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CARVALHO, José Murilo de. “OS TRÊS POVOS DA REPÚBLICAin República do Catete. Maria Alice Rezende de Carvalho... [et al.]; organizado por Maria Alice Rezende de Carvalho; prefácio de Raphael de Almeida Magalhães. Rio de Janeiro: Museu da República, 201, 180p. Referência : CARVALHO, José Murilo de. “Os três povos da República” in República do Catete. Maria Alice Rezende de Carvalho... [et al.]; organizado por Maria Alice Rezende de Carvalho; prefácio de Raphael de Almeida Magalhães. Rio de Janeiro: Museu da República, 201, 180p. pp.61-87. Idéia central : Período que vai de 1889 a 1904 foi turbulento, com assassinatos políticos, golpes de Estado, revoltas populares, greves, rebeliões militares, guerras civis. “Ausente da proclamação do novo regime, o povo esteve presente nesses anos iniciais. Mas as oligarquias conseguiram inventar e consolidar um sistema de poder que deixava o povo de fora. Inaugurou-se um período de paz oligárquica, baseado em uma combinação de cooptação e repressão, interrompido apenas em 1922, quando se deu a primeira revolta tenentista. A proposição do texto é examinar a posição do povo, em suas várias faces, durante esse apogeu do sistema oligárquico, quando a órbita da República mais se distanciou da democracia. O povo no início da República 62 – Consolidação da República com Campos Sales: “É de lá [dos estados] que se governa a República, por cima das multidões que tumultuam, agitadas, nas ruas da capital da União”. Organizar um governo republicano significava afastar-se da democracia. Mas o povo foi de fato alijado da política nacional? 62 – Havia três caras de povo na Primeira República: o povo das estatísticas, povo das eleições e o povo das ruas. O povo das estatísticas 63 – Pelo censo de 1872, Louis Couty, em 1881/1884 afirma: “O Brasil não tem povo”, povo político. Por isso era importante a existência do Poder Moderador. 63 – Em 1906, ao receber Euclides da Cunha na ABL, Sílvio Romero retoma ideia de Couty. Em 1916, Gilberto Amado, deputado, repetiu a mesma coisa. 63 – Em 1925, Amado fará nova análise, agora a partir do censo de 1920. Cidadania agora ligada a alfabetização. Concluiu que o número de pessoas capazes de “formar qualquer ideia, por elementar que seja, das coisas” não passava de 500 mil em uma população de mais de 30 milhões de pessoas. Dados: 65 – Censo de 1920: São Paulo e Minas eram os dois Estados mais populosos e, por isso, com maior representação nas bancadas da Câmara dos deputados. 66 – Censo de 1920: país predominantemente rural (70% da população), exceto no Distrito Federal. Minas era o estado mais rural. 67 – Apesar de ser rural, havia grande desigualdade na distribuição de terras. Das 6,4 milhões de pessoas ocupadas na agricultura, apenas 577 mil, ou seja, 9%, eram proprietárias. 67 – Baixos salários e precariedade nas relações de trabalho marcavam o cotidiano do trabalhador rural. Contratos de trabalho só para imigrantes, intermediados por seus cônsules.

Carvalho Os Tres Povos Da Republica

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CARVALHO, José Murilo de. “OS TRÊS POVOS DA REPÚBLICA” in República do Catete. Maria Alice Rezende de Carvalho... [et al.]; organizado por Maria Alice Rezende de Carvalho; prefácio de Raphael de Almeida Magalhães. Rio de Janeiro: Museu da República, 201, 180p.

Referência: CARVALHO, José Murilo de. “Os três povos da República” in República do Catete. Maria Alice Rezende de Carvalho... [et al.]; organizado por Maria Alice Rezende de Carvalho; prefácio de Raphael de Almeida Magalhães. Rio de Janeiro: Museu da República, 201, 180p. pp.61-87.

Idéia central: Período que vai de 1889 a 1904 foi turbulento, com assassinatos políticos, golpes de Estado, revoltas populares, greves, rebeliões militares, guerras civis. “Ausente da proclamação do novo regime, o povo esteve presente nesses anos iniciais. Mas as oligarquias conseguiram inventar e consolidar um sistema de poder que deixava o povo de fora. Inaugurou-se um período de paz oligárquica, baseado em uma combinação de cooptação e repressão, interrompido apenas em 1922, quando se deu a primeira revolta tenentista. A proposição do texto é examinar a posição do povo, em suas várias faces, durante esse apogeu do sistema oligárquico, quando a órbita da República mais se distanciou da democracia.

O povo no início da República

62 – Consolidação da República com Campos Sales: “É de lá [dos estados] que se governa a República, por cima das multidões que tumultuam, agitadas, nas ruas da capital da União”. Organizar um governo republicano significava afastar-se da democracia. Mas o povo foi de fato alijado da política nacional?

62 – Havia três caras de povo na Primeira República: o povo das estatísticas, povo das eleições e o povo das ruas.

O povo das estatísticas

63 – Pelo censo de 1872, Louis Couty, em 1881/1884 afirma: “O Brasil não tem povo”, povo político. Por isso era importante a existência do Poder Moderador.

63 – Em 1906, ao receber Euclides da Cunha na ABL, Sílvio Romero retoma ideia de Couty. Em 1916, Gilberto Amado, deputado, repetiu a mesma coisa.

63 – Em 1925, Amado fará nova análise, agora a partir do censo de 1920. Cidadania agora ligada a alfabetização. Concluiu que o número de pessoas capazes de “formar qualquer ideia, por elementar que seja, das coisas” não passava de 500 mil em uma população de mais de 30 milhões de pessoas.

Dados:65 – Censo de 1920: São Paulo e Minas eram os dois Estados mais populosos e, por isso, com maior representação nas bancadas da Câmara dos deputados. 66 – Censo de 1920: país predominantemente rural (70% da população), exceto no Distrito Federal. Minas era o estado mais rural.67 – Apesar de ser rural, havia grande desigualdade na distribuição de terras. Das 6,4 milhões de pessoas ocupadas na agricultura, apenas 577 mil, ou seja, 9%, eram proprietárias. 67 – Baixos salários e precariedade nas relações de trabalho marcavam o cotidiano do trabalhador rural. Contratos de trabalho só para imigrantes, intermediados por seus cônsules. 68 – Latifúndios representavam 63% da ocupação do território. 180 mil pessoas que detinham essas terras (“coronéis da república).69 – População urbana (16,6% do total): operários 300 mil e profissionais liberais 168 mil. 70 – Fora o Distrito Federal (61,3%), só o Rio Grande do Sul superava os 30% de alfabetizados (imigração).

70 – Para Couty e Amado, dados indicavam a impossibilidade de fazer funcionar um sistema representativo com esse material humano.

O Povo das eleições

71 – Minas, SP, Bahia, Rio Grande do Sul e Pernambuco respondiam por 54% dos deputados. Minas e SP = 28% do total.72 – Só havia eleição competitiva quando um ou mais dos cinco grandes, podendo-se incluir também o RJ, entravam em dissidência. 72 – O povo das estatísticas demográficas está quase totalmente ausente nas estatísticas eleitorais. Entre 1889 e 1904, cerca de 1,4% e 3,4% do total da população votavam. 73 – Na capital, embora 20% estivessem aptos para votar, votou apenas 1,3%, 0,9%, 2,2% nas eleições de1894, 1910, 1922. Receio de sair às ruas em dia de eleição.75 – Nos estados, as oligarquias afastavam os votantes das urnas, pois não lhes interessavam promover a disputa eleitoral. Eleições eram caras, exigiam arregimentação de eleitores e compra de votos. Maior competição significava mais eleitores e, portanto, mais gastos. Na capital da República, a abstenção não era produzida por oligarquias. Devia-se ao puro medo. As eleições eram batalhas comandadas por capangas armados de facas e navalhas.

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76 – A baixa competição mostra a eficácia dos estados-maiores políticos em neutralizar as oposições. O fantasma da dissidência oligárquica estava sempre presente e era necessário um esforço constante de negociação, ameaças e, muitas vezes, de pura repressão, para preservar o arranjo criado por Campos Sales.

76 – De qualquer modo, a conclusão que se pode tirar dos dados apresentados era que o eleitorado, o povo das eleições, o povo político oficial, por si só, era incapaz de constituir qualquer ameaça ao sistema.

O povo da rua

76 – povo que se manifestava às margens dos mecanismos formais de participação, que existia tanto nas cidades quanto no campo. Chama de rua porque saía do âmbito doméstico e ia para o âmbito público.

77 – Durante o Segundo Reinado: manifestações políticas de caráter defensivo em relação às iniciativas do Estado. Populações rurais e urbanas entravam em conflito em as determinações do Estado que, embora legais, se chocavam com seus valores, tradições e costumes.

77 – Algo semelhante se passou na República após a consolidação oligárquica, quando a Política dos Estados passou a cumprir o mesmo papel do Poder Moderador no que se referia ao arbitramento dos conflitos entre a elite. Até a consolidação, verificou-se algo semelhante ao que se dera no período regencial, talvez com maior gravidade, uma vez que a guerra civil atingiu a capital do país. Período turbulento acaba com a Revolta da Vacina.

77 – De 1904 a 1992: Revolta da Chibata, greves de 1917 (45 greves na capital e 29 no interior de SP) -1919. Entre 1917 e 1920, calcula-se 236 greves entre SP e RJ, 300 mil operários.

78 – Organizam-se congressos, sindicatos e imprensa operária. Mas não tiveram grande impacto no sistema político. Até 1922 não conseguiram/quiseram organizar partidos operários.

79 – povo da rua: militares, operários, trabalhadores. /povo do campo: “beatos e bandidos”. Exemplos: Contestado e Juazeiro (Padre Cícero), cangaço.

81 – Movimentos apresentavam modelos alternativos aos da República oficial, com maior ou menor grau de radicalismo. À exceção de Juazeiro, foram todos destruídos a ferro e fogo.

Canhões e vacinas

81 – “O povo civil era mantido sob controle pela própria estrutura social do país. O povo das eleições era enquadrado nos mecanismos legais de cooptação e de manipulação, o povo da rua era quase sempre tratado a bala”.

82 – Em todos esses movimentos emergia um traço comum: a incapacidade do regime de incorporar o povo da rua, o povo politicamente ativo.

82 – “Não foi apenas com violência que o governo tratou com os três povos da República. A elite ilustrada que se formara no último quartel do século XIX era obcecada pela ideia de ciência, progresso, civilização, modernidade. Parte dela acreditava que o povo brasileiro, por sua composição racial e características culturais, era incapaz de seguir outros povos no caminho da modernidade. Euclides da Cunha, mesmo exaltando o sertanejo, continuava descrente de sua aptidão para o progresso, prevendo mesmo a sua extinção”.

82 – Missionários do progresso: sanitaristas (Oswaldo Cruz/Pereira Passos; Artur Neiva e Belisário Pena, Rondon – primeiro diretor do Serviço de Proteção aos Índios- 1910). Monteiro Lobato

83 – Os métodos usados pelos missionários da civilização, e mesmo sua visão do povo, eram muito superiores aos dos que descriam da população e dos que só podiam conceber a força como instrumento de combate ao que consideravam rebeldia e atraso. No entanto, os reformistas ilustrados também não primavam pelas convicções democráticas. O povo permanecia massa inerte, doente, analfabeta, que só poderia ser tratada de maneira paternalista, quando não autoritária e tecnocrática.

83 – Higienistas se viam como salvadores do povo, tal como os messias do sertão.

Saída por cima

83 – Revolta dos jovens oficiais inicia crise da República oligárquica. Elemento perturbador foi a força armada, que se mantivera em silêncio desde o governo de Hermes da Fonseca.

83 – Em 1924, Vicente Licínio Cardoso organiza uma coletânea de ensaios escritos por autores nascidos com a República. O tom da maioria era de crítica e desilusão (À margem da história da República) – Gilberto Amado, Pontes de Miranda, Tristão de Athaíde, Oliveira Vianna.

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84 – Tema recorrente da obra: ausência do povo político no Brasil, não havia povo, não havia classes organizadas, não havia opinião pública, não havia democracia.

84 – Autores não conseguiam ver o povo sob luz favorável, de perceber o lado positivo das ações que chamei de povo da rua. Esse povo ativo era simplesmente ignorante ou considerado fanático, ou obscurantista, ou desordeiro. O povo civil era simplesmente ignorante, analfabeto, doente, um Jeca Tatu. O povo das eleições era massa passiva de manobra. Não viam saída para a República. Gilberto Amado pedia a formação de “elites ilustradas de diretores mentais”.

85 – “A Primeira República não conseguiu unificar seus três povos. Não pôde, ou não buscou, transformar em cidadão o jeca de Lobato, o sertanejo de Euclides, o beato do Contestado, o bandido social do cangaço, o anarquista das grandes cidades. Liberal pela Constituição, oligárquica pela prática, não foi fruto da opinião democrática nem dispôs de instrumentos para promover essa opinião”.

85 – “Mas seria esse um epitáfio justo para o regime que foi atropelado pela revolta de 1930? Afinal, 1930 foi uma versão muito melhorada do golpe de 1889. Em vez de uma parada militar pelas ruas da capital, houve um movimento nacional surgido no bojo da reação a mais uma eleição fraudada. Havia militares de novo e havia oligarquias dissidentes, mas havia também simpatia generalizada entre intelectuais, entre setores médios urbanos e mesmo entre operários. Sobretudo, o movimento de 1930 distinguiu-se do de 1889 pelos resultados. Ele definiu de imediato a agenda política nacional, recolocou o Estado na liderança da nação, trouxe a questão social e sindical para o centro do palco, gerou movimentos de mobilização popular, provocou uma explosão de criatividade entre os pensadores da sociedade e da política. De onde tinham saído essas forças renovadoras? Seriam simples flores do pântano?”

85 – “De alguma maneira, o reprimido movimento operário da Velha República incidiu sobre a decisão de criar um Ministério do Trabalho e sobre a legislação social, trabalhista e sindical; o excessivo domínio oligárquico gestou dentro de si mesmo uma intelectualidade crítica e renovadora que contribuiu, por caminhos muitas vezes divergentes, para repensar e reorientar o país; o rebelde, indócil e marginalizado povo das ruas das maiores cidades se viu, pela primeira vez, interpelado pelos governantes; a descrença no povo civil, baseada em suas características raciais, foi subvertida pela valorização da mestiçagem promovida pelo próprio governo; a crítica ao exagero federalista, já feita pelos intelectuais dos anos 20, ajudou a restaurar a capacidade do governo central para definir políticas nacionais”.

85 – “É como se, entre nós, ocultados pela distância entre o legal e o real, funcionassem mecanismos insuspeitados de representação dos povos, em construção silenciosa e aparentemente passiva de uma outra república”.

(Em nota, Carvalho diz que seus últimos três parágrafos foram inspirados na ideia de revolução passiva, de origem gramsciana, que foi aplicada ao Brasil por Werneck Vianna, Luiz. A revolução passiva. Iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997).