Carta aos leitores que vão nascer 1 · PDF fileCarta aos leitores que vão nascer 1 [Com um prólogo que a justifica e um epílogo que a faz dispensável] Jorge Larrosa O tempo é

  • Upload
    phamdan

  • View
    216

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • Carta aos leitores que vo nascer1

    [Com um prlogo que a justifica e um eplogo que a faz dispensvel]

    Jorge Larrosa

    O tempo um pensamento do homem. Antifonte

    Prlogo.

    1.-

    Um livro uma espcie de espao2 nico. E tambm um dispositivo temporal: uma

    mquina do tempo. Em um romance muito belo de Ray Bradbury, as crianas usam um dos

    homens mais velhos do lugar, um militar retirado, meio louco e quase moribundo,

    chamado Coronel Freeleigh, como uma peculiar mquina do tempo que lhes permite viajar

    ao passado como se estivessem a bordo de um trem expresso. Entram em seu quarto escuro

    e silencioso e dizem uma data ao velho, que desperta de seu sono leve, transporta-se no

    tempo e comea a falar. Quando o velho morre, Douglas anota em seu caderno:

    Ontem morreu Ching Ling Soo. Ontem a guerra civil terminou para sempre neste povoado.

    Ontem morreu aqui o senhor Lincoln e tambm o general Lee e o general Grant e outros

    cem mil que olhavam ao norte ou ao sul. E ontem tarde, na casa do Coronel Freeleigh,

    uma manada de bfalos to grande como toda Green Town, Illinois, caiu em um precipcio

    em direo ao nada. Ontem uma grande quantidade de poeira assentou-se para sempre. E

    nesse momento no me dei conta (...). O que vamos fazer sem os bfalos?3

    Os velhos so mquinas do tempo, especialmente os velhos loucos: os que confundem os

    tempos, os que j no sabem qual seu tempo nem em que tempo vivem, os que j no so

    capazes de dominar o tempo, os que esto fora do tempo. Os livros tambm so

    dispositivos temporais meio loucos: neles tambm se fundem e se confundem os tempos;

    neles tambm se sai do tempo ou se entra em outro tempo; neles tambm algo passa, ou se

    envia, atravs do tempo.

    2.-

    Meu propsito no que se segue desenvolver essa questo geral dos livros como artefatos

    temporais. Certamente, uma questo nada original. O mestre Borges dizia que o livro

    uma extenso da memria e da imaginao4. E nessa citao ecoa o Fedro de Plato,

    dilogo maravilhoso e infinito no qual o inventor das letras, o egpcio Theuth, apresenta-as

    e as defende perante o rei como drogas da memria. E a palavra droga, como se sabe,

    ambgua, significa tanto veneno quanto remdio, como se fosse uma palavra de dois

    gumes, como se apontasse um benefcio e, ao mesmo tempo, um risco, um perigo, como se

    Texto traduzido por Ana Isabel Pasztor Moretti, com copidesque de Mara Libertad Soligo Takemoto e Rosaura Soligo

    e reviso final de Tereza Barreiros. 1 O ttulo deste texto roubado. Usou-o meu amigo Wanderley Geraldi, fillogo e escritor brasileiro, em uma conferncia

    que apresentou no Congresso de Leitura do Brasil (COLE) que ocorreu em Campinas-SP em julho de 2005. Wanderley,

    por sua vez, o roubou de um poema de Brecht. 2 reconhecida a referncia a G. Perec, Espcies de espaos. Barcelona. Montesinos 1999. 3 R. Bradbury. O vinho do estio. Barcelona. Minotauro 2002. 4 quase impossvel falar de livros sem, em algum momento, citar Borges. Essa citao de Borges Oral. Barcelona.

    Bruguera 1980. P. 13.

  • 2

    levasse consigo uma insupervel incerteza. No alvorecer mesmo da escrita, quando

    escrever ainda era uma prtica rara e extraordinria, a pergunta sobre a relao entre a letra

    e o tempo j fica aberta em toda a sua radicalidade. E alguns de seus exegetas

    contemporneos, entre os quais vou citar Jacques Derrida e Emilio Lled5, no fazem

    seno explorar alguma de suas possibilidades e algum de seus paradoxos.

    Nesse contexto, o que farei aqui tentar articular essa questo geral de um modo

    especfico: o que gostaria de discutir que os livros so artefatos cuja existncia no tempo

    no se pode pensar historicamente, ao menos se entendemos por Histria esse ponto de

    vista linear, contnuo e progressivo em relao ao qual os seres humanos ainda tendem a

    ordenar os acontecimentos e tambm, claro, os livros e as obras de arte, nestes curiosos

    artefatos que chamamos Histria da Literatura, Histria da Filosofia, Histria da Arte,

    Histria da Cultura etc. Os livros so mquinas do tempo que no podem ser tratados nessa

    perspectiva que consiste em converter o tempo em Histria, nessa perspectiva

    historizadora ou historizante que os homens inventaram com a pretenso de dominar e de

    domesticar o tempo, com a pretenso de impor a ele uma direo, um argumento, uma

    lgica, uma trama, um sentido. Meu ponto de partida, ou minha declarao de princpios,

    que o tempo, como o ser, se diz, ou se d, de muitas maneiras, e que a Histria no o

    nico modo pelo qual se diz ou se d o tempo. A Histria, assim com maiscula, no

    seno o modo dominante do tempo na assim chamada modernidade, a secularizao deste

    outro modo de pensar o tempo que antigamente se chamava Providncia. E o que eu quero

    fazer aqui considerar os livros como dispositivos que transbordam e fazem estourar o

    modelo temporal da Histria, isto , pens-los como mquinas do tempo no histricas.

    Vou falar ento da relao entre os livros e o tempo a partir do final da Histria, do

    historicismo, da conscincia histrica, do modo histrico de organizar os textos e os

    acontecimentos. A questo seria que agora vivemos na poca da geografia, na poca do

    espao6. Porm, os espaos (tambm os livros e as obras de arte, os museus e as

    bibliotecas, as cidades, a natureza inclusive, os espaos de todas as espcies) esto no

    tempo, so dispositivos temporais, esto carregados de tempo. E, na medida em que todos

    esses espaos so espaos habitados pelos homens, espaos humanos e humanizados, o

    tempo que os habita tem a mesma constituio do tempo humano: tempo vivido ou,

    literalmente, durao, mescla de memria e esquecimento, de culpa e de nostalgia, de

    medo e de esperana. E essa durao no pode ser pensada parte da finitude humana,

    quer dizer, parte do fato de que os homens so seres que nascem e que morrem, parte

    do fato de que o tempo humano demarcado pela morte e pelo nascimento. Os livros esto

    cheios de um passado mortal, e esto tambm, de um modo que ser necessrio precisar,

    abertos a um porvir que tem a forma do nascimento.

    3.-

    Para isso, para mostrar o tempo do livro como um tempo no histrico, vou usar o artifcio

    retrico de uma carta enviada aos leitores por vir. Permitam-me, ento, continuar este

    prlogo com alguma considerao sobre as cartas. H um filsofo alemo, Peter Sloterdijk,

    que comea um de seus livros com estas palavras:

    Como disse uma vez o poeta Jean Paul, os livros so volumosas cartas para os amigos.

    Com essa frase estava chamando por seu nome, pura e quintessencialmente, ao que

    5 J. Derrida, A farmcia de Plato em A Diseminao. Caracas. Fundamentos 1975. E. Lled, O sulco do tempo.

    Meditaes sobre o mito platnico da escritura e a memria. Barcelona. Crtica 1992. 6 Ver, por exemplo, J. Benoist e F. Merlini, Historicit et spacialit. Le problme de lespace dans la pense

    contemporaine. Pars. Vrin 2001.

  • 3

    constitui a essncia e funo do humanismo: humanismo telecomunicao fundadora de

    amizades que se realiza no campo da linguagem escrita.

    E um pouco mais adiante:

    (...) claro que o remetente deste gnero de cartas amistosas lana ao mundo seus escritos

    sem conhecer os destinatrios (...); no deixa de ser consciente de que seu envio

    ultrapassa o alcance previsto e pode favorecer que surja um nmero indeterminado de

    relaes amigveis com leitores annimos e, muitas vezes, ainda por nascer (...). O texto

    escrito no s constitui uma ponte telecomunicativa entre amigos consolidados que no

    momento do envio vivem espacialmente distantes um do outro (...), como lana uma

    seduo ao longe (...), com a finalidade de tornar manifesto como tal esse desconhecido

    amigo e motiv-lo para que entre no crculo. De fato, o leitor que se expe aos efeitos da

    carta volumosa pode entender o livro como um convite e, se to somente se deixa abrigar ao calor da leitura, certo que se apresentar no crculo dos mencionados para ali dar f

    de que recebeu o que lhe foi enviado.7

    Depois desse incio em que a cultura literria humanista apresentada como uma espcie

    de sociedade letrada, fundada na amizade e difundida no tempo, no qual os emissores

    sabem da imprevisibilidade de seus receptores e, ainda assim, embarcam na tarefa de

    escrever cartas dirigidas a amigos no identificados, Sloterkijk arremete contra o fantasma

    comunitrio da sociedade literria, contra esse sonho da seita ou do clube dos amigos que

    trocam cartas e que, em seu projeto expansivo e universalizante, se projeta como uma

    norma para toda a sociedade.

    A poca triunfal do Humanismo , portanto, a poca dourada da Pedagogia, a poca em

    que os intrpretes autorizados, os guardies dos livros e das bibliotecas, os professores de

    leitura, no s se vangloriavam de um conhecimento privilegiado de quais eram as cartas

    fundadoras de amizade, de coletividade, mas se atribuam a misso de incorporar as novas

    geraes ao crculo dos intercmbios epistolares. Assim, a comunidade humana ideal se

    convertia em uma espcie de comunidade de escritores e de leitores, em uma espcie de

    sociedade literria, ao molde da qual se construram, e ainda se constroem, tanto os estados

    nacionais como, no limite, a prpria ideia de humanidade subjacente a isso que alguns

    ainda chamam Humanidades.

    4.-

    Esta carta aos leitores que vo nascer um disposit