificar Janana, mas apenas evocar o que ela pode ser (CARDOSO, 2009, p.208).

    A ausncia de V Ida no foi marcada apenas pelo seu desencarne. Como foi falado anteriormente, houve perodos distintos de ruptura da relao familiar, perodos importantes para que Janana se aproximasse de outros laos familiares. Sobre essas ausncias de V Ida, Janana tinha muito a contar. Tudo o que ela sabia sobre V Ida era que ela havia buscado a feitura no candombl porque havia um chamado. Janana acendia o prximo cigarro e contava como viveu entre essas ausncias e presenas de V Ida, do "pedao difcil" que j havia enfrentado.

    [...] quando eu fiz 18 anos ela tinha vendido tudo e eu simplesmente fiquei sem eira e sem beira. Foi meu primeiro emprego que eu arrumei e quando eu cheguei em casa no

  • 39

    segundo dia do meu trabalho, nesse dia no fui nem pra escola, que eu saa do servio e ia pra escola. Nesse dia eu disse, ah no, vou pra casa, eu nem avisada fui, que ela tinha vendido tudo e tinha dois caminhes na frente de casa botando as coisas dela dentro, ela tava indo pra Rio do Sul, era de noite e tava chovendo. A ficou num canto l: esse guarda-roupas nesse canto teu, essa cama com esse colcho e essa geladeira velha a, as tuas roupas esto a dentro. Foi o que ficou comigo. E eu vou pra onde? Pra onde que eu ia? Fiquei assim [...] Assim, me, e da? Ah, tua tia no te quer l E eu a minha vida inteira junto com ela, desde quando eu nasci, desde quando eu tinha trs dias de vida, sabe? A eu peguei, entrei num desespero, a chegou uma tia [uma tia paterna]. Olha como o mundo d voltas, que eu quase nunca tive contato com meus familiares paternos. Chegou uma tia paterna minha que j faleceu e disse: filha, o meu marido vem aqui, pega tudo, vai l pra casa, o quarto da minha filha pequeno, mas vamos se amontoar l, na rua tu no vai ficar Da fui, a essa minha prima Luciana ficou com cimes porque a minha tia me tratava bem, que queria resgatar um carinho de sobrinha, coisa de muitos anos, e eu era uma pessoa que fazia tudo, por exemplo, se ia no mercado, todo dia trazia uma mistura uma verdura, alguma coisa pra ajudar na alimentao. A quando ia comprar uma roupa pra mim comprava sempre alguma coisinha pra minha prima pra agradar, uma blusa um calado. Minha prima um dia abriu meu guarda-roupas e jogou quiboa nas minhas roupas, eu no tinha mais roupa pra ir trabalhar, com cime por a minha tia me tratar daquele jeito. A fique no desespero, a foi onde eu fui morar com minha me verdadeira. Pela primeira vez na minha vida que eu fui morar com minha me verdadeira [Janete], ter contato assim, me e filha, com 18 anos pra 19 [].

    Janana foi entregando sua estria e aos poucos ia me inserindo no mbito de suas relaes e de tudo o que estava acontecendo na sua famlia, ela era acolhedora e estava feliz por ser escutada. Ao recorrer ao contedo de sua narrativa, observo que sua longa experincia de vida foi marcada por rupturas importantes na construo de sua prpria identidade. Os ciclos de abandono e reencontro com seus parentes tornaram-na uma mulher forte e independente muito cedo. A Janana de

  • 40

    hoje resultado dessas tantas experincias dramticas, mas que ao cont-las ela mostra a sabedoria que carrega na ultrapassagem a qualquer obstculo, como se rememorar sua estria lhe conferisse uma transformao radical, um incio de uma nova vida que no se deu apenas pela passagem de tempo, mas sim, por meio de um distanciamento interpretativo. (MALUF, 1999, p.92)

    2.2 Relaes de sangue e de santo

    Entre muitos goles de caf, petiscos, faxinas e organizao do quintal da casa de Janara, soube de alguns detalhes dessas relaes familiares: que a nica filha que carregou o sobrenome de V Ida Janete Barcelos, a me biolgica de Janana. Foi nessa informalidade tambm, vendo as fotografias de Janara penduradas na parede, que eu soube que assim como Janete, todos os outros filhos de V Ida foram filhos de criao, ela nunca gerou uma criana. Numa recente conversa que tivemos por whatsapp, Janana me disse,

    A me Ida, ela foi a minha parteira, ela me criou desde trs dias de vida, eu s sa dos cuidados dela aps 18 anos, que ela foi embora pra Rio do Sul. Depois que a Janara nasceu ela voltou e ns ficamos juntas novamente, e o que que acontece [...], ela com Seu Guaracy, que me trouxe ao mundo em casa, na Rua Manoel Roberto dos Santos- Saco dos Limes (Florianpolis-SC), sem nmero, que era onde era o terreiro. Ento essa minha histria com ela, ento ela me criou, pra mim ela sempre foi minha me, tanto que eu nunca consegui chamar a minha me [Janete] de me, sempre ela de Jane [...] e ela [V Ida], como minha me que me criou, que me deu toda a assistncia, era s me. As meninas [Janara e Janine] aprenderam a cham-la de mane, por respeito a ela ajudar a criar e tudo.

    Na fala de Janana, ela considera V Ida como sua me, aquela que lhe deu assistncia. V Ida torna-se, portanto, me de sangue de Janana. Janara e Janine tambm ficaram aos cuidados de V Ida por muito tempo, no perodo em que elas j estavam mais independentes e Janana foi viver com Alceu em Paranagu-PR. Janara j me disse que V Ida tambm era reconhecida por ela como me, a mulher que a criou. Chamavam-na de mane porque esse era um termo entre elas de considerao a essa maternidade que V Ida assumiu.

  • 41

    Essa uma estria de geraes de mulheres que esto ligadas a um esprito. V Ida, Janana e Janara so essas mulheres, e o esprito um preto velho chamado Pai Benedito de Angola. V Ida adotou Janete que me biolgica de Janana, e esta ltima me biolgica de Janara e Janine. Nem Janete, nem Janine tm a mesma ligao com Pai Benedito que V Ida, Janana e Janara possuem.

    V Ida criou Janete numa poca em que ela pouco pde se dedicar a maternidade devido aos inmeros trabalhos com o santo. Quando Janana nasceu, Janete deixou-a aos cuidados de V Ida, e V Ida ganhou a oportunidade de se dedicar mais maternidade atravs de sua relao com Janana. V Ida criou Janana como se fosse sua filha. Anos depois, aps o nascimento de Janara e sua irm mais nova, Janine, tanto Janana quanto V Ida assumiram a maternidade em relao Janara e Janine. Janara e sua irm reconhecem as duas como suas mes verdadeiras. Chamavam V Ida de mane porque esse era um termo entre elas de considerao a essa maternidade que V Ida assumiu.

    Antes de qualquer relao de santo estabelecida entre essas mulheres, h uma relao familiar, a qual as filhas adotivas passam a serem filhas biolgicas de V Ida pelo tipo de relao que se estabelece ali. Nessa famlia, Janete, Janana, Janara e Janine foram criadas, sustentadas, educadas, cuidadas e chamadas de filhas por V Ida. Segundo Previtalli, 2008, as regras de parentesco no santo so diferentes das regras de parentesco de sangue: as famlias de santo reorganizam o parentesco biolgico de tal forma que, [...], uma me (biolgica) pode se tornar irm de duas filhas (PREVITALLI, 2008, p.94). A relao familiar dessas mulheres se estendeu para a relao no santo, pois V Ida trazia consigo uma espiritualidade marcante, tornando-se me de santo de suas prprias filhas biolgicas Janete e Janana. Dessa forma, no santo, Janete e Janana so irms entre elas, e as duas so filhas de santo de V Ida. A autora Previtalli faz uma pesquisa com o candombl, e revela que existem variaes de famlia de santo para famlia de santo, um filho biolgico tambm no deve ser iniciado por seus pais biolgicos, embora neste caso no haja uma norma muito rgida (PREVITALLI, 2008, p. 88).

    Quanto a Janara, sua juventude lhe poupou de acompanhar parte do intenso trabalho de V Ida na poca em que havia tantas cobranas no santo. Por isso, Janara teve um convvio com o santo um pouco mais distanciado, assim como Janine. Quando Janara tinha 19 anos, V Ida faleceu sem que Janara fosse iniciada no santo. Entretanto, ela foi poupada por pouco tempo, pois entre ela e sua irm, o chamado foi acontecer justamente com Janara.

  • 42

    A herana espiritual enlaa essas mulheres, perpetuando atravs delas um compromisso religioso que atravessa seus caminhos. O esprito que amarra essas mulheres (V Ida, Janana e Janara) numa relao com o santo o preto velho Pai Benedito de Angola. Pai Benedito incorporou em V Ida como uma entidade coadjuvante, pois a principal entidade dela era o caboclo Guaracy, e agora Pai Benedito incorpora em Janana com maior importncia, sendo a principal entidade que trabalha com ela. Quando ele incorpora em Janana, Pai Benedito nos avisa que Janara vai herd-lo.

    por isso que Pai Benedito cobra a feitura de Janara no santo: os dois tm um trabalho para dar continuidade. A tenso existe porque ela quer outra vida diferente, sem obrigaes do santo, ela no quer o mesmo que suas mes. nesse aspecto que meu trabalho se estende daqui por diante. Busquei entender como essa extenso dos laos de sangue para os laos de santo se tornam conflituosas a partir da presena desse esprito que persegue essas geraes, as conecta em outra dimenso e d sentido a necessidade de perpetuao do trabalho espiritual.

    Janana me contou que o divrcio de seus pais causou o afastamento absoluto de seu pai porque ele no aceitava o fim do casamento, e por isso no quis mais saber de sua existncia. Novamente aparece o padro de muitas passagens de aproximao e ruptura com seus genitores, ela se aproximou deles quando estava afastada de V Ida, mas se afastou quando era tempo de novas fases. Nisso consiste um processo de individuao (HARTMAN, 2011, p. 253), de busca por independncia ao mesmo tempo em que era preciso achar o seu lugar.

    Assim, ela [Janete, me de Janana] tinha um companheiro, esse companheiro dela era uma pessoa assim no muito confivel, verdade, muitas besteiras falavam. Eu no falava nada porque no tinha pra onde ir, um dia eu cansei, teve um atrito, a eu fui morar no Estreito com uma sobrinha dela, com a Lurdes, a ela queria que eu voltasse, eu com pena dela voltei, a comeou novamente os atritos porque eu no aceitava que ele viesse me ditar coisas que, uma pessoa que eu mal conheci, uma pessoa que eu mal tinha qualquer vnculo de ligao, se eu j trabalhava, tinha o meu ordenado, ajudava, no tinha o porque eu [...] eu trabalhava e estudava, a como eu estudava no tinha como eu t s 23h em casa se eu saia as 22h da aula, eu dependia de nibus, a comeou querer me ditar ordens. A eu fui morar com um casal l na

  • 43

    costeira, pessoas desconhecidas, dona Glcias e Seu Flvio, que eram amigos at dele, nem da minha me era. Foi uma famlia que me tratava que nem filha mesmo e ele tinha duas filhas e um filho. Eles me tratavam como irm, por exemplo, dia das crianas, eu j era uma moa e eles tambm tudo mocinho, ele vinha l fazia um pacotinho com doce e dava pra gente. O que os filhos ganhavam eu ganhava. Eu quebrei o dedo do p quando fui votar pela primeira vez, e eu tive que botar tal no p at a canela, a encontrei minha me ela queria que eu voltasse, disse que o Ari tava arrependido, agora tu t sozinha a nesse mundo, a t, e eu tinha um namorado na poca e tal [].

    Janana teve passagens por vrias famlias, retomou o convvio que lhe foi poupado com sua genitora, conviveu com outros parentes, e mais tarde, teve Janara e mais dois filhos, Janine e Alan, este ltimo que mora em Ituporanga com seu pai. Anos depois se casou com Alceu. Nessa fase, ela teve mais uma ruptura temporria, dessa vez com V Ida, e foi morar em Paranagu-PR com seu marido enquanto suas filhas ficaram em Santa Catarina, aos cuidados de V Ida. Janara e Janine foram as que tiveram mais contato com V Ida, e acompanharam muitas das atividades do terreiro, inclusive s vezes ficavam presentes nas consultas de bzios que a V Ida fazia. Janara a filha mais velha, e a nica que recebeu o chamado para entrar no santo.

    Embora apaream aqui os exemplos de filha e neta de sangue (Janete, Janana) que foram feitas dentro de um mesmo terreiro, Janana tambm me falou de um de seus irmos, o Jaan, que estava intimamente ligado ao santo apesar de ter resistido por muitos anos a no participar do mesmo. Atualmente ele participava do terreiro de Pai Clvis, localizado em So Jos-SC. Fora este, a expectativa de que os laos de sangue dessem continuidade aos laos de santo acabaram ficando a encargo de Janara.

    Dentre tantas formas de herdar o trabalho com o santo que permite uma continuidade dessa ancestralidade (PREVITALLI, 2008, p. 87), selecionei uma. Puxei um fio condutor que tece esse vnculo do lao de santo entre V Ida, Janana e Janara. Esse fio condutor Pai Benedito de Angola, um preto velho bastante conhecido pelos filhos de santo de V Ida, bastante popular por ser um assduo contador de estrias, por defender o terreiro de ameaas externas, causadas pela trajetria histrica de inmeras tentativas policiais ou evanglicas que pretendiam fechar os terreiros.

  • 44

    2.3 A presena do preto velho

    Na calada da noite, estvamos eu, Janana e seu marido Alceu conversando na casa de Janara. Janana estava fumando seu cigarro, enquanto Alceu pegou umas azeitonas para nos servir, ele as vezes acompanhava nossas conversas e participava delas. A casa da Janara era no interior de Palhoa-SC, numa localidade rural, bem afastada da vizinhana. Constantemente se falava em sentir presenas ali, isso passou a ser encarado como parte do evento, na transmisso do contedo e na forma como esse contedo era transmitido; comum a Janana sentir uma certa interveno dos espritos quando ela dirige a palavra a algum:

    [...] Ento, a intuio que dada pela espiritualidade, as vezes eu falo coisas pra ele [Alceu] mesmo no tando incorporada, mas o santo que t aqui falando uma coisa no meu ouvido, dizendo [...].

    Por exemplo, eu to aqui conversando contigo, to passando algumas informaes pra ti, a amanh eu posso no me lembrar da metade do que eu falei contigo. De onde que vo sair essas palavras sensitivas que voc vai tirar proveito? Porque eu sou uma pessoa muito tmida nessa parte, at na espiritualidade eu sou tmida.

    Em outros momentos, a fala de Janana era interrompida por arrepios, dizia sentir uma forte presena de Pai Benedito, sentia calor e abria as janelas, embora l fora estivesse fazendo frio, retirava as meias porque Pai Benedito no gostava de ficar com os ps amarrados, e fumava sem cessar. Em alguns eventos narrativos, ocorre que as estrias contadas por ela - que diz ter uma falta de habilidade para falar por ser tmida - so potencializadas por aquilo que ela chama de intuies, no sentido de ter alguma influncia espiritual no desempenho dessas narrativas, nas sensaes fsicas tambm, e no fato de que ela no se lembrar mais do que disse. Ser que certas expresses para alm das verbais poderiam ter alguma relao com a presena do preto velho? H que se considerar que Janana dizia no estar incorporada, no entanto as entidades tambm esto presentes na vida social dos mdiuns para alm de sua incorporao.

  • 45

    Em seu artigo Transes e Transas (2005), Patrcia Birman faz uma crtica ao modo como era analisado o fenmeno da possesso, ela diz que os pesquisadores analisavam os cultos de possesso com a perspectiva de que a presena de entidades 'na Terra' 'real' para os religiosos e 'irreal' para os pesquisadores (p.411), em seguida, Birman aponta que vlido adotarmos uma perspectiva analtica que no desrealiza os efeitos e produtos da possesso para os seus praticantes mas que, ao contrrio, aceita a condio de agentes que os religiosos atribuem aos seus santos e entidades.

    Ainda que Birman no chegasse a assumir a realidade desses personagens irreais de modo claro ao longo do seu artigo, ela assinala a constante tenso presente em algumas etnografias a respeitos da conflituosa agncia entre mdiuns e entidades fazendo ecoar que vlido prosseguir mais a fundo com esse argumento de levar a srio, com eles e como eles, a agncia que possuem os entes sobrenaturais com os quais desenvolvem vnculos de importncia e de natureza variadas (idem, ibidem, 2005)

    Nesse campo etnogrfico, a agncia de Pai Benedito no poderia ser ignorada, mesmo quando ele no estava incorporado, tampouco sua condio de sujeito que extrapola quela concepo de que os espritos so apenas parte de uma pessoa a ser feita. Janana diz ser bastante tmida para falar em pblico, mas durante nossas conversas, ela mostrava bastante aptido como narradora, sua fala era contnua, , sua entonao de voz era entusiasmada. O mesmo acontece quando ela est incorporada pelo preto velho. Notamos nesse momento a emergncia de um sujeito que, se deixar, fica a noite inteira de prosa, diz Janana.

    Pai Benedito no apenas um personagem das estrias, ele um grande contador de estrias. As pessoas em geral, Janana, Alceu, Janara e outros membros da famlia, dizem que ele fala demais, e justamente por essa habilidade que to procurado pelos consulentes que sempre tm algo a mais para saber sobre suas vidas sabendo que Pai Benedito no vai lhes poupar palavras, pelo contrrio, ele tende a se estender. No cabe aqui desrealizar a influncia de Pai Benedito nas narrativas de Janana, nisso poderamos cair no erro do etnocentrismo. Cardoso sugere que apesar de serem reconhecidos enquanto sujeitos, os espritos no tem a mesma natureza dos outros sujeitos sociais:

    os espritos so no s objeto de estrias, mas so tambm sujeitos de estrias narradas por eles mesmos. Tal agenciamento enquanto sujeito narrador no lhes d, no entanto um estatuto, ou uma natureza igual quelas dos outros sujeitos

  • 46

    sociais. Tampouco so tais espritos simplesmente equivalentes a personagens ou sujeitos ficcionais de narrativas [...] H, portanto um papel importante na narrativa para a materializao do esprito enquanto sujeito. (CARDOSO, 2009, p. 200-201)

    No sendo sujeitos ficcionais, ainda assim, sendo sujeitos, para que eles contem suas estrias, deem consultas, conselhos, cantem, gesticulem, traguem cigarros ou bebam, necessrio que sejam materializados, e a incorporao torna isso possvel. Alm da incorporao, sua materializao tambm legitimada atravs de histrias que testemunham sua fora, bem como sua prpria constituio de sujeito narrador. Ao possurem os corpos dos mdiuns, a agncia dos espritos passam a agir por intermdio destes, fazendo-se necessria uma negociao entre ambos, e esta nem sempre ser harmoniosa.

    Existe um certo conflito entre o agenciamento dos espritos e do seu cavalo (39) na negociao dos papis sociais e suas relaes. A possesso tanto pode conferir poder ao mdium como pode tambm lhe restringir. Por sua vez, a entidade um componente da pessoa (GOLDMAN, 1985, p. 102), no caso, de Janana, fazendo parte de sua prpria identidade.

    Pensando nessa composio de Janana, no decorrer de nossa conversa h um fragmento que reala essa estreita ligao entre ela e o preto velho, mas tambm aponta que alm do trabalho que ela realiza com ele, h muitos outros trabalhos realizados com muitas outras entidades:

    Eu: e o pai Benedito sua principal entidade?

    Janana: no momento sim. Pra dar consulta, pra falar, pra [...] no momento sim, mas se tu quiser, tem o meu caboclo, meu caboclo Tupinamb, tem o meu Exu que Marab, tem minha pomba-gira que Sete Encruzilhada, Maria Padilha das Sete Encruzilhadas, trabalho com o malandro, com o baiano que o mesmo malandro, s que ele vem de formas diferentes. O baiano vem e dana que nem baiano mesmo, o malandro todo mundo diz Janana, como que pode? Quando o Alceu me ver com o malandro ele vai ficar assim , ai pelo amor de deus no bota mais esse malandro no eles dizem que parece uma macho, s se sabe que sou mulher por causa da saia, que eu no tiro a saia, tem mdium l que tira, Que o meu santo tem que saber que eu sou mulher e tem que ver como me visto.

  • 47

    Embora Pai Benedito assuma uma liderana no agenciamento da caridade de Janana, ela ainda atua com muitas outras entidades, o que imprescindvel na completude se sua pessoa (GOLDMAN, 1985, p.104), ao passo que, dentro de Almas e Angola, para se tornar uma pessoa completa, necessrio o processo de feitura, onde sero assentados ao longo da vida do mdium todos os Orixs e eguns, conferindo-lhe um equilbrio, ainda que este seja provisrio.

    Janana precisa de Pai Benedito para se constituir enquanto pessoa, ao mesmo tempo em que precisa deixar claro quem ela , e de algum modo, preservar sua identidade e autonomia. Em contrapartida, a possesso de Pai Benedito tem efeitos sobre Janana em termos de gnero, provocando um conflito com a norma social e suas possibilidades de transgresso (BIRMAN, 2005), eles dizem que parece uma macho, por outro lado, ela faz questo de usar a saia para deixar bem claro ao santo que eu sou mulher e (o santo) tem que ver como me visto. A tenso que existe na possesso reside na disputa pelo controle entre o mdium e a entidade. De um lado, o mdium est limitado ao controle do seu destino, e de outro, h a resistncia e as relaes sociais desses mediadores.

    2.4 Sobre o preto velho

    Cardoso (2012) descreve os preto velhos e as pretas velhas (adio minha) como

    personagens muito presentes no imaginrio brasileiro. Sua imagem popular atravessada por personagens ficcionais como Tia Anastcia, benevolente e maternal protetora das crianas do Stio do Picapau Amarelo, o clssico livro infantil de Monteiro Lobato, e por imagens de gesso de velhos negros de cabelos brancos, corpos curvados pelo tempo e os semblantes marcados pelo peso da sabedoria, que podemos comprar em qualquer loja de artigos religiosos. O conforto de suas palavras, a ajuda de seus banhos e rezas curativas, o baforar de seus cachimbos sempre presentes, so certamente poderosos chamativos para o grande nmero de pessoas que procuram por sua ajuda nas sesses de consulta e nas giras de pretos velhos. (CARDOSO, 2012, p. 33)

  • 48

    V Ida trabalhava com uma preta velha chamada V Iriquirita, mas as vezes Pai Benedito vinha na cabea dela porque era preciso - dizia-me Janana. Janana herdou Pai Benedito de V Ida, e normalmente atende as pessoas atravs dele.

    Pai Benedito me contava de forma fragmentada sobre sua vida na matria, que viveu na senzala, foi um escravo, sofreu muito, que era letrado, que a sinhazinha tinha ensinado muita coisa para ele, que ele era querido por ela, que havia uma grande amorosidade entre os dois, que ele era bem visto, um homem de boa aparncia, que no sofria as mesmas agresses que os outros escravos. Mas no havia uma fala contnua sobre sua trajetria quando conversvamos porque ele vinha matria apenas para dar consultas e assim exercer sua caridade.

    Cardoso (2012, p. 34) nos lembra que os pretos velhos so reticentes em contar algo que pudssemos chamar de suas histrias - ou de histria de vida, que suas falas so dirigidas para as consultas. No caso de Pai Benedito, suas falas tambm serviram para expor problemas que estavam prestes a acontecer, tanto individualmente quanto no coletivo, ainda que a exposio desses problemas se desse diante de outros consulentes. Era difcil coletar sua trajetria pessoal, pois, como assinala Cardoso,

    conhecer as estrias [dos pretos velhos] demanda retornos, implica participar na socialidade onde a performance do contar se desdobra e onde os papis de ouvinte e contador se permutam com o tempo. claro que, seguindo convenes textuais de uma certa Antropologia, podemos compor um