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Correntes do Direito i C C O O R R R R E E N N T T E E S S D D O O D D I I R R E E I I T T O O Manual de Capacitação e Guia de Facilitadores de legislação sobre a água e reforma legislativa, baseada na gestão integrada dos recursos hídricos GIRH Bacias hidrográficas compartilhadas Água para o alimento Água e meio ambiente Água para o povo Mudanças climáticas e água Direitos consuetudinários Fornecimento de água e saneamento Incorporação da perspectiva de gênero Água e energia

CCOORRRREENNTTEESS DDOO DDIIRREEIITTOO - SSWM. CAP... · Essa escala de mudanças invariavelmente exige alterações nas leis que regem os recursos hídricos. Os países promovem

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CCOORRRREENNTTEESS DDOO DDIIRREEIITTOO

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Fornecimento de

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saneamento

Incorporação da

perspectiva de

gênero

Água e

energia

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Índice

ÍNDICE .................................................................................................................. I

PREFÁCIO ......................................................................................................... III

AGRADECIMENTOS ......................................................................................... IV

INTRODUÇÃO .................................................................................................... V

CAPÍTULO 1 ........................................................................................................ 1

INTRODUÇÃO À GIRH ....................................................................................... 1

1.1 Introdução.............................................................................................. 1 1.2 Princípios da GIRH ................................................................................ 2 1.3 GIRH: Um processo de gestão para a governança da água .................. 5 1.4 Por que a legislação sobre a água é fundamental no processo de GIRH? ......................................................................................................... 5 1.5 Uma visão mais apurada da legislação sobre a água ............................ 6 1.6 O que a legislação sobre a água normalmente contém ......................... 7 1.7 Implementando a GIRH ......................................................................... 8 1.8 Leituras sugeridas ................................................................................. 8

CAPÍTULO 2 ........................................................................................................ 9

CONCEITOS PARA UMA ESTRUTURA LEGAL DE GIRH ................................ 9

2.1 Introdução.............................................................................................. 9 2.2 Gestão Holística .................................................................................... 9 2.3 Sustentabilidade .................................................................................. 10 2.4 Equidade ............................................................................................. 11 2.5 Equilíbrio de gênero ............................................................................. 12 2.6 Valor econômico da água .................................................................... 13 2.7 Governança ......................................................................................... 13 2.8 Leituras sugeridas ............................................................................... 15

CAPÍTULO 3 ...................................................................................................... 16

LEGISLAÇÃO NACIONAL SOBRE A ÁGUA .................................................... 16

3.1 Introdução............................................................................................ 16 3.2 A política da água traduzida em normas legais .................................... 17 3.3 Componentes de uma legislação nacional sobre a água ..................... 18 3.4 Conclusão............................................................................................ 21

CAPÍTULO 4 ...................................................................................................... 23

DISPOSIÇÕES SOBRE A ÁGUA BASEADAS NO COSTUME ........................ 23

4.1 Introdução............................................................................................ 23 4.2 Pluralismo social: uma estrutura teórica .............................................. 24 4.3 Gerindo recursos hídricos sob o pluralismo social ............................... 25 4.4 Estudo de casos: gestão de recursos hídricos disposições baseadas no costume ..................................................................................................... 27 4.5 Prós e contras de reconhecer disposições baseadas no costume ....... 31 4.6 Leituras sugeridas ............................................................................... 32

CAPÍTULO 5 ...................................................................................................... 35

ASPECTOS LEGAIS DA GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS COMPARTILHADOS ......................................................................................... 35

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5.1 Introdução............................................................................................ 35 5.2 O direito internacional em contexto ...................................................... 35 5.3 Direito Internacional dos cursos d’água ............................................... 38 5.4 A Convenção de 1997 das Nações Unidas .......................................... 41 5.5. Principais características da lei internacional de curso d’água internacional (Utilização Equitativa e Regra de Não Prejuízo) ................... 45 5.6 Obrigações internacionais e implementação nacional / regional .......... 45 5.7 Conclusão............................................................................................ 48 5.8 Leituras sugeridas ............................................................................... 48

CAPÍTULO 6 ...................................................................................................... 51

RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ......................................................................... 51

6.1 Introdução............................................................................................ 51 6.2 Acordos implícitos e explícitos, pressupostos e problemas no âmbito da gestão das águas ...................................................................................... 52 6.3 A GIRH e a Gestão de Conflitos .......................................................... 52 6.4 Resolução de conflitos: mapa da situação, papéis & responsabilidades53 6.5 Resolução Alternativa de Conflito (RAC) ............................................. 55 6.6 As habilidades de comunicação como elementos facilitadores nos conflitos ..................................................................................................... 57 6.7 Exigências para uma resolução de conflitos bem sucedida ................. 58 6.8 Conclusão............................................................................................ 58 6.9 Leituras sugeridas ............................................................................... 59

CAPÍTULO 7 ...................................................................................................... 60

GOVERNANÇA DA ÁGUA E INSTITUIÇÕES ................................................... 60

7.1 Introdução............................................................................................ 60 7.2 A gestão da água nas bases: as dimensões da governança da água .. 61 7.3 Princípios de uma governança efetiva da água ................................... 61 7.4 O Papel da Governança na implementação da GIRH .......................... 66 7.5 Conclusão............................................................................................ 68 7.6 Leituras sugeridas ............................................................................... 69

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 71

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Prefácio

As mudanças nas políticas e práticas da gestão integrada de recursos hídricos nas últimas duas décadas tiveram consequências de longo alcance quanto ao modo como o uso da água está sendo regulado. Reconhece-se que os sistemas de alocação de água e controles da poluição devem ser implementados e se mostrar efetivos, de preferência usando os princípios do “ou usuário ou poluidor pagador”. Também é reconhecido que os grupos de interesse devem desempenhar um papel significativo nas decisões referentes à gestão da água, uma vez que, com frequência, na medida em que frequentemente são impactadas pela gestão das águas não adequadas. Para tornar eficaz essa melhor gestão integrada de recursos hídricos, as instituições de gestão também estão sendo reformadas. Essa escala de mudanças invariavelmente exige alterações nas leis que regem os recursos hídricos. Os países promovem a reforma legal ou desenvolvem uma nova Lei Nacional da Água para assegurar a criação de uma estrutura legal que permita que se realizem as políticas e os objetivos previstos. Assim, os impactos são de longo alcance e a reforma legal deve receber cuidadosa atenção. Este manual de treinamento introduz diversos aspectos da lei das águas e é adequado para gestores de nível médio e sênior. Será de grande ajuda compreender como é elaborada a legislação sobre águas e como diversos princípios podem ser incorporados ao texto legal. O manual é adequado para cursos de pequena duração ou como material para programas educacionais sobre gestão da água. O manual fornece links para valiosos materiais e um guia para os facilitadores, que podem utilizar o material no desenvolvimento de programas de capacitação. Paul Taylor, Diretor, Cap-Net

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Agradecimentos

Este material para capacitação foi preparado por uma equipe de autores das redes de parcerias e das organizações da Cap-Net. Sob a orientação do Sr. Damián Indij, da LA-WETnet, os autores Sr. Tarek Majzoub, da Universidade Árabe de Beirute, Sra. Maria del Pilar Garcia Páchon, da Universidade Externado da Colômbia, Sra. Palesa Selloane Mokorosi, do African Centre for Water Research - ACWR, Sr. Kees Leendertse, da Cap-Net contribuíram em diferentes seções do material. Gostaríamos de agradecer a valorosa contribuição do Departamento de Direito das Águas da Universidade de Dundee, em particular ao Sr. Michael Hantke-Domas pela revisão e pelos comentários ao texto, num espírito de parceria que levou ao manual aqui apresentado. A equipe também é grata ao Sr. Daniel Malzbender do ACWR pela revisão. Finalmente, os comentários recebidos dos participantes nos diversos cursos de capacitação nos ajudaram a melhorar o material de modo significativo.

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Introdução

O manual de treinamento e o guia do facilitador visam auxiliar aos facilitadores a realizar cursos breves de capacitação a respeito da legislação da água e a reforma legislativa, visando à adoção da gestão integrada dos recursos hídricos - GIRH. Os cursos de pequena duração sobre o assunto são dirigidos a gestores que estão no processo de reforma legislativa para adotar os princípios da GIRH, bem como preparando ambiente propício para sua implementação. O manual contém informações sobre os fundamentos de GIRH e orientação nesse processo. A estrutura do manual e do guia do facilitador torna o material ferramenta prática para conduzir curso, de duração de uma semana. Entretanto, também é adequado para ser utilizado em programas educacionais e ações de tomada de consciência, tendo como público-alvo atores sociais participantes de processo decisório. O manual e as apresentações que o acompanham podem ser adaptados para diferentes públicos. O presente documento tem duas seções principais: o manual e o guia do facilitador. O manual apresenta conceitos e princípios referentes à reforma legal e à legislação de água, abordando assuntos como acordos internacionais e alternativas para soluções de conflito. Para esse fim, oferece ferramentas e instrumentos úteis. Cada capítulo se inicia com os objetivos e as metas de aprendizado para aquela seção, enquanto exemplos práticos e questões de orientação são fornecidos ao longo do documento. O manual está estruturado em sete capítulos: Introdução à Gestão Integrada de Recursos Hídricos Conceitos para uma Estrutura Legal de GIRH Legislação Nacional sobre a Água Disposições Baseadas no Costume Aspectos Legais da Gestão de Recursos Hídricos Compartilhados Resolução de Conflitos Governança da Água e Instituições

A parte 2 do documento é um guia para facilitadores. Fornece ao facilitador do curso um guia prático para a organização e a condução de cursos sobre a reforma legal referente à GIRH. O guia fornece um exemplo de programa de capacitação, que visa ajudar a estruturar o curso. Trazem diretrizes para cada capítulo, além de dicas para a organização do curso, inclusive para facilitação e aprendizado de adultos. Também dá sugestões para os materiais a serem usados nas sessões, exercícios e sessões interativas, além de atividades para estimular a interação dos participantes. São recomendados diversos recursos úteis, além de sítios da Internet. O CD que acompanha o manual oferece material de apoio para o curso. Nele estão apresentações facilmente adaptáveis para cada sessão, materiais sugeridos para leitura e referências e estudos de caso. Contém também o manual em formato digital.

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O manual fica incompleto sem as enriquecedoras experiências e as contribuições dos participantes. Também pretende estimular a interação e a discussão durante a condução da capacitação. Dessa forma, pode contribuir para uma melhor compreensão da estrutura legal e para a necessidade de reformar a legislação para a implementação da GIRH.

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Capítulo 1

Introdução à GIRH

Meta

A meta deste capítulo é apresentar conceitos e princípios da Gestão Integrada de Recursos Hídricos (GIRH); os princípios que fundamentam a GIRH, os desafios para sua implementação e a relevância de uma legislação adequada sobre a água.

Objetivos do Aprendizado

Após o estudo deste capítulo, os participantes: Serão capazes de descrever o significado de GIRH e seus princípios

essenciais; Compreenderão as principais razões para adotar uma abordagem de GIRH; Reconhecerão o papel e a importância da legislação sobre a água como

condição necessária, embora não suficiente, para a implementação da GIRH; e

Serão capazes de descrever os principais desafios para adotar uma abordagem de GIRH no próprio país, e como a legislação desempenha um papel nesse processo.

1.1 Introdução

A água é essencial à vida. Também é de vital importância para a saúde e o desenvolvimento; é elemento-chave para a mitigação da pobreza. Encontraremos uma relação com a água em todos os aspectos das atividades humanas e da natureza. No entanto, água não está assegurada para todos em um contexto global de aumento exponencial da população, com demanda crescente e constante por alimentos e água potável, aumento de atividades econômicas e pressão sobre os frágeis ecossistemas. Questões como direitos sobre as águas, gestão de recursos hídricos, uso e descarga da água, demanda e suprimento atravessam transversalmente todos os níveis de usuários e atividades humanas. A poluição afeta a qualidade da água (e, assim, a água potável disponível) e espera-se que as manifestações das mudanças climáticas e a extrema variabilidade do clima tenham impactos substanciais nos recursos hídricos e na disponibilidade de água. Hoje há uma crise de água. Mas a crise não é devida à escassez de água para satisfazer nossas necessidades. É uma crise de má gestão da água, implicando que bilhões de pessoas ─ e o meio ambiente ─ sofram terrivelmente (Conselho Mundial da Água - World Water Council: 2000). No ano de 2025, mais de três bilhões de pessoas enfrentarão a escassez de água. Mas não porque vá faltar água no mundo1. A crise dos recursos hídricos é uma crise de governança (Solanes, M.; Peña, H.: 2003; GWP: 2003).

1 Ainda é verdade que a água é escassa em algumas regiões e outras novas áreas enfrentarão o mesmo

destino em razão das mudanças climáticas.

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Ainda hoje os profissionais responsáveis pela gestão dos recursos hídricos trabalham em base setorial, sem coordenação do planejamento e das operações, sem contar com a colaboração estreita com a comunidade ambiental, e dentro de fronteiras administrativas que normalmente ignoram a divisão espacial natural em bacias hidrográficas e subterrâneas. Pior que tudo, os grupos de interesse mais atingidos, homens e mulheres da comunidade, cujas vidas e sobrevivência dependem de adequada gestão dos recursos hídricos, não participam da tomada de decisões. Os governos deveriam estabelecer mecanismos institucionais para que isso aconteça, incluindo legislação nacional que estabeleça o planejamento e a gestão do uso da terra e da água com participação das mulheres e de outros grupos de interesse, representando os interesses econômicos, ambientais e sociais da comunidade e o total compartilhamento da informação (Conselho Mundial da Água – em inglês World Water Council: 2000). Durante as últimas décadas, especialistas do mundo inteiro estudaram e compartilharam conhecimentos para compreender qual a melhor forma de gestão da água; esse processo levou à consolidação dos princípios de “Gestão Integrada de Recursos Hídricos”. A GIRH pode ser entendida como a interpretação da gestão dos recursos hídricos sob a forma de uma abordagem holística. De acordo com a Associação Mundial pela Água (em inglês GWP - Global Water Partnership), "a GIRH é um processo que promove o desenvolvimento e a gestão da água, da terra e dos recursos relacionados de forma coordenada, visando otimizar o bem-estar econômico e social resultante de maneira justa, e sem comprometer a sustentabilidade de ecossistemas vitais" (GWP: 2000). O caminho na direção da GIRH levou a importantes mudanças na gestão de recursos hídricos a níveis local e internacional. Houve uma reforma completa dos princípios de gestão dos recursos hídricos, passando de enfoque setorializado, na infraestrutura e no investimento, para uma abordagem integrada e multissetorial, considerando os diferentes usos dos recursos hídricos e com foco nas inter-relações entre diferentes setores do uso da água.

1.2 Princípios da GIRH

Há quatro princípios, conhecidos como os princípios de Dublin, considerados orientadores2:

1. A água doce é um recursos finito e vulnerável, essencial para garantir a vida, o desenvolvimento e o meio ambiente. Como a água garante a vida, a gestão eficaz dos recursos hídricos requer uma abordagem holística, ligando o desenvolvimento social e econômico à proteção dos ecossistemas naturais. A gestão eficaz liga terra e usos da água através da totalidade de uma área de captação ou aquífero subterrâneo.

2 Da Declaração de Dublin sobre Recursos Hídricos e Desenvolvimento, Conferência Internacional sobre Água

e o Meio Ambiente, Dublin, Irlanda, de 26 a 31 de janeiro de 1992, preparatórias à Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1992. Nota de Revisão. Tais princípios foram incorporados na Agenda 21 aprovada na Conferência das Nações Unidas, realizado no Rio de Janeiro, em junho de 1992.

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A noção de que a água doce é um recurso finito surge quando o ciclo hidrológico médio escoa uma quantidade fixa de água em determinado período. Essa quantidade, total ou não, pode ser alterada de forma significativa por ações humanas, embora a quantidade disponível para as pessoas e para o ecossistema possa ser, e é frequentemente, reduzida em razão da poluição causada pelo ser humano. O recurso da água doce é um ativo natural, que precisa ser mantido para assegurar que os serviços desejados sejam mantidos. Esse princípio reconhece que a água é necessária para muitas e diferentes finalidades, funções e serviços; assim, a gestão precisa ser holística (integrada) e envolver a consideração das demandas em relação ao recurso e as ameaças a tal recurso.

2. O desenvolvimento e a gestão da água devem ser baseados em abordagem participativa, envolvendo usuários, planejadores e formuladores de políticas em todos os níveis. A real participação só acontece quando os grupos de interesse são parte do processo de tomada de decisão. Uma abordagem participativa é o único meio de alcançar consenso duradouro e acordo entre as partes. Entretanto, para que isso aconteça, os grupos de interesse e as autoridades das agências de gestão da água precisam reconhecer que sustentabilidade do recurso é um problema comum e que todas as partes terão que sacrificar alguns desejos pelo bem de todos. A participação está relacionada a assumir responsabilidade, reconhecendo o efeito de ações setoriais sobre outros usuários da água e ecossistemas aquáticos, aceitando a necessidade de mudança para melhorar a eficiência do uso da água, permitindo o desenvolvimento sustentável do recurso. A participação nem sempre alcança o consenso; poderá ser necessário recorrer a processos de arbitragem ou a outros mecanismos de resolução de conflitos3. Os governos a nível nacional, regional e local têm a responsabilidade de tornar a participação possível. Isso envolve a criação de mecanismos para consulta das partes interessadas em todas as escalas espaciais; como a nível nacional, de bacia hidrográfica ou aquífero; a nível de áreas de captação e comunidades. Além disso, precisa ser reconhecido que a simples criação de oportunidades de participação de nada adiantará para grupos atualmente em desvantagem, salvo se aumentarem as possibilidades de participação desses grupos (GWP: 2000).

3. As mulheres têm um papel central no suprimento, na gestão e na salvaguarda da água.

O papel extremamente importante das mulheres como supridoras e usuárias da água e guardiãs do meio ambiente vivo poucas vezes se refletiu em soluções institucionais para o desenvolvimento e a gestão dos recursos hídricos. A aceitação e a implementação desse princípio exigem ações afirmativas para atender as necessidades específicas das mulheres, fornecer-lhes os meios e dar-lhes capacidade, para que

3 Nota de revisão da versão em português: Gestão de água é a gestão de interesses opostos ou divergentes e

de conflitos.

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participem em todos os níveis de programas dos recursos hídricos, inclusive na tomada de decisões e na implementação, da forma que elas definirem. É largamente reconhecido que as mulheres têm papel chave na coleta e proteção da água para uso doméstico e, muitas vezes, para uso agrícola, mas seu papel é muito menor do que o dos homens no que se refere à gestão, análise de problemas e tomadas de decisão. Como as circunstâncias sociais e culturais variam muito entre as sociedades, sugere-se que existe a necessidade de explorar diferentes mecanismos para aumentar o acesso das mulheres ao processo de tomada de decisão e alargar o espectro de atividades por meio das quais elas podem participar da GIRH. A GIRH requer a tomada de consciência de gênero. Para desenvolver a participação da mulher de forma completa e efetiva em todos os níveis de tomada de decisão, é preciso considerar como as diferentes sociedades determinam de forma particular os papéis social, econômico e cultural de homens e mulheres. Existe uma importante sinergia entre a equidade de gênero e a gestão sustentável dos recursos hídricos. Envolver homens e mulheres em papéis importantes em todos os níveis da gestão pode acelerar a realização da sustentabilidade; a gestão da água de forma integrada e sustentável contribui de forma significativa para a equidade de gênero, pelo maior acesso de homens e mulheres à água e aos serviços a ela relacionados, atendendo às necessidades básicas de todos4.

4. A água tem valor econômico em todos os seus usos e deve ser reconhecida como um bem de valor econômico. O erro antigo de não reconhecer o valor econômico da água levou a desperdício e a usos do recurso que prejudicaram o meio ambiente. A gestão da água como bem de valor econômico é uma forma importante de alcançar o uso eficiente e equitativo do recurso e de encorajar a conservação e a proteção dos recursos hídricos. Tratar a água como um bem de valor econômico é uma forma importante se significado para a tomada de decisões a respeito da alocação da água entre diferentes usos setoriais e entre diferentes usos dentro de um setor. Isso é especialmente importante quando o fornecimento duradouro não é uma opção variável.

Na GIRH, o valor econômico dos usos alternativos da água dá aos responsáveis pelas decisões orientações importantes das prioridades de investimento, mas essa não deve ser a única consideração. As metas sociais também são importantes. Num ambiente de escassez, seria correto, por exemplo, que o próximo recurso hídrico desenvolvido fosse alocado para uma siderúrgica, pois o proprietário pode pagar mais pela água do que os milhares de pobres que não têm acesso à água potável? As metas sociais,

4 Nota de revisão. A incorporação de perspectiva de gênero em GIRH é princípio que integra a Declaração de

Bonn (Dublin+10), 2001.

Perguntas sobre o lugar de onde você vem

A água é formalmente reconhecida como direito humano em seu país? Como o acesso à água está relacionado a outros direitos humanos?

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econômicas e ambientais, todas têm um papel importante na tomada de decisão na GIRH.

1.3 GIRH: Um processo de gestão para a governança da água

É importante compreender que esses princípios não são estáticos. É claramente necessário atualizá-los e a eles acrescentar detalhes, à luz da experiência da implementação prática. Mais ainda, é necessário explorar esses princípios e compreender seu significado e para onde estão chamando nossa atenção. 5 A GIRH não é um plano de ação. Nem um complexo sistema para a gestão dos recursos hídricos, mas um processo de gestão. O movimento na direção da GIRH é uma mudança do desenvolvimento da água para a governança e significa um reconhecimento do fato de que há interesses que competem quanto ao uso e a alocação da água (Gupta, J.; Leendertse, K.: 2005). Nesse contexto, a gestão é usada no seu sentido mais amplo. Enfatiza a necessidade de nos concentrarmos não apenas no desenvolvimento dos recursos hídricos; de forma consciente; precisamos gerir o desenvolvimento dos recursos hídricos de modo a assegurar o uso sustentável para gerações futuras.

1.4 Por que a legislação sobre a água é fundamental no processo de GIRH?

Um exame dos sistemas hídricos de âmbito global revela que, em quase todos os sistemas legais, a legislação sobre a água contemplou a água ou os direitos ao seu uso, as responsabilidades e os poderes. Os sistemas legais são uma forma de proteger as necessidades humanas e, muitas vezes, também o meio ambiente; o sistema impõe os direitos e as responsabilidades designados aos atores sociais (Gupta, J.; Leendertse, K.: 2005). Como o novo paradigma social mudou na direção da GIRH, espera-se que os diplomas legais tenham um papel fundamental para que os novos princípios sejam formalmente implementados. Essa mudança de política claramente tem consequências na maneira de as disposições institucionais atenderem aos novos desafios de gestão, havendo a necessidade de uma adaptação da legislação sobre a água para assegurar que sejam atendidos os princípios do novo paradigma de gestão. A legislação sobre o assunto deve: (Cap-Net 2006):

5 Uma abordagem profunda sobre a governança da água consta do capítulo sete

Quadro 1.1 Compreender a governança da água

O conceito de governança aplicado à água se refere à capacidade de um país, de forma coerente, organizar o desenvolvimento sustentável dos recursos hídricos. Tal definição engloba a capacidade de projetar uma política pública socialmente aceitável, que fomenta o desenvolvimento sustentável dos recursos hídricos e os implementa de modo eficaz nas instituições relevantes. A governança, no sentido amplo, existe em todas as sociedades. Em alguns casos, ela é boa, em outros, o normal é uma "crise de governança”. A governança implica a capacidade de gerar e implementar políticas e leis apropriadas. Tais capacidades são o resultado de um consenso estabelecido, do planejamento de sistemas de gestão coerentes (regimes baseados em instituições, leis, fatores culturais, conhecimento e práticas), além da administração adequada dos sistemas (baseada na participação e aceitação social), e o desenvolvimento de capacidade (Solanes, M.; Peña, H.: 2003).

(Solanes, M.; Peña, H.: 2003).

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esclarecer a qualificação e a responsabilidade dos usuários e permissionários e concessionários dos serviços de água;

esclarecer os papéis do Estado em relação a outros grupos de interesse;

formalizar a transferência de alocações de água;

definir a situação legal das instituições governamentais de gestão e a grupos de usuários de água; e

assegurar o uso sustentável dos recursos. Uma estrutura legal torna-se essencial porque a interação da GIRH causa mudanças nos direitos de água (usos), o papel dos grupos de interesse, a relação com o meio ambiente, a abordagem da bacia hidrográfica, entre outros. Por outro lado, as mudanças legais são muitas vezes necessárias para permitir a implementação apropriada da GIRH.

1.5 Uma visão mais apurada da legislação sobre a água

A legislação é parte de uma estrutura para ação; a legislação fornece a

base para a intervenção e a ação e estabelece o contexto e a estrutura para a ação de todas as instituições (inclusive das entidades não governamentais). Assim, é um elemento importante dentro do ambiente propício.

Legislação, regulamentos e estatutos; normalmente é difícil fazer

alterações na legislação sobre a água e, por isso, a legislação deve ter um sentido geral, estabelecendo direitos e obrigações de todos os grupos de interesse envolvidos na gestão da água, os poderes e funções de órgãos regulatórios e as penalidades pelas infrações da lei. Entretanto, a legislação sobre a água deve ter o equilíbrio certo entre o sentido geral e que propicie a aplicação adequada, evitando conflitos de interpretação. Diretrizes detalhadas e disposições para impor e implementar o texto legal devem ser incorporadas às partes mais dinâmicas do sistema legislativo, por exemplo, a estrutura representada pelos regulamentos e estatutos que podem ser alterados num processo contínuo, caso mudem as circunstâncias.

A aplicação das leis sobre a água e o espaço para interpretações; as

leis sobre a água, como as leis em geral, não são uma estrutura estática, mas dinâmica. Uma vez criada, a lei deve ser de aplicações pelas autoridades e por outros grupos. Como podem ter interpretações (e

Perguntas sobre o lugar de onde você vem

Há no seu país uma lei exclusiva sobre a água ou as questões legais sobre o assunto estão distribuídas entre diferentes leis?

Quadro 1.2 A água em diferentes leis ... ou num direito das águas?

Leis específicas sobre a água foram editadas em um número considerável de países, mas alguns ainda não têm uma lei específica sobre recursos hídricos em si. Embora se possam encontrar referências a recursos hídricos na legislação nacional, estão com frequência dispersas em leis setoriais e podem ser contraditórias ou inconsistentes em alguns aspectos de utilização dos recursos hídricos.

Fonte: GWP, 2000.

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interesses) diferentes, o judiciário pode ser chamado a intervir para a solução de conflitos ou interpretação da lei.6

1.6 O que a legislação sobre a água normalmente contém

Legislação sobre a água converte política em direitos e obrigações e deve (GWP: 2000; GWP: 2005) Estabelecer situação legal para as instituições governamentais

responsáveis pela gestão dos recursos hídricos e para grupos de usuários da água;

Esclarecer a qualificação e as responsabilidades dos usuários e dos encarregados pelo suprimento da água, e os papéis do Estado em relação a outros grupos de interesse;

Estar baseado em uma política nacional de recursos hídricos, que seja transversal e as divisões de grupos de interesses que abordem a questão da água como um recurso que enfatiza a prioridade da sociedade para atender às necessidades humanas primárias e de proteção do ecossistema;

Assegurar os direitos (uso) à água para permitir investimentos privados e comunitários e a participação na gestão da água (formalizar a transferência dessas alocações de água);

Regularizar o acesso monopolizado à água bruta e aos serviços de água, além de evitar danos a terceiros;

Apresentar uma abordagem equilibrada entre o desenvolvimento dos recursos para fins econômicos e a proteção da qualidade da água, dos ecossistemas e de outros benefícios públicos referentes ao bem-estar;

Garantir que as decisões relativas a empreendimento de água sejam baseadas em sólidas avaliações econômicas, ambientais e sociais.

Assegurar a possibilidade do emprego de modernas ferramentas participativas e econômicas, onde e quando necessárias, e na medida certa.7

Em outras palavras, uma lei sobre a água fornece as regras para a implementação de políticas, assim servindo de base para regras sobre a conservação, a proteção, as prioridades e a gestão de conflitos. Entre outras coisas, uma lei sobre a água cobre a propriedade da água, permite o seu uso, a

6 Nota de Revisão. Esta participação do judiciário em maior ou menor grau depende do sistema legal de cada

país. No caso de países do sistema anglo-saxão, o judiciário tem papel mais relevante, que é sintetizado no princípio “o Juiz faz a lei”, porém no caso dos países do sistema romano-germanista, o papel do judiciário na interpretação da lei tem outros procedimentos. 7 Nota de Revisão. No Brasil, a Governança da Água é feita com a participação da sociedade civil, conforme

instituído na Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/97)

Pense nisso Como a legislação sobre a água vai lidar com múltiplos e competitivos usos da água? Pense em termos de aplicabilidade, o sistema legal e a GIRH. Você pode ter acesso a

diferentes leis sobre o assunto e avaliá-las nesse aspecto?

Considere a pergunta agora, no início do manual e volte a considerá-la ao final. A discussão ganhou substância?

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possibilidade de transferência das permissões e as qualificações ligadas ao costume.8

1.7 Implementando a GIRH

Vimos que a GIRH é uma ferramenta flexível para se enfrentar os desafios da água e otimizar a contribuição do recurso para o desenvolvimento sustentável. Não é uma meta em si. A GIRH trata de fortalecer as estruturas para a governança de a água fomentar a boa tomada de decisões em resposta às necessidades e situações que podem mudar. Interpretar na prática as propostas de novas políticas é provavelmente exigir a reforma de leis e instituições nacionais. Incorporar alguns dos princípios da GIRH na política de recursos hídricos e alcançar o apoio político para tal pode ser um desafio, como acontece no caso de decisões difíceis (por exemplo, realocação de direitos à água). Não é surpresa, pois, que as grandes reformas legais e institucionais não tenham acontecido, salvo quando aconteçam sérios problemas de gestão da água (Gupta, J.; Leendertse, K.: 2005).

1.8 Leituras sugeridas

Global Water Partnership, GWP. 1999. TAC Background paper no. 43, The Dublin Principles for Water as Reflected in a Comparative Assessment of Institutional and Legal Arrangements for Integrated Water Resources Management. GWP, Estocolmo, Suécia. Global Water Partnership, GWP. 2000. TAC Background paper no. 4, Integrated Water Resources Management. GWP, Estocolmo, Suécia. Global Water Partnership, GWP. 2003. TAC Background paper no. 7, Effective Water Governance. GWP, Estocolmo, Suécia. Global Water Partnership, GWP. 2005. Catalyzing Change: A handbook for developing integrated water resources management (GIRH) and water efficiency strategies. Global Water Partnership, Technical Advisory Committee (TAC). Estocolmo, Suécia. The World Conservation Union, IUCN. 2004. IUCN Environmental Policy and Law paper no. 51. Water as a human right? IUCN publications, Reino Unido.

8 Nota de Revisão. Regras de costume são previstas no sistema legal anglo-saxão. No caso de países do

sistema germanista, há necessidade de previsão legal expressa em se tratando de normas dispondo sobre bens de dominialidade pública, como ocorre no Brasil (Lei nº 9.433/97).

Quadro 1.3 Reformando as leis? Pontos a considerar:

Ao iniciar o processo de mudança, considere:

Que mudanças devem ocorrer para se alcançar as metas estabelecidas?

Onde é possível mudar, dada a situação social, política e econômica atual?

Qual a sequência lógica da mudança?

Que mudanças precisam acontecer primeiro para tornar possíveis outras mudanças?

Correntes do Direito 9

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Capítulo 2

Conceitos para uma Estrutura Legal de GIRH

Meta

A meta deste capítulo é esclarecer a estrutura legal básica da GIRH, seus conceitos e princípios.

Objetivos do Aprendizado

Após o estudo deste capítulo, os participantes: Serão capazes de descrever as principais características que fundamentam

a GIRH; e Reconhecerão como as leis sobre a água e as estruturas legais devem

incorporar tais fundamentos para facilitar a implementação da GIRH.

2.1 Introdução

Um profundo entendimento de diversos conceitos e princípios da GIRH é essencial se quisermos estabelecer uma base firme para estruturas legais e para a legislação sobre a água e facilitar as mudanças nas formas de gestão dos recursos hídricos. Como vimos no Capítulo 1, a GIRH não é um modelo padrão ou uma receita, mas o processo de implementação de um paradigma de gestão da água. O paradigma está baseado no entendimento geral de que alguns conceitos e princípios são condições necessárias para mudar a forma da gestão dos recursos hídricos. Este capítulo descreve alguns desses conceitos e princípios básicos, como: gestão holística; sustentabilidade; equidade; equilíbrio de gênero, valor econômico da água e governança. No final do capítulo está uma lista de perguntas a respeito do local de origem dos participantes, que devem respondê-las depois da leitura dos Capítulos 1 e 2.

2.2 Gestão Holística

As abordagens tradicionais de gestão geralmente eram guiadas por diversas visões setoriais. Em vários países, a administração da água foi conduzida por organizações distintas; como resultado dessa administração fragmentada surgiram múltiplas políticas e regulamentações sobre o assunto, sem reconhecer a natureza do ciclo da água e a relação entre os diferentes usos do recurso. O processo de GIRH está baseado em uma abordagem holística; é importante levar em consideração diferentes usos da água e se concentrar nas inter-relações entre diferentes usos setoriais. Essa abordagem reconhece o fato de que existem diversos interesses que competem entre si quanto ao uso e a alocação da água (Gupta, J.; Leendertse, K.: 2005) e permite a criação de estratégias coerentes para o uso sustentável dos recursos hídricos. A abordagem da GIRH advoga que devem ser consideradas, prioritariamente, as necessidades humanas, mas também os usos industriais, agrícolas e as demandas do meio ambiente em conjunto e de forma balanceada. Nesse

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contexto, as leis se tornam uma ferramenta essencial para regulamentar essas necessidades que competem entre si e as inter-relações entre os usuários.9 Uma lei orientada nos princípios de GIRH deve considerar as múltiplas perspectivas a serem regulamentadas a nível nacional, regional e local. Questões ligadas à competência, cooperação e distribuição de tarefas entre as diferentes autoridades em uma bacia hidrográfica são necessárias para melhorar a cooperação e a partilha de informações. Com uma abordagem holística, os orçamentos são melhor distribuídos, compartilhando-se esforços e benefícios. Entretanto, é necessário reconhecer a possível existência de conflitos entre grupos de interesses. As leis devem se antecipar ao fato, criando instrumentos específicos para conciliação, negociação e participação. As decisões devem ser tomadas por uma autoridade da bacia hidrográfica legalmente estabelecida e o planejamento deve ser determinado considerando estruturas legais existentes (Cepal, 1995).10

2.3 Sustentabilidade

A meta geral da GIRH é a sustentabilidade, que precisa ser acompanhada pela equidade social e pela eficiência econômica (Cap-Net, PNUD, AMA: 2005). A sustentabilidade é um conceito transversal, considerado natural, sem que normalmente se pense profundamente no assunto

A Comissão Brundtland, formalmente Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento. (UNCED), (em inglês World Commission on Environment and Development - WCED), em 1983, colocou a atenção das Nações Unidas no conceito de desenvolvimento sustentável definido como “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades”. O campo do desenvolvimento sustentável pode ser conceitualmente dividido em: sustentabilidade ambiental, econômica e sociopolítica. (Cap-Net, PNUD, AMA: 2005).

9 Nota de Revisão. No Brasil, conforme a Política Nacional de Recursos Hídricos, as necessidades humanas e

sedentação animal são usos prioritários da água e o balanço entre os demais usos dependerá dos usos prioritários e aqueles preponderantes em determinado corpo hídrico, seja bacia hidrográfica ou água subterrânea. 10

Nota de Revisão. No caso do Brasil, a bacia hidrográfica é a unidade territorial de planejamento e gestão das águas (Lei nº 9.433/97 – Política Nacional de Recursos Hídricos).

Quadro 2.1. A gestão holística na “Agenda 21”

A Agenda 21 é um plano de ação abrangente, a ser adotado de maneira global, nacional e local pelas organizações do Sistema das Nações Unidas, pelos governos e grupos significativos em todas as áreas em que haja impacto humano o sobre o meio ambiente. Resultado da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (em inglês Conference on Environment and Development - UNCED), que aconteceu no Rio de Janeiro, Brasil,entre 3 e 14 de junho de 1992, a Agenda 21 foi adotada por 178 governos .

Seu Capítulo 18 considera a importância de se realizar uma gestão política dos recursos hídricos: “A gestão holística da água doce como um recurso finito e vulnerável, e a integração de planos setoriais de água aos planos e programas dentro de políticas econômicas e sociais nacionais são medidas de importância fundamental para a década de 1990 e adiante. A fragmentação das responsabilidades pelo desenvolvimento de recursos hídricos entre organismos setoriais se está constituindo, no entanto, em um impedimento ainda maior do que o previsto para promover a gestão integrada dos recursos hídricos. São necessários mecanismos eficazes de implementação e coordenação".

Fonte: Agenda 21, capítulo 18, parágrafo 6.

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Desde então, numerosos documentos internacionais incorporaram o conceito. Entre outros, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio Declaration on Environment and Development) (1992) proclama em diferentes princípios a necessidade de se alcançar o desenvolvimento sustentável como objetivo principal. A Corte Internacional de Justiça no caso Projeto Gabcíkovo-Nagymaros reconhece a sustentabilidade e a proteção do meio ambiente. O conceito foi endossado pela Declaração de Nova Déli de Princípios de Direito Internacional Relativos ao Desenvolvimento Sustentável (International Law Association New Dheli Declaration on Principles of International Law Relating to Sustainable Development) (2002) e na Declaração de Joanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável (The Johannesburg Declaration on Sustainable Development) (2002).

Como também vimos, a sustentabilidade e o desenvolvimento sustentável estão presentes nas principais definições e princípios da GIRH. Para a implementação da GIRH e para que a estrutura legal facilite tal implementação, é importante considerar qual o significado da sustentabilidade para o contexto específico e quais ações (medidas, regulamentos, controles e instrumentos de gestão) devem, então, ser formalizadas. Metas e desafios específicos do desenvolvimento sustentável devem ser identificados, avaliados e incorporados como parte de uma abordagem de GIRH.

2.4 Equidade

Onde há equidade existe uma certeza de que grupos vulneráveis da sociedade não serão excluídos do acesso a bens e serviços básicos. No nosso caso, a equidade se refere ao acesso à água potável e ao saneamento, mas também a um ambiente saudável. E, de uma perspectiva de gestão, também implica a possibilidade de tais grupos serem representados, tendo em conta e participarem das práticas de gestão dos recursos hídricos. Como acontece com a sustentabilidade, o conceito de equidade é complexo e contraditório. E a pergunta permanece sendo como colocá-la em prática? Quais as necessidades a nível de implementação? E o que a estrutura legal deve contemplar? Como a União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (em inglês The International Union Conservation of Nature: IUCN) diz claramente, sem direitos iguais de acesso e controle sobre a água e os recursos da terra, a iniquidade e o conflito vão continuar (IUCN, 2000). A equidade exige a participação em todos os níveis, de todas as pessoas; os grupos de interesse devem ser parte de todo o processo de tomada de decisão para assegurar que suas necessidades, preocupações, problemas e conhecimentos sejam refletidos no processo de GIRH. O conhecimento exigido para aplicar a GIRH não é limitado a dados científicos e a relatórios técnicos; o

Pense nisso As constituições de muitos países incluem a sustentabilidade como meta central. A

questão é como realizá-la. A GIRH é um processo rígido para a sustentabilidade? Qual é a situação em seu país, e como a legislação sobre a água terá um papel para a GIRH e

para o desenvolvimento sustentável?

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conhecimento popular e o tradicional são importantes para garantir a participação na GIRH.(Burton, J.: 2003). A situação dos que se encontram em algum estado de desigualdade social e econômica deve ser reconhecida pela lei, para que tenham acesso a ferramentas para participar e tenham tratamento especial no processo de GIRH. O papel das mulheres é especialmente importante para que se alcance a equidade; a equidade entre gêneros ou de gênero em relação ao uso e à gestão dos recursos hídricos é crucial para resolver potenciais conflitos relativos à água, aumentar a segurança social e melhorar estratégias para a conservação da água, o controle da poluição e a gestão da demanda (UICN, 2000).

2.5 Equilíbrio de gênero

O gênero se refere aos diferentes papéis, direitos e responsabilidades de homens e mulheres e as relações entre eles (Aliança do Gênero e da Água - Gender and Water Alliance - GWA, 2006). A abordagem de gênero tem por objetivo tornar homens e mulheres visíveis em todas as ações planejadas, em todas as áreas e níveis, de forma a alcançar a igualdade (Conselho Econômico e Social - Economic and Social Council ECOSOC, 1997). É largamente reconhecido que a exclusão das mulheres do projeto, do planejamento e da tomada de decisão sobre projetos de suprimento de água e saneamento nos países em desenvolvimento é um grande obstáculo ao seu bem-estar (Aureli, A.; Brelet, C.: 2004). O processo de GIRH, seguindo os princípios de Dublin, exige políticas para concretamente ligar as mulheres a leis que as habilitem e capacitem a participar em todos os níveis dos programas de recursos hídricos, inclusive em tomada de decisões e na implementação. A lei é uma ferramenta necessária para fechar lacunas entre homens e mulheres quanto a condições de acesso à água, oportunidades de participação e outros tipos de iniquidades de gênero. Como exemplo, uma lei pode garantir a participação de uma percentagem de mulheres em papéis de tomada de decisão em diferentes fases da GIRH (planejamento, desenvolvimento, monitoramento). Esse tipo de ação afirmativa pode assegurar a representação das mulheres na gestão dos recursos hídricos. Um bom exemplo aconteceu na Colômbia. O país regulamentou a participação adequada e efetiva das mulheres nos níveis de tomadas de decisão, passando de 11,5% do início dos anos 1990 aos atuais 34%.

Quadro 2.2. Igualdade de gênero

A igualdade de gênero é o processo de avaliação das implicações para homens e mulheres de qualquer ação planejada, inclusive legislação, políticas e programas em todas as áreas e em todos os níveis. É uma estratégia para que as preocupações e experiências de homens e mulheres sejam uma dimensão integral do projeto, da implementação, do monitoramento e da avaliação de políticas e programas em todas as esferas políticas, econômicas e sociais, de modo que homens e mulheres possam se beneficiar igualmente e que a iniquidade não se perpetue.

(GWA: 2006).

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2.6 Valor econômico da água

Uma vez alcançada uma decisão pública de respeito a como abordar a questão do valor econômico da água e todas as suas implicações, será necessário aos responsáveis pelas decisões implementá-las por meio da legislação.11 Como consequência, será necessário avaliar se o sistema legal existente o permite. Nos casos em que o sistema legal não fornece os instrumentos específicos exigidos para a implementação da GIRH, será inevitável alterar a legislação existente. Uma estrutura legal vai fornecer uma concepção institucional, coordenação, e criar as condições adequadas para colocar em prática o sistema acordado pactuado e elaborar todos os instrumentos adequados.

2.7 Governança

Atualmente, o consenso internacional a respeito de esforços fracassados para que todos tenham acesso à água e saneamento está reduzido a um problema de governança (Solanes, M.; Jouravlev, A.: 2006; Programa Mundial de Avaliação da Água- World Water Assessment Programme: 2006). Por isso, a política pública precisa considerar os mecanismos, processos e instituições por meio dos quais os cidadãos e os grupos articulem seus interesses, exerçam seus direitos legais, cumpram suas obrigações e medeiem suas diferenças. Uma extensa revisão a respeito da importância da governança da água está no Capítulo 7. De acordo com o PNUD, a governança da água se refere à grande amplitude de sistemas político, social, ambiental, econômico e administrativo que existem para regulamentar o desenvolvimento e a gestão dos recursos hídricos e o fornecimento de serviços de água em diferentes níveis da sociedade (PNUD, 2005). A Associação Mundial pela Água (GWP) (em inglês Global Water Partnership) definiu os elementos da governança efetiva e o 2º Relatório das Nações Unidas Sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos (em inglês 2nd UN Water Development Report) sugere critérios para essa governança: participação, transparência, equidade, efetividade e eficiência, estado de direito,

11

Ver o estudo de caso apresentado no Capítulo 3: a Política Nacional de Recursos Hídricos – Brasil – Lei 9.433/97

Quadro 2.3. Elementos de Governança

Allan e Rieu-Clarke (2008) identificaram 12 principais elementos de governança como definido pelo PNUD, o Banco Mundial e o Banco de Desenvolvimento Asiático:

Gestão do setor público;

Responsabilidade;

Estrutura legal para o desenvolvimento;

Estado de Direito;

Previsibilidade;

Transparência e informação;

Participação;

Receptividade;

Orientação para o consenso;

Equidade;

Eficácia e efetividade, e

Visão estratégica.

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responsabilidade, coerência, receptividade, integração, considerações éticas (Allan, A.; Rieu-Clarke, A.: 2008). Uma estrutura legal de GIRH precisa contemplar todos os elementos associados com a governança da água para evitar o fracasso. Assim, a legislação precisa estar habilitada a fornecer mecanismos de participação para que a comunidade participe de procedimentos que tenham um impacto direto em suas vidas e atividades diárias As autoridades, as organizações e os indivíduos, sejam dos setores público e privado, responsáveis pela gestão do recurso precisam ter um mandato legal, segundo o qual podem ser considerados responsáveis pelo desempenho inadequado. Isso é o que chamamos responsabilidade e prestação de contas. Em alguns casos, as ações podem ser consideradas violação de deveres ou corrupção. Se a corrupção não é devidamente combatida, e é encorajada pela estrutura legal, muitos recursos valiosos e escassos podem ser perdidos. Os grupos de interesse precisam estar habilitados, não somente podendo tomar parte nas decisões que os afetam diretamente, mas precisam estar bem informados. Em outras palavras, a GIRH exige transparência para avaliar sua governança. A disponibilidade de informações precisa ser protegida pela legislação na forma de ações de transparência ou um instrumento legal equivalente. Entretanto, os grupos de interesse beneficiados pela participação e pela transparência não têm força se não tiverem capacidade para desafiar decisões que podem ter sido tomadas contra a lei. Nesse caso, remédios legais precisam ser um instrumento preciso para desafiar a decisão, em tempo hábil, a um custo que não deve inibir esse exercício. Assim, se os remédios legais existentes na legislação geral de um país não atendem esses critérios básicos, a legislação sobre a GIRH precisa editar uma nova norma para facilitar o acesso à justiça.

Perguntas sobre o lugar de onde você vem

Já tendo estudado os capítulos 1 e 2, você provavelmente pode avaliar a situação no seu país no que se refere à implementação da GIRH e compreender melhor os desafios de ter uma estrutura legal adequada. Algumas das perguntas que você pode querer responder são

Quais são, em seu país, os principais setores envolvidos na utilização dos recursos hídricos e quais as interações entre eles?

Há urgência para gerenciar recursos hídricos de

forma integrada e qual a maneira melhor de fazê-lo? Quais serão os benefícios para os diferentes setores?

Como são afetados os homens e as mulheres

pelas mudanças na gestão dos recursos hídricos?

Considerando as estruturas governamentais do

meu país, quais são as reformas institucionais e legais necessárias para implementar a GIRH e quais são as exigências para que seja eficaz?

A que ponto os conceitos e princípios vistos neste

capítulo estão presentes na atual estrutura legal do seu país (no que se refere à água)?

Qual é a atitude geral na direção da gestão

integrada dos recursos hídricos no meu país e quais são as barreiras setoriais que precisam ser derrubadas antes da implementação da GIRH?

Qual o melhor equilíbrio em termos do

envolvimento dos grupos de interesse? O excesso de envolvimento vai trazer o risco de um processo de tomada de decisões ineficiente? Você pode pensar em alguns mecanismos de representação?

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A legislação é parte da estrutura para a ação. Fornece a base para a intervenção e a ação do governo estabelece o contexto e a estrutura para a ação de entidades não governamentais (GWP: 2000).

2.8 Leituras sugeridas

Learning Together to Manage Together. Improving Participation in Water Management. 2005. HarmoniCop Team. Harmonising Collaborative Planning. European Commission. UN-Water and Global Water Partnership (GWP). 2007. Road mapping for Advancing Integrated Water Resources Management (IWRM) Processes. UN-Water, GWP, Estocolmo, Suécia. United Nations, Economic and Social Council. 2002. The Right to Water (Articles 11 and 12 of the International Convenant on Economic, Social, and Cultural Rights). United Nations, Genebra. Stockholm International Water Insitute (SIWI). Water and Development in the Developing Countries. SIWI, Estocolmo, Suécia.

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Capítulo 3

Legislação Nacional sobre a Água

Meta

A meta deste capítulo é apresentar componentes de estrutura nacional legal e institucional efetiva e tópicos relacionados à implementação de GIRH onde reformas são necessárias.

Objetivos do Aprendizado

Após o estudo deste capítulo, os participantes: Compreenderão a importância da legislação sobre a água baseada nos

princípios da GIRH; Compreenderão as reformas legislativas necessárias para a bem sucedida

implementação de legislação nacional sobre a água baseada nos princípios da GIRH.

3.1 Introdução

O uso da água está passando por profundas transformações com a mudança do foco de gestão de abordagens de gestões setoriais para a intersetoriais, aplicando os princípios de gestão integrada. Tal fato tem consequência de longo alcance para a organização dos setores e quanto às estruturas de implementação da gestão. A GIRH não vai acontecer se a estrutura legal não estiver adequada e se as alterações institucionais necessárias não forem feitas.

Quadro 3.1 Tópicos que ajudam a criar uma estrutura forte de GIRH

Estabelecer a estrutura institucional, inclusive os papéis

legais e as responsabilidades das instituições e suas inter-relações;

Mecanismos de participação dos grupos de interesse na gestão de recursos hídricos;

Mecanismos de resolução de conflitos;

Serviços de água e direitos e responsabilidades associados (direito à água, padrões de serviço, entre outros);

Sistemas de tarifação e de preço da água, incluindo os princípios de justiça, da acessibilidade econômica e da proteção dos mais pobres;

Mecanismos claros para os mercados de água minimizarem os conflitos e o risco de agitação social.

Fonte: Adaptado de García Pachón (2005)

Quadro 3.2 O que é a lei sobre a água? O que é política nacional de recursos hídricos? água?

“A lei sobre a água é composta de todas as disposições que, de uma forma ou de outra, governam os vários aspectos da gestão dos recursos hídricos, por exemplo, conservação da água, uso e administração, controle dos efeitos nocivos da água, poluição, entre outras." O direito das águas pode estar inserido na legislação constitucional, administrativa, civil, criminal, agrícola, mineira, sobre recursos naturais/ meio ambiente /saúde pública do país, além de jurisprudência e opiniões de representantes do mundo acadêmico.

Até recentemente, não havia uma legislação bem definida aprovada por um corpo legislativo (Parlamento) que se chamasse legislação sobre a água. Diversas leis a respeito da água, com o tempo, têm sido elaboradas e aprovadas, visando lidar com os diferentes usos do recurso.

O desafio aos responsáveis pela elaboração de políticas é encontrar um caminho para integrar as diferentes legislações relacionadas à água e desenvolver uma política que contribua para uma efetividade da lei. Nas últimas décadas, a GIRH tornou-se o ponto central em qualquer nova lei sobre a água.

Fonte: Adaptado de Caponera (1992)

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Este capítulo revisa as possibilidades e questões referentes à inserção da política pública das águas em legislação. A Seção 4 apresenta uma ampla discussão a respeito dos componentes da legislação nacional sobre a água, abordando também suas questões relevantes. Podemos aprender muito com as experiências de outros países e com a comparação de casos. As seções 3 e 5 fornecem exemplos de alteração da política e da legislação sobre as águas no Brasil e na África do Sul. Na seção 6, estão algumas recomendações e conclusões para facilitar o processo de construção de uma política pública e legislação nacional.

3.2 A política da água traduzida em normas legais

Em primeiro lugar, uma política nacional de água precisa ter claros objetivos governamentais e dos outros grupos de interesse referentes à GIRH. A legislação sobre a água vai ser naturalmente distinta, dependendo da importância dada ao recurso como direito humano (direito à água), da política referente à privatização ou concessão, água pública ou privada.12 De modo a definir tal política sobre a água, um país precisa ter ao menos uma avaliação superficial de seus recursos hídricos, a relação das exigências presentes e futuras, reconhecerem direitos sobre a água e outros fatores relevantes. Se bem concebida, a política sobre a água deve estar bem refletida na legislação, dispondo sobre fenômenos que não são coerentes e previsíveis com as regras necessárias.

Aplicando os conceitos

Vamos supor que você seja um proprietário de terras em seu país. Um dia, decide cavar um poço para bombear água subterrânea, em área de sua propriedade privada. Você tem o direito a extrair a água? Em outras palavras, você tem o direito ao uso da água? Essa pergunta poderia ser ampliada para: existe um direito à água? Ou mais ainda: a quem pertencem os recursos hídricos? Mesmo que a meta da política da água seja a implementação dos princípios de GIRH, pode não ter impacto considerável se não for traduzida em legislação sólida, com um bom suporte institucional. Em resumo, a gestão eficiente dos recursos hídricos tem que levar em consideração os três mais importantes componentes da GIRH: política, leis e instituições.

12

Nota de revisão. A Política Pública sobre águas deve ser concebida a partir dos pactos entre os diversos atores públicos e privados, sendo uma política de estado e não de governo.

Pense nisso Uma legislação sobre a água incorpora conhecimentos técnicos a respeito da natureza de deve ser aplicável aos casos concretos. Nem a ciência, nem a legislação de águas podem refletir certezas sobre tempos de mudanças climáticas. As características da

água (de superfície ou subterrânea) são tão diversas e variáveis que nós não podemos sujeitá-las a rigores determinantes legais, nem construir um sistema imutável de regras jurídicas fundamentadas, pois que fundamentos em dados científicos relativos e fatos

da natureza como fenômenos naturais podem variar, também as normas legais poderão ser alteradas para atender a questões como direitos de alocação de água para refletir as

realidades cambiantes!

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A legislação deve enfatizar princípios e conceitos baseados na GIRH, como vimos nos Capítulos 1 e 2: gestão holística, sustentabilidade; equidade: equilíbrio de gênero, valor econômico da água e governança. Também é da mesma importância que a legislação esteja afinada com que podemos chamar de questões "técnicas" baseadas na GIRH, como uma abordagem da bacia hidrográfica.13 A estrutura institucional apropriada para uma abordagem de gestão por bacia hidrográfica deve responder a um grupo de questões: como devem os recursos ser desenvolvidos pelo organismo da bacia (comissão, conselho, comitê). Quem faz o quê para quem, e para quem devem prestar contas?

3.3 Componentes de uma legislação nacional sobre a água

A legislação sobre a água, antes de tudo, precisa ser simples e elaborada em termos amplos. Embora tal legislação possa ser alterada, deve ser duradoura e funcionar como base para a intervenção governamental (regulamentações ou outros instrumentos relevantes).14 A legislação nacional sobre a água precisa definir as questões principais, começando com a definição de disposições gerais, levando em consideração os termos utilizados e a aplicação da legislação. A titularidade dos recursos hídricos precisa ser definida, devendo ser abordadas as questões ligadas ao meio ambiente (por exemplo, vazão mínima). É preciso tratar de arranjos institucionais tais como comitês de bacias hidrográficas, conselhos, comissões e agências de bacias. A legislação precisa estipular poderes, competências e responsabilidades, além de direitos, obrigações e papéis dos grupos de interesse (por exemplo, associações de usuários da água, papéis dos gêneros).

13

Nota de revisão. O princípio de bacia hidrográfica com espaço territorial para gestão das águas está conseguindo na doutrina jurídica, em especial, pela Resolução de Helsinki, de 1966, do Instituto de Direito Internacional,cujos fundamentos reportam a casos jurídicos relevantes. 14

Nota de revisão. No Brasil, a gestão das águas está definida por princípios constitucionais, entre os quais o estabelecimento do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SINGREH, a dominialidade dos corpos hídricos (bacias hidrográficas e águas subterrâneas), a competência de normas para legislação sobre águas, a outorga pelo uso da água, que estão reguladas pela Lei de Política Nacional de Recursos Hídricos – Lei nº 9.433/97.

Quadro 3.3 Regimes Jurídicos da água segundo as Famílias do Direito

Nos últimos 2000 anos, falando de modo amplo, foram desenvolvidas Famílias do Direito que definiram regimes jurídicos diferenciados com respeito à água: romano, germanista (civil law) anglo-saxão, islâmico, hindu e comunista. O sistema anglo-saxão (ou da common law) baseado na interpretação dos juízes (o juiz faz a lei) determinava que a propriedade da água é da comunidade, incluindo a água da chuva e a subterrânea. No direito romano, os recursos hídricos eram de três classes: água bem de todos, da comunidade e da municipalidade. No sistema germanista (civil law) houve influência do direito romano. No direito islâmico (Shari’a) a água corrente era propriedade de todos, as pessoas tinham duas classes de direitos, o direito à água para beber (dessedentação) e o direito à irrigação. No direito comunista (ou Soviético) a água era propriedade do Estado, exceto classes limitadas de água. No direito hindu/direito budista, a propriedade privada da água não pode existir.

A difusão desses regimes legais se espalhou pelo mundo. Entretanto, há ambiguidades entre o direito do povo e a propriedade do Estado. Cada vez mais o recurso se torna bem público (seja propriedade do Estado ou confiado a entidades públicas, podendo-se requerer somente direito de uso (separando a propriedade da terra dos usos da água).

Fonte: adaptado de Gupta, J. and Leendertse, K. (2005).

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Quadro 3.5: Sugestão de essenciais questões essenciais para uma legislação nacional sobre a água / Lei

Introdução (exposição de motivos, com breve resumo sobre princípios e prioridades da política subjacente da água)

Parte I: DISPOSIÇÕES GERAIS

(a) Definição de termos gerais usados na lei (b) Autoridades responsáveis pela imposição da lei Parte II: PROPRIEDADE DOS RECURSOS HÍDRICOS/ CLASSIFICAÇÃO DA ÁGUA (a) Águas superficiais (água pública, da comunidade, privada) (b) Águas subterrâneas (água pública, da comunidade, privada) Parte III: CONSERVAÇÃO E PROTEÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS (a) Proteção do ecossistema e sustentabilidade do meio ambiente (b) Vazão mínima Parte IV: GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS (a) Disposições sobre instituições (gestão por bacia hidrográfica, agência de água) (b) Poderes, competências e responsabilidades (c) Direitos, obrigações e papéis dos grupos de interesse (associações de usuários, papéis dos

gêneros)21

Parte V: REGULAMENTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE ÁGUA (a) Preço da água, qualidade do serviço, águas servidas industriais, padrões técnicos, entre

outros. (b) Parceria público-privada, concessão e privatização (isso não é parte da lei sobre a água) Parte VI: ALOCAÇÃO DA ÁGUA (a) Água doméstica e direito à água (o(s) direito (s) à água deve ser esclarecido na seção sobre a

propriedade – Esta seção se refere aos direitos de uso? (b) Água para agricultura, aquicultura, gestão costeira e água industrial

23

(c) Permissão, licença e autorização (d) Controle de barragens (e) Comércio de água/alocação/transferência Parte VII: RESOLUÇÃO DE CONFLITOS (a) Tribunais (b) Arbitragem e técnicas de RAC

24

Parte VIII: INFRAÇÕES E SANÇÕES (a) Poder de polícia dos órgãos públicos gestores de água (b) Procedimento (c) Penalidades Parte IX: DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS E FINAIS (a) Direitos à água e titularidade dos povos

(b) Cooperação internacional em cursos d´água compartilhados

Ainda devem constar a abordagem regulatória, a priorização de alocação de água, a determinação do âmbito para resolução de conflitos, as infrações, além das disposições transitórias e finais.15 16, 17, 18, 19 20, 21, 22, 23

15

Nota de revisão. A Lei das Águas, no Brasil, data de 1934. O Código de Águas o saneamento tem disposições constitucionais específicas da Constituição Federal de 1988, que determinou à União estabelecer as Diretrizes Nacionais sobre Saneamento, cabendo aos municípios a titularidade dos serviços de suprimento de água, esgotamento sanitário, gestão dos resíduos urbanos e captação de águas pluviais. 16

Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SINGREH. 17

O Brasil é uma federação, com 26 Estados mais ou menos autônomos. 18

Nota de revisão. O Plano Nacional de Recursos Hídricos – PNRH incorporou entre seus princípios a incorporação da perspectiva de gênero em GIRH (Volume I). 19

Nota de revisão. A questão de gênero deve considerar sua incorporação na gestão integrada de recursos hídricos, conforme os princípios da Declaração de Haia de 2000 e da Declaração de Bonn de 2001 (Dublin + 10). 20

Nota de revisão. No Brasil, a governança da água é compartilhada pelos governos federal, estadual e municipal, usuários da água e sociedade civil. A questão é um princípio que deve ser transversal na representação desses grupos de interesse acima citados. Sobre esse tema, sugere-se a leitura do Projeto Marca d’Água. 21

Nota de revisão. O suprimento de água – que é dos usos prioritários para atender ao consumo humano e dessedentação animal – é regulado pela Política Nacional de Saneamento. Lei 4.115, de 2005. 22

Nota de revisão. Os múltiplos usos são extensivos à geração de energia elétrica, que contribui com os “royalties” estabelecidos na Constituição Federal de 1988 (artigo 20, para a sustentabilidade financeira do SINGREH. Ver sítio virtual da Agência Nacional de Energia Elétrica (www.aneel.gov.br).

20 Correntes do Direito

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Quadro 3.6 A abordagem participativa: o processo de preparar a legislação sobre a água na África do Sul O processo de preparar uma legislação nacional sobre a água exige uma extensa abordagem participativa de todas as camadas da sociedade. Com isso, ficam asseguradas aos cidadãos do exercício pelo direito de influir na legislação e o devido empoderamento dos grupos de interesse. Este estudo de caso mostra como é possível se realizar uma abordagem participativa (envolvendo usuários, planejadores e elaboradores de políticas em todos os níveis) no processo de preparar a legislação sobre a água. A Lei Nacional de Águas da África do Sul No. 36 (de 1998) é um exemplo. Foi promulgado em agosto de 1998 e os desafios foram os seguintes (Stein, nd):

o acesso e a distribuição de direitos à água foram determinados, durante o regime do apartheid, em bases raciais;

distribuição desigual do acesso a condições sanitárias e adequado saneamento;

não foi considerado o direito à água;

chuvas irregulares no tempo e no espaço, cheias e secas;

uso ineficaz e abusivo da água;

degradação ecológica e poluição da água;

imperativos constitucionais da nova democracia ; e

conflito geopolítico regional quanto ao acesso à água.

Todas as camadas da sociedade tiveram a oportunidade de contribuir para a elaboração do Projeto de Lei da Água. O sucesso de revisão do projeto de lei é atribuído à importância da forte vontade política. Em 1994, o Ministro para Assuntos de Água e Floresta nomeou uma equipe de consultores composta de pessoas de diferentes origens raciais, políticas, culturais e de gênero. Por meio do Ministro, a equipe deu orientação à equipe de elaboração do projeto. Em março de 1995, o processo de revisão começou com um documento intitulado “Você e seus Direitos à Água”, publicado pelo Ministério para Assuntos de Água e Floresta. O documento pedia ao público contribuições valiosas para o desenvolvimento da política.Revogou os fundamentais princípios e disposições da estrutura legal então existente, e também contextualizou a legislação em vigor com sua origem e desenvolvimento histórico. Uma comparação da estrutura legal de alguns países selecionados também foi apresentada. Como resultado do clamor público por essa revisão, em abril de 1996, publicou-se, para comentários, o documento "Princípios Fundamentais e Objetivos para uma Nova Legislação de Águas na África do Sul” (“Fundamental Principles and Objectives for a New Water Law in South África”). Tais princípios concentravam a atenção nas áreas primárias de gestão de recursos hídricos, exigindo uma reforma urgente. Depois de numerosas revisões decorrentes de reuniões para amplas consultas formais, e uma vez finalizados, os princípios foram aprovados pelo Gabinete depois de uma série de reuniões e processos.

A legislação sobre a água deve conter as diretrizes apropriadas e fornecer uma estrutura para ser desenvolvida posteriormente por meio de regulamentações ou outros instrumentos relevantes que possam ser modificados e adaptados para atender às mudanças e aos casos concretos. Na elaboração da legislação sobre a água é importante considerar: A comparação da legislação sobre a água e experiências nacionais de países

selecionados deverá ser feita antes e durante o processo de elaboração. A legislação sobre a água deve ser aceita pela sociedade e aplicável em

termos administrativos. A legislação sobre a água precisa ser flexível para considerar e se adaptar às

mudanças de circunstâncias ambientais, sociais, entre outras. As relações entre terra e água (quantidade e qualidade) devem estar

refletidas na legislação. Os direitos existentes sobre água e a titularidade de povos tradicionais devem

ser revistos de forma cuidadosa, criando-se disposições transitórias. A legislação nacional sobre a água precisa levar em consideração

convenções internacionais.24

23

Nota de revisão. A gestão das águas é a gestão dos conflitos. No Brasil, as questões de disputa entre os múltiplos usos são de competência dos comitês de bacia, Conselhos Estaduais, Conselho Nacional de Recursos Hídricos – CNRH. Os recursos a outros fora de resolução de conflito está submetido às regras constitucionais. 24

Nota de revisão. As convenções internacionais das quais os países são partes.

Correntes do Direito 21

3

3.4 Conclusão

Este capítulo mostrou que as reformas precisam ser feitas para o sucesso da implementação de GIRH. A legislação sobre a água tem múltiplas camadas, que refletem as diferentes dinâmicas nacionais, mas com influências similares frequentemente. É comum que uma boa legislação sobre a água não seja compreendida ou aceita por políticos ou cidadãos. A reforma institucional precisa ser feita com uma abordagem participativa e de consultas, envolvendo arranjos formais e informais, para desenvolver o entendimento e o controle do processo de mudança. Os pontos principais para esboçar uma legislação sustentável sobre águas poderiam assim ser resumidos: As regras devem ser consistentes, coerentes e obedecer ao disposto em

acordos internacionais de investimento (Proteção do investimento estrangeiro);25

Tendência a usar terminologia que tem sido aplicada em precedentes controvérsias, e o desejo de eliminar incertezas quando mais de uma lei relativa a águas podem estar envolvidas;

A legislação deve conter diretrizes, facilitando a conciliação entre os interesses que competem dentro de uma estrutura adaptável às circunstâncias em mudanças – econômicas, ambiental e social, entre outras.

Implementação da GIRH: algumas perguntas

Ao final deste capítulo, considere as seguintes perguntas em relação a seu próprio país, onde a GIRH precisa ser posta em vigor e implementada: Que componentes devem ser considerados na elaboração de projeto

baseado em GIRH? Como dividir as responsabilidades entre as diferentes autoridades

competentes (considerando planejamento, monitoramento e permissão)? Como deve ser determinado um mecanismo de coordenação entre essas autoridades?

Que tipo de sistema de monitoramento deve ser estabelecido em lei? Quem deve ser o responsável pela implementação desse sistema? Existem entraves?

A lei deve desenvolver um sistema de informações para facilitar a coordenação e a troca de informações? E que tipo de informação deve abranger? (Ênfase na importância de um inventário dos corpos de água doce, suas características, sistema ecológico, impactos gerados pelas atividades humanas, análise dos usos da água atuais ou no futuro)

Como você faria o monitoramento da implementação da GIRH?

25

Nota de revisão. No Brasil, a Política Nacional de Recursos Hídricos não dispõe sobre matérias além das relativas à implementação dos princípios de gestão integrada de recursos hídricos. Investimentos estrangeiros são objeto de legislação própria e os acordos internacionais somente têm força de lei quando incorporados ao ordenamento jurídico nacional, conforme processo definido na Constituição Federal.

22 Correntes do Direito

3

3.5 Leituras sugeridas Burchi, S. and D’Andrea, A., 2003. Preparing national regulations for water resources management, FAO Legislative Study No. 80, Roma. Salman M. A. Salman and Siobhán McInerney-Lankford. 2004. The Human Right to Water. Legal and Policy Dimensions. The World Bank. Washington. DC, EUA. Salman M. A. Salman and Siobhán McInerney-Lankford. 2006. Regulatory Frameworks for Water Resources Management. A comparative study. The World Bank. Washington. DC, EUA.

Leitura sugerida em português: Kloske, Izabel e Leme Franco, Ninon. Bacias, Comitês e Consórcios Intermunicipais: a gota d’água para um olhar atual sobre o planejamento municipal. In O Direito Ambiental das Cidades, Luman Juris Editora, 2ª edição revista, atualizada e ampliada. 2009. Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Plano Nacional de Recursos Hídricos, Brasília 2006. www.cnrh.gov.br/pnrh

Perguntas sobre o lugar de onde você vem

Considere as seguintes perguntas e reveja qualquer experiência a nível local de seu país:

O quanto é complexa a elaboração de um projeto de legislação nacional sobre a água?

Você pode identificar as ações prioritárias de desenvolvimento de capacidade nesse campo para contribuir para o processo de reforma para a GIRH?

Onde você se coloca na questão da dependência do governo central versus a autonomia local ?

Como, em seu país, as instituições ligadas à água podem se tornar eficientes?

O princípio de gestão por bacia hidrográfica é aplicável no seu país? (Técnica vs. legal)

As atuais estruturas legal e institucional voltadas para o planejamento e a implementação da GIRH? Como? Se não, por que não?

Correntes do Direito 23

4

Capítulo 4

Disposições sobre a Água Baseadas no Costume

Meta

A meta deste capítulo é examinar a existência, na comunidade ou a nível local (povos nativos, grupos étnicos, moradores de cidades pequenas) de disposições baseadas no costume e sua contribuição para melhorar a gestão dos recursos hídricos.

Objetivos do Aprendizado

Após o estudo deste capítulo, os participantes: Conhecerão a importância do pluralismo social; Indicarão como uma disposição baseada no costume pode ser integrada à

legislação se você deseja reconhecê-la legalmente.

4.1 Introdução

O paradigma da GIRH, que corrobora as atuais reformas ligadas à água em muitos países, está baseado principalmente no uso de determinações escritas (sistemas formais) para regulamentar o uso dos recursos hídricos. Entretanto, diversos países operam sob um sistema social plural, em que diversas disposições baseadas no costume (sistemas informais) são adotadas na implementação da GIRH. Este capítulo começa com uma breve abordagem do pluralismo social, a estrutura teórica na qual a discussão se baseia. A Seção 3 descreve a gestão dos recursos hídricos sob a ótica do pluralismo social. A Seção 4 ilustra a gestão da água nas disposições baseada no costume, como usada em Aflaj (Sultanato de Omã) e no Tribunal das Águas (Water Court) (Espanha).

Quadro 4.1: Disposições gerais de normas do costume e arranjos de água baseados nos costumes As disposições gerais baseadas em costumes utilizam regras não escritas e flexíveis, ou normas que regulam toda uma sociedade. Tentam respeitar as tradições que passaram de geração em geração. Originalmente uma grande parte das leis da maioria das sociedades foi derivada de costumes. Entretanto, as disposições específicas de costumes são as regras de conduta, que prevalecem em um lugar específico ou entre uma determinada classe do povo em um dado país. As disposições ligada à água baseadas no costume são uma subcategoria de disposições espec´ficas baseadas no costume. A maioria dessas disposições cuida da titularidade da água na comunidade, criando " direitos comunitários" à água. Essas práticas normalmente são regras não formais.

Pense nisso Quanto a GIRH pode ser participativa quando isto depende apenas de determinações

escritas e negligencia costumes nos quais se baseiam algumas pessoas da comunidade ou um grupo a nível local? Quais são as ligações entre sistemas formais, costumes e a

GIRH?

24 Correntes do Direito

4

Um breve resumo na Seção 5 apresenta lições aprendidas com a adoção de normas e costumes e, na Seção 6, estão listados os prós e contras de tal abordagem.

4.2 Pluralismo social: uma estrutura teórica

A conceptualização dos arranjos baseados no costume na Ásia, na América Latina e na África tem origem nas políticas coloniais. Foi criado pelos governos das colônias para se referir a uma espécie de disposição tradicional subordinada. O poder colonial via as disposições baseadas no costume como um sistema estático, mas, na prática, os povos nativos, os grupos étnicos ou moradores de vilarejos as usavam tais regras com grande liberdade e flexibilidade. Era um sistema dinâmico porque dependia de circunstâncias específicas que afetavam as pessoas. Isso tornou a codificação um desafio. Como percebido por Meinzen-Dick e Pradhan (2001), os responsáveis pela elaboração de políticas são muitas vezes influenciados por abordagens referentes a direitos como unitários e fixos, e não diversificados e mutantes. Isso também acontece em diversos países, onde o governo, instado por pressão crescente nos recursos hídricos, tem feito esforços para tentar elaborar uma legislação sobre águas para gerir a utilização do recurso por diferentes usuários, ou seja, alocar o direito à água, legalizar, conceder, modificar controlar a alocação de água; proteger os direitos à água já existentes e punir judicialmente os infratores.26 Apesar de o governo normalmente se basear em disposições escritas, estudos mostraram o importante papel de disposições "formais' e "informais" em normas, organizações e práticas reais em relação à terra e à gestão da água. A interação entre disposições formais e informais é bem entendida por Meinzen-Dick e Pradhan (2001), que notaram que muitas concepções de direitos de propriedade se concentravam apenas em disposições formais estáticas, ignorando outras múltiplas camadas sociais. O artigo fala de implicações do “pluralismo legal” para a gestão de recursos naturais, ressaltando que muitos conceitos ignoraram a coexistência e a interação entre "múltiplas ordens legais". Entretanto, o conceito de "pluralismo legal" de alguma forma é confuso e desorientador, já que as disposições baseadas no costume nem sempre podiam ser qualificadas de "legais". (isto é, de acordo com a lei ou a ela pertencente).

26

Nota de revisão. No Brasil, a Política Nacional de Recursos Hídricos estabelece mecanismos para que haja a mediação entre os diversos usos que se faz, principalmente nos comitês de bacia. Diz-se que gestão de água é gestão de conflitos. A palavra rival, do latim rival – rivalis, tem sua etimologia como aquele que usa a água do rio.

Quadro 4.2 Pluralismo Social

Não se refere apenas às leis formais e escritas, mas também a disposições religiosas e baseadas em costumes. Essas últimas sempre predominaram a nível local, mas são, de alguma forma, negligenciadas na reforma no setor hídrico implementada sob o conceito de GIRH por razões práticas, legais e políticas.

Correntes do Direito 25

4

Sob essa visão será usado o conceito de pluralismo social, e parece adequado lembrar que uma das máximas da lei diz que as definições são perigosas. Diversos países têm disposições sociais concorrentes e, assim, os recursos da terra e hídricos são regulamentados por diferentes disposições, incluindo as formais e também as regras informais, oriundas de grupos nativos, religiosos, etc. Onde há escassez de água e competição entre os tipos de disposições, a reação típica dos nativos, dos grupos étnicos e moradores de vilarejos é: "Por que vocês acham que esse Direito Romano ou esse Código de Napoleão são mais adaptados à nossa realidade do que a nossa própria experiência e tradição de muitos anos?" É importante considerar que o pluralismo social pode talvez fornecer às pessoas que desenvolverão trabalhos e às agências internacionais uma ferramenta para diagnosticar e implementar projetos sustentáveis. O pluralismo social está-se tornando reconhecido como um direito humano fundamental, o direito de ser diferente (Declaração da Organização das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas - UN Declaration on Rights of Indigenous Peoples - GA/10612 – adotado em 13/09/2007, Convenção da Organização Internacional do Trabalho – OIT (ILO Convention) No. 169 adotada em 27/06/1989 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, Comunidade Andina (Andean Community), Decisões 391 e 486). Há uma crescente rejeição da antes prevalecente premissa de que a unidade nacional tem de surgir às custas da supressão de toda heterogeneidade. Assim, além de sua utilidade analítica, o pluralismo social pode ser usado para desenvolver a adequada legislação sobre a água.

4.3 Gerindo recursos hídricos sob o pluralismo social

Como já observado no Capítulo 3, à legislação nacional sobre a água foi atribuída uma missão centralizadora (o conceito de nação leva a um sistema legal para a água). Mas essa equação de uma nação/um sistema legal para a água não é na verdade descritivo, mas dá direções em cima de suposições a respeito da legislação sobre a água e a sociedade, sendo particularmente irrelevantes no contexto do amplo quadro da legislação como processo social (Ubi Societas, ibi Jus - Onde há sociedade há o direito27). A legislação não está acima da dinâmica social. É o contexto social que dá forma e condições ao papel da legislação. A legislação e o contexto social na qual é aplicada precisam ser observados juntos.

27

Nota de revisão. Princípio construído pelos seguidores de São Tomás de Aquino.

Pense nisso

Como podemos implementar disposições multiculturais relativas à água? Como

podem funcionar efetivamente nas bases?

26 Correntes do Direito

4

Atualmente, alguns Estados enfrentam o desafio de ultrapassar a ideologia do centralismo legal da água. A maioria das sociedades não possui um sistema "legal" consistente e único para ajuda, mas há tantos sistemas quantos são os subgrupos (pluralismo social). Os níveis sociais e a multiplicidade de sistemas sociais para água são usados para descrever essas organizações intermediárias (isto é, tribo, família, linhagens, associações). Cada uma dessas organizações tem autonomia em relação ao mais inclusivo sistema legal (lei do Estado) e, assim, não há uma, mas diversas fontes e formas para a regulação da água. O dilema enfrentado por aqueles ligados à gestão da água a níveis locais tem sido como conciliar as novas instituições a níveis do distrito, da província, do governo central. Eles precisam harmonizar os papéis da lei escrita e as disposições baseadas nos costumes tradicionais (povos nativos). Por exemplo, um sistema de irrigação proposto, oferece um caso interessante em que aparecem normas formais e de costumes. Para a maioria das pessoas na bacia de Rufiji, na Tanzânia (Maganga, 2003), o acesso à terra e à água para irrigação é regulamentado de acordo com os costumes. Por exemplo, nas planícies de Usangu, em muitas situações em que os moradores de vilarejos se auto-organizam em uma associação informal, chama, para construir um sistema de irrigação. Como visto em Odgaard e Maganga (1995), a construção de canais e sulcos de irrigação era controlada pelo chefe, embora uma única pessoa pudesse desviar um curso d’água para satisfazer seus interesses, sem primeiro consultar o chefe, e este poderia proibir a construção ou o uso de tal canal ou sulco. Uma vez construído, o canal ou sulco era de exclusiva propriedade das pessoas que os construíram, até que abandonassem o local, quando a propriedade reverteria ao chefe. Com o tempo, essa disposição tribal baseada no costume sofreu algumas mudanças. Há muito ressentimento entre os habitantes de comunidades quanto às tentativas por parte da recém-criada Junta de Água de Rufiji (Rufiji Water Board) para impor sua autoridade quanto à alocação de água nas planícies de Usangu, uma das áreas sob sua jurisdição. Preocupados pela decisão da Junta de que todos os canais de irrigação deveriam ser registrados e pagar anualmente pelo direito à água, os moradores da comunidade acharam incompreensível estarem agora sujeitos a obrigações das disposições formais. A reação típica foi: "essa

Quadro 4.3: Como lidar com os desafios da Bacia do rio Rufiji ?

Para lidar com os desafios de implementar a GIRH utilizando as disposições baseadas nos costumes, recomenda-se aplicar os princípios da gestão de demanda no nível mais baixo.

Recomenda-se identificar as prioridades da bacia e as funções a serem realizadas pela autoridade da bacia, deixando as funções de gestão em níveis mais baixos, incluindo:

Alocação: canais de irrigação e comitês ou grupos de sulcos podem alocar água, enquanto as comunidades regulamentam o acesso;

Conflitos de acesso podem ser mediados pelos cidadãos seniores da comunidade ou por tribunais formais;

A poluição pode continuar a ser responsabilidade do governo central, que tem laboratórios para executar a função. Mas a função também pode ficar a cargo dos estatutos da comunidade, usando regras próprias que restrinjam o cultivo perto de cursos de água para reduzir o risco de poluição;

Proteção do meio ambiente: sugere-se que tal função seja feita em cooperação entre as comunidades, distritos, divisões e o Conselho Distrital.

Fonte: Maganga, 2003

Correntes do Direito 27

4

água nos foi dada de graça por Deus, e até agora nós a temos usado livremente ... por que agora somos forçados a pagar por ela?” (Maganga, 2003). O exemplo mostra que é comum comunidades marginalizadas não serem regidas pelas por leis escritas (legislação sobre a água). Um número de recomendações são a seguir apresentadas, para vencer este e outros desafios.

4.4 Estudo de casos: gestão de recursos hídricos disposições baseadas no costume

Em diversos países, o acesso à terra e à água para irrigação é regulamentado de acordo com disposições baseadas em costumes, a maioria não escrita e, de certa, forma flexível. A aplicação das disposições do costume, informais e da lei escrita, formal, para guiar a gestão dos recursos hídricos é o foco dos dois estudos de caso. Estudo de caso 1: Aflaj (Omã)

Os Aflaj (sing. Falaj) ou foggaras são considerados os principais sistemas de água tradicionais no Sultanato de Omã. Estima-se que tenha 2.700 anos. Apesar da introdução de poços subterrâneos e de superfície, os aflaj ainda têm o principal papel da irrigação das terras agrícolas do sultanato, assegurando a água potável, a dessedentação de animais e outras finalidades domésticas (ROSTAS/HYD/1/86).

A principal estrutura do Falaj consiste de: o poço mãe, que pode ter de 20 a 60 metros de profundidade, o canal principal, e as colunas de acesso, construídas a cada 50 a 60 m ao longo do canal. O Falaj é conhecido como Qanat no Irã. Um sistema comparável ainda existe em muitos lugares, como. Afeganistão (Kariz), Algéria (Foggara), Ilhas Canárias (Galerias), China, Itália (Ingruttato), Japão

Pense nisso Quais são os pró e os contras de codificar ou escrever as disposições de costumes? Por

que é um desafio registrar formalmente os costumes?

Quadro 4.4: Administração do Falaj O Wakeel está encarregado da administração geral do Falaj (distribuição e aluguel da água, gastos do orçamento dos Falaj, resolução de conflitos entre fazendeiros, emergências e outras atividades relativas a tomadas de decisão). No caso de conflitos, o Wakeel ou os proprietários podem reclamar para o xeque. Se o xeque não consegue resolver o problema, o assunto é levado ao governador (Walee), que transfere a matéria para tribunais comuns, que aplicam a lei islâmica (o Islamismo é a fonte oficial do direito em Omã). Um dos Areefs faz o horário da circulação da água (Dawran) entre os fazendeiros ou acionistas da água. O trabalho do Qabidh é controlar as receitas dos Falaj (ações da água, terra, e/ou plantações). Ele também é o "Guarda-Livros dos Falaj”, organizando leilões de venda dos acionistas da água com um leiloeiro (Dallal) - empregado pelo Qabidh. Os deveres do Beedars são limpar o canal e o túnel, fazer o conserto de pequenos avaria em pedras ou paredes. Geralmente, o aluguel da água representa a maior parte das receitas dos Falaj. As receitas são usadas para operar, manter e fortalecer o sistema, além de lidar com emergências como enchentes ou seca.

Fonte: Majzoub, 2005

28 Correntes do Direito

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(Manibo, Mappo), Coreia (Man-nan-po), Marrocos (Khattara, Rhettara), Iêmen (Felledj).

Cada fazendeiro tem sua própria porção de água, dependendo do tamanho de suas terras e da contribuição para a construção do Falaj. Embora a maioria dos Aflaj seja de propriedade dos fazendeiros, alguns são, no todo ou em parte, propriedade do governo.

No alto do Falaj, onde o canal é aberto, a água potável pode ser extraída (chama-se Sharia). Depois das instalações para beber água, lugares para o banho dos homens, depois lugares para banho de mulheres e crianças, a água passa pelos fortes/ castelos, mesquitas, até chegar a Mughisla para a lavagem dos mortos. No alto do Falaj, onde o canal é aberto, a água potável pode ser extraída (chama-se Sharia). Depois das instalações para beber água, lugares para o banho dos homens, depois lugares para banho de mulheres e crianças, a água passa pelos fortes/ castelos, mesquitas, até chegar a Mughisla para a lavagem dos mortos. Em cada Falaj, essas frações da água, hoje, não são propriedade das pessoas, mas alocadas para a comunidade. Depois do uso doméstico, o Falaj é utilizado primeiro para irrigar terras cultivadas permanentemente (a maioria, com tamareiras), depois as terras que são sazonalmente cultivadas (chamadas Awabi). Se vem a seca, os fazendeiros reduzem a área das plantações sazonais. No sistema Falaj de irrigação, a água distribuída é baseada no tempo decorrido. Somente em poucos casos usa-se o volume como critério. O sistema de distribuição é complexo, mas justo e efetivo.

A administração típica de um grande Falaj consiste de um diretor (Wakeel) para gerir o sistema da organização Falaj; dois encarregados (Areefs) para tratar de problemas técnicos, um para serviços subterrâneos, outro para serviços na superfície, um tesoureiro (Qabidh ou Amin Al Daftar) para regulamentar os aspectos financeiros, um leiloeiro (Dallal) para ajudar o tesoureiro com a venda das ações de água, e trabalhadores diários (Beedars). O chefe (xeque) dá a função ao Wakeel depois de uma recomendação dos

Quadro 4.5: Por que o sistema Falaj funcionou tão bem?

A água é considerada uma fonte de vida na sociedade de Omã, e o Aflaj têm um papel importante na sustentação da vida. Assim, respeitar a organização do Falaj é uma necessidade para manter e guardar a principal fonte de vida.

O sistema Falaj é gerido e mantido por comunidades locais, por meio de um sistema administrativo consagrado pelo tempo, que faz parte de uma estrutura social derivada da interdependência e de valores da comunidade. Com o advento do Islamismo, esse sistema hidropolítico tornou-se um contrato social profundamente enraizado em princípios religiosos.

O sistema se baseia na sacrossanta congregação religiosa dominante; no respeito às tradições ancestrais; na lealdade tribal no respeito humano básico, pessoa a para pessoa, a família a para família, família a para comunidade.

Fonte: Majzoub, 2005

Correntes do Direito 29

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proprietários dos Falaj. A venda de ações da água para um ciclo hídrico ou um ano acontece em leilão aberto. O governo de Omã de forma regular toma providências para preservar o sistema Aflaj. A lei mais recente sobre a conservação de recursos hídricos foi promulgada pelo Decreto Real n° 29/2000 (15/ 04/2000), que revogou o Decreto Real n° 82/88. Cinco meses depois, uma ordem ministerial foi editada para organizar os poços Aflaj. Seu capítulo 5 regulamenta a outorga de permissões de Aflaj (artigos 29 e 30). Isso ilustra como as disposições formais podem interagir com as baseadas nos costumes.

Estudo de caso 2: O Tribunal das Águas (Espanha)

O “Tribunal de las Aguas de la Vega de Valencia”, mais conhecido como “Tribunal de las Aguas”, está entre as mais antigas instituições europeias informais. Está encarregado de manter a paz entre os fazendeiros e assegurar uma distribuição justa.

O tribunal se ocupa da área à volta do rio Turia e seus oito canais principais. Na margem direita são cinco, na esquerda três canais.

As Associações do Canal são governadas por antigas Ordenanças. A observação estreita das regras é supervisionada por um Conselho Administrativo renovado a cada dois ou três anos. O chefe do Conselho, chamado “oficial”, é eleito pelos membros da Associação de Irrigadores, e deve cultivar as próprias terras, de uma dimensão suficiente para que ele ali viva, deve

Quadro 4.6:Distribuição da Água

Para a distribuição da água de Turia, aplica-se uma fórmula simples e eficiente: todos os fazendeiros que recebem água de um canal são os proprietários comuns da água fornecida; a água é concedida na proporção da terra de cada um. Agregados de toda a terra irrigada, do canal principal por meio de um sistema de canais menores, formam o que é conhecido como uma Associação de Irrigadores. Em tempos de pouco fluxo, usa-se uma unidade variável volumétrica inventada, a "fila", que permite uma distribuição justa.

Fonte: Majzoub, 2005

Quadro 4.7: Organização do tribunal

Devemos a organização dessa instituição aos Califados de Córdoba (Abd El-Rahman III e Al-Hakem II). O Tribunal é composto de oito oficiais. As razões das acusações podem ser: roubar água em tempos de escassez; quebra de canais ou muros; excesso de alijamento de água em campos vizinhos; alteração dos turnos de irrigação; manter sujos os sulcos de irrigação, ou irrigar sem ser sua vez.

O acusado é convocado pelo administrador do canal para a quinta-feira seguinte. Se ele não comparece, é convocado mais duas vezes; se não se apresenta, a acusação é considerada válida, e ele é sentenciado. Para garantir o máximo de imparcialidade, o Oficial do canal ao qual a pessoa pertença não intervém. Também há uma regra que diz que se o acusado pertence a um canal na margem direita do rio, a sentença é dada pelo oficial da margem esquerda, e vice-versa. Não se pode apelar, e a execução da sentença é assegurada pelo Oficial de Sentença do Canal.

Fonte: Majzoub, 2005

30 Correntes do Direito

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ter reputação de “homem honesto”. A instituição valenciana sobreviveu a séculos de agitação política e ficou melhor com o passar do tempo.

Por trás do tribunal está um modelo de justiça que os valencianos sempre respeitaram; nunca foi necessário apelar para tribunais espanhóis comuns para uma sentença ser cumprida. Esse é outro exemplo de como uma disposição baseada nos costumes pode interagir com a legislação espanhola, que é superior. Esse tribunal espanhol deu origem a tribunais formais das águas em diversos países desenvolvidos.

O que podemos aprender com os casos acima?

Os estudos de caso ressaltam o caráter complementar entre as disposições legais (ou formais) e as baseadas em costumes (ou informais) nos processos de desenvolvimento dos recursos hídricos, na condução dos problemas de gestão da água e na resolução de conflitos. Esses estudos de casos não são de forma alguma apresentados como um "kit universal de soluções" ou respostas prontas para todos os casos, mas como sugestão, sempre útil para conhecer outras experiências. Entretanto, os Estados podem se beneficiar de alguns desses costumes ainda vigentes, consagrados pela tradição. O uso da água permanece influenciado pelas disposições baseadas nos costumes, que aparecem de forma resiliente28 na área da alocação de água. Um ponto-chave é a extensão na qual essas disposições podem ser incorporadas na GIRH. Como já foi visto, pode existir muito ressentimento entre as pessoas na comunidade ou no nível local quando se trata de tentativa de criar uma legislação nacional obrigatória sobre a alocação da água.

28

Nota de revisão. Resiliente: capacidade de um indivíduo possuir conduta sã em ambiente insano ou do indivíduo sobrepor-se e construir positivamente frente às diversidades.

Quadro 4.8: Quais são as principais características do tribunal?

Simples, porque o Administrador ou a parte ofendida está presente, junto com o acusado, e ambos podem apresentar seus argumentos perante o Oficial e apresentar evidências e testemunhas sem protocolos complicados ou fórmulas legais.

Verbal, porque todo o julgamento é oral, desde a acusação, que é apresentada pelo Administrador ou pelo autor, até a sentença, passando pelos interrogatórios (feitos para esclarecer, explicar ou justificar os fatos com a intervenção do Presidente e dos oficiais que interrogam as partes verbalmente)

Rápido, porque as sessões são semanais, o tribunal lida com infrações cometidas desde a quinta-feira anterior. Os assuntos só podem ser adiados por, no máximo, 21 dias, caso o acusado não compareça.

Econômico, porque o julgamento não envolve qualquer tipo de custas processuais, os oficiais não recebem salário ou reembolso. O acusado tem de pagar por despesas de viagem do Administrador ou do oficial de justiça. As indenizações não são despesas processuais.

Fonte: Majzoub, 2005

Correntes do Direito 31

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4.5 Prós e contras de reconhecer disposições baseadas no costume

Qualquer legislação sobre a água deve, de alguma forma, tratar da questão das disposições baseadas no costume utilizadas por grupos a nível da comunidade ou a nível local (povos nativos, grupos étnicos, habitantes do vilarejo/povoado e utilizar com equilíbrio as disposições formais e informais. Na Holanda, há os "waterschappen", comitês da água, um exemplo de disposição baseada no costume que se tornou, de fato, legislação.

Naturalmente, onde as disposições baseadas no costume estão funcionando bem e são fortemente apoiadas pelos usuários da água, devem idealmente formar a base da legislação nacional sobre a água ou, pelo menos, ser incorporadas ao texto legal; os legisladores e responsáveis pela política devem estar atentos a isso.

No entanto, seria pouco apropriado presumir que as disposições informais funcionem sem problemas. As pessoas no nível da comunidade ou no nível local têm suas próprias dinâmicas de poder e, muitas vezes, há divisões por etnia, alianças de clãs, por gênero e por nível de riqueza. Tais divisões podem filtrar o acesso à água e perpetuar iniquidades, ou seja, podem perpetuar padrões sociais e econômicos ou de gênero que contenham elementos retrógrados (por exemplo, proprietários de terra) à conta de possíveis disposições baseadas nos costumes, mas que precisam ser mudadas. As potenciais dificuldades em conciliar um sistema baseado nos costumes e o desenvolvimento de uma legislação moderna sobre a água serão maiores se as disposições informais se aplicarem em apenas uma parte do Estado (talvez áreas rurais, ou até a algumas áreas rurais) ou se tais disposições não funcionam mais para gerir o recurso (por exemplo, como resultado do crescimento populacional, da migração de populações, do aumento da população e da urbanização).

Naturalmente, onde as disposições baseadas no costume estão funcionando bem e são fortemente apoiadas pelos usuários da água, devem idealmente formar a base da legislação nacional sobre a água ou, pelo menos, ser incorporadas ao texto legal; os legisladores e responsáveis pela política devem estar cientes disso.

Múltiplas formas de disposições orais baseadas no costume coexistem e, às vezes, podem entrar em conflito com padrões reconhecidos de direitos humanos (direitos individuais vs. direitos da comunidade) e com a legislação, que deve prevalecer. Uma provável manipulação política pode levar a consequências "indesejadas", como agitação política, ao serem legalmente reconhecidos direitos de grupos minoritários. Além dessas ideias amplas, há problemas em operar duas disposições paralelas (as baseadas nos costumes e as disposições legais). Assim, é comum haver

Pense nisso Podem todas as disposições baseadas em costumes ser incorporadas na legislação de

GIRH? São questões de escala?

32 Correntes do Direito

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dois paradigmas paralelos de gestão dos recursos hídricos, ambos com pontos fortes e fracos. Em alguns casos podem até ser contraditórios. Por exemplo, as disposições baseadas em costumes podem estabelecer iniquidades que remetam as mulheres a uma situação legal secundária, enquanto o paradigma legal pode exigir equidade de gênero. Por outro lado, as disposições legais podem não apoiar as necessidades das comunidades locais. Podem até, sem intenção, deixar em desvantagem os pobres que não têm o acesso necessário a sistemas formais para fazer com que esses trabalhem a seu favor.

Mensagem-chave

O desafio para os governos é tirar o melhor das disposições com base nos costumes e o melhor das disposições legais e criar, no interesse do mais pobre dos cidadãos, um paradigma de gestão da água que atenda às necessidades e à cultura da sociedade. Um passo a frente seria desenvolver uma metodologia para operacionalizar esse desafio, provavelmente na forma de diretrizes ou de uma lista de controle que o governo poderia usar para verificar, compilar e avaliar as disposições formais e informais. Esse desafio é uma questão importante no discurso a respeito da GIRH.

Implementação da GIRH: algumas perguntas

Considere as seguintes perguntas e reveja uma experiência a nível local ou da comunidade no seu país: As atuais disposições baseadas no costume conduzem no sentido de um

planejamento e da implementação da GIRH? Que reformas precisam ser realizadas se você quiser reconhecer

legalmente disposições baseadas no costume? Qual o grau de consenso, implícito ou explícito, no que diz respeito às

disposições baseadas no costume? Quais as principais restrições para estabelecer uma legislação participativa

como parte da GIRH? Quem faz o quê para quem nas disposições baseadas no costume e para

quem prestam contas? As disposições baseadas no costume atenderiam melhor às necessidades

da comunidade? Quais são os desafios de incorporar disposições baseadas no costume na

implementação da GIRH? A legislação nacional sobre a água considera de maneira apropriada as

disposições baseadas no costume? Quais os principais impedimentos para implementar as disposições

baseadas no costume na GIRH?

4.6 Leituras sugeridas

Burchi, S. 2005. The interface between customary and statutory water rights – a statutory perspective. International workshop on ‘African Water Laws: Plural Legislative Frameworks for Rural Water Management in Africa’, 26-28 January 2005, Joanesburgo, África do Sul.

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IP Kyoto Water Declaration FINAL. 2003. Indigenous Peoples Kyoto Water Declaration. Third World Water Forum, Kyoto, Japão, Março 2003 WATER LAW AND INDIGENOUS RIGHTS –WALIR. 2002. Towards recognition of indigenous water rights and management rules in national legislation. Summary of the presentations at the public meeting (7 March 2002) on the occasion of the International WALIR Seminar, 4-8 March 2002, Wageningen, Holanda. Publicações em português Soares, Guido F.S. Direito Internacional do Meio Ambiente- Emergências, Obrigações e Responsabilidades, São Paulo, Atlas,2001; Soares, Guido Fernando Silva Soares, Curso de Direito Internacional Publico, São Paulo, Atlas, 2002 Silva, Jose Afonso da, Direito Ambiental Constitucional, São Paulo, Malheiros Editores, 2003 4ª edição Nascimento e Silva, Geraldo Eulálio- Direito Ambiental Internacional- Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e os Desafios da Nova Ordem Mundial, Rio de Janeiro, Thex Editora, 2ª edição,2002; Brasil, Conselho Nacional de Recursos Hídricos, Conjunto de Normas Legais / Recursos Hídricos, 2009

34 Correntes do Direito

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5

Capítulo 5

Aspectos Legais da Gestão de Recursos Hídricos

Compartilhados

Meta

A meta deste capítulo é rever o papel e a relevância das leis internacionais na promoção da GIRH cooperativa e na prevenção de conflitos relativos aos recursos hídricos compartilhados por países.

Objetivos do Aprendizado

Após o estudo deste capítulo, os participantes compreenderão: como a estrutura internacional legal e institucional interage com a legislação

a nível nacional; a necessidade de reforçar a cooperação em matéria de gestão conjunta dos

recursos hídricos compartilhados, e

a importância e a necessidade do direito internacional tratando dos recursos hídricos compartilhados para a implementação bem sucedida da GIRH.

5.1 Introdução

Mesmo sendo um elemento importante no contexto de um ambiente propício para a GIRH, a nível nacional, a legislação enfrenta barreiras. Muitas vezes, o problema não é a falta de legislação adequada, mas a implementação e a aplicação inadequadas, resultantes, em geral, da falta de vontade política, de um sistema institucional insuficiente, e de cooperação técnica. Problemas similares ocorrem a nível internacional, em que a situação é ainda mais complicada. A GIRH transfronteiriça é um processo complexo, com dimensões políticas, gerenciais e técnicas, envolvendo conflitos de interesse que precisam ser mediados e, sem dúvida, uma governança efetiva da água é crucial para a sua implementação. Este capítulo começa com uma visão geral do direito internacional. Seguem-se suas fontes e uma perspectiva sobre o direito internacional relativa aos cursos de água, e uma seleção das principais características da Convenção sobre o Direito dos Usos dos Cursos de Água Internacionais para fins distintos da Navegação, de 1997. Diante da aplicação em cada país, o capítulo continua ilustrando a interação entre as estruturas legais internacionais e institucionais a nível nacional (aspectos internacionais da gestão da água) e o estudo de caso da bacia do Nilo.

5.2 O direito internacional em contexto

O direito internacional é o conjunto de princípios e regras que os Estados utilizam para regular as relações Estado-Estado. As normas legais internacionais são desenvolvidas por pactos entre os Estados. O que distingue o direito internacional do direito nacional é que o último é criado e imposto pelos Estados, primariamente, para gerir suas relações em diversas áreas, enquanto o domínio

36 Correntes do Direito

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do direito nacional se refere às questões que ocorrem dentro de suas fronteiras, com o objetivo de gerir as relações entre grupos de interesse. O direito internacional, enquanto interrelacionado com o nacional, do qual depende para a implementação interna, opera como um sistema de direito separado, com suas regras e mecanismos próprios. O direito internacional é principalmente derivado de acordos expressos estabelecidos entre Estados, chamados geralmente de tratados (bilateral, tendo dois Estados como partes, ou multilateral, com mais de dois) e de fontes como as regras do direito consuetudinário – ou não escrito –, do direito internacional, de princípios gerais do Direito e de outras fontes subsidiárias. As normas de costume internacional é uma regra legal que evoluiu da prática costumeira dos Estados (correspondência diplomática, declarações dos representantes do Estado nas organizações e conferências internacionais, para citar algumas), geralmente na ausência de acordos formais. Para se tornar uma regra obrigatória do direito consuetudinário internacional, deve haver uma prática geral demonstrando que o Estado entender estar legalmente solicitado a se conformar à norma de costume em um tópico específico. No entanto, o costume internacional é, por natureza, impreciso e, portanto, aberto a interpretações divergentes. Os princípios gerais do Direito são aplicados frequentemente não somente na ausência de norma convencional ou de costume, e também para esclarecer e interpretar a norma legal quando esta é obscura, ambígua, ou controversa. Esses princípios não precisam existir nos sistemas jurídicos de todas as nações. Embora os princípios gerais referidos sejam princípios de direito interno, como tal não significa que as leis nacionais, devam necessariamente ser aplicadas a conflitos internacionais, mas que a análise dessas leis nacionais deverá levar à descoberta de princípios gerais reconhecidos por nações civilizadas.29 30

29

Nota de revisão. A Corte Internacional de Justiça é fruto de Tratado Internacional e suas normas decorrem de pactos dos estados soberanos.

Quadro 5.1 As fontes do direito internacional O artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (- em inglês International Court of Justice – ICJ), dispõe:

"1. A Corte cuja função é decidir em conformidade com o direito internacional as controvérsias que forem submetidas, aplicará: a) as convenções internacionais, gerais ou específicas, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; b) costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como norma de direito; c) os princípios gerais de Direito reconhecidos pelas nações civilizadas; d) as decisões judiciais e a doutrina dos especialistas mais qualificados das diferentes nações, como fonte subsidiária para determinar das regras de direito."

O Artigo 38 classifica as fontes de direito internacional como primárias (tratados internacionais, normas de costume internacional e princípios gerais de direito) e subsidiárias (decisões das cortes internacionais de arbitragem e a doutrina jurídica).

Além disso, as fontes da lei internacional são às vezes caracterizadas como "hard law" (vinculantes) e "soft law" (não vinculantes) O “hard law” inclui acordos escritos e vinculantes entre Estados que, espera-se, façam todos os esforços para cumprir com essas disposições. No entanto, a "soft law" refere-se a códigos de conduta, declarações, orientações, recomendações ou resoluções iniciadas ou substancialmente influenciadas por ONGs, ou por instituições internacionais como o Banco Mundial, ou por agrupamentos de Estados, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE (em inglês Organization for Economic Cooperation and Development – OECD), ─ que não são juridicamente vinculantes. Os instrumentos ou documentos tipo “soft law” podem lançar as bases para acordos posteriores juridicamente vinculantes.

31

Fonte: Adaptado de Vinogradov, Wouters, e Jones, 2003.

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Definição de tratado

Um tratado é "um acordo internacional por escrito, celebrado entre estados, e regido pela legislação internacional, quer esteja consignado num instrumento único ou em dois ou mais instrumentos conexos e qualquer que seja a sua denominação específica" (Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969). Se o acordo é entre Estados, por escrito, e se destina a ser juridicamente vinculativo e regido pela legislação internacional, é um tratado.

A maioria dos tratados é feita entre Estados. Algumas outras entidades, como grupos de Estados, como a União Africana ou as Nações Unidas, têm uma personalidade jurídica que considera ser "sujeitos" do direito internacional. Um tratado pode ser celebrado entre um Estado e uma organização internacional, ou entre duas ou mais organizações internacionais, mas não entre um Estado e uma empresa.31

Os tratados obrigam apenas aos países que são seus signatários, em etapas, incluindo: assinatura, troca de instrumentos, ratificação, aceitação ou aprovação, adesão, ou qualquer outro previsto no texto do tratado - estar legalmente comprometido por acordo escrito32. Os tratados podem ser conhecidos por outros nomes como convênios, acordos, cartas, convenções, pactos, alianças, protocolos ou estatutos, mas os nomes diferentes não têm diferença legal.

As consequências para os Estados que infringem as normas de direito e compromissos de tratado internacionais são definidas pelas sob as normas de responsabilidade do Estado. Assim, quando um Estado nega a outro sua cota de um curso d’água internacional, será obrigado a reparar o ato ilícito.33

30

Nota de revisão. Em tese, normas vinculantes são aquelas cujo descumprimento pode ocasionar sanções, em especial de responsabilidade, de parte ou das partes que não a cumprem. Já a “soft Law” ou “o direito verde” são normas que podem ensejar ou não a construção de pactos mais formais ou vinculantes como apresentado neste capítulo. 31

Nota de revisão. Os tratados são de competência dos sujeitos considerados pelo Direito Internacional Público, enquanto as corporações são entidades criadas na forma do direito interno de determinado país. Não são as corporações ou empresas entes soberanos como os Estados ou a tais equiparadas como sujeito do direito internacional com competência para assinar tratados difunde no tratado internacional que a constituir e cujos poderes derivam de atos dos estados soberanos, isto é, de assinar tratados internacionais. 32

Nota de revisão. Em geral, o compromisso dos países em relação aos tratados está definido em suas leis nacionais. 33

Nota de revisão. Para os interessados em aprofundar o conhecimento sobre este complexo tema, a sugestão é recorrer aos estudos sobre responsabilidade internacional do estado, como também dos princípios

Quadro 5.2: O que é um curso d’água? O artigo 2º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito Dos Usos dos Cursos de Água Internacionais para Fins Distintos da Navegação, de 21 de maio de 1997, estabelece: “Para os fins da presente Convenção: (a) “Curso d’água” é um sistema de águas de superfície e

subterrâneas que constituem, por força de sua relação física, um todo unitário e, normalmente, fluem para um destino;

(b) “Curso d’água internacional é um curso d’água que tem partes situadas em Estados diferentes;

(c) “Estado de Curso d’água” é um Estado parte da presente Convenção, em cujo território se situa parte de um curso d’água internacional, ou uma parte que seja uma organização de integração econômica regional no território de um ou mais Estados-Membros, onde se encontra parte de um curso d’água internacional.

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5.3 Direito Internacional dos cursos d’água

Até recentemente, o direito internacional se concentrava principalmente nas águas de superfície compartilhadas. As questões relacionadas aos aquíferos compartilhados eram relativamente ignoradas. O direito internacional que regula os direitos e obrigações dos "Estados ribeirinhos" em relação aos "rios internacionais" é o direito internacional dos cursos d’água (também conhecida como direito internacional dos recursos hídricos). O direito internacional dos cursos d’água tem evoluído tanto por meio de tratados internacionais, como pelo costume, e foi influenciada por outras fontes: princípios gerais do Direito, decisões judiciais, doutrina, resoluções e recomendações das organizações internacionais. Tratados

Os acordos multilaterais normalmente estabelecem uma base legal geral e institucional de cooperação para uma determinada região (Ásia Central, África Austral e Europa), uma bacia hidrográfica (Danúbio, Reno), ou uma parte dela (Nilo, Mekong). Podem ter a forma de um "estrutura" de Tratado (Convenção de Helsinque de 1992), ou conter compromissos gerais e regras e padrões mais específicos. Há um grande número de acordos multilaterais-regionais e a nível de bacia hidrográfica, sendo o principal a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito dos Usos dos Cursos de Água Internacionais para fins distintos da Navegação, de 1997. Entre outros importantes acordos sobre águas estão: Acordo de Plena Utilização das Águas do Nilo (8 de novembro de 1959), Tratado da Bacia do Prata (23 de abril de 1969), Convenção de Proteção e a Utilização de Cursos de Água Transfronteiriços e de Lagos Internacionais, (1992 UNECE (Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa – Convenção de Helsinque), Acordo de Cooperação na Área de Gestão Conjunta, Utilização e Proteção dos Recursos Hídricos Compartilhados (1992, Acordo da Ásia Central sobre a Água, Convenção de Cooperação para a Proteção e sobre o Uso Sustentável do Rio Danúbio (Convenção do Danúbio 1994), Acordo de Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia do Rio Mekong (Comissão do Rio Mekong 1995), Convenção para sobre a Proteção do Reno (Convenção do Reno 1998), e Protocolo de Sistemas de Cursos de Água Compartilhados para o Desenvolvimento na Comunidade da África Austral (Protocolo da SADC de 1995), agora substituído pelo Protocolo Revisto sobre Cursos de Água Compartilhados para o Desenvolvimento na Comunidade da África Austral (Protocolo da SADC de 2000 Revisto), para o desenvolvimento da Comunidade da África Austral.34

Mais de 3.600 tratados internacionais, bilaterais e multilaterais, dispõem sobre as questões relacionadas à água. Os tratados de água podem ter um caráter estrutural que rege todas as águas transfronteiriças, ou tratam de um curso d’água internacional específico ou parte dele; ou podem regular o uso

internacionalmente reconhecidos sobre direito das águas, em especial da Associação de Direito Internacional (International Law Association) – www.ilahq.org. 34

Nota de revisão. Adicione na lista o Tratado de Cooperação da Amazônia, 3 de julho de 1978, que foi o primeiro tratado internacional que adotou o princípio da Bacia de Drenagem como área de gestão dos recursos naturais, incluindo a água, em conformidade com o desenvolvimento do direito internacional, em especial as Regras de Helsinque da Associação de Direito Internacional.

Correntes do Direito 39

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em particular, de um projeto específico ou se preocupar com a proteção e controle da poluição do curso d’água.

Costume Internacional

Se os países que compartilham recursos hídricos não são parte de um tratado aplicável, seus direitos e obrigações são regidos pelo direito internacional consuetudinário35. Como veremos, os princípios básicos da legislação de cursos de água, incluindo, inter alia36, o princípio da utilização justa e razoável, inicialmente surgiram e se desenvolveram como regras do direito consuetudinário.37

Princípios Gerais do Direito

Poderíamos listar dois princípios que ressaltam a limitação dos direitos de um Estado no que se refere a um curso d’água internacional: o abuso de direito e boa vizinhança. O primeiro ocorre quando a atividade de um Estado provoca danos ao território de outro. Baseia-se na máxima do direito romano sic utere laedas tuo ut alienum non (use o seu direito [próprio] de modo a não causar prejuízo a outro). A boa vizinhança se refere a um bom relacionamento entre Estados ribeirinhos.

Decisões judiciais internacionais

Em várias ocasiões, os tribunais internacionais foram convidados a resolver conflitos entre Estados ribeirinhos respeito de águas transfronteiriças. As mais importantes incluem (mas não se limitam a) do rio Oder, do rio Meuse e do Rio Danúbio, como visto no Quadro 5.3:

35

Apenas um conjunto limitado de regras é aceito como direito internacional consuetudinário. O tratado tem mais detalhes e pode abranger áreas que ainda não foram necessariamente aceitas como direito internacional consuetudinário 36

Inter alia – expressa em latim “entre as partes”, o que significa que somente obriga as partes do tratado. 37

Nota de revisão. É importante lembrar que na forma como dispõe a Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, já referida no texto, o tratado internacional, enquanto não entra em vigor, pode ser entendido e aplicado como regra de costume internacional.

40 Correntes do Direito

5

Quadro 5.3 Importantes decisões judiciais Rio Oder Na década de 1920, a Corte Permanente de Justiça Internacional PCIJ, antecessora da Corte Internacional de Justiça (CIJ), foi chamada para resolver um conflito sobre direitos de navegação em afluentes do rio Oder, que tinha sido “internacionalizado” para efeitos de navegação após a Primeira Guerra Mundial, nos termos do Tratado de Versalhes. Embora não coubesse à Corte avaliar os outros usos que a navegação, aquela Corte introduziu em sua decisão uma noção relativamente nova: “a comunidade de interesse dos estados ribeirinhos”. Rio Meuse Em 1930, a Corte Permanente de Justiça Internacional PCIJ foi novamente chamada a decidir sobre o envolvido em um conflito de água, desta vez entre a Holanda e a Bélgica, a propósito do desvio de água do rio transfronteiriço Meuse. O impacto da decisão da Corte Permanente de Justiça a respeito da evolução da legislação sobre a água foi um pouco limitada, uma vez que se limitou primariamente nas questões da aplicação e da interpretação dos acordos bilaterais existentes, que estabeleciam o regime, governavam as tomadas d’água do rio. Rio Danúbio O mais recente, e provavelmente o mais importante conflito sobre águas levado à Corte Internacional de Justiça - CIJ é o caso Gabcikovo-Nagymaros (também conhecido como o caso do rio Danúbio), envolvendo a Hungria e a Checoslováquia (numa fase posterior, a Eslováquia, como estado sucessor) . O conflito foi sobre a implementação do tratado bilateral, concluído em 1977, com a finalidade de construção de uma série de represas e barragens em um trecho do rio que atravessa os territórios dos dois países, a Hungria e a Checoslováquia. O projeto foi concebido como uma joint venture com participação igual em termos de investimento e partilha de benefícios futuros, para fins de geração de energia hidrelétrica, e melhoria da navegação e o controle de inundações e do gelo no rio Danúbio. A gama de questões jurídicas com que a Corte teve que lidar foi invulgarmente ampla: desde a vigência dos tratados internacionais, a sucessão de Estados e responsabilidade internacional até a proteção ambiental e direito internacional dos cursos de água. Em essência, o Tribunal decidiu que ambas as partes agiram ilegalmente: a Hungria, abandonando o trabalho no projeto, e terminando unilateralmente o acordo bilateral, a Eslováquia, respondendo às ações da Hungria por meio do desvio para o seu uso e benefício entre 80 e 90 por cento das águas da parte do rio que constitui a fronteira entre os dois países. A Corte também confirmou a validade legal do tratado de 1977, que permitia às partes ajustar o projeto, a fim de responder às preocupações ambientais, e decidiu que a pretensa extinção do tratado pela Hungria não era válida. O regime operacional conjunto de todo o projeto teria que ser reinstalado, e as partes, a menos que acordado de outra forma, teriam de compensar uma à outra pelos danos causados por seus atos ilícitos. Fonte: Vinogradov, Wouters, e Jones, 2003.

A Convenção da ONU de 1997 foi reconhecida pela Corte Internacional de Justiça como uma declaração mandatária dos princípios fundamentais do direito internacional do curso d’água. Uma série de sentenças arbitrais, como o caso do Lago Lanoux, também contribuiu para a evolução do direito internacional nesse campo. Outras incluem, por exemplo, o conflito do rio Helmand entre a Pérsia e o Afeganistão a respeito da delimitação da fronteira e a utilização das águas do rio, o conflito do rio San Juan entre a Costa Rica e a Nicarágua, e o conflito do rio Zarumilla entre Equador e Peru a respeito da delimitação das respectivas fronteiras comuns. Doutrina, resoluções e recomendações das organizações

internacionais

São três as principais teorias postuladas:

(i) A teoria da soberania territorial absoluta (ou “Doutrina Harmon”): Segundo essa teoria, por causa da soberania absoluta exercida sobre o próprio território, cada Estado pode utilizar como quiser as águas de um curso d’água internacional em seu território, sem levar em conta os danos

Correntes do Direito 41

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que possam ser causados a Estados ribeirinhos. Essa teoria, inicialmente defendida pelo Procurador Geral dos Estados Unidos, James Judson Harmon, num conflito pelo direito à água entre os Estados Unidos (estado à montante) e México (estado à jusante), tem tido pouca aplicação na prática internacional. De fato, embora tenha sido também apoiada pela Índia (outro estado à montante) por um tempo limitado, foi rejeitada tanto pelos Estados Unidos quanto pela Índia, que posteriormente entraram em acordo com os respectivos países fronteiriços. (ii) A teoria da integridade territorial absoluta (ou teoria do fluxo natural) Segundo essa teoria, os Estados à jusante têm direito ao fluxo natural de um curso d’água internacional, inalterado em quantidade e qualidade pelo estado ribeirinho superior. Uma interrupção desse fluxo implicaria uma violação da soberania territorial do Estado ribeirinho inferior. Esse caso, que representa uma versão do Estado à jusante da teoria da soberania territorial absoluta, não foi mantido. (iii) A teoria da soberania territorial limitada: Segundo essa teoria um curso d’água internacional constitui um todo unitário, onde a soberania de um Estado ribeirinho é limitada pela de outro Estado ribeirinho. A existência de um novo conceito "a comunidade de interesse dos Estados ciliares" é reconhecida, já que influenciou a evolução do direito internacional dos cursos de água.38

5.4 A Convenção de 1997 das Nações Unidas

A Comissão de Direito Internacional (CDI), o órgão das Nações Unidas responsável pelo "desenvolvimento progressivo do direito internacional e a sua codificação”, foi criada em 1947. A Comissão incluiu o tema “direito dos usos dos cursos de água internacionais para fins distintos da navegação” em seu programa de trabalho na vigésima terceira sessão (1971), em resposta à recomendação da Assembleia Geral da ONU na resolução 2669 (XXV) de 08 de dezembro de 1970. Depois de vinte e três anos de trabalho, a Comissão aprovou o texto final do tratado (Convenção sobre o Direito dos Usos dos Cursos de Água Internacionais para fins Distintos da Navegação) e de uma “resolução a respeito de águas subterrâneas transfronteiriças confinadas”. A Convenção da ONU de 1997 foi aprovada pela Assembleia Geral em 21 maio 1997. A votação foi 103 a favor e 3 contra (Burundi, China e Turquia), com 27 abstenções. No âmbito de uma convenção a respeito de cursos de água internacionais, 103 votos favoráveis parecem constituir um forte apoio. O grande número de abstenções não indica nada de particularmente bom, mas o fato de que apenas três Estados tenham votado contra a resolução indica um amplo consenso na comunidade internacional em relação aos princípios gerais que regem a matéria (Convenção sobre o Direito dos Usos dos Cursos de Água Internacionais para fins Distintos da Navegação).

38

Nota de revisão. Os cursos d’água são fronteiriços ou transfronteiriços e as águas são compartilhadas.

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Quadro 5.4 Esboço dos Artigos da Convenção das Nações Unidas de 1997

Parte I- Introdução

Art.1- Escopo da presente convenção

Art.2- Uso de termos

Art.3- Acordos de curso d’água

Art.4-Partes de um acordo de água

Parte II- Princípios Gerais

Art.5- Utilização e participação justa e razoável

Art.6-Fatores relevantes para a utilização justa e razoável

Art.7-Obrigação de não causar dano significativo

Art.8-Obrigação geral de cooperar

Art.9-Intercâmbio regular de dados e informações

Art.10-Relação entre os diferentes tipos de uso

Parte III- Medidas Planejadas

Art.11-Informação sobre medidas planejadas

Art.12-Notificação sobre medidas planejadas com possíveis efeitos adversos

Art.13-Período para responder à notificação

Art.14-Obrigações do Estado que notificou durante o período reservado à resposta

Art.15-Resposta à notificação

Art.16-Ausência de resposta à notificação

Art.17-Consultas e negociações sobre as medidas planejadas

Art.18-Procedimentos em caso de ausência de notificação

Art.19-Implementação urgente de medidas prevista

Parte IV- Proteção, Preservação e Gestão

Art.20-Proteção e preservação de ecossistemas

Art.21-Prevenção, redução e controle da poluição

Art.22-Introdução de espécies novas ou exóticas

Art.23-Proteção e preservação do meio ambiente marinho

Art.24-Gestão

Art.25-Regulação

Art.26-Instalações

Parte V-Condições Prejudiciais e Situações de Emergência

Art.27-Prevenção e Mitigação de Condições Prejudiciais

Art.28-Situações de emergência

Parte VI-Disposições Gerais

Art.29-Cursos de água internacionais e instalações em tempo de conflitos armados

Art.30-Procedimentos indiretos

Art.31-Dados e informações vitais para a defesa ou segurança nacional

Art.32-Não discriminação

Art.33-Resolução de conflitos

Parte VII- Disposições Finais

Art.34-Assinatura

Art.35-Ratificação, aceitação, aprovação ou adesão

Art.36-Entrada em vigor

Art.37-Textos originais

Anexo: Arbitragem (contendo quatorze artigos, estabelece os procedimentos a serem utilizados, caso as partes, num conflito, concordem em submetê-lo à arbitragem).

Correntes do Direito 43

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A entrada em vigor da presente Convenção certamente reforçará a sua autoridade39. Mas, mesmo que nunca entre em vigor, marca um passo significativo no processo de consolidação, criação, promoção e implementação do direito internacional como norma de costume internacional referente aos cursos d’água. Parece razoável concluir que, mesmo que a Convenção nunca entre em vigor, ao negociar futuros acordos, os Estados vão recorrer às disposições nela contidas como ponto de partida40. A Convenção é composta de sete partes contendo trinta e sete artigos, e pode ser dividida em normas substantivas, processuais, mecanismos institucionais e resolução de conflitos. As regras substantivas normalmente definem as regras de costume internacional ou se referem a regras de tratado que dispões sobre criação, definição e regulamentação de direitos e deveres. A questão da "titularidade" (ou direito legal ao uso das águas de um curso d’água internacional) é a questão fundamental. Trata-se da pergunta "quem tem o direito de usar que água?”.

As regras substantivas primárias são encontradas na Parte II. Incluem a regra que rege "a utilização equitativa e razoável" (artigo 5 º), e a obrigação de tomar todas as medidas necessárias para não causar danos significativos (artigo 7 º). Como os Estados determinam o que é justo e razoável é explicado no artigo 6 º, que estabelece uma lista não exaustiva de fatores a serem considerados na determinação de um uso equitativo e razoável. A convenção impõe às partes a obrigação de "proteger e preservar os ecossistemas" (artigo 20) dos cursos d’água internacionais e de "prevenir, reduzir e controlar a poluição de um curso d’água internacional que possa causar danos significativos a outros Estados de curso d’água ou ao seu ambiente, incluindo danos à saúde e segurança humanas, ao uso das águas para fins benéficos ou aos recursos vivos do curso d’água (artigo 21)”. O dever de cooperar incorporado na Convenção serve como ponte entre as suas regras substantivas e processuais. Para aplicar corretamente a regra de utilização justa e razoável, certos mecanismos de

39 35 ratificações são necessárias. Não foram recebidas ainda. 40

O Protocolo revisto da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) pode ser citado aqui como um exemplo. O antigo Protocolo foi revisto especificamente para colocá-lo de acordo com a Convenção das Nações Unidas e as disposições desta última foram usadas literalmente em quase todas as instâncias.

Quadro 5.6 Panorama das principais regras processuais

1. Dever de notificar

2. Dever de compartilhar dados

3. Dever de negociar

4. Dever de alerter

5. Resolução de conflitos

Quadro 5.5 Panorama das principais regras substantivas

1. Obrigação de evitar a poluição

2. Impedimento da invasão de espécies alienígenas

3. Proteção do meio ambiente marinho

4. Obrigação de cooperar

5. Avaliação de impacto ambiental transfronteiriço

(EIA)

6. Princípio da precaução

7. Princípio do poluidor-pagador

8. Abordagem ecossistêmica

9. Utilização justa e razoável?

10. Dano não significativo?

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cooperação são necessários, incluindo a notificação prévia das medidas previstas, o intercâmbio de informações, consultas e, em certos casos, negociações.

Que regras os Estados do curso d’água devem seguir quando planejam novas obras em águas compartilhadas? Na Parte III, a convenção estabelece um conjunto de regras processuais a serem seguidas pelos Estados quando procuram realizar novas obras. No primeiro caso, devem trocar, em bases regulares, dados e informações disponíveis a respeito das condições do curso d’água, em particular as de natureza hidrológica, meteorológica, hidrogeológica e ecológica e as relacionadas com a qualidade da água, bem como as previsões relacionadas (artigo 9º, 1). No caso de uma medida prevista, os estados são obrigados a “trocar informações e a consultar uns aos outros e, se necessário, negociar sobre os possíveis efeitos das medidas previstas na condição de um curso d’água internacional" (artigo 11). Para as medidas previstas envolvendo obras que poderiam afetar significativamente os outros Estados, os requisitos processuais são mais rigorosos. A Parte III contém procedimentos detalhados que visam determinar se uma medida prevista deve ser levada adiante ou não. O Estado do curso d’água tem um tempo fixo para responder informando a sua opinião com relação à medida prevista. Se nenhuma resposta é recebida, e o Estado que notificou está confiante de que a medida está em conformidade com a regra de utilização equitativa e razoável, pode, então, prosseguir. Quando o Estado notificado faz objeções à medida, são necessárias consultas, com vistas a encontrar uma solução equitativa e razoável. No entanto, nenhum Estado tem o direito de veto em relação ao desenvolvimento de atividades de outro Estado do curso d’água. Nem as medidas previstas podem ser implementadas sem a respectiva notificação e, se necessário, sem as exigências de consulta estabelecidas pelas regras processuais (Vinogradov, Wouters, e Jones, 2003). Nos termos da Convenção, os Estados são incentivados a criar mecanismos institucionais, mas não são obrigados a fazê-lo (artigo 24).

Quadro 5.7 Utilização justa e razoável

O Artigo 5 º dispõe: "1. Os Estados do curso d’água utilizarão em seus respectivos territórios um curso d’água internacional de forma equitativa e razoável. Em particular, os Estados do curso d’água utilizarão e aproveitarão um curso d’água internacional com o propósito de atingir uma utilização ótima e sustentável da mesma e o desfrute máximo compatíveis com a proteção adequada do curso d’água, levando em conta os interesses dos Estados do curso d’água de que se trate. 2. Os Estados do curso d’água participarão do uso, aproveitamento e proteção de um curso d’água internacional de forma equitativa e razoável. Essa participação inclui tanto o direito de utilizar o curso d’água quanto à obrigação de cooperar com sua proteção e aproveitamento, conforme o disposto na presente Convenção.

Pense nisso Os acordos internacionais da água enfrentam adequadamente os desafios atuais de

gerenciar os cursos d’água internacionais? Você consegue identificar elementos específico contidos nos diversos acordos que se revelem adequados para enfrentar

esses desafios?

Think about it Do

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O Artigo 33 oferece uma série de mecanismos de resolução de conflitos. Os Estados são livres para escolher um meio de resolver seus conflitos, incluindo negociação, bons ofícios, mediação, conciliação, as instituições do curso d’água compartilhado, e assim por diante. No entanto, se essas tentativas falharem, qualquer Estado pode invocar unilateralmente o procedimento obrigatório de apuração de fatos previstos no artigo 33 da Convenção.

5.5. Principais características da lei internacional de curso d’água internacional (Utilização Equitativa e Regra de Não Prejuízo)

A Convenção representa uma tentativa de encontrar um equilíbrio entre a utilização equitativa e as regras de não prejuízo. Equitativo não significa igual. Pelo contrário, significa que uma grande variedade de fatores deve ser considerada na alocação de outorga para a água. Os Estados determinam o que é justo e razoável é explicado no artigo 6 º, que estabelece uma lista não exaustiva de fatores a serem considerados na determinação de um uso equitativo e razoável. Esses fatores abrangem duas grandes categorias: (i) científica, e (ii) econômica. Uma indicação de como esses fatores devem ser utilizados é encontrada no artigo 6 (3), que determina que "o peso a ser dado a cada fator é determinado pela sua importância em comparação com a de outros fatores relevantes. Para determinar o que é um uso razoável e equitativo, todos os fatores relevantes devem ser considerados em conjunto e se tirar uma conclusão com base no conjunto”. Apesar dos progressos, ainda parece haver muito a ser feito em termos de encontrar um sistema de prioridades que leve em consideração as demandas conflitantes dos países (art. 5 º e 6 º da Convenção das Nações Unidas de 1997).

5.6 Obrigações internacionais e implementação nacional / regional

Com o surgimento e a extensão do direito internacional do curso d’água, começam a surgir questões a respeito do papel desempenhado por esse ramo do direito na ordem jurídica interna de um Estado, em particular, e da relação entre o direito internacional e o interno.

Pense nisso Como termos como “dano significativo” podem ser definidos e medidos (art. 7º)?

Quadro 5.8 Obrigação de não causar danos significativos O Artigo 7º prevê a obrigação de cada Estado do curso d’água de não causar dano significativo a outro Estado do curso d’água, afirmando que: “1. Os Estados do mesmo curso d’água, ao utilizar um curso d’água internacional em seus territórios, tomam todas as medidas adequadas para impedir que causem danos significativos a outros Estados do curso d’água; 2. Quando, apesar disso, são causados danos a outros Estados do curso d’água, na ausência de acordo relativo a esse uso, o Estado causador de tais danos deverá tomar todas as medidas adequadas, levando em conta as disposições dos artigos 5º e 6º, consultando o Estado afetado, para eliminar ou mitigar esses danos e, quando apropriado, discutir a questão de indenização.”

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A Corte Internacional de Justiça, no “caso” da Aplicabilidade da Obrigação de Arbitragem (1988), destacou "o princípio fundamental do direito internacional de que a lei internacional prevalece sobre a lei interna". A regra geral no que diz respeito à posição do direito interno no âmbito internacional é que um Estado que tenha violado uma obrigação internacional não pode se justificar referindo-se à sua ordem jurídica interna. Os Estados não podem usar as regras nacionais como desculpa para fugir à responsabilidade internacional Os Estados estão, naturalmente, sob a obrigação geral de agir em conformidade com as normas de direito internacional de curso d’água e assumem a responsabilidade por violação às mesmas, cometida pelos órgãos legislativos,

Quadro 5.10 Estudo de caso do Nilo: Transformando o conflito em acordo de cooperação

O Nilo é um recurso vital para os dez países que compartilham a sua bacia (Burundi, República Democrática do Congo, Egito, Eritreia, Etiópia, Quência, Ruanda, Sudão, Tanzânia e Uganda), e é especialmente importante para a sobrevivência e desenvolvimento do Egito e do Sudão (estados à jusante). Além disso, cinco desses dez países estão entre os mais pobres do mundo. Sua bacia afeta cerca de 300 milhões de pessoas, das quais 160 milhões são diretamente dependentes de sua água.

Os numerosos acordos relacionados à água que foram assinados, principalmente numa base bilateral, se revelaram insuficientes para criar um ambiente propício e uma estrutura de gestão cooperativa, com fortes pilares de sustentação. O prolongamento da situação instável e arriscado facilitou a ocorrência de tensões políticas e conflitos, especialmente em períodos de crise (cheias, escassez de água, incidentes de poluição).

Com o regime legal do Nilo "permanecendo controverso" após a independência dos estados africanos, os tratados do Nilo foram objeto de diferentes interpretações, variando de acordo com os interesses dos países ribeirinhos, exceto o Egito e o Sudão (Acordo assinado entre o Nilo e o Sudão para total utilização das águas do Nilo, 8 de novembro de 1959).

As instituições de gestão de cursos d’água internacionais foram revitalizadas na Bacia do Nilo, em 1993. A “Iniciativa da Bacia do Nilo” (IBN) (The Nile Basin Initiative (NBI) foi posteriormente lançada em 1999. A IBN evoluiu como um sistema de transição regional na pendência do estabelecimento por acordo quadro de uma estrutura permanente legal e institucional. Suas diretrizes políticas incluem o princípio da utilização equitativa do Nilo, o desenvolvimento sustentável e a gestão eficiente da água.

Depois de muitas tentativas, o Acordo Quadro de Cooperação da Bacia do Rio Nilo celebrado no 15º Conselho Ordinário dos Ministros do Nilo responsáveis pelos assuntos à água (Nile-COM), realizado em junho de 2007, em Entebbe (Uganda), é certamente um “marco” no fortalecimento da Cooperação do Nilo.

A IBN promove o interesse em cooperação interestatal e tenta limpar abrir o caminho para a ideia de interdependência otimizada. Para traduzir em ação a visão compartilhada da IBN, um Programa de Ação Estratégica foi criado para identificar e preparar projetos de cooperação na Bacia. O programa consiste em dois subprogramas complementares: i) Programa de Visão Compartilhada - Construir de uma Fundação para Ação Cooperativa, e ii) Programa de Ação Subsidiário - Buscar benefícios mútuos e investimentos no local nas bases. Os países da Bacia do Nilo partilham os mesmos interesses e seu desejo é seguir rumo ao futuro, com espírito de uma “comunidade do Nilo".

Fonte: Adaptado de Majzoub, 2008

Quadro 5.11 Impedindo os conflitos de água

As seguintes medidas podem fornecer aos Estados que compartilham os recursos hídricos do curso d’água que procuram uma orientação para evitar conflitos de água:

conscientização e construção de capacitação desenvolvimento de capacidades;

disseminação de informações;

avaliação e gestão integradas;

parcerias multissetoriais;

interesses assumidos de cooperação e interdependência otimizada.

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executivos ou judiciários. Além disso, os tratados internacionais da água podem impor aos Estados exigências na legislação nacional.41 No entanto, a supremacia do direito internacional sobre a lei interna não significa que as disposições da legislação nacional sejam irrelevantes ou desnecessárias. Pelo contrário, o papel das normas legais internas é essencial para o funcionamento da ordem jurídica internacional. Uma das formas para entender e conhecer a situação legal de um Estado em uma variedade de temas importantes para o direito internacional dos cursos d’água é examinar as leis nacionais (ferramentas de planejamento para alocação de água, licenciamento e controle das vazões ambientais, normas de qualidade da água, padrões de qualidade, licenças ambientais, e legislação de controle de poluição, Avaliação de Impacto Ambiental. Além disso, dentro do mesmo curso d’água internacional, os interesses nacionais normalmente diferem, assim os Estados podem desenvolver políticas divergentes e planos não compatíveis. Esse é o dilema da soberania: até que ponto os Estados ribeirinhos podem desenvolver e utilizar curso d’água dentro de seus territórios, e em que medida eles têm que considerar os interesses dos outros Estados do curso d’água e a comunidade de interesse do curso d’água como um todo? Um dos maiores desafios na partilha internacional de cursos d’água é identificar as estratégias de desenvolvimento em que todos os Estados ribeirinhos finalmente se beneficiam de uma alocação equitativa dos custos e benefícios.

Assim, as relações econômicas mutuamente benéficas e justas podem obrigar aos Estados a se unirem, criando condições em que os antigos antagonistas reconheçam um interesse mútuo no estabelecimento e na manutenção de um nível de cooperação. Nesse sentido, os laços econômicos fornecem a base para que a cooperação surja por meio de processo político e, posteriormente, institucionalize a cooperação fornecendo aos Estados fortes razões para evitar o conflito.42

41

Nota de revisão. A complexidade da questão de orientação da CIJ depende da questão preliminar de o estado considerado infrator aceite sua jurisdição, não sendo uma regra de aplicação direta. Tal questão sempre dependerá como cada estado dispõe sobre o direito público internacional. Exemplo, no Brasil, a Constituição Federal estabelece os princípios sobre a matéria de aceitação da norma internacional, não sendo automática esta aplicação. No caso dos recursos hídricos, o Brasil compartilha com seus vizinhos setenta e quatro bacias hidrográficas, além de aquiferos situados no âmbito das bacias hidrográficas, por exemplo, na Bacia do Prata, o Aquifero Guarani, e na Bacia do Amazonas, o Aquifero Amazonas. Importante salientar que, até o presente, nenhuma disputa relevante sobre a gestão das águas ultrapassou os limites da cooperação entre estados para a gestão compartilhada. Na caso da Bacia do Prata, o Comitê de Integração da Bacia do Prata, e no caso da Bacia Amazônica, a Organização de Cooperação do Tratado da Amazônia. 42

Nota de revisão. As exigências assumidas de modo soberano pelos Estados presumem-se sejam conforme

as suas regras internas que ditam as relações internacionais.

Perguntas vindas das bases

Considere as seguintes perguntas e reveja toda a experiência em seu país:

A abordagem do curso d’água é aplicável no seu país?

A Convenção da ONU de 1997 influenciou os acordos internacionais da água ou a legislação da água no seu país?

Como um sistema de prioridades pode levar em conta as demandas conflitantes de água dos Estados?

Como termos como "dano significativo" podem ser definidos e medidos?

Quais os critérios de sucesso para um bom acordo internacional de água entre dois ou mais Estados?

Como podemos reduzir os riscos de conflitos relacionados à água?

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5.7 Conclusão

Este capítulo mostrou como a estrutura jurídica internacional e institucional interage com as estruturas legais de nível nacional. Há necessidade de um mecanismo de cooperação para atingir um rendimento sustentado ótimo dos cursos d’água internacionais. Os profissionais e gestores de água devem se envolver nos esforços legais sempre que surjam questões relativas à água, tanto no contexto nacional quanto no internacional. Para enfrentar os futuros desafios e evitar a escassez do recurso, uma estrutura institucional e legislativa deve enfatizar uma abordagem holística e integrada para alcançar o sucesso da implementação da GIRH. Um acordo de cursos d’água negociado por todos os Estados ribeirinhos é pré-requisito para uma ampla aplicação de GIRH e uma boa governança dos cursos d’água internacionais. A Convenção das Nações Unidas de 1997 pode servir de referência, incorporando as orientações para que os Estados de curso d’água procurem negociar acordo de normas substantivas, de regras processuais, de mecanismos institucionais e de resolução de conflitos, como previstas na Convenção de 1997. Uma nova maneira de pensar sobre a gestão das águas transfronteiriças deve ser consolidada, a fim de melhor atingir três objetivos estratégicos: eficiência, equidade e sustentabilidade ambiental, na gestão de cursos d’água internacionais, apoiadas em uma abordagem racional, integrada e holística.

Implementação da GIRH: algumas perguntas

Tendo terminado este capítulo, você está agora pronto para considerar as seguintes questões colocadas no contexto de seu país, onde a GIRH deve ser aplicada e implementada: Qual é a escala geográfica adequada para uma efetividade de aplicação de

GIRH? É uma unidade de bacia hidrográfica ou de curso d’água? Os acordos atuais de água são favoráveis à GIRH? Como? E se não, por

quê? Existe um princípio de participação reconhecido como direito em seu país?

Que tipo de mecanismos legais existe para promover a participação em seu país? Quais são os principais obstáculos para o estabelecimento de uma abordagem participativa como parte da GIRH?

Quais são os desafios da incorporação de normas substantivas na implementação da GIRH?

5.8 Leituras sugeridas

Bošnjaković, Branco. Negotiations in the Context of International Water-Related Agreements. UNESCO–Green Cross International project entitled “From Potential Conflict to Cooperation Potential (PCCP): Water for Peace”. UNESCO, Paris, França. Burchi, Stefano and Mechlem, Kerstin. 2005. Groundwater in international law Compilation of treaties and other legal instruments. Development Law Service FAO Legal Office. Food and Agriculture Organization of the United Nations. Roma, Itália.

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Malzbender, Daniel; Earle, Anton. The Impact and Implications of the Adoption of the 1997 UN Watercourse Convention for Countries in Southern Africa. African Centre for Water Research. Cidade do Cabo, África do Sul.

Leituras sugeridas em português

Soares, Guido F.S. Direito Internacional do Meio Ambiente – Emergências, Obrigações e Responsabilidades, São Paulo, Atlas, 2001. Soares, Guido F. S. Curso de Direito Internacional Público, São Paulo, Atlas, 2002. Silva, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional, São Paulo, Malheiros Editores, 2003, 4ª edição. Nascimento e Silva, Geraldo Eulálio. Direito Ambiental Internacional – Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e os Desafios da Nova Ordem Mundial, Rio de Janeiro, Thex Editora, 2002, 2ª edição. Brasil, Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Conjunto de Normas Legais/ Recursos Hídricos, 2009.

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CAPÍTULO 6

Resolução de Conflitos

Meta

A meta deste capítulo é apresentar as alternativas de abordagens de resolução de conflitos que podem ser incorporadas nas políticas e práticas de GIRH.

Objetivos de aprendizagem

Ao final desta sessão os participantes Compreenderão que os conflitos são parte integrante da interação, e nem sempre

precisam ser resolvidos no tribunal;

Terão uma primeira noção sobre duas abordagens alternativas para a resolução de conflitos: negociação e mediação;

Reconhecerão os papéis básicos, as responsabilidades e os principais passos

necessários para a resolução de conflitos e, Entenderão as habilidades básicas reforçadas de comunicação para a gestão de

conflitos.

6.1 Introdução

A GIRH é um desafio às práticas convencionais, às atitudes e às certezas profissionais. A gestão integrada dos recursos hídricos confronta os interesses dos setores e exige que a água seja gerida de forma holística para o benefício de todos. Ninguém acha que a realização do desafio da GIRH será fácil, mas é vital para enfrentar uma crise crescente no setor hídrico. A implementação da GIRH não exige a criação de novas superestruturas, mas exige que as pessoas mudem suas práticas de trabalho e considerem um contexto mais amplo para suas ações, entendendo que elas não ocorrem de forma independente das ações dos outros. A GIRH visa também à introdução de dimensões descentralizadas nas maneiras de gerenciar a água, com ênfase na participação dos diversos grupos de interesse e na tomada de decisão no nível mais baixo possível.43

43

Nota de revisão. O princípio de subsidiaridade orienta para que, o que puder ser decidido no nível de gestão de bacia hidrográfica, não seja elevado para níveis de decisão mais altos no âmbito do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SINGREH – Lei nº 9.433/97.

Quadro 6.1 A implementação da GIRH exige uma abordagem de negociação, pois as pessoas precisam:

Mudar a atitude de trabalho;

Considerar um esquema mais amplo e perceber que suas ações não ocorrem independentemente das ações dos outros (incluindo usos competitivos da água);

Aceitar práticas democráticas descentralizadas;

Aceitar a participação.

A GIRH exige duas mudanças enormes:

Visão setorial visão integrada

De cima para baixo equilíbrio ou acordos entre setores.

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Para os objetivos deste capítulo, o entendimento é que as decisões para construir processos orientados para a GIRH devem se basear em negociações, resultando em pactos coletivamente assumidos. Uma abordagem de negociação pode permitir o desenvolvimento de uma visão setorial, no sentido de uma visão integrada, ou a partir de uma abordagem de cima para baixo para um equilíbrio de baixo para cima de pactos entre os diversos setores.

6.2 Acordos implícitos e explícitos, pressupostos e problemas no âmbito da gestão das águas

As práticas de gestão de recursos hídricos são baseadas em negociações a partir de uma série de acordos assumidos coletivamente: Políticas de recursos hídricos (estruturas legal e institucional); Planejamento de recursos hídricos (acesso à informação, “ferramentas de apoio à

tomada de decisão”, equilíbrio de opiniões: especialistas + grupos de interesse); Processos de intervenção (projetos de infraestrutura); Resolução de conflitos da água (coordenação); Em algumas ocasiões, esses pactos (e outros) estão disponíveis na forma de documentos explícitos; em outros casos, são pressupostos implícitos. Para a execução da GIRH, o caso é muito mais complexo, pois os princípios e as ferramentas de GIRH são compostos de pressupostos quanto ao comportamento das sociedades e dos indivíduos. 1. Interdependência dos diferentes agentes no setor hídrico 2. Identificação de problemas comuns (em oposição aos privados ou setoriais) 3. Disposição para falar e aprender 4. Busca de soluções sustentáveis (em oposição a ocasionais) 5. Múltiplas vozes e responsabilidades Assim que tomamos consciência desses pressupostos, podemos descobrir, na prática, alguns dos problemas a eles associados: 1. Captura de espaço de negociação pelos poderosos (áreas política e econômica) 2. Falta de participação dos muito ricos e dos muito pobres 3. Exclusões forçadas (alguns grupos são deixados fora da discussão) 4. Autoexclusões (há coisas melhores para fazer) 5. Situações não negociáveis 6. Agendas ocultas

6.3 A GIRH e a Gestão de Conflitos

Segundo o Relatório das Nações Unidas Sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos (2006), "a Humanidade embarcou num enorme projeto de engenharia ecológica global, com pouco ou nenhum conceito anteriormente definido, ou sequer com conhecimento total, das suas consequências. No setor hídrico, garantir o abastecimento confiável e seguro de água para a saúde e para os alimentos, as necessidades dos

Pense nisso A GIRH requer da sociedade como um todo uma percepção integrada. Isso é possível?

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5

processos de produção industrial e de energia, e o desenvolvimento de mercados de direitos à terra e à água alteraram enormemente a ordem natural de muitos rios em todo o mundo”. A necessidade de mudança é inegável. Com ela vem o desafio, e com o desafio vem as ameaças mesmo e as oportunidades. Há ameaças ao poder e ao poder do povo e ameaças à sua identidade como profissionais. A GIRH requer que sejam desenvolvidas plataformas que permitam que grupos de interesse muito diversos, com diferenças muitas vezes aparentemente irreconciliáveis, de alguma forma trabalhem juntos. A Associação Mundial pela Água (em inglês GWP - Global Water Partnership) (GWP, 2000) define a GIRH como um desafio às práticas, atitudes e certezas profissionais convencionais. Ela confronta os interesses setoriais entrincheirados e exige que o recurso hídrico seja gerido de forma holística para o benefício de todos. Ninguém está iludindo, dizendo que enfrentar o desafio de GIRH será fácil, mas é vital que se comece agora para evitar a crise crescente. O conflito pode ser difícil, mas não é, necessariamente, um processo destrutivo. O conflito desempenha um papel positivo se tivermos a necessária habilidade para criar a sinergia para o bem estar de todas as partes em conflito. Não existem técnicas específicas adaptadas, formais e informais, para gerir conflitos, embora as técnicas sejam baseadas na intuição, na lógica e nas artes da substituição.44

6.4 Resolução de conflitos: mapa da situação, papéis & responsabilidades

Em qualquer conflito, é importante abordar as seguintes questões como parte do processo de compreensão da situação e de decisão quanto à melhor abordagem do conflito:

44

Nota de revisão. As regras principais para a solução de conflitos, no caso do Brasil, encontram nos documentos que regem a gestão das águas, desde a Lei nº 9.433/97 ao Regimento Interno dos Comitês de Bacia. Nesse âmbito, a prática de resolução de conflitos compreende também regras não escritas nos pactos assumidos durante as negociações entre as partes.

Quadro 6.2 Conflito:

O conflito está presente quando duas ou mais partes percebem que seus interesses são incompatíveis, expressam atitudes hostis ou perseguem seus interesses por meio de ações que prejudicam as outras partes. Os interesses podem divergir a respeito de:

Acesso aos recursos e sua distribuição (por exemplo, território, dinheiro, fonte de energia, alimentos)

Controle de poder e participação em tomadas de decisão ligadas a políticas;

Identidade (cultural, social e políticas das comunidades); e

Situações, particularmente as incorporadas em sistemas de governo, religião ou ideologia

(Schmid, 1998).

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Quadro 6.3. Perguntas para o mapeamento de conflitos

Fonte: LA-WETnet, CentroAgua (2005)

Encontrar respostas para as perguntas acima não é tão fácil e simples como desejaríamos. No âmbito da GIRH, identificar os grupos de interesse é fundamental. Se alguém aborda um conflito com a mentalidade setorial, as chances de começar com o pé esquerdo são grandes. Da mesma forma, os aspectos técnicos e os contextos legais e institucionais exigem um enfoque multidimensional quando abordados de uma perspectiva de resolução de GIRH. Diversas habilidades e disciplinas podem ser necessárias para a compreensão profunda e o diagnóstico do caso. Compreender os temas de conflito requer que se tenham identificado necessidades, interesses e posições. O processo de compreensão da situação já faz parte do processo de resolução.

Ferramenta Cebola

Fonte: Cap-Net (2008)

Também é essencial ter uma compreensão clara dos diferentes papéis e responsabilidades de todos os que estão e estarão envolvidos no processo de resolução de conflitos:

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Quadro 6.4. Papéis e responsabilidades

Fonte: LA-WETnet, CentroAgua (2005)

6.5 Resolução Alternativa de Conflito (RAC)

Para superar as limitações dos processos judiciais (por exemplo, custos elevados, processos muito demorados, muitas vezes levando a resultados em que se ganha ou perde tudo), as técnicas de resolução alternativa de conflitos (RAC - em inglês Alternative Dispute Resolution (ADR) são frequentemente aplicadas, com sucesso, em vários países. As técnicas de RAC com ênfase na busca de resultados consensuais são comparáveis às práticas de muitas sociedades tradicionais. Vamos revisá-las rapidamente.

Negociação

A negociação é um processo no qual as partes em conflito se reúnem para alcançar a uma solução aceita por ambas. Não existe facilitação ou mediação por um terceiro: cada parte representa o próprio interesse. Os grandes conflitos sobre as políticas públicas são cada vez mais resolvidos por meio de processos com base na mediação e na negociação, comumente referidos como regra negociada ou negociação regulatória. Os representantes dos grupos de interesse são convidados a participar das negociações para chegar a um acordo sobre as novas regras que regem questões como as normas de segurança industrial e de poluição ambiental de repositores de lixo.

Facilitação

A facilitação é um processo em que uma pessoa imparcial participa na concepção e condução das reuniões de resolução de problemas para ajudar as partes a diagnosticar, criar e executar soluções em conjunto. Esse processo é frequentemente usado em situações que envolvem várias partes, questões e grupos de interesse, e onde as questões não estão claras. Os facilitadores criam condições em que todos podem falar livremente, mas eles mesmos não expõem suas ideias nem participam ativamente na condução do acordo entre as partes. A facilitação pode ser o primeiro passo na identificação de um processo de resolução de conflitos.

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O facilitador: Auxilia na concepção da reunião. Ajuda a manter a reunião no rumo certo. Esclarece e aceita a comunicação das partes na negociação. Aceita e reconhece sentimentos. Enquadra um problema de forma construtiva. Sugere procedimentos para se chegar a um acordo. Resume e esclarece a direção. Engaja-se em testes de consenso em momentos apropriados.

Um bom facilitador também não julga nem critica, não impõe sua próprias ideias; não toma, sem consulta, decisões importantes quanto a procedimentos, nem toma o tempo do grupo fazendo longos comentários.

Mediação

A mediação é um processo de resolução de conflitos em que uma parte externa supervisiona a negociação entre os litigantes, que escolhem um mediador aceitável para orientá-los na concepção de um processo e para chegar a um acordo com uma solução aceita por ambos. O mediador tenta criar um ambiente seguro onde os litigantes partilhem informações, resolvam problemas subjacentes e descarreguem emoções. É mais formal do que a facilitação e as partes muitas vezes partilham os custos da mediação. É útil quando há um impasse. A mediação é flexível, informal, confidencial e não impositiva. O mediador não tem interesse direto no conflito nem em seu resultado, não tem poder para emitir decisões. Ele procura alternativas com base nos fatos e méritos do caso. Um mediador eficiente terá a maioria das características seguintes:

Habilidade para

criar confiança; Habilidade para

definir questões no cerne do conflito;

Paciência, resistência, perseverança;

Consideração, empatia, flexibilidade;

Bom senso, racionalidade;

Muitas vezes uma personalidade agradável;

Deixa perceber que tem muita experiência e

Neutralidade, imparcialidade, habilidade de resolver problemas, criatividade, ponderação.

Quadro 6.5. Prevenção de conflitos antes que comecem: Construção de consenso/Abordagem dos Grupo de Interesse

É geralmente aceito entre os especialistas de água que a participação dos grupos de interesse é fundamental para a utilização e a gestão sustentável dos recursos. As técnicas de resolução de conflitos são geralmente empregadas depois do surgimento de um conflito. No entanto, antecipar as formas de um conflito futuro é um elemento importante de resolução de conflitos em si. No contexto de uma bacia hidrográfica, onde os conflitos aparecem de tempos em tempos, é útil abrir espaço a essas questões por meio da criação de um ambiente em que os grupos de interesse possam se encontrar regularmente e conversar sobre interesses, necessidades e posições. Embora não existam metodologias uniformes para a realização do processo, o importante é criar um ambiente favorável, em que os grupos de interesse consigam participar ativamente nos diálogos relativos à política e nos processos de planejamento e concepção posteriores.

45

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A mediação e os estilos de facilitação podem variar de ativo e interveniente a passivo. Em qualquer caso, para ser eficiente o mediador deve: i) estar disposto e apto a utilizar conhecimento especializado e/ou usar ferramentas de apoio à decisão, ii) reunir-se com as partes prejudicadas em conjunto e separadamente, e III) suscitar ideias de ambos os lados. O mediador eficiente concentra-se sobre o futuro sem esquecer o passado. 45

Arbitragem

A arbitragem é normalmente usada como uma alternativa menos formal para o conflito, em que uma parte externa neutra ou um painel reúne-se com as partes em conflito, ouve as apresentações de cada lado e emite a decisão. Essa decisão pode ser impositiva ou não, conforme os acordos entre as partes antes do início formal das audiências. As partes escolhem o árbitro através de consenso e podem definir as regras que rejam o processo. A arbitragem é frequentemente utilizada no mundo dos negócios e nos casos em que as partes desejam uma solução rápida para seus problemas.

6.6 As habilidades de comunicação como elementos facilitadores nos conflitos

A negociação é um processo de comunicação, em que se pende para um lado e para o outro, com o objetivo de chegar a uma decisão conjunta. Há três problemas típicos para a realização de uma comunicação eficiente. Primeiro, as partes num conflito podem não estar se falando, nem estão dispostas a fazê-lo. Em segundo lugar, mesmo se estão se falando, podem não ouvir o que a outra está tentando comunicar, talvez porque já tenham se decidido quanto à outra parte e quanto às suas intenções. Terceiro, mesmo quando há relativa harmonia entre as partes, pode surgir um conflito difícil de resolver porque há um mal entendido geral, por exemplo, sobre os motivos que levaram uma das partes à ação. Um comunicador eficiente é um ouvinte ativo. Ele não está simplesmente "esperando para falar”, mas está comprometido com o que a outra parte está dizendo. Em algumas culturas isso é difícil de demonstrar - por exemplo, quando o contato visual é considerado agressivo e/ou descortês, ou quando falar com franqueza e/ou contradizer a outra parte no conflito é considerado comportamento rude. No entanto, um comunicador eficiente fala com clareza e precisão. Ele também demonstra compreensão e busca clareza de percepção Um comunicador eficiente constantemente reformula as suas posições e as da outra parte, num esforço para otimizar as opções para se chegar a um resultado positivo para ambas as partes. Também utiliza questões abertas que dão espaço à elaboração e à digressão, mas vai usar perguntas diretas como "Por que isso é importante para você?" ao tentar descobrir os interesses e as necessidades que estão por trás de uma determinada posição. É Importante mencionar que o comunicador eficiente separa a pessoa do problema. Entre outras coisas, o mediador/facilitador procura descobrir interesses entre as partes

45

Nota de revisão. As regras principais para a solução de conflitos, no caso do Brasil, encontram nos documentos que

regem a gestão das águas, desde a Lei nº 9.433/97 ao Regimento Interno dos Comitês de Bacia. Nesse âmbito, a prática de resolução de conflitos compreende também regras não escritas nos pactos assumidos durante as negociações entre as partes.

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que possam de fato ser compatíveis. Uma vez revelados, os interesses podem ser misturados (as partes partilham alguns interesses, mas diferem fundamentalmente em algum outro ponto), mutuamente exclusivos, ou compatíveis. É este último tipo de interesse que desejamos mostrar e o que vamos desenvolver. Por exemplo, quando os agentes podem ser pegos numa discussão quanto ao posicionamento "barragem/não barragem”, o interesse comum subjacente pode ser, de fato, um abastecimento de água previsível para a produção de alimentos.

6.7 Exigências para uma resolução de conflitos bem sucedida

As técnicas discutidas acima precisam preencher determinadas condições para obter bons resultados. Algumas delas são: Disposição de participar

Os participantes devem ser livres para decidir quando participar e quando se retirar de um processo de resolução de conflitos. Devem definir a agenda e o método a ser seguido no processo. Porém, é impossível até mesmo concordar em discutir um problema se uma das partes mantém uma posição ou sistema de valores profundamente enraizados.

Oportunidade de ganho mútuo

Vinculada ao exposto acima está a exigência de oportunidades de ganho mútuo. A chave para o sucesso da resolução de conflitos é a probabilidade de que as partes litigantes fiquem melhor usando uma ação cooperativa. Se uma ou ambas acredita que pode conseguir um resultado melhor por meio de uma ação unilateral, não estarão dispostas a participar do processo.

Oportunidade de participação

Para uma resolução de conflitos bem sucedida, todos os grupos de interesse devem ter a oportunidade de participar no processo. A exclusão de uma parte não somente é injusta, mas também arriscada, porque ela pode obstruir a aplicação dos resultados por meios legais ou extrajudiciais.

Identificação de interesses

Ao trabalhar para se chegar a um consenso, é importante identificar interesses e não posições. As partes em conflito muitas vezes se envolvem numa negociação de posicionamento sem ouvir os interesses das outras partes, o que cria um confronto e uma barreira ao consenso.

Desenvolvendo opções

Uma parte importante de um processo de resolução de conflitos é o desenvolvimento neutro de possíveis soluções e opções. Uma terceira parte imparcial pode ser um grande trunfo para o processo, pois pode apresentar ideias e sugestões a partir de uma perspectiva neutra.

Realizando um acordo

A questão deve ser possível de ser resolvida por meio de um processo participativo e as próprias partes também devem ser capazes de realizar um acordo.

6.8 Conclusão

A GIRH fornece uma estrutura sólida para o uso da água ecologicamente sustentável, socialmente justo e economicamente eficiente. Hoje, mais de 154 países ao redor do

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mundo estão em processo de reforma quanto ao uso da água e das práticas de gestão em conformidade com os princípios de GIRH. O principal desafio é transformar os conflitos inevitáveis que surgem em resultados produtivos, positivos para ambas as partes, que trarão ganhos a longo prazo (Cap-Net: 2008). Os gestores da água que trabalham nos termos da GIRH devem ser realistas sobre a complexidade do processo e a existência de conflitos potenciais e atuais. A estrutura legal tem uma grande relevância nesse campo. Idealmente, deveria facilitar o processo, mas também é conhecido por causar conflitos, devido a questões não previstas e ao espaço deixado para a interpretação da lei. A abordagem "integrada" pede competências específicas para resolução de conflitos.

Implementação da GIRH: algumas perguntas

Considere qualquer conflito que você conhece em seu país ou região e utilize as seguintes perguntas para analisá-lo: Qual é a extensão do conflito? Há quanto tempo existe? Como começou? Qual é a causa raiz subjacente? Sobre o que é o conflito? Quem são os causadores? Quem são os envolvidos? Até que ponto você foi na tentativa de resolver o conflito? Houve alguma consulta? Quem deveríamos envolver na resolução do problema? Até que ponto essas questões devem ser resolvidas? Quais são as linhas da autoridade formal? As autoridades ajudaram ou atrapalharam o processo? Que direito você tem de utilizar o recurso? Houve outros conflitos assim? Quando acontecem conflitos assim, a quem você se dirige para resolvê-los?

Fonte: Cap-Net (2008).

6.9 Leituras sugeridas

Sergei Vinogradov, Patricia Wouters, e Patricia Jones. Transforming Potential Conflict Into Cooperation Potential: The Role Of International Water Law. UNESCO–Green Cross International project entitled “From Potential Conflict to Cooperation Potential (PCCP): Water for Peace”. UNESCO, Paris, França. Nandalal, K. D. W.; Slobodan P. Simonovic. State-of-the-Art Report on Systems Analysis Methods for Resolution of Conflicts in Water Resources Management. UNESCO–Green Cross International project entitled “From Potential Conflict to Cooperation Potential (PCCP): Water for Peace”. UNESCO, Paris, França.

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Capítulo 7

Governança da Água e Instituições

Meta

A meta deste capítulo é apresentar a relação entre o direito e o papel da governança e das instituições para a implementação da GIRH.

Objetivos de Aprendizagem:

Ao final desta sessão os participantes: Saberão quais são os elementos da governança efetiva para a GIRH; Compreenderão o papel da governança e das instituições na implementação

da GIRH; Compreenderão a relação entre direito, governança e instituições para a

GIRH.

7.1 Introdução

Este capítulo apresenta o conceito de governança da água e seu papel na implementação da GIRH. As questões aqui levantadas incluem os elementos centrais para uma boa governança da água, assim como as questões importantes a serem consideradas na elaboração de uma estrutura institucional. São mostradas as lições aprendidas a partir de exemplos extraídos de diferentes partes do mundo, visando ilustrar questões práticas em torno do conceito de governança da água. De acordo com o PNUD, a governança da água se refere à ampla gama de sistemas políticos, sociais, ambientais, econômicos e administrativos que estão em vigor para regular o desenvolvimento e a gestão dos recursos hídricos e a prestação de serviços de água em diferentes níveis da sociedade (PNUD, 2005). As leis e as instituições em diferentes níveis de gestão da água são parte essencial da estrutura da governança. As leis definem os direitos, os papéis e as responsabilidades em vários níveis - entre estados soberanos, entre os indivíduos e os estados, e entre diferentes indivíduos. As leis transformam as políticas em sistemas aplicáveis de direitos e deveres, e para que elas sejam implementadas e cumpridas, as instituições são necessárias. Apenas quando um quadro legal efetivo é implementado e aplicado por instituições em efetivo funcionamento, os dois componentes podem contribuir de modo significativo para a GIRH. As decisões sobre gestão da água são tomadas dentro dos sistemas de governança em diferentes níveis, internacional, nacional e local. A efetiva implementação da GIRH deve considerar esses níveis e neles se realizar. Uma profunda compreensão da natureza complexa do direito e das instituições, bem como seus papéis e funções na GIRH é essencial para os gestores da água e para os grupos de interesse. O papel da governança efetiva da água na implementação da GIRH é proporcionar um ambiente propício para, entre outras coisas, a tomada de decisões, o controle e a regulação, e a resolução de conflitos.

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5

7.2 A gestão da água nas bases: as dimensões da governança da água

Como a GIRH estava firmemente estabelecida como o novo paradigma para enfrentar os desafios da água, a abordagem das questões da "governança" se tornou cada vez mais relevante. Isso ocorre em parte porque a passagem para a GIRH é uma mudança do desenvolvimento da água para a governança e significa o reconhecimento do fato de que há muitos interesses que competem no modo como a água está sendo usada e alocada (Gupta, J.; Leendertse, K.: 2005). A GIRH considera também outros aspectos de gestão como a participação, as práticas, do costume e vários aspectos relacionados à cultura. A desagregação do conceito foi resumida em quatro dimensões: social, econômica, política e ambiental, como mostrado no quadro 7.146.

7.3 Princípios de uma governança efetiva da água

Esta seção discute alguns dos principais elementos essenciais para a efetiva governança da água em qualquer escala. Transparência

A transparência compreende todos os meios que facilitem o acesso dos cidadãos à informação e sua compreensão dos mecanismos de tomada de decisão. A transparência no setor público começa com a clara aplicação de padrões e o acesso à informação (PNUD, 2004). É fundamental garantir a transparência, a integridade, a responsabilidade e a prestação de contas na GIRH para a criação de uma estrutura de gestão pacífica e segura para a sua implementação.

Responsabilidade e prestação de contas

Uma boa governança e instituições sustentáveis desempenham um grande papel na promoção da responsabilidade e da prestação de contas. Responsabilidade e Prestação de Contas são como responder por suas ações. Exige a capacidade dos cidadãos, das organizações da sociedade civil e do setor privado de avaliar líderes, instituições públicas e governos e

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Vimos no Capítulo 1uma outra definição de governança da água: "Governança implica a capacidade de construir e implementar políticas adequadas. Essas capacidades são o resultado de um consenso estabelecido, tendo elaborado sistemas de gestão coerentes (regimes baseados em instituições, leis, fatores culturais, conhecimento e práticas), bem como a administração adequada dos sistemas (baseada na participação e aceitação sociais), e o desenvolvimento de capacidades" (Peña, H.; Solanes, M.: 2003). Ambas as definições são compatíveis e complementares para apresentar esse conceito amplo que se propõe a refletir o processo dinâmico e multinível da gestão da água.

Quadro 7.1: Quatro dimensões da governança da água

A dimensão social aponta para a justa distribuição dos recursos hídricos. Além de ser distribuída desigualmente no tempo e no espaço, a água também é desigualmente distribuída entre vários estratos socioeconômicos da sociedade nos assentamentos rurais e urbanos.

A dimensão econômica chama a atenção para o uso eficiente dos recursos hídricos e o papel da água no crescimento econômico como um todo.

A dimensão do empoderamento político aponta para concessão de água aos grupos de interesse e aos cidadãos em oportunidades democráticas iguais para influenciar e monitorar os processos políticos e os resultados. Nos níveis internacional e nacional, os cidadãos marginalizados, tais como os povos indígenas, as mulheres, os moradores de favelas, etc, raramente são reconhecidos como grupos de interesse legítimos na tomada de decisões relativas à água, e faltam vozes, instituições e capacidades para promover no mundo exterior seus interesses quanto à água .

A dimensão da sustentabilidade ambiental mostra que uma governança aperfeiçoada permite intensificar o uso sustentável dos recursos e a integridade do ecossistema.

Fonte: Relatório das Nações Unidas Sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos 2006

Fonte: Relatório das Nações Unidas Sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos 2006

Source: UN World Water Development Report 2006

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responsabilizá-los por suas ações (UK Department for International Development – DFID – Departamento para o Desenvolvimento Internacional – Governo do Reino Unido, 2006). Estruturas institucionais responsáveis são necessárias para realizar os multifacetados desafios da gestão sustentável da água na implementação da GIRH. O exemplo de Porto Alegre, Brasil, Quadro 7.4 demonstra a responsabilidade na prestação de serviços de distribuição de água.

Estudo de caso: Porto Alegre, Brasil

Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, no Brasil, tem uma das menores taxas de mortalidade infantil no país (14 óbitos por mil nascidos vivos em um país onde a média nacional é de 65) e um índice de desenvolvimento humano comparável ao dos países ricos. Uma efetiva governança municipal no abastecimento de água e saneamento tem desempenhado um grande papel nessa história de sucesso.

Os fornecedores municipais de água têm conseguido acesso universal à água. Os preços para a água - 0,30 de dólar por litro - estão entre os mais baixos no país. Os indicadores de eficiência são semelhantes aos das melhores empresas privadas do mundo. A proporção de funcionários para ligações domiciliares, um indicador de eficiência amplamente utilizado, é 3:1.000. Essa proporção é de 20 para Déli, Índia, e 5 para as empresas privadas, em Manila, Filipinas. As condições de operação do Departamento Municipal de Água e Esgoto de propriedade exclusiva do município de Porto Alegre ajudam a explicar o sucesso: Uma entidade jurídica distinta - goza de autonomia operacional e

financeira. Não recebe subsídios e é financeiramente autossuficiente (seus

recursos têm finalidade definida). Financeiramente independente – pode contrair empréstimos para

investimento, sem apoio municipal.

O mandato de funcionamento conjuga os objetivos sociais e comerciais. A empresa concessionária segue uma política de não dividendo: todos os lucros são reinvestidos no sistema. Sua isenção fiscal permite manter baixos os tributos de água. Exige-se o investimento de pelo menos 1/4 de sua receita anual em infraestrutura hídrica.

Fonte:PNUD 2006 (de Viero 2003 e Maltz 2005)

Quadro 7.2 A corrupção ameaça o desenvolvimento e a sustentabilidade. A corrupção no setor da água é uma das causas de base e um catalisador para a crise da água que ameaça milhares de vidas e agrava a degradação ambiental. O seu impacto na gestão da água é um problema fundamental de governança, ainda que não seja suficientemente abordado nas muitas iniciativas de política global para a sustentabilidade ambiental, de desenvolvimento, de segurança alimentar e energética

Quando ocorre a corrupção, o custo de conectar um lar a uma rede de água aumenta até 30%, elevando o preço para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio para o saneamento de água pelo surpreendente valor de US $ 48 bilhões. A corrupção na gestão de recursos hídricos compromete a sustentabilidade do abastecimento de água, e encoraja a partilha desigual do recurso, que pode incitar o conflito político pela água e promover a degradação dos ecossistemas vitais.

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5

Por conseguinte, a falta de transparência, de integridade e de responsabilidade e de prestação de contas abre uma porta para a corrupção e dificulta o alcance das metas de GIRH. Além disso, a falta de transparência, de responsabilidade e de prestação de contas põe em questão a legitimidade das decisões e também dos órgãos do governo afins. A corrupção mina os esforços dos países para implementar paulatinamente os princípios da GIRH, trabalhar no sentido de alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e alimenta o aumento nos níveis de pobreza.

Num esforço para combater a corrupção e promover a boa governança o Relatório Global sobre Corrupção (Global Corruption Report) de 2008 (Transparency International, TI, 2008) fornece as seguintes recomendações principais:

Estabelecer a transparência e a abordagens participativas como

princípios orientadores para todos os aspectos de governança da água Reforçar a supervisão regulatória Garantir a concorrência leal e a implementação responsável com

prestação de contas dos projetos de água.

Participação

A GIRH só pode ser bem sucedida se todos os grupos de interesse puderem se envolver plenamente, incluindo os grupos marginalizados e os pobres em recursos. A fim de promover uma governança responsável da água, os governos devem apoiar a participação de todos os grupos de interesse, que são frequentemente excluídos, se não houver os requisitos legais para engajá-los no processo de gestão. A legislação precisa conceder às comunidades e outros grupos de interesse o direito de se envolver no processo de gestão da água e incentivar as instituições estatutárias a lhes fornecer incentivos à participação e acesso à informação para uma compreensão profunda da situação. Uma participação significativa de todos os grupos de interesse pode ser realizada através do reconhecimento legal desses grupos em todos os níveis. Em Gana, a principal estratégia a nível nacional é garantir um bom relacionamento entre os grupos de interesse e trabalhar de forma participativa, envolvendo-os todos, incluindo as comunidades locais no nível da bacia hidrográfica (al-Ankomah Opoku al, 2006). A nível nacional, as instituições são encarregadas da formulação de políticas e do planejamento do desenvolvimento nacional e do planejamento dos recursos hídricos. Os outros grupos de interesse são agrupados em planejamento de recursos, usuários de água, agências reguladoras e representação dos cidadãos. A estrutura institucional apresentada acima mostra um claro reconhecimento e a incorporação do papel das ONGs (reconhecendo a importância de grupos não governamentais, e questões importantes para o desenvolvimento como a redução da pobreza); representante das mulheres (claramente

Perguntas sobre o lugar de onde você vem

Você consegue identificar exemplos onde a falta de transparência, de integridade e de responsabilidade e prestação de contas tenha dificultado a aplicação dos princípios de GIRH?

O que causa o fracasso da responsabilidade e prestação de contas na governança da água?

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incorporando o equilíbrio entre os sexos e uma abordagem da perspectiva de gênero para a GIRH); e os representantes titulares (reconhecendo e incorporando as práticas habituais e seu valor para os usuários da água e a governança da água).

Estrutura Institucional Nacional para a Gestão dos Recursos Hídricos – Gana

Fonte: Opoku-Ankomah et al (2006)

Uma participação significativa também pode ser alcançada mediante a garantia de que as políticas e as ações são coerentes e integradas, o que pode exigir uma estratégia multissetorial com um elevado nível de adesão dos grupos de interesse. O objetivo específico deveria ser a concepção de estratégias e de políticas efetivas de intervenção que melhorem o bem estar das pessoas e dos ecossistemas. A coerência implica liderança política e forte responsabilidade por parte das instituições em diferentes níveis para assegurar uma abordagem consistente dentro de um sistema complexo.

A integração das instituições de governança em todos os níveis e esferas é parte integrante da boa governança da água. A integração aqui se refere à coordenação e à colaboração entre as instituições de governança. A integração horizontal se refere ao processo de alinhamento dos planos e programas das diferentes partes em relação às questões da água. Trata-se de racionalizar os princípios de GIRH em todos os ministérios e departamentos e de garantir que isto seja levado em conta em todas as áreas de planejamento. A integração vertical se refere à coordenação e à colaboração entre os diferentes níveis/esferas de governo. Isso é importante para alinhar as estratégias, planos e políticas com a demanda dos recursos hídricos disponíveis e para o desenvolvimento econômico sólido (Governos Locais pela Sustentabilidade – Local Governments for Sustainability – ICLEI, 2007).

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5

Na África do Sul, os departamentos governamentais a nível nacional (na África do Sul um departamento é o que em outros países se chama Ministério) desenvolveram estratégias nacionais para diferentes setores, formando a base para a implementação da política do governo. Assim, as estratégias do setor precisam ser alinhadas a fim de assegurar uma implementação eficiente em todos os setores. A estratégia para o setor da água é a Estratégia Nacional de Recursos Hídricos (em inglês National Water Resources Strategy – NWRS), que constitui, assim, um componente importante do quadro de planejamento nacional.

O Quadro 7.3, abaixo, mostra as muitas interações previstas e exigidas pela Política Nacional de Água da África do Sul.

Quadro 7.3: Interfaces institucionais entre diferentes esferas de governo na África do Sul A Seção 8 da Política Nacional de Água exige o desenvolvimento de Estratégias de Gestão de Captação (em inglês Catchment Management Strategies, CMSs) para cada Área de Gestão da Água. A Seção 9 (f) estipula que as estratégias “levem em conta quaisquer planos relevantes nacionais ou regionais preparados em termos de qualquer outra lei, inclusive qualquer plano de desenvolvimento adotado nos termos da Política de Serviços da Água, 1997 (Act No. 108 , de 1997)”. Assim, o CMS precisa estar alinhado com outras estratégias de desenvolvimento a nível nacional ou regional ; por exemplo, com as Estratégias de Desenvolvimento das Províncias (em inglês Provincial Development Strategies) ou tornar-se parte integrante delas.

Na esfera de governo local, a Seção 9 (f) do NWA é relevante para a integração dos Planos de Desenvolvimento dos serviços de Água (Water Services Development Plans) nos Planos Integrados de Desenvolvimento (IDPs) que os municípios devem preparar nos termos da Política de Sistemas Municipais (Nº 32 de 2000). Todos os municípios metropolitanos e distritais , todos designados como autoridade de serviços hídricos , e qualquer municipalidade local autorizada como autoridade de serviços de água , deve preparar projetos de desenvolvimento de serviços de água nos termos do WSA (Department of Water Affairs and Forestry – South África - DWAF, 2004).Um projeto de desenvolvimento de serviços de água será a principal fonte de informação de uma autoridade responsável para obter as informações necessárias para a alocação para uma municipalidade e a concessão de licença. As exigências do projeto devem ser preenchidas na respectiva CMS. Por sua vez, quando preparar seu projeto de desenvolvimento de serviços de água, a autarquia de serviços de água deve se referir à estratégia de gestão de captação pertinente para obter informações sobre a disponibilidade de água para atingir as metas propostas para o serviço, a fonte da água e as exigências para as águas residuais que devem ser devolvidas para o recurso hídrico depois do uso. (DWAF, 2004). Fonte: DWAF, 2004

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Acesso à justiça

A governança efetiva da água que promove os princípios da GIRH deve fornecer uma estrutura em que todos tenham acesso à água e isso possa ser materializado por meio do acesso à justiça. O acesso à justiça exige uma estrutura legal efetiva e instituições em funcionamento para que isso se realize.

Pronto atendimento

O pronto atendimento "se refere a como os líderes e as organizações públicas consideram as necessidades dos cidadãos e defendem seus direitos" (DFID 2006). O centro de uma agenda de resposta imediata é o desenvolvimento de meios para que as pessoas articulem as suas opiniões e necessidades. O pronto atendimento do governo aos cidadãos a respeito da água inclui articular o direito à água (e avançar em direção); a equidade no desenvolvimento dos serviços de água, incluindo a preocupação com os direitos e o acesso das mulheres; fazer políticas pró-pobre e implementá-las; e a integridade dos funcionários públicos no cumprimento de seus papéis e responsabilidades para com os cidadãos. A agenda da governança da água abordando o pronto atendimento poderia incluir (DFID: 2006) os direitos humanos, a igualdade de gênero, as políticas pró-pobres, o combate à corrupção e integridade, e a igualdade regulatória.

7.4 O Papel da Governança na implementação da GIRH

A governança da água evolui ao longo do tempo, podendo se tornar mais forte ou mais fraca e, como resultado, necessita de reformas contínuas e periódicas. Vamos, então, examinar superficialmente o papel da governança na implementação da GIRH. A governança e as instituições oferecem um ambiente propício para fornecer o seguinte (lista não exaustiva):

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Legislação primária e

secundária

As instituições, as leis e os regulamentos fornecem as regras relativas à gestão dos recursos hídricos. Tanto no direito nacional, quanto no direito internacional, as disposições relativas ao uso da água, aos padrões de qualidade, ao monitoramento da qualidade da água, a troca de dados sobre qualidade da água, etc. precisam ser um componente padrão da legislação aplicável (Jaspers, 2005). A governança dos recursos hídricos na região da CDSA / SADC é gerida no âmbito do protocolo revisto da CDSA / SADC a respeito de cursos d’água compartilhados. O protocolo apoia a cooperação e a integração regional na gestão e no desenvolvimento dos recursos hídricos na região. O protocolo está em consonância com a Convenção das Nações Unidas, e seu principal objetivo é promover uma estreita cooperação para a gestão criteriosa, sustentável e coordenada dos cursos d’água compartilhados na região da CDSA / SADC para redução da pobreza. O Quadro 7.6 indica as instituições de governança para os cursos d’água compartilhados na região da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (CDSA / SADC).

Tomada de decisão e desenvolvimento de políticas

Considerando o fato de que as questões da água podem variar entre os setores, as áreas geográficas, como também entre os diferentes grupos de usuários, a GIRH requer processos coordenados de tomada de decisão. Sem um planejamento coordenado e o desenvolvimento de políticas coerentes é difícil aplicar abordagens integradas na gestão dos recursos hídricos. Os planos nacionais de GIRH incluem ações necessárias para desenvolver uma estrutura efetiva de políticas, legislação, financiamento, instituições capazes com papéis claramente definidos e um conjunto de instrumentos de gestão. O propósito dessa estrutura de governança da água

Quadro 7.5:Governança da Água na Região da SADC O instrumento fundamental do direito internacional da água na Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) é o Protocolo Revisto sobre Cursos de Água Compartilhados, assinado pelos estados-membros da CDSA /SADC em 2000, que entrou em vigor em 2003. O Protocolo funciona como uma estrutura para todos os acordos sobre cursos de água a serem concluídos na região da CDSA / SADC, e afirma que "os Estados de curso d’água podem celebrar acordos, que apliquem as disposições do presente Protocolo às características e usos de um curso d’água compartilhado em particular ou de parte dele". No plano institucional, as instituições da CDSA / SADC têm para monitorar funções em relação à aplicação do Protocolo da CDSA / SADC, e para facilitar a harmonização do direito e da política da água entre os estados membros da CDSA / SADC. As instituições da CDSA não estão implicadas com a implementação e aplicação dos acordos sobre a bacia como um todo. Isso é feito por instituições internacionais (compartilhadas) e por instituições nacionais dos países que fazem parte do acordo à nível da bacia (ver estudo de caso acima). Até esta data, a maior parte dos Comitês ou Comissões de Bacias Hidrográficas estabelecidos na região desempenham papel consultivo. Isso pode mudar com o tempo e eles podem vir a ser autorizados a gerenciar de forma independente as bacias hidrográficas. Assim, as instituições da CDSA / SADC não estão diretamente envolvidas no nível local de implementação da GIRH. No entanto, como discutido anteriormente, a GIRH a nível local está inserida numa estrutura nacional e internacional de leis e instituições. As diversas instituições da CDSA / SADC, bem como as instituições internacionais, como as Comissões de Bacias Hidrográficas são importantes componentes dessa estrutura geral. Fonte: Earle e Malzbender (2007) Fonte: Earle e Malzbender (2007)

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é efetivamente regular o uso, a conservação e a proteção dos recursos hídricos, equilibrando as exigências para um amplo desenvolvimento econômico e a necessidade de manter os ecossistemas

Controle e regulamentação (monitoramento, sanção e aplicação)

A gestão da água exige medidas de controle para alcançar uma governança efetiva. Algumas ferramentas e instrumentos de controle incluem: a qualificação de titularidade para uso por meio de emissão de permissão para captação, definição dos critérios para alocação de água e determinação de padrões de qualidade da água. A legislação sobre a água deve conter também os meios legais para garantir o cumprimento pelos diversos usuários do regime criado para o uso da água. Os meios de controle do cumprimento e imposição da lei podem ser encontrados na própria legislação sobre a água, mas também na legislação não especificamente sobre a matéria, como no direito administrativo ou mesmo penal.

Resolução de Conflitos

Sem um quadro efetivo de governança da água e de funcionamento das instituições, os conflitos entre diferentes usuários em competição são mais prováveis, têm menor probabilidade de serem resolvidos amigavelmente e o objetivo de GIRH, a gestão sustentável dos recursos hídricos e afins, não será alcançado. A estrutura legislativa deve exigir que as agências responsáveis pela administração do sistema de gestão da água trabalhem de forma integrada que permita partilhar os recursos e evitar responsabilidades sobrepostas ou incertas (Allan & Wouters, 2004).

7.5 Conclusão

Este capítulo destacou questões importantes em torno de um debate sobre a boa governança da água para a implementação efetiva dos princípios de GIRH. O capítulo apresentou uma oportunidade de apresentar novos elementos para promover a boa governança da água. Os princípios da efetiva governança de água incluem: transparência, participação, responsabilidade, acesso à justiça, e pronto atendimento. A necessidade de capacidade foi destacada como forma de garantir a implementação efetiva das reformas da governança da água. O capítulo tentou promover uma compreensão da relação entre a governança da água, o direito e as instituições, e seus papéis e funções na GIRH. Os princípios fundamentais da governança efetiva de água foram discutidos, embora muitas perguntas surjam ao longo do tempo em vários lugares que levantam questões a respeito do tema da boa governança da água. Pense sobre as questões em destaque no quadro abaixo e relacione-as ao seu país.

A implementação da GIRH : algumas perguntas

Quais são as implicações das mudanças climáticas na política da água, a estratégia, o direito e as instituições do seu país? Que dimensões da governança devem considerar as implicações das alterações climáticas?

Qual é o papel do gênero na governança e nas instituições para a implementação da GIRH?

As instituições tradicionais de governança de água podem informar a política da água e o desenvolvimento institucional? Você pode dar um exemplo?

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5

7.6 Leituras sugeridas

Associação Mundial pela Água (GWP), 2003. A Governança Eficiente da Água. Aprendendo com o diálogo. GWP. Estocolmo, Suécia Jaspers. Frank. 2003. Institutions for Integrated Water Resources Management. Training manual. UNESCO-IHE. Delft, Holanda. Jaspers. Frank. 2003. Instituições para a Gestão Integrada dos Recursos Hídricos. Manual de treinamento. UNESCO-IHE. Delft, Holanda.

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