151
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL HABILITAÇÃO EM JORNALISMO ANA PAULA SEERIG BIOGRAFIAS DA JOVEM GUARDA: ANÁLISE TEMÁTICA DO GÊNERO MAIS POPULAR DE LIVRO-REPORTAGEM CAXIAS DO SUL 2016

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

  • Upload
    vuminh

  • View
    225

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

ANA PAULA SEERIG

BIOGRAFIAS DA JOVEM GUARDA:

ANÁLISE TEMÁTICA DO GÊNERO MAIS

POPULAR DE LIVRO-REPORTAGEM

CAXIAS DO SUL

2016

Page 2: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

2

ANA PAULA SEERIG

BIOGRAFIAS DA JOVEM GUARDA:

ANÁLISE TEMÁTICA DO GÊNERO MAIS

POPULAR DE LIVRO-REPORTAGEM

Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo, da Universidade de Caxias do Sul. Orientador: Prof. Dr. Paulo Ribeiro

Caxias do Sul

2016

Page 3: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

3

ANA PAULA SEERIG

BIOGRAFIAS DA JOVEM GUARDA:

ANÁLISE TEMÁTICA DO GÊNERO MAIS

POPULAR DE LIVRO-REPORTAGEM

Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo, da Universidade de Caxias do Sul. Aprovado(a): _____/_____/2016

Banca Examinadora

_____________________________________

Prof. Dr. Paulo Ribeiro

Universidade de Caxias do Sul

_____________________________________

Prof. Me. Marcell Bocchese

Universidade de Caxias do Sul

_____________________________________

Prof. Esp. Luiz Ortiz Oliveira Filho

Universidade de Caxias do Sul

Page 4: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

4

Para Tiago de Melo Gomes (in memoriam). Pela disponibilidade em ler a escrita final do projeto que deu origem a esta monografia e pelas dicas de referências históricas, mas especialmente pela amizade e pelas aulas magníficas que me deu à distância, enquanto eu quietinha observava. Für Siegfried Seerig (in memoriam). Danke für die Geschenke, die Briefe und besonders Dank für die Freundschaft.

Page 5: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

5

AGRADECIMENTOS

Esta monografia existe por causa de três grupos específicos. O primeiro deles

é formado pelos meus pais, que por alguma razão jamais se ofenderam pela filha

nascida no início dos anos 90 querer saber mais de Jovem Guarda do que eles, pelo

contrário, até me usaram como desculpa para ir (e para não ir) em um show do

Roberto Carlos. Agradeço a eles as boas influências musicais e literárias, mas

especialmente a paciência para catar CDs e livros para mim (sem falar nas estantes

infinitas no meu quarto que abrigam tudo isso). O segundo grupo responsável por

este trabalho é a turma 51 de 2011 da Escola Municipal de Ensino Fundamental

Renato João Cesa. Meus alunos de estágio do Curso Normal foram extremamente

pacientes em aceitar trabalhar com músicas que iam de Irmãos Bertussi a Ultramen

e deram voz à pergunta que eu jamais tive coragem de formular na idade deles,

quando era fascinada por Roberto Carlos no período Jovem Guarda: “Por que o

Roberto Carlos era tão legal e agora é tão chato?”. Até hoje não sei a resposta, mas

obrigada por me fazerem relembrar que Jovem Guarda ainda pode ser legal. Por fim,

à vizinha e amiga de mais de uma década, Nicole Luísa Rech da Silva, que me deu

o vale-livro que resultou na descoberta e na compra de “Dez, nota dez: Eu sou

Carlos Imperial”, responsável por inspirar o tema desta monografia antes mesmo de

ser lido.

O desenvolvimento deste trabalho é resultado da paciência e ajuda de muitos

amigos. Tita Hart e Alice Mendes Rocha não só dedicaram-se a ler com olhos de

lince partes deste trabalho, como listaram nomes de terceiros que também

pudessem me auxiliar, sendo que apenas Leo Piltcher foi realmente incomodado

para a função de reler trechos desta monografia. Obrigada aos três. Agradeço

também à Bárbara Farias pela paciência em ler o capítulo mais teórico deste

trabalho e pelas conversas sobre o curso de Jornalismo e tudo que o envolve.

Agradecimentos à Jaci Clemente pela leitura de alguns capítulos e por, junto da

Michele Lima, ter paciência com minhas dívidas blogueiras. Aos amigos que

entenderam meu sumiço em função da monografia, especialmente a Janaína

Tramontin Patrício, que está fazendo intercâmbio nos States e, mesmo depois de eu

dizer mil vezes que ela poderia me chamar a qualquer hora, teve paciência pra

entender porque, em determinados momentos, não pude respondê-la com a

agilidade que gostaria.

Page 6: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

6

Na esfera educacional, agradeço a todos os ótimos professores que tive ao

longo dos anos, neste caso especialmente às professoras de História que sempre

motivaram o pensamento crítico em suas aulas: Anna Maria (me falha a memória

para o sobrenome), Simone de Oliveira, Cleudete Piccoli e Roseli Bergozza. Porém

esta monografia tem principal influência de um curso fora das salas do ensino

fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que

foi a ditadura militar brasileira, mas especialmente pela paciência com as minhas

defesas exaltadas e incansáveis da Jovem Guarda. Continuo defendendo o

movimento, mas com argumentos melhor embasados graças às tuas aulas. Aos

colegas universitários que formaram meus melhores grupos de trabalho e se

tornaram amigos: Lucas Silvestro Armiliato, Rafael Fandinho e Gabriel Buffon Bordin

- na primeira metade da faculdade; e Claudia Palhano, Franciane Peracchi, Joeldine

Motta de Andrade e Karine Bergozza, que tornaram minha vida universitária muito

mais fácil nestes últimos semestres.

Aos melhores professores de jornalismo que tive: meus colegas de trabalho

no jornal Folha de Caxias, mas especialmente a Alessandro Valim e Gabriel de

Aguiar Izidoro pela oportunidade que me deram quando eu estava apenas no 3º

semestre de curso e nem tinha certeza de porquê escolhi Jornalismo, e à ‘minha

editora-chefe’ Louise Pierosan pela paciência com minha mania de vírgulas e outros

vícios de escrita. Agradecimentos ao professor Paulo Ribeiro pelas orientações

claras e diretas que foram fundamentais para o desenvolvimento desta monografia.

Ainda me surpreendo com o fato de ter aceitado um tema que duplamente me

empolga (biografias e Jovem Guarda), o que facilitou imensamente as horas

dedicadas à pesquisa e à escrita deste trabalho. Obrigada por duvidar de mim em

diferentes momentos (começando pela escolha de analisar três livros ao mesmo

tempo), isso fez com que eu redescobrisse minha teimosia natural e resultou na

entrega do projeto e da monografia antes do prazo; mas especialmente obrigada

pela sinceridade e paciência (com minhas teimosias) durante todo o tempo.

Meu obrigada também àqueles que estão sempre presentes: meu irmão João

(pelo companheirismo, pelas azeitonas e chimias/Schmiers de figo), meu tio Nereu

(pelas aulas musicais, literárias e de baralho ̶ por ser o melhor tio do universo), meu

avô Sebastião (por sempre acreditar nos talentos que tenho ̶ e nos que não tenho)

e minha família de coração: Militino, Beloni, Marta, Yuri e Claudio (pelos almoços e

conversas semanais, mas especialmente pela amizade de todas as horas).

Page 7: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

7

"Vou largar a Jovem Guarda e serei mais feliz. Vou largar a Jovem Guarda por todo o país.” Frank Jorge “Academia é só mania de quem tem plata.” João Chagas Leite

Page 8: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

8

RESUMO

Esta monografia tem como objetos de estudo três livros-reportagem-biografia de nomes importantes do movimento Jovem Guarda. A metodologia que serviu de base foi a análise de conteúdo temático qualitativo, a partir da qual percebeu-se a estrutura biográfica de cada uma e fez-se a leitura comparativa das três biografias. O objetivo principal foi identificar a profundidade do trabalho do biógrafo para (re)construir seu personagem. O resultado final mostrou que uma das biografias possui diversas carências, prejudicando a compreensão do leitor e o entendimento do personagem biografado. Como conclusão obteve-se a certeza de que a contextualização histórica e as técnicas de escrita têm influência direta no produto final que chega às mãos do leitor, assim como uma pesquisa aprofundada. Palavras-chave: Livro-reportagem. Biografia. Jovem Guarda. Ditadura militar.

Page 9: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

9

ZUSAMMENFASSUNG

Diese Monografie analysiert drei Bücher-Reportage-Biografien über wichtige Namen der Musikbewegung Jovem Guarda. Die benutzte Methodologie war die qualitative Analyse des Inhalts, ab welche wurde jede Biografie untesucht und machte eine vergleichende Lesung unter den drei Bücher. Das Hauptobjektiv war die Tiefe der Tätigkeit des Biografs für seine Figur (re)konstruiren identifizieren. Das endgültiges Ergebnis zeigte viele Entbehrungen in einer der Biografien, was schadet das Verständnis des Lesers über der Figur der Biografie. Als Vollendung, es erlangte die Sicherheit über der Wichtigkeit des historisches Kontexts und der Schrifttechnik für die Biografen, sowie eine tiefe Forschung.

Schlüsselwörter: Buch-Reportage. Biografie. Jovem Guarda. Militärische Diktatur.

Page 10: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

10

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................... 12

2 LIVRO-REPORTAGEM ...................................................................... 17

2.1 JORNALISMO LITERÁRIO E NEW JOURNALISM ............................ 20

2.2 JORNALISMO TRADICIONAL VERSUS LIVRO-REPORTAGEM...... 23

2.2.1 Pauta .................................................................................................. 23

2.2.2 Apuração ........................................................................................... 26

2.2.3 Escrita ................................................................................................ 29

2.3 BIOGRAFIA ........................................................................................ 31

2.3.1 Contratos autorais ............................................................................ 34

2.3.2 Fontes ................................................................................................ 36

3 CONTEXTO HISTÓRICO: A DÉCADA DE 60 .................................. 38

3.1 INÍCIO DA DITADURA MILITAR BRASILEIRA .................................. 39

3.2 A LUTA DOS ESTUDANTES ............................................................. 43

3.3 MOVIMENTOS CULTURAIS .............................................................. 46

3.3.1 Tropicalismo: Entre a MPB e a Jovem Guarda .............................. 49

4 JOVEM GUARDA .............................................................................. 55

4.1 ARTISTAS .......................................................................................... 58

4.2 SUCESSO E CRÍTICA ....................................................................... 65

4.2.1 As entrelinhas das canções ............................................................ 68

5 ENTRELINHAS DA JOVEM GUARDA: ANÁLISE DE BIOGRAFIAS 74

5.1 PERSONAGENS: ANÁLISE INDIVIDUAL DAS BIOGRAFIAS .......... 78

5.1.1 “Roberto Carlos em detalhes”, de Paulo Cesar de Araújo ........... 79

5.1.2 “Dez, nota dez: Eu sou Carlos Imperial”, de Denilson Monteiro .. 91

5.1.3 “Ronnie Von: O príncipe que podia ser rei”, de Antonio Guerreiro e

Luiz Cesar Pimentel .......................................................................... 99

5.2 CENÁRIOS E BASTIDORES: LEITURA COMPARATIVA DAS

BIOGRAFIAS .................................................................................... 107

5.2.1 Cenário político: a ditadura militar ................................................ 107

Page 11: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

11

5.2.2 Cenário musical: a Jovem Guarda ................................................ 113

5.2.3 Encontro dos personagens ............................................................ 123

5.2.3.1 Carlos Imperial e Roberto Carlos ...................................................... 123

5.2.3.2 Roberto Carlos e Ronnie Von ........................................................... 132

5.2.3.3 Ronnie Von e Carlos Imperial ........................................................... 135

5.3 ENTRE BIÓGRAFO E LEITOR: O PERSONAGEM (RE)ESCRITO . 138

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 143

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 148

Page 12: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

12

1 INTRODUÇÃO

A presente monografia tem como objetos de estudo três biografias

relacionadas ao movimento Jovem Guarda: “Roberto Carlos em detalhes”, de Paulo

Cesar de Araújo; “Dez, nota dez: Eu sou Carlos Imperial”, de Denilson Monteiro; e

“Ronnie Von: O príncipe que podia ser rei”, de Antonio Guerreiro e Luiz Cesar

Pimentel. A proposta é analisar a estrutura de cada uma delas, com a intenção de

identificar erros e acertos no trabalho do biógrafo, e compará-las, já que os três

personagens foram significativos um na vida do outro, para perceber as

semelhanças e diferenças no modo com que cada autor construiu sua narrativa.

Para abranger todas essas perspectivas, a questão norteadora deste trabalho

é: Como a motivação e a forma de pesquisa dos biógrafos influenciam na construção

das personalidades de Carlos Imperial, Roberto Carlos e Ronnie Von nos livros-

reportagem? Ou seja, a intenção é identificar o trabalho do biógrafo em pesquisar e

escrever a vida de uma personalidade de modo que atraia o leitor e, principalmente,

torne o biografado mais próximo do público. Para tentar respondê-la foram

levantadas as seguintes hipóteses:

a) A relação do biógrafo com o biografado é essencial para o resultado final do livro-

reportagem.

b) As formas de pesquisas usadas afetam a profundidade final de cada livro-

reportagem.

c) O apoio do biografado e/ou da família influi na pesquisa e, consequentemente, na

construção do personagem do livro-reportagem.

d) O estilo de escrita e as contextualizações usadas por cada autor baseiam a

construção do biografado por parte do leitor.

Este tipo de análise se faz necessário porque, além de ser o gênero de livro-

reportagem mais popular, também é um campo de atuação em crescimento no

Brasil. Apesar de não ser escrita apenas por jornalistas, a biografia tem a mesma

base que qualquer outro produto jornalístico: pauta, apuração e escrita. Além disso,

ao mesmo tempo em que há reportagens mal feitas, há biografias mal construídas,

tornando assim mais necessária a análise de sua estrutura. Por ser uma área ainda

Page 13: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

13

pouco desbravada, muitas vezes há produtos biográficos que não atraem o leitor ou

deixam a desejar. Para entender melhor a razão disso é preciso, então, resgatar a

estrutura do livro-reportagem-biografia, e, ao mesmo tempo, identificar a relação

entre biógrafo e biografado, para saber se ela atinge diretamente o resultado final, e,

consequentemente, o modo como o personagem será apresentado ao leitor.

A Jovem Guarda foi escolhida como ponto de encontro das biografias a serem

analisadas por, nos últimos anos, ser tema de diferentes livros-reportagens,

especialmente biografias e autobiografias. Além disso, ter um ponto em comum

entre os biografados torna possível uma análise mais crítica do trabalho individual de

cada biógrafo, já que o cenário político-cultural é o mesmo e os personagens

afetaram as vidas uns dos outros de alguma forma. Ou seja, ao comparar os

momentos comuns é possível reconhecer mais facilmente a construção do trabalho

do biógrafo, da pesquisa à escrita. A profundidade e construção do texto de cada

autor são diferentes, sua relação com seus biografados são diferentes, mas cenários

e situações idênticas acabam por tornar isso mais sobressalente, podendo assim ser

melhor observado e analisado o trabalho de cada um.

Partindo desta proposta, o objetivo principal desta monografia é perceber o

papel do biógrafo em (re)construir a personalidade do biografado ao escrever um

livro-reportagem. Ou seja, identificar seu compromisso com todas as partes da

construção biográfica, da pesquisa à escrita, através do produto final entregue ao

leitor. Para alcançá-lo, foram estabelecidos objetivos específicos que têm por meta

reconhecer os cenários comuns a todos os personagens e a estrutura individual de

cada livro. O primeiro objetivo específico, porém, é definir o que é livro-reportagem e

biografia, sendo o segundo um produto derivado do primeiro. No que se refere à

Jovem Guarda, os objetivos são localizar o contexto nacional da época (ou seja, a

ditadura militar) e reconhecer a importância do movimento para a juventude da

época. No desenvolvimento da análise em si a proposta é analisar a estrutura

individual de cada biografia e, depois, em uma leitura comparada, identificar cada

personagem durante a Jovem Guarda e contrastar os três livros através dos pontos

comuns aos três biografados.

Os objetivos específicos influenciaram diretamente a construção desta

monografia, que tem seus capítulos divididos tematicamente na intenção de tornar

Page 14: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

14

mais claro o trabalho de análise desenvolvido ao final. Como não poderia deixar de

ser, o capítulo inicial tem como proposta definir livro-reportagem, tendo como

referências Edvaldo Pereira Lima e Eduardo Belo. Nele são resgatadas a origem

deste produto jornalístico tal como suas influências no decorrer dos anos, sendo a

principal delas o movimento do new journalism. Além disso, com o propósito de

entender melhor a estrutura do livro-reportagem, é comparada sua base de

desenvolvimento (pauta, apuração e escrita) com a usada no jornalismo tradicional.

Ou seja, a intenção aqui é reconhecer as semelhanças e diferenças entre os dois.

Também neste capítulo será definido o que é biografia e como são suas

classificações (autorizada, independente, encomendada e ditada), tendo Sergio

Vilas-Boas como referência principal da estrutura biográfica.

O capítulo seguinte resgatará o contexto histórico nacional no final da década

de 60, período em que aconteceu o movimento Jovem Guarda. Neste momento será

retomado principalmente o golpe militar de 1964 e os movimentos estudantis e

culturais que responderam a ele. Serão apresentados os Atos Institucionais e as leis

que marcaram os primeiros anos da ditadura, assim como seu reflexo na sociedade

e na política. Entre os movimentos abordados no capítulo, o Tropicalismo ganhará

destaque por ter sido o mais significativo politicamente para a juventude da época,

além de ter marcado a história musical do país, pois uniu a MPB e o rock (então

desprezado pelos músicos mais tradicionais), retomando assim a ‘linha evolutiva’ da

música nacional. Os autores que dão base a este capítulo são Marcos Napolitano,

Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves, além do documentário

“Uma noite em 67”, de Renato Terra e Ricardo Calil.

A seguir, o capítulo 4 falará exclusivamente da Jovem Guarda: sua origem,

seus artistas e sua influência para os jovens da época, além de abordar as críticas

levantadas contra o movimento. Para isso foram usados como referência os

trabalhos de Ricardo Pugialli, Paulo Tarso de Cabral Medeiros e Marcelo Fróes, que

se dedicaram a escrever exclusivamente sobre a Jovem Guarda; além dos

estudiosos musicais Waldenyr Caldas e Jairo Severiano. No resgate dos principais

artistas da Jovem Guarda, o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, em

plataforma online, também foi fundamental. Para melhor entendimento dos prós e

contras do movimento, será abordada a música “Quero que vá tudo pro inferno”, de

Roberto Carlos, que foi especialmente marcante para aquela geração. Em alguns

Page 15: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

15

momentos se faz necessário citar Paulo Cesar de Araújo e Denilson Monteiro,

autores de duas das biografias analisadas nesta monografia.

Por fim será feita a análise em si e o capítulo será dividido em três partes

específicas. A primeira delas é análise individual das três biografias, onde serão

transcritas partes dos livros com o intuito de mostrar a estrutura usada por cada

autor (contextualização, fontes, técnicas de escrita), assim como a repercussão da

obra. Em seguida serão feitas leituras comparadas com base no contexto histórico

político e cultural e na relação existente entre os biografados, sendo também

necessário reproduzir trechos das biografias analisadas. A parte final será o

fechamento da análise, trazendo as inferências construídas durante o processo.

A elaboração de inferências é o nível final da análise de conteúdo temática

qualitativa, que é a metodologia escolhida para guiar esta monografia, pois ela se

refere ao estudo de estruturas e técnicas simbólicas a respeito de um determinado

tema. Como dificilmente se pode fazer uma avaliação quantitativa neste tipo de

método, o objetivo é ressaltar e/ou criticar as qualidades do assunto estudado. A

teoria metodológica apresentada neste trabalho tem por base os estudos de análise

de conteúdo feitos por Wilson Corrêa da Fonseca Júnior, Maria Socorro Pereira

Rodrigues e Maria Tereza Leopardi. Esta metodologia se apresenta em três partes:

a pré-análise (escolha do objeto a ser analisado, no presente caso, as biografias), a

exploração do material (aqui será feita a escolha de trechos que servirão de

argumentos) e o tratamento de resultados obtidos, também conhecido por pós-

análise (na qual será feita a leitura comparativa das biografias e as inferências, como

antes mencionado).

Todo o processo será desenvolvido com o intuito de demonstrar o valor da

boa estruturação na construção de uma biografia, a qual liga três indivíduos

diferentes: biógrafo, biografado e leitor. O sucesso ou fracasso das relações diretas

e indiretas entre os três é resultado do trabalho de pesquisa e escrita, atos

fundamentais no jornalismo. Analisar esse gênero é uma forma de chamar a atenção

de profissionais e estudantes de comunicação para o produto existente na biografia,

o qual oferece oportunidade de trabalho independente, longe da mídia tradicional,

porém com o mesmo valor jornalístico (senão maior) do hard news.

Page 16: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

16

A falta de envolvimento acadêmico com o livro-reportagem não acontece

apenas nas salas de aula universitárias, mas também, e talvez principalmente, nas

pesquisas da área. Poucos são os autores que se aprofundam no tema e, quando o

fazem, necessitam recorrer a fontes internacionais. Sendo assim, a análise

biográfica desta monografia propõe em suas entrelinhas uma aproximação entre o

gênero e jornalistas de todas as idades e campos de atuação. Além de tudo, o

desenvolvimento do livro-reportagem aproxima o jornalismo da literatura, o que só

agrega valor ao trabalho jornalístico diário. O estudo da estrutura do livro-reportagem

e da biografia não serve apenas como acréscimo ao conteúdo apresentado

academicamente na área de comunicação, mas sim passa a ser uma pedra de base

que pode ser essencial na atual revolução tecnológica.

Page 17: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

17

2 LIVRO-REPORTAGEM

“Leute mit Mut und Charakter sind den andern Leuten immer sehr unheimlich.”1

Hermann Hesse

O livro-reportagem é um produto já antigo do jornalismo, no entanto as

referências sobre ele são poucas. Em decorrência dos raros estudos a seu respeito,

sua definição ainda está em desenvolvimento, baseando-se sempre em sua função

no contexto cultural de cada país. No Brasil, o principal nome quando se trata de

livro-reportagem é Edvaldo Pereira Lima, autor dos livros “O que é livro-reportagem”

e “Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da

literatura”. Segundo ele,

[...] do ponto de vista físico, material, o livro-reportagem é apenas um veículo de comunicação jornalística não-periódica. Mas se alçamos a vista para encarar o fenômeno completo, dinâmico, como um processo da comunicação social moderna, então podemos entendê-lo como um subsistema híbrido, com ligações fundamentais com o sistema jornalismo, em primeiro plano, e com ligações secundárias com o sistema editorial. (LIMA, 2004, p. 38)

No que se refere às relações diretas com o jornalismo está a reportagem em

si. Assim como uma grande reportagem, o livro-reportagem precisa de uma pauta, a

partir da qual são relacionadas as diferentes perspectivas a serem abordadas de

modo que o leitor possa chegar a uma conclusão própria. No entanto, a cultura do

livro-reportagem é diferente no Brasil em comparação a outros países, como destaca

o jornalista Eduardo Belo.

[...] as motivações para o crescimento do jornalismo em livro têm aqui o sentido contrário do que ocorre na Europa e nos Estados Unidos. Lá, a tradição da reportagem abre espaço para explorar mais profundamente nos livros temas que não interessam a jornais e revistas ou que já tenham sido muito abordados pelos periódicos. É comum encontrar nas livrarias americanas livros com diferentes enfoques sobre um mesmo assunto. Três ou quatro biografias simultâneas de um mesmo personagem. Aqui, uma parcela importante do livro-reportagem, a que trata de temas contemporâneos, ocupa basicamente o espaço deixado pela cobertura superficial dos periódicos. (BELO, 2006, p. 40)

1 Em tradução literal: “Pessoas com coragem e caráter são sempre muito inquietantes para os

outros.” Frase retirada do romance “Demian”, de 1919.

Page 18: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

18

Ou seja, o desapego do jornalismo diário pela profundidade acaba por abrir as

portas do livro-reportagem para jornalistas que estão mais interessados em

desvendar as entranhas de uma notícia em lugar de se satisfazerem com apenas

algumas linhas impressas e a justificativa de que o tema já rendeu o que podia. Do

mesmo modo, este produto jornalístico atrai os cidadãos-leitores que querem

visualizar uma notícia numa amplitude maior, compreender suas causas e

consequências e fugir das conclusões simples encontradas nas entrelinhas dos

periódicos. Para Lima (1993, p. 17), “o livro-reportagem contribui para que o leitor

conquiste uma compreensão ampliada da contemporaneidade, na medida que não

fica, muitas vezes, limitado aos fatos isolados do cotidiano que geram notícias dos

outros veículos jornalísticos”.

Independentemente das revoluções na comunicação e da concorrência entre

as diferentes plataformas jornalísticas (impresso, rádio, televisão e, mais

recentemente, internet), a fórmula permanece a mesma. Tendo por base o lead (o

quê? quem? quando? onde? por quê?) e a preocupação com a atualidade, a maior

parte dos veículos deixa de fora a abordagem profunda da notícia, esquecendo o

resgate histórico que justifique a ocorrência do fato e a explicação das

consequências que ele pode desencadear. Isso faz com que o próprio

leitor/ouvinte/telespectador deixe de dar real atenção às notícias, que, em sua

semelhança de formato, pouca atenção despertam e quase nenhuma compreensão.

É essa carência que faz com que os leitores busquem livros-reportagens para

entender melhor um assunto.

O livro vem fazer a tradução, interligar pedaços de fatos expostos de maneira fragmentada. Quando o assunto interessa ao leitor, ele vai atrás, lê, quer saber. Circunstâncias que fazem com que uma parcela dos leitores não se incomode em mergulhar numa massa de informações gigantesca, movida pela vontade de conhecer mais sobre determinado assunto ou, simplesmente, pelo prazer de ter acesso a uma boa história. (BELO, 2006, p. 41)

Lima destaca que essa insatisfação dos leitores ávidos por uma informação

ampla afeta diretamente a credibilidade do jornalismo atual.

A imprensa acaba colocando em evidência sua incapacidade de ler a essência das coisas, que permanece inatingível porque todo o procedimento do jornalismo industrial moderno conduz a uma leitura das aparências

Page 19: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

19

apenas. Isso é grave quando, por meio da grande reportagem, o leitor recebe a promessa de um mergulho em profundidade cujo objetivo é ampliar sua compreensão do real. Esse objetivo, no entanto, não pode ser atingido, exatamente porque os instrumentos de mergulho e os procedimentos dos mergulhadores são intrinsecamente inadequados para perceber e captar toda a riqueza material e sutil do oceano em torno (LIMA, 1993, p. 23)

Essa limitação não decepciona e afasta apenas leitores, mas também, e

talvez principalmente, jornalistas que esperam que a profissão lhes ofereça

possibilidades amplas para pesquisar os detalhes dos fatos e trazê-los a público, de

modo que seu trabalho atinja a sociedade de maneira positiva, tornando-a mais

bem-informada e crítica em relação aos acontecimentos do dia a dia. Porém, a rotina

do jornalismo diário foge disso, focando-se mais em quantidade do que em

qualidade e priorizando a atualidade em detrimento da profundidade de um fato

passado.

Os profissionais insatisfeitos com a fórmula rígida do jornalismo diário optam,

então, por se aprofundar em determinado tema e transformá-lo em livro, sendo que,

na maioria das vezes, isso é feito de forma independente e em paralelo com o

trabalho dentro de um veículo, já que ainda é difícil viver da produção de livro-

reportagem.

Quem investe em livro-reportagem no Brasil o faz em nome de um jornalismo mais vibrante e ao mesmo tempo mais inspirado e criativo do que o praticado na média do dia-a-dia das redações. O faz por amor à reportagem e pela necessidade de contar histórias que atualmente não cabem em outros veículos ̶ por força de limitações técnicas ou das circunstâncias. (BELO, 2006, p. 36)

Assim como qualquer livro e reportagem, a qualidade de um livro-reportagem

tem ligação direta com o talento e dedicação de seu autor. Todo o trabalho

desenvolvido entre a escolha do tema e a escrita final do trabalho afetam

diretamente o produto que chegará às mãos do leitor e, consequentemente, sua

apreciação e aprovação. Como ressalta Lima (1993. p. 27), “o resultado depende

muito do talento do autor, da abrangência do tema, das condições de produção, do

profissionalismo da editora, e assim por diante. Há livros-reportagem excelentes,

bons e medíocres”.

Page 20: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

20

2.1 JORNALISMO LITERÁRIO E NEW JOURNALISM

Tal como em uma grande reportagem, para manter o leitor atento e

interessado até o final é importante que o jornalista saiba escapar da monotonia em

sua narrativa, o que torna o jornalismo muito próximo da literatura.

[...] os autores devem utilizar os mais diferentes artifícios de construção de texto, de modo que haja variação do ritmo narrativo, mudança de certas características do estilo, alterações do ponto de vista ̶ da perspectiva sob a qual o tema em foco está sendo tratado em seu texto ̶ e assim por diante, fazendo uso de uma variada bateria de recursos disponíveis. Tudo para que sua mensagem seja fluente, capaz de captar e de manter o interesse do leitor, do princípio ao fim. (LIMA, 1993, p. 43)

Escritores como George Orwell e Ernest Hemingway já haviam trazido a

fluência da literatura para o jornalismo no início do século XX, mas foi na década de

60, com a revolução cultural guiada pelos hippies e pelo rock’n’roll, que surgiu nos

Estados Unidos a principal referência do livro-reportagem: o new journalism.

Sob o lema “Paz e amor” e protestos contra a guerra do Vietnã, a juventude

norte-americana modificava a cultura nacional e influenciava o resto do mundo.

Enquanto isso, o jornalismo dos Estados Unidos permaneceu igual até que alguns

profissionais do impresso

[...] verificaram que não bastava tentar captar o real de maneira linear, lógica. A isso era necessário somar-se a experiência vital de o repórter lançar-se a campo aberto, nos cenários sobre os quais escreveria, para melhor sentir a realidade também no que tem de subjetiva, imaterial. O novo jornalismo traz à luz dos holofotes o mesmo timbre de sensualidade, de mergulho completo, corpo e mente, que outros meios de expressão da contracultura, como o cinema underground, estavam incorporando. Assim, suas reportagens têm calor, vida, rostos, nomes. (LIMA, 1993, p. 46)

Ou seja, o jornalismo se torna mais humano na medida que, em lugar de fazer

entrevistas, os repórteres “saem a campo para vivenciar de peito aberto a realidade

de seus personagens. Convivem com eles dias, semanas, meses” (LIMA, 1993, p.

47). De reportagens, o new journalism seguiu um curso natural até chegar ao

formato de livro, sendo o primeiro deles “A sangue frio”, de Truman Capote.

A transição de um meio para outro era quase uma consequência direta do profundo interesse que havia na sociedade pelas histórias humanas, contadas de forma saborosa e muitas vezes em séries de reportagens. Uma parte do público fazia questão de guardar aqueles retratos de época, e a

Page 21: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

21

idéia de transformá-los em livro acabou parecendo bastante natural. (BELO, 2006, p. 25)

A grande revolução do new journalism foi o estilo da escrita, o qual se

apropriou de quatro recursos técnicos do realismo social (LIMA, 1993. p. 48): o ponto

de vista, símbolos do cotidiano, os diálogos e a construção cena-a-cena, sendo que

o primeiro foi o que mais fugiu das regras tradicionais do jornalismo, que defendem

que os fatos devem ser apresentados sem qualquer pessoalidade.

Também conhecido como fluxo de consciência, o recurso do ponto de vista

permite que seu autor entre na cabeça de seus personagens, apresentando suas

perspectivas e emoções de modo aleatório. Através dessa técnica, o jornalista pode

escrever parte do texto em primeira pessoa, parte em terceira, e até mesmo se

incluir na história, colocando suas percepções pessoais.

Os símbolos do cotidiano abrangem o cenário em si e tudo que dele faz parte:

vestuário, decoração, costumes, gestos e o que mais for necessário para que o leitor

compreenda melhor os personagens e os fatos. “O objetivo é fazer o leitor captar

uma impressão mais densa e completa da realidade que o relato reproduz” (LIMA,

1993, p. 50).

Já os diálogos e a construção cena-a-cena dão ritmo ao texto e um significado

maior ao tema. Enquanto os diálogos são usados do modo mais natural possível, ou

seja, “o mais fidedigno que se pode em relação a como de fato ocorreram” (LIMA,

1993, p. 50), a narração é feita no presente, para que o leitor acompanhe a cena.

Na década de 70, assim como o movimento hippie, o new journalism teve seu

fim. A maior herança deixada foi a comprovação “de que a melhor reportagem, no

sentido de captação de campo e fidelidade para com o real, pode combinar-se muito

bem com a melhor técnica literária” (LIMA, 2004, p. 211). Convém lembrar também

que o new journalism deu apenas novo formato ao jornalismo literário, que sempre

existiu, pois “repórteres rebeldes sempre procuraram, ao longo da história, manter

viva a chama da reportagem mais solta, criativa, provocante, tirando da literatura - e

de outras formas de compreensão e expressão do mundo - inspirações renovadoras”

(LIMA, 1993, p. 51-52).

Outro legado do new journalism foi a definição de “romance de não-ficção”

criado por Truman Capote para classificar seu livro “A sangue frio”, que registra

detalhes do massacre de uma família norte-americana a partir de depoimentos dos

assassinos. A respeito disso, Belo (2006, p. 43) ressalta que “nem toda não-ficção é

Page 22: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

22

jornalismo, mas todo o jornalismo tem que ser, por princípio, não-ficcional”. Ou seja,

o livro-reportagem tem sua base na realidade e a ela tem que se manter fiel.

No Brasil, o primeiro livro-reportagem é “Os sertões”, de Euclides da Cunha.

Enviado do jornal O Estado de S. Paulo para cobrir o conflito que ficou conhecido

como Guerra dos Canudos, ocorrido entre 1896 e 1897, o engenheiro por formação

escreveu matérias que apenas em 1902 foram copiladas em formato de livro, o qual

hoje possui mais de 40 edições.

Quando lança sua obra-prima em 1902, Euclides da Cunha acaba por simbolizar aquele profissional que fica no meio-termo curioso da ficção e da realidade para construir um relato de profundidade. Vale-se de um acontecimento ainda do século anterior, mas trabalha com tal afinco e com tal qualidade que não se pode deixar de reconhecer, em seu texto, o prenúncio do potencial futuro reservado à reportagem pura em forma de livro. (LIMA, 2004, p. 212)

No que se refere a jornalismo literário, o veículo de maior referência foi a

revista O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand, que na década de 40 passou a investir

na reportagem. Com a chegada do fotógrafo francês Jean Manzon, o jornalismo

brasileiro mudou. Foi Manzon quem trouxe a cultura do jornalismo em dupla, repórter

e fotógrafo, e, ao lado de David Nasser, assinou reportagens que, ainda que por

muitos fossem tidas como sensacionalistas, atraíram o grande público.

Na década de 60, com a fórmula de Manzon e Nasser já gasta, a revista

Realidade revolucionou com sua ampliação temática, além de ter raízes no new

journalism.

Realidade não se prende ao fato do dia-a-dia, propõe sair da ocorrência para a permanência. Seus temas não são os fatos isolados imediatos, mas sim a situação. O contexto em que esses fatos se dão. [...] Desse modo, o interesse não é noticiar que o preço dos legumes aumentou semana passada e por quê, mas mostrar como se movimenta a máquina do abastecimento da grande cidade 24 horas por dia, mês após mês; não é contar que o juiz foi vaiado no Maracanã, lotado no clássico de domingo, mas debulhar, num quadro contextual, as realidades duradouras da atividade desse profissional. (LIMA, 2004, p. 226)

Essa mesma proposta de esmiuçar o contexto em que ocorre o fato, desde as

suas causas até suas consequências, é a base do livro-reportagem. O fato cru, por

assim dizer, tem seu espaço no noticiário diário. Ao jornalista que se propõe a

aprofundar o tema cabe buscar o máximo de detalhes possíveis e juntá-los de forma

Page 23: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

23

compreensível para o leitor, usando para tal técnicas literárias que tornem o texto

dinâmico e interessante.

2.2 JORNALISMO TRADICIONAL VERSUS LIVRO-REPORTAGEM

Por ser produto jornalístico, apesar de nem sempre ser escrito por

profissionais da área, o livro-reportagem possui semelhanças com os textos de

jornais e revistas, começando pela pauta, porém possui uma liberdade maior, que

vai desde a questão temática até o modo de abordagem, do que nos veículos

tradicionais. Ou seja, ao mesmo tempo em que possui suas raízes no jornalismo

diário, o livro-reportagem aprofunda e acrescenta informações à notícia já

conhecida.

Em uma definição quase acadêmica, é possível dizer que livro-reportagem é um instrumento aperiódico de difusão de informação de caráter jornalístico. Por suas características, não substitui nenhum meio de comunicação, mas serve como complemento a todos. É o veículo no qual se pode reunir a maior massa de informação organizada e contextualizada sobre um assunto e representa, também, a mídia mais rica ̶ com a exceção possível do documentário audiovisual ̶ em possibilidade para experimentação, uso de técnica jornalística, aprofundamento da abordagem e construção da narrativa. (BELO, 2006, p. 41)

Partindo da ideia de que o jornalismo se baseia em três momentos principais ̶

a saber: pauta, apuração e escrita (no caso do impresso) ̶ a melhor maneira de

comparar o livro-reportagem e o jornalismo tradicional é perceber essas três

situações em cada produto e diferenciar o modo de trabalho do jornalista que

trabalha em um veículo de comunicação e do que tem por objetivo escrever uma

grande reportagem em formato de livro.

2.2.1 Pauta

Como foi dito antes, assim como em uma reportagem, o desenvolvimento de

um livro começa pela escolha do tema, ou seja, a pauta. Em ambos os casos, a

decisão traz um fato real, uma notícia. Nas duas situações, cabe ao jornalista, antes

de sair a campo, buscar o que já se sabe sobre o tema, o que foi publicado e até

mesmo comentários não confirmados.

Page 24: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

24

No que concerne um livro-reportagem, a diferença está na variedade de

temas. Ao contrário do jornalismo diário, não precisa ser uma notícia recente nem

um furo de reportagem, podendo ser sobre uma única pessoa ou um lugar, por

exemplo. Lima (2004, p. 51-59) propõe treze classificações que demonstram a

amplitude do produto:

Livro-reportagem-perfil: busca apresentar uma pessoa do modo mais humano

possível. Lima cita o livro-reportagem-biografia como variante do perfil. A diferença

entre os dois é que, enquanto a biografia se propõe a apresentar a vida toda de um

personagem, o perfil pode se focar em um único momento ou perspectiva.

Livro-reportagem-depoimento: Apresenta a perspectiva de um personagem

envolvido em um acontecimento relevante. Caracteriza-se por seus detalhes e pela

sequência de cenas, os quais tornam a história mais próxima e real para o leitor.

Livro-reportagem-retrato: Possui a mesma proposta que o livro-reportagem-perfil, no

entanto, em lugar de apresentar uma pessoa, se foca em uma região geográfica, um

segmento econômico ou mesmo um setor da sociedade. Ou seja, na maioria das

vezes possui motivação educativa, com a proposta de esclarecer os problemas e a

complexidade do tema.

Livro-reportagem-ciência: Aborda questões científicas, desde explicar um tema a

apresentar uma reflexão ou crítica a respeito dele.

Livro-reportagem-ambiente: Tem relação direta com a natureza. Pode ser uma

proposta de conscientização a respeito do ambiente, uma crítica ou mesmo

combater determinadas atitudes em relação ao meio ambiente.

Livro-reportagem-história: Traz um fato passado, na maioria das vezes com alguma

relação com o presente. Aqui se encaixam, segundo Lima, livros-reportagem com

história empresarial ou episódios históricos de grande relevância, sendo que esta

última proposta o autor chama de livro-reportagem-epopeia.

Page 25: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

25

Livro-reportagem-nova consciência: Aborda correntes comportamentais, sociais,

culturais, econômicas e religiosas resultantes de dois importantes acontecimentos

dos anos 60: a contracultura e a aproximação à cultura e civilização do Oriente

Médio e da Ásia.

Livro-reportagem-instantâneo: Apresenta uma perspectiva de um fato recente, ainda

presente na memória do leitor e dos noticiários. Dependendo da abordagem, pode

aprofundar o tema e/ou fazer análises sobre suas consequências futuras.

Livro-reportagem-atualidade: Assim como o livro-instantâneo aborda um tema atual,

porém seleciona os “dotados de maior perenidade no tempo, mas cujos

desdobramentos finais ainda não são conhecidos” (LIMA, 2004, p. 56).

Livro-reportagem-antologia: Reúne reportagens já publicadas, tanto em veículos

como em livros, com base em algum critério, o qual pode ser um tema, um gênero

jornalístico ou ainda o trabalho de determinado profissional.

Livro-reportagem-denúncia: Focaliza escândalos, faz denúncias sociais e políticas

em busca de justiça e atenção das autoridades e da sociedade.

Livro-reportagem-ensaio: O autor aborda um tema expondo suas opiniões na

tentativa de convencer o leitor. É frequente o uso da primeira pessoa no decorrer do

texto.

Livro-reportagem-viagem: Através de uma viagem, o autor aborda questões

históricas e sociais, retratando assim a realidade local.

Vale ressaltar, entretanto, que

A classificação proposta não pode ser considerada final, porque novas variedades podem surgir, em decorrência da flexibilidade e da criatividade peculiares ao livro-reportagem. Tampouco pode ser entendida como uma camisa-de-força que se impõe à realidade. Na prática é possível que títulos se enquadrem simultaneamente em mais de uma classificação. As modalidades mesclam-se, combinam-se, muitas vezes. (LIMA, 2004, p. 59)

Page 26: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

26

Além da liberdade de tema, o livro-reportagem também permite que o

jornalista escolha o tipo de angulação, sem se preocupar em seguir normas de um

veículo. Do mesmo modo, o estilo de abordagem é decisão do autor: qual a

perspectiva que vai seguir, qual o espaço de tempo que será trabalhado, se fará

projeções futuras ou não. A escolha das fontes também é decisão exclusiva do

autor, sem a imposição por parte de um editor, por exemplo, ou a obrigação de ouvir

apenas nomes já conhecidos e reconhecidos pelo grande público. O jornalista só

entrevistará quem ele acredita ser importante para expor ou corroborar com

determinada perspectiva, assim como também pode decidir por usar apenas livros e

documentos como base.

Se por um lado a extensa liberdade do livro-reportagem é positiva, também

pode se tornar prejudicial, caso o jornalista não se organize bem. Belo sugere a

elaboração de um projeto, o qual pode ser seguido posteriormente como roteiro,

assim que o tema for escolhido pelo autor.

Em um livro-reportagem, transformar a idéia inicial em um plano de trabalho constitui o primeiro passo. É recomendável que a pauta traga uma previsão de como o tema será abordado, e de que ângulo. Também convém deixar mais ou menos estabelecido, desde o início, qual o tamanho provável da obra e como ela será subdividida. Nesse sentido, a pauta pode servir como uma espécie de argumento, com o resumo dos caminhos que se pretende percorrer com a reportagem e sua concepção final. (BELO, 2006, p. 78)

Todas as decisões estruturais do livro-reportagem são fundamentais para que

o propósito do autor seja alcançado. Sendo assim, é necessário que o autor tenha

claro, desde o início, qual é o seu objetivo: ser crítico, ser educativo, denunciar

alguma realidade ou simplesmente apresentar um personagem ou localidade.

Estabelecida a proposta em si, com delimitação do tema e dos objetivos, o jornalista

pode, então, sair a campo e iniciar sua pesquisa do modo que achar mais de acordo.

2.2.2 Apuração

Toda apuração inicia com uma pesquisa, desde materiais publicados na mídia

a documentos oficiais, os quais ajudarão o autor a esclarecer seus objetivos e

estabelecer um roteiro a seguir.

Page 27: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

27

Não existe reportagem sem pesquisa. Por menor que seja. Ela constitui a fase inicial da apuração. É dela que o jornalista vai tirar os fatos básicos e as idéias que vão nortear o trabalho, das entrevistas ao texto final. (BELO, 2006, p. 93)

No momento em que consegue enumerar claramente seus objetivos, o autor

do livro-reportagem visualiza melhor os fatos e, consequentemente, suas dúvidas. A

partir disso, ele reflete a respeito do modo como deve comprovar as afirmações que

tem por certas e responder às questões que lhe preocupam, seja através de

entrevistas, seja através de documentos. O uso de um roteiro, neste caso, facilita na

organização de ideias para estabelecer uma linha lógica a seguir, especialmente

porque, no decorrer da apuração, surgirão novas informações e, consequentemente,

novas certezas e perguntas. Segundo Lima (1993, p. 32), “a tarefa do livro-

reportagem é encontrar tantas camadas das realidades superpostas quantas sejam

necessárias para explicar o tema central em enfoque.” Ou seja, quanto mais o autor

se aprofundar no tema e mostrar diferentes perspectivas, melhor.

Apurar é antes de tudo buscar a informação verdadeira e, de preferência, contextualizada. A mídia brasileira contextualiza muito pouco hoje. É obrigação do livro-reportagem fazê-lo. O público não quer simplesmente um amontoado de fatos. Quer entendê-los. Mesmo nas melhores histórias, um livro-reportagem que se limite apenas à dimensão factual é sempre mais pobre que aquele que vai mais fundo na busca de causas e consequências. À reportagem cabe dar a dimensão dos fatos. Informações que permitam ao leitor concluir como as coisas se conectam no mundo, como interferem na sua vida ou até como funciona a lógica particular de um personagem - expondo traços de sua personalidade - são sempre úteis. Dão à narrativa uma dimensão humana. Despertam interesse. (BELO, 2006, p. 88)

Sendo assim, no momento de realizar uma entrevista, por exemplo, o

jornalista tem que estar atento aos detalhes do entrevistado, sua postura, seus

gestos. Isso, no momento da escrita, pode auxiliar na missão de tornar a leitura mais

aconchegante e humana. É possível, também, escrever um livro-reportagem com

base apenas em documentos, no entanto Belo destaca que, mesmo nesse caso,

uma entrevista não deixa de ser relevante.

Um personagem da história, uma testemunha dos fatos ou um especialista no assunto podem dar uma interpretação mais vívida que o registro documental puro e simples. Quando se trata de perfis, biografias e narrativas de histórias de vida, os relatos de quem conviveu com o protagonista são imprescindíveis para enriquecer o texto e dar a ele um aspecto mais humano. As pessoas têm percepções e perspectivas, fazem seus próprios juízos uma das outras e, por isso, conseguem revelar impressões que não se encontram em documentos. (BELO, 2006, p. 101)

Page 28: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

28

A entrevista para um livro-reportagem difere muito da feita para uma

reportagem tradicional, já que sua pauta é menos fechada, permitindo que o

entrevistado tenha liberdade de decorrer sobre diferentes temas ou mesmo

apresentar variadas perspectivas sobre um mesmo ponto. É nessa ampliação de

limites que, na maioria das vezes, surgem detalhes não registrados antes que dão

um peso maior ao resultado final. Isso, é claro, se o jornalista souber dar atenção ao

que escuta e vê e, principalmente, souber transpor isso em seu texto.

[...] muito mais do que na reportagem do jornalismo impresso cotidiano, a entrevista desponta no livro como uma forma de expressão por si, dotada de individualidade, força, tensão, drama, esclarecimento, emoção, razão, beleza. Nasce daí o diálogo possível, o crescimento do contato humano entre entrevistador e entrevistado, que só acontece porque não há a pauta fechada castrando a criatividade. Em muitas ocasiões, surge o painel de multivozes e o repórter, o autor, é apenas um sutil maestro que costura os depoimentos, interliga visões do mundo com tal talento que parece natural tal arranjo, como se surgisse ali espontaneamente, perfeito. Nessas ocasiões, o jornalista-escritor atinge uma situação máxima de excelência no domínio da entrevista: a de tecedor invisível da realidade, que salta, vívida, das páginas para o coração, a mente e todo o aparato perceptivo do leitor. (LIMA, 2004, p. 107)

Ao comparar diferentes entrevistas ou mesmo ao ouvir mais atentamente a

conversa com um único entrevistado, o jornalista pode perceber contradições, de

menor ou maior grau. É, então, sua função, rever os fatos e os depoimentos, se

necessário até marcar uma segunda entrevista com alguém, para esclarecer a

questão. Isso é o que chamamos de checar as informações e é fundamental para

evitar que a credibilidade da obra seja questionada.

Em toda boa reportagem, o autor tem de conferir cada informação, cada detalhe, até que não restem dúvidas. É uma prática indissociável do trabalho sério. O jornalista é responsável pela informação que apura. Tem de pensar nas consequências do que publica. Por isso, precisa evitar a todo custo um dado incompleto ou enviesado, uma informação distorcida ou equivocada. (BELO, 2006, p. 92)

A pesquisa documental, nesse caso, pode ser fundamental. Documentos

podem confirmar ou refutar uma informação ou, pelo menos, dar uma base sólida

para o registro de um fato. Belo afirma que, sem o auxílio de documentação, uma

pesquisa tende a ter um embasamento fraco no que se refere a conteúdo e corre o

risco de soar confusa.

Page 29: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

29

Um perfil que se baseie apenas no relato do personagem e dos que o conheceram é substancialmente mais pobre do que uma investigação profunda feita com base em uma pesquisa histórica, bibliográfica, com documentos, investigativa. (BELO, 2006, p. 50)

Quando, enfim, o autor estiver seguro das informações que possui, é o

momento de passar para a parte final do trabalho e escrever.

2.2.3 Escrita

Enquanto o texto dos veículos tradicionais é extremamente factual, o do livro-

reportagem tem ampla liberdade para fugir das regras do lead. Aliás, o autor tem por

obrigação fugir do apego exagerado aos fatos para evitar que a leitura seja cansativa

e enfadonha. Como foi visto anteriormente, o jornalismo literário deve, como o

próprio nome diz, se utilizar de técnicas literárias para tornar a leitura mais leve e

fluente.

A função básica do livro-reportagem é informar com profundidade. Para que o leitor se sinta impelido à leitura, o texto tem de atraí-lo. O que em geral chama a atenção e prende o leitor à narrativa é a emoção. O texto do livro jornalístico não precisa ser um texto telegráfico, curto, direto, relatorial, sem vida e até burocrático que se vê na maioria dos jornais. Também não precisa ser verborrágico e estar repleto de palavras desconhecidas. Nem exige a presença de adjetivos para transmitir emoção. O que passa emoção é o modo de contar, não os adjetivos que o escritor emprega. (BELO, 2006, p. 120)

Lima (2004, p. 138) ressalta que “a narrativa jornalística de melhor qualidade

beira a arte, assume alguns dos nobres ideais de que esta pode revestir-se”. Para

que essa aproximação aconteça ele enumera cinco pontos importantes: as técnicas

de redação, as funções da linguagem, as técnicas de angulação, as técnicas de

edição e o ponto de vista.

No que se refere às técnicas de redação, Lima (2004, p. 147-155) cita três:

Narração: Segundo o autor, “no livro-reportagem, a narração edifica-se, quase

sempre, a partir de uma ação dada, mas privilegiando a intensidade e, menos

frequentemente, o ambiente” (LIMA, 2004, p. 148). Ou seja, a narrativa parte de um

fato, assim como em uma notícia de jornal, porém sua abordagem é diferente, sendo

sua contextualização mais importante do que o fato cru.

Page 30: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

30

Descrição: Fazendo referência a Gaudêncio Torquato, Lima (2004, p. 151) destaca

cinco tipos de descrição que são mais comumente usadas no jornalismo. São elas:

a) pictórica: o observador está parado e descreve detalhadamente o que vê; b)

topográfica: aquela em que o observador enfatiza alguns aspectos específicos do

que vê; c) cinematográfica: em sua descrição, o narrador observa luz e sombra do

ambiente/objeto que vê; d) prosopografia: descrição detalhada das pessoas

envolvidas na cena; e) cronografia: o narrador descreve detalhadamente a época e

as circunstâncias temporais envolvidas.

Exposição: De acordo com Lima (2004, p. 154), essa técnica é usada no livro-

reportagem “quando o profissional quer discutir com o leitor uma questão básica e

argumentar de modo a tentar convencer o leitor a comungar com sua visão do

problema”.

Além disso, o autor também destaca a importância dos diálogos. Como vimos

no conceito e formato do new journalism, eles ajudam a trazer fluência ao texto e

apresentar melhor a cena ao leitor, que se sente presente na situação narrada. As

funções de linguagem também auxiliam nessa tarefa. Classificadas em referencial,

expressiva, conotativa, fática, poética e metalinguística por Roman Jakobson (LIMA,

2004, p. 156), o uso alternado das seis evita que o leitor se disperse, já que torna o

texto mais dinâmico.

Anteriormente falamos da liberdade de angulação que o autor do livro-

reportagem possui. Esta se refere ao uso que faz dos variados materiais

conquistados durante a apuração: fotos, entrevistas, reportagens publicadas, etc.

Quando falamos em técnicas de angulação, então, falamos da classificação do

material reunido e a escolha do momento em que cada um será usado no texto.

Fazendo nova referência a Gaudêncio Torquato, Lima (2004, p. 158) destaca a

importância de equilibrar o uso de textos diretos (declarações textuais) e textos

indiretos (percepções do autor do livro-reportagem).

A respeito do uso do ponto de vista no texto, Lima afirma que

A narrativa jornalística é como um aparato ótico que penetra na contemporaneidade para desnudá-la, mostrá-la ao leitor, como se fosse uma extensão dos próprios olhos dele, leitor, naquela realidade que está

Page 31: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

31

sendo desvendada. Para cumprir tal tarefa, a narrativa tem de selecionar a perspectiva sob a qual será mostrado o que se pretende. Em outras palavras, deve optar na escolha dos olhos - e de quem - que servirão como extensores da visão do leitor. (LIMA, 2004, p. 161)

Por fim, as técnicas de edição são fundamentais para o resultado final do

livro. Elas dizem respeito às sequências de fatos, às apresentações dos

personagens, à ligação entre um fato e outro, etc. O modo de ordenar todos os

fatores envolvidos no tema é essencial para garantir a fluência do texto.

Não se trata apenas de armar uma sequência após outra na dimensão temporal e de distribui-la, como elos de correntes, no espaço. É também uma questão de plantar as ações-chave ao longo do texto, de ancorar a narrativa em pilares localizados de tal sorte que não deixem o texto desabar, para vergonha das paredes nuas. (LIMA, 2004, p. 166)

Além disso, o autor não tem obrigação de apresentar no texto todo o material

que descobriu com suas pesquisas. Nem tudo é relevante e, por isso, o jornalista

deve passar um pente fino no resultado da apuração para perceber o que é ou não

importante para seu livro-reportagem.

[...] uma boa maneira de avaliar a importância do detalhe é conferir a relevância que ele tem para a contextualização da história. A informação de que o jogador X conheceu na infância o então craque Y pode ser relevante, mas que ele foi amigo da atriz Z pode não significar nada para a composição do relato. Ou tudo, se eles mantiveram contatos e influenciaram a vida um do outro. (BELO, 2006, p. 91)

Especialmente no caso de livros-reportagens-perfil e livros-reportagens-

biografia, que possuem uma perspectiva essencialmente humana, é importante ter

cuidado com o fator relevância, pois pode expor e ofender desnecessariamente

alguém, além de por em questão a qualidade do livro e de seu autor, caso algum

fato seja trabalhado de maneira sensacionalista.

2.3 BIOGRAFIA

Dentre os variados tipos de livro-reportagem, o mais popular no Brasil é, sem

dúvida, a biografia. Não há números para comprovar esta afirmação, no entanto de

tempos em tempos são noticiados lançamentos de livros sobre a vida de alguém

famoso, na maioria das vezes artistas. As livrarias possuem prateleiras exclusivas

Page 32: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

32

para o gênero e recentemente houve no Brasil um grande debate em torno da

publicação de biografias não-autorizadas, fatos que atestam a importância do gênero

no país.

A explicação para a popularidade de biografias varia conforme o autor. Para

Belo (2006, p.61), o interesse por esse tipo de leitura se explica “pelo desejo natural

que o ser humano tem de conhecer a vida das pessoas públicas, em especial

aquelas rotuladas como vencedoras ou que tenham, por alguma razão não

necessariamente positiva, alcançado notoriedade”. Já Hisgail (1996, p. 7) observa

uma profundidade maior nessa curiosidade e diz que “assim como alguns procuram

nos livros de auto-ajuda um mestre que lhes diga o que fazer, outros necessitam se

identificar com pessoas que ‘deram certo’ na vida”.

As biografias sugerem o universal embutido na particularidade de um indivíduo. É como se o leitor se deliciasse com o fato “de não estar sozinho no mundo”, de poder compartilhar sua própria história com outra pessoa, não importando a época. Muitas vicissitudes humanas são atemporais. O biógrafo lida com “humanidades” enfrentadas por qualquer geração: os processos da adolescência, a puberdade, o início da fase adulta, a maturidade e o declínio. Sentimos os fracassos e triunfos do “herói” narrado, e o quanto poderia haver de nós mesmos em situações idênticas. (VILAS BOAS, 2002, p. 37)

O crescimento do interesse por biografias (não apenas para ler, mas também

para escrever e publicar) tem relação, segundo o psicanalista Ricardo Goldenberg

(HISGAIL et al, 1996, p. 39), com a constante exposição pessoal através da internet,

que é uma “janela que serve para ver, mas também para ser visto”.

O interesse que a biografia voltou a ter recentemente está relacionado com esse contexto. A biografia é um gênero literário que me autoriza ser indiscreto, a desfrutar do mexerico sem constrangimento. O biógrafo me conta tudo que eu queria saber sobre..., sem atrever-me a perguntar. A biografia está situada entre a necessidade de nos acreditarmos inescrutáveis e o desejo de dar uma olhadela no quintal do vizinho. Autorizadas ou não, as biografias tornam público o que devia permanecer privado. (HISGAIL et al, 1996, p. 39)

A curiosidade pela vida de uma pessoa não é exclusiva do leitor, ela surge

primeiramente no biógrafo. Do contrário, este, a menos que trabalhe sob

encomenda, não se animaria a dedicar boa parte de sua vida a desvendar as

questões existentes em torno de outro ser humano. Aliás, a busca por respostas não

Page 33: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

33

é função exclusiva do jornalista, portanto, ser biógrafo vai além desta formação,

apesar do gênero ter muitas raízes no jornalismo.

Assim como a biografia é uma categoria indivisível em si, o trabalho do biógrafo é uma especialidade em si. Para biografar, ninguém precisa necessariamente ser jornalista, antropólogo, astrônomo, físico ou historiador. Basta ser biógrafo, o que já não é fácil [...]. Conforme o caso. o autor (criador) será levado a descumprir protocolos metodológicos do seu campo de formação. Mais, não há, no Brasil, escolas que ensinem a “arte” ou a “ciência” [sic] da biografia. (VILAS BOAS, 2002, p. 17)

Não só não há uma escola de biografia, como são escassos os estudos a

respeito do gênero. A principal referência no assunto é o livro “Biografias e biógrafos:

jornalismo sobre personagens”, de Sergio Vilas Boas, que define o livro-reportagem-

biografia como “a compilação de uma (ou várias) vida(s)” (VILAS BOAS, 2002, p. 18)

e afirma que “o objetivo macro da narrativa biográfica é gerar conhecimento sobre o

passado de alguém ou de alguma coisa” (VILAS BOAS, 2002, p. 21). O autor

ressalta que, apesar do interesse do biógrafo pela personagem dar base ao projeto,

a realização e publicação do mesmo depende do interesse de editoras e patrocínios

para que o pesquisador consiga ‘sobreviver’ enquanto realiza o trabalho.

Mesmo no Brasil, onde “tudo está por fazer”, com mais ou menos intensidade o mercado comanda os projetos. O personagem da biografia não é determinado simplesmente pelo desejo do biógrafo, a menos que este tenha renome e auto-suficiência para realizar seus projetos sem interferências sobre suas escolhas. Caso contrário, o biografado manda. A carência de biografias sobre personagens brasileiros à disposição dos leitores reforça o caráter incipiente desse gênero no mercado editorial nacional. Essa carência, que poderia atiçar o ânimo de novos aspirantes a biógrafos, também pode inibir. Havendo pouca oferta, as editoras dão preferência por biografados de renome nacional e internacional. (VILAS BOAS, 2002, p. 51)

Mas Vilas Boas também abre a porta das exceções, o que depende

unicamente dos esforços do biógrafo para despertar curiosidade e interesse na vida

de alguém, até então, desconhecido do grande público.

Em rigor, acredita-se que um personagem realmente desconhecido possa tornar-se atraente, do ponto de vista do mercado, conforme a atitude do biógrafo. Novas interpretações, acesso a arquivos nunca abertos ou evidências de que o personagem teve uma vida rica em experiências são fatores que ajudam a “emplacar” a obra em uma editora interessada em publicar biografias. (VILAS BOAS, 2002, p. 52)

Page 34: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

34

Outro fator importante na publicação de uma biografia é a relação do biógrafo

e do biografado, ou seja, se a pessoa retratada e/ou seus familiares apoiam e

auxiliam ou não o pesquisador. Seja qual for a posição da família, isso vai,

inevitavelmente, afetar o resultado final do livro-reportagem-biografia.

2.3.1 Contratos autorais

Em junho de 2015, o Supremo Tribunal Federal liberou a publicação de

biografias não autorizadas, dificultando assim que os biografados e/ou seus

familiares impeçam a circulação da obra. A decisão não impede futuros processos,

porém diminui os limites para tais. Só serão cogitadas proibições de biografia caso

estas afetem a honra ou a imagem do biografado, seja por faltarem à verdade ou por

exporem detalhes íntimos demais2. Este último caso foi o principal argumento para

que Roberto Carlos vencesse o processo que resultou na proibição do livro “Roberto

Carlos em detalhes”, escrito por Paulo Cesar Araújo e lançado em dezembro de

2006, sendo retirado das livrarias meses depois.

No entanto a autorização (ou a falta dela) afeta a biografia ainda na produção,

já que pode limitar as fontes a que o biógrafo tem acesso, sejam elas documentos

ou entrevistas. Vilas Boas aponta quatro tipos de contratos autorais. São elas:

biografias autorizadas, escritas e publicadas com o aval e eventualmente com a cooperação do biografo e/ou de seus familiares e amigos; independentes (também conhecidas como não-autorizadas), em que o biógrafo investiga sem o consentimento formal do biografado ou de seus descendentes; encomendadas (por editores, familiares ou pelo próprio personagem central); ditadas, em que o biógrafo escreve uma autobiografia ou memórias em nome do personagem central, no papel de ghostwriter.(VILAS BOAS, 2002, p. 48)

Quando se tem o apoio da família e de amigos do biografado há, certamente,

mais facilidade para obter informações. As portas estarão abertas para documentos

pessoais, correspondências e diários do personagem, além do acesso para

2 RAMALHO, Renan. STF decide liberar publicação de biografias sem autorização prévia. G1.

Brasília, 10 jun. 2015. Disponível em: < http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2015/06/stf-decide-

liberar-publicacao-de-biografias-sem-autorizacao-previa.html>. Acesso em: 7 fev. 2016.

Page 35: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

35

entrevistas com amigos, familiares e outras pessoas próximas à família, como

médicos e empregados, ficar mais fácil. No entanto, essa relação também pode ser

prejudicial, pois pode limitar e/ou censurar direta ou indiretamente as informações

descobertas durante a pesquisa do biógrafo.

Acredita-se que as biografias independentes ou não-autorizadas sejam mais acuradas por não haver interferência direta dos guardiões do personagem. Por outro lado, eventuais resistências de familiares, amigos, instituições ou do próprio biografado podem comprometer o equilíbrio da história. O mesmo ocorre com as encomendadas, autorizadas e ditadas, que também restringem o autor. Nas ditadas, especialmente, o ghostwriter tem que aceitar suas condições de "porta-voz", o que não exclui a possibilidade das informações precisarem de inúmeras checagens.(VILAS BOAS, 2002, p. 49)

Nos dois casos, de aprovação ou não da família do biografado, o autor deve

buscar caminhos para minimizar as limitações que a situação impõe, de modo que

seu trabalho final seja minimamente prejudicado por elas. Vilas Boas (2002, p. 49)

afirma ainda que não existe biografia sem que a intimidade da personagem seja

revolvida pelo autor. Sendo assim, os contratos autorais dizem respeito ao modo de

abordagem e interpretação dos fatos descobertos pelo biógrafo ou mesmo na

maneira de apresentar o biografado.

Uma grande aproximação com a família, como no caso de uma biografia

encomendada, pode fazer com que a personalidade apresentada no livro seja

imaculada, o que é, inegavelmente, irreal. Todas as pessoas possuem falhas,

cometem erros e tomam atitudes que são repreendidas por terceiros, não apresentar

isso ao leitor

Pode deixar a impressão de que a personalidade não é capaz de resistir a uma gota de chuva ou de que ele/ela é suficientemente extraordinário/a para fazer chover. A perfeição, para o bem ou para o mal, não adere ao ser humano. Num processo progressivo, o alcoolismo e a inabilidade em lidar com a vida prática contribuíram para destruir Mané Garrincha, mas não o impediram de exercer seu talento como ponta-direita do Botafogo e da seleção por anos. (VILAS BOAS, 2002, p. 50)

A identificação da maneira mais realista de abordar o personagem vai

aparecer enquanto o biógrafo estiver fazendo sua pesquisa. Quanto mais variadas

forem as fontes do autor, mais possiblidades ele tem de tomar conhecimento de

diferentes perspectivas da pessoa retratada, especialmente através dos

depoimentos dos que foram próximos dela.

Page 36: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

36

2.3.2 Fontes

Existem dois tipos de fontes: as documentais e as orais. As

primeiras são documentos (oficiais ou não), cartas, diários, reportagens a respeito do

personagem biografado, livros de memória e autobiografias; já as segundas são as

entrevistas feitas com pessoas envolvidas com o biografado.

Muitos biógrafos iniciam suas pesquisas com os documentos. A partir deles

retiram a lista de possíveis entrevistados e os tópicos que querem abordar mais

profundamente. Ou seja, os autores fazem uma investigação apurada sobre o

universo de seu personagem.

No Brasil, o termo investigar costuma ter uma conotação de trabalho policial, mas não significa apenas procurar irregularidades, mentiras, trapaças. É também penetrar fundo na alma de um personagem, conhecer seus hábitos, sua cultura ou retratar com minúcias o modo de vida de uma época. É contextualizar os fatos, analisar as circunstâncias, revelar os acontecimentos, levantar dados novos. (BELO, 2006, p. 50)

Não podemos esquecer, entretanto, que as fontes documentais também

devem ser questionadas. Reportagens, por exemplo, sempre possuem um objetivo,

elas vendem ou acusam a personalidade, seja em função do tema ou do

posicionamento do veículo. Já as cartas registram “projeções do remetente em

relação ao destinatário e ao mundo exterior” (VILAS BOAS, 2002, p. 58).

No que se refere a livros de memórias e autobiografias, a desconfiança está

justamente na perspectiva única e pessoal de quem escreve.

As fronteiras entre imaginação e memória são difíceis de determinar, e as autobiografias e os livros de memórias funcionam como espelhos, autoconhecimento, autocriação e até autodefesa [...]. Mais do que um relato de experiências vividas, é uma contínua e apaixonada "busca do Eu". (VILAS BOAS, 2002, p. 60)

Mesmo nos relatos orais essa confusão entre imaginação e realidade pode

acontecer, por isso quanto mais pessoas o biógrafo entrevistar, mais provável é que

ele tenha uma visão muito próxima de como um fato realmente aconteceu. Além

disso, é no encontro com amigos e familiares que o pesquisador fica mais próximo

dos sentimentos que rodeavam seu personagem, sejam eles positivos ou negativos.

São os relatos pessoais que dão o tom do livro-reportagem-biografia, afinal

este nada mais é do que uma tentativa de desvendar a intimidade de alguém, de

Page 37: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

37

tornar alguém famoso próximo do cidadão comum que é o leitor. A biografia é escrita

através de relações humanas existentes e, de certa maneira, estabelece novas entre

biógrafo e biografado, biógrafo e leitor, e biografado e leitor. Além disso, ela vai

muito além de registrar a vida de alguém, já que acaba por marcar a vida do biógrafo

e, por que não?, do leitor. Por essas razões, o professor de ciências sociais Miguel

Chaia define a biografia como um método de reescrita da vida.

O leitor processa [...] uma segunda reescrita da vida do biografado, usurpando a experiência alheia (seja como enriquecimento individual ou até como avanço de pesquisas sociais) e facilitando o processo de compreensão do mundo: a vida do outro como possibilidade de conhecimento do real, já que ela se constitui como exemplo objetivado de ciências valorizadas e dignificadas pela sociedade ou então por determinados grupos sociais. São biografias que devem ser consumidas enquanto referências de ações e de idéias. (HISGAIL et al, 1996, p. 81-2)

Sendo assim, é inevitável concluir que a biografia é essencialmente humana,

do início (quando o biógrafo deseja desvendar a intimidade de alguém) ao fim

(quando o leitor se vê próximo do biografado e se deixa influenciar pelas

experiências deste). No meio deste caminho, os encontros pessoais dão o formato e

o sentimento das entrelinhas, traduzidos, ao fim de tudo, pelas palavras do autor.

Page 38: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

38

3 CONTEXTO HISTÓRICO: A DÉCADA DE 60

"Schreib’ die Gesetze neu und bleibe nur dir selber treu"3

Udo Lindenberg

A década de 60 teve transformações em diferentes contextos, do político ao

cultural, no mundo inteiro. Enquanto Elvis Presley retornava do exército para

reassumir seu posto de Rei do Rock, na Inglaterra surgiam os Beatles, que em

pouco tempo conquistaram e influenciaram adolescentes de diferentes países e

culturas. As letras, tais como as do garoto de Memphis, falavam de amor e da

vontade de segurar a mão da garota e vê-la dançar, uma ousadia para a época. Os

jovens enlouqueciam com a música do quarteto de Liverpool, dando mais uma

preocupação aos pais, que ainda respiravam as consequências da Segunda Guerra

Mundial.

Em 1961, a República Democrática Alemã (RDA), ligada à União das

Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), construía o Muro de Berlim, que

ressaltava a divisão da capital da Alemanha e do país. Era o auge da Guerra Fria

entre Estados Unidos e URSS, entre capitalismo e socialismo. O Brasil, que estava

do lado norte-americano, proibiu, em 1947, o funcionamento do Partido Comunista

Brasileiro (PCB), liderado por Luís Carlos Prestes e passou a recriminar quaisquer

atitudes socialistas. Com a desculpa de proteger o país da ameaça comunista, em

1964 um golpe militar interrompeu o governo do presidente gaúcho João Goulart,

que se exilou no Uruguai.

O que os militares e a elite brasileira entendiam como ameaça eram as

propostas de governo de Jango (como João Goulart era conhecido).

É que nesse momento ganhava força a mobilização popular em torno do plano das Reformas de Base - um conjunto de ações governamentais que deveriam promover a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma fiscal e a reforma bancária, entre outras. O objetivo geral dessas ações era garantir a

3 Em tradução literal: “Escreva as leis novas / e permaneça apenas a ti mesmo leal”. Versos da

canção “Seid willkommen in Berlin” (“Sejam bem-vindos a Berlim”), lançada em comemoração à

queda do Muro de Berlim, ocorrida em 1989. Udo Lindenberg foi uma das principais referências

musicais durante a divisão da Alemanha e chegou a receber um visto especial para tocar na RDA

(República Democrática Alemã). Desde 2011, o musical “Hinterm Horizont”, apresentado em Berlim,

usa as canções do músico para contar a história da cidade dividida.

Page 39: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

39

continuidade do desenvolvimento econômico, ampliando o mercado interno, e atender às demandas populares, que eram cada vez maiores. (NAPOLITANO, 2005, p. 6-7)

Na madrugada de 31 de março de 1964, o Rio de Janeiro foi tomado pelas

tropas do general Olímpio Mourão. O mesmo aconteceu com São Paulo no dia

seguinte, mas pelas tropas do general Amaury Kruel. Em 9 de abril, o marechal

Humberto de Alencar Castelo Branco era eleito presidente pelo Congresso Nacional,

o qual já havia sido “devidamente expurgado dos simpatizantes do governo Goulart,

dos nacionalistas e da esquerda em geral” (NAPOLITANO, 2005, p. 15).

As promessas de que o novo governo seria apenas uma solução passageira, para limpar o país da corrupção, da subversão e retomar o crescimento econômico, fizeram de Castelo Branco o nome mais aceitável pelas elites políticas e econômicas que apoiaram o golpe. (NAPOLITANO, 2005, p.15-6)

O regime militar, porém, esteve longe de ser passageiro. Ele só teve seu fim

em 1985, depois de cinco presidentes e muita violência por parte do governo. Hoje

pouco se fala desse período, o mais negro da história recente do Brasil. Muitas

pessoas que, de algum modo, demonstravam ser ameaça ao governo, foram

torturadas e/ou desapareceram. Os registros dessas atitudes, porém, estão até hoje

longe do alcance público. Em contrapartida, os movimentos musicais que

aconteceram no início e no fim da ditadura, todos com influência do ‘diabólico’

rock’n’roll, continuam sendo lembrados e debatidos. Assim como nomes de

ditadores brasileiros continuam dando nomes a escolas, avenidas e praças, Roberto

Carlos, Caetano Veloso e as bandas do BRock, movimento da década de 80,

continuam a ser reconhecidos e admirados pelo público nacional.

3.1 INÍCIO DA DITADURA MILITAR BRASILEIRA

Como dito antes, a principal justificativa para o golpe militar foram as

propostas de João Goulart. Em meio à crise econômica que, então, abatia o

crescimento do país, o presidente tentava satisfazer as exigências dos

trabalhadores, cada vez mais organizados em movimentos e sindicatos, sem perder

o apoio da elite brasileira, que era contra a realização dos pedidos da classe

operária. Em 13 de março de 1964, com a divulgação de partidos aliados e

Page 40: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

40

sindicatos, 300 mil pessoas se reuniram para ouvir Jango prometer as Reformas de

Base e a convocação de uma Assembleia Constituinte (NAPOLITANO, 2005, p. 10).

Em resposta, seis dias depois foi organizada a “Marcha com Deus pela Família”, que

contava com o apoio da Igreja Católica e da oposição do governo. Cerca de 400 mil

pessoas estavam presentes.

O Brasil estava dividido e o Exército brasileiro quis ‘solucionar’ essa questão.

Nomes como Carlos Lacerda, jornalista e político, e Juscelino Kubitschek, ex-

presidente, apoiaram o golpe, assim como boa parte da imprensa. Além disso, os

Estados Unidos estavam prontos a agir através da operação Brother Sam em caso

de resistência (NAPOLITANO, 2005, p. 12).

As poucas tentativas de resistência armada, por parte de sindicalistas e políticos, foram rapidamente desarticuladas. A tentativa de greve geral em apoio ao presidente, convocada pela Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), não surtiu o efeito esperado, esvaziando-se. Em Pernambuco, onde o movimento popular camponês era relativamente intenso, desencadeou-se uma brutal repressão, patrocinada pelos grandes proprietários de terras, ao mesmo tempo que o governador Miguel Arraes era preso pelo Exército. No dia 2 de abril, boa parte da sociedade, simpática ao golpe militar, saiu às ruas e ajudou a depredar a sede do jornal Última Hora (simpatizante do governo recém-destituído) e a sede da União Nacional dos Estudantes. (NAPOLITANO, 2005, p. 12-3)

Em 9 de abril de 1964 foi promulgado o Ato Institucional Nº 1, o qual permitia

que o governo federal tomasse atitudes como decretar estado de sítio e cassar

direitos políticos de qualquer cidadão. O preâmbulo justificava a necessidade do AI

da seguinte forma:

O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. (BRASIL, 1964)

O Ato também estabeleceu uma data para a próxima eleição (03 de outubro

de 1965) e para a posse do novo presidente (31 de janeiro de 1966), porém ela

nunca aconteceu, o que desiludiu aqueles que acreditavam que o golpe seria

passageiro, como Juscelino Kubitschek, que “foi cassado poucos meses após o

Page 41: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

41

golpe militar, causando mal-estar mesmo entre os setores conservadores da

sociedade” (NAPOLITANO, 2005, p. 16).

A solução do governo para a situação econômica do país tinha por base os

trabalhadores, sem que estes, no entanto, fossem a prioridade. O plano era

incentivar o crescimento dos empresários brasileiros livrando-os das políticas em

prol dos operários.

A antiga prática de aumentos salariais motivados por pressões sindicais

deveria ser revista. As prioridades econômicas do governo Castelo Branco

eram outras: conter a inflação através do controle dos custos de produção

(sobretudo o custo da mão-de-obra); devolver ao Estado a capacidade de

investimento em infra-estrutura produtiva, reorganizando as finanças

públicas e redimensionando o sistema tributário; renegociar a dívida externa

para conseguir novos empréstimos, fundamentais para a recuperação da

capacidade produtiva do capitalismo brasileiro, tão dependente de recursos

e tecnologias do exterior. Obviamente, tudo isso deveria ser feito sem

prejudicar os interesses dos grandes capitalistas nacionais e estrangeiros,

entusiastas do novo regime. (NAPOLITANO, 2005, p. 17)

Além de intervenções de centenas de sindicatos, uma das táticas do primeiro

governo do regime militar foi despolitizar as classes trabalhadoras, o que afetou o

sistema educacional e, claro, as negociações entre patrão e empregados.

Por trás da busca de uma nova “racionalidade” administrativa, ocultava-se a idéia de despolitizar a questão social, burocratizando e retirando do controle da sociedade as iniciativas, os recursos e a implementação das políticas públicas (saúde, educação, etc.). Um exemplo disso foi a legislação salarial que passou a vigorar a partir de 1966: os salários eram reajustados conforme as variações de um índice obtido pela média inflação dos últimos 24 meses. Complicações aritméticas à parte, tal medida procurava arrefecer o conflito entre patrões e empregados e diluir as conquistas de categorias com maior poder de negociação sindical, mediante um índice “técnico” e “neutro”. Ao burocratizar a questão econômica e priorizar o desenvolvimento escorado no consumo de bens duráveis (automóveis e eletrodomésticos), pouco acessíveis à maioria da população, o regime militar conseguiu, por um lado, desenvolver o capitalismo brasileiro, mas, por outro, acabou agravando uma tendência histórica: a concentração de renda. (NAPOLITANO, 2005, P. 18)

A certeza de que o regime militar não era temporário veio junto com o Ato

Institucional Nº 2, de 27 de outubro de 1965, o qual extinguia os partidos políticos

existentes e os substituía por dois: a Aliança Renovadora Nacional (Arena), que

apoiava o governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que representava

a oposição, tendo, porém, suas atividades limitadas e controladas pelo governo.

Page 42: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

42

Além disso, o ato permitia que civis fossem julgados por tribunais militares e estabelecia o princípio das eleições indiretas para presidente da República, realizadas via Colégio Eleitoral, composto basicamente de parlamentares. Somada à prorrogação do mandato de Castelo Branco, que passava a vigorar até março de 1967, essa última medida colocava o governo militar em confronto direto com as lideranças civis liberais, que inicialmente apoiaram o golpe e agora se sentiam traídas. (NAPOLITANO, 2005, p. 20)

Meses depois, em fevereiro de 1966, o Ato Institucional Nº 3 complementou o

anterior e estabeleceu eleições indiretas para os governadores estaduais. A intenção

era evitar a perda do controle nacional, impedindo que os eleitores elegessem

representantes que seguissem uma linha política diferente da do governo militar.

Ainda naquele ano, mais um ato foi editado.

A edição do Ato Institucional nº 4, em dezembro de 1966, convocando extraordinariamente o Congresso Nacional e regulando suas atividades, visava garantir a aprovação da nova Constituição Federal. A nova Carta sofreria duras críticas por parte dos liberais, e até daqueles que haviam conspirado contra o governo Goulart. O ponto mais polêmico era o aumento do poder do Executivo, em detrimento dos outros poderes constitucionais. (NAPOLITANO, 2005, p. 23-4)

A seguir, a Lei de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional limitaram ainda

mais a liberdade de expressão. A primeira, publicada em 9 de fevereiro de 1967,

permitia a publicação de livros e periódicos, desde que estes não atentassem “contra

a moral e os bons costumes” (BRASIL, 1967); enquanto a segunda, datada de 13 de

março do mesmo ano, definia, no artigo 3º, a segurança nacional como “medidas

destinadas à preservação da segurança externa e interna, inclusive a prevenção e

repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva”

(BRASIL, 1967).

Todas essas mudanças na legislação federal fizeram com que antigos

apoiadores do golpe militar, agora decepcionados com as atitudes do governo,

buscassem o presidente deposto e seus aliados com o propósito de criar um

movimento que pudesse enfrentar a nova situação do país.

Em novembro de 1966, antigos simpatizantes do golpe militar, liderados por Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek, lançaram a Frente Ampla, uma entidade suprapartidária de oposição civil. Apesar das divergências, aproximaram-se do ex-presidente João Goulart, exilado no Uruguai. Lá, firmaram o Pacto de Montevidéu, um acordo para superar antigas divergências e unificar a oposição civil ao regime que se consolidava. Até abril de 1968, quando de sua dissolução pelo governo, a Frente Ampla não

Page 43: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

43

havia conseguido ampliar suas ações para o conjunto da sociedade civil, permanecendo restrita ao apoio de alguns setores da burguesia nacional. (NAPOLITANO, 2005, p. 24)

A dificuldade em atrair a classe operária para a luta contra o governo militar

não era exclusiva do grupo político Frente Ampla. Estudantes da classe média e

artistas também tentavam conscientizar esse público, fosse através de passeatas,

fosse através de peças de teatro e música. A resposta do marechal Artur de Costa e

Silva, que assumiu a presidência em 15 de março de 1967, para esses movimentos

foi o Ato Institucional Nº 5, em cujo artigo 4º eram concedidos ao Presidente plenos

poderes para “suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de

10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais” (BRASIL,

1968).

Além da cassação generalizada de parlamentares e cidadãos, a AI-5 suspendia o habeas-corpus de presos políticos, reforçava a centralização do poder no Executivo federal (diminuindo a força política dos governadores), permitia a decretação de estado de sítio, sem prévia autorização do Congresso. Em 1969, o governo regulamentou a censura prévia sobre os meios de comunicação e sobre os produtos culturais como um todo. (NAPOLITANO, 2005, p. 33)

A partir de então, muitos cidadãos foram exilados, de militantes a artistas, e

muitas canções foram censuradas, algumas sem crítica política alguma, mas que

foram consideradas como ofensa à ‘moral e aos bons costumes’; enquanto outras

faziam críticas ao regime e/ou apoiavam exilados políticos em suas entrelinhas, sem,

contudo, serem notadas pelos censores, que as liberavam.

O período que se seguiu ficou conhecido como “Anos de Chumbo” e muito do

que nele aconteceu permanece ignorado até hoje pela população brasileira. A

década de 80 foi mais branda e o movimento “Diretas já” abriu caminho para o fim

da ditadura militar brasileira, o que aconteceu em 1985.

3.2 A LUTA DOS ESTUDANTES

Como dito anteriormente, o regime militar tinha entre suas metas despolitizar

a população e, para isso, um de seus alvos foi a educação. Antes mesmo de

completar um ano do golpe, os estudantes, que sempre se opuseram a ele, sentiram

a primeira ação do governo.

Page 44: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

44

Pela Lei Suplicy (que levava o nome de Flávio Suplicy de Lacerda, então reitor da Universidade do Paraná, notório por seu conservadorismo), editada em 9 de novembro de 1964, todas as entidades estudantis ficavam sujeitas ao controle do Estado, assim como os Diretórios Acadêmicos e os Diretórios Centrais de Estudantes. No meio secundarista, os Grêmios Livres foram substituídos pelos Centros Cívicos, sob o controle da diretoria dos colégios. (NAPOLITANO, 2005, p. 19)

A nova lei também tornou ilegal a União Nacional de Estudantes (UNE) que,

apesar disso, manteve suas atividades. Em junho de 1965, o governo de Castelo

Branco fez uma reforma universitária através de um acordo com a agência norte-

americana United States Agency for International Development (USAID), o qual

[...] encerrava uma concepção de educação e universidade que enfatizava a tecnicização do aprendizado, fragmentária e específica, destinada prioritariamente às necessidades de mão-de-obra do mercado, com pouco espaço para formulações intelectuais mais críticas. Além disso, o estímulo à privatização do ensino superior incentivou as fundações privadas a abrir faculdades. Essa “modernização conservadora” do ensino acabou por provocar a reação do movimento estudantil organizado, que até 1968, aproveitando-se da relativa tolerância dos militares, conseguiu articular grandes manifestações públicas de protesto. (NAPOLITANO, 2005, p. 19)

Em 1966 os movimentos estudantis cresceram e, consequentemente, a

repressão do governo militar.

Em setembro, na Praia Vermelha, a polícia invadia o prédio da Universidade Federal onde se reuniam cerca de 200 estudantes. Espancamentos e depredações. No mesmo mês, em São Bernardo do Campo, o XIX Congresso da União dos Estudantes era dissolvido pela intervenção policial. 178 delegados presos. Em todo o país cresciam os protestos. No dia 23 de setembro a UNE decretava greve geral. Nas passeatas, os gritos de “abaixo a ditadura” e “um, dois, três, Castello [sic] no xadrez”. (HOLLANDA, GONÇALVES,1995, p. 74)

Mas foi no ano de 1968, sob o governo de Costa e Silva, que os movimentos

estudantis passaram a ser reprimidos mais violentamente, resultando até mesmo em

morte. Antes mesmo que o AI-5 fosse editado, a pressão sobre os estudantes

cresceu e a primeira tragédia resultante desse conflito aconteceu durante o protesto

contra o fechamento do restaurante Calabouço, em março, no Rio de Janeiro. O

local foi citado em um relatório militar “como ponto de encontro e organização de

subversivos” (NAPOLITANO, 2005, p. 31). Édison Luís Lima, secundarista, foi

baleado durante o confronto com a polícia e morreu.

Page 45: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

45

No dia seguinte, uma multidão, portando bandeiras do Brasil e cartazes com fotografias de Fidel Castro e Che Guevara, comparecia ao enterro de Edson Luís. Por todo o país a indignação e a revolta provocavam manifestações com a adesão de jornalistas, artistas, intelectuais, associações de mães e setores do clero. (HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p. 75)

Os confrontos entre polícia e estudantes continuaram até atingirem seu auge

em junho. O dia 21 daquele mês e ano ficou conhecido como “Sexta-feira sangrenta”

após o conflito que resultou na morte de quatro manifestantes e mais de vinte feridos

à bala. A resposta à repressão do governo veio cinco dias depois com a “Passeata

dos Cem Mil”, no Rio de Janeiro, que reuniu políticos, estudantes, artistas,

intelectuais e trabalhadores.

Esse evento atingiu tais proporções que foi formada uma comissão (escolhida durante a manifestação) para ter uma audiência com o próprio marechal Costa e Silva, visando negociar a libertação dos estudantes presos e a reabertura do restaurante Calabouço. Mas o que estava por trás dessas reivindicações específicas era a luta ampla contra o regime militar. E o governo sabia disso. (NAPOLITANO, 2005, p. 32)

A comissão que foi ao encontro de Costa e Silva era formada por Hélio

Pellegrino (psicanalista - representante dos intelectuais), João Batista Ferreira

(representante do clero), Imirene Papi (representante das mulheres) e José Américo

Peçanha (representante dos professores). Hollanda e Gonçalves (1995) publicaram

depoimentos dos dois primeiros sobre o fim da década de 60 no Brasil. Pellegrino

afirma:

Chegamos a ser chamados pelo presidente Costa e Silva numa tentativa do governo de estabelecer o diálogo. Os entendimentos ficaram frustrados, e o movimento estudantil seguiu avançando até que veio o AI-5. O AI-5 correspondeu, por parte da ditadura, a uma declaração de guerra aos estudantes e ao povo. Em toda a história brasileira, nunca houve um fechamento tão brutal. O movimento estudantil ficou totalmente quebrado. De seus restos nasceu a tentativa heróica - embora precipitada - de luta armada. ‘Ou ficar a Pátria livre, ou morrer pelo Brasil.’ Nossos melhores jovens resolveram viver, na carne, a letra do Hino. (p. 79-80)

Já Ferreira, padre do Colégio São Vicente, chama a atenção para as falhas

cometidas pelos movimentos que, então, lutavam contra a ditadura.

Os erros foram inúmeros, do que se aproveitou, com êxito, a repressão. O movimento foi, até certo ponto, ingênuo, às vezes ufânico, brotado de duas grandes forças sem organização e tradição, os estudantes e os

Page 46: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

46

trabalhadores, mas foi, com certeza, a expressão de vida mais forte do povo brasileiro nos últimos quinze anos [o depoimento aos autores foi feito em outubro de 1981, ano anterior à primeira edição do livro]. O que se instalou depois foi o obscurantismo da censura, a alienação da informação e o infantilismo das massas, dominadas pelo embuste e conduzidas pela força. Outro erro imperdoável, fruto das generalizações, foi o não nos termos aproximado dos militares honrados e patriotas, que se mostravam insatisfeitos e revoltados com o que sucedeu após 64. Pude conhecer alguns, radicalmente contra a política salarial, as cassações e a tortura. Faltou porosidade ao movimento, entre intelectuais, padres, estudantes e operários, para o diálogo aberto com esses comandos. (HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p. 82-3)

A derradeira derrota do movimento estudantil aconteceu em outubro de 1968.

No início daquele mês, os alunos de duas faculdades vizinhas na cidade de São

Paulo se enfrentaram e transformaram os prédios acadêmicos em quartéis. De um

lado, os estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de

São Paulo (USP), politicamente identificados com a esquerda; e do outro os alunos

da Faculdade Mackenzie, que era sede do Comando de Caça aos Comunistas

(CCC). “O conflito terminou com a ocupação policial e a destruição do prédio da

USP, deixando como saldo a morte de um estudante secundarista e dezenas de

feridos” (NAPOLITANO, 2005, p. 32-3). Mas o golpe fatal aconteceu no dia 12 de

outubro daquele ano, quando

[...] a UNE programava a realização de mais um congresso clandestino. Ibiúna, um município paulista, perto da cidade de São Paulo, fora o local escolhido. Reunidos numa fazenda, os delegados estudantis elegiam uma nova diretoria para sua entidade nacional e deliberavam sobre os rumos do movimento, quando tropas da PM cercaram a área, prendendo oitocentos participantes do congresso. (HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p. 76-7)

A partir de então, “o movimento estudantil de massa perdeu a força

organizativa, e muitos estudantes acabaram optando pela luta armada e clandestina”

(NAPOLITANO, 2005, p. 33).

3.3 MOVIMENTOS CULTURAIS

Tal qual no resto do mundo, o Brasil teve diferentes movimentos culturais na

década de 60. Da música ao cinema, influências internacionais e a situação política

brasileira atingiram diversos artistas e suas obras. No teatro, o musical Opinião, que

estreou em dezembro de 1964 no Rio de Janeiro,

Page 47: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

47

[...] reafirmou, simbolicamente, a aliança de classes derrotada com Goulart: um “favelado” (Zé Keti), um “camponês” (João do Valle) e uma “classe-média de esquerda” (Nara Leão) alternavam músicas e anedotas contra o regime. (NAPOLITANO, 2005, p. 25)

O roteiro representava o sentimento da geração jovem que acabava de ser

apunhalada pelo golpe militar. As músicas traziam a força de expressão, lembrando

ao público que ele não deveria se calar. Na plateia estavam artistas, intelectuais,

estudantes e, ao contrário do que havia acontecido na década anterior, os atores

não usavam as ruas como palcos para atrair a atenção dos trabalhadores, mas sim

atuavam em um verdadeiro teatro, dentro do Super-Shopping-Center da rua Siqueira

Campos (HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p. 23-4).

O lavrador, a reforma agrária, a favela, os ventos da revolução cubana, a idéia da revolução no Brasil alimentavam a sympathia entre cantores e espectadores. O tom exortativo e mobilizante que envolvia a todos parecia promover antes a resposta emocionada e esperançosa do que a reflexão e o distanciamento crítico. Uma limitação, não há dúvida, mas que viria a se revelar, por outro lado, extremamente eficaz enquanto tática de aglutinação e mesmo de conformação da “linguagem” política que passaria a ser desenvolvida nesta segunda metade da década. (HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p. 24-5)

Os artistas plásticos também foram envolvidos pelas transformações culturais

da década. As exposições Opinião 65 e Opinião 66 e os trabalhos apresentados na

galeria G4 traziam uma postura mais provocativa em relação ao público

(HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p. 25). O principal fruto dessa proposta foram os

happenings,

[...] onde o público era convidado a uma participação que envolvia o gesto, o movimento do corpo, a resposta sensível. No Rio de Janeiro, Rubens Gershman levava seus quadros para a Estação Central do Brasil - escolha sintomática se lembrarmos o investimento simbólico desse espaço que servira ao famoso discurso de João Goulart às vésperas do golpe militar. Buscava-se a rua, num mood que parecia preparar as manifestações da juventude estudantil. (HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p. 28)

O amadurecimento da arte plástica da década de 60 foi apresentado no

Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) através da exposição Nova

Objetividade Brasileira, a qual trazia obras de artistas cariocas e paulistas.

Hélio Oiticica definia no catálogo da exposição suas principais tendências: 1) Vontade construtiva geral 2) Tendência para o objeto ao ser negado o quadro de cavalete

Page 48: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

48

3) Participação corporal, tátil, visual, semântica, etc., do espectador 4) Tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos 5) Tendência a uma arte coletiva 6) Ressurgimento e reformulação do conceito de antiarte. [...] A relativização da prioridade didática ou imediatamente conscientizadora insinua um movimento de readequação do trabalho intelectual ̶e de modo específico, do trabalho artístico ̶ num momento em que se tornava crítica a relação produção cultural/militância política, tal como fora colocada no período Goulart. (HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p. 29)

Mas o maior símbolo visual da militância artística foi o Cinema Novo. Com

uma estética diferenciada, longe do apelo industrial, o movimento tem como

principais referências os filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em

transe (1967), ambos dirigidos por Glauber Rocha. O primeiro serviu como marco

inicial do Cinema Novo, enquanto o segundo foi o auge simbólico da geração pós-

golpe militar.

Se o termo “revolucionário” pode dizer alguma coisa sobre esse filme [Deus e o Diabo na Terra do Sol] de Glauber Rocha, o faz na medida em que, dentro de um quadro específico de desenvolvimento do cinema brasileiro e do momento histórico que o conforma, Deus e o Diabo pôde expressar de forma original a possibilidade de uma ruptura a um só tempo política e estética: a superação das formas “primitivas” da revolta popular que descortina o espaço para a revolução social e a atualização de uma linguagem cinematográfica que se destacava radicalmente do repertório formal trabalhado pela maior parte dos filmes brasileiros. (HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p. 42)

É importante lembrar, no entanto, que as mesmas características do Cinema

Novo que o distanciavam nos filmes populares, também o afastavam da maior parte

do público brasileiro: a classe operária. A plateia dos cineastas do movimento

liderado por Glauber Rocha, era formada, em maioria, pela classe média, que

também era a mais envolvida em movimentos contra a ditadura. A causa militante

era, ao mesmo tempo, razão e consequência das obras do Cinema Novo. Os filmes

lembravam ao público do poder do povo, enquanto a necessidade de expressão de

toda uma geração que respirava a ditadura motivava os diretores.

Em Terra em Transe, possivelmente o filme que melhor tenha expressado a face “reflexiva” da trajetória cinemanovista, o “termômetro da juventude”, a que se referira Paulo Emílio, registrava a temperatura elevada das mobilizações estudantis, as influências da guinada à esquerda dos movimentos de libertação nacional e dos protestos da juventude em diversos países. Guiado por uma sensibilidade estética moderna, alegórica, profética, Glauber voltava-se para a reapresentação extraordinariamente crítica do Brasil populista e do modelo intelectual revolucionário que aí se desenhara. A valorização, tão própria desse período, do poder

Page 49: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

49

revolucionário da palavra seria confrontada no filme com a dura realidade das relações de poder, onde, à diferença do impulso intelectual, dificilmente os “poemas precedem os fuzis”. (HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p. 47-8)

O posicionamento político (ou a falta dele) era o principal tema de discussão

entre a juventude, especialmente no que se refere à música. Hoje uma das principais

críticas ao movimento Jovem Guarda é a alienação de suas canções e de seus

líderes, porém, na época, os maiores adversários da turma de Roberto Carlos eram

os artistas da Bossa Nova, os quais também não tinham envolvimento político. Essa

rixa só iria terminar com o surgimento do Tropicália, em 1967. Antes disso, a

sociedade brasileira estava dividida ̶ e o regime militar pouco tinha a ver com isso.

3.2.1 Tropicalismo: entre a MPB e a Jovem Guarda

Quando, no fim da década de 50, João Gilberto gravou “Chega de saudade”,

composição de Vinícius de Moraes e Tom Jobim, o Brasil descobriu a bossa nova. O

ritmo tornou-se referência na Música Popular Brasileira (MPB) e se popularizou pelo

mundo. Rapidamente se formou um grupo de músicos fidelizados ao novo gênero e

que zelavam pela sua originalidade, ou seja, apenas pessoas selecionadas eram

autorizadas a participar das reuniões lideradas por Ronaldo Bôscoli, às quais

compareciam Nara Leão e Carlos Lyra, entre outros.

Em consequência dessa seleção, muitos músicos novos ficaram sem

oportunidades. Na época, o jovem Roberto Carlos, fã de João Gilberto e sonhando

em viver de música, foi apadrinhado por Carlos Imperial e levado a uma dessas

reuniões. Porém, como Bôscoli explicou em depoimento a Paulo César Araújo

(2006), o garoto de Itapemirim foi mais uma vítima das exigências do grupo da

Bossa Nova4, já que, nos primeiros acordes tocados por Roberto, foi notada a

semelhança com o cantor de “Chega de saudade”:

O nosso objetivo era limpar a área porque, de repente, todo mundo virou bossa nova. Neguinho vinha com um violão, plec, plec, plec, e se dizia bossa nova. Começamos a limpar a área mesmo. A gente não podia deixar todo mundo entrar. Daí nós sermos chamados de elitistas, e de certa forma

4 A diferenciação do uso de ‘Bossa Nova’ e ‘bossa nova’ se refere ao contexto. O primeiro faz alusão

ao movimento, enquanto o segundo faz referência ao ritmo

Page 50: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

50

com justiça. Mas tínhamos que nos defender. Sabíamos que aquilo podia estourar a qualquer momento. (ARAÚJO, 2006, p. 76)

Na mesma época, surgia nos Estados Unidos o rock’n’roll: Chuck Berry, Little

Richard, Elvis Presley, Jerry Lee Lewis, Bill Haley & his Comets... O ritmo demorou a

chegar ao Brasil, especialmente pelos altos custos dos vinis, mas um dos pioneiros

em divulgar o gênero por aqui foi Carlos Imperial, que criou no Rio de Janeiro o

Clube do Rock, onde jovens dançavam e cantavam sucessos mundiais, o que

influenciava suas composições próprias. Além de criar o ponto de encontro, Imperial

levou o rock para quadros especiais no rádio e na televisão, sempre incentivando os

jovens músicos. Entre eles estavam Roberto e Erasmo Carlos.

Quando a emissora Record investiu no programa Jovem Guarda, não tinha

dimensão do sucesso que seria. Ao contrário da bossa nova, atingiu os jovens de

famílias mais humildes e, muito além do programa dominical, se tornou um

movimento. Os adolescentes queriam se vestir igual aos ídolos, pensavam em

namoro e em carros velozes, temas principais das canções da turma liderada por

Roberto Carlos.

Quem não gostou da exaltação em torno do rock foram os músicos da MPB.

Para eles era um desrespeito à cultura nacional e, liderados por Elis Regina e Jair

Rodrigues, apresentadores do programa O Fino da Bossa, organizaram a Passeata

Contra a Guitarra Elétrica. “Protesto e nacionalismo faziam, portanto, o coro da

MPB” (HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p. 54). O jornalista e compositor Nelson

Motta relembra a situação da música brasileira na segunda metade da década de 60

da seguinte forma:

“Havia uma rivalidade muito estimulada pela TV Record também, que tinha

praticamente o monopólio dos musicais da televisão da época. Não tinha novela, o

forte da televisão era o musical e a Record tinha sob contrato 90% da música

brasileira. Todo dia tinha um programa musical e a Record tinha interesse que os

programas fossem pros jornais, pras rádios, pra vida das pessoas. Então era

engraçado porque na época se dizia que a MPB era a música brasileira e a Jovem

Guarda era a música jovem. E a gente se perguntava: Meu Deus do céu, por que

Page 51: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

51

não pode haver uma música jovem e brasileira ao mesmo tempo?”5 (Informação

verbal).

Isso só veio a ser solucionado, de certa forma, em 1967, com o III Festival da

Música Popular Brasileira, promovido pela Record. Pela primeira vez Roberto Carlos

participou da competição (o que foi uma das causas para a Passeata Contra a

Guitarra Elétrica), porém, apesar de sua presença ter sido motivo de vaias para boa

parte do público, não foi ele que causou uma revolução na edição daquele ano.

Respeitados e envolvidos com a turma da MPB, Caetano Veloso e Gilberto Gil

saíram de sua área de conforto e foram criticados ao se apresentarem

acompanhados de bandas de rock. Veloso contou com os argentinos dos Beat-Boys

para cantar “Alegria, alegria”, enquanto Gil interpretou “Domingo no parque” com o

acompanhamento d’Os Mutantes. Surgia o Tropicalismo, também conhecido como

Tropicália.

O jornalista Sérgio Cabral era um dos jurados daquele festival e confessa ter

aceitado de “má vontade” a ideia de que os baianos seriam acompanhados por

guitarras. “E aí aconteceu essa coisa maravilhosa. A estética venceu as minhas

velhas convicções. As músicas eram maravilhosas [...]. ‘Domingo no parque’ eu

considero uma das maiores músicas já feitas em todos os tempos no Brasil. É uma

música muito bonita, muito bem feita, muito inteligente.”6 (Informação verbal).

O Tropicalismo aproximou as guitarras da MPB, dando assim um passo à

frente na evolução da música nacional. "A ideia de retomar e levar adiante o ponto

de encontro da musicalidade brasileira com a modernidade musical assumia naquele

momento um caráter provocativo e renovador” (HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p.

55).

Em termos de debate musical, Alegria, Alegria parecia assumir um papel semelhante àquele desempenhado por Desafinado, como expressão de uma tomada de posição crítica em face dos rumos da MPB. Se a canção de Newton de Mendonça e Tom Jobim assumira na incrível interpretação de João Gilberto o caráter de um “manifesto sentimental” da Bossa Nova - que com seus acordes dissonantes parecia “desafinada” aos ouvidos afeitos às harmonias tradicionais - da mesma forma Alegria, Alegria, ao retomar a linha evolutiva de João Gilberto, “desafinava” com novas informações a redundância da MPB de protesto.

5 Nelson Motta em depoimento ao documentário “Uma noite em 67”, dirigido por Renato Terra e

Ricardo Calil, lançado em 2010. 6 Sérgio Cabral em depoimento ao documentário “Uma noite em 67”, dirigido por Renato Terra e

Ricardo Calil, lançado em 2010.

Page 52: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

52

Na mesma direção, Domingo no Parque de Gilberto Gil investia na reformulação das linguagens da canção popular. Uma nova sensibilidade, moderna e brasileira, desenhava-se no arranjo extremamente criativo que mesclava elementos extraídos da tradição popular, da cultura “culta” e do que havia de mais avançado na técnica da música internacional. (HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p. 60)

Enquanto muitos hoje crucificam a Jovem Guarda, Caetano Veloso reconhece

a importância do movimento ao afirmar que ele serviu de base para o seu trabalho

tropicalista e, consequentemente, a importância da turma de Roberto Carlos na linha

evolutiva da música brasileira.

"Ele [Gilberto Gil] até, sob certos aspectos, tava mais avançado nos projetos

de fazer uma mudança, da natureza do que nós mais ou menos viemos a fazer, do

que eu. Ele estava mais apaixonado pelo rock moderno do que eu. [...] Eu ouvia,

achava lindo, me interessava, achava instigante, mas eu queria fazer um negócio

nosso. Vou dizer, a Jovem Guarda me inspirava mais que os Beatles.”7 (informação

verbal).

A importância de juntar diferentes influências foi afirmada por Gilberto Gil

ainda nos bastidores do festival. Ao falar sobre Os Mutantes, formado por Rita Lee,

Sérgio e Arnaldo Baptista, ao repórter Reali Jr., o compositor e intérprete de

“Domingo no parque” disse:

“Eu encontrei esses três jovens, dois rapazes e uma moça, são excelentes.

Excelentes instrumentistas, excelentes pessoas, com sensibilidade, com percepção

artística. Quer dizer, por que, de repente, eu vou me privar [...] desse valor que tá

junto a mim, que pode contribuir para o meu trabalho, para o trabalho de todos?”8

(informação verbal).

Em depoimento ao documentário “Uma noite em 67”, de Renato Terra e

Ricardo Calil, Gil reafirma seu interesse por diferentes gêneros e, especialmente,

sua vontade em juntar todos eles para criar algo novo, porém nega ter pretendido

iniciar um movimento musical.

“Pra que eu pudesse minimamente contribuir para o projeto tropicalista, que

teve que se destacar então do resto, eu tive que, o tempo todo, ser puxado pelo

7 Caetano Veloso em depoimento ao documentário “Uma noite em 67”, dirigido por Renato Terra e

Ricardo Calil, lançado em 2010. 8 Entrevista de Gilberto Gil à TV Record em 1967, imagens resgatadas no documentário “Uma noite

em 67”, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, lançado em 2010.

Page 53: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

53

Caetano. [...] Por mim mesmo, eu não teria feito a cizânia, a divisão, aquilo tudo era

uma agonia para mim.”9 (informação verbal).

O movimento teve seu fim já em 1968, porém até hoje é debatido e influencia

músicos nacionais, além de ter contado com artistas que ainda são reconhecidos

pelo público. Junto a Veloso, Gil e Os Mutantes, fizeram parte do Tropicalismo Tom

Zé, Gal Costa, Rogério Duprat, Nara Leão, José Carlos Capinan, Torquato Neto,

entre outros. Ou seja, não apenas músicos, mas também maestros e poetas faziam

parte do movimento. Em 1981, ao ser questionado pelo jornalista Marcos A.

Gonçalves sobre como via, então, o Tropicalismo, Caetano respondeu:

Eu não tenho hoje muito orgulho do Tropicalismo. Foi sem dúvida um modo de arrombar a festa, mas arrombar a festa no Brasil é fácil. O Brasil é uma pequena sociedade colonial, muito mesquinha, muito fraca. Não o país inteiro, as massas rurais, suburbanas, desempregadas, subempregadas, as baixas classes médias, as classes médias, mas o Brasil que fala, que faz e responde pelo Brasil. Eu não tenho problemas contra a elite, eu não sei a respeito disso, não sei como se deve exercer e como se deve pensar o poder. [...] Mas eu tenho vontade de que essa elite colonial seja desmentida porque ela é amesquinhadora, ela não instaura uma puta de uma vida genial. Então eu acho que o Tropicalismo teve grandeza não só porque arrombou a festa ou porque falou do arcaico e do moderno, mas porque nós tivemos grandeza no ato, eu, Gil, Torquato, Gal, Rogério Duprat, o teatro, o cinema, o Hélio Oiticica que fez a obra que deu nome ao movimento e que o Luiz Barreto pegou e botou a música. A gente fez essa coisa com grandeza colocando em xeque a pequenez dessa elite colonial que é a sociedade brasileira, uma nação que não é ainda inteiriça, que não acontece, onde as coisas não rolam e onde as pessoas não têm acesso a quase nada. (HOLLANDA, GONÇALVES, 1995, p. 86)

O fim do Tropicalismo veio junto com o endurecimento do regime militar

através da AI-5. Gil e Veloso foram exilados e, em Londres, receberam a visita de

Roberto Carlos, que então já tinha trocado a alcunha de Brasa da Jovem Guarda

pela de Rei da MPB, e que, ainda longe de questões políticas, levava às rádios

histórias de amor. No álbum de 1971, Roberto Carlos gravou uma composição de

Caetano Veloso, “Como dois e dois” (com o sugestivo verso “Tudo é igual quando

canto e sou mudo”10) e a canção “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”, uma

9 Depoimento de Gilberto Gil ao documentário “Uma noite em 67”, dirigido por Renato Terra e

Ricardo Calil, lançado em 2010.

10 Em conversa mediada por Nelson Motta entre o Rei e Caetano Veloso sobre a canção para o canal do YouTube “Roberto Carlos News”, o baiano afirma: “Na letra ela tem muito a ver com o clima daquele período da ditadura e eu gostava muito de poder por alguma coisa relativa àquela situação na voz de Roberto Carlos, que era verdadeiramente a voz do Brasil”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=39U66K336VA>.

Page 54: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

54

homenagem sua ao músico baiano, mas cujo significado só foi revelado anos depois

do fim da ditadura. Era uma afirmação de que o garoto da Jovem Guarda não estava

tão alienado quanto supunham e, mais que isso, da amizade entre os dois músicos.

Page 55: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

55

4 JOVEM GUARDA

“A formação de uma linguagem de rock brasileiro começou com a Jovem Guarda.”

Roberto Frejat11

O movimento Jovem Guarda recebeu seu nome através do programa

dominical da rede Record, que foi responsável por reunir boa parte dos artistas do

então jovem rock brasileiro. O gênero musical chegou ao país no fim da década de

50, com um pouco de atraso em relação ao cenário mundial, e demorou alguns anos

para conquistar seu espaço. As casas dos jovens que tinham o privilégio de

conseguir vinis norte-americanos e britânicos se tornaram pontos de encontro e o

surgimento das primeiras bandas nacionais foi algo natural. De início, tentavam

aprender a tocar suas músicas favoritas e faziam versões das mesmas, depois

encararam o desafio de compor e começaram a sonhar com o contrato em uma

gravadora. No meio disso, defendiam o rock diante da sociedade e enfrentavam os

olhares de reprovação dos mais conservadores.

Carlos Imperial fazia parte do grupo de privilegiados que tinham acesso

rápido a sucessos internacionais, consequentemente se tornou uma referência aos

jovens do Rio de Janeiro que queriam ouvir rock’n’roll. A partir disso, surgiu o Clube

do Rock, um espaço para ouvir e dançar o novo ritmo, e resultou em um grupo de

dança que viajava para diferentes cidades para se apresentar ao som do rock. Além

disso, Imperial conquistou para os rockeiros espaços no rádio e na televisão, sempre

incentivando e apoiando jovens artistas. Grande parte dos músicos que se

destacaram no período da Jovem Guarda passaram antes pelos programas de

Carlos Imperial, que, apesar disso, não teve envolvimento direto com o programa

que estreou em agosto de 1965.

Presente no meio artístico carioca a partir de meados dos anos 50, onde exerceu as mais diversas funções, Imperial assumiu a liderança da turma que queria fazer carreira no rock, no momento em que este começou a se

11 Frejat é guitarrista, compositor e atual vocalista da banda Barão Vermelho, criada nos anos 80,

quando Cazuza era responsável pelos vocais, e até hoje um dos principais nomes do rock

nacional. A frase faz parte do depoimento dado a Ricardo Pugialli para o capítulo “Pelo espelho

retrovisor” do livro “Almanaque da Jovem Guarda”, de 2006.

Page 56: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

56

popularizar no Brasil. Foi assim que descobriu e lançou Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wilson Simonal, Rosemary, Eduardo Araújo e, mais adiante, Vanusa. Enquanto isso, obtinha sucesso como autor ou coautor de canções, como “Vem quente que eu estou fervendo” e “A praça” [...] e, fora do iê-iê-iê, “Você passa e eu acho graça” (com Ataulfo Alves) e “Mamãe passou açúcar em mim”. (SEVERIANO, 2009, p. 403-4)

O programa Jovem Guarda foi criado a partir da necessidade do canal Record

de preencher a faixa de horário antes ocupada pelo futebol e que, então, não

poderia mais ser televisionado. O rock estava ganhando espaço e já tinha seus reis

entre a juventude: Celly Campello e Sérgio Murilo, que emplacaram sucessos como

“Estúpido cupido” e “Broto legal”, respectivamente. Ambos foram cogitados para

liderar o novo programa da Record, porém Celly Campello havia casado e

interrompido a carreira, enquanto Sérgio Murilo teve problemas com a gravadora e

sumiu dos ouvidos do público. Restava buscar novos nomes.

Depois de analisarem outros nomes, acabaram parando em Erasmo Carlos, que estava estourando com “Festa de Arromba”, do seu primeiro LP. Falaram com o rapaz, que indicou seu amigo e agora parceiro musical Roberto Carlos para fazer dupla com ele. (MONTEIRO, 2015, p. 145)

Na proposta com Erasmo no comando do programa, este se chamaria “Festa

de arromba”, porém quando os diretores conheceram Roberto Carlos, seu jeito de

bom moço convenceu-os de que ele deveria ser o líder da atração. O objetivo inicial

era ter um casal no comando, mas os produtores sabiam que, se fosse cogitada a

saída de Erasmo do projeto, Roberto sairia junto (ARAÚJO, 2006, p. 132), então

decidiram por um trio de apresentadores. Faltava, então, a garota para se juntar a

Roberto e Erasmo, a qual serviria de modelo e atrairia o público feminino. Entre as

diversas opções, Wanderléa foi escolhida por já ser amiga dos dois músicos.

Assim, foi ao ar ao vivo, às quatro e meia da tarde do domingo 22 de agosto de 1965, o primeiro programa “Jovem Guarda”, ainda em caráter experimental, acontecendo a estreia oficial duas semanas depois. Realizado no Teatro Record, na rua da Consolação, apinhado de adolescentes, em seus melhores dias, o “Jovem Guarda” apresentava, além do trio fixo, com Roberto Carlos como atração principal, figuras da música jovem, como Os Incríveis, Tony Campelo [sic], Rosemary, Ronnie Cord, The Jet Black’s e Prini Lopez, que participaram do espetáculo de estreia. Dava vez ainda a novos valores, como a cantora-compositora Martinha, projetando-os para o sucesso. (SEVERIANO, 2009, p. 399)

Quanto à escolha do nome do programa, há duas explicações. A primeira,

divulgada pelo publicitário Carlito Maia, afirma que

Page 57: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

57

[...] a idéia do título foi inspirada num discurso do revolucionário russo Vladimir Ilitch Ulinov, mais conhecido por Lenin: “O futuro do socialismo repousa nos ombros da jovem guarda, porque a velha está ultrapassada”. A rigor, esta é uma frase de Engels citada por Lenin num discurso em um congresso da Internacional Socialista. [...] A verdade, porém, é que o publicitário não precisava fazer um caminho tão longo e tortuoso para dar título ao musical da TV Record. Desde o início de 1965, “Jovem guarda” era o título de uma coluna assinada por Ricardo Amaral dentro da página de Tavares de Miranda, colunista social da Folha de S. Paulo. (ARAÚJO, 2006, p. 134)

Independente da origem do nome do programa, o fato é que os produtores

dificilmente poderiam imaginar que o sucesso seria tal a ponto de emprestar seu

nome ao movimento da juventude brasileira que sonhava com astros de rock (e em

se tornar um). Naquela época a televisão nacional era recheada com programas

musicais, como O Fino da Bossa”, com Jair Rodrigues e Elis Regina, então quando

se começou a pensar no que viria a ser o programa Jovem Guarda, a proposta

estava mais próxima de recriar um ponto na programação direcionado à juventude

rockeira (a exemplo de Crush em Hi-Fi, comandado por Tony e Celly Campello em

1959) do que em fazer algo novo. Aliás, diante do aumento de popularidade do rock

com sucessos de jovens artistas brasileiros, a solução para ‘tapar o buraco’ deixado

pelo futebol surgiu de maneira natural: era necessário dar espaço e atrair os jovens

para a televisão.

É importante colocar que, até então, o rock não era a menina dos olhos das

famílias tradicionais. Os jovens de classe média e alta estavam mais interessados na

MPB, especialmente na bossa nova. Apesar de não ignorarem nomes como Elvis e

Beatles, acreditavam na força das raízes musicais brasileiras e, até por isso, em

1967 aconteceu a “Passeata contra a guitarra elétrica”. Ou seja, entre público e

artistas, a Jovem Guarda era composta por jovens de famílias com formações

humildes, o que pode justificar algumas características do movimento. Uma passada

rápida pelo histórico de Roberto e Erasmo Carlos, dois dos principais nomes do

movimento e, hoje, da música nacional, comprova isso.

Roberto Carlos Braga nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo,

onde teve seu primeiro contato com a música. Suas primeiras apresentações foram

em um programa de uma rádio local para crianças cantoras. Na adolescência foi

morar com uma tia no Rio de Janeiro com a esperança de conseguir sua grande

chance para viver da música, mas até que surgisse o programa Jovem Guarda, o

Page 58: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

58

jovem Roberto Carlos ouviu várias vezes ‘não’ e dependeu muito da boa vontade

dos outros para se manter. Já Erasmo Esteves é carioca, filho de mãe solteira (o pai

só apareceu quando ele se tornou um dos líderes do movimento Jovem Guarda) e

passou por diversos trabalhos para ajudar a pagar as contas de casa. Vizinho de

Tim Maia na Tijuca, viveu muitas aventuras nas ruas, com as crianças do bairro, e

descobriu o mundo da música com os amigos. Ficou conhecido como compositor

antes de chamar atenção como cantor.

Nos dois casos, a música era um sonho glamoroso de jovens de famílias

simples, que trabalhavam para sobreviver e desconheciam o luxo. No que se refere

à educação, a formação universitária era distante demais para ser cogitada,

enquanto o investimento em cursos técnicos era feito pela necessidade de um ‘bom

emprego’. O rock simbolizava namoros, carros e fama, a tríade que forma o sonho

de qualquer criança que queira fugir da rotina operária seguida pelos pais. Ou seja, a

música oferecia uma liberdade irresistível, por isso jovens como Roberto e Erasmo

correram tanto atrás dela. Aliás, este é outro ponto importante a ser registrado:

enquanto alguns músicos tinham apoio financeiro e moral de suas famílias, os

rapazes da Jovem Guarda foram muitas vezes contra a vontade dos pais. Afinal, se

ainda hoje há certa antipatia das famílias pela carreira musical, que dirá na década

de 60. Na cabeça dos pais dos rockeiros dos anos 60, a música era perda de tempo,

especialmente o rock, e, antes de tudo, perda de dinheiro, já que a energia gasta

com canções dificilmente poderia resultar em comida na mesa e conforto familiar.

Em resumo: O movimento Jovem Guarda unia jovens que sonhavam com o

prazer em todas as suas formas, do sexual ao consumista; que lutavam pelo direito

de sonhar e acreditar em seus sonhos; que queriam ser donos de seus corpos e

desejos; que não aceitavam facilmente um ‘não’ e que não se deixavam abalar pelas

dificuldades. Era uma quebra nas tradições das famílias brasileiras, mas ao mesmo

tempo era um passo a frente na cultura social. Obviamente não foi um movimento

livre de críticas, porém teve sua importância social e cultural, apesar de, muitas

vezes, isso ser esquecido.

4.1 ARTISTAS

Nem todos os nomes relacionados ao movimento Jovem Guarda pisaram no

palco do programa homônimo, geralmente por terem seu próprio programa do

Page 59: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

59

gênero ou por terem que optar em se apresentarem em um ou em outro. Além do

comandado por Wanderléa, Roberto e Erasmo Carlos, dois outros programas

marcaram o movimento: “O bom”, comandado por Eduardo Araújo e Sylvinha, e “O

pequeno mundo de Ronnie Von”, do ‘príncipe’ Ronnie Von. Muitos artistas fizeram

parte do movimento, alguns sumiram dos rádios, outros trocaram de gênero,

algumas bandas e grupos vocais tiveram seu fim, porém a participação na Jovem

Guarda os torna parte da história da música nacional. Abaixo seguem os principais

nomes do rock nacional dos anos 6012.

Albert e Meire Pavão: Filhos do maestro Theotônio Pavão, seus nomes de batismo

são Carlos Alberto Pavão Neto (2 de julho de 1942) e Antônia Maria Pavão (2 de

junho de 1948). Entre os sucesso de Albert Pavão estão “A garota do meu melhor

amigo” (versão de “The girl of my best friend”, de Sam Bobrick e Beverly Ross), “Meu

broto só pensa em estudar” e “Garota quadrada”. Largou a carreira de cantor para

trabalhor como produtor musical. Em 1989 lançou o livro “Rock brasileiro 1955-65:

trajetória, personagens e discografia” (Edicon). Meire Pavão fez sucesso com “O que

eu faço do latim?” (“Che me ne faccio del latino", de Mario Bertolazzi, Marcello

Marchesi e Luciano Beretta), “Escola do amor” e “Monteiro Lobato”. Faleceu em 31

de dezembro de 2008.

Bobby di Carlo: Roberto Caldeira dos Santos nasceu em São Paulo em 30 de junho

de 1947. Um dos primeiros nomes do rock nacional, gravou versões de diversos

sucessos internacionais nos primeiros anos da década de 60, tais como “Oh, Eliana”

(“DeDe Dinah”, de Peter de Angelis e Bob Marcucci, gravada por Frankie Avalon) e

“Gatinha Lili” (“Don’t gilt the lily, Lily”, de Arthur Altman e Billy Meschel, gravada por

Del Shannon). Fez parte do grupo The Jet Blacks entre 1963 e 1964 como guitarrista

solo. Entre seus sucessos do período Jovem Guarda estão “Tijolinho” (de Wagner

Benatti) e “O ermitão” (de Getúlio Cortês).

12 Lista feita com referência nos livros “Almanaque da Jovem Guarda”, de Ricardo Pugialli, e “Jovem

Guarda em ritmo de aventura”, de Marcelo Fróes. As informações foram complementadas com

pesquisa no Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, disponível em

<http://www.dicionariompb.com.br/>. Acessos entre os dias 9 e 14 de março de 2016.

Page 60: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

60

Celly e Tony Campello: A Rainha da Juventude nasceu em Taubaté (SP) em 18 de

junho de 1942 com o nome de Célia Benelli Campello. Estudou piano e violão ainda

criança e, no fim da década de 50, se destacou no cenário nacional acompanhada

de seu irmão, Tony Campello (Sérgio Benelli Campello, São Paulo, 24 de fevereiro

de 1936), com quem apresentou o primeiro programa de rock da televisão, “Crush

em Hi-fi”. Entre seus sucessos estão músicas como “Estúpido cupido” (“Stupid

cupid”, de Howard Greenfield e Neil Sedaka) e “Banho de lua” (“Tintarella di Luna”,

de Franco Migliacci e Bruno de Filippi), até hoje lembradas. É considerada uma das

pioneiras do rock nacional e foi cogitada para apresentar o programa que veio a se

chamar Jovem Guarda, porém recusou para se dedicar ao casamento. Faleceu em 4

de março de 2003. Já Tony Campello fez sucesso no fim dos anos 50 e início dos 60

com músicas como “Estrada do amor” e “Ao balanço do Twist”, depois tornou-se

produtor musical.

Demetrius: Nasceu em Jacarepaguá (RJ) com o nome de Demetrio Zahra Neto em

28 de março de 1942. Se destacou pelas versões “Ritmo da chuva” (“Rhythm of the

rain”, de John Claude Gummoe) e “Ternura” (“Somehow it got to be tomorrow today”,

de Estelle Levitt), sendo que essa última se tornou sucesso na voz de Wanderléa e

lhe rendeu o apelido de Ternurinha. Interpretou “Minha gente”, composição própria,

no III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, mais tarde regravada por

Ronnie Von. Várias de suas composições foram gravadas por outros artistas, entre

elas “Preciso lhe encontrar”, lançada por Roberto Carlos no álbum de 1970, e “Que

seria você”, gravada por Antônio Marcos e Altemar Dutra.

Eduardo Araújo: Mineiro de Joaima, nasceu em 23 de julho de 1942 e foi batizado de

Eduardo Oliveira Araújo. Suas composições mais conhecidas são “O bom” e “Vem

quente que eu estou fervendo”, ambas em parceria com Carlos Imperial, sendo que

a primeira deu nome ao programa que apresentou ao lado de Silvinha (com quem se

casou mais tarde) na TV Excelsior e a segunda foi sucesso na voz de Erasmo

Carlos. Eduardo Araújo nunca participou do programa Jovem Guarda. A partir da

década de 80 se dedicou à música sertaneja.

Erasmo Carlos: Nasceu em 5 de junho de 1941 e se criou na Tijuca, no Rio de

Janeiro, ao lado de Tim Maia e Jorge Ben, entre outros. “Festa de arromba” foi um

Page 61: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

61

dos seus primeiros sucessos como cantor, depois de dividir com Roberto Carlos a

autoria de canções como “Parei na contramão” e “O calhambeque”. Do período

destacam-se também as músicas “Minha fama de mau”, “O tremendão” (que se

tornou seu apelido) e “A carta”. Quando Roberto deixou o programa Jovem Guarda,

ele permaneceu ao lado de Wanderléa até que fosse anunciado o fim da atração. De

lá pra cá somou sucessos: “Sentado a beira do caminho”, “Coqueiro verde”, “Sou

uma criança (não entendo nada)” e “Mulher (Sexo frágil)”, entre outros. A parceria

que faz com Roberto Carlos é a mais duradoura da música brasileira, estendendo-se

até os dias de hoje. Em 2009 publicou o livro “Minha fama de mau” (Objetiva), onde

registra algumas lembranças suas.

Golden Boys: Grupo vocal formado pelos irmãos cariocas Roberto (2 de julho de

1940), Ronaldo (31 de agosto de 1942) e Renato Corrêa José Maria (10 de julho de

1944) e Valdir Anunciação (Rio de Janeiro, fevereiro de 1941 - Rio de Janeiro, 8 de

janeiro de 2004). Um dos grandes destaques da Jovem Guarda, entre seus

inúmeros sucessos estão “Alguém na multidão”, “Pensando nela”, “Se eu fosse

você” e “Fumacê”.

Jerry Adriani: Jair Alves de Souza nasceu em 29 de janeiro de 1947 em São Paulo.

Ainda criança aprendeu a cantar canções italianas com a avó e suas primeiras

gravações foram músicas de artistas da Itália, como “Il mio signore” (Edoardo

Vianello e Mogol) e “Um baccio piccolismo” (Giovanni Ornati e Gino Mescoli). Entre

suas composições estão “Nosso romance”, “No auge do rock’n’roll” e “O cavaleiro

das estrelas” (homenagem a Raul Seixas). Entre os destaques do período Jovem

Guarda estão as canções “Cada um sabe de si”, “Olhos feiticeiros”, “Querida” e “Eu

queria saber”.

Leno e Lílian: Dupla formada por Gileno Osório Wanderley de Azevedo (Natal, 25 de

abril de 1949) e Sílvia Lília Barrie Knapp (Rio de Janeiro, 30 de março de 1948). Fez

sucesso com canções como “Pobre menina”, “Devolva-me” e “Eu não sabia que

você existia”. Entre idas e vindas da dupla, Leno fez sucesso com “A pobreza”, além

de produzir com Raul Seixas o álbum “Vida e obra de Johnny McCartney”, que foi

censurado na década de 70 e só foi redescoberto vinte anos depois; enquanto Lílian

Page 62: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

62

se destacou com “Sou rebelde” e publicou uma autobiografia, “Como um conto de

fadas” (Editora Qualigraph, 2001).

Martinha: Marta Vieira Figueiredo Cunha nasceu em Belo Horizonte (MG) em 30 de

julho de 1949 e ficou conhecida no programa Jovem Guarda como “Queijinho de

Minas”. Se destacou por suas composições, dentre as quais “Eu daria a minha vida”

e “Eu te amo mesmo assim”. Teve suas canções gravadas por artistas de outros

países e se popularizou como compositora, sendo a única mulher a conseguir se

destacar nesse papel durante a Jovem Guarda.

Os Incríveis (The Clevers): Banda formada em São Paulo por Neno (Demerval

Teixeira Rodrigues, São Paulo, 15 de junho de 1942 - São Paulo, 03 de dezembro

de 2014), Risonho (Waldemar Mozema, São Paulo, 11 de agosto de 1942), Mingo

(Domingos Orlando, São Paulo, 1º de janeiro de 1944 - São Paulo, 4 de junho de

1995), Manito (Antônio Rosas Seixas, Vigo, 3 de abril de 1944 - São Paulo, 9 de

setembro de 2011) e Netinho (Luiz Franco Thomaz, Santos, 5 de abril de 1947). Em

1965, Neno saiu da banda e foi substituído por Nenê (Lívio Benvenuti Júnior, São

Paulo, 10 de abril de 1947 - São Paulo, 30 de janeiro de 2013). O grupo se destacou

por músicas instrumentais como “Czardas”, “O homem do braço de ouro” e “O

milionário”, além de gravar as primeiras versões em português das músicas “Era um

garoto que como eu amava os Beatles e Rolling Stones” (C’era un ragazzo che

come me amava i Beatles e i Rolling Stones”, de Gianni Morandi) e “O vagabundo”

(“Giramondo”, de Nicola di Bari, Gianfranco Reverberi, Saro Leva e Sergio Bardotti).

Fizeram muito sucesso internacionalmente, especialmente no Japão, e lançaram o

filme “Os incríveis nesse mundo louco”. Na década de 70 perderam muita

popularidade depois da gravação de “Eu te amo, meu Brasil”, de Don e Ravel, que

foi interpretada como apoio ao regime militar. A mudança de nome ocorreu ainda na

década de 60 em função de problemas com o empresário, que alegava ser criador

do nome “The Clevers”.

Renato e seus Blue Caps: Uma das principais bandas da Jovem Guarda, foi fundada

pelos irmãos Renato (Rio de Janeiro, 27 de setembro de1943), Edson (Rio de

Janeiro, 29 de julho de 1945 - Rio de Janeiro, 4 de outubro de 2010) e Paulo César

Barros (Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 1947). Muitos músicos passaram pela

Page 63: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

63

formação da banda inclusive Erasmo Carlos, que assumiu os vocais da banda

quando Edinho Barros resolveu seguir carreira solo com o nome de Ed Wilson. Além

de acompanharem a gravação de muitos cantores da Jovem Guarda, a banda

chamou atenção pelas versões de sucessos dos Beatles como “Menina linda” (“I

should have known better") e “Ana” (“Anna”). Além disso, Renato Barros compôs

músicas gravadas por diversos cantores, como “Devolva-me” (Leno e Lílian) e “Você

não serve pra mim” (Roberto Carlos).

Roberto Carlos: Nasceu em Cachoeiro do Itapemirim (ES) em 19 de abril de 1941

com o nome de Roberto Carlos Braga, ganhando o apelido de Brasa durante a

Jovem Guarda. Entre seus primeiros sucessos estão “Parei na contramão” e “O

calhambeque”, ambas em parceria com Erasmo Carlos. O principal líder da Jovem

Guarda, uniu públicos com a canção “Quero que vá tudo pro inferno”. Quando o

programa Jovem Guarda começou a enfraquecer, saiu e comandou outras atrações

na TV Record, como “Opus 7”, além de trocar de gênero musical. Em vez de rock

passou a tocar MPB, que sempre foi uma de suas paixões musicais. Emplacou

sucessos como “Detalhes”, “Emoções”, “Amada amante”, “O portão”, “Lady Laura”,

entre tantos outros, sendo hoje conhecido como Rei da música brasileira. Sempre foi

muito criticado por sua falta de posição política, mas apesar disso é uma das

principais referências do Brasil no cenário musical internacional. Lançou os filmes

“Roberto Carlos em ritmo de aventura” (1968), “Roberto Carlos e o diamante cor-de-

rosa” (1970) e “Roberto Carlos a 300 km por hora” (1971). Desde 1974 grava um

programa especial de fim de ano exibido pela Rede Globo.

Ronnie Von: Ronaldo Nogueira nasceu em Niterói no dia 17 de julho de 1947 e ficou

conhecido como “Príncipe” durante a Jovem Guarda, já que alcançou o nível de

popularidade Roberto Carlos e era visto como único rival do Brasa. Teve seu próprio

programa na Record, “O pequeno mundo de Ronnie Von”, e nunca se apresentou na

Jovem Guarda, apesar de ser uma das referências do movimento. Entre seus

sucessos estão “A praça” e “Jardim de infância”. Publicou o livro “Mãe de gravata” e

hoje apresenta o programa “Todo seu” na Rede Gazeta de Televisão.

Sérgio Murilo: O Rei da Juventude nasceu com o nome de Sérgio Murilo Moreira

Rosa, no Rio de Janeiro, em 2 de agosto de 1941. Um dos precursores do rock

Page 64: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

64

nacional, entre seus principais sucessos estão “Broto legal” e “Marcianita”. Foi

cogitado para apresentar o programa que veio a se chamar Jovem Guarda, porém

estava com problemas na gravadora e, por consequência, foi impedido de gravar

novas canções, o que o fez sumir por um tempo das rádios. Faleceu em 19 de

fevereiro de 1992, vítima de câncer de fígado.

Wanderléa: Conhecida pelo público como Ternurinha e chamada de “maninha” por

Roberto e Erasmo Carlos, Wanderléa Charlup Boere Salim nasceu em 5 de junho de

1946 em Governador Valadares (MG). Começou a cantar publicamente contra a

vontade do pai, que acabou permitindo desde que ela concordasse com algumas

regras, como ter sempre a companhia de alguém da família em suas viagens.

Representante feminina na apresentação do programa Jovem Guarda, ditou a moda

entre as garotas - suas minissaias fizeram muitos pais arrancarem os cabelos.

Apesar da rebeldia de suas roupas, ao contrário dos rapazes, Wanderléa manteve

seu papel de ‘moça de família’ e não participava das festas (e aventuras sexuais)

fora do programa. Entre seus maiores sucessos estão “Ternura”, versão de

Demetrius para “Somehow it got to be tomorrow today” de Estelle Levitt; “Prova de

fogo” e “Pare o casamento”.

Wanderley Cardoso: Nascido em 10 de março de 1945 em São Paulo, Wanderley

Conte Cardoso começou sua carreira musical ainda criança. Um dos principais

nomes da Jovem Guarda, teve grande sucesso com músicas como “O bom rapaz”,

“Meu amor brigou comigo”, “Meu regresso” (sua estreia como compositor) e “Doce

de coco” (parceria com Cláudio Fontana). Em 1966 lançou o filme autobiográfico “O

ídolo”. A partir da década de 70 investiu mais nas canções românticas, gravou

sucessos da MPB e da música internacional e fez excursões pela América Latina.

Depois de um disco fracassado lançado no ano de 2000, tentou suicídio e se

converteu à igreja Sara Nossa Terra, fazendo também gravações do gênero gospel.

Outros artistas populares no período foram: Antônio Marcos; Deny e Dino; Ed Wilson

(irmão de Renato e Paulo César Barros, um dos fundadores de Renato e seus Blue

Caps); Galli Jr./Prini Lorez (ambos pseudônimos de José Gagliardi Jr.); George

Freedman (alemão erradicado no Brasil, um dos precursores do rock nacional);

Marcos Roberto; Os Vips (dupla que fez grande sucesso com a canção “A volta”,

Page 65: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

65

composta por Roberto e Erasmo Carlos); Reginaldo Rossi; Ronnie Cord; Rosemary;

Sérgio Reis; Silvinha; The Brazilian Bitles; The Fevers; The Jet Blacks; The Jordans;

The Youngsters; Trio Esperança (irmãos mais novos de três dos Golden Boys,

fizeram sucesso com músicas como “Passo do elefantinho” e “A festa do Bolinha”);

Vanusa; e Waldirene (que ficou conhecida como “a garota do Roberto”).

4.2 SUCESSO E CRÍTICA

A década de 60 foi o auge dos programas musicais na televisão, em

consequência muitas revistas eram dedicadas ao gênero, como Intervalo,

Radiolândia e Revista do Rádio. Os temas iam de exposição das vidas dos músicos

a fofocas de bastidores, dentre as quais a rivalidade entre os programas. O sucesso

da Jovem Guarda foi literalmente estampado nas capas destas e de outras revistas,

que frequentemente atraiam leitores prometendo segredos sobre a vida de algum

dos jovens e famosos roqueiros.

Do outro lado, os músicos aproveitavam o auge do sucesso para colocar seu

nome em diversos produtos, de bonecos a roupas, promovendo assim um

consumismo nunca antes visto no Brasil. Fãs da Jovem Guarda de todas as idades

queriam tudo que tivesse o nome dos ídolos.

Roberto Carlos (o Brasinha), o grande líder, emprestou seu prestígio popular às roupas Calhambeque, nome de uma das suas músicas de maior sucesso no início de carreira. Erasmo Carlos, o Tremendão da época, também transformou esse nome em produto de consumo. As mulheres, tão consumidoras quanto os homens, precisavam ter sua marca. Wanderléia [sic], conhecida na época por Ternurinha, não perdeu tempo nem chance de registrar seu apelido como marca de produtos. Assim, e com a televisão divulgando todos os domingos à tarde a imagem, a música e os produtos ligados a esses ídolos, em pouco tempo uma parcela considerável da juventude brasileira (especialmente de São Paulo e do Rio de Janeiro) estava uniformizada com roupas, sapatos e cintos Calhambeque, Tremendão e Ternurinha. (CALDAS, 2010, p.68)

Para Caldas (2010, p.68), esse marketing em torno dos astros da Jovem

Guarda foi “a mais bem-sucedida investida da indústria têxtil, de calçados e de

produtos supérfluos jamais vista em nosso país”. Outra vitrine eram as telas de

cinema. Ainda na década de 50, Roberto e Erasmo Carlos, entre outros,

assessorados por Carlos Imperial, foram figurantes de filmes como “Minha sogra é

Page 66: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

66

da polícia” (1958), onde cantaram e dançaram rock’n’roll, mas foi no período Jovem

Guarda que o cinema no embalo do novo gênero realmente teve seu auge.

Depois da repercussão que teve o filme colorido Rio, Verão e Amor, numa época em que os Beatles ganhavam o Festival de Cinema do Rio de Janeiro de 1966 com o longa-metragem Help, anunciou-se que Wanderléa passaria o carnaval em Barra de Guaratiba, descansando e também estudando o roteiro de um filme que faria com Jerry Adriani e Cauby Peixoto. Por outro lado, Wanderley Cardoso e Rosemary eram convidados pelo diretor Mozael Silva para rodar Abraça-me Forte em Nova Friburgo (RJ). Eles fariam a dupla romântica principal, com Wanderley interpretando um galã, sempre rodeado de fãs, que conhece Rosemary em Friburgo e por ela se apaixona, apesar de ter uma noiva (que seria interpretada pela atriz Irma Alvarez). (FRÓES, 2000, p. 86)

Os apresentadores do programa Jovem Guarda demoraram a entrar na onda

do cinema e um dos principais motivos para isso foi a agenda de shows de Roberto

Carlos. O diretor Luis Sérgio Person convidou o trio para estrelar “SSS contra a

Jovem Guarda”, porém depois de muitos adiamentos de gravações por parte de

Roberto Carlos, o projeto acabou sendo cancelado. A história do filme era simples,

focada no entretenimento, apenas mais um produto da Jovem Guarda.

Vivendo seus próprios papéis, Roberto, Wanderléa e Erasmo enfrentariam bandidos carecas e conservadores, anti-iê iê iê e que pretendiam seqüestrar Roberto para, por meio de uma operação em sua garganta, impedi-lo de continuar cantando. Segundo o roteiro original, Roberto chegaria a ser pego, mas Erasmo e sua noiva Wanderléa o salvariam no fim. (FRÓES, 2000, p. 101).

O primeiro filme de Roberto Carlos só foi lançado no início de 1968, ano em

que o programa deu seus últimos suspiros e no qual o Brasa deixou o comando da

atração. “Roberto Carlos em ritmo de aventura” não teve a participação de Erasmo e

Wanderléa, sendo uma das razões a briga entre Roberto e Erasmo que interrompeu

a amizade dos dois, mesmo que em frente às câmeras isso não fosse demonstrado.

Boa parte da trilha sonora do filme foi composta pelas músicas do álbum homônimo,

lançado no fim de 1967, e que continha sucessos como “Eu sou terrível”, “Quando” e

“Como é grande o meu amor por você”. Esse foi primeiro dos três filmes de Roberto

Carlos, todos dirigidos por Roberto Farias.

Enquanto isso, acontecia também um concurso para se achar uma dublê para Wanderléa nas cenas aquáticas em Juventude e Ternura, seu filme pela JB Produções Cinematográficas. Haveria uma cena com um caminhão caindo no mar em alta velocidade, com Wanderléa saindo da cabine em

Page 67: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

67

situação perigosa. O filme começaria a ser rodado em julho, com cenas em Salvador, Rio, São Paulo e Recife ̶ onde o cantor Bobby de [sic] Carlo participaria de algumas cenas. (FRÓES, 2000, p. 174)

No fim de 1967, as críticas à Jovem Guarda aumentavam, uma consequência

do desgaste da fórmula. Enquanto estudantes e intelectuais se mobilizavam para

criticar a ditadura militar, Roberto e sua turma continuavam a falar de romance e

carros. Além disso, Caetano Veloso e Gilberto Gil tinham revolucionado a música

brasileira feita até então ao apresentarem “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”,

respectivamente, no III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record. Ali havia

começado o Tropicália, um passo à frente da MPB e do rock nacional feitos até

então. Sentindo o aumento da pressão no programa, Roberto Carlos optou por sair

do comando da atração a fim de preservar sua imagem. A notícia foi dada às

vésperas de sua participação no Festival de San Remo 1968, o qual venceu

interpretando “Canzone per te” de Sergio Endrigo, e resultou no cancelamento da

edição carioca do programa. A apresentação de Jovem Guarda, voltando a ser

produzido apenas em São Paulo, então, ficou a cargo de Erasmo Carlos e

Wanderléa.

A saída de Roberto do Jovem Guarda foi resultado de um amadurecimento ̶ de uma transformação em sua imagem. A Record queria que ele passasse a apresentar um programa em horário nobre, e a idéia inicial era a de que seria O Rei e Eu ̶ em dupla com Chico Anísio [sic]. Roberto só daria sua resposta final sobre o projeto depois de San Remo. Algumas semanas depois, o diretor geral da Record, Paulinho Machado anunciou que O Rei e Eu não iria mais ao ar. Chico Anísio [sic] ganharia um programa exclusivo a partir de fevereiro, enquanto Roberto estudaria outro tipo de show quando voltasse da Europa. (FRÓES, 2000, p. 191)

Em pouco tempo, Roberto Carlos estreou três programas distintos: “Roberto

Carlos à noite”, “Opus 7” e “Roberto Carlos-68”. Enquanto isso, Erasmo e Wanderléa

tentavam manter o programa Jovem Guarda, porém, sem perspectiva de sucesso,

passaram a analisar e aceitar a ideia do fim da atração. Ao mesmo tempo, a dupla

estreou “Tremendão e Ternurinha”, uma série onde usavam roupas de cowboy e, a

cada episódio, encaravam diferentes aventuras. Porém, as energias de Erasmo e

Wanderléa não foram suficientes para manter os dois programas no ar. A produção

de Jovem Guarda chegou a cogitar tornar o programa mensal, mas a decisão final

acertou a eliminação da atração da grade de programação. Em junho de 1968 foi

anunciado o fim do programa que revolucionou a juventude da década de 60. Quatro

Page 68: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

68

meses depois, Erasmo e Wanderléa eram informados do fim de “Tremendão e

Ternurinha” antes mesmo de completar um ano no ar.

4.2.1 As entrelinhas das canções

Como em qualquer movimento musical, o principal alvo de análise e crítica da

Jovem Guarda são as músicas, especialmente suas letras. Porém, antes de nos

focarmos nas palavras cantadas (ou não), é importante ressaltar a produção das

gravações. Até a chegada do rock no Brasil, no fim da década de 50, as gravadoras

locais não estavam preparadas para colocar guitarras em suas produções. Nem

preparadas e nem ansiosas para fazê-lo, dando o braço a torcer apenas para

agradar o público e, obviamente, poder lucrar com a nova moda. Coube, então, aos

jovens artistas fazer experimentos para descobrir a melhor forma de registrar o som

do rock. As bandas clássicas que acompanhavam cantores de MPB foram

dispensadas, tal como maestros e produtores experientes. Assim como foram

autodidatas em aprender a tocar guitarra, os cantores de rock da década de 60

aprenderam a produzir sua própria música, descobrindo sozinhos as técnicas e

instrumentos que mais somavam às letras sobre namoros e carrões.

As temáticas das canções da Jovem Guarda não tiveram muita variação ao

longo dos anos: carros, amor, praia, prazer pelo perigo e coisas do gênero. Com

origem humilde e sem grande formação escolar, a maior parte da turma da Jovem

Guarda sonhava com o sucesso, o qual, para eles, significava a admiração das

garotas, um carro veloz, um grande amor e uma vida confortável. Sendo assim, se

entende a ausência de expressões políticas, algo exigido pela sociedade culta da

época, a qual lutava contra a ditadura militar. Porém, ao olharmos o contexto

mundial, percebemos que a Jovem Guarda seguiu os moldes de seus grandes

ídolos de então, como Elvis e The Beatles, os quais não se pronunciavam contra

guerras e monarquias, que só vieram a ser questionadas pelos hippies e punks no

fim da década de 60 e início dos anos 70, mesmo período em que o Tropicalismo

surgia no Brasil para afirmar que era “proibido proibir”.

Ou seja, ao mesmo tempo em que criava asas numa juventude que se dava o

direito de sonhar e buscar algo que ia além de sua cultura familiar, em geral ligada à

lógica de ‘trabalhar para sobreviver’; o movimento da Jovem Guarda pagou por não

colocar a política em seu campo de visão. Especialmente quando se vive numa

Page 69: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

69

ditadura militar, qualquer personalidade que atraia um grande público tem uma força

invejável no que se refere conscientizar os cidadãos.

É bastante provável que o consagrado sociólogo Max Weber e seus seguidores considerassem a Jovem Guarda a favor da situação, pois, para ele, o homem apolítico no fundo endossa o regime vigente. Assim, a aparente indiferença política se reverteria em benefício da ideologia dominante no momento justamente porque o apolítico não é dado a questionar, não reivindica e nada faz. Nesse sentido, ele passa a ideia de que está satisfeito e deseja manter a situação tal e qual. Em outros termos, ele estaria mantendo o status quo. (CALDAS, 2010, 65-6)

Caldas (2010, p. 67) ressalta que “a Jovem Guarda nada disse ou, se disse,

fez muito pouco”, porém reconhece que a delicada fase política do país fez com que

sofresse um preconceito extremo (aliás, o movimento ainda é recriminado por visões

igualmente fechadas) por parte dos militantes de esquerda.

O país vivia uma espécie de “doença persecutória” das ideologias. Somente a arte politicamente engajada e de denúncia ao autoritarismo dos militares era respeitada e sancionada de boa qualidade. Até aí é compreensível, mas o que não se pode concordar é com o desprezo e, até certo ponto, desrespeito por trabalhos que não tivessem mensagens esquerdizantes. Este sim é um dos grandes males e vícios que em certos momentos ainda emergem na crítica cultural em nosso país. (CALDAS, 2010, p. 67)

Sendo assim, a principal crítica do autor ao movimento é referente “a

comercialização consciente da popularidade e do prestígio” (CALDAS, 2010, p. 65),

a qual resultou, como citado antes, em produtos dos mais variados formatos que

levavam o nome dos ídolos da Jovem Guarda, promovendo assim um consumismo

exacerbado e desnecessário entre os jovens. Se levarmos em conta que a maior

parte do público era formada por adolescentes de famílias com baixa renda familiar,

sim, essa explosão de marketing foi realmente exagerada. Porém, talvez aqui caiba

o levantamento de outra perspectiva: os próprios astros da Jovem Guarda estavam

deslumbrados demais para criar um olhar crítico sobre tudo que acontecia ao seu

redor, se deixando levar, assim, pela massagem no ego que era ter produtos

levando seu nome. Como qualquer análise, essas perspectivas são apenas

hipóteses, as quais pouca probabilidade têm de serem refutadas ou confirmadas

depois de tanto tempo e, especialmente, de tantas revoluções culturais.

Aliás, para uma melhor análise das letras da Jovem Guarda é importante

resgatar como era a cultura familiar e a sociedade na década de 50, época em que

Page 70: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

70

os primeiros acordes de rock foram tocados em solo brasileiro e balançaram as

cabeças dos jovens da época. A figura feminina talvez seja a que mais se destaque

em contraponto com os dias atuais. Então, uma ‘boa moça de família’ usava roupas

bem comportadas, ou seja, saia para baixo do joelho e nada de decote. Sexo (ou

mesmo um abraço mais apertado) apenas depois do casamento, o qual dependia

mais da aprovação da família do que do interesse da noiva. De modo geral, o

importante era ser uma boa dona de casa, para fazer comida e cuidar dos filhos, fora

isso não havia muitas possibilidades para o futuro de uma mulher. Nesse contexto,

Wanderléa revolucionou por, através de suas roupas, mostrar a sensualidade do

corpo da mulher, mesmo que suas canções mostrassem a inocência apaixonada

tradicional nas moças.

[...] era mais pela postura no palco do que pelas canções que cantava que Wanderléa retomava, por assim dizer, a história da recatada menina das canções de Celly Campello e seus singelos sapatinhos cor-de-rosa. Transformada numa garota sensual e desenvolta, o salto da puberdade traz consigo os valores de uma moral arcaica, o que não impede que, no início dos anos 60, a patética menina de Pare o Casamento possa gingar o corpo, afirmar sua sexualidade e fazer disso uma forma de rebeldia às imposições repressivas da sociedade brasileira. (MEDEIROS, 1984, p. 40-1)

Ou seja, mesmo que orgulhosa de seu corpo, uma moça não seria menos

respeitável. É uma conclusão ridiculamente óbvia nos dias de hoje, porém para a

época foi realmente uma revolução. Não apenas para as mulheres, mas para a

sociedade em geral, as alusões sexuais tiveram grande impacto. Composições de

Roberto e Erasmo Carlos que mostravam o prazer despertado por um beijo, como

“Splish splash” e “É proibido fumar”, davam liberdade demais para os jovens no

contexto nacional, por isso muitos pais ficaram preocupados com a influência que o

tal de rock’n’roll trazia para seus filhos - preocupação, aliás, compartilhada por pais

de todo mundo quando tiveram o primeiro contato com o novo ritmo.

[...] não se trata de um discurso sobre a sexualidade contida, à qual se opusesse uma-do-tipo-liberada, mas sim de uma enunciação desejante, mais-que-direta, das liberdades possíveis de acontecerem no ato, no aqui e no agora da canção. Daí que a enunciação dos desejos do corpo, movido pelo instinto sexual, tenha constituído a forma de grito mais recorrente nas canções da Jovem Guarda. E nelas o beijo passa a constituir o signo nuclear, já que, além de conter a promessa do encontro, o beijo suscita a vontade de livremente poder nomeá-lo ̶ em oposição à rigidez dos comportamentos moralizantes que reinavam na época. (MEDEIROS, 1984, p. 35)

Page 71: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

71

Talvez a melhor forma de perceber as discussões em torno das canções da

Jovem Guarda seja pegar as análises feitas sobre sua música mais representativa:

“Quero que vá tudo pro inferno”. Lançada em dezembro de 1965 e escolhida como

faixa de abertura do álbum “Jovem Guarda” de Roberto Carlos, a canção mexeu

com a sociedade de então e fez um sucesso enorme entre os jovens, o que

preocupou inclusive a Igreja Católica (segundo o biógrafo de Roberto Carlos, “Eu te

darei o céu” foi gravada justamente para melhorar a imagem do cantor com os

católicos). Para melhor compreensão das análises feitas, se faz necessário a

exposição da letra aqui:

Quero que vá tudo pro inferno

(Roberto e Erasmo Carlos)

De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar

Se você não vem e eu estou a lhe esperar

Só tenho você no meu pensamento

E a sua ausência é todo o meu tormento

Quero que você me aqueça nesse inverno

E que tudo mais vá pro inferno

De que vale a minha boa vida de playboy

Se entro no meu carro e a solidão me dói

Onde quer que eu ande tudo é tão triste

Não me interessa o que de mais existe

Quero que você me aqueça nesse inverno

E que tudo mais vá pro inferno

Não suporto mais você longe de mim

Quero até morrer do que viver assim

Só quero que você me aqueça nesse inverno

E que tudo mais vá pro inferno

E que tudo mais vá pro inferno

Page 72: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

72

Para Caldas, a música sintetiza a falta de desinteresse político e social do

movimento Jovem Guarda e, mais que isso, a banalidade de suas letras.

Se o tipo de vestimenta e o uso de cabelos longos podiam representar rebeldia às normas sociais vigentes ou desejo de transformações, o conteúdo das canções o desmentia. A música Quero que Vá Tudo pro Inferno, a mais importante na ascensão da carreira de Roberto Carlos, resume, de forma extremamente feliz, as tendências e perspectivas dos jovens e adultos adeptos do movimento Jovem Guarda: individualismo, desinteresse pelos acontecimentos da época, certo comodismo e até um pouco de apatia. A expressão “e que tudo mais vá pro inferno” caracteriza muito bem (ainda que os autores não tivessem essa intenção) o desinteresse por tudo o que estava ocorrendo na sociedade brasileira. (CALDAS, 2010, p. 63-4)

Já para Medeiros, a música contradiz toda a lógica das canções tradicionais

da Jovem Guarda, as quais, em maioria, estavam preocupadas em retratar o ato de

conquistar uma garota e garantir um status através de posses, em geral carros

velozes.

Em Quero que Vá Tudo pro Inferno somos, ao contrário, surpreendidos por declarações fulminantes, nas quais a dimensão da afetividade é percebida e assumida pelo sujeito como confissão de dependência. Note o leitor como os mesmos elementos do universo urbanizado comparecem, desta vez em estado de reclusão, e emanados de uma atmosfera de interioridade que já não valoriza como antes os objetos de consumo. Os símbolos aí aplicados, como o carro, a imagem auto-suficiente do play-boy, e a até romântica e “a-histórica” natureza deixam de pertencer ao sujeito. As mercadorias estão frias como a espera. Exteriorizados, já que desta vez inócuos, inúteis, desprovidos de valor-em-si, estes objetos (mercadoria) são abandonados pelo sentimento de solidão. Expostas à inutilidade, as mercadorias revelam aí sua face oca e sem brilho. (MEDEIROS, 1984, p. 62-3)

As diferentes perspectivas da mesma música exemplificam as variadas

opiniões que ainda hoje se confrontam quando o tema é Jovem Guarda. Como em

qualquer outro assunto, é impossível chegar a uma verdade absoluta, o mais

próximo que chegamos disso, porém, é reconhecermos o lado positivo e negativo da

questão. A Jovem Guarda merece, sim, receber críticas, porém não é plausível

deixarmos de lado as revoluções positivas que o movimento causou.

Em seu trabalho de pesquisa sobre Roberto Carlos, Paulo César de Araújo

entrevistou diferentes personalidades. Entre os fatos destacados pelo biógrafo, está

o lançamento de “Quero que vá tudo pro inferno” e, para tentar reconstruir a

Page 73: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

73

atmosfera do período, ele traz depoimentos de diferentes músicos, como Fafá de

Belém, Djavan e Nana Caymmi. A melhor perspectiva talvez seja a de Zé Ramalho

que, com base em suas memórias, mostra todo o sentimento envolvido nos

primórdios do rock’n’roll brasileiro.

Na época, o cantor e compositor Zé Ramalho tinha quinze anos e morava em Campina Grande, cidade do interior da Paraíba, que também não ficou imune ao sucesso de Quero que vá tudo pro inferno. “A música tocava alucinadamente na rádio e provocava uma emoção coletiva, pois todos paravam tudo para ouvir. Adorava aqueles arpejos que o cara faz na guitarra, simples, mas uma aula de base, e também o jeito agressivo de Roberto cantar e, claro, a mensagem de rebeldia;” Para Zé Ramalho, a música se confundia com o cenário de repreensão pós-golpe militar que na época ele ainda não compreendia direito. “Eu me lembro de ver a polícia correndo atrás de estudantes na rua, carros revirados, ônibus incendiados e Quero que vá tudo pro inferno tocando no rádio. Era um cenário louco, um apocalipse danado. E eu ali, inocente, puro e besta, como diz Raul Seixas, vendo estas coisas acontecerem e cheio de sonhos na cabeça.” (ARAÚJO, 2006, p. 139)

Muito além das análises sociais, o verdadeiro valor da música está na relação

que esta tem com as pessoas. A cada indivíduo ela tem um valor único: marca um

momento, um sentimento. Quando falamos em movimento musical, sua importância

maior está ligada diretamente ao poder de unir pessoas, independentemente de

suas origens e cultura familiar. A Jovem Guarda conseguiu fazer isso. Adolescentes

de diferentes regiões do país, classes sociais e percepções de mundo tiveram a

mesma trilha sonora e compartilharam do sentimento de inquietude presente nos

acordes do rock’n’roll. Além disso, influenciou gerações e garantiu discussões sobre

si, sejam elas positivas ou negativas, que mostram que seu valor está protegido pela

história cultural brasileira, já que, de alguma forma, revolucionou o pensamento de

então.

Page 74: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

74

5 ENTRELINHAS DA JOVEM GUARDA: ANÁLISE DE BIOGRAFIAS

“Jornalismo e literatura são como irmãos gêmeos que nasceram muito diferentes e que hoje são mais parecidos do que nunca”

Zuenir Ventura

Sendo a biografia o mais popular gênero de livro-reportagem, o qual é um

produto que serve de alternativa para os jornalistas que buscam caminhos fora dos

grandes veículos de comunicação e assessoria de imprensa, faz-se necessário

estudar mais amplamente sua estrutura. A popularidade do livro biográfico tem dois

lados: ao mesmo tempo em que é positiva por atrair diferentes leitores para o gênero

de não-ficção, ela pode ser prejudicial no que se refere à qualidade, já que acaba

por se tornar um produto mais comercial do que educativo e/ou crítico em relação a

uma personalidade. Ou seja, por vezes o livro é uma opção vista como uma nova

vitrine para o nome de um artista e, nessa lógica, pouco se valoriza a qualidade. A

partir disso, esta análise tem por meta desmembrar a estrutura de três biografias

para perceber a profundidade de cada uma e o compromisso com o registro mais

realista possível dos fatos, reconhecendo a relação entre biógrafo e biografado, além

da pesquisa e contextualização histórica, que são responsáveis por localizar o leitor

da melhor forma possível.

Os livros escolhidos tiveram como referência o movimento Jovem Guarda, o

qual celebrou em 2015 meio século da estreia do programa televisivo que lhe deu

nome. Nos últimos anos diversos livros de artistas do período foram lançados, o que

pode ser interpretado como uma necessidade de registrar as experiências dos

precursores do rock no Brasil. As biografias escolhidas foram: “Roberto Carlos em

detalhes” (2006), de Paulo Cesar de Araújo; “Dez, nota dez: Eu sou Carlos Imperial”

(publicado pela primeira vez em 2008, mas este trabalho analisará a segunda

edição, de 2015), de Denilson Monteiro; e “Ronnie Von: O príncipe que podia ser rei”

(2014), de Antonio Guerreiro e Luiz Cesar Pimentel. As três personalidades foram

essenciais para o movimento Jovem Guarda, mesmo que não tenham tido relação

direta com o programa. Consequentemente, em determinados momentos as

histórias se cruzam, abrindo outra possibilidade a ser analisada: como cada biógrafo

apresenta as outras duas personagens no contexto de seu biografado? Portanto,

após a análise individual de cada livro, será feita uma leitura comparada com o

Page 75: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

75

objetivo de encontrar os pontos comuns e perceber a diferença de abordagem de

cada biógrafo. Porém, antes de tudo, é necessário apresentar de forma direta cada

personagem biografada e sua relação com o movimento Jovem Guarda.

Roberto Carlos Braga (19/04/1941) dispensa apresentações. Ainda hoje

conhecido pela alcunha de Rei, ele foi o grande líder do programa Jovem Guarda da

TV Record, cuja apresentação dividia com Erasmo Carlos e Wanderléa. Na época

era conhecido por ‘Brasa’ e entre seus sucessos do período estão “Quero que vá

tudo pro inferno”, “É papo firme” e “Eu te darei o céu”. Antes de explodir no comando

do programa, chamou atenção do público jovem com “O calhambeque”, “Splish

Splash” e “Parei na contramão”, todas compostas em parceria com Erasmo Carlos.

Roberto conseguiu sua primeira gravação em estúdio graças ao esforço de Carlos

Imperial, que reconheceu o talento do conterrâneo de Cachoeiro de Itapemirim.

Carlos Eduardo Corte Imperial (24/11/1935 - 04/11/1992) foi o grande

organizador e incentivador da turma carioca do rock no fim da década de 50 e início

de 60. Entre outras atividades, foi ator, diretor de cinema e vereador, além de

compositor e produtor musical. Um dos destaques de sua trajetória é o fato do

primeiro álbum de Elis Regina ter sido uma produção sua (uma tentativa fracassada

de torná-la um broto do rock). Além disso, descobriu Wilson Simonal (com o qual

criou o movimento da Pilantragem) e fez com que Renato Barros reconstruísse a

banda Renato e seus Blue Caps, a qual incentivou a gravar Beatles; entre tantas

outras coisas. Como compositor um dos seus maiores sucessos é “A praça”, canção

que fez questão que fosse gravada por Ronnie Von, o único com uma popularidade

comparável à de seu antigo pupilo, Roberto Carlos.

Ronaldo Nogueira (17/07/1944) adotou o pseudônimo de Ronnie Von e

recebeu o título de Príncipe no auge de sua carreira, ou seja, no fim da década de

60. Teve seu próprio programa na TV Record, “O pequeno mundo de Ronnie Von”, e

seu primeiro grande sucesso foi uma versão de “Girl” (The Beatles), intitulada “Meu

bem”, porém sua canção mais lembrada é “A praça”, composição de Imperial. No fim

da década de 70 foi vítima de uma doença que paralisou seu corpo por anos e exigiu

um período igualmente longo para recuperação. Na década de 90 fez sucesso com o

livro (que se tornou programa) “Mãe de gravata”. Desde 2004 apresenta o programa

“Todo seu” na TV Gazeta.

Muito além de identificar o biografado no personagem criado pelo biógrafo,

esta análise se norteia pela seguinte questão: Como a motivação e a forma de

Page 76: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

76

pesquisa dos biógrafos influenciam na construção das personalidades de Carlos

Imperial, Roberto Carlos e Ronnie Von nos livros-reportagem? Ou seja, a proposta é

identificar a profundidade da influência do trabalho de pesquisa para construir a

biografia, desde o surgimento da ideia até a construção textual. Essa perspectiva

tem por base a estrutura da reportagem jornalística vista anteriormente, a qual se

classifica por três momentos principais: a elaboração da pauta, a apuração e a

escrita final. Vale ressaltar que, apesar de nem todo biógrafo ser jornalista, a

proposta biográfica casa com o trabalho jornalístico, por isso é válida a comparação

estrutural.

Tendo como objetivo principal perceber o papel do biógrafo em (re)construir a

personalidade do biografado ao escrever um livro-reportagem, as hipóteses

levantadas são as seguintes:

a) A relação do biógrafo com o biografado é essencial para o resultado final do livro-

reportagem. Ou seja, a curiosidade (ou falta dela) do biógrafo em descobrir os

detalhes pessoais da vida do biografado influencia na pesquisa e,

consequentemente, no resultado final do livro-reportagem.

b) As formas de pesquisas usadas afetam a profundidade final de cada livro-

reportagem. Leia-se aqui a questão: a variedade de fontes usadas pelo biógrafo

afeta o trabalho de resgate da personalidade biografada e, em consequência, no

personagem apresentado, por fim, ao leitor?

c) O apoio do biografado e/ou da família influi na pesquisa e, consequentemente, na

construção do personagem do livro-reportagem. Nesse ponto se pretende abordar a

principal discussão em torno da biografia: há diferenças de qualidade por trás dos

termos ‘autorizada’ e ‘não-autorizada’, tão usados nesse gênero literário?

d) O estilo de escrita e as contextualizações usadas por cada autor baseiam a

construção do biografado por parte do leitor. Por fim questiona-se a qualidade da

costura feita pelo biógrafo com as informações que descobriu em sua pesquisa. A

contextualização histórica, por exemplo, se faz importante? Qual é o tom transmitido

pelas palavras escolhidas pelo biógrafo? Tais pontos interferem na percepção do

leitor do personagem biografado?

Page 77: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

77

Para que essas hipóteses sejam confirmadas ou refutadas, esta monografia

usará a análise de conteúdo temática qualitativa, sendo a Jovem Guarda o período,

ou seja, o tema que liga os três biografados, enquanto a conferência de qualidade

será feita através da desconstrução do trabalho dos biógrafos, a qual irá ser

identificada na percepção da estrutura jornalística encontrada neste gênero literário.

Segundo Fonseca Junior (DUARTE; BARROS, 2014, p. 280), a análise de

conteúdo “se refere a um método das ciências humanas e sociais destinado à

investigação de fenômenos simbólicos por meio de várias técnicas de pesquisa”.

Para Polit e Hungler (1991, apud RODRIGUES; LEOPARDI, 1999, p. 16), esta

metodologia é comumente usada para comparar características específicas de

mensagens e analisar seus papéis na comunicação, o que é justamente o objetivo

por trás da análise de biografias desta monografia.

Quanto à análise temática, Rodrigues e Leopardi (1999, p. 65) explicam que

ela “consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação

cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico

visado”. Em relação à análise qualitativa, as autoras destacam que ela “aceita

quantificações, entretanto sua característica básica está no fato de que a inferência

é fundada não sobre a frequência do aparecimento de elementos na mensagem,

mas na presença do índice (tema, palavra, personagem, etc.)” (RODRIGUES;

LEOPARDI, 1999, p. 37). No caso presente, uma perspectiva numérica na análise é

praticamente impossível, já que ela tem por objeto central a escrita, a qual é, em si,

uma atividade que se destaca muito mais por seu perfil qualitativo do que

quantitativo.

A análise de conteúdo está dividida em três etapas: a pré-análise, a

exploração do material e o tratamento dos resultados obtidos e interpretações.

Segundo Rodrigues e Leopardi (1999, p. 65), a primeira parte consiste na seleção do

material a ser analisado, juntamente com a elaboração de hipóteses e objetivos.

Essa etapa foi realizada na construção do projeto, o que antecedeu a escrita da

presente monografia e o qual se encontra em anexo. Então foram escolhidos os

livros e os pontos a serem trabalhados em cada um.

Para Fonseca Júnior (2014, p. 290) o segundo momento “envolve a análise

propriamente dita, envolvendo operações de codificação em função de regras

previamente formuladas”. Rodrigues e Leopardi (1999, p. 66) apresentam a

Page 78: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

78

exploração do material como o momento em que são estabelecidas regras para a

análise, assim como a “classificação e agregação dos dados, selecionando

categorias teóricas ou empíricas que comandarão a especificação dos temas”.

Nesta monografia, esta etapa será apresentada através do reconhecimento

da estrutura de cada biografia, decompondo sua construção individualmente e

percebendo a relação entre biógrafo e biografado. Apenas após a compreensão do

formato de cada livro-reportagem será possível fazer o tratamento dos resultados e

interpretações que finaliza a análise.

A pós-análise vai abranger a comparação das estruturas dos três livros-

reportagem, identificando suas semelhanças e diferenças, assim como as

consequências das formas de trabalho de cada biógrafo, tanto no que se refere à

pesquisa quanto à construção do texto em si. Para auxiliar essa percepção, serão

identificadas as relações dos biografados e a forma que elas foram abordadas por

cada autor. É neste momento que serão feitas as inferências que caracterizam essa

metodologia, pois, segundo Fonseca Júnior (2014, p. 288), “a tarefa de toda análise

de conteúdo consiste em relacionar os dados obtidos com alguns aspectos do seu

contexto”.

Para Bardin (1988, apud FONSECA JÚNIOR, 2014, p. 299), as inferências

são “as variáveis psicológicas do indivíduo emissor, variáveis sociológicas e

culturais, variáveis relativas à situação da comunicação ou do contexto de produção

da mensagem”. Ou seja, neste momento final da análise será ressaltada a qualidade

de cada livro-reportagem, sendo percebidos mais facilmente seus pontos fortes e

fracos em comparação aos outros dois. Desse modo, as inferências acabam por ser

o resultado real da análise e uma possível resposta à questão que norteia o trabalho.

5.1 PERSONAGENS: ANÁLISE INDIVIDUAL DAS BIOGRAFIAS

Como visto no capítulo 2 desta monografia, a biografia, tal como qualquer

outro livro-reportagem, segue uma estrutura jornalística. Esta inicia com a

descoberta e/ou elaboração da pauta, quando é feito um apanhado geral do tema no

intuito de estabelecer as questões a serem abordadas no passo seguinte, a

apuração. No momento inicial pressupõe-se a elaboração de um roteiro de pesquisa.

No caso da biografia, este primeiro passo também abrange um detalhe importante:

se o trabalho é motivado pela curiosidade do biógrafo ou se é decorrência de uma

Page 79: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

79

encomenda do biografado ou de sua família. Nesta análise dificilmente será

perceptível esse primeiro passo, porém a identificação da profundidade de apuração

pode revelar, em suas entrelinhas, algumas características desta situação inicial.

A apuração abrange as fontes usadas: documentos (oficiais ou não), clipagem

midiática, entrevista, entre outros. O desenvolvimento e a profundidade desta etapa

são mais perceptíveis que na anterior, já que influi nas informações apresentadas na

biografia. Além disso, alguns autores apresentam, ao final do livro-reportagem, a

lista das fontes usadas, de revistas e jornais a entrevistados, porém este não é um

item obrigatório no resultado final da biografia. Muitas vezes a carência de

informações pode ter maior destaque do que um trabalho que faça e responda

perguntas, pois demonstra a limitação do biógrafo no segundo momento da

construção biográfica.

Já o momento final, a escrita, influi na fluência do texto, portando é também

facilmente percebida numa análise atenta. Aqui se destacam técnicas de escrita

usadas pelo autor, algumas das quais heranças do new journalism visto no capítulo

2. As variações durante a narrativa, como a mudança de terceira para primeira

pessoa, auxiliam na dinamização do texto e também podem influir na compreensão

dos fatos por parte do leitor. Do mesmo modo, a falta de variação pode tornar a

leitura exaustiva. Nessa perspectiva, influencia também a ordem dos fatos, os quais

não precisam ser obrigatoriamente cronológicos, porém uma má construção factual

pode prejudicar o entendimento do leitor.

Sendo assim, a análise individual busca identificar a apuração e a estrutura de

construção feitas pelos autores para, a partir de então, tentar identificar a origem e a

construção inicial da pauta que resultou na biografia. Ao identificarmos o que

provocou o contato do biógrafo com a história de seu biografado, é possível que

consigamos identificar a relação entre os dois durante o processo, incluindo os

sentimentos envolvidos.

5.1.1 “Roberto Carlos em detalhes”, de Paulo Cesar de Araújo

Ao contrário das outras duas biografias analisadas, Roberto Carlos em

detalhes apresenta logo no início a relação entre biógrafo e biografado e,

consequentemente, a motivação do primeiro para iniciar a pesquisa que resultou no

livro. Na introdução chamada de “Uma história bonita... e triste”, Paulo Cesar de

Page 80: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

80

Araújo relembra dois momentos importantes de sua vida relacionados a Roberto

Carlos: um show do Rei em Vitória da Conquista, cidade natal do biógrafo, em 1972,

ao qual este não pode comparecer por falta de dinheiro para o ingresso; e uma

entrevista na casa de Roberto Carlos, no Rio de Janeiro em 1996, em que foi

apenas como acompanhante do jornalista que tinha horário marcado com o cantor.

Ou seja, antes mesmo de se ler a biografia já é possível perceber que ela é

resultado do trabalho de um fã que, de algum modo, quer se tornar próximo do ídolo.

A conversa iniciou de forma descontraída na ampla sala de visitas de seu apartamento decorado em tons azuis e brancos. Bom anfitrião, ele perguntou se queríamos beber alguma coisa, sugerindo água, café ou suco. Pedimos apenas água, que nos foi servida por uma empregada devidamente uniformizada de azul e branco. Durante todo o tempo que ali permaneci não pude evitar a lembrança daquele dia do show de Roberto em Vitória da Conquista. Agora, ali estava eu, na sala de sua casa, conversando com ele. É verdade que tinha entrado sem ser convidado. Mas só poderia mesmo ter sido daquela maneira: sem convite, sem ingresso, quase pela porta lateral. Como seria naquele show em Vitória da Conquista. Depois de outra amenidade, Lula Branco Martins deu início à entrevista, antes colocando um pequeno gravador na ponta da mesa de centro, para não intimidar muito Roberto, que não se sente à vontade na presença do gravador. Roberto permaneceu a maior parte do tempo encostado no braço direito do sofá. Diante da primeira pergunta, ele sorri e hesita. Mas depois percebi que sempre sorri e hesita quando alguém lhe faz uma pergunta. E responde lentamente, em seguida, procurando as palavras como se estivesse pensando no assunto pela primeira vez. Já diante de perguntas mais embaraçosas, Roberto pára, abaixa a cabeça, esfrega as mãos, olha para o alto, fica algum tempo em silêncio, e só então responde. Outras vezes, ele pára e olha fixamente algum ponto no espaço perdido antes de responder ̶ sempre tomando um cuidado extremo para evitar mal-entendidos. Uma das últimas perguntas foi sobre a relação de Roberto com o palco, Lula então aproveitou o tema e disse: “Aliás, Roberto, o Paulo tem uma história antiga com você em um show em Vitória da Conquista”. Eu relatei tudo, passo a passo até o desfecho final. Roberto riu em algumas passagens, mas depois contraiu seu semblante e com aqueles olhos fundos cravados em mim, comentou: “Pôxa, bicho, que história bonita... bonita e triste”. Ao final, ele e Ivone Kassu nos acompanharam até a porta do elevador. Então a assessora abriu a sua agenda, nos entregou

Page 81: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

81

dois convites e falou pra mim sorrindo: “Agora você não vai mais ficar do lado de fora de um show do Roberto Carlos”. Este livro é resultado de uma história de vida com Roberto Carlos, mais quinze anos de pesquisas em jornais, revistas, arquivos, além de quase duas centenas de entrevistas exclusivas. (ARAÚJO, 2006, p.15-6)13

A percepção e descrição de detalhes gestuais de Roberto Carlos revelam o

olhar atento de um fã diante do ídolo, além de atestarem que o biógrafo não se

preocupou em dissociar seu trabalho desta relação sentimental próxima, pelo

contrário, o que confirma a primeira hipótese, ou seja, a relação do biógrafo com o

biografado influi no seu trabalho. No final do livro está uma lista de 175

entrevistados, junto às listas de jornais e revistas pesquisados e de livros usados

como referência. O longo período de pesquisa se comprova com a presença de

depoimentos de nomes como Tim Maia e Ronaldo Bôscoli, que haviam falecido anos

antes da publicação do livro.

Apesar de fã reconhecido, Araújo não ignorou as críticas feitas a Roberto

Carlos e as apresenta no livro, porém sempre de maneira amena. A ausência de

posicionamento político, por exemplo, é tratada como um direito pessoal de Roberto

Carlos, ou seja, colocando o lado humano e individual em frente ao líder de públicos

imensos. Além disso, o biógrafo faz uma pequena análise histórica e sociológica

para, se não isentar Roberto Carlos, ao menos comprovar que ele não foi o único

nome público a abrir mão de um discurso político.

Ocorre que, aos olhos da geração de 68, Roberto Carlos sempre foi um conservador, representando aquilo que o filósofo Bertrand Russell chamava de “guias perdidos”, ou seja, líderes que não agridem a sociedade, e rebelam-se romanticamente, sem assumir uma atitude crítica. Nesse sentido, pode-se dizer que até hoje todos os grandes ídolos de massa no Brasil foram guias perdidos. Lêonidas da Silva e Orlando Silva, nos anos 30, Pelé, a partir dos anos 50, Roberto Carlos, a partir dos 60, Emerson Fitipaldi, nos anos 70, Nelson Piquet, Ayrton Senna e Romário nos anos 80, Ronaldo e Ronaldinho a partir dos anos 90. Nenhum deles apresenta uma visão crítica da sociedade. São ídolos que se situam basicamente em dois grupos: o dos bons moços filantrópicos (Roberto Carlos, Pelé, Ayrton Senna,

13 Com o intuito de facilitar a leitura das transcrições das biografias analisadas, optamos por recuá-las quatro centímetros, colocando a fonte em itálico, porém mantendo seu tamanho.

Page 82: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

82

Ronaldinho) e dos bad boys individualistas (Romário, Nelson Piquet, Leônidas da Silva). O Brasil nunca teve, por exemplo, um grande ídolo popular como Maradona, que defende o governo comunista de Cuba, usa tatuagem de Che Guevara e de Fidel Castro; nem como Muhammad Ali, que se posicionou como um líder do movimento negro nos Estados Unidos. Portanto, Roberto Carlos seria mais um exemplo dos nossos ídolos populares. “Eu sou o que sou e acho que tenho o direito de ser assim. Existem aqueles que se propõem a ser líderes, a fazer uma série de coisas, a tomar um monte de atitudes; eu resolvi exatamente tomar um outro tipo de atitude e que talvez conduza a resultados que esses críticos não conseguiram apreender em meu trabalho.”

Roberto Carlos surgiu num tempo de guerra e em que todos tinham de tomar posições claras sobre todos os assuntos: da política à arte, da cibernética à chegada do homem na Lua, de Roberto Campos a Marshall McLuhan. Os cantores de formação universitária como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque tiravam isso de letra. Já os cantores suburbanos, de pouca escolaridade e sem hábito de leitura, o que iam dizer sobre esses temas? Antes da explosão do sucesso com Quero que vá tudo pro inferno, Roberto Carlos era assunto apenas de publicações como Revista do Rádio, e as perguntas que lhe eram feitas giravam em torno de questões triviais, como sua cor preferida, seu tipo de garota. Já a partir de 1965, Roberto Carlos tornou-se assunto nacional e toda a grande mídia cerca o artista com as mais diversas perguntas. Uma das primeiras que lhe fazem nessa nova fase foi: “Qual a sua opinião sobre Roberto Campos?”, na época ministro do planejamento do governo Castelo Branco. Roberto Carlos não tinha opinião porque não sabia quem era Roberto Campos. “Você é favorável à reforma agrária?” Resposta: “Não entendo desse assunto para dar uma opinião”. “Qual sua opinião sobre Charles de Gaulle?” “Tudo que sei é que ele tem nariz grande.” Outra pergunta: “O que acha da política?”. “Um negócio complicado.” “Em quem você já votou até hoje?” “No Erasmo Carlos e na Wanderléa.” “Quais são seus candidatos para as próximas eleições?” “O voto é secreto.” “A que partido você se filiaria?” “PBL, Partido Barra Limpa.” “De que maneira encara a disputa entre capitalismo e comunismo?” “Sou totalmente pela democracia.” Tim Maia afirmou que só foi entender de política anos depois do golpe militar de 1964. E Erasmo Carlos conta: “Ninguém lia jornal na jovem guarda, ninguém se interessava por política. A gente não teve essa formação. Na minha casa nunca se comprou jornal. A gente ligava rádio para ouvir música”. (ARAÚJO, 2006, p. 320-1, grifos do autor)

Page 83: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

83

Ao mesmo tempo em que justifica com falta de conhecimento a opção de

Roberto Carlos em se abster de conversas políticas, o biógrafo tenta atestar que,

apesar de mudo politicamente, o Rei não é cego em relação ao tema. Para isso,

Araújo resgata um fato especialmente simbólico da amizade entre o líder da Jovem

Guarda e o líder da Tropicália.

Contudo, Roberto não era de fato um alienado. Um episódio significativo foi a visita que ele fez aos exilados Gil e Caetano em Londres. Estes moravam numa casa de três pavimentos no bairro de Chelsea, bem ao lado da King’s Road. Roberto Carlos telefonou antes perguntando se podia passar lá para fazer uma visita. Rosa Maria Dias, então mulher de Péricles Cavalcanti, atendeu ao telefone. Ela era fã do cantor e, no início, não acreditou que fosse ele mesmo. “Sou eu, Roberto Carlos, é que estou filmando aqui em Londres e...”, explicou. Emocionada e chorando, Rosa Maria Dias avisou a Caetano Veloso. “Eu não estou acreditando, Roberto Carlos está aqui em Londres e quer nos visitar.” Caetano lembra: “A gente ficou emocionado já de saber que ele viria. Puxa vida, Roberto Carlos vem aqui hoje à noite. Foi uma coisa incrível, porque a gente ali exilado, longe do Brasil e chegar o rei assim, né?”. Antes do encontro em Londres, naquela noite de novembro de 1969, Roberto e Caetano estiveram poucas vezes juntos, e sempre na correria de programas de televisão. Portanto aquela seria a primeira vez que conversariam demoradamente e que se conheceriam melhor. Roberto Carlos chegou acompanhado de Nice e Wanderléa. “Você está gravando? Tem músicas novas?”, perguntou Caetano. “Tenho, vou cantar uma música para você ouvir, você vai gostar.” Ele pediu o violão e tocou As curvas da estrada de Santos. Caetano ficou sentado no chão, ao lado do sofá em que Nice estava com seu longo vestido rodado preto. “Essa canção extraordinária, cantada daquele jeito por Roberto, sozinho ao violão, na situação em que todos nos encontrávamos, foi algo avassalador sobre mim”, lembra Caetano. “Eu chorava tanto e tão sem vergonha que, não tendo um lenço nem disposição de me afastar dali para buscar um, assoei o nariz e enxuguei os olhos na barra do vestido de Nice, enquanto Roberto repetia com ternura: ‘bobo, bobo’.”

Para Caetano Veloso, aquela visita de Roberto Carlos teve um significado muito especial. “Nós sentíamos nele a presença simbólica do Brasil. Como um rei de fato, ele claramente falava e agia em nome do Brasil com mais autoridade e propriedade do que os milicos que nos tinham expulsado, do que a embaixada brasileira em Londres que me considerava persona non grata, e muito mais do que os intelectuais, artistas e jornalistas de esquerda que a princípio não nos entenderam e,

Page 84: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

84

agora, queriam nos mitificar: Roberto era o Brasil profundo.” Num texto publicado na edição do Pasquim que circulou na semana seguinte, Caetano escreveu: “O rei esteve ontem aqui em casa e eu chorei muito. Se você quiser saber quem eu sou posso lhe dizer: entre no meu carro, na estrada de Santos você vai me conhecer...” [...] “Só tive oportunidade de conhecer realmente Caetano em Londres. Ele me emocionou tremendamente e as coisas que disse são coisas que só um cara excepcional pode dizer”, afirma Roberto Carlos, que ficou muito tocado com aquele encontro e com o fato de ver Caetano Veloso fora do Brasil naquela circunstância. O cantor voltou para casa com aquilo na cabeça, e comentava com Erasmo Carlos: “Pôxa, como pode um negócio desses? Caetano é uma pessoa tão legal, tão sensível”. Depois de alguns dias pensando nisso, compôs a canção Debaixo dos caracóis dos seus cabelos: “Um dia na areia branca/ seus pés irão tocar/ e vai molhar seus cabelos/ a água azul do mar/ janelas e portas vão se abrir/ pra ver você chegar/ e ao se sentir em casa/ sorrindo vai chorar...”. Roberto Carlos mostrou a canção para Caetano no Rio, quando este veio ao Brasil para o aniversário de seus pais em janeiro de 1971. Roberto o chamou dizendo que tinha uma coisa para lhe mostrar, sem dizer o que era. Pegou o violão e cantou a ainda inédita Debaixo dos caracóis dos seus cabelos. “Eu adorei”, diz Caetano, “a canção é linda. Fiquei muito emocionado. O fato de Roberto fazer uma canção terna, de carinho para comigo, saudando uma possível volta minha, foi uma coisa que me provocou uma emoção muito grande, e provoca ainda hoje. Daí, quando voltei pra Bahia, me lembrava o tempo todo dessa música. Aquilo ficou em mim. Quando eu pisava na areia da praia de Abaeté, que é mesmo branca, cantava a canção de Roberto Carlos e meus olhos se enchiam d’água.” O curioso é que quando Debaixo dos caracóis dos seus cabelos entrou nas paradas de sucesso, no início de 1972, Caetano Veloso estava voltando definitivamente para o Brasil. “A música estava me chamando, ele foi feita para eu chegar.”

Durante duas décadas a história da canção ficou oculta porque na época do lançamento não se podia propagar que aquilo era uma homenagem a um exilado brasileiro. Fatalmente a música seria proibida. E após o fim da ditadura nem Roberto nem Erasmo revelaram essa história. “Nunca senti necessidade de divulgar isso. Gostei que Caetano soubesse que nessa música falava da vontade minha e de todos os brasileiro que ele estivesse novamente no Brasil”, afirma Roberto Carlos. Coube, portanto, a Caetano Veloso revelar essa história, 21 anos depois. Foi durante a temporada do show Circuladô, no Canecão, em 1992. O artista rememorava fatos relacionados à sua prisão e exílio e, para a surpresa do público, antes de

Page 85: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

85

cantar Debaixo dos caracóis dos seus cabelos confidenciava: “Nós acreditávamos, e eu acredito ainda hoje, que a ditadura militar tenha sido um gesto saído de regiões profundas do ser do Brasil, alguma coisa que dizia muito sobre nosso ser íntimo de brasileiros. Vocês não podem imaginar como minha dor era multiplicada por essa certeza. No entanto, uma vez no exílio chegavam até nós, saídas de regiões não menos profundas do ser do Brasil, vozes que nos tentavam dizer que isso não era tudo. Essa canção, por exemplo, que vou cantar agora, foi composta para mim por essa razão”. (ARAÚJO, 2006, p. 322-3, grifos do autor)

O trecho destacado apresenta também duas características que fazem a

estrutura do livro-reportagem de Paulo Cesar de Araújo ser muito semelhante a uma

matéria de jornal impresso: o uso de falas para corroborar com as afirmações e

contextos apresentados pelo autor, e a apresentação de um trecho de música para

melhor basear o tema sobre o qual se fala, do mesmo modo que uma reportagem de

jornal poderia reproduzir as exatas palavras de um comunicado oficial do governo ou

de uma lei, por exemplo. O bom uso dessas ferramentas, citações e depoimentos,

fazem com que o texto se torne mais claro e dinâmico, além de, nas entrelinhas,

atestar o comprometimento do autor em dominar o tema para antes de abordá-lo.

Outra característica presente em “Roberto Carlos em detalhes” se assemelha

muito à construção jornalística é a classificação de conteúdo: Araújo segue uma

linha cronológica, porém sua divisão de capítulos é temática, ou seja, em cada uma

das 15 partes do livro o leitor é mergulhado em determinada perspectiva da vida de

Roberto Carlos: relação com a bossa nova, com o rock, com a MPB, com a

televisão, com outros compositores; com temas como sexo, política, amor e fé; além

de um capítulo dedicado à amizade com Erasmo Carlos. Outro cuidado do biógrafo

foi nomear cada parte do livro com o título ou o verso de uma canção do biografado,

além de destacar uma frase, em geral de entrevistados, e apresentar uma foto

significativas sobre o tema.

As variações de fontes também são perceptíveis ao longo do livro, além de

estarem listadas no fim do livro, o que confirma a segunda hipótese, ou seja, a

profundidade da pesquisa afeta no resultado final do livro. No último trecho

apresentado é possível notar o uso de entrevista (Caetano Veloso) e de pesquisa

documental (quando o biógrafo resgata o texto de Veloso no “Pasquim”), além da

preocupação em apresentar ao leitor a canção sobre a qual se fala (“Debaixo dos

Page 86: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

86

caracóis dos seus cabelos”) e o depoimento de Caetano Veloso que tornou pública a

história da música. Também se percebe a dedicação do autor na busca de diferentes

fontes no trecho a seguir, que faz referência à mudança de Roberto Carlos de

Cachoeiro de Itapemirim (ES) para Niterói (RJ), onde foi morar com uma tia

sonhando com uma oportunidade para estabelecer uma carreira musical na capital

carioca.

Dona Laura andava muito preocupada com o filho e escrevia-lhe cartas freqüentemente. Como estava sua saúde? Como estava nos estudos? Como estava na carreira? No final daquele ano, Roberto Carlos não tinha notícias animadoras para dar: ele não conseguira emprego em nenhuma rádio e também não conseguira bom desempenho na escola. Não lhe foi possível conciliar a peregrinação pelas emissoras no Rio com o horário das aulas no colégio em Niterói e acabou sendo reprovado no terceiro ano ginasial. Por tudo isso, o cantor atravessou a virada do ano-novo de 1957 bastante preocupado e pensativo. Ele precisava tomar uma decisão muito séria: continuar tentando a carreira no Rio ou voltar para Cachoeiro do Itapemirim? Sim, como as coisas estavam muito mais difíceis do que imaginava, Roberto Carlos pensou em voltar para casa, para a Rádio Cachoeiro, para sua escola, para os seus amigos. E comentou sobre isso numa carta que escreveu para sua amiga Eunice Solino, a Fifinha. Datada de 20 de janeiro de 1957, a carta trata de assuntos comuns aos dois, mas no final Roberto Carlos fez um pedido à amiga: “Fifinha, se não lhe causar incômodo, peço-lhe para saber no Liceu quando é e o que é preciso para uma nova matrícula e exame de seleção. Peço-lhe também para não contar nada a ninguém sobre isso pois não é certo ainda a minha volta. Sem mais, aqui vou terminar enviando-lhe abraço e votos de felicidade, do seu amiguinho Zunga”. (ARAÚJO, 2006, p. 40-1)

Muito mais do que corroborar a pesquisa do biógrafo até ali sobre as

dificuldades passadas pelo jovem Roberto Carlos ao ir atrás da carreira de músico

profissional, a apresentação da carta confirma a profundidade do trabalho de Araújo.

A redescoberta do apelido de infância do músico que ficou conhecido no país como

Brasa e, depois, como Rei, quase torna possível que visualizemos o biógrafo

tentando reconstruir cada passo do biografado em sua cidade natal, encontrando

antigos amigos, como Fifinha, e conversando com cada um durante horas para

descobrir todos os detalhes possíveis da juventude de Roberto Carlos e da história

de sua família. Se levarmos em conta a popularidade do músico e deduzirmos que,

Page 87: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

87

ao longo das décadas de sua fama, centenas de reportagens foram feitas sobre ele,

podemos concluir que há muitas informações já publicadas sobre o Rei, o que torna

o trabalho do biógrafo igualmente fácil e difícil, especialmente no que se refere a

levantar um dado novo.

A vida pública de Roberto Carlos é cheia de boatos, a grande maioria jamais

confirmada ou explicada, além de polêmicas dos mais diversos temas, porém o

assunto mais conhecido e também menos aprofundado é a perna mecânica do Rei.

Quase como uma lenda, o que se sabe é que o menino Roberto Carlos sofreu um

acidente de trem e perdeu parte da perna. Araújo nos apresenta, então, a cena do

acidente detalhadamente, assim como a turma do new journalism fazia décadas

atrás. Além disso, o biógrafo altera o foco narrativo e faz uma construção minuciosa

do fato, tornando a narração ao mesmo tempo densa e dinâmica. A riqueza de

detalhes e o contexto apresentados pelo autor reafirmam o compromisso deste com

o trabalho de resgatar e escrever a vida de um rei para seus súditos.

O fato aconteceu numa manhã de domingo, 29 de junho de 1947, dia de São Pedro. A brisa deslizava do alto das serras. Naquele dia, Cachoeiro amanheceu sorrindo e em festa para saudar o seu santo padroeiro que, segundo a Igreja Católica, foi morto e crucificado nessa data em Roma, durante o reinado do imperador Nero, no ano 65 d.C. Era feriado na cidade, dia de desfiles, músicas, bandeiras, discursos, ruas cheias de gente e muita alegria. As duas bandas da cidade, a Lira de Ouro e a Banda 26 de Julho, faziam retreta na praça, tocando dobrados. E muitos meninos já brincavam em volta do coreto ouvindo os músicos tocar. [...] Por volta de nove e meia da manhã, Zunga e Fifinha pararam numa beirada entre a rua e a linha férrea para ver o desfile de um grupo escolar. Enquanto isso, atrás deles, uma velha locomotiva a vapor, conduzida pelo maquinista Walter Sabino, começou a fazer uma manobra relativamente lenta para pegar o outro trilho e seguir viagem. Uma das professoras que acompanhava os alunos no desfile temeu pela segurança daquelas duas crianças próximas do trem em movimento e gritou para elas saírem dali. Mas, ao mesmo tempo em que gritou, a professora avançou e puxou pelo braço a menina que caiu sobre a calçada. Roberto Carlos se assustou com aquele gesto brusco de alguém que ele não conhecia, recuou, tropeçou e caiu na linha férrea segundos antes de a locomotiva passar. A professora ainda gritou desesperadamente para o maquinista parar o trem, mas não houve tempo. A locomotiva avançou por cima do garoto que ficou preso embaixo do vagão.

Page 88: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

88

tendo sua perninha direita imprensada sob as pesadas rodas de metal. E assim, na tentativa de evitar a tragédia com duas crianças, aquela professora acabou provocando o acidente com uma delas. Diante da gritaria e do corre-corre, o maquinista Walter Sabino freou o trem, evitando conseqüências ainda mais graves para o menino, que, apesar da pouca idade, teve sangue-frio bastante para segurar uma alça do limpa-trilhos que lhe salvou a vida. Uma pequena multidão logo se aglomerou em volta do local e, enquanto uns foram buscar um macaco para levantar a locomotiva, outros entravam debaixo do vagão para suspender o tirante do freio que se apoiava sobre o peito da criança. Com muita dificuldade, ela foi retirada de debaixo da pesada máquina carregada de minério de ferro. “Eu estava ali deitado, me esvaindo em sangue”, recordaria Roberto Carlos anos depois numa entrevista. Mas naquele momento alguém atravessou apressado a multidão barulhenta e tomou as providências necessárias. “Será uma loucura esperarmos a ambulância”, gritou Renato Spíndola e Castro, um rapaz moreno e forte, que trabalhava no Banco de Crédito Real.

Providencialmente, Renato tirou seu paletó de linho branco e com ele deu um garrote na perna ferida do garoto, estancando a hemorragia. “Até hoje me lembro do sangue empapando aquele paletó. E só então percebi a extensão do meu desastre”, afirma Roberto, que desmaiou instantes após ser socorrido. Esse momento trágico de sua vida ele iria registrar anos depois no verso de sua canção O divã [grifo do autor], quando diz: “Relembro bem a festa, o apito/ e na multidão um grito/ o sangue no linho branco...”, numa referência à cor do paletó que Renato Spíndola usava no momento em que o socorreu. Naquela época em Cachoeiro poucas pessoas possuíam automóvel e Renato Spíndola era uma delas. Ele pegou Roberto Carlos nos braços, colocou-o no banco do seu velho Ford e partiu a toda velocidade rumo ao hospital da Santa Casa de Misericórdia de Cachoeiro, o único hospital daquela região. “Foi uma longa viagem. Traumas, uma das minhas composições conta bem isso”, diz Roberto, citando outra canção confessional, lançada por ele em 1971, que em um dos versos fala do “delírio da febre que ardia/ no meu pequeno corpo que sofria/ sem nada entender...”. [...] Ao chegar ao hospital, Zunga foi imediatamente atendido pelo médico Romildo Coelho, de 36 anos, que estava de plantão naquele domingo. Segundo ele, ao ver o menino constatou que a parte de baixo da perna estava pendurada apenas pela pele, mas o garoto não chorava muito, porque não estaria sentindo dor. “Quando o trem esmagou a perna, arrancou todos os nervos e tirou a sensibilidade”, explicou o médico. Ele recorda que o menino parecia ainda não ter a noção exata da gravidade

Page 89: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

89

do acidente. “Em certo momento, ele apontou para o sapato que estava na perna acidentada e me disse: ‘Doutor, cuidado para não sujar muito o meu sapato porque ele é novo’.” Foi uma reação típica de uma criança, e de uma criança que não estava acostumada a ganhar sapatos novos com muita freqüência. Os pais e irmãos de Roberto Carlos só ficaram sabendo do fato quando ele já tinha sido socorrido pelo bancário Renato Spíndola. Em seguida foram todos imediatamente para o hospital, sem ainda saber a real gravidade do acidente. A primeira reação foi de revolta contra o maquinista Walter Sabino. O pai de Roberto Carlos estava convencido de que aquilo fora resultado de imprudência e desatenção do condutor do trem. Este, por sua vez, se explicava dizendo que não viu ninguém na linha férrea no momento em que fez a manobra para pegar um outro trilho e seguir viagem. Quando ele percebeu alguma coisa, numa fração de segundo a máquina já tinha atingido o garoto. Robertino Braga não se conformava e queria fazer justiça com as próprias mãos. “Ele ficou tão fora de si que disse que ia matar meu marido. Walter teve que se esconder dentro da estação até que Robertino se acalmasse”, afirma Anita Sabino, esposa do maquinista. Naquela mesma manhã, no hospital da Santa Casa, o médico aplicou uma anestesia local de novocaína no acidentado e deu início à cirurgia. Para distrair um pouco a criança, o dr. Romildo pegava uma folha de papel em branco e ficava recortando bichinhos como peixes, lagartixas, cavalos... Na época, em casos semelhantes, era comum fazer a amputação da perna acima do joelho, prática mais rápida e segura. Mas Romildo tinha acabado de ler um estudo americano sobre ciência médica que explicava que os membros acidentados devem ser cortados o mínimo possível. Assim, a amputação da perna do garoto foi feita entre o terço médio e o superior da canela ̶ apenas um pouco acima de onde a roda de metal passou. Essa providência fez com que Roberto não perdesse os movimentos do joelho direito e pudesse andar com mais desenvoltura. Mas por causa dela a cirurgia demorou mais, deu mais trabalho e exigiu um acompanhamento mais cuidadoso e paciente. Durante seis meses, o dr. Romildo e um outro cirurgião da Santa Casa, Dalton Penedo, tiveram que fazer curativos diários na perna do garoto ̶ tudo acompanhado com grande expectativa pela família, pelos amigos e pelo próprio Zunga. (ARAÚJO, 2006, p.28 - 31, grifos do autor)

A costura feita pelo autor dos depoimentos de moradores da cidade, canções

de Roberto Carlos e entrevistas do cantor sobre o tema pode ser chamada de

perfeita, já que a fluência do texto não deixa a desejar e, principalmente, as

informações apresentadas esclarecem o fato tão mitificado e dão ao leitor a

Page 90: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

90

impressão de ter presenciado a cena pessoalmente. Além disso, há uma mescla de

sentimentos na narrativa: a inocência do menino, a angústia do pai, a preocupação

da professora, o susto da população, a boa vontade do bancário, o profissionalismo

do médico. Ou seja, ao narrar a história do acidente de uma criança, o biógrafo

conta com os olhos de outros personagens e, consequentemente, coloca os

sentimentos de todos no fato sem, no entanto, perder seu foco principal. Tudo isso

vem ao encontro da quarta hipótese, que apresenta o estilo de escrita como influente

na compreensão e construção do biografado pelo leitor.

Mesmo com uma história pessoal tão próxima de Roberto Carlos, em nenhum

momento Paulo Cesar de Araújo deixa de lado seu compromisso profissional

enquanto biógrafo. Apesar não dar especial destaque às críticas ao músico e às

suas manias, o autor mantém um padrão sensato em seu texto, sem jamais glorificar

a personalidade de seu biografado. Ou seja, ele retrata o lado humano do líder da

Jovem Guarda e Rei da música brasileira, mostrando o filho de Lady Laura, o pai de

Dudu Braga, o viúvo de Maria Rita, o parceiro de Erasmo Carlos, entre tantos outros

papéis ocupados ao longo de 65 anos de vida (idade do músico no ano de

publicação do livro).

A profundidade do trabalho de Araújo existe em todas as perspectivas da vida

do cantor, incluindo casos amorosos e dramas familiares (como a doença e morte de

Maria Rita) e confirma a primeira e a segunda hipóteses. A exposição de fatos tão

íntimos motivou Roberto Carlos a entrar na justiça após a publicação da biografia,

contra o biógrafo e contra a editora Planeta. O resultado do processo foi em favor do

músico e, cerca de quatro meses depois de ser publicado, o livro foi recolhido das

livrarias e se tornou proibido. No entanto, “Roberto Carlos em detalhes” pode ser

encontrado na internet em formato digital e acessado gratuitamente. Quando, em

2015, o Supremo Tribunal Federal legalizou a publicação de biografias sem

aprovação do biografado ou seus familiares, Araújo afirmou que publicará outro livro

sobre o cantor, porém o advogado de Roberto Carlos, Marco Campos, afirmou que o

trabalho será processado caso possua detalhes da intimidade do Rei14.

14 A possibilidade de um novo livro de Paulo Cesar de Araújo e o posicionamento de Roberto Carlos sobre a liberação de biografias não-autorizadas foram tema de diferentes reportagens. As consultadas para esta monografia foram: “Roberto Carlos diz estar satisfeito com decisão do STF sobre biografias”, do portal G1, disponível em: <http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2015/06/roberto-carlos-diz-estar-satisfeito-com-decisao-do-stf-sobre-biografias.html>; “Roberto Carlos entrará na justiça se biografia proibida for relançada”, de Zero Hora, disponível

Page 91: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

91

5.1.2 “Dez, nota dez: Eu sou Carlos Imperial”, de Denilson Monteiro

Diferente das outras duas biografias, o livro de Denilson Monteiro faz uma

quebra cronológica e usa como isca para atrair o leitor uma cena em que o

“autoproclamado Rei da Pilantragem” aparece assustado: sua prisão pelo

Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Além disso, o biógrafo apresenta

uma boa prévia da personalidade de seu personagem.

Em 13 de dezembro de 1968, a linha dura do regime militar recebia antecipadamente seu presente de Natal por meio do Ato Institucional nº 5. A partir dessa data, terminavam os pudores e o Brasil passava a viver assumidamente uma ditadura, com a intensificação da censura aos meio de comunicação e muita gente presa. “Às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência”, disse o então ministro do trabalho, Jarbas Passarinho, ao General Costa e Silva durante a reunião no Palácio das Laranjeiras onde foi decidida a promulgação do mais perverso dos Atos Institucionais. Contudo, em Copacabana, no apartamento da Rua Barata Ribeiro 814, onde morava o compositor, jornalista, apresentador, produtor musical e mais um sem-número de ocupações, Carlos Imperial, o destino do país não era prioridade naquele momento. O gordo encrenqueiro vivia outro de seus dias agitados, excitadíssimo com sua mais recente ideia. Criara um cartão de Natal para lá de irreverente, que no lugar do velhinho de barbas brancas e roupa vermelha, trazia uma foto sua sentado num vaso sanitário com as calças arriadas e mão no queixo com semblante meditativo ̶ sua livre interpretação da escultura “O Pensador” de Auguste Rodin. Ao lado a dedicatória: “Espero que Papai Noel não faça no seu sapato o que eu estou fazendo neste cartão”. Porém, tais dizeres eram apenas para os amigos, já os inimigos ̶ e ele os tinha ̶ o “não” era eliminado da frase, manifestando o desejo de que o “bom velhinho” não tivesse a mesma consideração para com o sapato do desafeto em questão. O cartão também tinha uma capa que trazia o desenho de dois pares de pés, um masculino e outro feminino, em lados opostos, simulando uma popular prática sexual simultânea e recíproca. O restante dos corpos era encoberto por um retângulo com a frase “Boas

em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2015/06/roberto-carlos-entrara-na-justica-se-biografia-proibida-for-relancada-4780131.html>; e “Paulo Cesar de Araújo publicará livro sobre Roberto Carlos pela Record”, do portal G1, disponível em <http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2015/06/paulo-cesar-de-araujo-publicara-livro-sobre-roberto-carlos-pela-record.html>. Todas foram acessadas em 20 de abril de 2016.

Page 92: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

92

festas e um feliz...”. Os bons votos de Imperial para 1969 que se aproximava. [...] Na noite de 1º de janeiro, a “A Turma da Pesada” havia se apresentado no programa do comediante Ronald Golias, na TV Tupi. Logo após, Imperial levou Célia e Celma em casa, na Rua Barão de Ipanema, frisando muito bem que iria apanhá-las na manhã seguinte, pois haveria ensaio em seu apartamento. Depois seguiu para a cantina La Fiorentina, no Leme, onde a classe artística batia ponto, na companhia dos pupilos Fábio e Gastão Lamounier (ou Luiz Henrique). Conversava animado e já nem lembrava da travessura natalina que havia aprontado. O que queria realmente era discutir seus vários planos para a “Turma da Pesada”. Imaginava o grupo viajando por todo o país e tocando sem parar nas rádios. Também sonhava faturar alto com o lançamento de “O Rei da Pilantragem”, sua segunda produção cinematográfica. Dizia que teria um desempenho bem melhor que “Tropeiro”, o maldito filme que lhe trouxera prejuízo e dor de cabeça. A conversa prosseguia até que três homens dirigiram-se à sua mesa. - Senhor Carlos Imperial?

- Pois não?

- O seu carro está trancando o nosso, nós não estamos conseguindo sair. Será que o senhor poderia ir lá com a gente para tirá-lo?

O Gordo estranhou, não lembrava de ter dificultado a saída de ninguém quando estacionou seu Mercury Cougar, mas atendeu aos homens. Pediu que Fábio e Gastãozinho aguardassem e os acompanhou. Minutos depois, os três o trouxeram de volta, estava com as mãos algemadas. Tudo não passara de uma desnecessária encenação de um trio de maus atores. Imperial explicou aos amigos o que acontecia: - Estou sendo preso pelo Dops, avisem meus pais. O grande gozador agora sentia um friozinho na espinha. Já havia se metido em algumas merdas anteriormente, mas aquela o deixava amedrontado de verdade. Naquele momento, toda a preocupação que não havia tido com o que acontecia no país passou a existir. Ouviu comentários sobre a prisão de quem era tido como inimigo do regime. No entanto, não conseguiu imaginar o que tinha feito para ser considerado um. Aqueles três pediam que ele os acompanhasse, mas para onde? A sede do Dops, lá na Rua da Relação? Muita gente dizia que quem entrava ali apanhava um bocado. E se pretendessem coisa pior? Aquela história de jogarem gente no Guandu podia ser verdade... Gastão, numa demonstração de amizade ou falta de noção do perigo, pediu e obteve dos agentes permissão para acompanhar o amigo no camburão. (MONTEIRO, 2015, p. 9-11)

Page 93: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

93

Até que a sequência deste fato seja desenrolado, o que só acontece 18

capítulos depois, o autor apresenta ao leitor pequenas ‘espiadas’ no carro do Dops

para que este acompanhe o prisioneiro e seu amigo no longo e misterioso caminho

até seu destino. Tentativas de conversa com os policiais e suposições sobre o

motivo da prisão são, então, apresentadas em pequenos diálogos, como este, ao fim

do capítulo 11:

A viatura passava pela enseada de Botafogo e Imperial contava a Gastão a história que achava poderia ter custado sua prisão. - Não faz muito tempo, eu estava comendo a mulher de um coronel do Exército. Mas ela já estava separada dele, o babaca batia muito nela. Numa noite, eu estava com a mulher lá no Bierklause, quando o cara chegou na boate e me chamou para conversar do lado de fora. Eu fui. Quando saímos, ali no Lido, o cara sem mais nem menos puxou o revólver e disse: “Essa é a última mulher casada que você come! Filho da puta, corno, vou dar um tiro na tua cara!” (MONTEIRO, 2015, p. 99)

Ou seja, paralelamente ao resgate da vida de Carlos Imperial, o biógrafo

conta uma segunda narração, uma sequência curta de fatos, mas que através do

uso de diálogos torna o leitor próximo da cena, o qual, ao mesmo tempo em que

sofre com os personagens a ansiedade pelo que virá a seguir, se aproxima tanto de

Carlos Imperial que constrói uma imagem viva de sua personalidade ímpar, sem que

seja necessário que o autor use adjetivos para isso.

O uso de diálogos é uma constante no trabalho de Monteiro, uma possível

razão para essa escolha é a conhecida habilidade de Imperial para frases de efeito,

além de sua tendência para inventar histórias que tinham por objetivo promover, de

alguma forma, seu trabalho ou algum dos seus protegidos. Ou seja, a personalidade

apresentada por Imperial ao público era, no fim das contas, um personagem criado,

e a missão de seu biógrafo é fazer o leitor reconhecer o personagem dentro de seu

personagem. Com essas características no texto de Monteiro, obtemos a

confirmação da quarta hipótese, pois o estilo de escrita e as contextualizações

influem na imagem construída pelo leitor.

Com o nome em constante evidência, não demorou para Imperial ser convidado a participar do “Esta noite se improvisa” [programa de Blota Jr.]. Mas diferentemente dos dois rapazes de bem [Chico Buarque e Caetano Veloso], quem assistia sua

Page 94: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

94

figura na telinha da TV, certamente fecharia portas e janelas para que ele não entrasse em sua casa. Gordo, com um andar gingado como de um malandro, trajando camisas com estampas espalhafatosas que usava desabotoadas, rosto esburacado pelas acnes da adolescência e, o pior, calçando chinelos, Carlos era um verdadeiro ogro midiático. E seu comportamento era ainda mais reprovável do que a aparência, pois passava todo o programa implicando com os competidores, e até mesmo com Caçulinha. Quando apertava a campainha e corria ao microfone para cantar, nunca deixava de dizer ao músico: - Mas isto está uma droga! Você não toca nada! O auditório o vaiava. Ele ria e atirava beijos debochados. As vaias ficavam mais fortes. Império tinha uma memória prodigiosa, era capaz de cantarolar a mais obscura das obras do começo ao fim e obter seis pontos máximos para no final do programa abocanhar um Gordini. Algo que comemorava da maneira mais arrogante possível, provocando mais vaias. Numa ocasião, após mais uma dessas reações da plateia, respondeu: - Prefiro ser vaiado no meu Mercury Cougar que aplaudido num ônibus ̶ mais vaias. A frase causou repercussão, mas não demorou para denunciarem sua semelhança com uma da autora do romance “Bom Dia Tristeza”, a francesa Françoise Sagan: “Prefiro ser infeliz no meu Jaguar que no metropolitano”. Nova acusação de plágio para a qual, diga-se de passagem, não deu a menor importância: - Não quero me fazer de ignorante, mas só sei que a Sagan escreveu dois livros. E eu não li nenhum deles. Bobagem, apesar da vida escolar medíocre, lia bastante. Nessa época andava obcecado com Omar Khayyam, o poeta persa do século XI, e o simbolista Augusto dos Anjos, de quem repetia passagens do poema “Versos Íntimos”: Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. A grande ironia é que a impopularidade do Gordo refletia em excelentes índices de audiência para a Record. O público se queixava do seu jeito encrenqueiro, mas queria ver o que ele iria aprontar no “Esta Noite se Improvisa”. Sua presença passou a ser disputada pelas demais atrações da casa. Numa delas, o programa da apresentadora Hebe Camargo, tão logo lhe deram o microfone, despejou sua costumeira agressividade, além de lançar uma nova palavra. - Auditório cafona! Vocês já morreram, seus idiotas. Deveriam estar em casa em vez de vir me ouvir dizer bobagens. Originária do italiano “cafone”, a palavra designava tudo aquilo que era de mau gosto. Depois daquela noite no “sofá da Hebe”, Imperial era quase que obrigado a repeti-la para em troca receber vaias, que no seu caso correspondiam a aplausos.

Page 95: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

95

Contudo, toda essa aparência de homem da Idade da Pedra Lascada não passava de encenação. A começar pela constante implicância com Caçulinha, profissional pelo qual nutria grande carinho. A verdade é que quando foi chamado para participar do programa de Blota Jr., Imperial percebeu que de alguma maneira precisava superar a imagem de bons moços de seus adversários. A arriscada estratégia de surgir como o grande cafajeste televisivo acabou dando certo. Um dia, no apartamento da Miguel Lemos, comentou com o amigo Aurino Araújo: - Mineiro, naquele programa só tem artista, não tem bandido. Eu sou o único que tem lá. Mas, enquanto isso, eu estou ganhando carros. (MONTEIRO, 2015, p. 166-8, grifos do autor)

Diferentemente do biógrafo de Roberto Carlos, Monteiro constrói seu texto

como uma grande história, sem deixar explicitas suas fontes, apenas usando-as

como personagens e detalhes de cena. Neste último trecho, ele cita as leituras de

Imperial, destacando inclusive dois versos do poeta lido por ele, além de trazer a

repercussão e as origens das frases de seu biografado. Outra preocupação de

Monteiro é revelar as histórias por trás dos boatos lançados por Imperial e suas

consequências, compromisso que certamente exigiu muitas pesquisas, já que os

boatos eram tão bem elaborados e divulgados que grande parte do público

acreditava ser verdade. Esses cuidados do autor atestam a profundidade de sua

pesquisa e confirmam a segunda hipótese desta monografia.

[...] Impera sempre achou semelhanças do rock com o nosso forró, ele ouvia conjuntos que se apresentavam em “Brotos no 13” e os imaginava tocando clássicos do ritmo nordestino em iê-iê-iê. Um dia, conversando com Stokler. dono da gravadora Codil, deu a sugestão de que algum dos conjuntos contratados da casa experimentassem essa fusão. Eduardo e Seus Menestréis, que acompanhava seu amigo Ronnie Von, encontrava-se prestes a gravar seu primeiro compacto. O Gordo insistiu com eles, que acabaram gravando “Asa branca” de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Ele gostou tanto do resultado, que guardou uma cópia da demo consigo. Na TV Tupi, o jornalista Gontijo Teodoro, apresentador do “Repórter Esso”, atrás de uma notícia fresca, resolveu recorrer a Imperial, que por lá se encontrava. - Gontijo, eu tenho um furo de reportagem pra você: os Beatles gravaram “Asa Branca” ̶ tendo às mãos a fita com a gravação de Eduardo e Seus Menestréis, o “rei da pilantragem” deu a prova cabal ao jornalista.

Page 96: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

96

A notícia foi impactante. Luiz Gonzaga, que com o iê-iê-iê andava amargando um injusto ostracismo, da noite para o dia virou centro das atenções. As revistas “Veja” e “Intervalo” o procuravam para dar declarações sobre o caso. Emissoras de TV prestavam-lhe homenagens. A sorte voltava a sorrir para o “rei do baião”. Durante mais uma homenagem que “Lua” recebia na TV Rio, Imperial o abordou e contou a verdade. Revelara que tudo não passara de mais uma de suas jogadas promocionais. Mas o cantor não lhe deu importância, limitou-se a agradecer pelo que o Gordo fizera por ele. O pior é que muitas pessoas comentavam ter vindo de Londres, onde a canção de Gonzaga e Humberto Teixeira na gravação do conjunto inglês era sucesso absoluto. Ao tomar conhecimento disso, Imperial começou a se perguntar se sua mentira havia virado verdade. Numa noite, Humberto telefonou para sua casa. - Carlos Imperial, eu gostaria de saber sobre essa história envolvendo “Asa branca”. O Luiz Gonzaga me falou que é tudo invenção tua, mas eu tenho uma amiga que jura de pés juntos que ouviu a música lá na Europa. Por coincidência, os Beatles haviam lançado uma canção, “The Inner Light”. de autoria de George Harrison, em que sua guitarra trazia certa semelhança com uma viola nordestina. Talvez as pessoas que abordavam Imperial tivessem ouvido essa música, que para elas passava por “Asa branca”. Mas, sem saber disso, Carlos pensou em desmentir a história. Um dia foi falar com Luiz Gonzaga: - Luiz, vamos convocar a imprensa e contar a verdade. Eu estou disposto a dar fim a essa história. - Você está maluco, Imperial? Nada disso, me deixa continuar porque eu estou fazendo muito show. Logo agora que o dinheiro voltou a entrar? (MONTEIRO, 2015, p. 184-6)

Ao mesmo tempo em que mostra as malandragens de Imperial e seu papel de

ogro na mídia, o biógrafo não deixa de apresentar o lado ‘careta’ da personagem, no

caso sua repulsa às drogas. Ou seja, há um cuidado extremo em mostrar todas as

faces do polêmico biografado, ressaltando igualmente suas características criticáveis

e as louváveis, conhecidas ou não pelo público.

Generosidade era algo que Imperial tinha de sobra, acolhia os amigos sem um pingo de sovinice. O apartamento era deles, com direito a uma geladeira constantemente reabastecida. Mas havia uma condição importantíssima para ter direito à hospedagem. Nem em pensamento as drogas poderiam passar por lá. Algo dificílimo para aquela turma que ali se encontrava. Tim [Maia] era o que mais se queixava:

Page 97: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

97

- Pô, não dá pra eu ficar sem o meu bauretezinho... Mas se o Gordo descobrisse a transa de algum deles com tóxicos, o infeliz podia pegar suas malas e caçar outro canto para morar. Para evitar isso, todo mundo respeitava a regra do Império. Quando batia a vontade, tratavam de ir dar uma volta na praia. Numa dessas vezes, Imperial estava no apartamento, e sem ter o que inventar, um dos jovens falou: - Pô, Impera, estou de saída, vou ver uma amiga, a Cristina. “Vou ver Cristina” virou o código para “apertar o fino, um finíssimo”. Só que mulherengo como ele só, Imperial fica obcecado em conhecer a garota. Os meninos inventavam que um dia a apresentariam a ele. Enquanto isso não acontecia, ele ficava com o violão cantarolando a frase que seus hóspedes a todo momento repetiam. Vendo aquilo, Tim resolveu embarcar na brincadeira e começou a desenvolver uma canção com seu anfitrião. Vou-me embora agora pra longe

Meu caminho é ida sem volta

Uma estrela amiga me guia

Minha asa presa se solta, eu

Vou ver Cristina, vou ver Cristina, vou ver Cristina Imperial continuou sem conhecer a beldade. Mas gostou da experiência com Tim. (MONTEIRO, 2015, p. 217-8, grifos do autor)

Na proposta de apresentar o maior número de perspectivas possíveis dos

vários papéis vividos por Imperial, a relação familiar também é abordada pelo autor,

principalmente a relação com os filhos. Entre o Imperial ogro, o conquistador, o

malandro, há também o filho, o irmão, o pai, o avô, sempre mantendo suas

características marcantes, como no trecho abaixo.

No dia 13 de julho de 1971, Maria Luíza completou 15 anos. À tarde, Imperial passou no apartamento dos pais e avisou a garota: - Se arruma que vamos sair para comemorar o teu aniversário. Luíza fez o que o pai pediu, e os dois partiram no novo carro do Gordo, um Mercury Cougar dourado. O destino não poderia ter sido mais insólito. Imperial levou a menina para visitar alguns inferninhos do Centro do Rio e de Copacabana. A garota, um tanto assustada com aquele ambiente desconhecido, ficava boquiaberta com a fauna que lhe era apresentada: dançarinas, prostitutas com trajes sumaríssimos, travestis e boêmios de longa data. O que mais a impressionava durante a “visita guiada” era o fato do pai parecer um assíduo frequentador desses lugares, alguém que privava da intimidade dos demais clientes e das “funcionárias”. Em cada estabelecimento que visitava era saudado:

Page 98: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

98

- Grande Imperial! Namoradinha nova?

- Não, esta é minha filha. Hoje é aniversário dela ̶ respondia orgulhoso, provocando espanto. Por volta das 7 da noite, Imperial levou Luíza de volta à casa dos avós, fazendo outra recomendação. - Coloca tua roupa mais bonita. Agora nós vamos onde um homem deve sempre levar uma mulher. Ainda tonta com o primeiro passeio, mas curiosa em saber o que o pai lhe reservava, Maria Luíza trocou de roupa e aguardou sua volta. Lá pelas 8 da noite, Imperial veio buscá-la. Dessa vez foram ao Monsieur Pujol, o requintado restaurante de Alberico Campana, administrado por Miele e Bôscoli. Pai e filha jantaram e conversaram por toda a noite. Quando deixou Luíza na casa dos avós, Carlos despediu-se dizendo: - Agora você já sabe onde deve e onde não deve ir. (MONTEIRO, 2015, p. 244-5)

De maneira geral, podemos dizer que Denilson Monteiro aproveita ao máximo

a singularidade de Carlos Imperial e transforma sua biografia em um livro que quase

soa como ficção. Sempre mantendo o tom leve de humor, o biógrafo traça o perfil de

seu personagem através de momentos peculiares e significativos, tornando

desnecessário o uso de adjetivos, por exemplo. Em consequência temos uma leitura

leve, mas informativa. Sua relação com o biografado é profissional e a impressão

que passa ao leitor é que a pesquisa para o livro-reportagem foi prazerosa, divertida

e surpreendente, principalmente em função das particularidades de Imperial. Sendo

assim, o autor apresenta ao leitor as histórias que soaram mais simbólicas para

traçar o perfil de seu personagem.

Publicada pela primeira vez em 2008 pela editora Matrix, “Dez, nota dez: Eu

sou Carlos Imperial” surgiu da curiosidade do autor Denilson Monteiro, o qual teve

apoio total dos filhos do produtor, compositor e diretor, Maria Luíza e Marco Antônio.

O filho afirmou que seu pai não poderia virar santo depois de morto, por isso ele e a

irmã deram carta branca ao biógrafo. Essa relação com a família certamente

influenciou o trabalho do biógrafo e, sendo assim, confirma a terceira hipótese.O

livro serviu de base para o documentário “Eu sou Carlos Imperial” (2015), dirigido por

Renato Terra e Ricardo Calil e no qual Monteiro auxiliou como roteirista15.

15 Reportagens consultadas: “Carlos Imperial tem sua história contada em livro, musical e

documentário”, de O Globo, disponível em <http://oglobo.globo.com/cultura/musica/carlos-imperial-

tem-sua-historia-contada-em-livro-musical-documentario-15827415>; e “’Imperial é como um show

dos Rolling Stones’, diz biógrafo de Carlos Imperial, de Zero Hora, disponível em

Page 99: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

99

5.1.3 “Ronnie Von: O príncipe que podia ser rei”, de Antonio Guerreiro e Luiz

Cesar Pimentel

O título da biografia de Ronnie Von transmite uma forte alusão à rivalidade do

cantor com Roberto Carlos. Enquanto o biografado foi chamado de Pequeno

Príncipe, o segundo recebeu a alcunha de Rei, a qual o acompanha até hoje. Os

músicos afirmam que é uma rivalidade criada e alimentada pela mídia do período do

movimento Jovem Guarda, porém Antonio Guerreiro e Luiz Cesar Pimental usaram a

suposta competição entre os dois como ponto de partida.

Em 1966, ele já era o cara. Comandava o Programa Jovem Guarda, na TV Record, era líder de audiência nas tardes de domingo e arrastava multidões de meninas histéricas por onde passava com seus carrões. Na ausência de um termo divino para designá-lo, aceitou apenas a realeza. Era o rei, o absoluto, o incontestado. Se quisesse, podia. Não havia muita distinção entre dois verbos para aquele rapaz capixaba que assombrava o Brasil com seu sucesso. E tudo o que Roberto mais queria era seguir em frente sem ter seu trono ameaçado. Mas tal qual o conto de fadas, os espelho diante de si lhe disse outro nome que não o seu. O que pretendia o tal de Ronnie Von a quem Hebe Camargo apelidara de Pequeno Príncipe? A alcunha só reforçaria a rivalidade nascida na rua Augusta e adjacências de uma capital paulista fanática por seus ídolos. Roberto Carlos sabia que Ronnie Von era um adversário à altura do seu poder. Hoje, quase cinquenta anos depois, quando se olha em retrospectiva a carreira dos dois, pode soar despropositada essa afirmação, mas naquela época, definitivamente, não era. Se existiu alguém para disputar o posto de O Queridinho do Brasil, esse sujeito foi Ronnie Von, mais do que Jerry Adriani e Wanderley Cardoso, para citar os outros dois artistas da mesma geração que chegaram próximos de tal façanha. Assim, para os mais jovens, sobretudo, que fique registrado: o Brasil já teve uma batalha entre um Rei e um Príncipe. Ambos eram carismáticos e talentosos. Também eram jovens e bonitos, só que Ronnie Von era mais jovem e bonito. Além de ser mais elegante, sofisticado, inteligente e ter dois holofotes no rosto moreno, que alguns, precipitadamente, chamavam de olhos.

<http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2015/05/imperial-e-como-um-show-dos-rolling-

stones-diz-biografo-de-carlos-imperial-4752185.html>. Acesso em 24 de abril de 2016.

Page 100: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

100

Por isso, quando em 15 de outubro de 1966, Ronnie estreou O Pequeno Mundo de Ronnie Von, na mesma Record, Roberto Carlos sentiu seu castelo estremecer. Nos bastidores, alguns pauzinhos foram movidos e os convidados do Jovem Guarda ficaram impedidos de entrar no mundo de Ronnie. Mas, apesar disso e da gritante carência de recursos, o programa decolou. Decolou tanto que apenas dois meses depois, segundo conta quem estava no estúdio, o Rei teria colocado uma foto do Príncipe na sua frente e cantado, com a ajuda dos pulmões e do fígado, a música “querem acabar comigo/ isso eu não vou deixar”. (GUERREIRO, PIMENTEL, 2014, p. 9-11, grifos dos autores)

Ao mesmo tempo em que usam como base a relação Ronnie Von x Roberto

Carlos, os autores deixam clara a diferença entre os dois enquanto narram a história

do biografado, dando abertura para a questão: a rivalidade popular entre os dois

músicos merece tanta atenção assim ou foi uma má escolha por parte dos

biógrafos? A forma de apresentação da classe social da família de Ronnie Von já

mostra quão distante são as culturas que formaram os dois músicos. Aliás, os

autores exaltam o ‘sangue azul’ de Ronnie Von.

Se tinha uma coisa que José Maria Nogueira gostava era de estudar. Melhor, gostava de conhecimento. “Um homem se mede da testa para cima. Da testa para baixo é tudo igual”, exaltava para o filho. Gostava tanto que foi estudar a origem da família. Mergulhou até chegar ao fundador da cidade do Rio de Janeiro, Estácio de Sá. Estácio era um soldado português, trazido ao Brasil em 1563. Seu tio, Mem de Sá, aos 63 anos era o terceiro governador-geral que o país possuía. Incomodado com a presença de franceses na Baía de Guanabara, Mem convocou seu sobrinho, vinte anos mais moço, para dar uma coça nos invasores. Somente dois anos depois ele conseguiu juntar reforços na Capitania de São Vicente e botar para nadar os franceses, que ali haviam ficado uma década. Era 1º de março de 1565, e nascia a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A missão prosseguiu para Estácio de Sá e o final não foi dos mais felizes. Dois anos dali, ao lançar-se no front contra remanescentes franceses que agora contava com o apoio de índios, levou uma flechada no olho, em 20 de janeiro de 1957, e faleceu um mês depois de infecção causada pelo ferimento. Mesmo 20 de janeiro em que é saudado o santo que batiza a cidade ̶ daí os dois aniversários do Rio, o dia de São Sebastião e a data de fundação (1º de março). Os restos mortais de Estácio de Sá permanecem na Igreja de São Sebastião dos Capuchinhos, no bairro carioca da Tijuca, a

Page 101: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

101

catorze quilômetros da Copacabana onde o mais novo membro da linhagem cresceu. E já com o apelido de Ronnie. O Nogueira que lhe encerra o nome vem de Manuel Jacinto Nogueira da Gama, nascido em São João del Rei, em 1735. Além de militar e político, concluíra doutorado em filosofia e matemática pela Universidade de Coimbra e tornara-se visconde e marquês da cidade mineira de Baependi. Aos três anos, Ronaldo já tinha certa consciência disso. Um de seus passeios prediletos com o pai era pela biblioteca de quase cinco dígitos de volumes que José Maria acumulara. Acumular é um bom verbo para definir o berço de Ronnie. Ronaldo nasceu um dos herdeiros de conglomerado financeiro da família, que unia banco de investimentos, banco múltiplo, banco comercial, seguradora, distribuidora e corretora de valores. Não havia braço financeiro em que a família não tivesse ao menos um dedo. (GUERREIRO, PIMENTEL, 2014, p. 16-8)

Ao contrário dos autores de “Roberto Carlos em Detalhes” e “Dez, nota dez:

Eu sou Carlos Imperial”, os biógrafos de Ronnie Von não assumem nem o tom de

reportagem nem o tom de romance em seu texto. Em lugar de apresentar a

pluralidade da persona, o que é, segundo Vilas Boas (2002, p.50), essencial em uma

biografia, Guerreiro e Pimentel dão ao leitor a impressão de que seu objetivo é

comprovar que seu biografado merece mais o título de Rei, já que é de família rica e

culta, além de ter sido sinônimo de beleza no período Jovem Guarda. Ou seja, nessa

perspectiva a personalidade do biografado fica numa posição secundária, enquanto

o título de Príncipe que recebeu no início de sua carreira está em primeiro plano.

No entanto, no momento em que apresentam ao leitor o Ronnie Von nobre, os

biógrafos buscam um equilíbrio e descrevem em determinados momentos uma

perspectiva pessoal do biografado, porém sem profundidade ou expressão de

sentimentos por meio do texto. São pinceladas sutis, como se para lembrar que o

Príncipe que podia ter sido Rei tinha seu lado humano, por vezes muito diferente do

que sua posição nobre apresentava.

O sucesso do compacto era estrondoso. A gravadora o colocou em estúdio para aproveitar a onda e ele registrou mais dez músicas ̶ cinco versões dos Beatles, quatro composições de Tommy Standen, que faria relativo sucesso nos anos 1970 com Terry Winter e uma versão de “As tears go by”, dos Rolling Stones.

Page 102: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

102

Não morava mais no hotel, na praça Mesquita, mas em um apartamento na Vila Nova Conceição. No dia 21 de setembro, pegou um voo em Congonhas na hora do almoço, desembarcou em Santos Dumont, gravou quase tudo no primeiro take e voltou a tempo de jantar em casa. Ele odiou o disco. Suas referências eram os Beatles e George Martin, com seus arranjos milimétricos. O début de Ronnie em LP explorava descaradamente sua imagem. E só. Na contracapa há convite de associação ao fã-clube do cantor, com a promessa de uma foto autografada por ele. A capa o mostra com a franja à Justin Bieber e iluminação estratégica para ressaltar os olhos que nascem amarelos e se expandem até um verde-piscina por natureza humana. Sua foto estoura 4/5 da capa. As músicas combinaram simplesmente seu vocal a um fundo de orquestra romântico, e, ao lado de sua foto, fica anunciado: “Incluindo ‘Meu bem’(Girl)”. Não era o que queria ou imaginava. Sonhava fazer um trabalho que mesclasse o erudito com o rock. O público adorou. O sucesso de vendas o obrigaria a permanecer sete dias por semana na estrada para atender a demanda por shows. (GUERREIRO, PIMENTEL, 2014, p. 58-9)

O Príncipe biografado pelos autores é tão bondoso que se deixa levar e acaba

virando uma marionete nas mãos de uma gravadora, mesmo que isso o deixe infeliz.

Esse é o tom que soa das palavras dos autores: a bondade e inocência de Ronnie

Von se tornam ainda mais admiráveis diante do sofrimento que estes sentimentos

direta e indiretamente trouxeram a ele, além de justificarem sua ‘rebeldia’ em

determinado ponto da carreira.

A imagem de Ronnie Von estava consolidada. O musical, com o sucesso estrondoso, de “A praça”, igualmente. Poderia viver no eco do sucesso por décadas. Era um filhote de gravadora, aquele tipo de artista que reza conforme a direção artística prega. [...] Em São Paulo, Ronnie vivia a existência de pobre menino rico. Fazia mais sucesso do que podia imaginar ser possível. À custa de um tipo de música de que não gostava. Só que seguia escutando tudo o que a gravadora lhe mandava. Recebia fitas de compositores que queriam que ele lhes gravasse aos baldes, 90% marchinhas alegres. Até que, da noite para o dia, não tinha um cara na gravadora para lhe dizer qual seria seu próximo passo. Deu um salto no escuro. E o que alcançou ali só seria reconhecido mais de três décadas depois.

Page 103: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

103

Ronnie Von não conhece droga alucinógena. Nenhuma. Um dia estava no carro com um amigo e este tinha acabado de tomar um ácido. Ele lá, só observando, e ficou assustadíssimo quando o colega quis pular do veículo em movimento porque o automóvel estava prestes a esmaga-los. “Você não está vendo as paredes encolherem?”, gritava. O cantor começou a mentir para os amigos que tinha um problema neurológico e que se usasse qualquer tipo de droga poderia morrer. Ninguém era mais careta do que ele. Ninguém era menos apropriado a fazer um disco psicodélico do que ele. Até que ele apresentou à gravadora no final de 1968 um trabalho que começava com “Meu novo cantar” e terminava com “Canto de despedida”. (GUERREIRO, PIMENTEL, 2014, p. 74-5)

A doença que imobilizou Ronnie Von por anos e rendeu inúmeros boatos

sobre sua morte é abordado, porém sem a riqueza de detalhes com a qual Paulo

Cesar de Araújo, por exemplo, narrou o acidente que Roberto Carlos teve na

infância.

Ronnie foi dormir uma noite e acordou com dor violentíssima na perna esquerda. Como vinha de uma laringite que não sarava nem com reza brava do pai, foi para o hospital para fazer exames. Desconfiados, os médicos recomendaram internação. Os sintomas eram estranhos, as dores não cessavam e a suspeita era de câncer de medula. Fez punção lombar, onde o líquido da medula é extraído. Nada foi encontrado. Levou um precioso tempo até ser diagnosticado com neuropatia periférica com origem viral. Tão estranha era a enfermidade que nem era classificada. Com a doença, as defesas do organismo começam a produzir anticorpos de forma descontrolada que ataca e inflama o sistema nervoso periférico em variados graus. Até aí, com o sistema nervoso central íntegro e o periférico completamente inflamado, as dores eram absurdas. Começou com leves doses de demerol, medicação ministrada durante a guerra para aliviar o sofrimento de amputados até partir para doses cavalares. Depois tomava morfina três vezes por dia. Nem assim a dor era suportável. Seu corpo não respondia a nada. Começou a ficar paralisado, até precisar de amparo para tudo, desde ir ao banheiro até higiene. Seguiu na alopatia e começou, por influência do pai, um tratamento alternativo com medicina oriental. Tomava doses de vitamina B12 junto à geleia real, nada popular no Brasil na época.

Page 104: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

104

Nesse período, uma das poucas alegrias foi a visita que recebeu de Roberto Carlos. Mas o sofrimento era tanto, que pediu uma injeção letal ao enfermeiro. Não aguentava mais sofrer. Passados cerca de seis meses, os médicos desistiram e recomendaram que a família o levasse de volta para casa. Seria mais confortável para morrer. Fora desenganado. Cinco jornais em 1980 anunciaram a sua morte. Chegou a receber um telegrama do presidente João Figueiredo. A família, no entanto, nunca desistiu. Em mais seis meses, assim como apareceu, a doença começou a ir embora. Quando ele conseguiu se sentar sozinho na cama, os familiares abriram uma garrafa de champanhe. Começava ali mais um processo que consumiu os três anos seguintes, onde teve que reaprender a andar e ensinar seu corpo que boa parte da sustentação dele dependia de músculos. Perdeu o tônus ao ponto de conseguir quase girar a musculatura da panturrilha em volta da própria perna. Até hoje, Ronnie não sente o dedão do pé esquerdo e não pode fazer certos movimentos, como pisar no pedal do carro para trocar marchas. Mas estava vivo. (GUERREIRO, PIMENTEL, 2014, p. 101-3)

Diante das outras duas biografias analisadas fica mais nítida a ausência de

fontes documentais, como jornais e revistas em “Ronnie Von: o príncipe que podia

ser rei”. Essa conclusão faz com que a segunda hipótese seja confirmada, já que, se

a carência de fontes é perceptível ao leitor, significa que ela compromete o resultado

final. O livro possui dois conjuntos de páginas com imagens, sendo algumas

reproduções de reportagens, porém não há um cuidado em coloca-las

cronologicamente, o que faz com que elas pouco acrescentem ao texto. Além do

mais, a referência a manchetes da mídia certamente facilitaria a aproximação do

leitor ao delicado momento que foi apresentado no último trecho.

Em poucos momentos os autores apresentam depoimentos como

argumentação (como Paulo Cesar de Araújo faz inúmeras vezes em “Roberto Carlos

em detalhes”), então não há real dimensão de quantas e quais pessoas eles

entrevistaram, até porque, ao contrário de Araújo e Monteiro, os biógrafos de Ronnie

Von não trazem ao final do livro a lista de fontes, sejam elas documentais ou

humanas. Uma das raras exceções em que são apresentadas fontes diretamente e

na qual o leitor pode sentir maior profundidade na intimidade do biografado se refere

ao primeiro romance do cantor após se divorciar da esposa Aretuza:

Page 105: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

105

Quando Ronnie finalmente decidiu sair de casa, ele começou a namorar Anna Luiza. Conheceram-se em 1977 no programa de Airton e Lolita Rodrigues e ficaram juntos até 1983. Anna ganhou notoriedade após ter estampado um calendário da Petrobrás, em que mostrava as exuberantes razões que levaram o rico empresário Paolo Berlusconi, irmão caçula do polêmico ex-premiê da Itália, a tê-la como amante. A relação com Anna deixou cicatrizes tão profundas em Ronnie Von que, mais de 30 anos depois da separação, ele simplesmente se recusa a falar o nome da ex-mulher. O cantor fez várias músicas durante esse período como reflexo do conturbado relacionamento. Uma delas é “Prá ser só minha mulher”, junto com Erasmo Carlos. Gravada por ̶ quem diria ̶ Roberto Carlos, a letra dá pistas sobre o que viveram: “Ah, esse amor que me arrasta, me gasta e me faz sofrer./ Mas, me devolve a vida, escondida em quartos que eu não quis dormir./ Ah, esse amor bandido, contido quer me machucar./ Mas, só me traz verdades que a idade toda não consegue dar./ Abra os braços para me guardar, que eu todo vou me entregar, começo meio e fim e a minha cuca ruim./ Aperte a minha mão, esse caminho e a solução pra te levar se quiser, pra ser só minha mulher./ Ah, esse amor selvagem, passagem pra loucura e pra dor./ Mas, eu confio na sorte, eu sou forte como o bicho mais feroz./ Ah, esse amor aflito, que eu grito e ninguém pode ouvir./ Mas, me entrego a um sonho que componho em versos pra você dormir.” Aos 57 anos, morando no Rio, Anna compreende a dor de Ronnie: - Entendo perfeitamente. Realmente, deixei ele bastante magoado da maneira que nos separamos. Eu era menina ainda, mas ao menos fui verdadeira. A seguir, completa dizendo que sente “falta do amor que ele dizia ter por mim”. Anna admite que traía o cantor, mas diz que também era traída, o que é negado por Ronnie. Se devastou o coração de Ronnie, o fim do romance serviu para que o cantor ficasse mais próximo dos filhos. Quem explica é a própria Aretuza: - Quando ele se apaixonou por essa moça, foi viver esse amor. Aí, depois que essa moça largou ele, foi embora. E ele sofreu muito também. Tudo aquilo que eu sofri com ele, ele sofreu por essa moça. Então, o que ele poderia ter para amenizar aquele sofrimento dele? Os filhos. Foi quando eu resolvi, assim, em comum acordo entre a gente, que ele fosse ficar com os filhos. Se antes ficavam a semana comigo e o final de semana com ele, invertemos. Porque aí ele tinha como se distrair, levar as crianças para o colégio. Você sabe como é a cabeça vazia, oficina do demo, né? Então ele tendo com que se preocupar, eu achei que o sofrimento dele seria menor. E foi assim.

Page 106: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

106

Ela não esconde que Ronnie foi o grande amor de sua vida e garante que nunca teve ciúme das fãs. Pragmática, preocupava-se apenas com o sustento da casa. - Olha, eu nunca apareci como mulher dele. Eu já era casada. Casei no cartório, no civil, na Candelária, um casamento lindo, meu vestido tinha dez metros de cauda... e quando a gente resolveu entrar nessa, foi tudo muito conversado. Então eu sabia que do portão para fora era o artista, era de todas as mulheres. Do portão para dentro era meu. Sempre existiu um abismo, mesmo que esse abismo fosse transponível por um passo. Então, lá fora, era o artista. Eu conhecia quando ele fazia o charme de homem e quando fazia o charme de mulher. Então, ciúme, ciúme, realmente eu nunca tive, porque era aquilo que trazia o pão para a minha boca, para a boca dos meus filhos. Eu não poderia ter ciúme de uma coisa da qual eu sobrevivia. Nós vivemos juntos, foram quinze anos, a gente foi um casal muito feliz, muito apaixonado. Aí, de repente, deu uma pirada na vida, a vida deu uma pirada, e as coisas mudaram. Mas enquanto a gente foi casado, a gente foi muito feliz. (GUERREIRO, PIMENTEL, 2014, p. 92-5)

Afora a sensação de que os autores buscam comprovar que Ronnie Von

merecia mais o título de Rei do que Roberto Carlos, pouco se pode afirmar sobre as

motivações e objetivos de Antonio Guerreiro e Luiz Cesar Pimentel. A falta de

preocupação em aprofundar características negativas do cantor sugere uma

intenção de agradar o biografado, talvez a iniciativa não tenha partido deles e a

biografia se encaixe na classificação de encomendada. A página catalográfica do

livro registra que as fotos apresentadas no livro são apenas do acervo pessoal do

músico, o que demonstra uma proximidade extrema entre biógrafos e biografado que

pode ter influenciado no resultado e que nos leva às primeiras e terceiras hipóteses.

Apesar de resgatar a história de Ronnie Von de sua origem familiar até os

dias atuais, a biografia não o torna um ser próximo e íntimo do leitor. Ao mesmo

tempo, a falta de apego cronológico (não apenas em fotos) pode tornar a leitura

confusa e exaustiva. Vale ressaltar que, das três biografias analisadas, esta é a

única escrita a quatro mãos, fato que, ao mesmo tempo, pode trazer benefícios e

dificuldades. Outra peculiaridade é que, dos três biografados, Ronnie Von foi o único

a estar realmente envolvido com a produção biográfica, participando, inclusive, da

sessão de lançamento do livro16.

16 Reportagem de referência: “’Tem ex-mulher que vai se aborrecer comigo’, diz Ronnie Von sobre

biografia”, do portal UOL, disponível em:

Page 107: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

107

5.2 CENÁRIOS E BASTIDORES: LEITURA COMPARATIVA DAS BIOGRAFIAS

Após a análise individual da estrutura de cada biografia, faz-se necessário

uma leitura comparativa entre elas, especialmente porque o ponto que as uniu na

proposta desta monografia foi o contexto histórico. Os três personagens são

referências do movimento Jovem Guarda, o qual aconteceu logo nos primeiros anos

da ditadura militar brasileira. Sendo assim, os primeiros pontos a serem comparados

são os cenários. O objetivo aqui é reconhecer onde e como a ditadura militar é

abordada pelos biógrafos, reconhecendo assim o cuidado usar o contexto histórico

brasileiro no registro da vida dos três personagens. No que se refere à Jovem

Guarda, a intenção é perceber como é feito o registro do movimento e, mais que

isso, o papel dos personagens nele.

A relação entre os três também pesou para a escolha das biografias, então é

válido identificar os pontos de encontro dos três biografados. Aqui a questão-guia é:

Como cada biógrafo retratou os outros dois personagens em seu trabalho? Sendo

assim, além de ressaltar a relação do trio, a intenção é identificar as diferentes

perspectivas das mesmas situações e relações, assim como tornar mais nítidas as

características de escrita de cada biógrafo. Este momento será dividido em três

encontros: Carlos Imperial e Roberto Carlos; Roberto Carlos e Ronnie Von; e Ronnie

Von e Carlos Imperial.

5.2.1 Cenário político: a ditadura militar

Paulo Cesar de Araújo e Denilson Monteiro não escapam da ditadura militar

como tema e isso é perceptível nas análises individuais feitas anteriormente.

Enquanto a biografia de Carlos Imperial começa com sua prisão pelo Dops, a

relação de Roberto Carlos com a política rende um capítulo inteiro no livro de Araújo.

No entanto nesta leitura comparada nos cabe identificar as referências históricas

enquanto cenários na vida dos biografados.

Em diferentes momentos a ditadura aparece em “Roberto Carlos em

detalhes”, até porque o cantor e compositor se tornou o principal nome musical da

<http://celebridades.uol.com.br/noticias/redacao/2014/08/02/tem-ex-mulher-que-vai-se-aborrecer-

comigo-diz-ronnie-von-sobre-biografia.htm>, acesso em 24 de abril de 2016.

Page 108: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

108

época sem ter desavenças com o governo militar, pelo contrário. Ao narrar a

chegada de Roberto Carlos após a vitória no Festival de San Remo 1968 com a

canção “Canzone per te”, de Sergio Endrigo, Paulo Cesar de Araújo ressalta como o

fato se tornou um dos primeiros casos do ufanismo nacional que preencheu boa

parte da década de 70.

Às onze horas, sol quente, a multidão crescia e já não respeitava mais os cordões de isolamento. Aos poucos, ia invadindo a pista do aeroporto. Os alto-falantes anunciavam a cada cinco minutos que às doze horas Roberto Carlos iria desembarcar em Congonhas. E, com uma pontualidade inglesa, o Caravelle da Cruzeiro despontou na cabeceira da pista. Como numa operação de guerra, quarenta soldados agrupados em círculo foram correndo em direção ao avião. Aos gritos, os fãs se lançavam contra as cordas de isolamento. Fotógrafos disputavam aos empurrões um melhor ângulo para a fotografia. O policiamento foi reforçado e ficou ainda mais violento. Houve empurrões, cacetadas, socos, gente espremida. No corre-corre e confusão. algumas meninas caíram na pista, se feriram, outras quase foram atingidas pelas asas do Caravelle. Centenas de pessoas foram atendidas no ambulatório do aeroporto. Com muita dificuldade, a escada foi colocada à porta do avião, que ainda permaneceu fechada por mais de dez minutos. Quando finalmente Roberto Carlos apareceu na porta do avião, as aeromoças gritavam pedindo passagem, os guardas gritavam, o povo gritava. Loucura total no aeroporto de Congonhas. [...] Para além da alegria sincera dos fãs e admiradores do cantor, essa monumental recepção a Roberto Carlos foi o primeiro reflexo do ufanismo coletivo que iria caracterizar os anos de chumbo da ditadura militar no Brasil. Reportagens da imprensa e manifestações de comunicadores de rádio e TV celebravam aquele triunfo em um tom grandiloqüente e por mais de uma vez se afirmou que em San Remo “a Europa curvou-se ante o Brasil”. O empresário Marcos Lázaro captou esse clima na época ao afirmar que “a vitória do artista brasileiro teve um sabor e uma sensação só comparáveis à conquista de uma copa do mundo”. De fato, o clima de catarse coletiva que cercou o desembarque de Roberto Carlos, especialmente em São Paulo, só tinha paralelo com a chegada dos jogadores da seleção brasileira após as conquistas das copas do mundo de 1958 e 1962. Aquilo extrapolava a mera conquista individual de um artista e parecia saudar uma conquista coletiva do povo brasileiro. Se, no universo do futebol, o Brasil era definido como a pátria das chuteiras, diante daquela vitória de Roberto Carlos

Page 109: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

109

em San Remo, mais do que nunca o Brasil parecia a pátria do microfone. E isto chegou em boa hora para o governo militar brasileiro, que, desde que se instalara no comando do país, em abril de 1964, desejava alguma conquista internacional para insuflar a onda nacionalista, tão do agrado dos regimes autoritários. A primeira oportunidade que a ditadura teve foi com a participação do Brasil nas Olimpíadas de Roma, em junho de 1964, mas os nossos atletas voltaram sem conseguir uma mísera medalha. A outra grande chance foi a Copa do Mundo da Inglaterra em 1966, quando se esperava que o Brasil conquistasse o tricampeonato mundial de futebol. Entretanto, Pelé, Garrincha, Gérson, e companhia fracassaram e a seleção não passou da primeira fase da competição. Nesse quadro de derrotas, a vitória de Roberto Carlos em San Remo serviu de alento para levantar o moral do brasileiro e fazê-lo andar outra vez de cabeça erguida. A monumental recepção ao cantor foi o primeiro evento não oficial do regime militar em que os símbolos da pátria foram exibidos à exaustão. Como se fosse uma parada de Sete de Setembro, houve uma farta distribuição de bandeirinhas verde-amarelas para o público presente no aeroporto. Era como se Roberto Carlos tivesse mesmo ganhado a taça do mundo para o Brasil. (ARAÚJO, 2006, p. 165-6)

Já Denilson Monteiro, escapa do humor que guia a biografia de Carlos

Imperial para fazer um resgate histórico do golpe militar, ressaltando a indiferença

com a qual seu personagem viu a mudança de governo. Nesse caso, ao apresentar

o cenário e o pouco interesse de Imperial, o biógrafo apresenta outra característica

do agente cultural e compositor, o que dá mais peso à prisão pelo DOPS,

apresentada logo no início do livro.

Às 4 da tarde do dia 1º de abril, Pinheiro Júnior, o jornalista amigo de Imperial, chegou à redação da “Última Hora” sem ter conseguido cobrir as vaias e ameaças de agressão contra o governador de Pernambuco e aliado de João Goulart, Miguel Arraes, durante um comício em Juiz de Fora. Na véspera, Pinheiro e sua equipe haviam sido detidos pelo Exército, tendo sido liberados apenas na manhã daquele dia. Ao voltar, o jornalista percebeu que algo sério estava acontecendo quando soube que um regimento de Minas Gerais se encontrava no Rio de Janeiro. Logo que entrou na cidade, viu os tanques do general Mourão Filho por todo lugar. Era a Revolução Redentora, nome que os militares usaram para chamar o golpe contra Goulart. Por volta das 4h30, enquanto terminava de datilografar uma matéria, seu colega Moacyr Werneck avisou:

Page 110: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

110

- O Carlos Lacerda está na TV Rio insinuando que a “Última Hora” deve ser quebrada. É melhor todo mundo ir embora, pois quem ficar vai se dar mal. Depois do suicídio de Getúlio, Lacerda viu a opinião pública, que colocara contra o presidente, considerá-lo responsável pela tragédia. Temendo por sua vida, deixou o país por uns tempos. Voltou, e em 1955 tentou impedir a posse de Juscelino. Não conseguiu, mas como deputado pela UDN continuou com sua virulenta oposição. Na eleição de 1960, apoiou Jânio, mas como governador do recém-criado estado da Guanabara, foi apontado como uma das “forças ocultas” responsáveis pela renúncia. Seria ilusão imaginar que o “derruba presidentes” tornaria a vida de João Goulart um leito de rosas. Sua participação no golpe foi intensa, e naquele 1º de abril Lacerda aproveitava para ir à forra contra a “Última Hora”, e seu dono e arqui-inimigo, Samuel Wainer, um simpatizante de Jango, assim como fora de JK e Vargas. Mais do que depressa o grupo em que Pinheiro estava deixou o jornal. Na Praça da Bandeira avistaram pessoas que aparentavam atender aos apelos de Lacerda entrando na Rua Sotero dos Reis, onde ficava o prédio da “Última Hora”. No dia seguinte, o repórter ligou para saber se havia alguém vivo no local. Felizmente atenderam o telefone, mas soube que quem permaneceu no local apanhou. A Rádio Mayrink Veiga, onde também trabalhava e que tinha o cunhado de Jango, Leonel Brizola, como um dos sócios, teve seus transmissores lacrados para sempre. Jango estava no Rio de Janeiro, mas partiu para Brasília, e em seguida para o Rio Grande do Sul. Informado de que os golpistas eram apoiados pelo governo americano, descontente com o reatamento das relações diplomáticas do Brasil com a União Soviética, Goulart desistiu da intenção de resistir, mesmo com a insistência de Brizola para que optasse pelo confronto. Temia uma guerra civil. Abandonou o país indo exilar-se no Uruguai. No dia 15 de abril de 1964, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco assumiu a presidência da República, eleito, indiretamente, por um Congresso com vários de seus integrantes contrários à “Redentora” devidamente afastados. A não ser pelo fechamento da Rádio Mayrink Veiga, onde os cantores do “Clube do Rock” se apresentavam nos programas de Jair de Taumaturgo, Imperial não deu a menor importância à mudança de governo. Nem ele, nem seus artistas. A preocupação daqueles jovens era ter um contrato com uma gravadora, arranjar shows em que o empresário não fosse picareta, e um dia comprar um teto para morar. Aqueles acontecimentos eram muito distantes da realidade em que viviam. Um golpe de estado no Brasil ou na Romênia não fazia muita diferença para eles. (MONTEIRO, 2015, p.132-3)

Page 111: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

111

Mesmo abordando um tema que, então, era de completo desinteresse de

Carlos Imperial, seu biógrafo tomou um conhecido do biografado como testemunha

dos fatos. Ou seja, manteve a perspectiva próxima a Carlos Imperial, também

fazendo alusão a um dos únicos pontos que a mudança de governo afetou seu

trabalho. Retomando a conclusão de que o texto de Monteiro é muito próximo ao de

um romance, o golpe militar aparece como contexto, cenário das peripécias do

personagem, mesmo que este não tome conhecimento dele.

Já os biógrafos de Ronnie Von fizeram raras referências à ditadura militar, em

maioria curtas, sendo a mais extensa sobre o delegado Fleury, do Dops, que em

determinado momento auxiliou o músico, quando este era vítima de ameaças contra

sua família.

Foi um anúncio de morte comemorado efusivamente com palmas e rojões por dezenas de milhares de pessoas reunidas naquele 1º de maio de 1979. Não era para menos. O AI-5, Ato Institucional arbitrário do governo militar, havia sido extinto quatro meses antes, as greves proliferaram pelo país e a permissão à volta ao pluripartidarismo tomava corpo no comício do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, com o lançamento do manifesto da fundação do Partido dos Trabalhadores. Assim, quando o jornalista Juca Kfouri anunciou ao microfone a morte de Sérgio Fernando Paranhos Fleury, muitos foram às lágrimas (de contentamento) no comício. Fleury era o mais conhecido perseguidor de opositores ao regime militar, que vigorava havia 15 anos. Delegado de formação, foi convidado a exercer a função do temível Dops (Departamento de Ordem Política e Social) em 1968. Para ele não havia diferença entre contraventor político e social ̶ tratava a todos como bandidos, e os relatos de tortura que praticava ou ordenava preenchem quilômetros de fichas históricas do período do país. Fleury estreou no famoso Congresso de Estudantes de Ibiúna, em que centenas foram presos. Participou direta e ativamente da emboscada ao inimigo número um do regime, o baiano Carlos Marighella, quando ele foi morto na alameda Casa Branca, no bairro dos Jardins, em São Paulo, em 1969, e é apontado como líder do Esquadrão da Morte, que precisa de apresentações formais. Com todo esse currículo, foi condecorado com a Medalha do Pacificador pelo Exército Brasileiro e como Amigo da Marinha. Os três poderes se cruzaram quando o aviador Ronnie Von procurou ajuda da polícia, em 1976, por conta de ameaças que sua família vinha sofrendo. Começou com a presença rotineira de um Fusca cor de vinho, que passava insistentemente à

Page 112: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

112

frente da casa do músico em baixa velocidade. Não era possível identificar os ocupantes, mas o bairro do Morumbi, em São Paulo, era bem mais ermo que atualmente, e qualquer presença de veículo era notada. Ainda mais um chamativo como aquele. Até o dia em que a casa do cantor foi invadida, mas Alessandra, de seis anos, Ronaldo, de cinco anos, e Aretuza, mulher de Ronnie e mãe dos dois, não estavam em casa. Nada de valor foi levado. Pareciam estar apenas marcando território, ou algo do tipo. Dois dias depois, nova tentativa de invasão. Mas dessa vez a casa estava ocupada, menos por Ronnie, que viajava, e Aretuza e os filhos tiveram que pular o muro da residência e buscar o refúgio no vizinho. Ronnie voltou e deu um basta. Mexeu os pauzinhos da fama e logo seu caso estava na mesa mais quente do comando da polícia. Ainda era recente o sequestro que o embaixador norte-americano Charles Elbrick sofrera pela união de forças dos movimentos opositores ao regime, Ação Libertadora Nacional (ALN), criada por Marighella, e o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), quando utilizaram o diplomata em troca da libertação de presos políticos. Fleury montou aparato na casa de Ronnie: jardineiros, mordomos, copeiros, todos estranhamente armados até os dentes. Um funcionário dormia no quarto de Ronaldo, outro, no de Alessandra. A ordem era para que nenhum morador ficasse dando sopa na janela. O cerco não durou muito, coisa de duas semanas, até que a família Nogueira foi avisada que o “perigo havia passado”. Policiais comentaram com eles, sem entrar em detalhes, que a dispersão do grupo, do qual constavam supostamente sequestradores chilenos, não foi das mais pacíficas. (GUERREIRO, PIMENTEL, 2014, p. 83-5)

Fora essa referência, diretamente ligada ao músico, pouco se fala na política

brasileira. O contexto inicial do livro, referente ao nascimento de Ronnie Von, é feito

com base na Operação Valquíria, que tinha por objetivo matar Hitler. Em outro

momento há também uma contextualização extensa, porém relacionada a futebol,

mais especificamente à Copa do Mundo de 1966.

Sabendo que a ditadura militar brasileira é o ponto histórico mais importante

da história nacional recente, usá-la como contexto para a biografia de qualquer

personalidade que tenha vivido o período é necessária. As limitações impostas pela

ditadura refletem diretamente no modo de vida das pessoas, portanto optar por não

se aprofundar no tema é um tanto prejudicial, tanto para a compreensão total dos

fatos, quanto para a credibilidade dos autores.

Page 113: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

113

Uma das principais críticas a Roberto Carlos é sua falta de posicionamento

em relação ao governo militar, porém seu biógrafo não deixou de lado o assunto, já

que é essencial para o contexto e, direta e indiretamente, dá mais detalhes sobre a

personalidade biografada. O mesmo em relação a Carlos Imperial. Apesar de manter

o humor no seu modo de escrita, Monteiro dedica-se a apresentar o reflexo do golpe

militar para a mídia e para os músicos, duas áreas de atuação de seu biografado. As

raras referências ao assunto em “Ronnie Von: O príncipe que podia ser rei” tornam

mais fraco o produto final de Guerreiro e Pimentel, os quais, enquanto jornalistas,

deveriam ter consciência da importância histórica-cultural do fato.

5.2.2 Cenário musical: a Jovem Guarda

O ponto comum dos personagens é o movimento Jovem Guarda. Apesar de

apenas um deles (Roberto Carlos) ter feito parte do programa de mesmo nome, os

outros dois também foram referência no período. Carlos Imperial foi quem primeiro

abriu espaço para a maior parte dos artistas que se destacaram na atração da

Record, enquanto Ronnie Von foi o único capaz de competir com a popularidade de

Roberto Carlos, principal apresentador do programa e maior nome do movimento.

Sendo assim, é imprescindível comparar como o movimento é citado pelos

biógrafos, pois, apesar de equivaler a um curto período de tempo na vida dos

personagens (o programa durou quase três anos), ele foi fundamental na carreira de

cada um deles, do mesmo modo que os papéis individuais dos três foram

referências para a juventude da época.

Como dito anteriormente, Roberto Carlos foi o principal nome do movimento

Jovem Guarda. Além de ser o líder do programa que apresentava ao lado de

Erasmo Carlos e Wanderléa, foi responsável por músicas que viraram ícones da

geração, entre elas “Quero que vá tudo pro inferno”, canção que uniu diferentes

públicos e atraiu mais espectadores para o programa Jovem Guarda e,

consequentemente, para o movimento, além de criar discussões na sociedade.

O programa era transmitido ao vivo para São Paulo e em videoteipe para outras capitais do país ̶ e não necessariamente no domingo à tarde. Em Belo Horizonte, por exemplo, o teipe ia ao ar sábado à noite. A gravação era feita com três câmeras fixas: duas nas laterais e a outra no meio, mudando apenas as

Page 114: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

114

lentes. Ao contrário de hoje, quando o público do auditório é mero figurante dos programas de TV, naquela época privilegiava-se muito a platéia presente e por isso soava desrespeitoso colocar câmeras, fios e microfones atravessando na frente das pessoas. As câmeras ficavam paradas e quem estava no auditório assistia àquele programa como se fosse feito especialmente para a platéia, não para o público de casa diante da televisão. O Jovem Guarda já estava no ar havia algumas semanas e quase ninguém tinha tomado conhecimento disso no Rio. Naquele tempo Rio e São Paulo eram ainda dois mundos distantes. Mesmo entre os artistas de rock, poucos sabiam da existência do novo programa. Foi o caso, por exemplo, do guitarrista Renato Barros. Numa certa tarde, ele estava em casa dormindo quando um senhor alto, de terno, bateu à porta procurando-o. Seu pai atendeu até preocupado, pensando que fosse algum oficial de justiça. Era um representante da TV Record convidando a banda Renato e seus Blue Caps para ir a São Paulo assinar um contrato de participação no programa Jovem Guarda: “Jovem Guarda? Quem participa desse programa?”, quis saber Renato. Quando lhe foi informado que alguns dos participantes eram Roberto Carlos, Erasmo e Wanderléa, a sua surpresa foi ainda maior. Afinal, eram todos amigos seus e a banda costumava tocar nos discos de todos eles. “Até hoje não entendi porque ninguém me contou nada na época.” Na verdade, tudo aconteceu muito rápido e nem tinha havido tempo de todos serem informados. Mas, aos poucos, Roberto Carlos foi escalando no programa sua turma de amigos do Rio. “Me lembro que Roberto sempre dizia que no dia que tivesse um programa nós todos seríamos chamados”, afirma Renato Corrêa dos Golden Boys, grupo que logo depois também foi convidado. Na época não era comum o uso de gírias na televisão. O recomendado era apresentar os programas usando uma linguagem mais formal, bem comportada. Roberto Carlos decidiu subverter essa regra no Jovem Guarda. “Queríamos apresentar o programa da maneiro mais natural possível, do jeito que falávamos na rua”, justifica o cantor. A partir daí ele propagou gírias como “é uma brasa mora”, “papo firme”, “barra limpa”, “bidu”, “carango”, “goiabão” e “tremendão”. Aquele momento lindo que hoje o cantor chama de “emoções”, na época era um “sentimento bárbaro”. Com exceção de “é uma brasa, mora”, nenhuma dessas gírias foi criada por Roberto Carlos ou por alguma agência de publicidade. O cantor simplesmente adotava e divulgava o que ia ouvindo no seu cotidiano. A expressão “barra limpa”, por exemplo, Roberto Carlos ouviu de Jorge Ben e decidiu divulga-la no programa. Um caso curioso é o da expressão “Vem quente que eu estou fervendo”. Tratava-se de uma gíria do mato, mais especificamente do Vale do Jequitinhonha, interior de Minas

Page 115: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

115

Gerais, onde nasceu o cantor Eduardo Araújo. Certa vez ele estava de férias na fazenda da família e observava seu irmão negociar cabeças de gado com outro fazendeiro. “Eu te pago trinta mil, mas refugo cinco cabeças de gado que não me interessam”, propôs seu irmão. “De forma nenhuma, você pode refugar apenas duas cabeças. E se o negócio estiver bom pra você pode vir quente que eu estou fervendo”, retrucou o fazendeiro. Naquele momento Eduardo Araújo percebeu que aquela gíria ficaria bem numa música. E foi ali mesmo na fazenda que compôs a primeira parte do rock Vem quente que estou fervendo ̶ concluído depois em parceria com Carlos Imperial. Além de divulgar canções, frases e gírias, o programa também serviu para denunciar o ambiente repressor em que os jovens da época viviam. A produção recebia várias cartas e muitas delas eram denúncias contra diretores de escolas que não estavam deixando alunos cabeludos freqüentarem a sala de aula. Roberto ou Erasmo ia para o palco e lia a carta de protesto, provocando uma vaia generalizada quando era pronunciado o nome do diretor ou do colégio. O protesto causava repercussão porque no dia seguinte a imprensa ia para a porta da escola entrevistar alunos e professores. “A gente era porta-voz destas coisas todas porque na época havia uns tabus muito imbecis”, diz Erasmo Carlos. Mas havia também momentos do programa mais inconseqüentes. Por exemplo, quando Roberto Carlos provocava o auditório com gestos, tapando os ouvidos com as mãos depois de atirar uma granada fictícia no fundo da platéia. Em novembro de 1965, Roberto Carlos entrou no estúdio para gravar o seu quinto álbum, Jovem Guarda. A idéia de batizá-lo com o mesmo título do programa foi do chefe de divulgação da CBS, Othon Russo, sob o argumento de que isto reforçaria tanto a venda do disco como a audiência do programa. O produtor Evandro Ribeiro concordou e Roberto Carlos, embora continuasse achando aquele nome meio esquisito, não se opôs. E não tinha mesmo com o que se preocupar, porque o importante daquele disco não seria o título nem a capa, e sim o repertório, que tinha Lobo Mau, Mexerico da Candinha, Pega ladrão, Não é papo pra mim e, principalmente, a faixa de abertura Quero que vá tudo pro inferno. Nessa gravação, Roberto Carlos foi mais uma vez acompanhado pela banda Youngster, mas sem o uso do sax de Sérgio Becker. O complemento da base ficou novamente com o órgão de Lafayette. O sucesso da música começou dentro da própria CBS. Todos comentavam e queriam ouvir a fita com a nova gravação. Fato pouco comum, até o pessoal do escritório ia à sala da técnica para ouvir Quero que vá tudo pro inferno [grifo do autor]. E todos diziam que a música seria um sucesso. Evandro Ribeiro dizia isso; Lafayette dizia; o técnico Jair Pires dizia. E todos se enganaram, porque ela não foi apenas um

Page 116: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

116

sucesso. Foi a de maior impacto popular na história da música popular brasileira. Até então, nenhuma outra canção lançada no Brasil tinha causado tanta polêmica e repercussão. “Quero que vá tudo pro inferno foi o fenômeno de massa mais intenso que eu vi na minha geração”, afirma Caetano Veloso. A rigor, essa gravação não foi lançada, explodiu. Na época um padre carioca, Antônio Neves, reagiu antes mesmo de ouvir a nova canção. “Eu levei um choque quando soube do título dela: Quero que vá tudo pro inferno. Imagine se a mocidade toda começa a cantar isso!”. Uma canção que assustava alguém apenas com a leitura de seu título, o que não poderia provocar quando todos começassem a ouvir o refrão com aquelas mesmas palavras? “Para a época, aquilo foi realmente uma coisa muito forte, agressiva. É como se hoje fosse lançada uma música com o refrão ‘quero que vá tudo pra puta que pariu’”, compara a cantora Wanderléa. Essa comparação é pertinente, mas, talvez, depois da liberação dos costumes e de tantas outras músicas com o tema da libertinagem, um puta que pariu hoje causasse menos impacto do que o provocado pela canção de Roberto Carlos em 1965. “Aquilo assustou muita gente naquele ambiente de forte religiosidade. Lembro que havia um comentário geral das pessoas criticando Roberto: ‘esse cara não tem o direito de dizer isso’”, afirma o cantor Wando. De fato, Quero que vá tudo pro inferno atingiu em cheio a sensibilidade de um país sufocado pela repressão moral, política e social. Enfim, uma sociedade reprimida que, de repente, foi tomada por uma canção com um grito de guerra arrebatador. A canção provocou e perturbou os setores conservadores da sociedade brasileira. Na época, muitas emissoras de rádio se recusaram a tocar a música por determinação do proprietário, numa censura interna motivada por razões religiosas. (ARAÚJO, 2006, p. 136-8, grifos do autor)

O biógrafo ainda resgata o reflexo da canção de Roberto Carlos na audiência

do programa Jovem Guarda, destacando assim seu papel para aumentar a

abrangência de público.

O estouro da música chamou a atenção da grande mídia do país para o grupo de jovens cantores que se reunia nas tardes de domingo da TV Record em São Paulo. E não mais apenas o público adolescente, mas também adultos, pais, autoridades, todos queriam ver a imagem daquele cantor que ousadamente mandava tudo pro inferno. A repercussão da música alavancou a audiência do programa Jovem Guarda, que por sua vez amplificou ainda mais o sucesso da canção. Nota-se que o programa estreou em agosto de 1965 com uma audiência apenas razoável de 15,5%. E assim se manteve até o final de

Page 117: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

117

novembro, quando então foi lançado Quero que vá tudo pro inferno [grifo do autor]. A partir daí, os índices de audiência começaram a crescer, alcançando o pico de 38% no mês de abril de 1966. O programa Jovem Guarda tornou-se assim, definitivamente, uma brasa, mora? (ARAÚJO, 2006, p.141, grifos do autor)

Com seu estilo de escrita muito próximo ao do estilo reportagem, Araújo

detalha os diferenciais do programa Jovem Guarda, sua estrutura e seu público,

para só então trazer a música que chamou a atenção da sociedade para o

movimento de jovens roqueiros que acontecia intensamente em São Paulo e no Rio

de Janeiro.

Já Carlos Imperial não teve relação direta com o programa, sua influência

para o movimento foi a ajuda e os ensinamentos que deu aos garotos que sonhavam

em ser astros de rock. Além de Roberto e Erasmo Carlos, deu a mão para outros

nomes que se tornaram ícones do movimento, sem falar que compôs músicas que

foram sucessos no período. São esses momentos que Denilson Monteiro registra no

livro.

[...] em setembro, Império, ligou para Renato Barros: - Grande figura, eu vou estrear um programa diário na TV Rio, vai se chamar “Brotos no 13” e quero os Blue Caps participando dele. - Imperial, não vai dar pra participar. O conjunto terminou, eu nem tenho mais instrumentos. - Vamos conversar sobre isso, vem agora aqui pra casa. Depois da gravação de “Splish Splash”, Renato e Seus Blue Caps assinaram contrato com a CBS, mas entraram na inatividade. Imperial aparecia com a proposta de um retorno, e o guitarrista não desperdiçá-la. Tomou um ônibus e foi à Miguel Lemos. Chegando lá encontrou Imperial sentado à enorme mesa da sala de jantar deliciando-se com uma Coca-Cola tamanho família. Renato nem teve tempo de cumprimentá-lo, pois já foi ouvindo. - Você vai a São Paulo falar com o senhor Giorgio Giannini. Leva estes dois cheques em branco e traz tudo o que você acha que precisa. Agora, se ficar faltando alguma coisa o problema vai ser teu. Se precisar de um parafuso que seja, você traz. Porque se ficar faltando, você tá fodido. - Mas é assim, Imperial, eu já vou pra São Paulo? - É, leva estes dois cheques e fala que é a mando de Carlos Imperial. Traz tudo! Tu-do! Renato não entendeu o porquê dos dois cheques, mas seguiu as orientações de Carlos. Pela primeira vez na vida andou de

Page 118: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

118

avião. Já em São Paulo, do aeroporto de Congonhas tomou um táxi pedindo ao motorista que o levasse à Alameda Olga 414, onde ficava a loja de instrumentos musicais Giannini. Chegando lá, falou com o dono do estabelecimento. - Seu Giorgio Giannini? - Sim. - Eu sou Renato Barros, vim a mando do Carlos Imperial. - Tudo bem, ele já ligou avisando. Do que você vai precisar? - É muita coisa... - Fique à vontade. A melhor guitarra que Renato teve foi fabricada por ele mesmo no quintal de sua casa lá na Rua Padre Nóbrega. Claro, depois teve a possibilidade de usar os instrumentos do estúdio da CBS, mas infelizmente não eram dele. A variedade de instrumentos da loja do Sr. Giannini fez com que se sentisse como uma viúva sexagenária diante dos doces da Casa Cavé. O rapaz começou separando três amplificadores (dois de guitarra e um de baixo); depois duas guitarras de modelo semelhante ao da americana Fender stratocaster; um baixo elétrico, e até uma bateria. O dono da loja mandou separar todo o material e colocar numa Kombi. Depois perguntou pelo cheque de que Imperial havia falado. Renato lhe entregou, ele somou toda a despesa, preencheu e lhe deu a nota fiscal. Com tudo acertado, era hora de voltar para o Rio. No aeroporto, Renato foi avisado de que havia excesso de bagagem. Para seus instrumentos poderem embarcar, seria necessário pagar uma taxa. Foi aí que entendeu o porquê do segundo cheque dado por Imperial. Falou com o fiscal que pagaria com um cheque de terceiro, que foi aceito sem nenhuma contestação. Renato tomou o avião custando a acreditar que estava prestes a liderar o mais bem equipado conjunto de rock do Rio de Janeiro. A estreia de “Brotos no 13”, no dia 20 de julho de 1964, contou com a participação da cantora italiana Rita Pavone, que brilhava no mundo inteiro com “Datemi Un Martello”, e visitava o país. Os paulistas do The Clevers [que mais tarde se chamaria Os Incríveis] a acompanhavam na turnê brasileira. O conjunto tinha ótima técnica e instrumentos de topo de linha. Foi essa a razão de Imperial mandar Renato a São Paulo, queria os músicos do seu programa fazendo bonito diante dos convidados. E os reagrupados Blue Caps ̶ com exceção de Erasmo, agora em carreira solo ̶ deram conta do recado. (MONTEIRO, 2015, p. 133-5)

Além de ser responsável pela reunião de Renato e seus Blue Caps, uma das

principais referências do movimento Jovem Guarda, Imperial também foi o

incentivador para uma das canções mais conhecidas do grupo.

Page 119: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

119

“Brotos no 13” começava sempre com Renato e Seus Blue Caps tocando. Numa noite, antes do programa começar, Imperial chegou trazendo um compacto com uma música com um X marcado a caneta. Chamou Renato para conversar num botequim em frente à TV Rio. Queria que tocasse a tal música na noite seguinte. Renato olhou o nome do conjunto, chamava-se The Beatles. Nunca ouvira falar neles. - Renato, esse conjunto é sucesso no mundo todo, menos aqui no Brasil. Eu quero que os Blue Caps abram o programa de amanhã com essa música deles. - Imperial, isso é impossível! Não vai dar tempo. Mesmo assim o guitarrista levou o compacto para casa. A canção se chamava “I Should Have Known Better”. Renato achava difícil decorar numa única noite a letra em inglês e ainda ensaiar com o resto do conjunto. Resolveu fazer uma versão em português que nada tinha a ver com a letra original. Deu-lhe o nome de “Menina Linda”. Antes de começar o programa da TV, explicou a situação para Imperial: - A música tá mais ou menos ensaiada, e eu vou precisar que você faça uma “dália” bem grande para eu poder ler. Ainda não sei direito a letra que fiz. - Tudo bem. Imperial mandou Ângelo Antônio escrever a letra numa cartolina e posicioná-la estrategicamente no palco. Os Blue Caps tocaram a música sem maiores problemas e a “cola” fez com que Renato cantasse a letra sem tropeços. Assim que o programa acabou, ele e os demais integrantes foram para o botequim da Joaquim Nabuco. Enquanto tomava um cafezinho, Imperial chegou e batendo nas suas costas começou a gritar: - Fala assim, fala: Carlos Imperial é foda! Fala! Fala! Fala! Carlos Imperial é foda! - O que tá acontecendo? Por que você tá falando isso? Império mostrou um bolo de papéis que trazia na mão e explicou: - Olha, isto aqui, cara. São pedidos para repetir a música! Olha aqui o que é sucesso! Eu sou foda! Eu sou foda!!! Renato ainda estava terminando seu primeiro LP na CBS, e Imperial sugeriu que ele encaixasse “Menina Linda”. A sugestão foi aceita, e a canção tornou-se o grande sucesso de “Viva a Juventude!”. Algum tempo depois, a versão com os Beatles era executada nas rádios brasileiras. Mas muita gente achava que os ingleses haviam gravado a música de Renato e Seus Blue Caps, que no Brasil vendeu mais do que eles. (MONTEIRO, 2015, p. 137-9)

O cuidado em detalhar esses momentos de Imperial com Renato Barros, um

dos grandes nomes da Jovem Guarda - inclusive como compositor, atesta a

profundidade de pesquisa do biógrafo e, mais que isso, a preocupação em registrar

Page 120: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

120

a influência de Carlos Imperial para o movimento que ainda serve de referência para

muitos músicos nacionais. Além de ter dado auxílio aos jovens artistas muito antes

de surgir a ideia do programa Jovem Guarda, ele ‘comprou a briga’ com o pessoal

da MPB e saiu em defesa de seus pupilos (aproveitando para manter seu nome na

mídia)

“Jovem Guarda” deixara de ser apenas um programa, e passou a ser classificado como um movimento. Mas muita gente não engolia isto. Consideravam-no apenas um grupo de cabeludos alienados vestindo roupas de gosto duvidoso que cantavam músicas de baixa qualidade. A oposição começava dentro da própria TV Record. Depois de gravar sem muita vontade “Viva a Brotolândia”, no ano seguinte, Elis Regina conseguiu fazer seu disco com boleros, cujo resultado também não foi como desejara. Somente na sua quarta vinda ao Rio de Janeiro, em 1964, a gauchinha começou a se encontrar musicalmente. Foi levada ao Beco das Garrafas, onde passou a se apresentar, o que deu novo estímulo à sua carreira. Depois, em São Paulo, deu vários shows, até que, em 1965, “Arrastão” (Edu Lobo e Vinícius de Morais), canção interpretada por ela, sagrou-se vencedora do I Festival Nacional de Música Popular Brasileira (TV Excelsior). Seu desempenho na competição foi elogiado, e ela ficou conhecida no Brasil inteiro. Após o show “Elis, Jair e Jongo Trio”, no Teatro Paramount, ela e o cantor Jair Rodrigues foram contratados para apresentar na TV Record o programa “O Fino da Bossa”, que se tornou um campeão de audiência, e a alçou a categoria de estrela de primeira grandeza na emissora. Há muito Elis deixara de ser aquela menininha que Imperial mandara trazer de Porto Alegre, mas uma coisa não mudara nela, sua antipatia pelo rock’n roll. Não importava que o nome houvesse mudado, que agora fosse iê-iê-iê, ela não gostava mesmo do ritmo. Chegou a participar como convidada do “Jovem Guarda”, recebendo aplausos entusiasmados do Rei Roberto. Mas à revista “Intervalo” declarou: “Esse tal de iê-iê-iê é uma droga! Deforma a mente da juventude”. Em 17 de julho de 1967, ela, Gilberto Gil (jovem compositor que havia descoberto), Jair Rodrigues, Edu Lobo e Geraldo Vandré, entre outros, participaram de um ato em defesa das nossas raízes musicais, que ficou conhecido como “A Passeata contra a guitarra”. Na verdade, uma ideia de Paulo Machado de Carvalho, diretor da Record, que trazia por trás a intenção de promover uma nova atração da emissora, o programa “Frente Única”, que seria apresentado pelos artistas da casa. Porém, ao que parece, a rapaziada jovenguardista levou a coisa a sério. Principalmente Imperial, que viu nisso uma ótima oportunidade para continuar em evidência na imprensa e dar

Page 121: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

121

uma cutucada em Elis, que nunca mencionava seu nome quando o assunto era o início de sua carreira. Em agosto, a capa de “O Cruzeiro” trazia Imperial, Roberto e Erasmo, o “estado maior do iê-iê-iê”, disposto a dar um chega pra lá em seus detratores. Os três afirmavam que os artistas da “velha guarda” os apoiavam, que suas músicas eram simples, mas alegravam o povo, e por isso faziam sucesso. Sobre Elis Regina, Imperial declarou: - Elis é uma das nossas maiores cantoras. Às suas palavras injustas e impensadas, nós responderemos com o nosso sorriso e amizades. Por ela não gostar de nós, não vamos deixar de gostar dela. Mas apesar desse discurso aparentemente diplomático, encerrava a matéria com uma declaração bélica: - PODEM VIR QUENTES QUE NÓS ESTAMOS FERVENDO! (MONTEIRO, 2015, p. 164-5)

Muitas das características de Imperial foram ferramentas essenciais para o

movimento Jovem Guarda. Além de ser um dos precursores da organização do rock

brasileiro, sua disposição, generosidade e malandragem, entre outras qualidades,

foram fundamentais para lançar e estabelecer muitos nomes do rock nacional, sem

falar em seu talento para promover músicas (mesmo que algumas de suas técnicas

fossem recrimináveis, surtiam efeito). Ao resgatar e registrar tão detalhadamente as

atitudes de Imperial no fim da década de 60, Monteiro comprova seu papel

fundamental para a música nacional e, consequentemente, faz justiça ao seu nome,

hoje um tanto esquecido.

Já os biógrafos de Ronnie Von não se estendem ao falar do programa e do

movimento Jovem Guarda. Mantendo sua proposta inicial de ressaltar a rivalidade

entre seu biografado e Roberto Carlos, as alusões ao período não são profundas, ao

contrário das outras duas biografias, e se limitam aos dois cantores.

Cinco anos antes de morrer, em 2010, Paulo Machado de Carvalho Filho admitiu que contratou Ronnie Von para o casting da Record basicamente para anular qualquer concorrência que viesse a ter sua galinha de ovos dourados, o Programa Jovem Guarda. A Rede Record de televisão existia desde 1953, fundada por seu pai, Paulo Machado de Carvalho. Os principais registros da fundação da estação haviam queimado em incêndio no meio de 1966, cerca de trezentos rolos de fita. Paulo Machado Filho não pretendia dar sopa ao destino. Soube do approuch da Excelsior ao cantor que estourava e correu atrás de Ronnie. O discurso da amizade das famílias ̶ os

Page 122: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

122

Amaral de Carvalho tocavam a TV Rio ̶ sensibilizou Ronnie. Disse que não tinha nada contra ele ir para a Excelsior, mas que a Record era a Record, líder. A cartada final foi dizer que não sabia se tinha dinheiro para bancar a contratação, mas se fosse preciso venderia o carro para tê-lo no elenco. Ronnie assinou. Em 15 de outubro de 1966 estreava O Pequeno Mundo de Ronnie Von. Nas tardes de sábado. Não demorou a achar estranho que os convidados de seu programa não pudessem ir ao Jovem Guarda e vice-versa. Tentou falar com Paulo, que desconversou. Procurou Roberto Carlos, que não atendeu. Percebeu que caíra dentro da geladeira. “Eu acho que sim [que o contratamos para anulá-lo], porque a gente não era de brincadeira. E show business é negócio, é comércio. Sabendo que ele poderia fazer um programa na TV Excelsior no mesmo horário do Jovem Guarda, a gente o contratou para deixá-lo em outro horário na nossa TV. Nós não tínhamos muito dinheiro, mas tínhamos criatividade”, disse Paulo Machado de Carvalho Filho para Paulo Cesar de Araújo na biografia de Roberto Carlos Em detalhes, que foi tirada de circulação por intervenção do cantor. O Pequeno Mundo de Ronnie Von era bastante diferente do Jovem Guarda. O cenário fazia referência a contos de fada. A linha musical era (ou seria) antenada com o que acontecia lá fora, e ao que Ronnie tinha acesso direto. Sua assistente de palco era Sônia Braga (sim, a atriz), uma fadinha que lia cartas. Só que com o bloqueio bilateral dos programas era difícil encontrar como preencher musicalmente a atração. (GUERREIRO, PIMENTEL, 2014, 60-2, grifos dos autores)

Fora esse trecho, pouca coisa há sobre o programa e o movimento Jovem

Guarda. Comparando às outras duas biografias há uma deficiência enorme de

contextualização, o que prejudica a localização de Ronnie Von no período e,

principalmente, seu papel nele. Guerreiro e Pimentel estão tão concentrados em

mostrar como o ‘pobre garoto rico’, que recebeu a alcunha de Príncipe, sofria, que

esquecem de mostrar o artista, seu posicionamento na mídia e, principalmente, sua

relação com outros nomes do período. Sabendo que para boa parte do público

brasileiro o nome de Ronnie Von é principalmente lembrado por seus sucessos no

fim da década de 60, a falta de profundidade do período em sua biografia deixa

muito a desejar e, em lugar de esclarecer as perguntas que o leitor tinha ao iniciar a

leitura, lança novas questões. Essa constatação nos confirma a importância da

contextualização para a compreensão do leitor e, consequentemente, a quarta

hipótese.

Page 123: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

123

5.2.3 Encontro dos personagens

O encontro inicial entre os três personagens acontecem em diferentes

momentos e em situações muito específicas. Sendo assim, a apresentação dos

encontros é feita numa base cronológica, já que Carlos Imperial auxiliou Roberto

Carlos em seu início de carreira e Ronnie Von só surgiu quando este último já era

conhecido nacionalmente. O sucesso de “Meu bem”, versão de “Girl” dos Beatles,

chamou atenção para aquele que se tornou rival (em popularidade) direto do líder da

Jovem Guarda. Por fim, para apimentar a rivalidade entre seu antigo pupilo e o

Príncipe, Imperial fez questão que Ronnie gravasse uma composição sua. Como são

três momentos bem específicos, a leitura comparativa neste nível vai se apegar a

eles a fim de tornar mais visível as diferenças entre as biografias.

5.2.3.1 Carlos Imperial e Roberto Carlos

De modo geral, as versões de “Roberto Carlos em detalhes” e “Dez, nota dez:

Eu sou Carlos Imperial” sobre a relação dos dois são muito próximas. Ambas trazem

detalhadamente a verdadeira saga da dupla em busca de uma gravadora que desse

uma chance a Roberto Carlos. O primeiro encontro entre os dois, porém, é narrado

de maneira distinta em cada um dos livros. Segundo a pesquisa de Araújo, os dois

se conheceram quando Roberto fazia parte d’Os Sputniks, grupo formado por Tim

Maia.

Os Sputniks chegaram às onze e quinze da manhã na porta da TV Tupi e ali ficaram à espera de Carlos Imperial. Quando ele apareceu, o quarteto se aproximou pedindo a chance para se apresentar no programa. “Mas o que vocês cantam?”, quis saber Imperial. Como não poderia deixar de ser, eles responderam quase em uníssono: Little Darling. E com suas quatro vozes, dois violões e uma canequinha cantaram para Carlos Imperial ouvir. Antes mesmo de o grupo concluir a música, Imperial exclamou: “Ok, estão aprovados, vão cantar hoje mesmo no programa”. Não tinha mesmo como errar. Little Darling era o melhor número do quarteto ̶ e como eles estrearam no Clube do Rock. “A gente cantou vocalizando bonitinho. Era bonitinho mesmo, pois a gente era muito caprichoso com a vocalização”, afirma Roberto Carlos. Ao final do programa, os Sputniks foram fazer um lanche próximo da TV Tupi, menos Roberto Carlos, que ficou no

Page 124: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

124

corredor esperando Carlos Imperial deixar o estúdio. Quando ele saiu, Roberto pegou firme no seu braço e disse: “Carlos Imperial, eu também sou de Cachoeiro de Itapemirim e imito Elvis Presley”. Um pouco surpreso. Um pouco surpreso, Imperial exclamou: “Ah! Você é de Cachoeiro? E imita Elvis? Então canta aí pra eu ouvir”. Roberto Carlos pegou seu violão e mandou Tutti frutti. E ali, naquele momento, pela primeira vez Carlos Imperial prestou atenção em Roberto Carlos. Imperial pediu mais uma música e seu conterrâneo cantou Jailhouse rock. “Ok, você está escalado para cantar um número de Elvis no próximo programa.” Roberto Carlos saiu eufórico e Imperial ficou ali mais um pouco acertando detalhes com a produção do programa. Mais tarde, um dos assistentes de Imperial foi lhe comunicar que dois integrantes dos Sputniks quase saíram no pau na porta da TV Tupi. Era Tim Maia, furioso ao saber que Roberto Carlos fora escalado para se apresentar sozinho no próximo programa. “Eu boto você no meu conjunto e você vai cantar sozinho, porra!”, berrava Tim Maia para quem quisesse ouvir. (ARAÚJO, 2006, p.54-5, grifos do autor)

Já a versão registrada por Monteiro, apesar de alguns detalhes comuns, tem

uma situação diferente como contexto.

Numa manhã na TV Tupi, Beto Castro cuidava da produção de mais um “Clube do Rock”, que iria ao ar no “Meio-dia”, enquanto conversava com alguns amigos. Um funcionário o chamou avisando que havia alguém no portão da emissora querendo falar com Imperial. Beto foi ver do que se tratava e encontrou um rapazinho vestido com uniforme cáqui de colégio. O garoto, que carregava um violão, lhe disse: - Eu queria falar com Seu Carlos Imperial, queria cantar no programa dele. Canto umas musiquinhas do Elvis Presley. Beto pediu para o menino esperar e foi procurar Carlos, que veio falar com o candidato a astro. Decidiu levá-lo a um lugar onde pudesse ouvi-lo com mais calma. O elenco do “Câmera Um” em geral se reunia para ensaiar na casa de algum ator ou atriz. Naquele dia iriam para o apartamento de Lourdes Mayer, e foi para lá que se dirigiram. No caminho, Imperial simpatizou com o rapaz ao saber que ele também era de Cachoeiro de Itapemirim. No intervalo do ensaio, pediu que todos fizessem silêncio e ouvissem o jovem cantar. You ain’t nothin’ but hound dog Cryin’ all the time You ain’t nothin’ but hound dog Cryin’ all the time A voz do rapazinho agradou a todos, principalmente a Imperial. O garoto se chamava Roberto Carlos Braga. A partir daquela

Page 125: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

125

audição, nas terças-feiras em que o “Clube do Rock” ia ao ar, o público ouviria Carlos Imperial anunciar sua mais nova descoberta. - E agora com vocês, o “Elvis Presley brasileiro”, Roberto Carlos! (MONTEIRO, 2015, p.64, grifos do autor)

Porém, o período mais fundamental da relação dos dois, a procura por uma

gravadora, é igualmente narrada por Araújo e Monteiro. Com mais ou menos

detalhes, em ambos os textos é possível perceber o esforço de Imperial para dar

uma chance ao garoto que, sem isso, provavelmente teria retornado à sua cidade

natal e jamais seria reconhecido como Rei. Para atestar a semelhança ao narrar o

mesmo fato, seguem abaixo trechos de ambos os livros partindo do reencontro entre

Imperial e Roberto Carlos até a chegada à Columbia (depois chamada CBS),

gravadora que lançou o segundo 78 rpm do cantor e todas as gravações que se

seguiram.

Outra visita que Roberto Carlos recebeu no Plaza ̶ e esta muito mais conseqüente para ele naquela época ̶ foi a de seu conterrâneo Carlos Imperial, recém-chegado da viagem aos Estados Unidos. Imperial passava em frente da boate Plaza quando viu a foto de Roberto Carlos em um pequeno cartaz que anunciava as atrações daquela noite na casa. Era pouco antes das dez horas e naquele momento Roberto Carlos estava num canto, fazendo um pequeno aquecimento da voz, se preparando para subir ao palco. Imperial chegou por trás e bateu-lhe nas costas. “Ô, meu filho, o que você faz aqui no Plaza? Vi seu retrato na porta. O que está acontecendo?” Roberto Carlos informou-o então que havia deixado o rock e que agora era cantor de bossa nova. “O quê? Bossa nova?”, espantou-se Imperial, emitindo uma sonora gargalhada amplificada pela bela acústica da boate Plaza. Imperial costumava freqüentar aquela boate em noites de jam sessions e nunca pensou que ia encontrar ali o Elvis Presley brasileiro, ainda mais cantando bossa nova. Roberto Carlos então explicou que depois de ouvir João Gilberto tudo mudou para ele e que aquela fase de rock era agora coisa do passado. Imperial sentou-se a uma mesa e ficou ali para ver e crer. Naquela noite, acompanhado pelo conjunto de Bola Sete, Roberto Carlos desfilou mais uma vez canções do repertório de Dolores Duran, Tito Madi e de Tom Jobim, principalmente aquelas do primeiro álbum de João Gilberto. “Eu gostei, achei muito bacana ele cantando bossa nova”, afirma Imperial. E naquela noite mesmo, Imperial vislumbrou que aquele garoto que ele conhecera imitando Elvis Presley poderia muito bem se tornar um novo João Gilberto. “Tá na hora de você gravar um

Page 126: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

126

disco, rapaz”, disse-lhe Imperial, já se oferecendo para produzi-lo. Roberto Carlos ficou feliz com a proposta, ainda mais ao saber que havia um lado bossa-novista em Imperial. Sim, o gordo também se tornara fã de João Gilberto e estava agora compondo suas primeiras canções sob a influência da bossa nova. E ele vislumbrou que o cantor certo para gravá-las estava ali, na sua frente, na boate Plaza: seu conterrâneo, o outrora “Elvis Presley brasileiro” que continuaria mais brasileiro ainda, mas agora na cola de João Gilberto. (ARAÚJO, 2006, p. 68, grifos do autor)

[...] O primeiro passo para isso acontecer seria descobrir alguém que pudesse ajudá-los, dar um “empurrãozinho” em alguma gravadora. Lembrou do disc-jóquei Chacrinha, com quem trabalhara no “Rancho Alegre”. Além da TV Tupi, o apresentador estava de segunda a sábado na rádio Mauá com o “Cassino do Chacrinha”. Ao menos um divulgador ele devia conhecer. Sabia que havia conquistado a amizade do homem no período em que fora o Capitão Bill. Ele não iria negar-lhe esse favor. Levando Roberto e seu violãozinho foi à rádio mostrar as qualidades do rapaz ao amigo. O menino cantou duas canções de Imperial: “Fora do tom” e “João e Maria”, esta, a conhecida história dos irmãos Grimm segundo Carlos Imperial: Li no almanaque a versão Nova da história do João Levou a Maria ao bosque passear E borboletas lindas apanhar Mariazinha não sabia, não, Das intenções do João A verdade está no almanaque Pois o tal passeio foi de araque Mariazinha não gostou, não Do papelão do João Chacrinha gostou do cantor e das músicas de Imperial. Marcou um encontro com o selo Chantecler. Mas este ouviu e não se interessou. Carlos percebeu que ainda teria muito trabalho pela frente até ver o nome do seu conterrâneo estampado no selo de um disco. Pediu ao amigo uma carta de recomendações e começou a peregrinar pelas gravadoras da cidade. Mas em todas o que ouvia era um não, acompanhado de “esse rapaz imita o João Gilberto”. A providencial ajuda acabou vindo de Francisco Manoel, o irmão mais velho de Carlos. Chico era locutor da Rádio Continental e recebia visitas de divulgadores de várias gravadoras. Um deles trabalhava na Polydor e vivia lhe pedindo

Page 127: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

127

para colocar as músicas de seus artistas na programação. Francisco lhe fez uma proposta: - Você arruma uma oportunidade pra um amigo gravar lá na Polydor, que sempre te darei canja no rádio. O garoto é bom, canta lá na boate Plaza. E as músicas são do meu irmão. O divulgador aceitou e Francisco foi falar com o diretor da emissora, Galeano Neto, que o liberou para fazer o acordo. Chico deu a boa notícia ao irmão. Disse que o diretor artístico da Polydor, Joel de Almeida, o aguardava para uma reunião em seu escritório. Imperial levou seu cantor para mais essa tentativa, por segurança também portando a carta dada por Chacrinha. Roberto cantou as músicas de costume para o executivo. Ao final, Joel disse que iria contratá-lo, mas diferentemente das outras gravadoras, queria que ele cantasse ainda mais parecido com João Gilberto. Roberto Carlos entrou pela primeira vez em um estúdio de gravação tendo o acompanhamento dos músicos contratados da gravadora: Sut (bateria), Marinho (baixo), Copinha (flauta), José Meneses e Baden Powell (violões). Em julho de 1959 era lançado o 78 rpm “Roberto Carlos em Conjunto” interpretando as duas bossas de Imperial: “João e Maria” (trazendo Roberto como coautor), e “Fora do Tom”. (MONTEIRO, 2015, p. 80-1, grifos do autor) [...] “A gente sempre sofre uma grande influência do artista que a gente gosta. Principalmente para um cantor iniciante é difícil descobrir um estilo, uma forma de cantar diferente, porque a forma que aquele artista gravou é muito marcante e a gente com pouca experiência se influencia e acaba cantando parecido. E eu realmente cantava parecido, muito parecido com João Gilberto”, reconhece Roberto Carlos. E talvez por isso mesmo, o disco dele não aconteceu: ninguém comprou, ninguém tocou, ninguém ouviu. Mas o contrato com a Polydor ainda estava em vigor e havia a promessa de se gravar outro disco, talvez até um possível LP de Roberto Carlos. Porém, o tempo foi passando e nada de concreto acontecia. A gravadora não se manifestava e Carlos Imperial foi ficando impaciente. Conhecedor dos meandros da indústria do disco, ele sabia que isto podia ficar assim por anos a fio. Imperial resolveu então blefar para pressionar a Polydor. Roberto Carlos era contra, achava melhor esperar um pouco mais, afinal seu disco não tinha feito nenhum sucesso. Mas Imperial, com seu ímpeto e estilo voluntarioso, resolveu dar a tacada e fazer uma grande encenação. Não conseguiu falar com Joel de Almeida, mas se apresentou ao diretor artístico José de Ribamar, exigindo que a Polydor revelasse seu projeto para Roberto Carlos. Imperial afirmou que seu artista tinha convites para gravar em outras companhias de disco e que ele poderia aceitar, caso a Polydor não definisse um projeto. Ribamar ouviu pacientemente a

Page 128: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

128

queixa de Imperial e na mesma hora apresentou os planos que a Polydor tinha para o jovem cantor: a rescisão do contrato. Irrevogável e imediatamente. “O senhor pode assinar com quem quiser. O seu cantor está liberado”, afirmou José de Ribamar, que nem consultou Joel de Almeida para tomar a decisão. Ele sabia que aquela tinha sido uma aposta provocativa de Joel em Aloysio de Oliveira ̶ e uma aposta que não surtira nenhum efeito. Assim, foi dispensado da gravadora Polydor. Eram pouco mais de duas horas da tarde quando Roberto Carlos e Carlos Imperial desceram do prédio da gravadora, no centro do Rio. Eles entraram num bar ao lado e pediram dois pastéis com caldo de cana. Enquanto comiam, o cantor lamentava: “Ah, papai, você não devia ter falado que tinha outras propostas.” Para Roberto Carlos, a situação ficara realmente complicada. Naquele momento ele era um artista sem contrato com nenhuma emissora de rádio, e agora dispensado de uma gravadora depois de fracassar no primeiro disco. Era um currículo difícil para um cantor apresentar, mas seria assim que eles partiriam para tentar uma nova chance. (ARAÚJO, 2006, p. 72-3) Imperial continuava firme na intenção de tornar Roberto um cantor de sucesso. Mas com o contrato da Polydor rescindido, precisava de outra gravadora disposta a contratá-lo. O diabo é que já havia percorrido todas. Só restava a Columbia. Descobriu que seu diretor artístico era Roberto Corte Real. Conseguiu o telefone de seu escritório e falou com a secretária procurando dar bastante ênfase ao pronunciar o sobrenome em comum com o do executivo da gravadora: - Eu sou Carlos “Corrr-te” Imperial e gostaria de marcar uma reunião com o Sr. Roberto “Corr-te” Real. A moça pediu que aguardasse um instante e logo retornou comunicando que ele era aguardado às 17 horas no escritório do Sr. Corte Real. A resposta positiva deixou Imperial surpreso. Ultimamente a situação era de incontáveis portas na cara. De repente, o diretor de uma importante gravadora aceitava recebê-lo na primeira tentativa. Será que a secretária acreditou que ele era parente de seu chefe? Não importava, “as oportunidades são carecas e temos que agarrá-las pelos cabelos”. Carlos mandou Roberto arrumar-se o melhor possível, queria ele bem bonito para a audiência. O garoto voou até o Lins para pegar o paletó que usava na boate Plaza. No horário marcado, a dupla chegou à Columbia. A secretária anunciou Imperial ao chefe. Renato Corte Real abriu a porta da sua sala e com um largo sorriso exclamou: - Carlos Imperial, entra aqui, meu querido! (MONTEIRO, 2015, p. 84-5)

Page 129: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

129

[...] Imperial se levantou surpreso com a calorosa recepção. E no interior da sala de Côrte [sic] Real tratou Imperial com uma intimidade e um charme muito grande. “Você não está lembrado de mim?”, perguntou Côrte [sic] Real. “De você?”, ficou sem graça o visitante. “Sim, rapaz, naquela sua palestra sobre Chet Baker eu fui aquele chato que ficava toda hora lhe fazendo perguntas. Aliás, naquela outra palestra sobre Jelly Roll Morton eu quero dizer o seguinte...” Roberto Côrte [sic] Real era apaixonado por jazz e freqüentava o Jazz Club do Rio de Janeiro, em Copacabana, onde Imperial, metido em tudo, andou proferindo duas ou três palestras. Polemista desde sempre, Imperial ocupava aquele espaço para defender as idéias mais extravagantes sobre a música nascida em Nova Orleans. E um dos ouvintes daquelas palestras foi justamente Roberto Côrte [sic] Real ̶ que se lembrou do gordo Imperial e guardou seu nome pela semelhança com o seu. A mesa de Côrte [sic] Real era imensa e vivia amontoada de discos e papéis. Ele revirava tudo à procura de exemplares de jazz para mostrar a Imperial. “Eu recebi agora dos Estados Unidos um disco de jazz fantástico...” E revirava a mesa à procura do tal disco. “Rapaz, aquela sua teoria sobre o jazz de Dave Brubeck, eu acho o seguinte...” E começava a discutir sobre o que Imperial tinha dito de Dave Brubeck na tal palestra. O próprio Imperial não se lembrava de teoria nenhuma porque dizia qualquer coisa lá no clube para polemizar. “Escute aqui este álbum da orquestra de Count Basie...” Côrte [sic] Real botava o disco para rodar e, deslumbrado, ficava imitando com gestos o solo de sax, de trombone, de trompete, e até o da bateria, com os dois braços subindo e descendo. “Preste atenção agora neste contrabaixo”, e ele fazia o gesto com caras e bocas, como se estivesse tocando o instrumento. “Ele imitava toda a orquestra. Era muito engraçado”, recorda Carlos Imperial. E assim se passou mais de uma hora e meia de papo... (ARAÚJO, 2015, p. 80-1) [...] Somente depois de quase três horas de conversa, conseguiu falar sobre o cantor que gostaria de mostrar. Pediu permissão a seu “mais novo amigo de infância” para chamar Roberto, que, seguindo sua orientação, aguardava do lado de fora, e o apresentou. Porém, Corte Real olhou o relógio e viu que eram quase 8 horas da noite. Comprometeu-se com Carlos a ouvir o rapaz com toda a atenção dois dias depois, no estúdio da gravadora. Conforme o combinado, na quinta-feira Imperial voltou com Roberto à gravadora. De quebra levou os Dry Boys. Havia telefonado para o diretor artístico perguntando se também poderia mostrar-lhe o conjunto, e ele não se opôs. Roberto Carlos entrou no estúdio e cantou a música que havia ensaiado, o samba-canção “Menina-moça”, de Luís Antônio, sucesso na voz de Tito Madi:

Page 130: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

130

Você menina moça Mais menina que mulher Confissões não ouça Abra os olhos se puder - Mas esse sacana canta igualzinho ao João Gilberto, não é? Até o sotaque dele tá baiano! - Corte Real comentou com Imperial no aquário, a cabine dos técnicos separada por um vidro à prova de som. Seguiram-se mais duas músicas. O homem gostou, mas achou que faltava algo. Apertou o botão do microfone e falou com seu jovem xará: - Ô menino, canta a música que você mais gosta. Roberto cantou “Brotinho sem juízo” Brotinho não me aperte Quando comigo dançar Tira a mão do meu pescoço Não tente seu rosto colar Pára de beliscar a minha orelha Porque se o sangue subir Eu faço o que me dá na telha - De quem é essa música? ̶ Corte Real quis saber do rapaz. - É do Carlos Imperial. - Mas Imperial, você também é compositor? - Sou sim. - Roberto Carlos, tem mais alguma do Carlos Imperial pra você cantar? Para alegria do “papai”, o menino cantou “Ser Bem”, composição em que Carlos descrevia a vida das bacanas da Zona Sul carioca e o sonho de quem quer fazer parte dela: Toda garotinha bonitinha tem mania De ser elegante da Bangu Quer ver o seu nome na coluna todo dia Pertinho do Jorginho, ao lado do Didu Ser bem é na Hípica jantar É no Jóquei desfilar e de noite, no Sacha’s Com Baby, juntinho dançar Mamãe, eu também quero ser bem Mamãe, eu também quero ser bem - Porra, do cacete! - Corte Real gritava entusiasmado. ̶ Ô Imperial, você tem mais música?

Page 131: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

131

Roberto cantou mais duas músicas de seu mentor: “Canção do Amor Nenhum” e “Louco por Você”. Corte Real mandou chamar o maestro Lírio Panicalli. Imperial custava a acreditar que aquilo estava acontecendo, parecia que um contrato assinado estava a caminho. Quando o maestro entrou no aquário, Corte Real pediu para que Roberto cantasse “Brotinho Sem Juízo” mais uma vez: - Canta de novo aquela obra-prima da garotinha que quer dar pro cara e ele não quer comer. Ficou decidido que o maestro providenciaria os arranjos para um 78 rpm que Roberto gravaria na semana seguinte. Ao ouvir aquilo, Imperial teve vontade de comemorar como se fosse um gol do Botafogo. Mas continuou sentado para não dar vexame. Porém, assim que Corte Real e Panicalli deixaram a técnica, abriu a porta do estúdio e gritou a novidade para Roberto: - Vais gravar na quinta-feira que vem, porra! (MONTEIRO, 2015, p. 87-9, grifos do autor)

O 78 rpm com “Ser bem” e “Brotinho sem juízo” foi gravado, sendo seguido

pelo LP “Louco por você”, o qual não teve sucesso. Imperial e Corte Real depois se

afastaram da carreira de Roberto Carlos, que se manteve na gravadora sob o

comando de Evandro Ribeiro. Independente do que aconteceu depois, o importante

aqui é ressaltar a riqueza de detalhes das narrativas de Denilson Monteiro e Paulo

Cesar de Araújo. É possível reconhecer a diferença de escrita e de perspectiva

apresentadas pelos autores, porém o enredo é irrepreensível, os textos de ambos

casam perfeitamente, provando que o registro do fato está muito próximo da

realidade.

“Roberto Carlos em detalhes” foi publicado anos antes de “Dez, nota dez: eu

sou Carlos Imperial” e, inevitavelmente, a obra de Araújo é citada como referência

na de Monteiro, porém a diversidade de detalhes entre as duas narrativas confirma

que o segundo não reproduziu simplesmente a versão do primeiro, ele buscou

outras fontes e, claro, se manteve fiel ao seu estilo de apresentar os fatos. Ambos os

biógrafos deram páginas e páginas à história aqui parcialmente reproduzida e isso

não foi coincidência. A dedicação de Imperial para com Roberto Carlos foi

fundamental para a carreira do Rei da música brasileira e o cantor sempre fez

questão de confirmar isso. Dedicar espaço a essa relação nas biografias é inevitável,

já que comprova a generosidade e responsabilidade cultural de Carlos Imperial e

registra o início do mais conhecido cantor do Brasil. Cada qual a sua forma, os

biógrafos apresentaram essa relação de maneira tão profunda que o leitor se sente

Page 132: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

132

muito próximo aos dois e, consequentemente, entende o sentimento de carinho e

respeito que um sempre afirmou ter pelo outro.

5.2.3.2 Roberto Carlos e Ronnie Von

A relação entre o Rei e o Príncipe da Jovem Guarda esteve longe de ser tão

próxima e significativa. A bem da verdade, segundo a mídia, era justamente o

contrário. Em vez de amizade havia rivalidade. Os músicos nunca se pronunciaram

publicamente de modo que fosse confirmado que essa rixa era pessoal, mas sem

dúvida ela existia na perspectiva profissional e os biógrafos de Roberto Carlos e

Ronnie Von confirmam isso em seus livros.

Outro barrado no baile do Jovem Guarda, mas por razão inversa, foi o cantor Ronnie Von. Corpo longilíneo, rosto anguloso, cabelos lisos e compridos, e faiscantes olhos verdes, o rapaz causou sensação quando surgiu em 1966, com a gravação de Meu bem, versão de Girl dos Beatles. Imediatamente foi disputado pela TV Excelsior e pela TV Record, ambas com propostas para ele apresentar um novo programa musical. O da Excelsior seria aos domingos à tarde, no mesmo horário do Jovem Guarda. Já a proposta da TV Record era para Ronnie Von comandar um musical aos sábados à tarde, sem competir diretamente com o programa de Roberto Carlos. Ronnie aceitou a segunda proposta, porque a Record tinha uma estrutura melhor ̶ mas depois se arrependeu amargamente. “Eu fiquei sabendo, por pessoas de dentro da própria emissora, que eles me contrataram para me anular, pois temiam que em outro canal eu pudesse ameaçar o trono do rei da jovem guarda.” Segundo o cantor, o seu programa O Pequeno Mundo de Ronnie Von [grifo do autor] foi lançado e logo depois abandonado à própria sorte pela TV Record. E ele está convencido de que isso foi feito mesmo de propósito para queimá-lo. Qualquer artista que cantasse no programa de Ronnie Von não podia participar no de Roberto Carlos ̶ e vice-versa. “Então era uma dificuldade conseguir alguém para vir ao meu programa, pois todos preferiam cantar no Jovem Guarda. E ninguém pode fazer um programa de televisão se não tem elenco, se não tem uma produção, se não tem nada. Como é que se pode fazer um programa assim? Eu fiquei num desamparo total”, protesta Ronnie Von. A solução foi convidar bandas de garagem paulistanas e uma delas alcançaria grande projeção, Os Mutantes ̶ nome sugerido pelo próprio Ronnie Von quando foram se apresentar no programa. “Um dia eu tive

Page 133: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

133

que fazer um programa inteiro só com Os Mutantes porque não tinha mais nenhum convidado.” Como estava de folga aos domingos, Ronnie Von tentava se apresentar no programa Jovem Guarda, mas também não conseguia. “Eu não podia pôr meus pés ali, era proibido. De onde vinha essa ordem não sei. O fato é que eu pedia para participar e nunca consegui. Eu pedi ao diretor Carlos Manga, pedi ao Paulinho Machado de Carvalho, e eles sempre desconversavam. Eu tentava de todas as formas falar com Roberto Carlos e também não conseguia, ele não me atendia. Enfim, todos escorregavam feito quiabo. E hoje fico doido quando ouço alguém dizer que eu era da jovem guarda, não gosto disto, porque nunca participei daquele programa. Depois fiquei com um ressentimento de tudo aquilo porque eu não estava com a intenção de tomar o lugar de ninguém. E foi exatamente esse o motivo da explosão de uma crise existencial, que me fez mergulhar fundo no que estava acontecendo na minha vida pessoal. Pensei em morrer, procurei um psiquiatra e levei algum tempo tomando tranqüilizante. Não suportava as pessoas repetindo sempre aquela mesma história de que Paulinho Machado de Carvalho teria me convidado para fazer um programa na Record por medo de que, em outro canal, eu me tornasse uma ameaça para seu grande astro.” Para esclarecer esse caso, este autor ouviu o próprio ex-dono da TV Record, Paulinho Machado de Carvalho. O que ele tem a dizer sobre essa versão de Ronnie Von? Esse cantor foi mesmo contratado para depois ser colocado para escanteio? “Eu acho que sim, porque a gente não era de brincadeira. E show business é negócio, é comércio. Sabendo que ele poderia fazer um programa na TV Excelsior no mesmo horário do Jovem Guarda, a gente o contratou para deixá-lo em outro horário na nossa TV. Nós não tínhamos muito dinheiro, mas tínhamos criatividade.” (ARAÚJO, 2006, p. 151-2, grifos do autor)

Durante a análise individual, vários trechos de “Ronnie Von: O príncipe que

podia ser rei” contaram a mesma história, sendo que em um deles a afirmação de

Paulinho Machado de Carvalho sobre a contratação de Ronnie Von para Paulo

Cesar de Araújo é reproduzida inteiramente por Antonio Guerreiro e Luiz Cesar

Pimentel, com os devidos créditos, claro.

Porém, apesar da história ser a mesma, o modo de contá-la é absurdamente

distinto, ressaltando-se aqui a diferença de escrita percebida na análise individual

das biografias. Enquanto Araújo mantém o seu estilo reportagem, com depoimentos

significativos de Ronnie Von sobre o caso e a busca pela versão do dono da TV

Page 134: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

134

Record na época, os biógrafos do Príncipe são mais rasos e dão apenas uma visão

geral da situação. Essa percepção vai ao encontro da segunda hipótese, que

ressalta a importância da pesquisa aprofundada para o resultado final do livro.

Consequentemente, “Roberto Carlos em detalhes” traz uma situação muito

mais compreensível e imparcial ao leitor, através da qual é possível entender e se

solidarizar com o sentimento de Ronnie Von. Já o modo apresentado por Guerreiro e

Pimentel mantém o tom de ‘pobre e injustiçado garoto rico’, com um posicionamento

tão forte por parte dos autores que o leitor se vê em duas situações: ou concorda

com os biógrafos do Príncipe e reconhece que Ronnie Von foi o grande mártir do

período Jovem Guarda; ou não aceita a tão simplificada versão e acaba por sentir

repulsa da mesma, saindo automaticamente em defesa de Roberto Carlos.

Como anteriormente já foi transcrito o trecho em que os biógrafos de Ronnie

Von falam sobre sua contratação, resta para esse momento da análise uma versão

um pouco mais extensa de uma história apresentada pelos autores no prólogo de

“Ronnie Von: O príncipe que podia ser rei” e que está no primeiro trecho

apresentado na análise individual da biografia.

A pobreza de recursos e atrações não impediu que a atração começasse a fazer sucesso, o que passou a atrair artistas, como Eduardo Araújo, Martinha, Jerry Adriani, os Vips e o pessoal que viria a formar a Tropicália. Atraiu também, segundo forte lenda e confirmada por quem trabalhou nos bastidores na época, a fúria de Roberto Carlos. Em dezembro de 1966 ele lançou “Querem acabar comigo”. Um dos presentes ao estúdio durante a gravação jura que o Rei cantou “Querem acabar comigo/Isso eu não vou deixar” com a foto de Ronnie à sua frente. (GUERREIRO, PIMENTEL, 2014, p. 63-4)

Ou seja, a relação entre Roberto Carlos e Ronnie Von existe basicamente

pela competição de popularidade. Em um trecho apresentado na análise individual

da biografia do Príncipe, Guerreiro e Pimentel registram rapidamente que quando

Ronnie esteve doente, o líder do programa Jovem Guarda o visitou, o que pode ser

entendido como demonstração de amizade.

Sendo assim, a apresentação mais justa da rivalidade comercial dos dois é a

de Araújo, pois a de Guerreiro e Pimentel mostra um Roberto Carlos intocável em

seu reinado, enquanto ao rico e bonito Ronnie Von cabe o segundo lugar ̶ uma

Page 135: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

135

injustiça enorme na perspectiva de seus biógrafos. Porém, é importante questionar:

será mesmo injustiça? Se compararmos a carreira dos dois percebemos quão

diferentes são as formações de ambos e, mais que isso, seus trabalhos.

Roberto Carlos era um garoto pobre que saiu de Cachoeiro do Itapemirim

atrás de um sonho, enquanto Ronnie Von se fez cantor ao acaso, numa

oportunidade não procurada. Enquanto o primeiro teve dificuldades em convencer

que tinha talento, o segundo foi reconhecido de imediato. Guerreiro e Pimentel falam

tanto da beleza de seu biografado que é inevitável perguntar: a beleza de Ronnie

Von foi mais fundamental para sua carreira do que seu talento? Fora isso, Roberto

Carlos se destacou logo de início como compositor, enquanto o Príncipe é

apresentado por seus biógrafos como um cantor que obedecia a gravadora e

gravava o que esta queria, composições de outros, ignorando suas próprias

vontades por muito tempo. Então, diante de tudo isso, até que ponto vale comparar

os dois artistas e, mais que isso, basear toda uma biografia nessa rivalidade?

5.2.3.3 Ronnie Von e Carlos Imperial

A relação de Carlos Imperial e Ronnie Von tem como ligação o nome de uma

canção composta pelo primeiro e gravada pelo segundo: “A praça”. Até hoje o mais

lembrado sucesso de Ronnie Von, a música foi gravada por este por exigência do

próprio Imperial que, então, estava em seu auge como compositor e tinha suas

canções disputadas.

O cantor Ronnie Von divulgava seu compacto com a canção “Catedral” no programa de José Paulo de Andrade, na Rádio Bandeirantes, quando o locutor esportivo Fernando Solera entrou no estúdio e perguntou ao disc-jóquei: - Já mostrou pra ele? - Calma, só um instante. José Paulo levou Ronnie até a sala em frente, apanhou um gravador de rolo e colocou uma fita com uma canção que gostaria que o cantor ouvisse. A mesma praça, o mesmo banco As mesmas flores, o mesmo jardim Tudo é igual, mas estou triste Porque não tenho você Perto de mim...

Page 136: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

136

- Quer gravar? Ronnie achou até bonitinha, mas não ficou entusiasmado com o convite. - Olha, a minha escola é outra, eu sou do rock’n roll. Isto aqui é uma marcha-rancho. - Pensa bem, todo mundo que ouviu, gostou. Mas o compositor quer que você grave. Grava que tem uma fila de gente querendo também. A tal canção chamava-se “A Praça”, e o autor era Imperial, que desde o início de 1967 havia voltado a São Paulo disposto a recuperar o tempo perdido com a retirada estratégica para Joíma. Vinha conseguindo ser bem-sucedido nesse intento. [...] O interesse das gravadoras era apenas naquilo que poderia refletir em grandes vendas, a opinião do artista não era levada em consideração. Ronnie Von era contratado da Polydor, que não pensava diferente das demais. Foi convencido pela companhia que gravar “A Praça” seria bom negócio para sua carreira. Seu primeiro encontro com Imperial aconteceu durante um evento na TV Record. Carlos demonstrou todo o seu contentamento com a decisão do rapaz, que desde sua estreia em disco com “Meu Bem”, versão de uma balada dos Beatles, virara ídolo. Sua bela cabeleira castanha e olhos verdes levavam as fãs ao delírio. Roberto Carlos era chamado de “o rei da Juventude”, mas Ronnie, de príncipe. Império o escolheu como intérprete de sua música porque sabia que essas qualidades estéticas também seriam de grande valia para alcançar o sucesso. Antes de se despedir, avisou que promoveria a canção de uma maneira nunca vista antes. [...] O compacto de “A Praça” foi lançado em 20 de abril de 1967. Em 15 dias vendeu 40 mil cópias, o que causou um sorriso de orelha a orelha na diretoria da Polydor. Mas para o autor isso não era suficiente e ele deu um aviso a Ronnie: - Eu vou polemizar “A Praça” de uma forma que ela vai ter a autoria discutida nos meios de comunicação. Aguarde. Em Copacabana, Imperial conhecia Aroldo Santos, um morador do morro do Pavãozinho que sempre lhe mostrava seus sambas, o de maior sucesso chamava-se “Batida de Limão”. Um dia, Carlos lhe propôs a ajuda na sua carreira se ele topasse participar de uma das suas armações. Foram para São Paulo, onde começaram a aparecer juntos em programas de TV. Aroldo se apresentava como verdadeiro autor de “A Praça”, e acusava Imperial de roubo. A notícia causou enorme alvoroço, mas em vez de refletir em propaganda negativa, fez com que as vendas aumentassem ainda mais. Imperial levava fama de ladrão, mas a música estourava da maneira como planejara. O problema é que de repente, o golpe tomou proporção ainda maior, com outros autores aparecendo. Um jovem morador de

Page 137: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

137

Vista Alegre, subúrbio do Rio de Janeiro, Nilo Sérgio, e depois João Nilo Peixoto, da cidade mineira de Arcos, apareciam na revista “O Cruzeiro” alegando cada um ter sido ludibriado por Imperial. Vendo isso, Carlos comentou com o amigo William Prado: - Comecei pagando um cara pra dizer que era dono da minha música. Mas agora estão aparecendo outros pra fazer isso de graça. Vou parar de pagar o sujeito. (MONTEIRO, 2015, p. 157-160, grifos do autor)

Apesar de não se referir à tática de divulgação de Imperial, a versão

apresentada por Guerreiro e Pimentel sobre a gravação da canção é muito

semelhante à de Monteiro.

No início de 1967, Ronnie foi à rádio Bandeirantes em São Paulo promover o lançamento de seu recente compacto que tinha “A Catedral”, de um lado, e “Menina de Azul”, de outro. José Paulo de Andrade e Fernando Solera eram disc-jóqueis da rádio e estavam com uma missão encomendada por Carlos Imperial, figura ímpar do showbiz brasileiro e que havia feito parte do lançamento da carreira de Elis Regina, Roberto Carlos e Wilson Simonal, entre outros. Os três caminharam até uma sala cheia de relógios com fusos horários pelo mundo e um gravador de rolo. - Olha, Ronnie, tenho a incumbência de te mostrar uma música hoje, disse Solera. “Hoje eu acordei com saudade de você/ Beijei aquela foto que você me ofertou/ Sentei naquele banco da pracinha só porque/ Foi lá que começou o nosso amor. Senti que os passarinhos todos me reconheceram/ E eles entenderam toda a minha solidão/ Ficaram tão tristonhos e até emudeceram/ E então eu fiz essa canção. A mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores e o mesmo jardim/ Tudo é igual, mas estou triste, porque não tenho você perto de mim”. - Pô, mas isso é uma marcha-rancho, reagiu Ronnie. Não tem nada a ver comigo. - É uma coisa ligada ao interior. E todo mundo tem um pezinho no interior, argumentou Solera. - O Carlos Imperial disse que fez essa música pra você, completou José Paulo. Até hoje Ronnie não sabe muito bem falar não. Chamaram a orquestra do maestro Portinho e o grupo vocal formado por cinco cegos, Titulares do Ritmo, e gravou. Deu no que deu.

Page 138: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

138

O compacto com “A praça”, de um lado, e “Canção de ninar meu bem”, do outro, saiu em abril de 1967. Na primeira semana, entrou direto no quarto lugar entre os mais vendidos. Na segunda semana, disparou no topo. Foi a primeira situação de fila nas portas de lojas de discos do país. Ronnie havia comprado uma casa no Morumbi em janeiro de 1967 com quitação prevista em 12 prestações. Pagou tudo de uma vez. Investimento importante, já que o sucesso de “A praça” não permitia mais que ele saísse socialmente de casa. No mês seguinte, o LP cheio, com “A praça”, “Canção de ninar meu bem” e mais dez músicas foi lançado. Vendeu inacreditáveis cinco milhões de discos. (GUERREIRO, PIMENTEL, 2014, p.67-9)

Os biógrafos de Ronnie Von trouxeram algo que Monteiro apresentou apenas

parcialmente: números. As vendas de “A praça” refletem diretamente na importância

da gravação para a carreira de Ronnie Von e, consequentemente, na influência de

Carlos Imperial nela. Apesar de não ser apresentada uma relação mais próxima

entre os dois, a música foi um marco para ambos. Levando-se em conta que foi

desejo de Imperial que Ronnie gravasse sua composição, essa relação se faz ainda

mais significativa.

Por outro lado, Guerreiro e Pimentel não fizeram referência alguma à

artimanha de divulgação de Imperial, a qual merece registro, pois,

independentemente da vontade e talento de Ronnie Von, ela teve seu papel no

número final de vendas da gravação. Além disso, há pouca profundidade na

apresentação de Imperial pelos autores, ao contrário de Monteiro, que ao menos

localizou o papel de Ronnie Von no período. Novamente constatamos a carência de

contextualização de Guerreiro e Pimentel e, mais uma vez, vamos ao encontro da

quarta hipótese, já que nos cabe questionar se a superficialidade dos autores é

justificável e, mais que isso, benéfica ao leitor. Afinal, por ser a canção mais

importante da carreira do biografado seria interessante que os autores trouxessem

algo mais que números e tentassem relacionar “A praça” emocionalmente a Ronnie

Von e, consequentemente, ao leitor.

5.3 ENTRE BIÓGRAFO E LEITOR: O PERSONAGEM (RE)ESCRITO

Após as análises individuais e comparadas, só é possível elaborar inferências

(objetivo principal da análise temática qualitativa) resgatando o capítulo inicial desta

Page 139: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

139

monografia. Nele foi apresentada a estrutura base do livro-reportagem e,

consequentemente, do gênero biográfico, a qual é formada por três partes distintas:

pauta, apuração e escrita. A partir desses três pontos básicos, que serviram também

como referência para as análises individuais, podemos construir as conclusões finais

da análise proposta.

A pauta de uma biografia é simples: curiosidade de desvendar e conhecer

mais sobre determinado personagem. Em “Roberto Carlos em detalhes”, de Paulo

Cesar Araújo (assumidamente fã do músico) e “Dez, nota dez: Eu sou Carlos

Imperial”, de Denilson Monteiro, pode-se sentir isso nitidamente. O aprofundamento

na pesquisa dos autores mostra que dedicaram boa parte de sua vida nas pesquisas

e entrevistas que resultaram no livro. Já “Ronnie Von: O príncipe que podia ser rei”,

de Antonio Guerreiro e Cesar Pimentel apresenta uma superficialidade nítida logo na

primeira leitura. São apresentados um punhado de fatos, muitas vezes de forma

simples e confusa, sem que jamais haja uma real aproximação com o personagem.

Levando-se em conta que a biografia é resultado do trabalho de dois jornalistas, a

crítica ao resultado final só aumenta. Afinal as outras duas biografias analisadas são

resultado de trabalhos individuais e possuem uma construção exemplar. O que nos

faz questionar qual foi a motivação verdadeira para o trabalho sobre Ronnie Von.

Terá partido realmente do interesse de Guerreiro e Pimentel ou eles foram

meramente chamados para dar vida a um projeto idealizado por terceiros? Talvez

isso justifique a falta de interesse em aprofundar a pesquisa que resultou no livro.

Chegamos assim ao segundo ponto de qualquer reportagem: a apuração. Se

a ideia é desvendar a vida de alguém, a variedade de fontes é não apenas uma

necessidade como uma exigência para que o objetivo pautado seja alcançado.

Como o visto no capítulo 2, há dois tipos de fontes para uma biografia: documentais

e orais. Ou seja, documentos, cartas, reportagens, livros, entre outras variedades, e

entrevistas com pessoas que tenham convivido com o biografado. Quanto mais

fontes forem abrangidas, mais profundidade terá o resultado, especialmente porque

uma pode confirmar ou refutar a informação de outra, e o papel do biógrafo é buscar

o mais próximo dos fatos reais para registrá-los o mais fielmente possível.

Novamente, a biografia de Ronnie Von deixou a desejar nesse ponto, especialmente

numa comparação com as outras duas.

Enquanto Araújo e Monteiro resgataram documentos, reportagens de

diferentes revistas e jornais, além de procurarem pessoas que testemunharam fatos

Page 140: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

140

importantes na vida de seus personagens (como, no caso de Araújo, amigos de

infância de Roberto Carlos e até mesmo o médico que amputou sua perna após o

acidente com o trem), Guerreiro e Pimentel apresentam poucas manchetes e

entrevistados, sendo que quando o fazem raramente estas fontes são usadas como

argumentação e confirmação de um fato verdadeiramente significativo na vida de

Ronnie Von. Elas aparecem para confirmar que ele é uma pessoa culta, por

exemplo, mas não são usadas para detalhar como foi difícil o período em que ele

esteve paralisado na cama e teve sua morte anunciada pela mídia. Aliás, se os

autores acharam importante citar que a mídia mais de uma vez anunciou a morte de

Ronnie Von, por que não apresentar as manchetes? Ou quem sabe algum jornalista

da época que pode explicar como esse boato chegou à mídia? Também não há

muitos detalhes da doença e nem sequer um médico foi apresentado para explicar o

que aconteceu. Nem mesmo depoimentos da família trazem sentimentalismo ao

registro do momento que, segundo os autores, foi muito difícil para todos.

Se resgatarmos o modo como Araújo narra o acidente de infância de Roberto

Carlos, a falta de profundidade dos biógrafos de Ronnie Von é ainda mais criticável,

pois a doença do Príncipe é muito mais recente que o acidente do Rei, já que,

quanto mais próximo o fato, mais fácil é localizar as fontes orais, por exemplo. Será

incompetência ou gentileza exagerada para com o biografado evitar o

aprofundamento de um momento tão delicado? Independentemente da resposta, o

fato é que o resultado final mostra uma apuração rasa e, consequentemente, uma

falta de objetividade na construção do personagem a ser apresentado ao leitor, para

não dizer um desrespeito para com este, que busca na biografia um meio de

conhecer mais sobre seu ídolo. No fim da leitura, a vida de Ronnie Von não marca

seus leitores, pois não há a aproximação e reconhecimento da personalidade dele,

ao contrário do que acontece ao fim da leitura de “Roberto Carlos em detalhes” e

“Dez, nota dez: Eu sou Carlos Imperial”.

Para que o leitor se sinta próximo do personagem e, mais que isso, presente

nas situações narradas, o modo de realizar o terceiro passo da reportagem é

essencial: a escrita. Como apresentado no capítulo 2, a grande escola do jornalismo

literário foi o new journalism, o qual somou diferentes técnicas ao registro

jornalístico. Enquanto Araújo apresenta uma estrutura tradicional jornalística,

construindo o contexto, usando depoimentos e reportagens para confirmar os pontos

que aborda; Monteiro opta por construir uma narrativa que facilmente pode ser

Page 141: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

141

confundida com o ficcional. Assim como os seguidores do new journalism, ele traz

diálogos, construção cena-a-cena e, ao desenvolver a contextualização, apresenta

diferentes pontos de vista, do biografado e dos que conviveram com ele, por

exemplo.

Talvez por ter sido escrito por dois autores, “Ronnie Von: O príncipe que podia

ser rei” não apresenta um perfil claro de escrita. A falta de profundidade dos fatos

torna a escrita dinâmica demais, prejudicando a compreensão dos fatos. Em alguns

momentos há apresentação de depoimentos, em outros citação de manchetes,

porém não há um padrão, até porque, como o dito antes, a variação de fontes é

escassa e rara. A própria construção contextual é fraca e quando acontece é

distante demais do biografado, ou seja, não é o real cenário dos fatos. Um exemplo

é o início do livro, quando a concepção de Ronnie Von é apresentada através da

Operação Valquíria, que aconteceu na Europa durante a Segunda Guerra Mundial.

Por que tal escolha se não há relação direta com o biografado? Será falta de

contexto brasileiro? Dificilmente, até porque nenhuma das outras duas biografias

analisadas apresenta um contexto tão distante. Ou seja, Guerreiro e Pimentel não

souberam usar das ferramentas que o livro-reportagem oferece. Toda a

profundidade e liberdade que o gênero jornalístico permite foram ignoradas,

prejudicando gravemente o produto final. Para um perfil escrito para uma revista, por

exemplo, talvez fosse aceitável a falta de aprofundamento na vida do personagem,

porém em uma biografia, sem delimitação de tamanho ou perspectiva, a narrativa

deixa muito a desejar.

Diante de todas essas percepções, as inferências sobre as biografias

analisadas possuem dois grupos extremos: um extremamente positivo e outro

extremamente negativo. Indiscutivelmente “Ronnie Von: O príncipe que podia ser rei”

faz parte do segundo grupo, já que em lugar de apresentar seu personagem, o foco

está disperso na tentativa de compará-lo a Roberto Carlos e, direta ou indiretamente,

questionar o título de Rei recebido por este, no entanto não há argumentação

nenhuma válida, o que deixa a narrativa completamente perdida, não alcançando

nem um objetivo (reconstruir a história de Ronnie Von) nem outro (comprovar que o

biografado merecia ser Rei em lugar de Príncipe, como foi sugerido no título). Aliás,

a imagem apresentada pelos biógrafos (culto, rico, bonito e educado) além de fraca

e superficial (já que apresentando uma única perspectiva extremamente positiva, o

personagem soa como intocável e, consequentemente, irreal, como foi visto no

Page 142: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

142

capítulo 2) não possui verdadeira argumentação, não há algo que convença o leitor

de fato, afinal são características quase que banais e não têm relação direta com a

personalidade de alguém, mas sim com seu contexto familiar. Ou seja, o verdadeiro

Ronnie Von, suas manias, defeitos e qualidades de peso não são apresentados ao

leitor. Não são trazidos fatos e depoimentos que convençam o leitor de que ele é um

ser humano único, positiva ou negativamente.

No outro extremo temos “Roberto Carlos em detalhes” e “Dez, nota dez: Eu

sou Carlos Imperial”. A profundidade alcançada pelos autores teve tanto destaque

que causou a proibição do primeiro e o uso do segundo como base para um

documentário sobre uma personalidade importante da cultura nacional, a qual,

porém, estava esquecida pelo grande público. Os detalhes e a forma de

contextualização usados por Araújo e Monteiro tornam os personagens muito

próximos do leitor. A preocupação cronológica e a apresentação do cenário fazem

com que, ao final do livro, o leitor se sinta como testemunha de situações

significativas vividas pelos biografados. Se o objetivo da pessoa que compra uma

biografia é conhecer mais sobre a vida de alguém, no caso destes dois livros ele é

totalmente alcançado. Ou seja, a curiosidade que motivou o projeto do biógrafo era

equivalente a do leitor ao buscar o livro, portanto o primeiro consegue entender e

atender as vontades do segundo.

Page 143: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

143

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para chegar à análise de biografias proposta por essa monografia, vimos

antes a base teórica. Inicialmente definimos livro-reportagem e biografia,

apresentamos sua estrutura de desenvolvimento e as técnicas que auxiliam na

profundidade e fluência do texto final. A seguir, localizamos o contexto histórico-

cultural que serve de ponto comum às três biografias analisadas: o fim da década de

60 com o golpe militar e movimentos culturais, sendo a Jovem Guarda destacada em

um capítulo próprio por ser a principal relação entre os biografados.

Após todo este trajeto, o uso da metodologia de análise temática qualitativa

dividiu a parte final desta monografia em três partes. A primeira apresentou

individualmente cada biografia, na tentativa de tornar visível suas estruturas,

abordando sua profundidade na intimidade do biografado e suas técnicas de escrita,

ao mesmo tempo em que buscava identificar a relação entre biógrafo e biografado.

Já a segunda parte da análise confrontou os três livros através da contextualização

histórico-cultural e dos fatos que aproximaram os personagens. A intenção foi

ressaltar as diferenças entre os trabalhos dos biógrafos de modo que ficasse mais

visível qualidades e defeitos dos produtos finais. Por fim, foi feito o fechamento da

análise através da elaboração de inferências, passo mais importante da metodologia

abordada.

Os objetivos específicos propostos no projeto desta monografia não apenas

foram alcançados, como serviram de base para a divisão e construção dos capítulos,

ao mesmo tempo em que atingiram o objetivo principal, que era perceber o papel do

biógrafo em (re)construir a personalidade do biografado ao escrever um livro-

reportagem. Com a análise desta biografia foi confirmada a relação direta entre a

profundidade e abrangência do trabalho do biógrafo e o personagem que é

apresentado ao leitor. A variedade de fontes e a boa contextualização, além de

técnicas de escritas, são fundamentais para revelar o biografado ao leitor, tornando

este último testemunha das atitudes e emoções do personagem do livro-reportagem.

Para melhor resgatar o que foi desenvolvido e alcançado nesta monografia,

faz-se necessário retomar as hipóteses levantadas durante a projeção deste trabalho

e comentá-las individualmente, lembrando que a questão norteadora que serviu de

base a elas foi “Como a motivação e a forma de pesquisa dos biógrafos influenciam

Page 144: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

144

na construção das personalidades de Carlos Imperial, Roberto Carlos e Ronnie Von

nos livros-reportagem?”

a) A relação do biógrafo com o biografado é essencial para o resultado final do livro-

reportagem. Confirmada. Os livros “Roberto Carlos em detalhes” e “Dez, nota dez:

Eu sou Carlos Imperial” foram claramente desenvolvidos a partir do interesse

pessoal dos biógrafos, Paulo Cesar de Araújo e Denilson Monteiro, respectivamente.

Tal conclusão vai além da motivação para a elaboração das biografias e se define

pela profundidade dos livros. Um biógrafo interessado, curioso por descobrir e

revelar várias faces de seu personagem, vai automaticamente atrás de fontes

variadas (reportagens, documentos, entrevistados) e isso transparece no seu

trabalho final. Essa profundidade faltou a Antonio Guerreiro e Luiz Cesar Pimentel,

autores de “Ronnie Von: O príncipe que podia ser rei”. Ao mesmo tempo em que

foram os únicos a claramente ter contato direto com seu personagem, eles deixaram

a desejar e foram extremamente superficiais em seu livro. Ou seja, a relação entre

biógrafo e biografado é sim importante, mas ela vai muito além do contato pessoal. A

relação que aqui tem peso é a que resulta na motivação do biógrafo para pesquisar

e escrever, é aquela de caráter emocional, indo muito além do físico. Do contrário, o

biógrafo fará um trabalho raso, muito mais ligado à pessoa com quem ele conviveu

durante certo tempo do que à personalidade que deveria revelar a seus leitores.

b) As formas de pesquisas usadas afetam a profundidade final de cada livro-

reportagem. Confirmada. As variações de fontes tornam o texto mais dinâmico,

confiável e esclarecedor. O uso amplo de fontes tanto orais quanto documentais

ajudam o biógrafo perceber mais claramente quem era seu biografado, suas

características, seus defeitos, suas falhas; além de, individualmente, cada fonte

confirmar ou questionar outra, tornando o pesquisador mais próximo da verdade.

Quanto mais variáveis as fontes, mais argumentos o biógrafo tem para o que vai

escrever. Além disso, a limitação de fontes também pode ser sentida pelo leitor. No

caso de “Ronnie Von: O príncipe que podia ser rei” é perceptível a rasa busca de

documentos e reportagens, tal como as poucas entrevistas feitas. Ao contrário de

Paulo Cesar de Araújo e Denilson Monteiro, que resgataram detalhes mínimos da

vida de seus personagens, Antonio Guerreiro e Luiz Cesar Pimentel não parecem ter

mergulhado na vida de Ronnie Von, ou se o fizeram foi em tempo e espaço muito

Page 145: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

145

limitado, tendo sido guiados pelo próprio biografado. Isso se nota pela rapidez com

que os fatos são registrados e, justamente, pela falta de referências variadas. Cada

fato é confirmado por uma fonte, dificilmente aparecem duas em um mesmo

contexto, fazendo com que o texto fique pobre em detalhes e prejudicando a

compreensão do leitor. Então, sim, as variações de fontes durante a pesquisa

afetam o produto que chega às mãos do leitor.

c) O apoio do biografado e/ou da família influi na pesquisa e, consequentemente, na

construção do personagem do livro-reportagem. Confirmada. As três biografias são

resultado de relações diferentes entre biógrafo e personagem. O trabalho

desenvolvido por Paulo Cesar de Araújo foi totalmente independente. Durante anos

ele buscou revistas, documentos e pessoas que conviveram com Roberto Carlos, da

amiga de infância ao produtor da gravadora. Chegou a entrevistar o biografado, mas

não para o livro. Fora isso, buscou comentários do cantor para revistas em

diferentes épocas. Já Denilson Monteiro teve o apoio dos filhos de Carlos Imperial,

mas também teve liberdade para aprofundar todas as histórias que achasse

importantes. Encontrou diferentes versões sobre o mesmo fato, mesmo entre os

filhos de Imperial; citou revistas e jornais inúmeras vezes, incluindo colunas do

produtor cultural; foi atrás dos filmes dirigidos pelo biografado e das canções

registradas por ele (com seu nome e com pseudônimos). Já Antonio Guerreiro e Luiz

Cesar Pimentel estiveram extremamente próximos de Ronnie Von, tanto é que todas

as imagens do livro são do acervo pessoal do cantor e, além disso, o biografado

também esteve presente na sessão de autógrafos do livro. Ou seja, do início ao fim,

a proximidade dos autores e do biografado foi muito maior do que no

desenvolvimento das outras duas biografias analisadas. Levando isso em conta, é

inegável que a relação entre biógrafo e biografado influi no produto final do livro. A

falta de contato direto de Araújo com Roberto Carlos fez com que o autor buscasse

as mais diversas fontes para desvendar as características do artista; situação bem

contrária a de Guerreiro e Pimentel que, diante da proximidade com seu biografado,

conscientemente ou não, se deixaram limitar em sua pesquisa. Já Monteiro teve

apoio da família, porém isso não o limitou, apenas auxiliou a ampliar suas fontes,

mantendo o compromisso de revelar ao leitor as diferentes faces de seu biografado.

Sendo assim podemos concluir que assim como a relação biógrafo e biografado

influi no trabalho final, o envolvimento do autor com o projeto também tem

Page 146: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

146

fundamental importância, já que é este sentimento que guiará a organização e a

profundidade da apuração, como em qualquer reportagem.

d) O estilo de escrita e as contextualizações usadas por cada autor baseiam a

construção do biografado por parte do leitor. Confirmada. As três biografias

analisadas possuem diferentes estilos de escrita. Paulo Cesar de Araújo constrói seu

texto em uma estrutura bem jornalística, somando depoimentos e documentos como

argumentos para as informações que traz. Além disso, também divide o livro por

temas, os quais são abordados cronologicamente. A contextualização também é

usada por Araújo como argumento, o que acrescenta muito ao texto e,

consequentemente, à construção e compreensão do personagem. Já Denilson

Monteiro transforma seu livro em um romance. Apesar de ser visível a presença de

depoimentos de diferentes pessoas que conviveram com Carlos Imperial, o autor

não os expõe diretamente, em vez disso apresenta diálogos e narra cenários

detalhadamente, usando textos de jornais e contextos históricos como argumentos.

Em consequência, o leitor visualiza o biografado de uma forma muito próxima e se

sente testemunha de suas ações. Já Antonio Guerreiro e Luiz Cesar Pimentel não

possuem um formato claro de escrita, talvez por ser um trabalho a quatro mãos, e

isso prejudica muito a compreensão do leitor. É possível que a falta de linha

condutora seja consequência da falta de profundidade na pesquisa dos autores pois

isso, inevitavelmente, também prejudicou a própria compreensão dos biógrafos

sobre seu biografado, tornando impossível que eles construam claramente o

personagem para seus leitores. O vai-e-vem na narrativa e a escassa

contextualização do cenário nacional também prejudicam já que, ao contrário do que

acontece nas outras duas biografias analisadas, o leitor não se envolve e,

consequentemente, não se sente presente nas cenas narradas.

A confirmação das hipóteses levantadas é também a confirmação da

importância da essência jornalística, não apenas em biografias e outros gêneros de

livros-reportagem, mas em todo trabalho de registro de fatos: compromisso com a

apuração e confirmação dos dados, sendo que quanto mais amplo for o campo de

pesquisa e abordagem do tema, maior será o entendimento do leitor, que é o

principal beneficiado deste estilo de trabalho. Sendo assim, o estudo e análise da

estrutura biográfica se faz essencial no ambiente acadêmico, pois traz de forma mais

Page 147: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

147

compacta e direta os fundamentos do jornalismo: ter a pauta clara, apurar ao

máximo e usar diferentes técnicas para construir a notícia para o público.

As inferências elaboradas ao fim da análise tornam ainda mais visível essa

essência. Paulo Cesar de Araújo e Denilson Monteiro construíram estruturas

biográficas exemplares, pois além de usarem uma imensa variedade de fontes

também tornaram seus textos fluentes e claros através de diferentes estilos e

técnicas de escrita. Já Antonio Guerreiro e Luiz Cesar Pimentel, ambos jornalistas

por formação, pecaram na base jornalística, se limitando nas fontes e também na

abordagem dos fatos, tornando “Ronnie Von: O príncipe que podia ser rei” inútil, já

que foi ineficaz em revelar diferentes características do biografado e, mais que isso,

torná-lo próximo ao leitor. A superficialidade com que registram fatos da vida do

cantor lembra a constante pressa e limitação do hard news, área que ainda é a

principal referência no jornalismo, porém esta longe de ser o melhor exemplo da

amplitude do trabalho jornalístico. Tudo isso torna ainda mais essencial estudos e

discussões sobre livros-reportagem no ambiente acadêmico, ainda mais se

lembrarmos que é um campo de atuação que ainda tem muito a crescer no Brasil.

Page 148: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

148

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Paulo Cesar. Roberto Carlos em detalhes. São Paulo: Planeta, 2006. Disponível em: <http://migre.me/rT7oh>. Acesso em: 09 ago. 2015. BELO, Eduardo. Livro-reportagem. São Paulo: Contexto, 2006. 141 p. CALDAS, Waldenyr. Iniciação à música popular brasileira. 5. ed. Barueri: Manole, 2010. 106 p. FONSECA JÚNIOR, Wilson Corrêa da. Análise de conteúdo. In: DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio. Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014. Cap. 18. p. 280-304. FRÓES, Marcelo. Jovem Guarda: Em ritmo de aventura. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2000. GUERREIRO, Antonio; PIMENTEL, Luiz Cesar. Ronnie Von: O príncipe que podia ser rei. São Paulo: Planeta, 2014. 158 p. HISGAIL, Fani et al. Biografia: Sintoma da Cultura. São Paulo: Macker Editores, 1996. 103 p. HOLLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Cultura e participação nos anos 60. 10. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. 102 p. LIMA, Edvaldo Pereira. O que é livro-reportagem. São Paulo: Brasiliense, 1993. 71 p.

______. Páginas ampliadas: O livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Barueri: Manole, 2004. 371 p. MEDEIROS, Paulo de Tarso Cabral. A aventura da Jovem Guarda. São Paulo: Brasiliense, 1984. 87 p.

MONTEIRO, Denilson. Dez, nota dez!: Eu sou Carlos Imperial. São Paulo: Planeta, 2015. 407 p.

NAPOLITANO, Marcos. O regime militar brasileiro: 1964 - 1985. 4. ed. São Paulo: Atual, 1998. 106 p. PUGIALLI, Ricardo. Almanaque da Jovem Guarda. São Paulo: Ediouro, 2006. 335 p. RODRIGUES, Maria Socorro Pereira; LEOPARDI, Maria Tereza. O método de análise de contéudo: Uma versão para enfermeiros. Fortaleza: Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura, 1999. 118 p. SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2009. 499 p.

Page 149: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

149

VILAS BOAS, Sergio. Biografias e biógrafos: Jornalismo sobre personagens. São Paulo: Summus, 2002. 175 p.

Documentários UMA NOITE em 67. Direção: Renato Terra e Ricardo Calil. Rio de Janeiro: VideoFilmes e Record Entretenimento, 2010. (85 min.), son., color. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=FOsXaaW4Pkk>. Acesso em: 20 fev. 2016. Homepages DEMETRIUS CANTOR. Disponível em: <http://www.demetriuscantor.com.br/biograf.htm>. Acesso em: 12 mar. 2016. DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. Disponível em: < http://www.dicionariompb.com.br/>. Acesso entre 9 e 14 mar. 2016. WIKIPÉDIA. A enciclopédia livre. Disponível em: <

https://pt.wikipedia.org/wiki/Wikip%C3%A9dia:P%C3%A1gina_principal>. Acesso em: 7 fev. 2016. Leis BRASIL. Ato institucional n. 1, de 9 de abril de 1964. Dispõe sobre a manutenção da Constituição Federal de 1946 e as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com as modificações instroduzidas [sic] pelo Poder Constituinte originário da revolução Vitoriosa. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, 9 abr. 1964. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-01-64.htm>. Acesso em: 13 fev. 2016. BRASIL. Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967. Regula a liberdade de rnanifestação do pensamento e de informação. Diário Oficial da União, Brasilía, DF, 9 fev. 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5250.htm>. Acesso em: 13 fev. 2016. BRASIL. Ato institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965. Mantem a Constituição Federal de 1946, as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com as alterações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da Revolução de 31.03.1964, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 out. 1965. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-02-65.htm>. Acesso em: 13 fev. 2016. BRASIL. Ato institucional n. 3, de 5 de fevereiro de 1966. Fixa datas para as eleições de 1966, dispõe sobre as eleições indiretas e nomeação de Prefeitos das Capitais dos Estados e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 fev. 1966. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/atoins/1960-1969/atoinstitucional-3-5-fevereiro-1966-363627-publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso em: 13 fev. 2016.

Page 150: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

150

BRASIL. Ato institucional n. 4, de 7 de dezembro de 1966. Convocação do Congresso Nacional para discussão, votação e promulgação do Projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 dez. 1966. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=4&tipo_norma=AIT&data=19661207&link=s> Acesso em: 13 fev. 2016. BRASIL. Decreto-lei n. 314, de 13 de março de 1967. Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 mar. 1967. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-314-13-marco-1967-366980-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 13 fev. 2016. BRASIL. Ato institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968. São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais; O Presidente da República poderá decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 dez. 1968. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm> Acesso em: 13 fev. 2016. Reportagens ALQUAS, Gisele. “Tem ex-mulher que vai se aborrecer comigo”, diz Ronnie Von. UOL. São Paulo, 02 ago. 2014. Disponível em: <http://celebridades.uol.com.br/noticias/redacao/2014/08/02/tem-ex-mulher-que-vai-se-aborrecer-comigo-diz-ronnie-von-sobre-biografia.htm>. Acesso em: 24 abr. 2016. DALE, Joana. Carlos Imperial tem sua história contada em livro, musical e documentário. O Globo. 12 abr. 2015. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/musica/carlos-imperial-tem-sua-historia-contada-em-livro-musical-documentario-15827415>. Acesso em: 24 abr. 2016. LIMA, Hector. Goma entrevista: Denilson Monteiro, biógrafo de Carlos Imperial. Goma de Mascar. 26 jan. 2010. Disponível em: <http://gomademascar.net/musica/goma-entrevista-denilson-monteiro-biografo-de-carlos-imperial/>. Aceso em: 24 abr. 2016. LUCCHESE, Alexandre. Roberto Carlos entrará na Justiça se biografia proibida for relançada. ZH. Porto Alegre, 12 jun. 2015. Disponível em: <

http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2015/06/roberto-carlos-entrara-na-justica-se-biografia-proibida-for-relancada-4780131.html>. Acesso em: 7 fev. 2016. PAULO Cesar de Araújo publicará livro sobre Roberto Carlos pela Record. G1. São Paulo, 17 jun. 2015. Disponível em: < http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2015/06/paulo-cesar-de-araujo-publicara-livro-sobre-roberto-carlos-pela-record.html>. Acesso em: 7 fev. 2016.

Page 151: CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO … · fundamental e Normal, ministrado por Franciele Becher. Merci por me mostrar o que foi a ditadura militar brasileira, mas

151

PERRONE, Marcelo. “Imperial é como um show dos Rolling Stones”, diz biógrafo de Carlos Imperial. ZH. Porto Alegre, 4 mai. 2015. Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2015/05/imperial-e-como-um-show-dos-rolling-stones-diz-biografo-de-carlos-imperial-4752185.html>. Acesso em: 24 abr. 2016. RAMALHO, Renan. STF decide liberar publicação de biografias sem autorização prévia. G1. Brasília, 10 jun. 2015. Disponível em: < http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2015/06/stf-decide-liberar-publicacao-de-biografias-sem-autorizacao-previa.html>. Acesso em: 7 fev. 2016. ROBERTO Carlos diz estar satisfeito com decisão do STF sobre biografias. G1. São Paulo, 11 jun. 2015. Disponível em: < http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2015/06/roberto-carlos-diz-estar-satisfeito-com-decisao-do-stf-sobre-biografias.html>. Acesso em: 7 fev. 2016. TEDDY, Luiz. Os primórdios do Rock & Roll no Brasil. Eddy Teddy. 17 mar. 2010. Disponível em: < https://eddyteddy.wordpress.com/2010/03/17/os-primordios-do-rock-roll-no-brasil/>. Acesso em: 9 mar. 2016.