Cartografia Na Educação Infantil

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    CARTOGRAFIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: QUEM JOGA?

     Regina Marcia Simão Santos

     Artigo publicado nos IX ANAIS da ABEM, 2000, p. 111-132.

    RESUMO: O texto considera a noção de cartografia, desenvolvida por Deleuze eGuattari, para encaminhar o debate sobre um modo de funcionamento do cotidianoescolar na Educação Infantil que supere o problema hoje identificado como“pedagogização do brincar” ou “escolarização precoce”. Reflete também sobre umapossível perda da capacidade de brincar, requerida como um traço do perfil doprofissional da Educação Infantil. Primeiramente situa alguns discursos sobre a infância, esobre a criança e seu jogo, brinquedo e brincadeira, e passa a fundamentar uma educaçãoinfantil a partir da concepção de mapa-cartografia, estabelecendo conexão com oscritérios de riqueza e rigor apontados por Doll, ao tratar do currículo numa perspectivapós-moderna, e com as características da brincadeira na infância e os jogos de intervençãopedagógica, apresentados por Brougère. Considera que o discurso sobre cartografia

    dinâmica pode aprofundar a discussão sobre um projeto de educação infantil queconsidere o jogo da experiência estética.

     Notas sobre os discursos produzidos sobre a infância

    Uma diversidade de representações sobre a infância se faz presente hoje, seja nos

    discursos elaborados nos diversos campos de investigação científica, seja nos discursos

    construídos pela mídia, ou nas formas como procedemos no cotidiano, através do discurso

    verbal, de gestos e outras ações e atitudes. Em todos esses casos há sempre um conceito

    de infância, e uma teoria que o embasa.

    Os discursos científicos produzidos sobre a infância, a par de explicá-la, acabam

    por modelar a infância e regular o nosso olhar sobre ela, e a nossa prática. É o caso do

    discurso da medicina, que, apropriado pela escola na década de vinte no Brasil, via

    Psicologia associada à Sociologia e à Estatística, elabora propostas preventivas e

    corretivas e cria tipologias que categorizam a vida escolar, a partir da teorização sobre as

    crianças-problema. (Nunes, 2.000) À época de Anísio Teixeira (década de 30), o

    Ministério da Educação e Saúde mantinha no Departamento Geral de Educação o Serviço

    de Higiene Mental, para tratar dos “maus hábitos da criança”(p. 588)1, e contava com o

    Serviço de Ortofrenia, para cuidar dos casos de crianças desajustadas e do estudo das

    características físicas e raciais do escolar. Noções de Higiene Mental vinham “prevenir,

    no pré-escolar, a eclosão de falhas de personalidade que poderiam determinar, no futuro,

    1 Outros detalhes são trazidos no estudo de Nunes, sobre os casos da criança “mimada”, da “enjeitada”, da“do palácio”, do “escolar proletário” etc (p. 362)

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    maus rendimentos ou defeitos mais graves na escola, ou até uma ruptura da função social

    na vida adulta” (p. 359)2.

    O discurso da sociologia da criança, que segundo investigações de Sarmento só se

    altera na década de 90, baseia-se numa teoria da socialização entendida como ato

    intencional de transmissão da cultura do mundo adulto para o mais jovem, e onde ascrianças são seres pré-sociais, incapazes de produzir idéias e valores (Sarmento, 2.000;

    Souza, 2.000). Na década de 90, este discurso passa a considerar que: (1) a infância é uma

    categoria social (ao invés de ser “passagem”, tempo de espera, "adulto em miniatura", a

    criança é um ser social capaz de interagir e produzir significado para suas ações); (2) a

    criança é um ator social (e não pré-social ou a-social); e (3) o estudo da infância é um

    campo de investigação próprio (investigação da expressão e ação de seus membros).

    Sobre a infância, prevalece o discurso da intervenção e controle: intervêm

    psicólogos, terapeutas, médicos, pedagogos, seja pela perspectiva da patologia ehigienização, seja pela perspectiva do ensino e instrução. E intervêm também as

    instâncias que produzem uma cultura  para  a infância, uma indústria cultural para o

    consumo pelo público infantil, em nome do público infantil, e que fabrica uma

    adolescência precoce e erotizada.

    Os discursos sobre a infância, o jogo e o brincar, brinquedos e brincadeiras,

    cultura e educação, sobre educação infantil no espaço escolar e fora dele, se sucedem e

    superpõem. Na segunda metade do século XIX3, com o envolvimento crescente dos pais

    como trabalhadores operários, a criança experimenta o abandono e a orfandade e,

    respondendo a esse quadro, Froebel (1782-1852) cria os “Jardins de Infância”

    (Kindergarten), instituição para cuidar das crianças, onde se destacam o cuidado com a

    higiene e uma educação dos órgãos dos sentidos. Eles conviveram na Europa com as

    Salas de Asilo - salles d ‘asile  -, que já cuidavam da guarda da criança e em 1882

    2. Nunes (2.000) constata como os alunos eram enquadrados: no campo da saúde, como “deficientes físicos,mentais e emocionais, ou portadores de distúrbios de caráter: os rebeldes, os violentos, os ladrões, osmentirosos, enfim, os sociais e anti-sociais’”; no campo da conduta social, como “altruístas” e “egoístas”; eno campo da aprendizagem, como “os de aprendizagem rápida, os de aprendizagem lenta, os aprovados, osrepetentes” (p. 352). Ela cita um fragmento de um texto elaborado pela seção de Higiene Mental eOrtofrenia, sobre a Higiene Mental prevenindo “a formação de tipos falhos de caráter”: “é preferível, doponto de vista da harmonia social, um anormal declarado do que um pré-anormal, pré-neurótico (...). Oprimeiro [anormal declarado] será retirado da sociedade (...). O segundo, (...) na escola, torna-se o fatorprincipal de desajustamentos, prejudicando o trabalho da classe; é um elemento de perpétuo martírio para osseus companheiros e os seus professores; chefia rebeliões escolares, insurge-se contra a disciplina e contratodo o trabalho de concatenação. Na sociedade, na vida adulta, será um desses múltiplos fracassados quepassam ao nosso lado (...), quando não se tornam elementos de interrupção do trabalho gregário (...). São osmentirosos, caluniadores, os covardes, os medrosos, os inibidos, os incapazes, os fanfarrões (.. .)”(p. 360-1)

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    passaram a ser chamadas de Escola Maternal  (Kuhlmann, 1998, p. 185). Os Jardins de

    Infância e as Salas de Asilo foram instituições criadas em resposta à pobreza, ao

    abandono e aos maus tratos.

    Também no Brasil encontramos, até por volta de 1920, casas destinadas à “guarda,

    higiene e alimentação” das crianças (Beyer, 1998, p. 32), com base num discurso dacaridade (por pena ou prevenção), da correção (punição), ou do isolamento (aprisionando

    as crianças para não trazerem danos à sociedade). Havia essas casas, mantidas por

    instituições religiosas ou filantrópicas, e havia os “Asilos Correcionais” do Governo, para

    cuidar da criança que, com a abolição da escravatura, sentia as conseqüências da falta de

    casa, comida e trabalho, e voltava a freqüentar a rua.

    No bojo dos discursos sobre avanços tecnológicos e científicos, os Jardins de

    Infância se instalam na 2a metade do século XIX, e se mostram para todo o mundo. As

    Exposições Internacionais que ocorreram a partir de 1851 (referências de civilização,progresso, modernidade), passam a exibir os avanços em saúde e educação, os novos

    métodos e técnicas, e em 1862 apresentam a grande inovação: a instituição para educar

    crianças, denominada Jardins de Infância, e com ela as carteiras, o livro didático, as

    “Lições de Coisas” (lições de observar, pensar e falar, ao invés das lições de ler, escrever

    e contar), os recursos didáticos. Pensa-se que "as primeiras e as melhores lições de coisas

    são dadas pelos brinquedos" , comenta o historiador Kuhlmann (1998, p. 193).

    A ritualização é, segundo esse pesquisador, a característica mais marcante das

    programações previstas na  Revista do Jardim da Infância - publicação que prescrevia,

    com detalhes, as atividades froebelianas para o trabalho nas instituições Jardins de

    Infância. Reconhece-se o valor da repetição e memorização para a criatividade, mas

    imprime-se um encadeamento lógico na construção do conhecimento, congelando e

    formalizando as relações da sala de aula.

    Os Jardins de Infância receberam apoio de reformadores como John Dewey e

    Stanley Hall4. Um discurso da pedagogia, sobre a infância, foi estruturado na Escola

    Nova, por John Dewey (1859-1952), e chegou ao Brasil. Ele combate a dicotomia entre

    atividade livre e dirigida, jogo e trabalho, cognitivo e afetivo, corpo e mente, entendendo

    a experiência estética como mobilizadora de uma unidade integrada do ser humano

    (Nunes, 2.000; Doll, 1997).

    3  No final do século XVIII já havia as escolas de tricotar   de Oberlin (Kulhmann, 1998, p. 74), masdiferentes instituições de educação infantil foram criadas na 1a metade do século XIX.

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    No preparo de materiais para os Jardins de Infância que se instalaram no Brasil5,

    foram logo traduzidos todo material froebeliano, brinquedos, cantos e hinos (Kuhlmann,

    1998). Um harmônio foi disponibilizado "para as aulas de marchas e cantos" no Jardim

    Caetano de Campos (p.117). O programa se pauta pela obediência e disciplina dos alunos,

    pelo controle e vigilância dos adultos, e por "extrema formalidade":

    (...) mesmo que se possa supor que houvesse flexibilidade e autonomiapara as educadoras adaptarem o ensino e as ações, o minuciosodetalhamento das propostas evidencia limites para a atuação (Kuhlmann,1998, p. 125).

    Uma rotina diária deveria ser cumprida, totalizando vinte momentos diferentes, de

    quinze minutos cada, quando as atividades se alteravam, entendendo ser esse o tempo de

    atenção da criança

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    . Essa prescrição invade também os dias de trabalho, e autoriza umadistinção entre a programação da semana e a do dia de sábado7. A sistemática presença da

    música passa por jogos, marchas, canções, que acompanham e marcam o ritual escolar,

    com finalidades pedagógicas, de motricidade e de formação de hábitos (compartilhar,

    esperar a vez, saber ouvir). Dentre as atividades gerais de rotina estão, na programação do

    Caetano de Campos, alternando-se, atividades motoras com cognitivas, mais pacatas com

    mais ativas: a de entrada (saudação, revisão, canto), a conversação ou linguagem, a

    atividade física (marcha, marcha cantada ou ginástica), atividades dirigidas dos dons

    (havia música), refeição (com canto para as refeições), música (cantos de entrada, saída,canto geral, música), brinquedos e jogos organizados, momento de pensamentos, méritos

    e cantos de despedida, e saída (com música de saída) (Kuhlmann, 1998, p. 127)

    De acordo com a programação da Revista do Jardim de Infância, cantava-se tanto

    antes como após a refeição, para visitantes, na entrada e na saída, marchando. As canções

    e as práticas corporais eram alguns dentre outros marcadores do tempo escolar, presentes

    em seqüências fixas e atividades repetidas diariamente, instituindo regularidade para

    crianças e adultos. As filas eram consideradas as formações mais adequadas para o

    deslocamento das crianças. O trabalho da linguagem oral ia dos jogos com sons, sílabas,

    4 Stanley Hall, por exemplo, fazia críticas e “pedia o relaxamento das rotinas rígidas de Froebel em favordos jogos onde se ensinassem as habilidades de viver em comunidade” (Kuhlmann, 1998, p 120).5 o primeiro Jardim de Infância, Caetano de Campos, em São Paulo, foi inaugurado em 18966 Este é um dos casos que exemplificam bem o que se disse, nesse texto, sobre a teoria que modela o olhar ea prática.7  No dia de sábado se permite "um horário mais livre, com a programação de exercícios gerais delinguagem, jogos, cantos e passeios" (Kuhlmann, 1998, p. 126)

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    palavras, até os colóquios sobre diversos temas, com cuidado quanto à ampliação de

    vocabulário, à formulação de frases completas e à pronúncia das palavras. Os contos

    poderiam ser acompanhados de movimentos, mímicas, imitação de sons. A ginástica

    (educação física), a marcha, os jogos cantados, os jogos organizados e os brinquedos, o

    recreio e os passeios e excursões promoveriam o crescimento e desenvolvimento físico. Aginástica, associada aos jogos e brincadeiras, integraria espírito e corpo. A marcha diária

    deveria ser acompanhada pelo piano, quando "crianças empunham bandeirinhas, outras

    acompanham o ritmo dos passos com a campainha, oferecendo ao conjunto da classe uma

    impressão muito agradável às próprias crianças”, segundo expressa a Revista8  (Kulhmann,

    1998, p. 137).

    As brincadeiras envolvem os brinquedos e jogos organizados. Os brinquedos eram

    as brincadeiras de roda, de movimento, de imitações, geralmente em marcha e

    acompanhadas de melodias fáceis, por vezes usando instrumentos. Froebel classificava osbrinquedos em categorias: “os que excitam o corpo, os que excitam os sentidos e os que

    excitam o espírito” (Kulhmann, 1998, p. 138)9. Os jogos são para Froebel uma atividade

    que pacifica tensões, envolve atividade cognitiva e criadora. O Guia para Jardineiras, de

    Wiebé, traduzido com modificações por Gabriel Prestes, fala dos jogos que se fazem

    sentados, alternados com os jogos de ação (movimentos), com a ginástica e exercícios

    vocais. As brincadeiras incluem cantigas de roda, jogos para o pátio, de mesa e de

    imitação (adivinhações), brinquedos de movimento, de imitação, e os acompanhados de

    melodias. Cânticos, hinos e “brinquedos” possibilitavam modalidades várias de Arte.

    O discurso da educação compensatória persiste no tempo, com base numa teoria

    da privação (social, carência cultural, etc), e visa suprir deficiências da criança. Esse

    discurso se instala intensamente na década de 70, e institui a "Pré-Escola" como o lugar

    de compensar um suposto déficit   geral na formação da criança, preparando-a para a

    escola. Kulhmann (1998), no seu exame de documentos históricos, defende a

    interpretação histórica de que as creches e pré-escolas foram concebidas e difundidas

    como instituições educacionais, ao invés do que ele considera ser a visão reducionista dos

    discursos vigentes, que só reconhecem a dimensão assistencialista nessas instituições.

    Sobre a pedagogização do brincar , ou o tempo-espaço dividido

    8 RJI, v 2, p. 2419 RJI, v 2, p 206-26

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    Na ação pedagógica escolar no contexto ocidental contemporâneo alguns pontos

    críticos vêm sendo enfaticamente destacados. Eles aparecem no documento Referencial

    Curricular Nacional para a Educação Infantil volume 3, intitulado Conhecimento de

     Mundo  (MEC/SEF, 1998)10  e estão presentes no recente Encontro da Associação

    Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd, 2.000), seja na SessãoEspecial sobre Pesquisa na Educação Infantil, nas falas de Sarmento e de Souza, seja na

    comunicação de Kishimoto, sobre a sua investigação diagnóstica nas escolas infantis na

    cidade de São Paulo, ou nos debates no GT Educação Infantil  desse mesmo Encontro.

    Destaco dois deles: (1) a objetividade dos investimentos e da profissionalização para a

    infância, resultando em uma programação cotidiana marcada pelo treinamento e instrução

    exacerbados (de judô, dança, música, informática, idioma etc); e (2) a escolarização (ou

    alfabetização) precoce, com a construção de currículos pré-formatados e normas a serem

    seguidas, limitando a capacidade da criança viver em sua “plenitude”.Estudos diagnósticos que vêm sendo realizados no Brasil e em outros países -

    como destacado nos relatos de Kishimoto e de Sarmento -, revelam que já não há lugar

    para o brinquedo e a brincadeira na escola, hoje. Impera a escolarização precoce, onde o

    brincar é uma atividade dirigida para o aprender. No levantamento dos usos de materiais

    pedagógicos e dos espaços de brincar11, predomina o uso ocasional dos materiais (em dias

    especiais, festivos), ou o seu uso em momentos demarcados (quando o professor de

    música chega, ou quando termina a tarefa dada pela professora, ou enquanto se aguarda os

    10 Comenta Kuhlmann, pesquisador da Fundação Carlos Chagas (São Paulo), que desenvolve estudos sobreHistória da Infância e da sua Educação: “em recente publicação da Coordenadoria de Educação Infantil doMEC, identifica-se que as propostas de programação para a educação infantil, nos diversos estados ecapitais de nosso país estariam deixando de considerar o universo cultural da criança; privilegiando odesenvolvimento cognitivo, organizado em áreas compartimentadas e com ênfase na alfabetização;dicotomizando conhecimento e desenvolvimento; desvalorizando o jogo e o brinquedo como atividadesfundamentais para as crianças; antecipando a escolaridade; e deixando de esclarecer as articulações entre asatividades de cuidado e a função pedagógica preconizada. Todos esses problemas (...) são, de fato, vividosnas nossas instituições" (Kuhlmann, 1998, p. 200)11 Tizuko Kishimoto, docente e pesquisadora da Faculdade de Educação da USP, realizou, de 1996 a 98,estudo diagnóstico sobre salas de aula e brinquedos e materiais pedagógicos nas escolas municipais deeducação infantil em São Paulo, e categoriza os brinquedos encontrados: brinquedos em escala infantil, emminiatura, para fantasias (dramatizações) e danças, marionetes e bonecos, jogos educativos para agrupar oureconstituir imagens, para superpor ou justapor peças de construção, para agrupar por meio de parafusos oumecanismos de junção, ou com sistemas de encaixe, materiais para desenvolver motricidade fina eexperiências sensoriais e estéticas, materiais de artes visuais (papel e lápis surgem em demasia), de estímulosonoro, os instrumentos musicais, materiais de comunicação audiovisual (o quadro negro predomina), deinformática, material organizador de ambientes e instalações fixas para atividades motoras e de educaçãofísica, jogos de regras e outros materiais pedagógicos com predomínio para aprendizagens específicas(matemática, da língua materna, história, geografia, ciências)...

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    colegas para o início de outra atividade).12 A rotina escolar estimula o tempo de espera e

    uma socialização homogeneizadora: todos seguem fazendo a mesma coisa. “Brincar” não

    faz parte do projeto pedagógico do professor, e vem constantemente associado a

    atividades desenvolvidas “fora da sala”, com o professor de educação física. O tempo-

    espaço é dicotômico: na sala (de aula) se estuda e “lá fora” se brinca; a brincadeira que seinfiltra no intervalo das programações pedagógicas, ocorre na “distração” do professor, às

    escusas de sua vigilância, ou de sua autorização. Quando muito, planeja-se a sexta-feira

    como dia da brincadeira livre e do brinquedo (trazido de casa como posse), ou aparece na

    escola um projeto especial, esporádico, prático, de pesquisa, em torno dessa questão.

    Kishimoto fala do medo que o professor tem de perder o controle da situação e do medo

    de perder tempo de ensinar coisas. Na brinquedoteca13, por exemplo, são realizadas as

    atividades planejadas previamente pelo professor para aquele dia, voltadas para conteúdos

    determinados, e a possibilidade de se alterar a rotina é remota. Pouco se exploram osobjetos intermediários (uma caixa de papelão, por exemplo), para que a criança recrie

    seus usos. Mesmo tendo imenso material de arte, na escola não se desenvolve arte,

    constata Kishimoto, e Nogueira14 (2.000) reitera isso, quando fala que a escola já se acha

    equipada para o trabalho de música, só em adquirir os CDs listados no recente Referencial

    Curricular Nacional para a Educação Infantil (MEC/SEF, 1998).

     Breves relatos sobre trajetos dinâmicos

    Um episódio presenciado por mim, no Rio de Janeiro, ilustra esse viver

    dicotômico do estudar e do brincar (o exercício e a brincadeira), e mesmo uma perda da

    capacidade de brincar, no sentido de jogar com idéias, representações, imagens, papéis,

    funções frente aos meios e seus materiais. Esse relato ilustra o predomínio de uma lógica

    conduzida pela previsibilidade e pelo controle máximo das ações, ao invés de pela

    heterogeneidade de séries e suas múltiplas conexões e sentidos que vão sendo inscritos,

    pela flexibilidade e fluência, pela rede de saberes, escutas, olhares. A esse breve relato,

    12  O espelho, por exemplo, serve para a hora de escovar os dentes e não está presente na atividade desocialização, de desenvolvimento da imaginação, de representação e simbolismo. Papel e lápis servem paraatividades pedagogizantes, como a de localizar se o gato está dentro ou fora de um retângulo.13 Brinquedoteca é um espaço com cantinhos temáticos (de construção, casinha, médico, leitura, música etc)que estimula a expressão livre e a brincadeira através do mundo do “faz-de-conta”, permitindo arepresentação do imaginário, a fantasia, o desenvolvimento da linguagem, a interação social etc.14  Monique Andries Nogueira leciona a disciplina “Artes e Recreação” no Curso de Pedagogia daUniversidade Federal de Goiás (UFG) e desenvolveu o trabalho de pesquisa de que trata aqui, comunicadono encontro da ABEM, 2.000

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    que trata de crianças, segue um outro, desenvolvido pelo filósofo Gilles Deleuze, sobre o

    menino Hans.

    As crianças estavam uniformizadas e eram do segmento Educação Infantil.

    Andavam na pista Cláudio Coutinho, junto ao Morro Pão de Açúcar, uma das pistas

    favoritas dos cariocas, para suas caminhadas diárias. Ali, de um lado, está o mar; de outro,a mata e os micos. O mar se choca na pedra, e os micos saltam de um galho ao outro e

    soltam seus gritos. Era possível escutar como essas duas texturas sonoras se imbricavam,

    procedendo de duas direções distintas, naquele espaço.

    Conduzidas pela professora, as crianças seguem cantando uma canção que fala de

    um pássaro. Logo adiante elas iriam cruzar um atalho que tinha exatamente o nome

    daquela ave, cantada no refrão. As vozes não estão afinadas, nem ritmicamente precisas, e

    muito menos se mantêm num uníssono. As crianças caminham cantando uma ou outra

    palavra, uma ou outra frase da música. A massa sonora (densidade) é tímida, assim comoo volume (intensidade).

    Só então me dei conta do criterioso planejamento da professora, e de que a canção

    instalou um modo de estar no caminho. A música, com função disciplinadora, de controle,

    regulou o trajeto e fez cessar a experiência do caminho, da ordem das escutas, da

    observação atenta e curiosa, da pergunta, da experimentação, da expressão, do gesto e do

    movimento, da imaginação, da sinestesia. O vento no rosto, o ritmo das ondas, o balanço

    dos micos, os corpos em movimento, as folhas, luzes e sombras, a sonoridade dos passos,

    os cheiros, cores e formas do caminho, as texturas da rocha, as granulações do asfalto; o

    mico e o mar, duas texturas sonoras, timbres, regiões e inflexões de alturas, saltos, apoios,

    impulsos, retenções, repousos, ritmo, pergunta e resposta, complementação,

    transversalidade, contraste, interferência, superposição, silêncio; música, teatro, cena,

    poesia... Blocos de sensações, qualidades do trajeto, senso de aventura, aventura

    imaginativa, atitude de investigação, pesquisa e seus registros, elaborações e

    reelaborações, montagens e desmontagens de um texto , uma experiência estética: isso foi

    o que se perdeu na experiência do trajeto, durante o canto distraído e controlador das

    vozes e da imaginação e iniciativa de crianças muito ativas.

    O que seria  produzir uma cartografia, errante, da ordem do exploratório, e do

    decalque feito no meio do mapa, ao percorrer esse meio?

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    Deleuze (1997) descreve o episódio do menino Hans15, que atravessa a rua, indo

    ao restaurante. Deleuze diz que Hans não pára de “explorar os meios, por trajetos

    dinâmicos, e traçar o mapa correspondente” (p. 73). Na ida ao restaurante, Hans explora a

    rua, passando pelo entreposto de cavalos, e define um cavalo traçando uma lista de afetos:

    ele possui “um grande faz-pipi”, arrasta cargas pesadas, tem viseiras, morde, cai, échicoteado, faz “charivari” com suas patas. Isso tudo produz em Hans um mapa de forças

    ou intensidades, de movimentos e trajetos. No caso, um meio é explorado, que é a rua e

    suas matérias, meio “feito de qualidades, substâncias, potências e acontecimentos” (p.

    73): os paralelepípedos, com seus barulhos; o grito dos mercadores e seus animais; os

    cavalos e seus dramas (escorrega, cai, apanha, é chicoteado). O trajeto, este “se confunde

    não só com a subjetividade dos que percorrem um meio, mas com a subjetividade do

    próprio meio” (p. 73), conforme palavras de Deleuze. E o mapa, para Deleuze ele

    “exprime a identidade entre o percurso e o percorrido” (p. 73).Em que esses dois relatos se aproximam, em torno da noção de cartografia?

     A noção de cartografia e a forma estética: arte-cartografia

    Deleuze fala de uma “intoxicação” psicanalítica que atinge Hans, mas também

    atinge crianças que cedo “têm que guardar seus mapas” (p. 74), em nome de uma

    concepção arqueológica, “memorial, comemorativa ou monumental, que incide sobre

    pessoas e objetos, sendo os meios apenas terrenos capazes de conservá-los, identificá-los”

    (p. 75)16. No lugar dessa arqueologia, Deleuze introduz a noção de “cartografia dinâmica”

    (p. 75), como um funcionamento do mapa, da ordem da mobilização, da produção, dos

    deslocamentos, do constante remanejamento nos mapas que se superpõem. Um mapa é

    extensão, porque é um espaço constituído por trajetos; e um mapa é intensivo, porque é

    “distribuição de afetos”(p. 76), lista de afetos que dizem respeito “ao que preenche o

    espaço, ao que subtende o trajeto” (p. 76). Deleuze vai falar de trajetos que constituem

    viagens (como no caso de Hans): “é o devir que faz, do mínimo trajeto ou mesmo de uma

    imobilidade no mesmo lugar, uma viagem” (p. 77).

    15 Outros aspectos discutidos a partir desse relato de Deleuze sobre Hans foram desenvolvidos em artigo daautoria de Regina Marcia Simão Santos, intitulado A Noção de Mapa em Deleuze e Guattari e as PráticasEducacionais em Música. Cadernos do Colóquio 1999. Programa de Pós-Graduação em Música. Centro deLetras e Artes. UNIRIO, 2.000, p. 68-73.16 Deleuze e Guattari vão se tornar críticos ferrenhos da psicanálise, especialmente no livro O Anti-Édipo, defendendo um inconsciente produtivo, de mobilização, não estagnado num passado feito de recalques.

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    O pensamento da cartografia é da ordem da singularidade e da intensidade, e não

    da generalidade. Atravessar a rua, indo ao restaurante, ou percorrer a pista Cláudio

    Coutinho, produzirão outros tantos mapas, de trajetos dinâmicos e devires, que se

    instalam na subjetividade dos meios e na subjetividade daqueles que o percorrem,

    constituindo o que Deleuze chama efetivamente de viagem. Um cavalo, um passeio napista Cláudio Coutinho, um mico, um mar - sempre um corpo17 com poder de afetar e de

    ser afetado, um meio e suas matérias, meio feito de qualidades, substâncias, potências e

    acontecimentos.

    Deleuze parte da noção de cartografia para falar da arte-cartografia e da forma

    estética.

    A arte-cartografia se constitui na trança (rede) de caminhos interiores à própria

    obra e de trajetos exteriores. Trajetos exteriores são “uma criação que não preexiste à obra

    e depende de suas relações internas” (p. 79), isto é, depende de caminhos interiores quetoda obra de arte comporta. Deleuze adverte para a pluralidade de trajetos “legíveis e

    coexistentes apenas num mapa”, que é extensão (trajeto), e que é intensivo (diz do que

    subentende o trajeto). Dessa forma, o mapa-cartografia, não da ordem da reprodução-

    memória, faz um corpo (obra, mico, caminho, cavalo) mudar de sentido segundo os

    trajetos que são retidos, interiorizados.18  A arte-cartografia é, portanto, um mapa de

    virtualidades, “feita de trajetos e devires”, onde os trajetos não são reais (dados a priori)

    e os devires não são imaginários (não são da ordem da memória-reprodução). 

    Deleuze preparou o terreno para falar da forma estética. Ela implica a criação de

    caminhos sem memória, já que um meio, embora tenha seus caminhos interiores, não

    determina necessariamente a existência dos personagens19, mas antes os personagens “se

    definem pelos trajetos que fazem na realidade ou em espírito, sem os quais não há devir”

    (p. 78). Tratar da forma estética pressupõe multiplicidade (dos percursos, da trajetória) e

    singularidade.

    Ao falar da criança e ao falar do jogo da arte-cartografia, da forma estética e da

    vida, Deleuze dá elementos suficientes para se desenvolver um pensamento sobre uma

    educação da criança que se faz na intensidade de trajetos. Como poderia tal jogo “não

    fazer a criança cedo guardar seus mapas”, como no caso de Hans, ou no caso da turma na

    17  Sobre corpo definido previamente por suas funções, ver o artigo citado anteriormente, dessa autora(Santos, 2.000, p. 68-73).18 “Ela [obra] muda de sentido segundo aqueles [trajetos] que são retidos. Esses trajetos interiorizados sãoinseparáveis de devires. Trajetos e devires, a arte os torna presentes uns nos outros (...)”(Deleuze, 1997, p.79).

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    pista Cláudio Coutinho? Como produzir mapas-cartografias na Educação Infantil? Quem

    os produz? Qual o lugar do jogo da cartografia nos projetos pedagógicos, que implica não

    o já jogado, jogo jogado, da ordem da repetição da tática utilizada pelo outro, repetição de

    trajetos? Como compreender, sob essa ótica, a advertência de Piaget sobre ser a criança

    quem joga, e nada mais prejudicial do que dar a ela o jogo pronto, restando-lhe reproduzira tática empregada pelo adulto? Que considere a qualidade estética, os blocos de

    sensação, a lógica da sensibilidade? Qual o lugar do jogo da intervenção pedagógica num

    projeto que atente para a imaginação estética, na educação infantil? Em que se pauta esse

     jogo da intervenção? Poderia o jogo-cartografia reencantar  a educação (usando termo de

    Assmann)? Qual o lugar dele no projeto educacional, sabendo que “somos também

    animais instrucionais”?20 (Assmann, 1998, p. 141).

    O jogo da riqueza, com rigor? - sobre um funcionamento do currículo

    Para subsidiar essa discussão, recorro a William Doll, um teórico do currículo,

    especificamente aos princípios de riqueza e rigor por ele desenvolvidos ao tratar de um

    currículo numa perspectiva pós-moderna21.

    Sem dispensar um planejamento prévio, Doll (1997) fala do planejamento

    “desenvolvimental” como aquele que abriga a flexibilidade, “aproveita o inesperado” (p.

    187) – expressão que bem pode ser aproximada da ênfase de Deleuze e Guattari (1995),

    sobre “criar explorando as circunstâncias” (p. 36).

    Por riqueza, Doll refere-se à “‘quantidade certa’ de indeterminância” que uma

    situação pedagógica abriga, para que o currículo seja “provocativamente generativo”, sem

    perder sua configuração; refere-se às “qualidades perturbadoras” que um currículo precisa

    ter (p. 192). Aos mais ansiosos, ele diz que a “quantidade certa” de indeterminância não

    pode ser antecipadamente definida, pois depende de uma negociação entre alunos,

    professores e textos que regulam as disciplinas, a prática escolar, a prática na academia.

    Cada disciplina interpretará “riqueza” à sua maneira: a Matemática, por exemplo, poderá

    ser tratada, do Jardim da Infância à Universidade, como “brincar com padrões”,

    combinados diversamente (p. 193). Ele sintetiza: “desenvolver riqueza por meio do

    19 Deleuze e Guattari discorrem sobre “personagens”, no livro O que é a Filosofia? Rio Janeiro: Ed 34, 199220 grifo do autor21  Outros princípios, que não serão abordados nesse texto, são relação e recursão: relação, que diz doconjunto de relacionamentos pedagógicos e culturais; e recursão, que diz de conexões, iterações, “reflexão

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    diálogo, interpretações, geração e comprovação de hipóteses, e do brincar com padrões

    pode-se aplicar a tudo o que fazemos no currículo”. (p. 193)

    Por rigor, Doll refere-se à necessidade de se evitar que o currículo caia num

    “relativismo extravagante” ou num “solipsismo sentimental” (p. 198). Doll considera-o o

    mais importante dentre os quatro critérios - de relação, recursão, riqueza e rigor. Definerigor pela mistura das qualidades de indeterminância e interpretação. Indeterminância,

    enquanto busca intencional de diferentes alternativas, relações, conexões, “explorar

    continuamente, procurar novas combinações, interpretações, padrões” e “não concluir

    cedo demais ou finalmente demais a respeito da correção de uma idéia, lançar todas as

    idéias em várias combinações” (p. 199). Interpretação, enquanto tentativa de esclarecer

    suposições e negociar passagens entre elas. Doll conclui: “a qualidade da interpretação

    (...) depende de quão inteiramente e quão bem nós desenvolvemos as várias alternativas

    apresentadas pela indeterminância” (p.199). A quantidade suficiente de indeterminânciaincita a “manter o diálogo em andamento”, e este é o modo narrativo, interpretativo,

    metafórico de tratar do conhecimento, que não pode sucumbir ao modo explanatório e

    definicional (Doll, 1997, p. 185).

    Sobre a brincadeira e o jogo

    Brougère (1998)22, ao falar da brincadeira e do jogo, contribui para aprofundar

    aspectos colocados por Deleuze e Guattari, sobre “criar explorando as circunstâncias”, e

    por Doll, sobre “brincar com padrões”. Ele fala da brincadeira infantil aproximando-a da

    idéia de jogo, entendido como um espaço aberto de experimentação, onde “o cenário se

    constrói progressivamente” e “não se sabe em que vai dar o jogo”, pois nem tudo é

    “programado de antemão” (p. 5). O jogo é também um espaço “sem riscos”, isto é, suas

    conseqüências são zeradas ou minimizadas, em relação ao que ocorre na vida real, do

    mundo cotidiano. Os seus elementos são a decisão (é a criança quem toma uma decisão

    no jogo), a exploração do material (antes mesmo da instalação do jogo, e no seu decorrer),

    a regra (decide-se aceitá-la ou construí-la, trabalhar com regras preexistentes, modificá-

     recursiva”, no lugar da repetição como estratégia modernista. Esse debate é desenvolvido por Doll, em livrocuja edição original foi publicada em 1993 (Doll, 1997, p. 194-8).22 Gilles Brougère é sociólogo, formado em filosofia e em antropologia, Doutor em Ciências Humanas naUniversidade Paris XIII; dirige, no Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Paris-Norte,um programa de formação em nível de 3o  Grau, consagrado à brincadeira e ao brinquedo, e vemdesenvolvendo trabalhos de orientação acadêmica e pesquisas no Brasil, nesta área, junto à Faculdade deeducação da USP (Brougère, 1997, p. 110)

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    las ou não, negociar papéis) e a lógica do faz-de-conta (lógica com a qual se pode brincar,

    do mundo da invenção e fantasia, diferente da lógica do cotidiano). Brincar é decidir no

     jogo do faz-de-conta, explorando os materiais, num espaço caracterizado pela incerteza,

    ausência de conseqüência e iniciativa da criança.

    Afirma ainda que brincadeira é uma atividade que a criança realiza por iniciativaprópria, sem um objetivo educativo ou de aprendizagem, para seu prazer e sua recreação,

    e que permite a ela entrar em contato com os outros e com o espaço, com o meio

    ambiente, com a cultura. Ela é uma atividade construída social e culturalmente. Brougère

    amplia a discussão sobre o brincar, desenvolvendo a noção de “cultura lúdica”. Por

    “cultura lúdica” refere-se a “uma forma peculiar de brincar, (...) que integra um universo

    inteiro de referências: é uma forma de brincar com a cultura, de entrar em contato com a

    cultura” (p. 7). O jogo do aprendizado da língua materna é uma dessas formas de brincar,

    e estabelece-se em meio a informalidades e formalizações do cotidiano. Esse aprendizadonão é guiado por intenções educativas (objetivos pedagógicos), mas tem suas

    formalizações: os adultos são peritos em relação às crianças iniciantes, e as crianças mais

    velhas são peritas em relação às mais novas.

    Brincar com padrões da cultura, no sentido dessa “cultura lúdica”, é o que fazem

    as crianças suyá, ao criarem akias-miniatura, músicas imitando a dos adultos, conforme

    pesquisou Seeger (1982). Muitos outros exemplos há desse jogo exploratório da criança,

     jogo experiencial com padrões musicais da cultura e com materiais, como atividade de

    livre iniciativa da criança, realizada para seu prazer, recreação e comunicação com os

    outros e com o seu meio cultural.23 Parece cabível dizer, conforme expressões de William

    Doll, que o que elas fazem é “explorar continuamente, procurar novas combinações,

    interpretações, padrões” e “lançar todas as idéias em várias combinações”. Jogar com

    padrões, com combinações em todas as direções, já está presente na metodologia

    científica proposta por Dewey, no bojo da Escola Nova, falando do estágio de “elaboração

    de uma idéia, e brincar com conceitos” (Doll, 1997, p. 199), muito diferente de um ensino

    ativo que possa ser reduzido a um mero “cumprir ‘a tarefa’”(p. 156)

    Brougère (1998) fala do risco de, ao orientar a brincadeira, o adulto acabar por

    destruí-la: a brincadeira é um espaço “no qual o adulto não pode orientar muito, senão

    23 Esse comportamento de reproduzir, “em miniatura”, o mundo do adulto, vem sendo constatado em tantasoutras culturas, em pesquisas etnográficas. Não cabendo no corpo do presente texto, limitamo-nos a citarapenas outros dois trabalhos, um deles realizado especificamente no Brasil (Merriam, 1964; Arroyo, 1999).

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    arrisca-se a destruir o interesse da brincadeira, ou seja, o fato da criança dominar o espaço

    de experiência” (p.5).

    Produzindo um debate entre as idéias de Brougère, Doll, Deleuze e Guattari,

    somos desafiados a dar um encaminhamento, em nossos projetos pedagógicos, às

    questões da inserção e intervenção do adulto na brincadeira, qualitativa equantitativamente; do espaço de indeterminância, de “qualidades perturbadoras” na

    negociação pedagógica; da riqueza e do rigor capazes de “manter o diálogo em

    andamento”, sem um “relativismo extravagante”; do funcionamento de um mapa-

    cartografia, dinâmico, no meio do qual se vão constituindo decalques24, paradas.

    Acrescentamos a pergunta lançada por Brougère (1998), sobre “como tentar

    construir um espaço entre o jogo e as atividades dirigidas, mediadas pelos conhecimentos

    específicos oferecidos pelos professores” (p. 5), sem que a figura do adulto destrua o

    interesse da brincadeira. Ele resolve esse impasse, considerando que,

    por um lado, existe a intervenção não destrutiva na brincadeira (...); poroutro lado, não hesitar ter, em paralelo com a brincadeira, outras atividadesdirigidas que têm uma lógica completamente diferente, construindoatividades em função de objetivos pedagógicos (Brougère, 1998, p. 5).

    Ele comenta sobre o intervir na brincadeira poder apenas “aumentar a

     probabilidade  da atividade caminhar rumo ao que interessa ao educador” (p. 5 – grifo

    meu), sem que se possa ter certeza do que vai acontecer. Intervir, portanto, como umaatividade de incitar:

    incitar eventualmente as crianças a desenvolver o jogo nesta ou naqueladireção; apenas incitações, nunca obrigações, sempre cabendo à criança adecisão de ficar na atividade que ela desenvolveu, sem retomar por suaconta a proposta do educador, o qual (...) deve respeitar o fato da criançater o direito de decidir se quer realmente brincar [com o que o professorapresenta] (Brougère, 1998, p. 5).

    Brougère fala das atividades dirigidas como tendo ou não relação com o jogo, econsidera que “é interessante criar pontes entre as duas atividades visto que elas podem se

    enriquecer mutuamente” (p. 5): pode-se partir das atividades dirigidas, enriquecendo o

     jogo da criança com idéias, áreas de conhecimentos e materiais que ela ainda não

    24 Sobre decalques constituídos no meio do mapa, ver o artigo dessa autora, aqui já citado (Santos, 2.000, p.68-73).

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     O que leva uma outra professora a reconhecer que tem que “fazer muita estripulia

    para prender a atenção da criança”, e para tal chegou a fazer a técnica da dobradura e a

    experimentar as alternativas das artes visuais e o movimento?26 

    Como participar da brincadeira da criança, entrar nela “sem destruí-la”? Quem

     joga?A chave de toda intervenção no jogo da criança, diz Brougère, é a observação, e só

    “certos adultos que conhecem muito bem a brincadeira das crianças, que a observaram

    muito bem, conseguem fazer esta intervenção”(p. 5). Esclarece essa competência:

    “conhecer bem o jogo da criança, sua cultura, como brinca, de que maneira, do quê, de

    que jeito e ver quando o jogo pode se desenvolver dentro de sua própria lógica, quando é

    interessante nele intervir” (p. 5).

    Já temos praticado a pedagogia dos exercícios que modelam o brincar e a

    brincadeira a partir de saberes ensináveis. Já temos vivido a improvisação como técnicapedagógica, através de jogos dirigidos, para fixar conteúdos e treinar ítens de um

    programa de instrução. Já temos experimentado o espontaneismo, a atividade

    descomprometida com um objetivo pedagógico. Já temos ouvido Schafer indagar por que

    não gerar a atividade de análise das próprias criações dos alunos, ou Paynter desafiar os

    professores de música a uma ação pedagógica norteada pelo princípio do prazer em lidar

    com sons, ao invés de orientada por uma seqüência de informações e habilidades técnicas.

    E não posso desprezar a riqueza trazida por Orff, nos jogos sobre padrões musicais

    diversos, e no tocante ao brincar com o jogo expressivo das palavras. Ou o grande

    mapeamento trazido por Gainza, incitando o professor a não parar de gerar riqueza e

    rigor, na exploração de meios que vão sendo percorridos. Ou exemplos de músicos

    brasileiros, como Hermeto Paschoal. A advertência de Swanwick (1988) completa esse

    elenco: “um currículo de música baseado somente na experiência das crianças, nos seus

    próprios produtos, o enfraqueceria e o empobreceria de compreensão musical e

    desenvolvimento” (p. 15 - grifo do autor).

    Na construção de um projeto pedagógico, de pouco nos vale hoje a divisão

    dicotômica de um espaço em: (1) “sala de aula”, com “trabalho sério”; e (2) o “lá fora”,

    espaço selvagem, livre, da brincadeira. De pouco valem os espaços demarcados,

    consentidos e controlados, de atividade dirigida e atividade livre, como territórios

    autorizados, mas sem fricção, na programação escolar.

    26  depoimentos colhidos em Encontro Regional da ABEM, ano 2.000, entre professores de música queatuam na Educação Infantil

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    Ao tomar o brincar como expressão humana, valor cultural, socialização, a

    pergunta - “quem joga?”- tem dupla remissão.

    Primeiramente, a criança – como no caso do Hans, ou da turma da Cláudio

    Coutinho, um jogo-cartografia, explorando meios, produzindo mapas, brincando com

    padrões.Segundo, o professor. Talvez tenhamos perdido a capacidade de brincar, ou a

    credibilidade no brincar, e seja necessário reaprender a brincar o jogo da riqueza, com

    rigor. É necessário reaprender a viver o jogo da cartografia na Educação Infantil, como

    um modo de funcionamento, um exercício do olhar, da escuta, que toma a dimensão

    estética como potencializadora do movimento, no lugar do estável, prescrito e

    reproduzível.

    Deleuze e Guattari (1995) vão apontar para esse modo de funcionamento estético

    (não restrito a uma educação artística), vão falar de se fazer “a linha e nunca o ponto”,“linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga” (p. 36).

    Nessa repedagogização para lidar com a criança, professores generalistas ou

    especialistas precisam avaliar em quê a lógica da cartografia importa a uma ecologia do

    social, a partir da educação infantil

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