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Carta ao homem do sertão por rubens jardim

Carta ao homem do sertãostatic.recantodasletras.com.br/arquivos/507267.pdf · Alguém esquece que um sentir ... 1- Terra natal de ... última palavra pro-nunciada em seu inesquecível

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Carta aohomem do sertãopor rubens jardim

Ilmo. Sr.João Guimarães Rosa:

Eu não sou Cordisburgo1, nem Rio

Baldo. Também não sou Dia, Diá, Di, Dor, In.2

Não sou personagemnem personade nenhumadas tuas estórias.3

Ainda assim,35 anos depois,não consigo arredar pédesse lugar,dessas terras altas,desse fim de rumo.

O Grande Sertão é isto:veredas.4

Pastos que carecem de fechos. Região onde todos vivem seu cristo-jesus, sem topar com casa de moradore sem esquecer que são as horas que formam o longe.5

E olhe que reconheçotua letra. Não foi o senhorque escreveu Matraga6

e revelou Miguilim?7

Identifico tuas palavras.

Sei o que é uma fogueira acesade boa lenha.

Mas ninguém não sabe o que é o real absoluto,esse destino dado,inteiriço, feito Novallis8 surgindode dentro e de fora da língua.Da outra língua. Mas na linguagem.

E olhe: o senhor mexeucom as raízes

da minha línguada minha pátria

e de mim mesmo.

Não é por falar,mas já tive que parar de lermuita frase tua por motivoda emoção sempre nascente--e movente,turvando o focoe abastecendo os olhos

de beleza e lágrima.

Não sei quantas vezesisso aconteceu.

O certo é que continua a acontecer.

Existe alguma coisano teu jeito de escreverque captura e expressao movimento de tudo.

E a vida é movimento.

Desde a maezinha terraaos buritis imensos.Passando, é claro,por essa montanha de cinzasque cobre o idiomae oculta essa porta únicapara o infinito.9

E olhe: tudo quanto existeé aviso.10

Aliás, alguém esqueceno torrencial monólogo de Riobaldo11

que para ser feliz é precisosaber de tudo e formar alma, consciência?12

Alguém esquece que um sentir é o do sentente e outro é o do sentidor?13

Não é preciso espiar muitoo desdém do mundopara aprender que o penarfaz parte de tudo.14

Afinal, bicho também tem dore sofre sem saber porque.15

E o sertão é isto também:o senhor empurra para trás e de repente ele volta.16

Mas alguémque amar não

lembra

m esquece é verbo, é luz ada?17

Pois é. Poesia também éassim: não se atacom barbante.18 E sai mesmoé dos escuros buracos,dos recessos menos sondáveisdo homem e de uma grande estimação pelas palavras. Tudo certo e tudo incertonesse mundo dos duplos.19

Tirante o que vemdo Céu. E dos Infernos.

Saiba o senhor que na vertigem do redemoinho,e no mover da mentenão consegui separar o encobertoe o aparente, o domínio de Deuse do Diabo, o sancionado e o proibido. Nem encontreio rumozinho certo das coisas.20

Enfiei uma ou outra idéia,mas não fisguei a essência.

A vida também é muito isso:chamamento e repulsão.

Aprendizagem infinitaela embrulha tudo: capim lágrimado, beiras do Urucuia,21

Vila Itambé,22 gritos, sussurros, flores arrebatadas, Nanau,23

clarões instantâneos, invenções,E por que não dizer a fúria da infância? Ou a imagem do sofrimento e do prazer

que não se gravam em retratos?24

Como o senhor mesmo disse,infelicidade é questão de prefixo.25

Tudo é língua e linguagemnesse universo de pessoas. Até o caráter pode ser só caroços e cascas.26

Mas sob a pele das palavras um novo dizer pode surgir para acolher as coisas do mundo.

O tempo é de indigênciacomo alertaram Rilke27 e HeideggOu como disse Drummond,29 é temaus poemas, alucinações e esp Mas o senhor não disse nada dis Lembro: na escuta, na espera, no

--O sertão está e

er.28

mpo de fezes,era.so.

o silêncio.

em toda parte!

No solo original da Vila, no GrupoEscolar Godofredo Furtado, na João Mouna Cristiano Viana.30

Na Chavantes da vó SinhAna, no carroçãopuxado a boi, no espraiar-se do canavial e em outras esferas do indevassado.31

No destino ponteando opostos,no bezerro bem apartado da vacae na incompleta decifração de tudo

--O sertão está

--O sertão está

--O sertão está

ra,

o

em toda parte!

em toda parte!

em toda parte!

--O sertão está

Na varanda aberta de Solemar,na rede rasgada, nos papagaios de pape nos caramujos guardando os barulho

:

Nas vontades da minha pessoa,nos rastros que a primeira namorada pe até na vergonha que envermelhou me

Na palavra que desentoca o fato,no vaivém das experiências acumuladase na própria conturbação do ziguezague

--O sertão está

--O sertão está

em toda parte!

el os do mar.32

ôs em mim eu rosto.

se.

em toda parte!

em toda parte!

O sertão está em to

No domínio do ambno tentativa de este na face bivalente

O sertão está em to

Nos casos inteiradna sacralidade dase na interminável s

O sertão está em to

Na embaralhada orna épica dos vaqueque é remédio sim

O sertão está em to

oda parte!

bíguo e do poético,tancar o fluxo da realidade e das coisas.

oda parte!

dos que o real roda33

s águassequência das canções

oda parte!

ralidade sertaneja,eiros,e até na poesia contra a sufocação.34

oda parte!

Na tua posse na Acadena sempre-viva -dos-gee na tua pequena terra

--Cordisb

mia, erais sertaneja,

bugo

Burgocoraçmedarealidpelo s

o do teu ção já alhado pela dade e sozinho.

Cordisburgo,flor da lonjura, terra dos refúgios,estrela do antes, túmulo do depois 35

Cordisburgo,mar de territórios, mundão de léguas filtradas em dedos de prosa

Cordisburgo,passo tardo do boi sobre a planura,rumor dos rios não ressecados, Cordisburgo,vereda ficcional, noção mágica do universo

Cordis cadernetas

na preservaçãoCordis

subterrâneos leincontaCordis

palavra exata que ampli no cotidian

burgo, anotadas

o das palavrasburgo,

e nçóis da fala36

minadaburgo,a a circulação do afetoo do idioma

Cordis compromisso com a

Cordis pequenina terra serta

só quase lugar, mas tãCordis

o mundo éCordis

a gente morre é parCordis

as pessoas não morre

burgo,renovação da línguaburgo,neja, trás montanhas

ã o de repente bonito.37

burgo,é mágico 38

burgo,a provar que viveu39

burgo,m, ficam encantadas.40

1- Terra natal deGuimarães Rosa. Étambém a primeira eúltima palavra pro-nunciada em seuinesquecível discur-so de posse naAcademia Brasileirade Letras, em 16 denovembro de 1967.Eleito por unanimi-dade em 1963 (aprimeira candidaturaem 1957 naufragou)adiou sua posse

durante 4 anos. Tinha cisma com isso. E no dia daposse estava tenso, trêmulo. Segundo depoimentode Geraldo França Lima, amigo íntimo, ele chorava ehesitava em sair. “A Academia é muito para mim.Sou tão pequeno como a cidade em que nasci.”2 - No livro O mundo Movente de Guimarães Rosa,o prof. José Carlos Garbuglio fazendo referência aambiguidade que atravessa todo GrandeSertão:Veredas sugere algumas maneiras dedecomposição do nome de Diadorim, personagemambíguo da narrativa. Dentre elas as seguintes:dia+doron,ou através+dádiva,dom. Di(dois)+adorarou o duplo adorado. Ou ainda diá(através)+dor+inou por intermédio da dor, do sofrimento. Por outrolado, diá é também a primeira sílaba de diabo, ouainda dia(claro,dia)+dor+in (neste caso in é sufixoindeterminante do gênero e, portanto, índice danatureza indefinida de Diadorim.) Além disso,Diadorim é corruptela de Deodorina, feminino ediminutivo de Deodoro ou Teodoro, isto é,teós+doron, presente de Deus.3 - Expressão cunhada por Guimarães Rosa e já hámuito tempo dicionarizada.4 - Alusão ao título do livro Grande Sertão:Veredas, publicado por Guimarães Rosa em1956,(dez anos após sua estréia literária comSagarana) ano em que também são publicados osdois livros de Corpo de Baile. Para Paulo Rónai “sóadmitindo uma estratégia consciente podemos com-preender o lançamento em 1956 de não um, mas desete romances (que qualquer escritor teria lançadoem livros separados) nos dois volumes monumen-tais de Corpo de Baile”.5 - Textos extraídos de Grande Sertão:Veredas.6 - Referência ao conto A hora e a Vez de AugustoMatraga do livro Sagarana(1946) que já traz amatéria do sertão em linguagem original, baseadana oralidade sertaneja e com aproveitamento deregionalismos e arcaísmos, adaptando algumasvezes estrangeirismos e criando neologismos.Essemesmo conto foi aproveitado depois, com êxito pelocinema, em excelente filme de Roberto Santos.7 - Alusão ao protagonista da novela Campo Geral,o menino Miguilim que não se sabia míope, ganha óculos e de repente descobre as belezas do mundo.

“De tudo o que escrevi, gosto mais é da estória doMiguilim. Por quê? Porque ela é mais forte que oautor, sempre me emociona; eu choro, cada vez quea releio, mesmo para rever as provas tipográficas.Mas o porquê, mesmo, a gente não sabe, são mis-térios do mundo afetivo.” (Guimarães Rosa emdepoimento por escrito a um questionário feito porLenice, sua jovem prima estudante em Curvelo.)8 - Referência ao poeta romântico alemão Novalis(1722-1801) autor dessa frase lapidar:“a poesia é oúnico real absoluto. Quanto mais poético, maisverdadeiro”.9 - Texto extraído de entrevista de Guimarães Rosa. 10 - Texto extraído de GSV.11- Referência ao narrador-protagonista de GSV.Interessante observar que a narrativa tem início porum travessão que é signo da fala, e de uma fala quesó se encerra quase quinhentas páginas depois,sem divisão de capítulos. Segundo WalniceNogueira Galvão, esse monólogo ininterrupto fundaa opção por um discurso oral, que se expressamediante interjeições, cláusulas exclamativas einterrogativas e frases truncadas. 12,13 - Texto extraído de GSV.14 - Frase do meu avô Bento.15,16,17,18 - Textos extraídos de GSV19 - Alusão ao capítulo A línguagem do Duplo e oDuplo da linguagem do livro de José CarlosGarbuglio 20 - Texto extraído de GSV21 - Texto extraído de GSV22 - Vila ainda existente em Higienópolis onde eumorei na infância.23 - Nanau, apelido de meu primo Antonio Juvenalque caiu da janela e morreu em 1955.24,25,26 - Textos extraídos de GSV.27 - Referência ao poeta Rainer Maria Rilke, um dospoetas mais importantes e inovadores da literaturaalemã. Autor do célebre Cartas a um Jovem Poeta,dos Sonetos a Orfeu e Elegias de Duino.28 - Alusão ao fisólofo alemão Martin Heideggerque escreveu textos memoráveis sobre a poesia esobre os poetas.29 - Referência a Carlos Drummond de Andrade, umdos mais significativos poetas do mundo contem-porâneo. 30,31,32 - Alusão aos locais da topografia da minhainfância.33 - Texto extraído do GSV34 - Ainda acredito que a poesia é a antimercadoriapor excelência. Ninguém faz poema sob encomenda.Além disso, creio nos efeitos terapêuticos da poesia.E ela é remédio contra a sufocação, como bemdisse o Guimarães Rosa em rara entrevista.35 - Imagens extraídas do discurso de recepção deGuimarães Rosa feito por Afonso Arinosde Melo Franco.36 - Imagem extraída de um texto do poeta FabrícioCarpinejar para a revista Vida Simples.37,38,39,40 - Textos extraídos do discurso de possede Guimarães Rosa na ABL.