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CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL O RECRUTAMENTO PARA A MARINHA DE GUERRA DO BRASIL ( 1822-1824): ENTRE DOIS EXTREMOS Rosângela Maria da Silva Londrina-PR 2006

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CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

O RECRUTAMENTO PARA A MARINHA DE GUERRA DO BRASIL

( 1822-1824): ENTRE DOIS EXTREMOS

Rosângela Maria da Silva

Londrina-PR

2006

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

Rosângela Maria da Silva

O RECRUTAMENTO PARA A MARINHA DE GUERRA DO BRASIL

( 1822-1824): ENTRE DOIS EXTREMOS

Monografia de Especialização apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de História, na linha de pesquisa História Social. Orientador: Prof.o. Dr.o José Miguel Arias Neto

Londrina -PR

2006

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Rosângela Maria da Silva

O RECRUTAMENTO PARA A MARINHA DE GUERRA DO BRASIL

(1822-1824): ENTRE DOIS EXTREMOS

Londrina -PR 2006

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Agradecimentos

Aos meus pais, Francisco e Dolores, que mesmo não sabendo muito bem aonde tudo ia

dar me apoiaram no que foi possível, me amando e me compreendendo.

Aos meus irmãos, Anderson, Alzenira, Roseli, Rosimeire, Isabel, Dolores e Carlos que

me acompanharam neste processo, especialmente àqueles que estavam comigo na minha luta

cotidiana.

Aos meus sogros, Estela e José Maria que me acompanharam nesta trajetória e me

trataram como filha.

Às amigas, Ariane e Luciana, àquela por ser minha parceira de todas as horas:

solidária nos momentos de aflição, tornou o caminho mais leve. À esta, por sua doce e

prazerosa companhia durante as viagens, que sensível à minha falta de recursos me introduziu

no mundo da informática.

Aos amigos do grupo de pesquisa da Marinha de Guerra: Maira, Gilberto, Maué,

Felipe, Tatiane e Marco Aurélio que fizeram das reuniões momentos alegres e de trocas de

informações. Aos professores, José Miguel Arias Neto pela condução firme e competente do

projeto, e Silvia Lenz que trouxe às discussões temas importantes para o conhecimento

histórico.

À amiga, Rosângela Cristina que digitou o trabalho com paciência, dedicação e

competência.

À Zilmar e Rosimere Riccy que me acolheram carinhosamente em suas casas.

Aos funcionários do Centro de Documentação e Pesquisa do Departamento de História

da Universidade Estadual de Londrina que colaboraram com este estudo.

Às secretárias, Celina Negrão e Neobi Fumiko Kayano, e à todos os professores do

Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina que direta ou indiretamente

contribuíram para a minha formação.

Ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) por me fornecer a bolsa de estudos durante

o período de agosto de 2004 a dezembro de 2004.

Ao meu querido orientador, Prof.o DR.o José Miguel Arias Neto, que acompanhou a

minha caminhada: reconheceu os meus limites mas acreditou na minha superação, a quem,

guardo profundo respeito, admiração e carinho.

Ao amor da minha vida, meu afilhado Jhon Lucas, que foi minha inspiração e fonte de

energia para superar os obstáculos; meu maior orgulho. Quando você nasceu eu nunca

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imaginava em amar-lhe tanto. Mas, como dito na música do Peninha, você foi crescendo,

crescendo, me absorvendo e de repente eu me vi assim completamente seu. Por você, meu

querido, todo o esforço valeu a pena.

Ao meu namorado Odair, meu mecenas, aquele a quem tudo devo. Num final de tarde

de dezembro do ano de 1995 o convidei para fazer parte da minha vida e ele aceitou. Durante

o carnaval de 1996 afirmamos, definitivamente, o nosso namoro, que bom. Vários carnavais

se passaram e aos ritmos do samba tivemos que aprender a dançar, com muita dedicação e

compreensão nos fizemos bons parceiros na dança. Posso afirmar, como na música de

Caetano Velozo, que agora “o nosso amor esta mais firme do que quando começou”. Neste

tempo breve dos homens o acaso nos proporcionou muitos momentos e , em todos eles, meu

amado, foi para mim “como a última luz na varanda a todas as aflições do dia”. ( Dalton

Trevisan)

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Duas coisas me enchem a alma de

crescente admiração e respeito,

quanto mais intensamente e

frequentemente o pensamento

delas se ocupa: o céu estrelado

sobre mim e a lei moral dentro de

mim1. (Immanuel Kant)

1 APUD- GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia : Romance da história da filosofia. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p.360.

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Resumo

Até a criação da Companhia dos Imperiais Marinheiros, em 1836, os dois métodos de

se compor as guarnições dos navios eram: o recrutamento forçado e o alistamento voluntário.

Como este era quase sempre irrisório não abastecendo a quantidade de homens necessários

para abastecer as fileiras das forças armadas recorria-se ao primeiro. O recrutamento forçado

foi basicamente o único método que realmente abasteceu as fileiras da Marinha e do Exército

durante o século XIX, sobrepondo-se ao alistamento voluntário.

As peculiaridades da formação do Estado Imperial brasileiro- assentadas na

permanência da economia escravista e na incapacidade do poder central em estender o seu

domínio eficientemente por todo o território- acabou por favorecer a realização do

recrutamento forçado que, de um lado, fundou-se nas relações patrono-cliente e, de outro,

baseou-se nas determinações legais, expressas nas Instruções de 1822 e na Constituição de

1824.

Desta forma, o objetivo deste estudo foi investigar como se processou a realização do

recrutamento forçado para a Marinha de Guerra, que fundado nestes dois extremos-

representados, por um lado, pelas relações patrono-cliente das regras não escritas e, por outro,

pelas determinações legais das normas escritas- acabaram por se ajustar à natureza política,

social e econômica do Estado Imperial Patrimonialista.

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Abstract

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Sumário

Considerações Iniciais................................................................................................

A escolha do tema .........................................................................................................

A problemática ..............................................................................................................

Capítulos .......................................................................................................................

A monografia ................................................................................................................

Capítulo 1: Caminhando para o recrutamento forçado: historiografia, metodologia e

fontes ...........................................................................................................................

1.1- Historiografia ...................................................................................................

1.2- Metodologia ....................................................................................................

1.3- Fontes .............................................................................................................

Capítulo 2: Espaço e tempo:algumas peculiaridades da formação do Estado Imperial e

da Marinha de Guerra do Brasil ............................................................................

2.1- O Estado Imperial: questão social, política e econômica ................................

2.2- A formação das Forças Armadas do Brasil: suas peculiaridades ....................

2.3- A Marinha de Guerra: o ideal de integridade territorial e unidade nacional ...

Capítulo 3: O recrutamento no Império: entre dois extremos ...........................

3.1- Os desclassificados sociais: bêbados, mendigos e ladrões no recrutamento ..

3.2- Escravos da nação, escravos fugidos e escravos em correção na Marinha de Guerra

3.3- Os dois extremos: a ordem institucional e a economia das regras não escritas....

Capítulo 4: Permanências, mudanças e resistência no recrutamento .......................

4.1- Permanências e mudanças no recrutamento ......................................................

4.2- Recrutamento: o temor da sociedade ................................................................

4.3- A resistência ao recrutamento ..........................................................................

Considerações finais ...................................................................................................

O recrutamento entre dois mundos ...............................................................................

Referências bibliográficas .........................................................................................

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Considerações iniciais

A escolha do tema

Esta pesquisa que se apresenta em forma de monografia ao curso de Pós-Graduação

em História Social da Universidade Estadual de Londrina teve origem no Projeto de Pesquisa,

A Formação da Marinha de Guerra do Brasil (1821-1845), do Professor-Doutor José Miguel

Arias Neto. Deste projeto inicial se construiu um subprojeto com o tema: O Recrutamento

para a Marinha de Guerra do Brasil, que contou com o financiamento da bolsa de pesquisa

PIBIC-CNPq com duração de agosto de 2004 a dezembro de 2004.

Com os recursos da bolsa de iniciação científica foi possível analisar os seguintes

documentos: os relatórios dos Ministros da Marinha (1828 a 1840), a Coleção das Leis do

Império do Brasil (1822 a 1840), as Atas do Conselho de Estado (1822, 1824, 1827, 1834 e

1845) e alguns microfilmes do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) acerca da

Marinha de Guerra brasileira. Esta documentação está disponível no Centro de Documentação

e Pesquisa Histórica (CDPH) da Universidade Estadual de Londrina.

O recrutamento forçado para a Marinha de Guerra do Brasil nos anos de 1822 a 1824 é

o tema desta pesquisa. A escassez de homens que se alistavam voluntariamente para

exercerem o ofício de marinheiros e soldados do Corpo de Artilharia da Marinha levou o

Estado Imperial a recorrer ao recrutamento forçado. Os dois métodos para se compor as

guarnições dos navios eram: o alistamento voluntário e o recrutamento forçado. Caso o

primeiro não suprisse as fileiras com o número desejado pelas Forças Armadas apelava-se

para o segundo. Como era irrisório a quantidade de candidatos que se apresentavam por sua

livre e espontânea vontade, a saída então foi recorrer ao recrutamento forçado. Nesse sentido,

o historiador Álvaro Pereira do Nascimento afirma: o recrutamento tornou-se algo quase

universal no que tange à incorporação de novos soldados e marinheiros, alargando as

fronteiras de seu significado e encampando o que era definido por alistamento militar 2.

2 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Do Convés ao Porto: A Experiência dos Marinheiros e a revolta de 1910. Tese de Doutorado- Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, São Paulo: 2002, p.69.

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A problemática

O problema levantado por este trabalho está relacionado a duas leis do século XIX

concernentes ao recrutamento militar. A primeira diz respeito às Instruções do recrutamento

de 10 de julho de 1822 que em seu artigo terceiro define: ficam sujeitos ao recrutamento

todos os homens brancos solteiros, e ainda pardos libertos, de idade de 18 a 35 anos3.A

segunda está ligada ao artigo 145 da Constituição de 1824 que estabelece: todos os

brasileiros são obrigados a pegar em armas, para sustentar a independência e integridade do

Império,e defende-lo dos seus inimigos externos, ou internos 4.

Partindo destes dois artigos - um inerente às instruções acerca do recrutamento de

1822 e o outro referente aos brasileiros destinados ao serviço militar definido pela

Constituição de 1824 - pretende-se compreender as seguintes questões:

a) O que está nas entrelinhas destas determinações que impedem o alargamento da base do

recrutamento?

b) Qual foi a base política, econômica e social que sustentaram a formação do Estado Imperial

e influenciaram nos meios adotados para a realização do recrutamento forçado?

c) Qual a saída encontrada pelo Estado Imperial para recrutar o número de praças necessários

no serviço da marinha sem atingir a propriedade escravista?

A hipótese levantada é a seguinte: através da análise documental e da leitura

bibliográfica foi possível observar que a formação do Estado Imperial definiu um tipo de

recrutamento que nem sempre seguia as determinações legais. Isto porque, o Estado Imperial

enfrentava dois problemas: a falta de voluntários para servir a Armada - por isso o apelo ao

recrutamento – e a necessidade da preservação da economia escravista. Estes dois extremos –

impuseram ao Estado brasileiro um tipo de recrutamento que, embora herdado da Marinha

Portuguesa, teve no território brasileiro suas peculiaridades, funcionando de acordo com o

pensamento político, econômico e social do período.

Deve-se acrescentar que, a natureza do Estado Imperial, baseada numa estrutura

paternalista e autoritária, impunha regras não escritas à condução do recrutamento forçado.

Observa-se que, em paralelo às leis (Instruções de 1822 e Constituição de 1824) acontece na

prática das relações cotidianas a interferência de fatores de ordem pessoal e particularista

3 Coleção das Leis Brasileiras e mais artigos oficiais, desde a chegada da corte até a época da independência. Parte 15.ª, ano de 1822. Ouro Preto: Typografia Silva, 1837. 4 CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil. São Paulo: Atlas, 1992, p.670.

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entre Estado, proprietários de terras e escravos, e clientes que moldam a realização do

recrutamento.

Capítulos

Em linhas gerais, para a realização desta reflexão o estudo estará dividido da seguinte

maneira: no primeiro capítulo, caminhando para o recrutamento:historiografia, metodologia

e fontes, apresentaremos o material que serviu de subsídio para a pesquisa, as fontes

documentais utilizadas, a abordagem que cada um faz acerca do recrutamento e a metodologia

utilizada para a análise das mesmas.Também tentaremos discutir, através das idéias da

historiadora Paloma Siqueira Fonseca5e do antropólogo Celso Castro6, alguns problemas

inerentes à historiografia naval brasileira, tais como: seu surgimento no século XIX e seu

desdobramento ao longo do século XX, apontando para a escassa produção acadêmica em

relação a assuntos militares e, a importância, no início do século XXI, dos trabalhos de

origem acadêmica dos historiadores: José Miguel Arias Neto7(2001), Álvaro Pereira do

Nascimento8 (2002)e Paloma Siqueira Fonseca (2003) que adentraram nos arquivos da

Marinha e importantes contribuições trouxeram para a história militar brasileira.

O segundo capítulo, refere-se ao espaço e tempo: algumas peculiaridades da

formação do Estado Imperial e da Marinha de Guerra do Brasil. Tentaremos acompanhar o

processo de independência no espaço brasileiro e os discursos em torno da importância de

uma força naval para assegurar a integridade territorial e a unidade nacional. Buscaremos

situar este processo (de formação do Estado Imperial e da Marinha de Guerra) dentro do seu

próprio tempo e espaço, considerando a herança da Marinha Portuguesa na Marinha

brasileira, os problemas com a falta de mão-de-obra voluntária, o recrutamento feito por

Caldeira Brant no exterior, o papel de José Bonifácio na organização da primeira esquadra

brasileira, a participação do lord Alexandre Cochrane nas lutas pela independência, a

interferência da permanência da economia escravista na formação do Estado e das Forças

5 FONSECA, Paloma Siqueira. A Presiganga Real (1808-1831): punições da Marinha, exclusão e distinção social. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília Instituto de Ciências Humanas - Departamento de História. Brasília, 2003. 6 CASTRO, Celso (org.). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004. 7 ARIAS NETO, José Miguel. Em busca da cidadania: praças da Armada Nacional (1867-1910). Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: 2001. 8 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Do convés ao porto: a experiência e a revolta de 1910. Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas- Departamento de História- Campinas, 2002.

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Armadas, entre outros. Neste capítulo, tentaremos mostrar os contornos que definiram as

bases do Estado Imperial e a política adotada para a realização do recrutamento forçado.

No capítulo terceiro, trataremos do recrutamento no Império: entre dois extremos.

Neste momento, tentaremos responder algumas reflexões, tais como: quais eram as leis que

asseguravam a realização do recrutamento forçado? ; até que ponto a Constituição de 1824 e

as Instruções de 1822 conseguiram se efetivar dentro do território brasileiro na realização do

recrutamento? ; qual foi a política que, na maioria das vezes, vigorou em sua prática? ; quais

eram as pessoas recrutadas? . Em suma, este capítulo mostrará como o panorama político,

social e econômico da independência promoveram um tipo de recrutamento condizente com a

filosofia liberal da Monarquia Constitucional brasileira, que tinha como aspectos

fundamentais o paternalismo e o patrimonialismo.

No último capítulo, enfocaremos as razões pelas quais levaram a sociedade imperial a

ter temor pelo recrutamento forçado, enfatizando os processos de permanência, ruptura e

resistência, em torno do mesmo. No item mudanças e permanências, observaremos os

motivos pelos quais favoreceram a sobrevivência do recrutamento forçado ao longo do século

XIX; considerando as reclamações e as propostas dos Ministros da Marinha à Assembléia

Legislativa concernentes a um novo método de se compor as guarnições dos navios. Também

salientaremos o processo histórico que presidiu a Lei de Sorteio Militar de 1874, apontando

para as suas propostas em torno do problema da falta de voluntários. Em relação à resistência,

enfatizaremos como os indivíduos sujeitos ao recrutamento forçado construíram certas

atitudes, de acordo com o seu próprio tempo e espaço, para lidar com os imprevistos advindos

do mesmo. Neste item, enfim, mostraremos que embora houvessem regras escritas para a

realização do recrutamento o homem pobre livre, os excluídos, isto é, os desclassificados

sociais9 elaboraram formas de resistência para ludibriar o recrutamento forçado, seja

buscando laço de proteção diante dos poderosos locais ou recorrendo à fuga para dentro da

matas.

Em linhas gerais, nas páginas que seguem tentaremos mostrar que o estudo acerca do

recrutamento forçado nos traz novas possibilidades de ver de dentro o funcionamento do

Estado brasileiro e de analisar os valores que nortearam os homens dentro do aparelho de

Estado no início do século XIX.

9 Expressão utilizada pela historiadora Laura de Melo e Souza.para definir a camada de homens que viviam à margem da sociedade mineira no século XVIII. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1990.

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A monografia

No texto, Resposta à pergunta: que é esclarecimento o filósofo Immanuel Kant tece

algumas reflexões que parecem ser importantes acerca da construção do conhecimento. Para o

filósofo, o esclarecimento é a libertação do homem da sua menoridade; define a menoridade

como uma condição de incapacidade dos indivíduos de fazerem uso de seu próprio

entendimento e agirem independentemente sem a direção de outro.

Sobre a menoridade afirma: o homem é o próprio culpado dessa menoridade se a

causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de

servir-se de si mesmo sem a direção de outrem 10. Além da falta de decisão e coragem que

asseguram o homem na sua condição de menoridade, Kant também ressalta , que a preguiça e

a covardia são as causas pelas quais boa parte dos homens continuam menores durante toda a

vida. No entanto, o filósofo acrescenta à discussão outro elemento, que diz respeito ao fator

cômodo da condição de menoridade, afirmando:

È tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que me faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha dieta, etc.,então não preciso esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis11.

Segundo Kant, os indivíduos são sujeitos do processo histórico e são eles próprios que

devem dirigir suas próprias vidas através do uso da razão, assim sendo, eles alcançarão a

maioridade. Embora seja cômodo ser menor o filósofo aponta que o homem tem possibilidade

de se libertar dessa sua condição. O que parece importante e atual do pensamento do filósofo

é o combate entre menoridade versus maioridade. Talvez o processo de libertação da

menoridade é o mesmo caminho trilhado pelo pesquisador que pretende construir

conhecimento. Se a menoridade corresponde à falta de conhecimento do homem, a

maioridade é o inverso, com esta o homem consegue pensar por si próprio, é ele que, muitas

vezes, sozinho ou acompanhado passa horas, meses ou anos metido num fundo de arquivo

construindo coisas para se libertar da sua menoridade.

É muito cômodo ser menor, pois o processo que leva o homem a ser senhor de si

mesmo requer, dentre outras coisas, esforço, coragem e decisão. Recorrer ao pensamento de 10 KANT, Emmanuel. Resposta à pergunta: que é esclarecimento [<AUFKLÄRUNG>]? Petrópoles: Vozes, s/d. 11 Idem, p.1

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kant acerca da construção do conhecimento talvez seja uma porta de entrada para

compreender o que é uma monografia. Kant não trata, especificamente, do significado da

monografia mas apenas do processo que leva o homem a se superar da menoridade. Nesse

sentido, pode-se ressaltar que, a oposição que há entre menoridade versus maioridade é a

mesma que existe entre menoridade versus monografia, pois, esta é fruto da busca do homem

em tentar alcançar a maioridade.

Agora, enfim, vamos iniciar esta monografia.

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Capítulo 1

Caminhando para o recrutamento forçado: historiografia, teoria e fontes

1.1- Historiografia

Geralmente quando se fala em estudos feitos na área de história militar logo vem ao

pensamento trabalhos que enfocam apenas batalhas, táticas e heróis militares, desvencilhando

assim, a história militar da história mais ampla da sociedade. Isto porque, existem poucos

trabalhos de historiadores acadêmicos que versam sobre a Marinha de Guerra, quem detém a

produção historiográfica sobre este tema são os militares, geralmente comandantes, almirantes

e oficiais. Em relação à produção acadêmica, o antropólogo Celso Castro afirma:

A história militar acadêmica tem sido uma trajetória difícil no Brasil. A expansão das universidades e o fortalecimento da história como profissão (a partir da segunda metade do século XX) coincidiram com a intensificação do envolvimento militar na política e, acima de tudo, com o regime militar de 1964-85, que desencorajou a pesquisa acadêmica sobre as Forças Armadas. A academia dedicou pouca atenção à história militar para além do estudo do envolvimento militar na política12.

O pouco envolvimento da academia à questão militar, implicou que a produção

historiográfica fosse realizada pelos próprios militares. No caso da historiografia naval, esta

possui uma série de problemas, a começar pela forma saudosista e patriótica que historiadores

navais abordam as vitórias conquistadas pela Marinha de Guerra, apontando uma grande

paixão pelas glorias do passado.

A historiadora Paloma Siqueira Fonseca, salientou na sua dissertação de mestrado que,

este tipo de visão acerca da história militar - vinculada ao estudo de batalhas, tática e heróis-

muito foi favorecida pela produção historiográfica naval que por longo tempo predominou

sobre a produção historiográfica acadêmica; revelando limites e contribuições para a história

da marinha, nesse sentido, Fonseca afirma:

O fato de as pesquisas sobre a história naval terem sido realizadas pela própria corporação aparentemente desobrigou os historiadores não militares dessa tarefa, acolhida com interesse e conhecimento de causa pelos fardados. Somando o traquejo dos termos técnicos ao empenho por

12 CASTRO, Celso (org.). Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

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conhecer um pouco mais sobre a história da marinha, eles “navegaram” com desenvoltura pelo passado de sua instituição. Talvez sua limitação estivessem em “mergulhar” nas questões que interessassem principalmente ao seu ofício militar, o que não deixa de ser uma qualidade, pela preciosidade das informações trazidas à tona para outros historiadores. Mas eles se envolvem com um certo passado, adotando uma perspectiva excessiva ou exclusivamente centrada na marinha13.

Em relação à produção historiográfica naval brasileira, deve-se considerar que, se

iniciou na década de 1870 e se desenvolveu ao longo do século XX, com destaque nas

décadas de 1930, 40 e 50. Paloma Siqueira Fonseca utilizando-se do conceito de geração

empregado por Karl Manhein - que considera como fatores para a existência de uma geração

não apenas a faixa etária dos seus componentes, mas os aprendizados comuns e as

experiências comuns - aponta que Teotônio Meireles da Silva14,Manoel Pereira Pinto Bravo15

e José Egidio Garcez Palha16 podem ser considerados a primeira geração de historiadores

navais. Estes oficiais, em suas obras, deram à história naval um perfil de disciplina que

estudava apenas batalhas, devido a tendência em abordar as campanhas navais.

A segunda geração de historiadores navais baseou-se nos trabalhos da tríade anterior,

só que resgataram os documentos, incorporando assim, o valor documental à sua própria

produção intelectual, de modo a ter o documento como elemento essencial para o estudo do

passado. Segundo Palome S. Fonseca, esta geração de historiadores navais constituíram a

geração que sofreu, de forma mais contundente, do que se pode chamar de mal de arquivo.

Para a autora, o mal de arquivo é um conceito de Jacques Derrida17 utilizado para designar a

pulsão que historiadores do passado possuíam em relação aos arquivos. Na definição de

Derrida estar com mal de arquivo é:

É arder de paixão. É não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa nele se anarquiva. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno

13 FONSECA, Paloma Siqueira. A presiganga real (1808-1831): punições da Marinha, exclusão e distinção social. Dissertação de mestrado. Universidade de Brasília - Instituto de Ciências Humanas, Departamento de História. Brasília, 2003. 14 SILVA, Teotônio Meireles da. Apontamentos para a história da Marinha de Guerra brasileira. Rio de Janeiro: Perseverança, 1881-1883. 15 BRAVO, Manoel Pereira Pinto. Curso de História Naval. 28 ed., Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1959. 16 PALHA, José Egidio Garcez. Efemérides Navais: Resumo dos Fatos mais Importantes da História naval brasileira desde 1° de janeiro de 1822 à 31 de setembro de 1890. 28.ª ed., Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1983. 17 DERRlDA, Jacques. Mal de Arquivo: Uma impressão Freudiana. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001.

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à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia de retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto18.

Na década de 1970, surgi uma outra vertente da historiografia naval, representada por

Max Justo Guedes, Herick Marques Caminha e Hélio Leôncio Martins, que baseados nos

trabalhos da geração anterior enfocam suas pesquisas na história naval do Brasil colonial e

republicano. As duas coletâneas: História Naval Brasileira e Navigator são frutos desta

geração.

Estes historiadores navais se interessaram pela história de sua corporação e pela

história regional. Segundo Fonseca, estes pesquisadores também folcloristas, filólogos,

tradutores, biógrafos, conferencistas, prosadores ou poetas, forneceram à história naval um

estilo apologético. Os seus valores ligados à tradição, à família e à pátria, propiciaram a

difusão do amor à marinha. Esta situação é vista nos seguintes trechos dos historiadores

navais, sendo o primeiro de João do Prado Maia e o segundo de Lucas Boiteux:

O Brasil precisa olhar com olhos de amor para a sua Marinha: ela tem sido sempre, em todos os momentos críticos da vida nacional, a dedicação que se não quebranta, o apoio decidido que nunca faltou e nem faltará! Ontem e hoje, na atividade ou reformado, foi sempre meu hábito tomar de minha canhestra pena, como ainda agora o faço, para exaltar a nossa marinha, lembrando seus gloriosos feitos e seus grandes vultos, no propósito de incentivar o culto à tradição no seio das gerações que reponta 19.

Em linhas gerais, a maior parte das pesquisas sobre história naval tem sido realizadas

pela própria corporação. E isto se constitui num problema, tendo em vista que esses

historiadores militares vinculando suas produções ao ofício militar desempenhado, se

envolvem com o passado, passando a adotar uma perspectiva excessiva ou exclusivamente

centrada na Marinha. Desta forma, esta pesquisa tenta se distanciar da perspectiva dos

historiadores navais, mas não abandonando a contribuição que tais produções oferecem.

O antropólogo, Celso Castro20, analisando a trajetória da produção acadêmica acerca

da história militar observou que a História geral da Civilização Brasileira, publicada em 10

18 APUD- FONSECA, Paloma Siqueira. A presiganga real(1808-1831): punições da Marinha, exclusão e distinção social. Dissertação de mestrado. Universidade de Brasília- Instituto de Ciências Humanas, Departamento de História. Brasília, 2003, p.24. 19 APUD- FONSECA, Paloma Siqueira. Idem, p.28. 20 CASTRO, Celso (org.). Nova História Militar Brasileira. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 2004.

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volumes entre 1960 e 1981, revela a presença limitada de assunto militares na historiografia

brasileira. Dentro desse quadro há a exceção do trabalho de José Murilo de Carvalho que

contribuiu com uma análise do papel desestabilizador das Forças Armadas na política da

República Velha. Em 1965, aparece a primeira edição da História Militar do Brasil de Nelson

Werneck Sodré onde reinterpreta a história militar do Brasil de um ponto de vista marxista e

manifesta o desejo de que os militares reassumissem seu papel historicamente progressista

como defensores das instituições democráticas e da livre expansão econômica nacional.

Castro, fazendo um levantamento da história militar no Brasil - não se atendo apenas à

produção historiográfica naval como fez Fonseca- observou que durante o século XIX ela foi

dominada por trabalhos de viés literário. Ladislau dos Santos Titara, oficial baiano com

aspirações a poeta, publicou um poema épico em dois volumes sobre a Guerra da

Independência entre 1835 e 1837 na Bahia. Visconde de Taunay, publica em Paris, no ano de

1837, o clássico literário A retirada da laguna, no qual retrata a expedição ao Mato Grosso no

contexto da Guerra do Paraguai. Após trinta anos da Guerra do Paraguai o oficial Dionísio

Cerqueira escreve As reminiscências da Guerra do Paraguai, expondo suas experiências

obtidas durante a campanha. Nesta linha literária do século XIX, também há a produção de

Euclides da Cunha que escreve sobre a destruição de Canudos no clássico, Os Sertões.

O antropólogo também salienta sobre as contribuições significativas feitas por

estrangeiros à história militar brasileira, enfocando os trabalhos de George Thompson, Max

von Versen, Francisco Adolfo Varnhagen e Louis Schneider. Mas, para o autor, foi somente a

partir da década de 1890 que emergiu um gênero identificável de história militar brasileira,

coincidindo com o crescimento e o fortalecimento institucionais do exército21.

Neste período, o exército deu apoio institucional aos escritores militares. Nas

primeiras décadas do século XX, muitos militares construíram sua reputação como

historiadores, tais como: Emílio Fernandes de Souza Docca, Augusto Tasso Fragoso e

Francisco de Paula Cidade. Segundo Castro, o historiador militar Francisco de Paula Cidade,

em 1959, consegue sintetizar três séculos de literatura militar brasileira, apontando alguma

atenção para a história social e encerrando o trabalho de todo um estilo e uma geração de

historiadores militares22.

Durante as décadas de 1910 e 1920 a história militar brasileira foi abatida por

características românticas e patrióticas. Neste período, houve uma significativa produção a

21 CASTRO, Celso. Op. Cit, p.14. 22 Idem, p.17.

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cerca de biografias em torno das figuras de Caxias e Osório, favorecendo a construção de uma

história militar de valorização dos grandes feitos e homens.

No que diz respeito às instituições que auxiliam e incentivam a pesquisa em torno da

história militar, Castro ressaltou o papel da Biblioteca do Exército Editora (antiga Biblioteca

Militar) que, embora tenha publicado uma série de livros com temas militares ainda continua

a publicar trabalhos de autores de seu interesse; com forte tendência tradicional e traduções

estrangeiras. Outra instituição que importantes contribuições vêm trazendo é o Centro de

Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc) da Fundação Getúlio

Vargas. Criado em 1973, o Cpdoc vem coletando arquivos e depoimentos de oficiais

participantes dos eventos políticos e militares do século XIX.

Segundo Castro, na década de 1990 houve a confluência da democratização e maior

confluência da história social, da antropologia e da ciência política sobre os estudos militares.

Portanto, embora tenha havido um aumento na produção acadêmica acerca da história militar,

deve-se ressaltar, segundo Castro, que poucos pesquisadores abriram o caminho nos arquivos

da Marinha. Nesse sentido, no início do século XXI surgiram algumas produções de origem

acadêmica que tem se aproximado da questão militar, especificamente da Marinha do Brasil.

Os trabalhos acadêmicos dos historiadores José Miguel Arias Neto (2001), Álvaro Pereira do

Nascimento (2001) e Paloma Siqueira Fonseca (2003) são exemplos desta produção que

importantes contribuições trazem para a compreensão da Marinha brasileira.

José Miguel Arias Neto23 , em tese de doutorado, foca seu olhar na questão da

cidadania entre praças da Armada na passagem do Império à República, analisando em

específico a revolta dos marinheiros de 1910. O autor analisa a dinâmica política e social na

qual se insere a Marinha de Guerra enquanto instituição do Estado, afim de verificar as

transformações que teriam ocorrido na estrutura da força, ao longo do período que vai da

formação do Estado Nacional até o início do século XX; apontando que o movimento de 1910

exigia reformas gerais no sistema militar que se encontrava abalado por distúrbios

hierárquicos e descuidos com a vida profissional. Aquele sistema militar, baseado no

recrutamento forçado e num regime de suplícios, foi construído e consolidado ao longo do

Império brasileiro. O objetivo do movimento de 1910 era o de implantar modernas relações de

trabalho e de hierarquia na Armada, mas conseguiram protagonizar um evento novo na

23 ARIAS NETO, José Miguel. Em busca da cidadania: Praças da Armada Nacional (1867-1910). Tese (doutorado em história), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, SP: 2001.

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história das Forças Armadas reivindicando-se sujeitos de direitos e exigindo seu

reconhecimento como cidadãos republicanos.

Álvaro Pereira do Nascimento24, em sua dissertação de mestrado, analisa a disciplina

em vasos de guerra e o alistamento militar para a Armada, no Segundo Reinado. Nascimento

observa que havia uma praxe dos castigos corporais, onde o livre arbítrio dos comandantes é

que determinava na hora de punir indisciplinas e insubordinações de marinheiros, mandando

aplicar as chibatadas conforme a falta cometida e as próprias condições físicas do infrator. O

autor ressalta que os castigos físicos tinham o intuito de exemplar o restante da guarnição e

corrigir o faltoso pela dor e humilhação. Para Nascimento, a Marinha daquele período era

instituição de correção, para lá eram mandados, através do recrutamento, os incorrigíveis. A

Marinha fornecia liberdade a escravos e funcionava como meio de ascensão social.

Paloma Siqueira Fonseca25 , pesquisando sobre a Presiganga - navio que servia de

prisão - ressalta que a sua tripulação era composta de homens que em decorrência da servidão

penal ou recrutamento forçado, foram utilizados em empreendimentos da Marinha. A

Presiganga ficava sob os cuidados do Arsenal da Marinha do Rio de Janeiro, que se incumbia

de realizar o recrutamento de homens para os trabalhos do próprio estabelecimento e para o

serviço militar em navios de guerra. Para a autora, o trabalho forçado, o recrutamento forçado

e o castigo corporal são considerados formas de punição para grupos excluídos, absorvidos

por uma instituição militar que valorizava a distinção.

Assim, pode-se dizer que esta produção acadêmica rompe com aquelas abordagens

feitas por historiadores navais que contaminados pelo mal de arquivo atribuíram às suas obras

características mais saudosistas e menos analítica. Outro elemento a ser considerado é que,

todos os historiadores ( Arias Neto, Nascimento e Fonseca) tocam na questão do recrutamento

forçado, no entanto, nenhum tem este problema como objeto central de suas pesquisas. Nesse

sentido, este estudo visa compreender como se realizava o recrutamento forçado,

compreendendo-o dentro do processo de formação do Estado Nacional.

1.2- Metodologia

A documentação e bibliografia foram analisadas a partir dos pressupostos

metodológicos apontados por Marc Bloch que escreveu: (...) os documentos não aparecem,

24 NASCIMENTO, Álvaro Pereira. A Ressaca da Marujada: Recrutamento e Disciplina na Armada Imperial. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2001. 25 FONSECA, Paloma Siqueira. Op. Cit.

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aqui ou ali, pelo efeito de um qualquer imperscrutável desígnio dos deuses. A sua presença

ou sua ausência (...) dependem de causas humanas que não escapam de forma alguma à

analise (...)26. Jacques Le Goff, discípulo de Bloch, considera: só a análise do documento

enquanto documento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo

cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa27.

É concebendo o documento como uma produção humana e tendo o historiador como o

cientista capaz de compreender o passado a partir do presente, utilizando-se da crítica interna

e externa ao documento, Bloch enfatiza a importância de interrogá-lo, pois não podemos tê-lo

como prova de verdade, devemos questioná-lo e compará-lo com outros do mesmo tempo e

espaço. Em relação à história do presente, o historiador deve: compreender o passado a partir

do presente e compreender o presente à luz do passado28. Este vaivém entre passado e

presente permite compreender o conhecimento das sociedades antigas e esclarecer sobre ela

mesma a sociedade atual.

Nesse contexto, a problemática levantada pelo historiador com relação ao seu objeto

de estudo (que é o passado) está banhada pela atmosfera do presente, isto quer dizer que,

embora o historiador se utilize de métodos de investigação histórica para manter uma certa

distância do seu objeto de estudo, não estará livre das “pressões do presente” que o cerca.

Nesse sentido, Bloch combate a objetividade da história e promove a ascensão da

subjetividade do historiador no trato com o passado. Assim, embora o fato não seja passível

de mudanças a interpretação que obtém sofre alterações em decorrência da interferência

subjetiva do historiador e também, da evolução das técnicas ao longo do tempo. O passado é,

por definição um dado que coisa alguma pode modificar. Mas o conhecimento do passado é

coisa em progresso, que ininterruptamente se transforma e se aperfeiçoa29.

Este estudo analisa a esfera política relacionada à esfera social, econômica, cultural,

etc. Não é um estudo em torno dos acontecimentos políticos, mas sim nas ações dos

indivíduos que estão socialmente, politicamente, economicamente e culturalmente engajados

no processo de construção histórica.

Assim, a história política tratada nesta pesquisa, pretendeu, a partir do suporte

metodológico apontado por Marc Bloch para a análise dos documentos, desvincular-se da

história linear, factual, narrativa, ou como diz Le Goff: 26 BLOCH, Marc. Apologia da História. 23 ed. Rio de Janeiro, Jorge Zabar,2001, p. 83. 27 LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento”. In: Enciclopédia Enaud. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1984VI Memória/História, p. 102. 28 É um pressuposto de Marc Bloch, citado por Guiz Bourde e Herve Martim. In: As escolhas históricas. Publicações Europa-América, Portugal, 1983, p. 128. 29 BLOCH, Marc. Op. Cit,p. 109.

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Essa história política que é por um lado, uma história narrativa e, por outro, uma história de acontecimento, uma história factual, teatro de aparências que marcara o verdadeiro jogo da história, que se desenrola nos bastidores e nas estruturas ocultas em que é preciso ir detectá-lo, analisá-lo e explicá-lo30.

Em relação a esta história política factual e narrativa, René Remond considera que,

este tipo de história ignora a pluralidade dos ritmos que caracterizam a história política, uma

vez que esta se desenrola simultaneamente em registros desiguais: articula o contínuo e o

descontínuo, combina o instantâneo e o extremamente lento31. Segundo o autor, existe um

conjunto de fatos que se sucedem num ritmo rápido e que correspondem a datas precisas,

como por exemplo: golpes de estado, dias de revolução e mudanças de regime. Mas, existem

outros fatos que se inscrevem numa duração média que são a longevidade dos regimes, a

existência dos partidos políticos, dentre outros. Ainda existem os fatos de uma duração mais

longa que são as ideologias que inspiram as formações políticas. Para Remond, a história da

longa duração explica os comportamentos das microssociedades que se fundem na sociedade

global.

René Remond propondo uma nova história política ressalta que, o político possui

relações com os outros domínios, vinculando-se por toda espécie de laços a todos os outros

aspectos da vida coletiva. Assim, o político não se constitui num setor separado, mas sim,

uma modalidade da prática social. Segundo Remond, se o político deve explicar-se antes de

tudo pelo político, há também no político mais que o político32 .Nesta perspectiva, o político

apresenta-se como um elemento da sociedade que abrange em si o social, o econômico, o

cultural e o ideológico. Com isto, o autor alarga as fronteiras da história política, apontando

para a complexidade que envolve o político, uma vez que se constitui não como um aspecto

isolado da sociedade, mas como elemento que se integra com todos os aspectos que a formam.

Neste sentido, esta pesquisa tentou seguir os caminhos da nova história política

apontados por René Remond, que nos coloca a necessidade de vincular ao trabalho

historiográfico o estudo das massas e da coletividade, enfatizando assim, para a superação da

história política na qual se baseava nos grandes feitos e nos grandes homens. Desta forma,

30 LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 31.

31REMOND, René (Org.). Por uma História Política. ROCHA, Dora (Tradutora). Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1996, p.34. 32 Idem, p.36.

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pretendeu-se fazer uma pesquisa que abarcasse toda a complexidade do jogo político,

enfocando todos os atores que formam o conjunto da sociedade.

1.3- Fontes

As fontes utilizadas nesta pesquisa foram: os Relatório dos Ministros da Marinha

(1828-1840), as Atas do Conselho de Estado (1822-1840), a Coleção das Leis do Império

(1822-1840) e os Microfilmes do Acervo da Marinha do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro. Estes documentos se encontram no Centro de Documentação e Pesquisa Histórica

da Universidade Estadual de Londrina - IRCH/UEL.

Os Relatórios dos Ministros da Marinha passaram a existir a partir de 1828, pois tais

Ministros tiveram que prestar contas anualmente à Assembléia Legislativa, por meio de

relatórios e propostas orçamentárias. De 1828 a 1840 têm-se treze relatórios. Os Ministros que

tomaram a pasta neste período foram: Diogo Jorge de Brito (1828), Miguel de Souza Mello e

Alvim (1829), Francisco Vilela Barbosa (1830), José Manoel de Almeida (1831), Joaquim

José Rodrigues Torres (1832, 1833, 1834 e 1838), José Pereira Pinto (1835), Salvador José

Maciel (1836 e 1837) e Jacinto Roque de Sena Pereira (1839 e 1840). Também foram

analisados dois relatórios dos Ministros da Guerra: Thomaz Joaquim Pereira Valente (1830) e

José Manoel de Morais (1831). Estes Relatórios são de uma vastidão imensa de informações.

Neles os Ministros registram todos os assuntos inerentes à Marinha brasileira, como:

construção de estaleiros, corte de árvores para a construção naval, crise financeira,

necessidade de aumento de soldos, deserção, recrutamento, disciplina, propostas para fixação

de forças de mar, incentivo para o alistamento voluntário, entre outros. No que diz respeito ao

tema da pesquisa, observa-se que em quase todos os relatórios pesquisados os Ministros

tocam na questão do recrutamento, exceção aos anos de 1829 e 1831.

No relatório de 1828, o ministro da Marinha Diogo Jorge de Brito, propõe o aumento

de prêmios para adquirir marinhagem voluntária a fim de completar as guarnições. O ministro

da Guerra, Bento Barroso Pereira, fala dos embaraços do governo em relação ao

recrutamento, enfatiza a falta de uma previdente lei que o regule eficazmente e, acrescenta

que, o governo querendo poupar os braços nacionais à agricultura e indústria do Império

julgou melhor engajar recrutas entre os estrangeiros, mas devido a ineficácia deste

engajamento foi obrigado a pedir 2340 recrutas às diferentes províncias. As província isentas

do recrutamento foram: Ceará, Mato Grosso, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

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Em 1830, o ministro da Marinha, Francisco Vilela Barbosa- Marques de Paranaguá-

relatou que as obras do Arsenal da Corte estavam sendo realizadas com a mão-de-obra de

presos sentenciados a trabalhos públicos e com 190 escravos da nação de diferentes sexos e

idades. Segundo o ministro, o governo deveria vender tais escravos e substituí-los por mão-

de-obra livre e assalariada.

No relatório de 1832, o ministro da Marinha, Joaquim José Rodrigues Torres, expõe à

Assembléia Legislativa que o método do recrutamento traz para dentro das embarcações o

espírito de indisciplina, neste sentido, propõe a organização de um novo Regimento

Provisional, pois este era vago e incompleto concorrendo para consagrar a indisciplina e a

impunidade. Em 1833, o ministro novamente toca na questão do recrutamento, desta vez

enfatiza uma série de vantagens nas quais os voluntários se disponibilizam, em detrimento dos

recrutados. Aqueles trabalham por curto espaço de tempo e recebem prêmios quando

assentam praças. Para Rodrigues Torres, esta atmosfera de desigualdades levam os

marinheiros recrutados a recorrerem às deserções, acarretando a diminuição da força material

das embarcações e a repugnância ao serviço militar. Em relação ao engajamento de

estrangeiros, por si só, melhores resultados não produziria, tendo em vista que não possuíam

interesse pelo serviço nacional e nem poderiam completar as tripulações dos navios de guerra,

devido o número insuficiente de engajados.

Em 1833, Rodrigues Torres observa que, o prêmio de engajamento era oneroso ao

Tesouro Público podendo produzir na navegação mercante uma influência desastrosa,

elevando as soldadas dos marinheiros que se empregavam na marinha poderia concorrer para

entorpecer e definhar a navegação mercante.

O ministro da Marinha, José Pereira Pinto, em 1835, expôs à Assembléia Legislativa

que o recrutamento forçado e o engajamento voluntário eram os dois métodos utilizados pela

Marinha inglesa para fornecer a esquadra de marinheiros. Sobre o recrutamento forçado,

muitos escritores ingleses e estrangeiros declaravam que era oposto às liberdades inglesas. Os

reclamos, contra este método, levou, em 1676, o governo inglês a consultar os juizes e

advogados da Coroa sobre a constitucionalidade da medida. A decisão foi que, o Rei tinha um

indefectível direito aos serviços de seus súditos quando a defesa os requeriam. Em relação ao

alistamento voluntário e recrutamento forçado, José Pereira Pinto afirma: “Adoptai,

senhores,este mesmo princípio que he de eterna verdade: combinai hum com outro

recrutamento”33.

33 RELATÓRIO apresentado à Assembléia Legislativa em 1835 pelo ministro da Marinha José Pereira Pinto. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1876.

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Em 1836, o ministro da Marinha Salvador José Maciel, critica o recrutamento, dizendo

que além de ser moroso por causa das grandes distâncias ele traz para as embarcações homens

de lugares remotos com visível incapacidade física, de avançada idade e pais de família.

No relatório de 1838, Rodrigues Torres enfoca a resolução de 15 de outubro de 1836

que autorizava o governo a formar quatro Companhias fixas de Marinheiros de cem praças

cada uma. Mas pela lei de 10 de outubro de 1837 o governo ficou autorizado a elevar a dez o

número das ditas Companhias. Nestas Companhias se pretendiam dar instruções aos

marinheiros em relação a artilharia, fuzil e todas as armas que se usarem em combates navais.

Para Rodrigues Torres, com a organização dos marinheiros em Corpos Permanentes não

haveria a falta de marinhagem quando houvesse a necessidade de armar repentinamente

qualquer navio.

No relatório de 1840, o ministro da Marinha, Jacinto de Roque de Sena Pereira, além

de mostrar a ineficácia do recrutamento forçado, uma vez que as províncias remetiam aos

quartéis homens estropiados por velhice ou defeito físico, impossibilitados inteiramente para a

vida do mar, aponta para o fato de que, enquanto o governo não melhorasse a sorte dos

homens que se destinavam à vida do mar não poderia contar com braços fiéis para o serviço

da nação.

A Coleção das Leis do Império foi analisada de 1822 a 1840. Esta Coleção compõe-se

de Avisos, Portarias, Decretos e Decisões. Em 10 de julho de 1822 o Governo, através de

Decreto, estabelece as instruções para o recrutamento. Estas instruções são compostas de

dezoito artigos, em cada um observa-se o cuidado da política imperial em proteger o sistema

escravista e a necessidade de estabelecer o recrutamento em torno de homens que não

estivessem empregados na mineração e na escravidão.

Em 25 de fevereiro de 1823 o Intendente da Corte manda um ofício ao Imperador

pedindo esclarecimentos se deveriam ou não ser admitidos para servirem a bordo da nau

Pedro I, os marinheiros e grumetes escravos, que foram oferecidos pelos seus respectivos

senhores, fazendo abonar a estes as competentes gratificações. O Imperador responde que,

tendo em vista a necessidade de se ter marinheiros, deveria o Intendente da Marinha admitir

tais escravos. O Decreto de 25 de Junho de 1831 estabelecia a proibição da admissão de

escravos como trabalhadores ou como oficiais das artes necessárias, nas estações públicas da

província da Bahia.

Em relação às Atas do Conselho de Estado, deve-se considerar que, para José Honório

Rodrigues o Conselho de Estado foi uma das mais importantes instituições imperiais, sendo

denominado pelo Senador Paula e Souza como o “Quinto Poder”. Rodrigues acrescenta que o

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Marquês de São Vicente foi quem primeiro observou que o Conselho de Estado servia como

espécie de Primeira Câmara, junto ao Poder Moderador. O Conselho de Estado foi extinto em

1834 e recriado pela Lei de 23 de novembro de 1841, que estabeleceu novamente sua função

preliminar e complementar do Poder Legislativo. Para este trabalho, a discussão que acontece

no ano de 1826 acerca do Projeto de Lei de recrutamento e fixação das forças de terra e mar

parece ser de muita importância, tendo em vista que cada um dos Deputados presentes na

Sessão expõe um problema existente nas Instruções de 1822 que tratam do recrutamento.

Outra discussão no Conselho de Estado que também evidencia os problemas com o

recrutamento acontece em 1837, a discussão atravessa cinco Sessões na Assembléia

Legislativa que corresponde aos dias 20, 26 e 30 de junho e 01 e 05 de julho.

Durante as sessões, nas quais se discutia a fixação das forças de mar e terra, as

propostas dos ministros da Marinha e Guerra quase sempre não eram aceitas. Veja que

durante a Guerra dos Farrapos em 1837, o ministro da Guerra José Saturnino pediu que fosse

elevada a força para 4 mil praças em tempo de guerra e 3 mil em tempo de paz, também pede

para se engajar pessoas dentro e fora do Império e fazer reformas nas instruções do

recrutamento de 1822. José Saturnino ressaltou que, o governo encontrava muitos embaraços

para o complemento da força, pois os homens aptos para servirem na Marinha ou Exército

achavam-se alistados na Guarda Nacional, onde poderiam entrar todos os que tivessem renda

de 200 mil réis, incluindo assim todos os cidadãos: o que restavam para as forças de mar e

terra eram homens aleijados, doentes, miseráveis ou velhos. Saturnino enfatiza a morosidade

do recrutamento e a necessidade do Corpo Legislativo de conceder um meio mais profícuo de

recrutar as forças que anualmente se decretar.

Sobre a proposta de aumento da força de mar e terra, o deputado Maciel Monteiro

observa que, este aumento acarretaria em um ônus à população e ao governo, ressaltando que

não seria o acréscimo da força que asseguraria a ordem pública, mas entendia que era

necessário que o governo responsabilizasse e castigasse a insubordinação e rebeldia, com

mais vigor alguns chefes das forças.

Mesmo assim, o ministro Saturnino pede uma lei de recrutamento mais ampla,

apontando que a Constituição de 1824 determinava: todos os cidadãos brasileiros são

obrigados a pegarem armas para defender a Pátria. No entanto, o que se observava era um

número cada vez mais restrito de homens que pegavam em armas, e encerra o discurso

dizendo:

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uma lei de recrutamento é opressiva, porque tudo quanto é lei é opressiva, porque uma lei não é se não a coarctação da liberdade. Uma vez que o cidadão esta sujeito a uma norma das suas ações, tem a sua liberdade coarctada. Tributos, recrutamento, são leis opressivas, enfim, é opressivo o recrutamento porque pertence a uma classe de coisas opressivas que são as leis em geral34.

O que se evidencia do discurso do ministro é que, reconhece as arbitrariedades do

recrutamento forçado e por isso aponta a necessidade de ampliar a sua base, pois só assim a

nação teria os braços necessários para sustentar a integridade territorial e a unidade nacional.

Os microfilmes do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro são compostos de ofícios

dos presidentes das províncias aos ministros da Marinha ou destes para aqueles; ofícios do

Intendente da Corte ao ministro da Marinha, enfocando sobre algum aspecto da Marinha, tais

como: corte inadequado das árvores, indisciplina, recrutamento, situação dos Arsenais e

estaleiros, prêmios aos engajados, deserção, etc... Foram microfilmados jornais do século

XIX, despachos governamentais, cartas, entre outros. Nesta pesquisa, foi utilizado o

microfilme que tratou da propaganda feita por Domingos Alves Branco Muniz Barreto à

Imprensa Nacional do Rio de Janeiro em 8 de outubro de 1823 ao Almirante da Esquadra

brasileira Lord Cochane. Também foi analisado um microfilme no qual relatava sobre o

número de marinheiros engajados e recrutados da província do Ceará com destino à Corte a

bordos do navio Felix, no ano de 1834.

34 ATAS do Conselho de Estado. Sessão de 24 de junho de 1837. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1870, p.240.

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Capítulo 2

Espaço e tempo:algumas peculiaridades da formação do Estado Imperial e

da Marinha de Guerra do Brasil

2.1-O Estado Imperial: questão social, política e econômica

O ponto de partida para compreender a construção dos Estados (e das forças armadas) Nacionais na América Latina se localiza no processo de independência, uma vez que ele determinou, nas várias regiões do continente, diferentes ritmos de desagregação dos traços econômicos e políticos do passado colonial35.

A Independência do Brasil em 1822 adquiriu características singulares que a

diferenciou dos processos de independência das colônias americanas. Enquanto que o

processo de formação estatal da América Latina foi marcado pelo rompimento dos laços de

subordinação com as metrópoles ibéricas, no Brasil, é o próprio governo metropolitano quem,

premido pelas circunstâncias, embora ocasionais,que faziam da colônia a sede da

monarquia, é o governo metropolitano quem vai paradoxalmente lançar as bases da

autonomia brasileira36 .

O historiador Caio Prado Júnior, ao analisar a Independência do Brasil tenta

compreendê-la através da idéia de processo histórico, onde o ano de 1822 é o resultado de um

processo que se inicia em 1808 com a vinda da Corte para o Brasil, constituindo o fator

essencial que lançou as bases da singularidade do processo de independência brasileira, pois:

a transferência da Corte constituiu praticamente a realização da nossa independência. Não

resta a menor duvida que ela viria, mais cedo ou mais tarde, mesmo sem a presença do

Regente, depois rei de Portugal37.

As circunstâncias históricas do contexto brasileiro impediu que o processo de

independência tomasse o mesmo rumo que as independências da América espanhola. Pois, em

1808, a América portuguesa passou por uma experiência única no mundo colonial ao receber

a família real em fuga da invasão napoleônica. O Império português, protegido pela

Inglaterra, transferiu sua sede para o Brasil. Neste período, romperam-se os elementos

35 COSTA, Wilma Peres. A espada de Dâmocles: o exército, a guerra do Paraguai e a crise do Império. São Paulo: Editora Hucitec- Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1996,p.33. 36 PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos. 11.ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1979, p.42. 37 Idem, p.43.

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fundamentais do pacto - colonial: estabeleceu-se a liberdade de comércio, extinguiram-se os

obstáculos ao comércio interprovincial e as proibições de estabelecimentos fabris em território

brasileiro. Segundo Prado Júnior, a presença da Corte em território colonial consolidou a

centralização administrativa por meio do estabelecimento de diferentes ramos jurídicos,

administrativos e militares do aparelho de Estado.

Outro elemento apontado pelo autor diz respeito aos arranjos políticos que permearam

a realização da emancipação do país. O período que se estende da partida de D.João à

proclamação da independência é caracterizado por um ambiente de manobras de bastidores,

em torno do príncipe regente. De um lado, estavam os partidários da autonomia política que

pretendiam garantir as conquistas obtidas durante a estada da família real. De outro, estavam

as Cortes portuguesas que desejavam a recolonização. Em decorrência destas manobras

políticas, Prado Júnior salienta: a independência se fez por uma simples transferência

pacífica de poderes da metrópole para o novo governo brasileiro38.

No entanto, segundo a historiadora Wilma Peres Costa, esta afirmação é carregada de

exageros, principalmente no que toca à transferência pacífica do poder e ao caráter todo

ocasional da opção monárquica. Ainda acrescenta que, no processo brasileiro de

independência houve enfrentamento armado, mas não como nas lutas de independência

travadas na América espanhola, uma vez que no espaço brasileiro a opção monárquica trazia

para o lado príncipe uma linha de menor resistência do partido brasileiro, que defendia a

manutenção da antiga estrutura administrativa, econômica e social da colônia.

Para a autora, estes fatores permitiram a minimização do esforço militar da

independência, mas isso não implica, porém, em desconsiderar os conflitos armados travados

no Brasil em decorrência do não reconhecimento da independência por parte das províncias

do norte do país. Daí a necessidade de reanalizar a questão posta por Prado Júnior acerca de

uma independência pacífica.

A historiadora Maria de Lourdes Viana Lyra, critica algumas interpretações

historiográficas que consideram que a formação do Estado brasileiro e a manutenção da

unidade nacional foram um resultado natural da instalação da sede da monarquia

metropolitana na colônia. Para a autora, estas interpretações limitam a compreensão do

processo de independência e de formação do Estado Monárquico Imperial.

Neste sentido, aponta que, em várias situações de crise vividas pela monarquia

portuguesa, o Novo Mundo apareceu revestido de utopias que enfatizavam as riquezas e

38 PRADO JÚNIOR, Caio. Op. Cit, p.43.

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grandezas do território colonial. Em finais do século XVIII, a idéia propagada pela Ilustração

luso-brasileira era a de uma reorganização do Império português, na qual indicava a

unificação dos dois Impérios (português e brasileiro) tendo por fundamento uma relação de

parceria recíproca para defesa dos interesses comuns39.

A idéia dos ilustrados era a de centralizar no interior do Brasil a capital do Império

Atlântico, pois, o Novo Mundo se apresentava mitologicamente como a parte mais rica do

Império. Em 1815 com a elevação do Brasil à condição de Reino justificava a idéia dos

ilustrados pela opção da permanência da sede da monarquia no Reino mais promissor e,

oficializava a emancipação da ex-colônia em relação a antiga metrópole40. No entanto,

emancipação que não significou ruptura, pois, indicava a permanência dos laços de

compromisso entre as duas partes constitutivas da monarquia portuguesa41.

Segundo Viana Lyra, o fracasso da regeneração da nação portuguesa, ancorada nas

potencialidades do Reino da América, encaminhou o processo histórico de instalação do

Estado Nacional, levando à ruptura completa entre os reinos do Brasil e de Portugal; pondo

termo ao projeto utópico dos ilustrados luso-brasileiros em construir um poderoso Império

Atlântico com a união do Brasil e Portugal, unidos por interesses recíprocos e laços de

solidariedade42.

A historiadora Maria Odila Dias observou que, o processo de emancipação política do

Brasil já estava desencadeado com a vinda da Corte em 1808, mas a sua consumação formal

foi provocada pelos conflitos internos e domésticos do Reino43, concernentes à revolução do

Porto de 1820. Os vintistas pediam a volta de D.João e o restabelecimento dos antigos

privilégios econômicos. D.João, no Brasil, decide voltar à metrópole e aconselha seu filho, o

então príncipe Regente, a proclamar a independência antes que outro aventureiro lançasse

mão.

Para o historiador Raymundo Faoro, a Revolução de 1820 irrompida no Porto,

aproximou a Corte dos interesses brasileiros e fez da independência um imperativo de

sobrevivência monárquica44. Neste período, duas faces se definem: a face da intriga política,

39 VIANA LYRA, Maria de Lourdes. A utopia do poderoso Império (Portugal e Brasil: bastidores da política 1798-1822). São Paulo: Sette Letras, S/d, p.118. 40 Idem, p.115. 41 Ibidem, p.115. 42 Ibidem, p.159. 43 DIAS, Maria Odila. “A interiorização da metrópole (1808-1853)”. In: 1822:Dimensões.MOTA, Carlos Guilherme (org.). São Paulo: Editora Perspectiva, 1972, p.166. 44 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Vol.1-10ª ed.,São Paulo: Globo- Publifolha, 2000, p.299.

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vivida na cúpula do sistema metropolitano com a dança dos conselheiros e dos cortesãos ,e a

face nacional, tecida nos latifúndios e nas relações comerciais45.

A face nacional, representada pelos grandes proprietários de terras e escravos, saindo

vencedora do processo de emancipação política, buscou nos modelos da Constituição inglesa

e francesa os princípios filosóficos e políticos do Contrato Social de Jean Jacques Rousseau

para definir o sistema político que o Brasil então adotaria. No entanto, a adoção dos princípios

políticos europeus não significou que no Brasil houvesse o mesmo contexto político,

econômico e social da sociedade européia. Pois, enquanto na Europa as reivindicações do

Terceiro Estado, especialmente da burguesia comercial, incidiam contra a nobreza feudal, no

Brasil, acontece o inverso, aqui, são os proprietários rurais que vão contra a burguesia

mercantil.

Sobre este aspecto, Prado Júnior enfatiza: o que houve foi apenas uma simples

coincidência de meios a serem empregados para fins diversos46, tendo em vista que os

proprietários de terra e escravos pretendiam apenas substituir as restrições políticas e

econômicas do regime colonial pela estrutura de um Estado Nacional, que assegurasse a

liberdade econômica. A incorporação dos ideais franceses e ingleses, no Brasil, demonstrou a

falta de um sistema político e econômico original. Em decorrência disto, a formação do

Estado Nacional reproduziu quase inteiramente a monarquia portuguesa47.

Os preceitos do liberalismo foram ajustados para atender a aristocracia rural, sem com

isso, alterar os seus antigos poderes, fundado no personalismo e na aversão ao impessoalismo

e à burocracia, inerentes à formação do Estado. Em relação ao liberalismo e como ele se

ajustou ao território brasileiro, o historiador Sérgio Buarque de Holanda afirma:

Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto se ajustam às condições de vida brasileira e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe imporiam. Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional,

45 Idem, p.299. 46 PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos. 11.ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1979, p.42. 47 Idem, p.42.

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ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos48.

O lema da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade, foi ajustado, no

Brasil, aos nosso velhos padrões patriarcais e coloniais49. Nesse sentido, o Estado Imperial

que se forma após a independência está entrelaçado com os valores políticos e sociais do

período colonial, fundados na grande família patriarcal. Segundo Buarque de Holanda, será a

família patriarcal que fornecerá o modelo por onde se hão de calcar, na vida política, as

relações entre governantes e governados, entre monarcas e súditos50.

A elite lustrada, uma minoria insignificante, que auxiliava D.Pedro I sofrera influência

européia, direta ou indiretamente, e desejava a instalação de um sistema de governo

independente e liberal, mas sem rompimento total com a estrutura social e econômica que

mantivera o colonialismo, a escravidão, o latifúndio e a monocultura51. No que tange à

manutenção da escravidão, Costa afirma:

(...) a forma como se processou aqui a Independência foi capaz de preservar e reiterar os interesses dos setores ligados à grande propriedade territorial e à escravidão. Esse fato, porém, não faz do Estado Imperial uma simples emanação ou um epifenômeno da escravidão. (...). Isso porque a base econômica social escravista apresentou tanto impulsos como limites ao processo de construção do Estado no Brasil, tornando-o um processo peculiar não só em relação ao padrão europeu como também em relação às outras experiências de construção do estado na América Espanhola52.

Analisando a afirmação de Costa, observa-se que, a manutenção da estrutura social e

econômica fundada na escravidão proporcionou impulsos e limites à formação do estado

brasileiro. Isto porque, o sistema colonial fundado em relações afetivas e pessoais-

características estas que estão intimamente ligadas à família patriarcal- impediram a formação

de um sistema político com características impessoais e racionais inerentes ao Estado53. Em

relação à família patriarcal, que caracteriza a sociedade colonial brasileira e que será herdada 48 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, p.119. 49 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op.cit, p.134. 50 Idem, p.53. 51 RODRIGUES, José Honório. Independência: Revolução e Contra-Revolução. Vol.5.Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975,p.250. 52 COSTA, Wilma Peres. Op. Cit.p.36-37. 53 Para o historiador Sérgio Buarque de Holanda, “Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, e certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição”. Raízes do Brasil.Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, p.101.

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pelo Império brasileiro- em seus elementos fundamentais como: a predominância dos

interesses privados em detrimento dos interesses públicos- é analisada por Buarque de

Holanda da seguinte maneira:

O quadro familiar torna-se, assim, tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não poderia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades. Representando, [...], o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a idéia mais normal de poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre homens. O resultado era predominarem, em toda vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma inversão do público pelo privado, do Estado pela família54.

A oposição entre: Estado e família; público e privado; impessoalismo e personalismo,

fazem parte do processo de formação do Estado brasileiro. Raymundo Faoro apontando para a

formação, no Brasil, de um Estado patrimonial estamental55, considerou que a subida de D.

Pedro I ao poder, com o título de Imperador Perpétuo do Brasil, marcou na política Imperial o

conflito do poder central em tentar estender seu domínio sobre o largo território, enfrentando

as províncias brasileiras que se organizavam politicamente por valores não homogêneos ao

poder central. Para estender seu domínio, o Estado patrimonial é dirigido por uma camada que

atua em nome próprio e, servida do aparelhamento estatal, assume características patriarcais,

identificável no mando do fazendeiro, do senhor de engenho e dos coronéis56. O domínio

patrimonial apropria as oportunidades econômicas de desfrute dos bens, das concessões, dos

cargos, numa confusão entre o setor público e o privado57 . Segundo Faoro, o Estado que se

formou a partir da independência é um Estado patrimonialista que para seu funcionamento

dependeu de uma imensa rede de

funcionários de cunho patrimonial58. Neste sentido, Faoro salienta: Na peculiaridade

54 HOLANDA, Sérgio Buarque. Op.Cit.p.50. 55 FAORO analisa o processo político brasileiro através da idéia de Estado patrimonial - estamental. Para Faoro, que se baseia nos conceitos de Max Weber, patrimonialismo é a forma como “a comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, negócios privados, seus na origem, como negócios públicos depois”. Em relação ao estamento, considera que este se constitui pela camada de servidores estatais, como: os juristas, letrados, burocratas, entre outros, que formam uma espécie de “nobreza particular”, tornando-se como que a “extensão da casa do soberano”. Os donos do poder. São Paulo: globo-publifolha, 2000, p.384. 56 Idem, p.367. 57 Ibidem, p.367. 58 HOLANDA, Sérgio Buarque utiliza a definição de Max Weber acerca do funcionário patrimonial, apontando que, para o funcionário patrimonial, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse

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histórica brasileira, todavia, a camada dirigente atua em nome próprio, servida dos

instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal59.

Segundo Faoro, a monarquia constitucional, no Primeiro Reinado, fundar-se-á na

política pessoal de D. Pedro I. Por meio do poder moderador que foi a essência do primado

da Coroa, [...] a pedra que autorizará o Imperador a reinar, governar e administrar por via

própria, sem a cobertura ministerial 60 o estamento se rearticula com tintas liberais e cerne

absolutista61. Neste contexto, onde a política absolutista de D. Pedro I se alicerça e os laços

patriarcais da família colonial brasileira se evidenciam, tentar-se-á, a seguir, observar como se

deu o processo de formação das forças armadas.

2.2 A formação das forças armadas do Brasil: suas peculiaridades.

A historiadora Wilma Peres Costa, utilizando-se do conceito de Max Weber, ressalta

que a constituição de forças armadas profissionais foi uma empresa inseparável do processo

de formação do Estado Moderno enquanto monopolizador da violência legítima. E

acrescenta:

A força armada profissional, instrumento fundamental desse monopólio, tornou-se elemento constitutivo da própria definição do Estado. Nas diferentes experiências históricas de formação estatal, o empreendimento de construir forças armadas profissionais envolveu muitos aspectos, e de seu êxito total ou relativo dependeu muitas vezes o próprio destino do Estado62.

O processo histórico de formação do Estado- desencadeando o monopólio da violência

legítima, através das forças armadas profissionais- implicou no desarmamento da sociedade.

particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles auferem, relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não há interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático [...]. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal, que merece os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. Falta de tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida do Estado burocrático. No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Raízes do Brasil: José Olympio, 1987, p.105-106. 59 FAORO,Raimundo. Op.Cit.p.377. 60 Idem, p.330. 61 Ibidem, p.328. 62 COSTA, Wilma Peres. A espada de Dâmocles: o exército, a guerra do Paraguai e a crise do Império. São Paulo: Editora Hucitec- Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1996,p.27.

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Este processo foi marcado por dimensões conflitivas, pois o poder militar disperso entre

diferentes agentes privados passou a concentrar-se nas mãos do Estado, ou seja:

[...] o processo de construção do Estado em sua forma moderna se caracteriza por uma crescente dinâmica “extrativa”, porque implicou transferir do “privado” para o “público” [...] poderes dispersos no corpo sócia, concentrando e monopolizando as atribuições fiscais, jurídicas e militares, principais instrumentos para o exercício do poder63.

Segundo Costa, enquanto a formação dos Estados de tipo moderno se caracterizou

pela centralização do poder militar em suas mãos, no caso, do Brasil, as peculiaridades da

construção do Estado Imperial - na qual percorreu uma trajetória social nitidamente

conservadora, mantendo e reiterando traços do passado colonial como a grande propriedade

agrária exportadora, explorada pelo trabalho escravo - favoreceram um tipo de formação das

forças armadas ligada às estratégias das elites agrárias, isto é: a força armada disponível nos

anos após a independência correspondeu a uma estratégia de cunho político e econômico das

elites agrárias na qual conseguiu manter nas forças armadas sua estrutura colonial64. Para a

autora, a manutenção da base sócio-econômica escravista não produziu,

uma classe dominante com características nacionais, mas sistemas oligárquicos regionais em disputa e recortados internamente por lutas internas entre famílias e clientelas. A estrutura sócio-econômica brasileira durante o século XIX liberava impulsos contraditórios em relação à construção do Estado, ao mesmo tempo centrípetos e centrífugos65.

No Brasil, os localismos que caracterizam a vida política impediram o surgimento do

nacionalismo da unidade nacional à época da independência. Por isso, Buarque de Holanda

salienta: no Brasil- as duas aspirações - a da Independência e da unidade não nascem juntas

e, por longo tempo ainda, não caminham de mãos dadas66 . A vastidão do território brasileiro,

marcando a distância do poder central às localidades no interior do país, dificultava a

comunicação e promovia a tendência ao esvaziamento do centro político e de ampliação do

controle privado dos meios de governo e coerção 67. Na época da independência, as forças

63 COSTA, Wilma Peres . Op. Cit, p.29. 64 Idem,p.41. 65 Ibidem, p.47. 66 HOLANDA,Sérgio Buarque de. “A herança colonial: sua desagregação”. In: O Brasil monárquico. São Paulo: Grifel, 1970,p.9. 67 COSTA, Wilma Peres. Op. Cit, p. 49.

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tradicionalmente dispersas e a falta de nexo poderoso entre as várias unidades regionais68

eram elementos que priorizavam a ampliação do poder privado em detrimento do poder

centralizado pelo Estado.

Neste sentido, Costa considera que no, período regencial a criação da Guarda

Nacional, em 1831, favoreceu a descentralização das forças armadas das mãos do poder

Estado. A Guarda Nacional, era uma milícia civil composta de todos os cidadãos com renda

suficiente para serem eleitores e comandadas pelos potentados locais. Para Costa, a Guarda

retirou do Estado os meios de coerção, ou melhor, o monopólio da violência, isto porque,

exercia duas funções: primeiro, a de colaborar com o poder público e privado, no sentido de

manter a ordem e reprimir as classes perigosas e, segundo, a de ser instrumento das

oligarquias regionais em sua resistência aos impulsos extrativos do Estado69. Sendo assim, ao

invés de ser uma força complementar ao Exército e à Marinha, a Guarda Nacional, passou a

neutralizá-los tornando-se um obstáculo à consolidação dos mesmos.

A Guarda Nacional também se colocou como um obstáculo ao recrutamento forçado,

uma vez que absorvia nas suas fileiras indivíduos sujeitos a ele. Para Costa, a Guarda

Nacional se configurava como um empecilho ao desenvolvimento da força profissional,

apontando que, em 1855, o ministro da justiça Nabuco de Araújo, reclamou à Assembléia

Constituinte que na província Rio-Grandense mesmo os que não tinham renda para

qualificarem-se como eleitores se alistavam na Guarda, para se isentarem do recrutamento

forçado. A Guarda abarcava para suas fileiras a população trabalhadora livre sob o comando

dos poderes locais. Observa-se que, a força armada, expressa na Guarda Nacional, se

coadunava com o privatismo escravista, que tinha sua eficiência não na força militar que

desempenhava, mas, como instrumento de resistência do armamento do Estado70 .

Evidencia-se com isso, que a formação das forças armadas brasileiras percorreu uma

trajetória peculiar marcada pela resistência da ordem privada à extensão do poder do Estado.

A base sócio-econômica escravista impôs limites à formação do Estado e das forças armadas

com características nacionais. Costa ressalta que, tais limites são observados no estreitamento

da base de recrutamento, uma vez que o escravo, por definição, não é recrutável. Os limites

impostos pela escravidão também podem ser vistos através da manutenção dos pequenos

exércitos privados controlados pelos senhores, como se observa a seguir:

68 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. Cit, p.20. 69 COSTA, Wilma Peres. Op. Cit.p.54. 70 Idem, p.60.

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A ordem escravista não subtrae o escravo ao serviço militar. Ela exige a manutenção de pequenos exércitos privados de prepostos e jagunço sob o controle direto dos senhores, o que os obriga a drenar para o serviço privado da manutenção da ordem interna das fazendas boa parte da população trabalhadora livre. Esses homens armados eram os principais responsáveis pela segurança interna da ordem escravista, tanto no que toca ao controle da escravaria quanto no que se refere ao próprio processo de apossamento e manutenção da terra [...] 71.

Pode-se ressaltar que, a preservação da economia escravista desenvolveu impulsos

para o esvaziamento do poder político central e favoreceu o controle armado da ordem

privada. Enquanto na Europa a formação do Estado acompanhou o declínio das relações

sociais feudais, no Brasil, a formação do Estado Imperial preservou e reiterou a escravidão,

impulsionando a continuidade da força armada de caráter privado. No entanto, para a

manutenção da estrutura sócio-econômica do período colonial, os donos de terra e escravos

precisaram do Estado para manter a escravidão. Pois, o papel do Estado era fundamental para

manter o tráfico de escravos e, a nível judiciário, instituir políticas acerca da legalidade da

instituição. Por isso, a autora salienta que, a escravidão produziu impulsos contraditórios à

formação do Estado e das forças armadas, ao mesmo tempo centrípetos e centrífugos. Esta

situação é observada quando na época da independência os proprietários de terras e escravos

apoiaram a formação do Estado Imperial, a fim de que a monarquia legalizasse a questão do

tráfico negreiro, já abolido internacionalmente. Ao mesmo tempo em que, esta elite agrária,

mantinha em suas fazendas pequenos exércitos privados, favorecendo o controle privado da

violência, impedindo assim, a constituição do monopólio da violência pelo poder central.

Segundo Costa,

[...] se, na experiência européia, o desarmamento da aristocracia senhorial e o armamento do Estado é uma estratégia para preservar uma dominação que a primeira já não podia exercer diretamente, no Brasil, onde se intenta a construção do Estado Nacional preservando a escravidão, o senhoriato precisa manter os instrumentos de coerção sob seu controle direto ou indireto como condição mesma de preservação das relações escravistas72.

Em linhas gerais, os contornos assumidos pelo Estado brasileiro e pelas forças armadas tomaram rumos opostos à formação dos Estados Europeus. As peculiaridades do processo da independência asseguraram a preservação da economia escravista, promovendo, segundo Costa, a criação de forças armadas de caráter privado comandadas pelos senhores locais, retirando do Estado, o monopólio da violência legítima.

71 COSTA, Wilma Peres. Op. Cit, p.59. 72 Idem, p.276-277.

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Deve-se acrescentar que, a formação do Estado Imperial vinculada à manutenção do

mercado escravista articulou-se à noção de integridade territorial da antiga colônia73. Neste

processo, a formação da Marinha de Guerra foi importante para a consolidação da

independência e preservar a unidade nacional e integridade territorial. Assim, a seguir tratar-

se-á da Marinha de Guerra no período da independência.

2.3 - A Marinha de Guerra: o ideal de integridade territorial e unidade nacional

A Independência do Brasil, em 1822, não teve reconhecimento por parte de todas as

províncias do Império. Da Bahia para o norte, as juntas Governativas portuguesas fizeram

ouvidos moucos e permaneceram em posição autoritária. Na Cisplatina, as forças que

garantiam o domínio reinol cindiram-se, parte aderindo ao Novo Império e, parte

conservando-se fiel a Portugal74. Assim, para que o grito do Ipiranga se ecoasse por todo o

país foi preciso a formação da Marinha de Guerra do Brasil, que tinha a finalidade, dentre

outras, de: a) estabelecer intercomunicação entre as várias regiões do país; b) proteger o

território contra ataques externos e internos; c) estabelecer o comércio interprovincial; e, d)

manter a unidade nacional. Por ser um país, essencialmente marítimo75, os primeiros

estadistas do Império- no qual se destaca o ministro das relações exteriores José Bonifácio de

Andrada e Silva- observaram a necessidade da formação de uma Marinha de Guerra, para a

consolidação da Independência. Neste sentido, o historiador naval Prado Maia afirma:

A Marinha Brasileira nasceu com a Independência. A necessidade vital da consolidação de uma foi a determinante imperiosa de criação da outra. Assim, o Grito do Ipiranga representa a certidão de nascimento não só do Brasil como entidade autônoma no concerto das nações, mas, também, de sua Marinha de Guerra, garantidora incontestável dessa autonomia.

[...].

O drama da Independência tinha que ser decidido no mar.Proclamada aquela, por isso mesmo, a organização do poder naval brasileiro passou a constituir preocupação nítida do problema destacada do novo governo.[...]. Com uma preocupação nítida do problema, de súbito compreenderam [os primeiros estadistas] que, país essencialmente marítimo, com uma disposição topográfica que lhe não permite facilmente o estabelecimento de

73ARIAS NETO, José Miguel. Em busca da cidadania: Praças da Armada Nacional (1867-1910). Tese (doutorado em história), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, SP: 2001,p.16. 74 MARTINS, Hélio Leôncio. Influência da Marinha Portuguesa na formação da Marinha Imperial. In: Revista Marítima Brasileira.Vol.121, n.º1-3. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 2001,p.65. 75 MAIA, João do Prado. A Marinha de Guerra do Brasil na Colônia e no Império: tentativa de reconstituição histórica. 2.ª ed., Rio de Janeiro: Cátedra, Brasília INL, 1975, p.53.

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linhas terrestres para a ligação, mas, também, de proteger o seu comércio, manter a unidade territorial repelindo os possíveis ataques externos, fazer respeitar a nossa soberania76.

Partindo do princípio de que somente à Marinha caberia a consolidação da

Independência, em 24 de setembro de 1822, Gonçalves Ledo e Luiz Pereira da Nóbrega

sugerem a D. Pedro I, a abertura de subscrição popular, mensal, a fim de, com o produto dela,

se adquirissem navios para reforçar a esquadra. Era necessário investir nos concertos dos já

existentes e na compra de novos, tendo em vista que o material flutuante se encontrava em

péssimo estado. A nau Martins de Freitas era a única em bom estado, a Príncipe Real estava

desarmada e, as outras, absolutamente inaproveitáveis 77. Prado Maia observa que, o estado

geral dos demais navios não era satisfatório: quase todos careciam de grandes reparos. Era

precária, portanto, a nossa situação quanto ao material flutuante78.

Em princípios de 1823, o Imperador baixa um decreto autorizando a subscrição

popular. Segundo o historiador naval Brian Vale, a partir de 1823 a Marinha brasileira teve

progressos, pois neste ano o Brasil possuía apenas quinze navios de guerra de grande porte,

totalizando 382 peças79. Em 1824, a mercê de presas e compras, foram adquiridos vinte e seis

navios, com 620 canhões e sete outros estavam em construção nos estaleiros brasileiros,

ingleses e americanos. A subscrição popular arrecadava sete mil réis a cada mês. As pessoas

que não podiam contribuir em moeda corrente ofereciam escravos como marinheiros e,

outros, ofertavam carne-seca, barris de vinagre ou de vinho, ou gado em pé80. Com estes

esforços, para a organização da Armada brasileira, a esquadra da independência era

constituída pelos seguintes navios: nau: Pedro I (ex- Martim de Freitas); fragatas: Piranga

(ex-União), Paraguaçu (ex-Real Carolina) e Niterói (ex-Sucesso); corvetas: Maria da Glória

e Liberal (ex-Gaivota); e, brigues: Cacique(ex-Reino Unido), Real Pedro,Rio da Prata(ex-

Leopoldina), Guarani, Caboclo e Atalanta81.

No relatório de 1828, do ministro da Marinha ,Diogo Jorge de Brito, observa-se que,

os problemas enfrentados para a construção de uma força naval não são resolvidos

completamente no período das lutas pela independência, assim, o ministro salienta: é óbvio a

todas as luzes o quão diminuta é ainda nossa força naval para poder desempenhar tão

76 MAIA, João do Prado. Op. Cit, p.53. 77 Idem, p.54. 78 Ibidem, p.54. 79 BRIAN,Vale. “Marinheiros Ingleses na Marinha do Brasil (1822-1850)”. In: Revista Marítima Brasileira. Vol.119. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1999, p.48. 80 Idem, p.104. 81 MAIA, João do Prado. Ibidem, p.57.

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numerosos e urgentes serviços82. No relatório de 1834, do ministro Joaquim José Rodrigues

Torres, observa-se o papel que cabe a Marinha e as precisões e recursos pecuniários

necessários para que a força naval consiga assegurar a integridade e independência do

Império. Em meio a inúmeros problemas enfrentados para a construção da força naval, como:

estaleiros em ruínas, arsenais abandonados, navios deteriorizados ou em péssimas condições,

corte inadequado das árvores para a construção, indisciplina, falta de recursos financeiros,

entre outros, os ministros da Marinha são unânimes em escrever a importância da Marinha

para efetivar o ideal de integridade territorial e a unidade nacional.

Em 1837, o ministro da Marinha Salvador José Maciel, ressalta que a grande extensão

do território e do litoral, a imensa quantidade dos valiosos produtos da agricultura, e a defesa

deste comércio, eram os fatores que tornavam urgentes o investimento financeiro do Governo

para o aumento da força naval. Além desses fatores, o ministro salienta que existem outros de

maior importância, como: a conservação da integridade territorial, a manutenção da ordem, da

tranqüilidade e da obediência das leis.

No relatório de 1838, o ministro Rodrigues Torres, aponta que o papel da Marinha de

Guerra era a de: concorrer para a manutenção da integridade, da independência, e da honra

nacional; favorecer os progressos da agricultura, e da indústria, pela protecção dada ao

commércio, additar, e enriquecer as sciências como novas observações, e descobertas, tal he

a alta missão, que compete à Marinha Militar83.

O ministro da Marinha, Jacinto Roque de Sena Pereira , em 1840, aponta as vantagens

e necessidades do Império do Brasil de se ter uma força naval, pois as províncias

encontravam-se sobre um extenso litoral de perto de 800 léguas, separadas em grandes

distâncias, e quase sem outro nexo entre si mais do que o do comércio de cabotagem. Desta

forma, ressalta ao Poder Legislativo sobre a necessidade de elevar a Marinha de Guerra

brasileira ao ponto de grandeza e força que exigem as peculiaridades e circunstâncias do

território. E, acrescenta:

Se da força de mar muito depende a tranqüilidade e união de tão ricas e opulentas províncias, he ainda da força de mar que podemos esperar o augmento de grandeza e prosperidade a que tem de chegar o vasto Império do Brasil, pela protecção que presta ao commércio, esta principal fonte de

82 Relatório do Ministro da Marinha Diogo Jorge de Brito apresentado à Assembléia Legislativa em 1828. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1876. 83 Relatório do ministro da Marinha Joaquim José Rodrigues Torres apresentado à Assembléia Legislativa no ano de 1838. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1838.

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riqueza Pública; consideração e respeito a que o deve elevar entre as Nações do Velho e Novo Mundo84 .

Em relação ao organismo administrativo da Marinha, deve-se considerar que, com a

vinda da Corte para o Brasil foram estabelecidas: o Quartel-General da Armada ,Intendência e

Contadoria, Arquivo Militar, Hospital de Marinha, Fábrica de Pólvora, Conselho Supremo

Militar e a Academia dos Guardas-Marinhas85. Segundo Prado Maia, salvo o Conselho

Supremo, o Arquivo, a Contadoria e a Fábrica de Pólvora, as demais repartições

mencionadas constituíam verdadeiro desdobramento das já existentes em Portugal86. A

administração portuguesa na colônia é marcada pela sua falta de originalidade87, isto porquê,

a transferência da Corte não implicou na criação de órgãos diferentes e adaptados às

condições peculiares do Brasil. Sobre a falta de originalidade, Prado Júnior diz:

De modo geral, pode-se afirmar que a administração portuguesa estendeu ao Brasil sua organização e seu sistema, e não criou nada de original para a colônia. [...]

As inovações são insignificantes e não alteram o sistema e caráter da administração que será na colônia um símile perfeito da do Reino. O que se encontrará de diferente se deverá mais as condições particulares, tão profundamente diversas das da metrópole, a que tal organização administrativa teve de se ajustar; ajustamento que se processará de fato, e não regulado por normas legais; espontâneo e forçado pelas circunstâncias [...]. Originalidade deliberada, compreensão das diferenças e capacidade para concretizá-la em normas adaptadas às necessidades peculiares da colônia, isto a metrópole raramente fez, e nunca de uma forma sistemática e geral88.

No período da independência, o arcabouço administrativo da antiga metrópole foi

absorvido pelo Estado Imperial, resultando numa herança dos órgãos administrativos da

Marinha Portuguesa na Marinha Brasileira. Em relação ao material humano, deve-se salientar

que, ficou a cargo de Felisberto Caldeira Brant o recrutamento de oficiais e marinheiros para

defenderem a independência, isto porque, os oficiais existentes na Marinha brasileira eram, na

84 Relatório do ministro da Marinha Jacinto Roque de Sena Pereira apresentado à Assembléia Legislativa no ano de 1840. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1840. 85 MAIA, João do Prado. Op. Cit, p.54. 86 Idem, p.34. 87 PRADO JÚNIOR, Caio. A Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1953, p.311. 88 Idem, p.311.

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sua maioria, de origem portuguesa, e a lealdade desses homens à causa do Brasil eram vista

com desconfiança pelo governo brasileiro.

No que tange aos oficiais, a dinastia portuguesa, aqui no Brasil, impediu o concurso de

homens de origem brasileira à Academia da Marinha. Sobre este aspecto, a historiadora

Adriana Barreto de Souza, observou que havia uma tradição portuguesa do Antigo Regime

em favorecer a entrada de jovens oficiais, pertencentes à nobreza, ao generalato, por meio de

concessões de títulos honoríficos. A tradição militar portuguesa era oposta ao modelo

moderno que associa a carreira à incorporação de um conjunto de valores e atitudes

orientados por uma disciplina rigorosa a uma forte unidade corporativa89. Esta tradição

militar integrava uma sociedade de Corte90 na qual a Coroa portuguesa detinha o monopólio

da distribuição dos títulos nobiliárquicos, graças honoríficas e patentes militares.

Os oficiais portugueses, com contradição no Antigo Regime, ocupavam no Brasil,

quase metade dos postos de comando do exército ainda nos fins dos anos de 1830 e durante a

década de 1840. Assim, Barreto de Souza, afirma: da ascendência nobre ou não, essa

geração de 1840 [...] era integrada por oficiais completamente subordinados à Coroa e

dependentes de sua generosidade. Além de seu valor honorífico, o título, se associado à

prestação de serviços à Coroa, garantia a seus oficiais uma rápida ascensão na carreira91 .

Observa-se com isto que, mesmo após a independência se preservou no Exército e

também na Marinha o ingresso às altas patentes por meio de concessões do imperador àqueles

oficiais de origem nobre, no caso da Marinha, o ingresso para a Academia Militar exigia-se

que o candidato viesse de família nobre. Nas lutas da independência, o oficial que entrou

como herói para a história brasileira foi o inglês e primeiro Almirante da Armada: lord

Thomas Alexander Cochrane. Este cargo surgiu exclusivamente - e sendo atribuído

unicamente - a ele entre 1823 e 1827, devido a sua adesão à causa do Brasil. Sobre a

importância desse Almirante no período da independência, o relato de Domingos Alves

Branco Muniz Barreto dado a Imprensa Nacional do Rio de Janeiro em oito de outubro de

1823 relatava:

89 SOUZA,Adriana Barreto de. “A serviço de sua majestade: a tradição militar portuguesa na composição do generalato brasileiro (1837-50)”. In: Nova História Militar Brasileira. São Paulo: FGV, 2004, p.161. 90 Ver ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Para Elias, na sociedade de Corte o rei convive com uma política marcada pelo “equilíbrio de tensões”, na qual cabe a ele manipular este equilíbrio a seu favor, concedendo títulos honoríficos a uns e instaurando a rivalidade a outros. A sobrevivência da Corte e do rei depende da manutenção bem manipulada das rivalidades e tensões entre uns e outros, e na distribuição de favores do rei aos seus súditos. 91 SOUZA, Adriana Barreto de. Op. Cit, p.167.

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Propaganda a lord Cochrane Viva lord Cochrane, marquês do Maranhão, herói brasileiro. Eis aqui excelso Almirante! O grito universal, que com enthusiasmo retumba,não só nesta capital, mas em toda a extensão do Rico, e Florescente Império do Brasil. O vosso zelo pelo nosso bem, a Vossa aptidão, e prudência experimentada, o espírito de luzes e de valor, que haveis manifestado em tantas ocasiões, em que agora tendes dado novas provas, penhora e excita a gratidão brasileira a ratificar a estimação, que de longo tempo tributava à Vossa Pessoa, e as Vossas eminentes qualidades.[...]. Não é só o Brasil, o Mundo Inteiro, não pode deixar de admirar a energia com que vós, Senhor, lutando tanto com as ondas, como em terreno firme, sabeis desenvolver a mais sublime sabedoria, e denodada coragem. O Maranhão, essa Bella,e Rica Província, que se achava pelo partido português agrilhoada, separada, e órfã da mãe Pátria, a Vós, Senhor, deve o seu resgate, a sua regeneração política, e a fortuna, que vem gozar na união, e obediência à metrópole. Foi bastante a Vossa Presença Respeitável para destruir a oligarquia, que naquela província alimentava sentimentos differentes dos partidos que a iludião, e escravizavão.[...]. O nome do Almirante Cochrane já se achava escripto na Tabela ilustre da admiração universal. E quanto por isso não Vos são os Brasileiros mais devedores dos serviços, espontâneas, e desinteressados de Hum Heróe, que já era Heróe?Vós, Senhor, não tivestes outro fito que o de unir-vos religiosamente à Divindade, que tão prodigiosamente tem mostrado abençoa a nossa justa Causa, e a Nossa Independência. E como deixará de ser igualmente abençoada, mas antes prodigalizou virtudes, gênio e sabedoria para agora as exercitar em nosso benefício. Grande Deos! A causa do Brasil é toda Vossa92.

Este documento traz uma série de elementos que favoreceram a construção de uma

determinada historiografia naval e também acadêmica acerca da ênfase em batalhas e heróis

nacionais. O documento mostra que, o Lord Cochrane é considerado o nosso Grande Deus,

Herói e Excelso Almirante. Numa atitude de coragem, sabedoria e virtude libertaram a

província do Maranhão do julgo metropolitano e conseguiu uni - lá à causa do Brasil. No

entanto, observando o que a historiadora Paloma Siqueira Fonseca e o antropólogo Castro

salientaram, deve-se considerar que, este tipo de historiografia que enfatiza os grandes heróis

militares acaba por esquecer outras pessoas que também lutaram mas que não foram

reconhecidas. As guerras da independência na Bahia, Pernambuco, Maranhão e na região

Cisplatina foram travadas não só por Cochrane, mas também, por muitos marinheiros e

oficiais fiéis à causa da independência; a fim de assegurarem a vitória das elites agrárias que

se interessavam na unidade nacional. Outro problema, que também pode estar por traz deste

documento, diz respeito à origem do Almirante Cochrane. Nasceu na Escócia em 1775, era de

família nobre, 10.º conde de Dundonald. Sua vida, como homem do mar, iniciou em 1793 a

92 Microfilme do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro ( sobre história naval do Brasil). Filme 406- 35mm, seção A: Lata n.º 14, seção B: Lata n.º 15, Equipamento: MRD- II, operadores: Mário, Adelaide e Luciana.

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bordo da Royal Navy; ocupando o cargo de oficial em guarnições e como comandante de

navios. Mas sua origem nobre e sua experiência no mar, ocupando cargos intermediários e

altos, não são elementos que o fazem menor. Prado Maia, observa que a esquadra portuguesa

ancorada na Bahia era constituída de um número muito maior de navios que a esquadra

brasileira, no entanto, o espírito e experiência de Cochrane se sobrepôs à superioridade da

armada portuguesa. Nesse sentido, Prado Maia afirma: nada vale uma força quando nulo ou

vacilante é o espírito e o ânimo combativo de seu chefe. Mais do que o elemento material,

muitas vezes se tem registrado, nas guerras, a preponderância do fator moral93. Evidencia-se

que, a importância de Cochrane é bastante notável, mas, o que parece perigoso é esquecer da

participação de muitos outros homens, como os marinheiros, que também lutaram, mas, que

acabaram sendo esquecidos por uma determinada construção historiográfica militar e

acadêmica.

Arias Neto salientou que, a esquadra portuguesa, ancorada na Bahia, era constituída de

um número maior de navios do que a esquadra brasileira. Mas isso não significou que os

portugueses conquistassem a vitória, pois, segundo o autor, pode-se supor que as vitórias

navais da independência foram resultantes também da impossibilidade portuguesa em manter

uma guerra em região distante da metrópole94. Em 1823, o general Madeira, comandante da

esquadra portuguesa, escreveu a D. João dizendo da inutilidade de qualquer reação diante das

tropas brasileiras, comandadas por Cochrane. A libertação do Maranhão e do Pará do julgo

reinol aconteceu nos meses de julho e agosto de 1823. A chegada de Cochrane e Grenfell em

São Luiz e Belém anunciando a rendição dos militares portugueses da Bahia e a vinda da

Corte de esforços militares - a fim de libertar aquelas províncias do domínio reinol - fizeram

com que as juntas governativas destas províncias se rendessem incondicionalmente. Em

Pernambuco, no ano de 1824, eclode a Confederação do Equador, de caráter separatista e

republicano, combate a Constituição outorgada de 1824 e o fechamento da Assembléia

Constituinte de 1823. Este movimento de caráter liberal é rapidamente abafado pela força

naval de Cochrane que, estabeleceu bloqueio do porto de Recife, hostilizou a cidade por mar,

forçou a rendição dos revoltosos e criou uma comissão militar para processar o os chefes do

movimento95.

No ano seguinte, em 1825, acontece a guerra com as Províncias Unidas do Rio da

Prata que se estendeu até 1828 acarretando para o Brasil a perda da Cisplatina, a bancarrota

93 MAIA , João do Prado. Op. Cit,p.87. 94 ARIAS NETO, José Miguel. Op.Cit, p.25. 95 Idem, p.25.

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financeira do Estado, o agravamento da instabilidade política do país e o acirramento do

confronto entre o Parlamento e o Imperador96. Sobre esta questão, em 1829, o ministro da

Marinha Miguel de Souza Mello e Alvim, apresenta à Assembléia Legislativa as despesas

contraídas pela Marinha durante a Guerra Cisplatina. O ministro salienta que, foi uma ligeira

esperança pensar que após a guerra as despesas fossem diminuídas. Pois, o Estado brasileiro

tinha dívidas a pagar relativas aos mantimentos para a esquadra e vencimentos de oficiais e

soldados. Acrescenta que, os navios da Armada não puderam ser desarmados, os praças que

estavam em Montevidéu, Colonia e Ilha do Gorreti e o imenso material de artilharia,

petrechos e munições de guerra que os abasteciam não puderam ser abandonados; os credores

à fazenda pública exigiram, com a notícia da paz, a liquidação e paga de suas contas,

pagamento que se efetuou pelo violento meio de cambio; os soldos da oficialidade e

guarnição da esquadra no Rio da Prata estavam vencidos a dez e onze meses. Ainda salienta

que, as dívidas cresceram no primeiro período depois da paz, em conseqüência dos

pagamentos de liquidação de contas pendentes durante a guerra.

Sobre a Guerra Cisplatina, deve-se salientar que, a esquadra brasileira contava com

uma vantagem numérica em relação à esquadra do Prata, no entanto, esta vantagem não foi

decisiva para a vitória do lado do Brasil, uma vez que a nossa esquadra enfrentou muitas

dificuldades na navegação e nas manobras de guerra devido ao grande calado dos navios,

impróprios para a navegação no raso estuário do Prata97. Arias Neto ressalta que, o lado

inimigo estava preparado para este tipo de guerrilha naval, na qual desgastou a força naval

brasileira. Soma-se à estas dificuldades, o fato de que através de decreto de 2 de janeiro de

1826, o governo das Províncias Unidas adotou uma nova estratégia-política e tática: a guerra

do corso98, causando danos políticos e econômicos ao Império do Brasil.

Em linhas gerais, como salientou Buarque de Holanda, a unidade nacional foi uma

conquista do Império Independente; conquista que exigiu do Estado Imperial o enfrentamento

armado contra as forças tradicionalmente dispersas para que, assim, se alcançasse a

96 ARIAS NETO, José Miguel. Op.Cit, p.26. 97 Idem,p.27. 98 Segundo Paloma Siqueira Fonseca , o corso, guerra pratica contra o comércio marítimo inimigo, foi exercido em todos os mares, a partir do século XVI, e por mais de 300 anos. Os ingleses foram os primeiros a institucionalizar as ações de corsários, já no século XIV, mas foi no século XVI que a Coroa incentivou e acobertou a sua ação, principalmente contra galeões espanhóis, fazendo surgir figuras como Martin Frobisher e Francis Drak, agraciados com títulos nobiliárquicos e recebidos na Corte como heróis. Op. Cit, p.48. O historiador Arias Neto, ressaltou que a guerra do corso parece, portanto, ter tido um efeito muito maior do que se supõe à primeira vista. Com a guerra do corso, houve a capturação de embarcações negreiras que vinham para o Brasil, isto atingiu o ponto nevrálgico da economia brasileira. Os corsários passaram a comercializar os escravos capturados nas Antilhas e nos Estados Unidos, com isso o governo das Províncias Unidas do Rio da Prata objetivava criar embaraços ao comércio escravista brasileiro. Idem, p.29-30.

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centralização monárquica. A ausência de nexo moral, apontada por Prado Júnior é

característica da sociedade colonial. A desagregação, as forças dispersivas, os grupos

incoerentes se sobrepunha à precária integridade do território. Neste sentido, tais

características não favoreceram o aparecimento de uma consciência nacional99 que desse

força a um movimento revolucionário capaz de reconstruir a sociedade, o que se observa nas

lutas pela independência são manifestações exaltadas de nativismo, de interesses locais. Pois,

segundo Maria Odila Dias, a consciência nacional só viria através da integração das diversas

províncias imposta pela nova Corte no rio a partir das décadas de 1840 e 1850100.

Para finalizar, deve-se considerar que, o ideal de unidade nacional e integridade

territorial foram propostas vindas de cima, isto é, das elites agrárias coloniais, que tinham

interesse na manutenção da estrutura de produção escravista e na preservação da liberdade de

comércio. Neste contexto, surge a Marinha de Guerra do Brasil com a finalidade, dentre

outras, de consolidar a independência, ou seja, de fazer ouvir o grito da independência em

todo o território nacional101. A partir da compreensão da formação do Estado Imperial e da

Marinha de Guerra, no próximo capítulo, refletiremos sobre a realização do recrutamento

forçado.

99 DIAS, Maria Odila. Op. Cit, p.169. 100 Idem, p.169. 101 MARTINS, Hélio Leôncio. Op. Cit, p.71.

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Capítulo 3

O Recrutamento no Império: entre dois extremos

3.1- Os desclassificados sociais: bêbados, mendigos e ladrões no recrutamento

Segundo Hendrik Kraay, na linguagem oitocentista recrutamento significava

recrutamento forçado, dispensando o uso do adjetivo forçado para qualificá-lo. No século

XVIII, o recrutamento recebeu outra adjetivação: tributo de sangue. Para Fábio Faria Mendes,

no imaginário medieval a expressão denotava a contribuição dos guerreiros a ordem do

mundo, ao lado daqueles que labutavam e rezavam. No Brasil, a expressão, tributo de

sangue,adquiriu novos significados, passando a designar as práticas sangrentas do

recrutamento forçado, marcado pela violência e pela arbitrariedade.

No Brasil, o alistamento voluntário e o recrutamento forçado foram as duas formas de

incorporação de homens no serviço militar. Segundo Nascimento, até 1910 a falta de

indivíduos que se alistavam por vontade própria na Marinha de Guerra era um problema

crônico, por isso, durante quase todo o século XIX o recrutamento forçado, era praticamente,

a única fonte de onde provinha os marinheiros e também os soldados do corpo de artilharia

da Marinha102. O recrutamento forçado era realizado pelas autoridades locais, policiais, juizes

de paz e pela Marinha. No Rio de Janeiro, a tarefa de recrutar ficava a cargo do Inspetor do

Arsenal, até que o encargo passasse para o Quartel General da Armada. Os marinheiros

recrutados a força ou alistados voluntariamente no Rio de Janeiro ou nas Províncias, ficavam

sobre ordens do Inspetor do Arsenal, recolhidos, em depósito, ao navio denominado de

Presiganga, em promiscuidade com criminosos, ladrões, vadios, que ali cumpriam penas e

castigos.

Em 1826, as autoridades separaram os recrutas dos criminosos, estabelecendo para os

primeiros seu depósito em algum navio desarmado. A nau Vasco da Gama foi o primeiro

navio empregado para alojar os recrutas, era remanescente da esquadra portuguesa e que

durante anos apodrecia em seu fundeadouro; sem utilização. Pouco tempo depois, em

fevereiro de 1827, o ministro da marinha, Marquês de Maceió, expediu instruções ao Inspetor

do Arsenal, Rodrigo Antônio de Lamare, para o funcionamento da nau Pedro I como

depósitos de recrutas. Em aviso de 12 de fevereiro de 1827, o ministro determinou como

102 GREENHALGH, Juvenal. O arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na história(1822-1889). Pintura (sobrecapa) de Manoel Pastana. Desenhos de Ary Monteiro Martins. Rio de janeiro: IBGE, 1965, p.185.

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deveria funcionar o depósito de recrutas: a nau Pedro I ficaria sobre as ordens do Comandante

do porto, todos os recrutas eram para ser remetidos para dita nau à ordem do mesmo; as

gratificações aos alistados voluntariamente só deveriam ser pagas mediante contrato assinado

pelo Comandante do Corpo; ficava a cargo do Comandante comunicar ao ministro da Marinha

as alterações sofridas pelo depósito, mencionando as entradas e saídas dos engajados e

recrutados.

Por ordem do ministro da Marinha, Marquês de Maceió, o Inspetor do Arsenal fez um

relato dos recrutamentos executados pela Marinha de 1826 a 1829. O Inspetor informa que

desde a instalação da Assembléia, em 1826, foram mandados recrutar 32 vezes: quatro por

ordem escritas e o restante por ordens verbais. Em relação ao número de recrutados e

engajados nas Províncias o Inspetor salienta:

As pessoas que se tem recrutado neste Porto, [Rio de Janeiro], foram 1488 para as guarnições dos Navios de Guerra, e que além destas, se receberam das Províncias de São Pedro do Rio Grande do Sul, São Paulo, Espírito Santo, Bahia, Alagoas, Pernambuco, Ceará, Piauhy, Maranhão e Pará 1679 indivíduos recrutados, remetidos em diversas Embarcações, para o Exército e o Corpo de Artilharia da Marinha, e de libertos, ficando destes para a Armada Naval, somente 820, que não estavão nas circunstâncias de assentarem em praça nos referidos Corpos103.

Através da pesquisa nos microfilmes do IHGB foi possível ver o nome de 29 recrutas

e dois voluntários do Ceará com destino ao Rio de Janeiro. Foram enviados a bordo do

Paquete Nacional Félix e entregues ao Comandante, Ernesto Alves Branco Morais Barreto, no

ano de 1834. Os dois voluntários, José Maria e Vicente Ferreira do Couto, receberam o

prêmio de engajamento no valor de 16 mil réis. Os recrutados a força - como castigo por falta

de voluntarismo, e mesmo para corrigir os enviados pela polícia, além de não receberem

prêmios, prestavam serviço militar por mais tempo - eram: José Antônio da Silva, José

Clementino, José Felippe, Vicente Ferreira, João Felippe, Miguel dos Anjos, José Manoel de

Jesus, Francisco José de Barros, Victorino Furtado dos Reis, Anastácio José de Faria, José

Ferreira de Morais, José Mariano da Silva, Luiz Geraldo do Rosário, Manoel Marques de

Cordeiro, Antônio de Barros, Vicente Ferreira Nevi, Pedro Ferreira Borges, Manoel

Henriques das Neves, José dos Santos, Bernardo José, Agostinho Márquez, José Inácio da

103 GREENHALGH, Juvenal. Op. Cit, p.186.

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Silva, José de Salles, Joaquim José de Santa Ana, Mathias Rodrigues, Antônio Rodrigue,

Félix Antônio de Carvalho, Francisco José de Salles e Clementino José da Silva104.

Dar nome a esses homens trazidos pelo recrutamento forçado expressa alguns

problemas surgidos ao longo da pesquisa. Pois, é comum observar na construção da memória

naval e também acadêmica uma ausência de nomes de determinado grupo humano,

principalmente, os homens oriundos do recrutamento forçado. Talvez, por ocuparem um lugar

menos expressivo na sociedade e devido a sua origem social, não aparece com tanta evidência

como outros grupos humanos, pertencentes às classes mais elitizadas da ordem social. A

memória histórica construída em torno de alguns homens favoreceu o esquecimento de outros,

que, na maioria das vezes, viviam à margem social e que, talvez por isso, não merecessem ser

lembrados, uma vez que viver à margem social, no discurso das autoridades civis e militares,

não é uma condição construída pela estrutura política, econômica e social da colônia e do

império, mas sim, uma opção do indivíduo. Sendo assim, ele próprio se torna culpado de todo

o processo de mazelas que o cerca. Neste sentido, resgatar a individualidade destes

indivíduos, através de seus nomes, pode ser importante para mostrar que ao lado de grandes

ícones militares, como Cochrane, Duque de Caxias e Osório também havia tantos outros

homens como marinheiros, soldados e grumetes que, embora ocupassem cargos inferiores na

hierarquia militar105, desempenharam suas tarefas militares com talento e brilhantismo tanto

quanto aqueles lembrados frequentemente por uma determinada historiografia militar e

acadêmica.

Outro elemento a ser considerado é que, o recrutamento forçado foi um método geral e

reconhecido em vários países do mundo, e aplicado e reconhecido tanto em terra como no

mar. Mas, o viés naval de recrutamento forçado tem recebido mais atenção porque, segundo

Fonseca, o serviço na Marinha era impopular e enorme a demanda por marinheiros nos

reinos que constituíram impérios marítimos, como Portugal e Inglaterra 106. Como se

observa, o Brasil não foi pioneiro na realização do recrutamento, mas foi a experiência

lusitana e européia que serviu de base aos interesses das pastas militares brasileiras, ou seja,

os dois métodos de se compor as equipagens dos navios - o alistamento voluntário e o

recrutamento forçado- não foram criados exclusivamente pelas mentes dos dirigentes

104 Microfilme do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro ( sobre história naval do Brasil). Filme 406- 35mm, seção A: Lata n.º 14, seção B: Lata n.º 15, Equipamento: MRD- II, operadores: Mário, Adelaide e Luciana. 105 Segundo Nascimento, o serviço de grumete era o primeiro posto na hierarquia das classes mais baixas da Marinha de Guerra. O grau máximo da carreira de grumete era de primeiro sargento. Verticalmente, a hierarquia das classes mais baixas seguia essa sucessão: grumetes, marinheiros de 3.ª, 2.ª e 1.ª classes, cabo, 2.º e 1.º sargentos. Do convés ao porto: A experiência dos marinheiros e a revolta de 1910. Op. Cit, p.101. 106 FONSECA, Paloma Siqueira, Op. Cit, p.134.

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brasileiros, elas resultaram da experiência de séculos da realização que Portugal mantinha

com suas conquistas de além-mar e das suas próprias guerras na Europa, sendo

posteriormente regulamentadas e aplicadas pelos brasileiros após a independência107.

Na Inglaterra, a fonte maior de recrutamento surgiu por intermédio dos atos de

vadiagem. No reinado da rainha Elisabeth I o recrutamento dirigido a Marinha recaiu sobre

indivíduos que estavam pagando suas sentenças nas cadeias. Também foi estabelecido atos de

quotas que definiam o número de indivíduos que cada distrito deveria remeter ao serviço do

mar. As operações do serviço de recrutamento forçado foram difundidas por a toda Bretanha,

e empregados também no mar, pois no mar o risco de evasão era menor do que em terra.

Embora o recrutamento em alto mar fosse limitado aos navios de torna-viagem, os navios

mercantes frequentemente sofriam o mesmo destino. Na Bretanha, o recrutamento forçado se

realizou somente em tempo de guerra, sendo empregado pela última vez ali, durante a Guerra

Napoleônica de 1803-1815.

Segundo a historiadora Laura de Mello e Souza, em Portugal, no século XIV,

ocorreram mudanças de ordem econômica e social que possibilitaram novas definições para a

pobreza e o não-trabalho. Nesse sentido, muitas leis repressivas foram criadas, visando

obrigarem vadios e mendigos a se empregarem em algum trabalho. Na época das grandes

navegações os governos reais lusitanos freqüentemente mandavam para suas colônias além-

mar os sentenciados à pena de degredo, por serem acusados, na maioria das vezes, de vadios e

mendigos. A saída desses homens de seus países, para cumprirem a pena de degredo,

demonstrava que para seus governantes, eram considerados desprezíveis e desnecessários ao

mundo, reforçando, assim, a idéia de inutilidade. No entanto, no Brasil, as peculiaridades

trazidas pela escravidão eram bastante diferentes da realidade dos países europeus,

proporcionando uma inversão acerca da idéia de inutilidade em torno dos ditos vadios.

Para Mello e Souza, esses indivíduos considerados vadios na Europa e Portugal, aqui,

tornaram-se úteis, realizando uma série de trabalhos não realizados pelos escravos. Os vadios

foram aproveitados como uma mão-de-obra alternativa à escrava, [...] uma espécie de

exercício de reserva da escravidão108. A autora também observa que, esta camada social que

vivia à margem da sociedade mineira do século XIX era composta por indivíduos que

ocupavam papéis transitórios e flutuantes, era uma camada marcada pela fluidez que

impossibilitava uma tomada de consciência pelo grupo, ou seja, pelos desclassificados 107 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Do convés ao porto: A experiência dos marinheiros e a revolta de 1910. Op. Cit, p.71. 108 SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. São Paulo: Graal, 1990, p.73.

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sociais. Caio Prado Júnior assinala para a origem dessa camada social, caracterizada por ser

deslocada e indefinida, ressaltando que esta situação, vivenciada pela grande maioria da

população livre da colônia, tem suas causas profundas e principais na escravidão. A ordem

econômica e social escravista, voltada à produção em larga escala de alguns gêneros de

grande expressão comerciais, e destinados à exportação109, excluiu a maioria dos indivíduos

livres das atividades produtivas. Esses indivíduos, denominados de vadios, por viver sem

ocupação normal fixa, viviam a margem da ordem social. É deste elemento desenraizado da

população brasileira que se recrutará a maior parte da força armada110. No Brasil, o vadio

juntamente com os ladrões, criminosos, entre outros, era considerado um desclassificado

social que na visão do Estado representava um ônus social. Mas, através do trabalho,

incorporando-se nos corpos de milícia ou nos corpos militares, deixariam de ser um ônus para

o Estado e se tornaria em utilidade.

Nesse sentido, restou ao Estado, através da ação repressiva da Marinha a punição

exemplar e regenerativa da justiça111. A Marinha recebendo vadios, desordeiros, ébrios, entre

outros, acabou por incutir no pensamento das autoridades de que nela o serviço militar era

uma espécie de exercício correcional para a vadiagem e o crime 112. Sobre esta questão, o

relato a seguir observa:

Na Monarquia, e ainda no começo da República, até a limpa feita pelo chefe de polícia Sampaio Ferraz, “os capoeiras”infestavam o Rio de Janeiro e constituíam uma praga difícil de exterminar [...]. E qual era o remédio, quando possível aplicá-lo, para castigar esses e outros tantos facínoras? Mandar assentar praça na Marinha!Era comum couvir-se: esse é incorrigível; só mesmo pondo-lhe a farda da Marinha nas costas- e isso acontecia amiúde113.

A Marinha sendo considerada como um lugar de regeneração de indivíduos,

supostamente vadios e criminosos (aos olhos das autoridades),contribui para fortalecer a idéia

de que o serviço militar não é lugar de pessoas honradas, cidadãs, proprietárias e

109 PRADO JÚNIOR, Caio. A formação do Brasil contemporâneo: Colônia. Op. Cit, p. 292. 110 Idem, p.292. 111 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Marinheiros em Revolta: recrutamento e disciplina na Marinha de Guerra (1880-1910). Dissertação de Mestrado- Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. São Paulo: Campinas, 1997, p.46. 112 GREENHALGH, Juvenal. O arsenal da Marinha do Rio de Janeiro na história (1822-1889). Pintura (sobrecapa) de Manoel Pastana. Desenhos de Ary Monteiro Martins. Rio de Janeiro: IBHE, 1995, p.189. 113 APUD- NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Do convés ao porto: a experiência dos Marinheiros e a revolta de 1910. Op. Cit, p.38.

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trabalhadoras114. Para lá deveriam ser enviados os indivíduos que haviam de ser punidos, que

representavam um verdadeiro ônus social, tais como: os vagabundos, criminosos, bêbados,

ladrões, etc. Esses indivíduos, sujeitos ao recrutamento forçado, foram denominados por

militares e civis, durante o século XIX e ainda no início do XX, como sendo as fezes da

população115. As necessidades da Marinha para guarnecer os navios de marinheiros e

soldados, e a falta de homens que se alistavam voluntariamente, resultaram no aproveitamento

de indivíduos indesejosos à sociedade. Dentro da Marinha, poderiam cumprir as sentenças a

que estavam condenados, através da prestação do serviço militar. Estes sentenciados não eram

vistos com bons olhos por todos, o inspetor do Arsenal do Rio de Janeiro, Francisco Bibiano

de Castro, em 1833, ressalta ao ministro da Marinha, Rodrigues Torres, que adesão destes

indivíduos ao serviço militar desestruturaria a subordinação dos tripulantes dos navios da

Esquadra.

Em cumprimento ao aviso da datado de ontem, tenho a honra de informas a V. Ex.ª, que a pretensão de João Pinto Duarte e mais seis sentenciados, offerecendo-se de servirem como marinheiros nos navios de guerra, não é de forma alguma admissível quase toda esta gente se acha manchada em crimes graves, e seria aviltar ainda mais a profissão marítima, que aliás carece de incentivo, o commutar assim a pena de um salteador, ou de um assassino em o serviço de marinheiro,accrescendo mais que semelhante gente vai destruir a subordinação, que muito convém estabelecer na tripolação dos navios da Esquadra116.

No relatório de 1828, do ministro da Guerra Bento Barroso Pereira, evidencia-

se os embaraços por parte do governo em estabelecer uma lei que regule um sistema de

recrutamento capaz de chamar para a defesa do Império homens fiéis à causa do Brasil e

promover castigos exemplares àqueles que pretendem subtrair-se do serviço militar. A idéia

do ministro era de que o recrutamento forçado não abarcava para as fileiras da Marinha

homens realmente fiéis à Pátria, devido a isso era preciso estabelecer castigos mais severos

aos recrutados a fim de que não abandonassem o serviço na Marinha. Neste relatório, o

ministro também fala que, devido a ineficácia do recrutamento forçado entre os estrangeiros o

governo foi obrigado a pedir 2340 recrutas às diferentes províncias, para substituir mortos,

estropiados e ausentes. As províncias isentas do recrutamento foram: Ceará, Mato Grosso,

São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Na época da independência, o governo 114 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Idem, p.75. 115 ARIAS NETO, José Miguel. Op. Cit, p. 11. 116 APUD- GREENHALGH, Juvenal. O Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na História (1822-1889). Op. Cit, p.189.

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brasileiro recorreu ao recrutamento de marinheiros estrangeiros. Um destes recrutamentos que

merecem atenção foi feito pelo Coronel Cotter na Irlanda. O Coronel conseguiu engajar três

mil irlandeses para lutarem na Guerra Cisplatina, muitos destes eram bêbados, andrajosos,

ladrões e assassinos. A chegada desses homens no Rio de Janeiro chamou bastante atenção da

população, pois representou um doloroso espetáculo. Vinham seminus homens, mulheres e

crianças, e o povo nas ruas - sobretudo a população preta - os vaiou, chamando-os de

escravos brancos 117. Esse doloroso espetáculo, não raro se observava nas levas trazidas pelo

recrutamento forçado. Em ofício de 1º de junho de 1838, o inspetor Antônio Joaquim do

Couto relatou para Pedro Maria de Azevedo Soutto Maior sobre a espécie de gente recrutada

da Bahia e que se encontrava depositados a bordo da fragata Campista .

Tenho a honra de levar ao conhecimento de V.S.ª que os oitenta e quatro recrutas vindos aproximadamente da Bahia que se acham depositados abordo da fragata = “campista” estão em deplorável estado de nudez não tendo a maior parte d'elles roupa para cobrirem suas carnes, e outros cobertos de bichos118.

Sobre a miserabilidade física dos recrutados a força, em 1836, o ministro da Marinha

Salvador José Maciel, escreveu em seu relatório apresentado à Assembléia Legislativa que, o

recrutamento forçado além de ser moroso por causa das grandes distâncias trazem para as

fileiras da Marinha homens de lugares remotos com visível incapacidade física, idade

avançada e pais de família. O engenheiro naval Juvenal Greenhalgh, ressalta que “dantescas

tragédias” aconteciam nestas longas travessias. Greenhalgh conta que, 209 marinheiros

recrutados do Piauí foram embarcados na sumaca Pombinha com destino ao Rio de Janeiro.

Saíram da Parnaíba em sete de dezembro de 1827. Após 65 dias de viagem, em decorrência

de ventos contrários, foram levados para o norte onde se aportaram no porto de São Luiz do

Maranhão. Depositados em um porão infecto e alimentando-se com gêneros em conserva

estragados e de má qualidade morreram de beribéri, 97 durante a travessia e, 29 após o

desembarque 119.

Em linhas gerais, observou-se que o tributo de sangue - analogia ao recrutamento

forçado- recaiu sobre os desclassificados sociais, isto é, sobre os bêbados, criminosos, vadios

, entre outros. A seguir tentaremos analisar porque era um temor prestar serviço militar na

117 APUD- ARIAS NETO, José Miguel. Op. Cit, p. 35. 118 APUD- GREENHALGH, Juvenal. Op. Cit, p.189. 119 Idem, p.189.

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Marinha, apontando para o processo de mudanças, permanências e resistências em torno do

recrutamento forçado no século XIX.

3.2- Escravos da nação, escravos fugidos e escravos em correção na Marinha de Guerra

A nível institucional o recrutamento era realizado pelas instruções de 10 de julho de

1822 que em seu artigo terceiro estabelece: ficam sujeitos ao recrutamento todos os homens

brancos solteiros, e ainda pardos libertos de idade de 18 a 35 anos. A Constituição de 1824

também faz referência aos indivíduos sujeitos a pegar em armas, no artigo 145 define: todos

os brasileiros são obrigados a pegar em armas, para sustentar a independência, e

integridade do Império, e defende-lo de seus inimigos externos, ou internos.

Observa-se que, a nível institucional tanto as instruções como a Constituição tem o

cuidado de não convocar o braço escravo ao serviço militar. Quando a Constituição põe o

serviço militar nas mãos dos brasileiros, vale salientar que, da condição de brasileiro no

Império exigia-se que o indivíduo tivesse nascido no Brasil, quer fossem ingênuos ou libertos.

Deve-se acrescentar que, segundo a historiadora Hebe Maria Mattos, a manutenção da

escravidão impôs restrições legais ao gozo pleno dos direitos civis e políticos mesmo aos

libertos, isto porque, apesar da igualdade de direitos civis entre cidadãos brasileiros

reconhecida pela Constituição, os brasileiros não brancos continuavam a ter até mesmo o

seu direito de ir e vir dramaticamente dependente do reconhecimento costumeiro de sua

condição de liberdade120.

Para Mattos, a carta Constitucional de 1824, de cunho estritamente liberal, legitimou a

manutenção da propriedade privada e limitou a extensão dos direitos políticos, através do voto

censitário. A Constituição reconheceu os direitos civis de todos os cidadãos brasileiros, mas

os direitos políticos não foram estendidos a todos. Os direitos políticos qualificaram o cidadão

em três deferentes gradações: o ativo votante, o passivo e o ativo eleitor. O primeiro possuía

renda para escolher o colégio de seus eleitores. O segundo não tinha direito ao voto. O

terceiro, além das exigências de renda, o eleitor deveria ter nascido ingênuo, ou seja, que não

tivesse nascido escravo.

Nesse sentido, observa-se que a manutenção da economia escravista impediu que os

escravos desfrutassem dos direitos políticos e civis, e por não desfrutarem da condição de

brasileiros, a nível institucional, não poderiam prestar serviço militar. No que tange à inserção 120 MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p.21.

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do escravo nos serviços da Marinha de Guerra, Nascimento observa que, muitos escravos

fugiam dos seus senhores, assentavam praça com nova identidade e assumiam uma vida de

homens livres. Mas, não se sabe quantos conseguiram continuar fardados e livres sem serem

reclamados por seus senhores. A maioria dos escravos que se alistavam na Marinha de Guerra

não tinha a proteção de um senhor, não fazia parte dos laços de dependência, e não trocava

favores.

Fonseca salienta que, no Arsenal da Marinha trabalhavam três diferentes grupos de

escravos: aqueles que eram adquiridos pelo Estado, os chamados escravos da Nação;

aqueles que prestavam serviço nas oficinas juntamente com seus senhores; e aqueles que

eram mandados para correção por seus proprietários121 . Estes últimos eram depositados na

Presiganga - navio que servia de prisão- juntamente com os escravos da Nação, para lá

sofrerem castigos correcionais, por tempo determinado. Fonseca salientou que, nos primeiros

meses de 1826 houve um aumento no número de escravos em correção na Presiganga, em

decorrência da constante entrada dos navios de guerra vindos do Sul para sofrerem reparos, ou

para serem armados no Arsenal.

A maioria dos escravos alojados na Presiganga ou nos Calabouços, em 1825, era em

sua maioria, fugitivos capturados por caçadores de escravos, que esperavam a vinda de seus

donos para reclamá-los. Havia também, os escravos mandados para serem açoitados,

geralmente por fugas, e aqueles que deveriam ser apenas corrigidos com uma temporada na

prisão. No que tange aos castigos,

na década de 1820, o senhor que quisesse castigar seu escravo pelo açoite pagava 160 réis por cada cem chibatadas. Os 1786 escravos, entre homens e mulheres açoitados no Calabouço em 1826, receberam entre 50 e 300 chibatadas, sendo 200 o número mais comum, já que era penalidade usual para a fuga. Uma das punições para escravos fugidos também era a realização de trabalhos públicos, como limpar os quartéis e fortes122.

Em relação aos escravos de propriedade particular, a partir de 1832 ficaram impedidos

de serem empregados em serviços governamentais pelo aviso de 21 de janeiro desse ano. Os

escravos que se encontravam em serviço do governo foram restituídos a seus senhores, e os

que ainda permaneciam, nos Arsenais, o governo achou conveniente escrever anúncios em

jornais para que os senhores os retirassem. Mas, mesmo com tais anúncios nunca mais os

121 FONSECA, Paloma Siqueira. Op. Cit, p.141. 122 APUD- FONSECA, Idem,p.146.

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senhores pediam a restituição de seus escravos, para pouparem do seu sustento e guarda, uma

vez que haviam se tornado inválidos no serviço.

Em aviso de outubro de 1849, escrito pelo secretário do ministro da Marinha, Manoel

Vieira Costa, ao presidente da província de Pernambuco, Honório Hermeto Carneiro Leão,

informa-lhe da baixa do escravo Rodrigo Inácio que deveria ser entregue ao seu dono. No

relatório de 25 de maio de 1830 o ministro da Marinha,Francisco Vilela Barbosa, sugeriu à

Assembléia Legislativa vender os 190 escravos da nação que estavam realizando obras

públicas. Na opinião do ministro, deveria o governo autorizar a venda, pois o tesouro público

despendia anualmente a quantia de mais de mil réis com sustento e vestuário de escravos, se

fossem vendidos por 400 réis este capital seria convertido em 76 mil réis, e sendo aplicado

produziria uma renda de 4.560 mil réis na razão de 6% anualmente. Com esta venda e parte da

quantia para a sustentação dos escravos daria para assalariar o suficiente número de braços

livres. Assim, o Estado não despenderia seus recursos com doenças, perdas de trabalho e

outros prejuízos por crimes e vícios.

Na coleção das decisões do governo do Império de 1823, há um ofício do Intendente

da Corte, Luiz da Cunha Moreira, ao Imperador, D. Pedro I, pedindo esclarecimentos se

deveriam ou não ser admitidos para servirem a bordo da nau Pedro I, os escravos que foram

oferecidos pelos seus respectivos senhores. O Imperador ressalta que, tendo em vista a

necessidade de se terem marinheiros e grumetes deveria o Intendente admití-los e abonar a

seus donos as competentes gratificações.

Durante a guerra pela Independência brasileira na Bahia (1822 a 1823) Pierre Labatut,

comandante das forças patrióticas, recrutou e alistou para o Exército escravos que foram

confiscados de senhores - de- engenho portugueses ausentes. Labatut solicitou autorização

formal para tal recrutamento junto ao Conselho Interino do Governo local, mas não foi

atendido, em decorrência disso, pode-se afirmar que, o recrutamento de escravos na Bahia foi

um esforço muito improvisado123, pois não foi regulado por decreto. Após a guerra, a

resolução a respeito do recrutamento de escravos veio na forma de um decreto imperial que

concedeu alforria àqueles que estivessem servidos como soldados, dando aos seus antigos

donos uma compensação pecuniária. Segundo Kraay, o recrutamento de escravos feito por

123 KRAAY, Hendrik. “m outra coisa que não falavam os pardos, cabras e crioulos: o recrutamento de escravos na guerra da independência na Bahia”.In: Revista Brasileira de História. Vol. 22, n.º43. São Paulo: ISSN 0102-0188 versão impressa, 2002.

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Labatut na Bahia foi restrito e contribuiu para desestabilizar o regime escravista, uma vez que

tocava na questão fundamental do direito de propriedade dos senhores124 .

A historiadora Gladys Sabina Ribeiro observou que, durante as guerras da

independência os senhores eram obrigados, por lei, a ceder um em cada cinco escravos para o

trabalho de defesa do Império e da Causa Nacional125. Sobre esta questão, as reclamações

eram muitas. O Intendente queixava-se dos Comandantes das Ordenanças e dos Batalhões,

que não faziam lista dos proprietários com mais de cinco escravos e obstavam o cumprimento

das ordens imperiais; os senhores protestavam dizendo ser a lei contra o direito de

propriedade e as listas, quando confeccionadas, erradas. Reclamavam, ainda, da violência da

polícia no recrutamento de trabalhadores e do atraso no pagamento das diárias prometidas.

Sabina Ribeiro salienta que, as reclamações entre as autoridades e os senhores mais

pareciam pirraça de criança. Do lado dos senhores, havia uma imensa má vontade na

concessão de seus escravos, por qualquer motivo, tornava a tomá-los, escondiam-nos, ou, em

conluio com os comandantes de distrito, burlavam os números126. Por parte do Intendente,

além de ameaçar os comandantes, armava planos mirabolantes para conseguir uma quantia

suficiente de gente para trabalhar. Utilizavam meios e armadilhas. Chegava a ficar de

soslaio esperando os escravos saírem para poder resgatá-los127. Do lado dos escravos,

trabalhar nas obras públicas ou alistar no Exército ou na Marinha podia significar a

possibilidade da liberdade e de uma vida melhor128. Segundo Sabina Ribeiro,

as discussões dos ideais liberais ingleses do século XVIII podem ter alcançado os escravos no Novo Mundo e,no caso do Brasil, ter se revigorado no início da década de 20, momento intenso de debates sobre a Emancipação Política e libertação do julgo da reescravização do país, [...]. Os escravos podiam estar fazendo uma leitura dessas idéias. Quem sabe se baseados na concepção africana de liberdade- relacionada ao sentimento de “pertencer”, nascer e crescer em uma comunidade, ser membro de uma linhagem- não estariam, no caso de sua atuação na Corte, buscando maior enraizamento, naquela sociedade, “nascendo” com a Nova Nação e tentando conquistar um espaço no Estado em construção?129.

124 KRAAY, Hendrik. Op. Cit, p.2. 125 RIBEIRO, Gladys Sabina. “és-de- chumbo e garrafeiros: Conflitos e tensões nas ruas do Rio de Janeiro no primeiro reinado (1822-1831)” In: Revista Brasileira de História. Vol. 12, n.º 23/24. São Paulo: 1992, p.143. 126 RIBEIRO, Gladys Sabina. Op. Cit, p.144. 127 Idem, p.144. 128 Ibidem, p.144. 129 Ibidem, p.142.

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Para Sabina Ribeiro, as influências das idéias inglesas no contexto da emancipação

política, podem ter atingidos os escravos, que passaram a dar interpretações próprias a estas

idéias, no intuito, talvez, de conquistar um espaço no Estado em construção ; uma vez que a

concepção de liberdade africana estava articulada a idéia de pertencimento e enraizamento.

Nesse sentido, a Independência política poderia estar sendo interpretada como um a forma de

conquistar a sua liberdade e possibilidade de uma vida melhor.

3.3-Os dois extremos: a ordem institucional e a economia moral das regras não escritas130.

Em relação à prestação de serviço militar, deve-se ressaltar que, o Estado Imperial

Patrimonialista, amalgamando-se questões públicas e privadas, onde estas, na maioria das

vezes, parecem prevalecer nas relações sociais e políticas cotidianas, adotou práticas que nem

sempre seguiam a ordem institucional. Isto porque, segundo o historiador Fábio Faria

Mendes,

[...] as práticas do recrutamento refletem o baixo grau de burocratização do Estado e sua dependência de formas indiretas de governança, na forma de liturgias131.A Coroa portuguesa e, mais tarde o Estado Imperial não foi capaz de exercer sua autoridade, de modo direto, sem ampla delegação de poderes a notáveis locais , em razão da precariedade das bases materiais e morais da administração patrimonial.[...].A governança na esfera do recrutamento realiza-se por meio de uma amálgama de modos de governo simultaneamente internos e externos às estruturas administrativas formais 132.

O Estado Imperial Patrimonialista, apontada por Sérgio Buarque de Holanda e

Raymundo Faoro, moldará a realização do recrutamento forçado no Brasil. A ação dos

recrutadores estava entrelaçada com a natureza política paternalista dos poderes locais.

Embora houvesse as instruções de 1822 e a Constituição de 1824 para regular a prática do

recrutamento, o Estado Imperial Patrimonialista não conseguiu exercer sua autoridade de

modo direto e, fundado numa administração de cunho patrimonial delegou poderes a

130 Expressão utilizada pelo cientista político Fábio Faria Mendes. “Encargos, privilégios e direitos: o recrutamento no Brasil nos séculos XVIII e XIX”. n: Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p.111. 131 O cientista político Fábio Faria Mendes, utiliza-se do conceito de liturgias de Max Weber. As liturgias são formas de prestação de serviços administrativos por notáveis locais com seus próprios recursos, sem remuneração. É uma prestação de serviço voluntário que busca o prestígio local e resultados negociados. O poder central é traduzido pelos poderes locais. 132 MENDES, Fábio Faria. Op. Cit, p.112.

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autoridades locais, criando assim, modos de governo paralelos ao poder centralizado do

Estado. Nesse sentido, as distribuições das leis ficavam a cargo dos poderes locais que

embutidos numa atmosfera paternalista acabava por estabelecer e construir suas leis próprias.

A historiadora Manuela Carneiro da Cunha, estudando sobre a lei costumeira nas

alforria de escravos no Brasil do século XIX, salienta que, a sociedade brasileira oitocentista

é esse conjunto do escrito e do não escrito 133. No que tange à alforria, Segundo Cunha, havia

duas maneiras de alcançá-la que eram: a lei escrita e a lei costumeira. A primeira representava

a ordem institucional do Estado, enquanto que a segunda, era moldada pelos senhores de

escravos e pelas autoridades locais. A lei escrita afirmava relações sem privilégios entre os

indivíduos, já a lei costumeira lidava com relações particulares de dependência e de poder. No

entanto, tanto uma como a outra coexistiam sem embaraços por que, sendo aliados, recortam

para si campos de aplicação basicamente distintos: aos livres pobres, essencialmente, a lei;

aos poderosos, seus escravos e seus clientes, o direito costumeiro134.

O historiador Hendrik Kraay ressalta que, complexas regras não escritas governavam

a prática do recrutamento135. Ao contrário do que se pensa – que o Estado Imperial era um

Estado forte sobre uma sociedade recalcitrante- o Estado Imperial Patrimonial moldou um

tipo de recrutamento interligado numa complexa rede de relações patrono-cliente entre o

Estado, membros da classe senhorial e os pobres livres136.

Para Kraay, estas três camadas sociais fazem parte da tração triangular do

recrutamento, cada uma das três procurou se defender no contínuo processo do recrutamento,

às vezes sozinhos, às vezes com aliados nos outros pontos do triângulo137. Neste processo, a

elite imperial ao mesmo tempo em que protegia seus clientes fiéis, podia também definir os

infiéis como criminosos e vadios, mas, as relações patrono-cliente eram fundamentadas por

laços de reciprocidade os quais não podiam ser facilmente quebrados. Muitos pobres livres

descontentes com seus patrões recorriam ao primeiro ponto da relação triangular,

representado pelo Estado- apelando para a presidência e tribunais que se constituíam em

instituições rivais do aparato Estadual. Para tirar proveito destas rivalidades, entre Estado e

proprietários de terras- onde cada um alegava ser representante da justiça- os pobres livres

para demonstrarem que mereciam esta justiça tratavam de expedir requerimentos nos quais

enfatizavam sua decência, casamento legítimo, respeito às autoridades e moralidade sexual. 133 CUNHA, Manuela Carneiro. Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.141. 134 Idem , p. 141-142. 135 KRAAY, Hendrik. “Repensando o recrutamento militar no Brasil Império”. In: Diálogos DHI- UEM, Vol.3, n.º 3, 1999, p.115. 136 Idem, p.115. 137 Ibidem, p.116.

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No entanto, os mecanismos legitimadores do recrutamento dissolviam tais rivalidades

e estabeleciam um equilíbrio nas relações entre Estado, as elites locais e os pobres livres,

fazendo prevalecer as relações de patronato. Os patronos não aceitavam com boa vontade que

seus clientes sofressem indignidades, ou seja, que fossem recrutados a força, assim, o

recrutamento dependia da boa vontade dos patronos que preferiam desviá-lo de seus clientes.

Segundo Kraay, um presidente salientou que a sua incapacidade de fornecer mão-de-obra às

forças armadas estava ligada ao maldito espírito de patronato138.

Em relação às instruções de 1822, estas indicavam as classes de homens sujeitos ao

recrutamento e declaravam o intento do governo de proteger os que eram percebidos como

essenciais à sociedade e à economia, por isso, a omissão à inserção do escravo no serviço

militar. Da perspectiva do Estado, de um lado, o recrutamento deveria fornecer um número

adequado de soldados e marinheiros a custo mínimo, sem ser pesado às forças produtivas da

sociedade. De outro, desviando os recrutadores dos cidadãos economicamente ativos, ela

difundiu a mensagem de que o recrutamento forçado era um tributo a ser pago por homens

que não trabalhavam, que não obedeciam as autoridades e não procuravam servir a um

patrão139. Desta forma, as instruções estabeleciam um sistema de recrutamento que reconhecia

a preeminência social e a utilidade de certos tipos de atividade econômica. Pois, segundo as

instruções, o recrutamento deveria se realizar sem detrimento das artes, e navegação,

comércio, e agricultura, fontes de prosperidade pública140. Isto porque, o interesse do Estado

e da classe dirigente coincidiam: ambos colaboravam na proteção do direito à propriedade,

na manutenção da ordem pública e na obrigação dos pobres livres a trabalharem141 . kraay

observa que, o Estado concedia isenções do recrutamento à pessoas que eram sujeitas a ele, só

por estarem empregadas em alguma atividade produtiva. Os homens empregados na primeira

imprensa da colônia e na construção da estrada de ferro na Bahia foram isentos do

recrutamento. Kraay também conta que, o dono da primeira imprensa baiana solicitou a

prorrogação da isenção do recrutamento gozada por seus empregados, alegando que tal

isenção os tornavam mais diligentes, e aplicados [...] promovendo entre todos uma útil

emulação de trabalho142.

Nesse sentido, os isentos pelas instruções de 1822 eram:

Caixeiros de lojas de bebida e tavernas; homens casados; o irmão mais velho de órfãos, o filho único de viúva; o filho único de lavrador; o feitor ou

138 KRAAY, Hendrik. Op. Cit, p. 126. O autor não qualifica quem era o presidente. 139 Idem, p.119. 140 Coleção da leis do Império, Op. Cit, p. 141 KRAAY, Hendrik. Op. Cit, p.126. 142 Idem, p.119.

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administrador de fazenda de mais de seis escravos; tropeiros, canteiros, pescadores e marinheiros; milicianos devidamente alistados; contratadores de rendas e seus sócios; aprendizes da Imprensa Régia; tesoureiros menores da Bula da Cruzada; estudantes e eclesiásticos; fabricantes de cartas de jogar do Rio de Janeiro; criados empregados nas postas para Santa Cruz e para Quinta da Boa Vista; ilhéus de Açores, mas apenas aqueles vindos por diligência do intendente-geral de polícia; maridos e filhos de amas dos expostos; capatazias das alfândegas; cegos de olho direito, etc.143.

O recrutamento não era uma atividade administrativa regular, a sua freqüência e o seu

volume dependiam das necessidades de reposição das tropas. Segundo Mendes, a ausência de

qualquer mecanismo regular de reposição das fileiras, e a falta de registros prévios, tanto dos

indivíduos aptos ao serviço quanto dos isentos, tornava a tarefa altamente arbitrária,

imprevisível e errática144. Na ausência de critérios distributivos bem definidos para o

recrutamento, já que as instruções de 1822 possuía caráter ambíguo para tarefa, ficava à cargo

dos juizes de paz145 os critérios seletivos. Conhecedor da localidade, o juiz de paz indicava as

pessoas sujeitas ao recrutamento, seguindo as formas de reconhecimento e identificação

eminentemente pessoalizadas146, como se observa no documento a seguir:

“Relação dos que estão nas circunstâncias

de serem recrutados. Nomes.

“Lista de praças que o Senr' Captm de

Manoel Pereira há de recrutar em

conseqüência das imperiais ordens.

Joaqm. Inácio 10. Flávio José de Faria

Manoel Filho da Roda da Fortuna 20. José Joaquim

Joaqm. Filho do Do. 30. Manoel Filho de Roza

João Barboza, he Cazado purem não vive 40. Marianno Dias do Barro Alto

Com a mulher- esta trata de disquitarce 50. Pedro Cabelleira

Candido Morador do Alto do Morro 60. Francisco Rasgado (pr. Alainha)”

Filho de Joze Amaro”

(Apud- Fábio Faria Mendes. “ A economia moral do recrutamento militar no Império brasileiro”.Op. Cit, p. 11.) 143 KRAAY, Hendrik. Repensando o recrutamento militar no Brasil Império, p.122. 144 MENDES, Fábio Faria. A economia moral do recrutamento militar no Império brasileiro. In: Revista brasileira de Ciências Sociais. Vol.13, n.º 38. São Paulo: 1998 (versão impressa), p.11. 145 Segundo Fábio Faria Mendes, o cargo de juiz de paz foi criado em 1827 no intuito de servir de contrapeso à magistratura profissional, detinha funções administrativas, judiciárias e policiais. Também acrescenta: “Os juizes de paz conhecem em profundidade os assuntos da freguesia, e muito especialmente as qualidades morais dos habitantes e das redes de obrigação a que se encontravam vinculados. O conhecimento das inclinações, afazeres e dizeres de seus vizinhos, de natureza eminentemente circunstancial e, portanto em princípio disponível ao universo abstrato da administração formal, é decisivo para o recrutamento. Ele esta em posição de prever e calcular a extensão e o sentido da ação das redes de solidariedade ou clientelas. Em conseqüência, caberá ao juiz de paz tomar decisões fundamentais na distribuição dos encargos determinando aqueles que estão nas circunstâncias do recrutamento”. Idem, p.130. 146 Ibidem, p.11.

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Observa-se nesse documento que, a identidade dos indivíduos sujeitos ao recrutamento

não se revelava por si só, mas em relação a lugares ou parentes. Os apelidos indicam o

pertencimento ao mundo da aventura e valentia, como no caso do indivíduo apelidado de roda

da fortuna. Segundo Mendes, tais indicações, ainda que sumárias, iluminam os mecanismos

de tradução local que regem o recrutamento, e que constituem um conjunto de regras não

escritas que se sobrepõe às instruções de 1822147.

Mendes acrescenta que, as instruções possuíam critérios vagos e manipuláveis,

deixando ampla margem de arbítrio tanto para os sujeitos ao recrutamento como para os

recrutadores. No caso dos agentes recrutadores, quando saíam à cata das vítimas sempre

enfrentavam obstáculos postos por uma extensa rede de privilégios, imunidades e isenções à

volta dor recrutamento148, que para além das determinações legais, uma economia moral de

regras não escritas governava os procedimentos do recrutamento149.

Para Mendes, o Estado português teceu um mosaico de privilégios e isenções em torno

do serviço das armas. Nos séculos XVII e XVIII, em Portugal, a execução do recrutamento

para a tropa de linha cabia à ação de estruturas administrativas intermediárias, as ordenanças.

Estas haviam sido criadas em fins do século XVI, como uma tentativa de regularização de

formas de prestação militar de tipo eminentemente litúrgico150 , buscando comprometer os

poderes locais com a administração e a defesa local. Ficava a cargo do capitão-mor das

ordenanças a tarefa de preencher as fileiras da tropa regular. Assim, os notáveis locais tinham

o compromisso de fazer ou não soldados, resultando daí os processos de manipulação dos

critérios de isenção acerca do recrutamento forçado, dando a estes chefes locais um poderoso

instrumento de poder econômico e social. Segundo Mendes, as ordenanças promoveram uma

contínua tradução local das ordens do governo régio; interpretando a seu modo o sentido das

exigências das levas e transformando o recrutamento em elemento crucial na produção de

clientelas e favores151.

Pelo alvará de 24 de fevereiro de 1764, o Estado português consolida a intricada rede

de isenções e privilégios. Reconhece o estatuto social e jurídico da preeminência de fidalguia,

e a utilidade econômica de certos setores. O Antigo Regime português revelou que a prestação

de serviço militar, ou seja, os privilégios acerca do recrutamento não eram estritamente

pessoais: a imunidade ao recrutamento é extensiva, além das pessoas de mor condição, aos 147 MENDES, Fábio Faria. Op. Cit, p.12. 148 MENDES, Fábio Faria. “Encargos, privilégios e direitos: o recrutamento no Brasil nos séculos XVIII e XIX”. In: Nova história militar brasileira. CASTRO, Celso (org.). Rio de Janeiro: FGV, 2004, p.11. 149 Idem, p.11. 150 Ibidem, p.114. 151 Ibidem, p.114.

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seus criados e dependentes152. Na colônia, e ainda no Império, é a rede de isenções e

privilégios uma das principais dificuldades que enfrentam os recrutadores, como se observa

no relato:

Daqui nasce a dificuldade e trabalho dos recrutas para se conservarem completos os regimentos, pois querendo fazê-las, há pouca gente que não ocupe ofícios da justiça e fazenda, outros são comerciantes da praça e de lojas, munidos todos com privilégios da Bula, Mampostaria-mor dos Cativos, Santo Antônio de Lisboa, Familiares de Santo Ofício e Moedeiros, [e] com eles defendem não só seus filhos, mas também aos seus caixeiros, que afirmam ser-lhes precisos,e outros domésticos, e aqueles que não se defendem por este respeito são casados e mestres de ofícios mecânicos com seus oficiais e aprendizes, ainda que brancos, poucos, é o mesmo sucede com os pardos livres, de forma que é quase impossível fazer-se um recruta153.

Em meio a essas isenções, os recrutadores deveriam ser portadores de grande

perspicácia para saber identificar quem deveria ou não ser recrutado e, quem era isento ou não

do serviço militar. Deveria conhecer a comunidade local para depois lançar suas mãos sobre o

futuro soldado ou marinheiro. Alguns traços apresentados pelos indivíduos sujeitos ao

recrutamento eram fundamentais, como: a cor da pele e as vestimentas. Segundo Nascimento,

ser de cor branca em dias de alistamento era um suplício para aqueles que não dispunham de

cabedais e proteção. Ainda ressalta que, na documentação por ele analisada, não encontrou

indícios da existência de homens ricos ou protegidos que fossem recrutados.

As vestimentas dos indivíduos indicavam se eram sujeitos ao recrutamento, tendo em

vista que nem todos possuíam dinheiro disponível para comprarem roupas e sapatos. Mas vale

ressaltar que fundamentados nas relações paternalistas, não raro, os senhores concediam

roupas e sapatos usados para seus dependentes e criados. Nascimento acrescenta que, as

relações entre homens brancos pobres, libertos e escravos eram constantes e desenvolviam em

vários espaços: na prática dos rituais africanos, nas tavernas, nas igrejas, entre outros,

possibilitando a construção de laços de solidariedade, onde uns e outros se ajudavam

mutuamente na troca e doação de roupas e sapatos. Para o recrutador não era fácil distinguir

quais eram os indivíduos que gozavam de isenções, como se observa no documento abaixo:

A preta liberta Fé Joaquina do Nascimento [...]. Moradora num quarto da antiga estalagem da rua Leopoldo n.º 85, na Corte [...] vivia com seu filho

152 MENDES, Fábio Faria. Op. Cit, p.115. 153 APUD- MENDES,Fábio Faria. Op. Cit, p.118.

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único, o crioulo Henrique Fé do Nascimento, e dele dependia por estar idosa e valetudinária. Mas seu filho havia sido preso [...] pela polícia e remetido [...] para o Quartel General da Marinha [...]154 .

Nascimento escreveu que, para Fé Joaquina conseguir a soltura de seu filho teve que

ajuntar documentos para comprovar que ele tinha menos de 19 anos e que, seguindo a lei,

deveria ser mandato para a Escola de Aprendizes e jamais ser recrutado, tendo em vista que só

os maiores de 19 anos estavam sujeitos ao recrutamento. Fé Joaquina também buscou auxílio

de sua antiga senhora, Ana Joaquina do Nascimento, que assinou uma declaração na qual

informava que Henrique nascera livre por verba testamentária do marido da mesma senhora,

o Tenente Coronel Antônio Ferreira do Nascimento155.

Geralmente, as isenções apoiavam-se no discurso que sendo recrutado tal fulano ou

cicrano acarretaria o desequilíbrio de atividades produtivas como a lavoura e a mineração.

Neste sentido, os encarregados do recrutamento tinham a difícil tarefa de satisfazer as

exigências do Estado sem arriscar a dominação de classe nem a mão-de-obra da qual esta

dependia156. Alguns dos agentes recrutadores eram mais subordinados às autoridades centrais

do que outros, fiéis aos interesses locais. Pode se dizer que, os recrutadores parecem

enquadrar naquele tipo de funcionário patrimonial apontado por Buarque de Holanda, uma

vez que para efetivar o recrutamento nem sempre agia de forma impessoal e racional, pois, as

relações que estabelecia com os poderes locais eram banhadas de interesses privados, onde a

ordem patrono-cliente se sobrepunha à ordenação impessoal do Estado burocrático e

centralizado.

Dentro dessa atmosfera de isenções e privilégios, em torno das relações patrono-

cliente, os indivíduos sujeitos ao recrutamento tentavam buscar proteção dentro desta rede

paternalista. Porém quando tais homens se encontravam longe da sua rede de proteção

corriam o risco de serem recrutados, pois, fora das suas estruturas de patronato, os

recrutadores tinham a liberdade de qualificá-los como vadios, ladrões de gados e escravos,

enfim, ameaçadores das atividades econômicas. Sobre as relações patrono-cliente, Mendes

ressalta:

No Brasil tornar-se-á dominante um modelo clientelar de relações entre centro e periferia, sobreposto às redes hierárquicas formais, sustentado por

154 APUD- NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Do convés ao porto: a experiência dos marinheiros e a revolta de 1910. Op. Cit, p.86. 155 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Op. Cit, p.86. 156 KRAAY, Hendrik. “ Repensando o recrutamento militar no Brasil Império”. Op. Cit, p.123.

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um sistema de trocas cujas principais “moedas” serão fidelidades, serviços e mercês. Sendo tênue e remota a capacidade de monitoramento e imposição de sanções por parte do poder central e, simultaneamente, acentuada a imersão dos lotáveis em um conjunto variado e flutuante de compromissos locais [...]157.

Em relação ao sistema de clientela e patronagem – enraizado na estrutura social e

política brasileira desde o período colonial –Emília Viotti da Costa observou que, ele ainda

sobrevive no Brasil em algumas regiões do interior e, nos centros urbanos, embora

profundamente enfraquecido, remodela-se para ajustar-se à sociedade moderna. Sérgio

Buarque de Holanda acrescenta que, nos domínios rurais é o tipo de família organizada

segundo as normas clássicas do velho direito romano-canônico, mantidas na Península

Ibérica que prevalecem como base e centro de toda a organização158 .Os escravos, os filhos,

os agregados dilatam o círculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do pater-famílias. A

família patriarcal fornecerá o modelo que fundamentará as relações políticas, econômicas e

sociais no Brasil no período colonial e ainda no Império. No que tange o recrutamento

forçado, o paternalismo era decisivo no desfecho de mesmo. Desta forma, a historiadora

Denise Moura afirma:

A vida das localidades assistia frequentemente à manifestação destes pequenos poderes, gerados no interior de uma tradição paternalista e autoritária, que opunha e unia homens de cores e cabedais destoantes. Do conviver fluído em torno de muitos arranjos feitos na varanda da casa- grande ou na soleira dos sítios, em torno de uma garrafa de aguardente posta à mesa do jogo na venda ou durante a prosa despreocupada das horas ociosas, emergiam desavenças que confundiam questões de honra, pessoais e de trabalho, geralmente traduzidas para a acusação de vadiagem159.

Denise Moura observa algumas questões que parecem importantes acerca da atmosfera

cotidiana do recrutamento. O paternalismo é apontado como elemento decisivo nas relações

políticas e sociais dos poderes locais, que por qualquer motivo acusavam de vadios, homens

tidos como infiéis. Observa-se que, numa simples discussão surgida em torno de uma garrafa

de aguardente poderia ser justificativa para o senhor- que também era patrono- mandar seu

infiel cliente se submeter ao recrutamento com a acusação de vadiagem.

157 MENDES, Fábio Faria. “ A economia moral do recrutamento militar no Império brasileiro”. Op. Cit, p.5 158 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Op. Cit, p.50. 159 MOURA, Denise. “A farda do tendeiro: Cotidiano e recrutamento no Império”. In: Revista Regional de História. Vol.4, nº 1, verão 1999, p. 41.

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Na peça teatral Juiz de Paz na Roça de Luiz Carlos Martins Pena, observa-se alguns

elementos da sociedade brasileira da primeira metade do século XIX, que retratam a nossa

natureza política e social fundada nas relações paternalistas e clientelísticas. Martins Pena,

considerado por muitos estudiosos o pai do teatro de costumes no Brasil, criou vários

personagens que simbolizam variados tipos sociais de nosso país. Nesta obra, o escritor

literário expõe de maneira hilária como se desenvolvem as relações patrono-cliente em torno

do poder local, representado pelo personagem juiz de paz na roça e, seus clientes, os

lavradores. O juiz de paz exercendo uma das primeiras instâncias do poder judiciário na

localidade, acaba por tirar proveito desta condição, protegendo uns em detrimento de outros.

Os laços de proteção se estendem aos indivíduos que concedem galinhas, cachos de bananas,

ovos, entre outros, ao juiz de paz. Este, por ter o poder de decidir algumas pendengas surgidas

entre os habitantes locais, acaba por construir leis próprias- que se aproximam dos laços

localistas de patronato- inversas à Constituição.

Esta situação é vista no caso do personagem Manuel André, que pede a presença do

juiz de paz em seu sítio para assistir a demarcação de terras, uma vez que seu vizinho alegava

também ter posse da metade das terras do dito sítio. O juiz de paz se recusa em presenciar tal

ato, alegando estar muito atarefado com seu roçado. Manuel André replica diante da recusa do

juiz de paz e este o ameaça de lhe mandar para a cadeia. Desta forma, Manuel André retruca:

Vossa senhoria não pode prender-me à toa: a Constituição não manda. O juiz de paz,

enfurecido, responde: A Constituição! ... Está bem! ... Eu, o Juiz de Paz, hei por bem

derrogar a Constituição! Sr. Escrivão, tome termo que a Constituição está derrogada, e

mande-me prender este homem160.

A obra Juiz de paz na roça também mostra o serviço militar como castigo aos homens

que cometeram algum ato considerado errado aos olhos das autoridades. O lavrador Francisco

Antônio faz um requerimento ao juiz de paz dizendo que o seu vizinho, José da Silva, roubou

a cria da égua pertencente à sua mulher justificando que, o seu cavalo era o pai da dita cria. O

juiz pede que José da Silva devolva o potranco, mas ele retruca dizendo que vai se queixar ao

Presidente. Diante disso, o juiz de paz pede ao seu escrivão que o aliste para soldado.

Outro caso, tratado na obra, diz respeito à isenção do recrutamento. O escrivão, em

nome do juiz de paz, vai até a casa do lavrador e guarda - nacional Manuel João e pede-lhe

que mande um recruta à cidade. Manuel João se queixa do pedido de recrutamento dizendo

que só os pobres é que o pagam, no entanto, obedece as ordens do juiz e sai em busca de um

160 PENA, Luiz Carlos Martins. “Juiz de paz na roça”. In: O noviço. São Paulo: Editora klick, 1997, p.114.

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recruta que deveria ser mandado para o Rio Grande. Nesta busca, acaba por recrutar, sem

saber, o namorado de sua filha Aninha, José da Fonseca, leva-o para a casa do juiz de paz e

pede a este que deixe para levar o recruta à cidade somente no dia seguinte; alegando que já

se fazia tarde e poderia correr o risco do recrutado fugir. O juiz de paz decide então, que o

recrutado deveria dormir na casa de Manuel João. Este, o prende no celeiro, e durante a noite,

Aninha abre a porta onde seu amado estava e fogem para a freguesia onde se casam. O

casamento de Aninha com José da Fonseca exime seu marido de prestar serviço militar, uma

vez que pelas instruções de 1822 os homens casados estavam isentos do recrutamento.

Para finalizar: embora pareça contraditório a relação que se estabelece entre

paternalismo e coerção, tendo em vista que, segundo Kraay, a coerção e a força, é o adverso

essencial do paternalismo e proteção das relações patrono-cliente161, deve-se considerar que,

observando o pressuposto do historiador Jaime Rodrigues, o paternalismo esta ligado a uma

economia moral que os marinheiros herdam de sua convivência em terra, pois, antes de serem

recrutados estão embutidos nesta rede familiar de patronato. Mas, ao entrarem para o universo

marítimo, uma economia política, baseada na despersonalização, nas relações de mercado

capitalista, na linearidade do trabalho e na disciplina favorecem a erosão do paternalismo.

Pode-se dizer que, segundo Jaime Rodrigues, por um lado, o paternalismo reinante na

sociedade colonial e imperial se fazia sentir nas localidades devido ao universo abstrato da

administração formal, ou seja, da reduzida capacidade do poder central de estender

eficientemente a sua administração por todo o território e, por isso, a apelação aos serviços

litúrgicos dos poderes locais. De outro, quando o Estado, através da Marinha e o Exército,

consegue aproximar o indivíduo às suas teias de dominação, submetendo-o a um rígido

sistema de disciplina e de trabalho o paternalismo passa por um processo de enfraquecimento,

que tende à erosão.

No entanto, Fonseca salientou que, as relações fundadas no patriarcalismo se

estendem até o circuito militar, onde oficiais transformam seus subordinados em clientela para

fins privativos. Assim, diz Fonseca:

O patriarcalismo de que se embuiam os oficiais externava-se, por exemplo, quando os seus subordinados eram transformados em clientela, criadagem, e eram tomados para fins privativos. A figura tradicional do patriarca transfigura-se em oficial e extrapolava o restrito domínio doméstico para ordenar na esfera pública em benefício próprio. No Brasil, a escravidão fortaleceu o patriarcalismo, já que ampliou o circuito “familiar”.

161 KRAAY, Hendrik. “Repensando o recrutamento militar no Brasil Império”. Op. Cit, p. 127.

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Marinheiros e soldados forçados, ou mesmo com a marca de cor negra ou parda, tendiam a ser encarados como extensão da pequena “família” que o oficial de patente levava para bordo162.

Em suma. Jaime Rodrigues observa que, o patriarcalismo esta presente na economia

moral (que caracteriza a herança da cultura terrestre que o marinheiro traz para dentro do

navio) já na economia política (de dentro dos navios) acontece a sua degradação, o seu

deterioramento, através da imposição das normas e disciplina do trabalho. Paloma ressaltou

que, havia dentro dos navios a permanência das relações, entre oficiais e subordinados,

baseadas no patriarcalismo. As duas opiniões demonstram dois pontos extremos que

permeiam o funcionamento do recrutamento. Pode-se supor que, o ambiente político, social,

econômico e militar brasileiro no século XIX amalgamou as heranças trazidas da grande

família patriarcal com as novas expectativas trazidas da Europa em torno das relações de

trabalho, da família e do Estado.

162 FONSECA, Paloma Siqueira. Op. Cit, p. 67.

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Capítulo 4

Permanências, mudanças e resistências no recrutamento

4.1- Permanências e mudanças no recrutamento

O recrutamento forçado foi realizado ao longo do século XIX e, no inicio do século

XX ainda havia possibilidades concretas de a pessoa ser recrutada a força e sofrer castigos

corporais163. Pois, na ausência de voluntários que se sentissem seduzidos por uma carreira de

sucessos, que a Marinha de Guerra ainda não oferecia, havia o recrutamento forçado e anos

de trabalho sob a ameaça de castigo164. Segundo Nascimento, as mudanças de pensamento da

sociedade brasileira e do mundo não implicaram em mudanças na Marinha, no sentido de

incentivar um desenvolvimento a nível humano, como: diminuição do tempo de serviço

militar, fim dos castigos físicos, melhorias das escolas de primeiras letras, de ensino

profissional, etc.

As tentativas de mudanças, em torno da falta de voluntários para o serviço militar, são

vistas em alguns projetos apresentados à Assembléia Legislativa. Em 1834, a Comissão de

Guerra e Marinha apresentou à Assembléia Legislativa um projeto concernente à reforma do

recrutamento forçado, que visava substituí-lo por um sorteio militar. Este projeto é alterado

por emendas e metamorfoseia-se em projeto para engajamento, garantindo a continuidade do

recrutamento forçado como estabelecido pela lei de 10 de julho de 1822.

O projeto de 1834, foi tema de quatro discussões na Câmara dos Deputados, todas

neste mesmo ano. Na primeira discussão, o projeto venceu outro rival que pretendia

estabelecer um sistema nacional de alistamento voluntário financiado pelas câmaras

municipais. Na segunda discussão, os deputados emendaram o projeto original para aumentar

o número de homens isentos do sorteio165 . Na terceira sessão, foi aprovada uma emenda para

limitar o recrutamento ao engajamento. Por fim, na última sessão, a ênfase recaiu sobre a

impossibilidade de um Exército e Marinha compostos apenas de voluntários. O projeto

de1834 concedia aos voluntários salários maiores e tempo de serviço menores do que os

163 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Marinheiros em revolta: recrutamento e disciplina na Marinha de Guerra (1880-1910). Op. Cit, p.189. 164 Idem, p.189. 165 KRAAY, Hendric. “ Repensando o recrutamento militar no Brasil Império”. Op. Cit, p.137.

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recrutados, no entanto, se tais incentivos não persuadissem suficientes homens a alistarem-se,

uma certeza: recorria-se ao recrutamento forçado166 .

Em vários momentos o Poder Legislativo foi palco de discussões em torno de projetos

que visavam a extinção ou reforma do recrutamento forçado. Finalmente, em 1874, foi

aprovada a lei do sorteio militar que visava substituir o recrutamento por um sorteio baseado

num alistamento e reduzir as isenções. O sorteio militar funcionava da seguinte forma: se

acaso o número de voluntários fosse incapaz de suprir as forças desejadas pelos corpos

militares haveria um sorteio paroquial em que escolheria cidadãos entre 19 e 30 anos que

não fossem escravos e estrangeiros para o serviço militar167. Do ponto de vista do historiador

José Murilo de Carvalho, o sorteio militar de1874 resultou em fracasso, pois:

De um lado, permitia aos que não quisessem servir a pagar certa quantia de dinheiro ou apresentar substitutos, e introduzir isenções especiais para bacharéis, padres, proprietários de empresas agrícolas e pastoris, caixeiros de lojas de comércio, etc. De outro lado, deixava o alistamento e o sorteio a cargo de juntas paroquiais, presidida pelo juiz de paz e completadas pelo pároco e pelo subdelegado. O resultado foi continuar o serviço a pesar totalmente sobre pessoas sem recursos, financeiros ou políticos […].O novo sorteio só colhia pobres ou não colhia ninguém, continuando o recrutamento a ser feito a laço como anteriormente168.

Segundo Carvalho, com a lei do sorteio militar ainda continuou-se a introduzir no

serviço militar homens pobres, sem recursos, financeiros ou políticos. Também deu

continuidade à política dos poderes locais, ao atribuir aos juizes de paz e aos subdelegados a

tarefa de fazer o alistamento. Desta forma, é possível observar um misto de permanência e

uma tentativa de mudança em torno do recrutamento, pois, de um lado, a escolha dos homens

sujeitos de serem alistados ainda continuava a passar pelo crivo dos juizes de paz que

poderiam interferir na escolha. De outro, segundo Faria Mendes, a lei do sorteio introduzia no

jogo do recrutamento elementos de compulsão e aleatoriedade que modificavam de modo

radical a economia moral que governava a alocação dos encargos do recrutamento169 .

166 KRAAY, Hendric. Op. Cit, p.137. 167 NASCIMENTO. Álvaro Pereira do. Do convés ao porto : a experiência dos marinheiros e a revolta de 1910. Op. Cit, p. 137. 168 CARVALHO, José Murilo de."As forças armadas na primeira República: o poder desestabilizador”. In: História Geral da Civilização brasileira: o Brasil monárquico. FAUSTO, Boris (Org.). São Paulo: Difel, 1986, p.190. 169 MENDES, Fábio Faria. “ Encargos, privilégios e direitos: O recrutamento no Brasil nos séculos XVIII e XIX” .Op. Cit, p.133.

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O historiador Luiz Geraldo Silva, mostrou que em decorrência do papel estratégico

que a Marinha exercia sobre o território brasileiro, em março de 1841, a oficialidade naval

levou à apreciação do Conselho de Estado um projeto acerca da criação de capitanias dos

portos nas províncias marítimas do Império, no qual possuía um conjunto de dispositivos que

visavam a formação de uma reserva naval da Armada em cada província marítima. O projeto

apresentado em 1841 voltou a ser discutido nas sessões do Conselho de Estado de:

20/01/1843, 23/05/1845 e 12/08/1845. E, finalmente, aprovado em 24/12/1845 o dispositivo

que regulava a criação das capitanias dos portos .

Segundo Luiz Geraldo Silva, o interesse da oficialidade era a de ter maior controle

sobre a população marítima, ou seja, a intenção dos elaboradores da inscrição marítima no

Brasil foi, essencialmente, aumentar a base de contribuintes do imposto de sangue, uma vez

que, a partir da adoção da inscrição marítima todos os habitantes dos tradicionais distritos de

pesca constituíram a reserva natural do país para a Marinha de Guerra170. Desta forma,

ficaram obrigados a se matricularem e a fazerem parte das listagens da capitania da sua

jurisdição os pescadores, os trabalhadores marítimos, canoeiros de alto, marinheiros de

longo curso, cabotagem e tráfico de rios e costas 171. Esses homens, quando matriculados,

deveriam se apresentar mensalmente nas capitanias, acaso não se apresentassem, capatazes

saíam à sua busca na comunidade de origem. A matrícula desses pescadores os isentava de

servir na Guarda Nacional, mas estariam sujeitos ao serviço militar na Marinha de Guerra

quando esta os requisitassem. Segundo Luiz Geraldo, as listagens eram imprecisas e

ocultavam detalhes importantes para se conhecer as condições físicas, idade e cor dos

possíveis recrutados. Com o regulamento das capitanias dos portos, impondo a

obrigatoriedade da matrícula dos pescadores e trabalhadores marítimos, dentro do seu distrito

de pesca, favoreceu que, o recrutamento recaísse sobre os ombros de homens acostumados à

vida do mar.

Segundo Nascimento, a partir de 1840 as escolas de aprendizes marinheiros se

espalharam pelas principais capitais da província. Para a matrícula nessas escolas o indivíduo

deveria ser menor de idade, de 13 a 18 anos, aqui, recebiam formação educacional e

profissional, e quando preparados se dirigiam à Corte para o Corpo de Imperiais Marinheiros

que funcionava, segundo Nascimento, como um depósito central de marinheiros, cabos e

sargentos, de onde eram distribuídos por todas as unidades navais da Armada: fortalezas,

170 SILVA, Luiz Geraldo. A faina, a festa e o rito: uma etnografia sobra as gentes do mar (séculos XVIII ao XIX). Campinas: Papirus, 2001, p.216. 171 Idem, p.215.

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departamentos e navios. Nascimento salienta que, o indivíduo poderia sair de Pernambuco

com destino ao Corpo, na cidade do Rio de Janeiro, a fim de jurar bandeira, e dali ser

destacado para qualquer outra província em que existisse um posto desocupado. Caberia

apenas ao Comandante, de qualquer unidade naval, solicitar um ou mais indivíduos do Corpo,

em decorrência disso, Nascimento observa que, o Corpo funcionou como um lugar de

transferência de marinheiros. O Corpo de Imperiais Marinheiros estava dividido em várias

unidades e em cada uma havia 100 homens aproximadamente. Para saber sobre a vida de cada

homem que compunha o Corpo havia os Livros de Socorros, que era o lugar onde se

registrava a disciplina, o cargo ocupado por cada homem, sinais pessoais, idade, cor, origem,

forma de alistamento, etc.

Para a entrada nas Escolas de Aprendizes Marinheiros, o menor podia ser enviado

pelos próprios pais ou tutor legal através dos delegados de polícia de qualquer cidade do país,

ou poderiam ser capturados pela polícia e entregues aos juizes de paz ou de órfãos sobre a

acusação de estarem perambulando pelas ruas da cidade. Nestas escolas, os alunos deveriam

aprender aulas de primeiras letras - a fim de erradicar o analfabetismo- e o ofício de

marinheiros. No entanto, o comandante Eusébio Legey observou que, dos 149 aprendizes

passados para o Corpo de Imperiais Marinheiros, mais da metade foram completamente

analfabetos. Os menores se entregavam à embriaguez, ao jogo, ao fumo e a atos imorais.

Segundo Nascimento, as Escolas de Aprendizes Marinheiros eram um lugar de repressão e

controle das classes perigosas. No discurso das autoridades públicas, esses menores

poderiam ser levados ao mundo do crime, assim a preocupação com seus destinos foi

percebida pela criação das Escolas de Aprendizes, sobre elas Nascimento afirmou:

as escolas funcionavam como viveiros onde o menor teria de aprender a respeitar e a seguir a disciplina militar. Porém, essas escolas se mostraram débeis ao longo do tempo [...]. Durante os dois anos de reclusão trabalhavam sem quase ter aulas específicas de marinharia e, quando havia alguma exceção, eram as aulas de primeiras letras que também acabavam por ser estéreis. Contudo, a experiência de se educar os menores [...], demonstra que a correção ou regeneração do indivíduo não era feita através da reclusão e dos castigos corporais. Na realidade, as escolas eram espaços de confinamento até que o menor alcançasse a robustez necessária para enfrentar o duro serviço a bordo dos navios. A Armada precisava de homens, só e só. Assim, a Marinha fazia parte do elo que envolvia variadas instituições em prol do controle social sobre as classes pobres172.

172 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Marinheiros em revolta: Recrutamento e disciplina na Marinha de Guerra (1880-1910). Op. Cit, p.59.

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Na opinião de Nascimento, as Escolas de Aprendizes ainda constituíam o desejo das

autoridades de isolar o indivíduo do convívio social, para atender a um fim: resolver o

problema da falta de voluntários. Assim, com a preocupação de regenerar o indivíduo, estas

escolas surgem para confinar o menor até que alcançasse a robustez necessária para

enfrentar o duro serviço do mar. Em linhas gerais, a falta de voluntários tinha que ser

resolvida, mesmo que para isso se construísse escolas débeis – do ponto de vista da

aprendizagem na qual se propunham - e aulas de primeiras letras estéreis.

Talvez, uma das mudanças mais significativas em torno do recrutamento forçado, dos

castigos físicos e do sistema militar foram lançadas pela Revolta de1910. Arias Neto

observou que, a Revolta de 1910 representou a luta das praças da Marinha de Guerra do Brasil

pelo reconhecimento de sua condição de cidadãos. Durante o século XIX, o sistema militar

baseado no recrutamento forçado e em um regime de suplícios sobreviveu até o final deste

período, quando os praças constituindo-se como sujeitos de direitos exigiam seu

reconhecimento como cidadãos republicanos. A Revolta de 1910 visava a transformação no

sistema militar com a implantação de uma carreira profissional para os marinheiros. Segundo

Arias Neto, a vivência militar desses homens juntamente com o discurso republicano

proporcionou o conhecimento de novas estratégias. Assim o autor afirma:

Os marinheiros reivindicavam que o Estado os tratassem como cidadãos fardados em defesa da pátria, proporcionando-lhes proteção, estendo-lhes os direitos sagrados prometidos pela República, acabando com a desordem e reconhecendo-lhes a plenitude da cidadania, isto é, o direito de reivindicar: a retirada dos oficiais incompetentes, a reformulação do código imoral e vergonhoso extinguindo a chibata, o bolo e outros castigos semelhantes, o aumento dos soldos , a educação de seus companheiros mais carentes, a reforma das escalas de trabalho173.

Segundo Arias Neto, estas reivindicações não eram em si, um direito novo, pois o que

se desejava eram reformas na Armada nas quais os praças consideravam-se integrantes. Tais

reivindicações também representavam o primeiro passo na criação de uma carreira

profissional para os marinheiros174, isto significa que, a Revolta de 1910 pretendia implantar

modernas relações de trabalho e de hierarquia dentro da Armada, onde a arte de marinharia

seria concebida como uma profissão, como uma carreira aberta ao talento 175. No próximo

173 ARIAS NETO, José Miguel. Em busca da cidadania: Praças da Armada Nacional (1867-1910). Op. Cit, p.359. 174 Idem, p.363. 175 Idem, p.365.

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momento, analisaremos o porque do temor da população em relação a prestação de serviço

militar da Marinha.

4.2- Recrutamento: o temor da sociedade

Como descreveu Caio Prado Júnior,

O recrutamento [...] constituiu, durante a fase colonial da história brasileira, como depois ainda no Império, o maior espantalho da população; e a tradição oral ainda conserva em alguns lugares bem viva a lembrança deste temor. Não havia critério quase nenhum para o recrutamento, nem organização regular dele. Tudo dependia das necessidades do momento e do arbítrio das autoridades. Fazia-se geralmente assim: fixadas as necessidades dos quadros, os agentes recrutadores saíam à cata das vítimas; não havia hora ou lugar que lhes fosse defeso e entravam pelas casas a dentro, forçando portas e janelas, até pelas escolas e aulas para arrancar delas os estudantes 176.

O engenheiro naval, Juvenal Greenhalgh, escreveu que as operações do recrutamento

nos navios mercantes se constituía verdadeira razia, onde os agentes recrutadores,

comandados por oficiais, invadiam os navios, alta madrugada, quando a vigilância era pouca

e as guarnições ainda estavam dormindo 177. Para fugir do recrutamento, muitos marinheiros

abandonavam seus navios ao chegarem ao porto, mas os que eram apanhados de surpresa

recorriam ao judiciário em questões que levavam anos para serem resolvidas.

Segundo Nascimento, a aversão ao serviço militar era decorrente do uso de castigos

corporais em homens livres. As forças militares, sempre foram vistas com aversão diante do

povo, pois o serviço militar associado a vadios, mendigos e excluídos sociais, incutiu no

pensamento dos homens livres ricos que o serviço militar era um castigo, uma espécie de

exercício correcional para a vadiagem e o crime. Nascimento ressalta que, a aversão do povo

era tamanha a ponto de haver casos de homens se mutilando para escaparem da garra dos

recrutadores. Em 1828, o general Cunha Matos afirmou que, a vida do escravo em

determinadas situações era melhor que a do soldado, haja vista os problemas com a falta de

alimentação e pagamento dos soldos, e o uso dos castigos corporais enfrentados por todos os

recrutados sob o regime disciplinar.

176 PRADO JÚNIOR, Caio. A formação do Brasil contemporâneo: colônia. Op. Cit, p.318. 177 GREENHALGH, Juvenal. Op. Cit, p.187.

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A Armada Nacional foi ordenada disciplinarmente por meio do Regimento Provisional

e dos Artigos de Guerra da Armada Real Portuguesa. Elaborada em 1796 para a Armada

Portuguesa, o Regimento Provisional regulava o serviço e disciplina a bordo dos navios de

guerra portugueses. Em 1799, foram acrescidos, junto a ele, os Artigos de Guerra. Estes

apresentam grande complexidade e foram considerados a partir de sua hierarquia e

penalidades, por Arias Neto, compondo-se assim:

a) artigos processuais que regulam o funcionamento do próprio regimento; b) artigos gerais que estabeleciam crimes e penalidades que se aplicavam indistintamente sobre todos (civis, militares, oficiais, soldados e marinheiros); c) artigos que estabeleciam crimes e penas que se aplicavam os oficiais; d) artigos que se aplicavam aos oficiais marinheiros e comboios178 .

Segundo Nascimento, os a Artigos de Guerra estiveram sobre a mesa de cada um dos

comandantes dos navios e quartéis pertencentes à Marinha de Guerra brasileira. Através deles,

o comandante encontrava os instrumentos necessários para punir qualquer indivíduo que

atentasse contra a disciplina e a polícia das embarcações 179 . Nascimento ressalta que, as

punições contra marinheiros deveria servir de exemplo ao restante da guarnição, pois o

castigo empregado ao marinheiro faltoso era um ato de amostra onde todos os marinheiros

perfilados assistiam ao triste espetáculo. Os comandantes de cada unidade naval, eram os

primeiros a imporem as regras, salientadas nos Artigos de Guerra, interpretavam sobre a falta

disciplinar cometida e, se fosse caso de indisciplina aplicava ali mesmo a punição. Segundo

Nascimento, não era raro, os comandantes cometerem abuso e excesso de poder. Havia uma

praxe de corrigir indisciplinas de acordo da constituição física do infrator. Caso o marinheiro

acusado de insubordinação fosse homem robusto, as chibatadas poderiam chegar a 200. Caso

fosse magro, pouco robusto, a pena poderia variar de 25 a 50 chibatadas 180.

Em relação ao Regimento Provisional, deve-se considerar que, dividia-se em quatro

capítulos cada um deles versando sobre algum aspecto do serviço do navio, em tempo de paz

ou de guerra, andando a vela ou fundeado em porto nacional ou estrangeiro181 . O Regimento

Provisional estabelecia as atividades ou operações realizadas durante o serviço, da alvorada ao

178 ARIAS NETO, José Miguel. Em busca da cidadania: praças da Armada Nacional 1867- 1910. Op. Cit, p.65. 179 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Marinheiros em revolta: recrutamento e disciplina na Marinha de Guerra (1880-1910). Op. Cit, p.66. 180 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Do convés ao porto: A experiência dos marinheiros e a Revolta de 1910. Op. Cit, p.142. 181 FONSECA, Paloma Siqueira. A presiganga real (1808-1831): punições da Marinha, exclusão e distinção social. Op. Cit, p.65.

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toque de recolher. Fonseca salienta que, conduta e costumes exemplares, método e ordem

regulares contrapunham-se à negligência, relaxação e transgressão182.

Outro aspecto que diz respeito à disciplina, está relacionada a vivência cotidiana dos

marinheiros no serviço militar. Este era pontuado de perigos que deveriam ser encarados por

todos que vestiam a farda de marinheiro. Segundo Nascimento, o marinheiro deveria conviver

e

aprender a dividir os mesmos espaços com indivíduos de regiões, cores, idades, opção sexual e condição social das mais diversas, entre os quais poderiam ser criados laços de solidariedade e níveis de intolerância e de conflitos complexos e variados. [...] Esses indivíduos quando fardados não poderiam ser entendidos e identificados sobre o rótulo generalizante de marinheiros, quiçá de refugo da vagabundagem e do crime. Havia, enfim, intensa e fervilhante diversidade humana reunida nos postos mais baixos da hierarquia militar. Tudo isso poderia fermentar e se tornar extremamente perigoso, obrigando o indivíduo a enfrentar comportamentos desconhecidos por ele até então. Para conviver em tal meio ele havia de reconhecer os costumes e valores aceitos e vigentes entre os homens, e também descobrir as brechas e formas de se proteger dos perigos e adversidades impostas pelo quotidiano das embarcações e quartéis 183.

Esta diversidade humana que por vezes gerava laços de solidariedade e rivalidades

impunham aos homens do mar a necessidade de reconhecer os costumes e valores aceitos

para escaparem dos perigos e adversidades do quotidiano das embarcações. O historiador

Jaime Rodrigues, observou que, além dos marinheiros serem mal remunerados e espoliados

pelos oficiais, lutavam pela sua sobrevivência cotidiana, tendo como aliados alimentação e

água muitas vezes estragadas. Para Rodrigues,

Se o sofrimento físico e emocional era uma marca desse trabalho, produzindo resultados que estão no cerne da cultura marítima, outros elementos intervinham na caracterização das práticas culturais dos marinheiros. Entre elas estava a mobilidade no espaço, responsável pelo contato com outras práticas e culturas, mundo (ou mar) afora, além de inúmeras diversidades184.

182 FONSECA, Paloma Siqueira. Op. Cit, p.65. 183 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Do convés ao porto: A experiência dos marinheiros e a Revolta de 1910. Op. Cit, p.96. 184 RODRIGUES, Jaime. Cultura marítima: marinheiros e escravos no tráfico negreiro para o Brasil (séculos XVIII e XIX). Op. Cit, p.19.

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A vida do mar, ao mesmo tempo em que isolava o homem da vida terrestre,

desligando-o da sua cultura de origem, levava-o a construir laços que os unia aos demais

marinheiros, fazendo com que, de sua convivência coletiva resultasse na elaboração de uma

linguagem própria que refletia o seu isolamento e sua alienação em relação ao mundo

terrestre. O isolamento dos navios em alto mar era marcado pela inexistência de poderes

institucionais mais comuns - como a família, a igreja e o Estado185. Ao contrário do que se

pensa, a inexistência destes poderes não deixou um vácuo, pois toda a autoridade

concentrava-se nas mãos do capitão, que normalmente a exercia com lendária

arbitrariedade186. Nascimento observou que, havia uma lógica do tribunal do convés que

alcançava requintes de extrema crueldade. Embora houvesse os Artigos de Guerra que

estabelecia a quantidade diária de açoites ficava ao livre arbítrio do comandante a prescrição

do castigo, que geralmente levava em conta à constituição física e a resistência do faltoso.

Havia uma lógica no castigo físico fundada na reafirmação e na reprodução do domínio do

oficialato sobre todos os homens de seu navio 187. Para Nascimento, os objetivos da punição

eram atingir a moral do marinheiro, levando-o a humilhação e ao sofrimento, servindo de

exemplo para toda a guarnição 188.

No relatório de 1832, do ministro da Marinha, Rodrigues Torres, este reclama à

Assembléia Legislativa sobre o espírito de rebeldia e sedição que tomam conta dos soldados e

marinheiros, ressaltando que, o espírito de indisciplina tem sido a causa do rompimento dos

laços da disciplina militar, fazendo da maior parte dos soldados o flagelo da sociedade. O

ministro propõe a manutenção de uma rigorosa disciplina através da organização de um novo

Regimento e o estabelecimento de uma Legislação Penal. Observou que, o Regimento

Provisional era vago e incompleto, concorrendo para consagrar a impunidade e atear a

insubordinação. Sobre a disciplina militar, escreveu:

Uma verdade, senhores, de que não pode duvidar, é que da exacta observância da disciplina militar tira todo o corpo de tropas a sua principal energia: mas a disciplina perde-se inteiramente, e a força Armada venha a ser o flagelo do povo, que a sustenta, quando aquelles, que devem vigiar escrupulosamente na conservação dela concorrem para seu quebrantamento189.

185 RODRIGUES, Jaime. Op. Cit, p.47. 186 Idem, p.47. 187 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Marinheiros em revolta: recrutamento e disciplina na Marinha de Guerra (1880-1910). Op. Cit, p.92. 188 Idem, p.114. 189 Relatório do ministro da Marinha Joaquim José Rodrigues Torres apresentado à Assembléia Legislativa em 1832. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1872.

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O ministro Rodrigues Torres, acrescenta que, o cerne de insubordinação, que assolava

a Marinha, estava ligado ao recrutamento forçado, assim descreve:

Parece-me que nada há mais defeituoso do que o méthodo, actualmente seguido em sua composição. Dois são os meios entre nós promiscuamente praticados, para havermos os marinheiros, que nos são precisos: o engajamento e o recrutamento; mas este só he permittido,quando o primeiro se torna inefficaz, como sempre acontece. Estes dous méthodos, de principio e índole inteiramente differentes, por não dizer opostos, hão de [...] lançar hum germem de desharmonia fatal para o serviço público.Considerando a sorte diversa dos indivíduos, que compõem as nossas equipagens, nota-se que huns,além de prêmio, que recebem,quando assentão praça, deixão o serviço,findado que seja num curto espaço de tempo; e que outros, trazidos, [...]para bordo não gozam da mesma vantagem. E como é de natureza do homem achar insuportável aquillo, à que,em idênticas circunstâncias; não vê expostos seus iguais, acontece que os marinheiros recrutados buscão por contínuas deserções subtrair-se ao que reputão huma iniqüidade,d'onde, não só resulta diminuição da força material da nossas embarcações, e a repugnância para o serviço da Marinha190.

Havia muitas diferenças no tratamento dispensado entre os recrutados e voluntários,

onde estes recebiam maiores soldos, ganhavam prêmios e prestavam serviço militar por curto

espaço de tempo. Isto gerava muitos conflitos dentro dos navios, levando às deserções e ao

repúdio do sistema militar. Em relação à indisciplina, deve-se considerar que, o recrutamento

forçado trazendo para as fileiras da Marinha indivíduos contrários às suas próprias vontades,

dificultou a garantia da disciplina, pois, submetidos a uma situação oposta às suas vontades

acabavam por construir mecanismos de resistência para burlar o serviço militar, através da

deserção, da negação ao trabalho, da embriaguez, dos jogos, entre outros. Segundo Jaime

Rodrigues, a insubordinação dos marinheiros estava ligada a dois confrontos da cultura

marítima: a luta contra a exploração pelos oficiais, alinhada ao confronto básico, que

envolvia o homem e a natureza191 . Viver embarcado implicava em travar uma luta diurna

contra a natureza. A cultura marítima tinha um cotidiano marcado pela necessidade de

sobrevivência, que exigia dos tripulantes uma ação coletiva, assim, ressalta Jaime Rodrigues:a

vida muitas vezes dependia do trabalho, da habilidade e do espírito comunitário da

tripulação192 .

190 Relatório do ministro Joaquim José Rodrigues Torres apresentado à Assembléia Legislativa em 1833. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1876. 191 RODRIGUES, Jaime. Op. Cit, p.27. 192 Idem, p.27.

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Vários relatórios dos ministros da Marinha revelam que o temor ao serviço militar

estava ligado ao regime de suplícios em que estavam submetidos marinheiros e soldados. No

relatório de 1836, o ministro da Marinha Salvador José Maciel, observou que, a rigorosa

disciplina era indispensável em todos os Corpos Militares, mas ela só se matéria se a lei, que

castiga, se combinar com a que premeia. A idéia do ministro era a de que: o pesado trabalho

de bordo; o longo tempo de serviço; a falta de alimentação, água e ensino adequados; a falta

de asilos aos marinheiros e soldados inválidos no serviço; a desigualdade na distribuição dos

prêmios; a ausência de proteção no trabalho- que assegurasse pensões vitalícias aos homens

que se dedicavam à vida do mar-; e, os castigos físicos, como: as chibatas, a golilha, os ferros

aos pés, as pranchadas de espadas, as doenças, etc. Eram elementos que deveriam ser levados

em consideração, tendo em vista que estes fatores além de distanciar o futuro marinheiro do

serviço na Marinha, provocava a insubordinação dentro dos navios e quartéis.

Em 1840, o ministro da Marinha, Jacinto Roque de Sena Pereira, reclama à

Assembléia Legislativa que: enquanto o homem do mar não tiver hum melhoramento de

sorte, enquanto ele tiver presente o terrível horizonte da miséria que o espera na sua velhice,

não pode de forma alguma abraçar com prazer huma vida que apresentado-lhe graves

perigos, não põe sua futura existência em segurança193 . O ministro aponta a falta de uma

estrutura de trabalho na Marinha que beneficiasse o marinheiro em sua velhice. Desta forma,

propõe à Assembléia a criação de asilos, tendo em vista que, depois de longos anos de penoso

trabalho, o marinheiro encontrava na sua velhice amargos dias de miséria, pois, seus membros

estropiados ou cansados por qualquer evento, impossibilitavam-o de trabalhar. O ministro

ainda ressaltou:

He por tanto indispensável, Senhores, melhorar a sorte de homens que tanto cooperão com seus serviços para a sustentação da ordem, e da honra Nacional. A criação pois de asilos próprios para os marinheiros da Armada que se tornarem inválidos, por lesões recebidas no serviço, mui principalmente defendendo a honra do Pavilhão Nacional e integridade do Império 194 .

Segundo Jaime Rodrigues, na segunda metade do século XVIII, a maior parte dos

mendigos brancos que vagavam pelas ruas de Salvador era de ex-marujos convalescentes que,

sem arrimo, acabavam tornando-se pedintes. Não era raro que eles morressem pelas tabernas, 193 Relatório do ministro Jacinto Roque de Sena Pereira apresentado à Assembléia Legislativa em 1840. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1840. 194 Idem, ano de 1840.

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vitimados pelo excesso de álcool. O horizonte desolador apresentado pelo serviço na Armada,

como: a falta de proteção na velhice, as doenças adquiridas no trabalho, o recrutamento

forçado, o isolamento com a cultura terrestre, a separação da família e da sua terra natal, não

despertavam nos homens nenhuma vontade de prestarem serviço militar. A falta de

expectativa de vida e de futuro - uma vez que o marinheiro encontrava na sua velhice o

terrível horizonte da miséria - contribuiu para que o serviço militar fosse olhado com repúdio

por toda a população e, por isso, o apelo ao recrutamento forçado, abarcando para as fileiras

do Exército e da Marinha os excluídos sociais.

No que tange ao tempo de serviço, em 1845,os marinheiros só poderiam dar baixa no

serviço após 9 anos para os que tivessem se apresentado como voluntários, 12 para aquele

recrutado à força e 15 para os provenientes da Escolas de Aprendizes Marinheiros 195. Os

voluntários eram vistos pelos militares e poderes Legislativo e Executivo como seres que não

representavam perigo à disciplina e tinham maiores chances de se dedicarem ao serviço, uma

vez que o ingresso ao serviço fora de livre espontânea vontade. Por isso, possuíam vantagens:

um tempo menor de serviço e direito a prêmios. Os recrutados a força eram obrigados a

servirem por 12 anos como se fosse uma punição pela falta de voluntarismo, e mesmo para

corrigir por mais tempo aqueles enviados pela polícia 196 . Os indivíduos provenientes das

escolas ficavam por mais tempo que os outros pelo fato de serem os mais bem preparados

para o serviço, tendo exigido investimentos em formação educacional e profissional deste a

mais tenra idade 197.

Segundo Nascimento, esse tempo de serviço não era definitivo. A trajetória de vida de

cada marinheiro é que determinava na sua permanência de mais ou menos tempo de serviço.

Se acaso o marinheiro fosse acusado de indisciplina o seu tempo de serviço poderia se

estender por mais anos que o mínimo exigido pela Marinha. Para a concessão de prêmios e

promoções o comandante analisava o livro de socorros, pois nele se registrava toda a vida do

marinheiro, desde o seu ingresso até o dia do pedido de baixa do serviço. Se o marinheiro

tivesse boa conduta poderia pleitear uma promoção, no entanto, em alguns casos, o

comandante poderia manipular as listas de promoções.

Em relação à vida de bordo, Arias Neto salientou:

195 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Do convés ao porto: A experiência dos marinheiros e a Revolta de 1910. Op. Cit, p.102. 196 Idem, p. 103. 197 Idem, p.103.

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Os navios passavam dias e dias navegando, especialmente os veleiros e os navios de sistema misto que, como os primeiros, não dependiam de abastecimento regular de combustível. Além da faina do trabalho diuturno para movimentar o navio e fazer os reparos necessários, o espaço deveria ser reservado para armamentos e munições No caso dos vapores mistos, [...], o espaço do navio foi reduzido para dar lugar às máquinas e à lenha ou ao carvão. Em suma: os alimentos e a água eram reduzidos e rapidamente se deterioravam, o alojamento era precário, a ventilação praticamente não existia. Em outras palavras, certos aspectos sanitários constituem elementos que permitem compreender a caracterização da vida no mar como áspera, como vida que ao cabo de alguns anos inutilizava os homens 198.

Esses dados da vida de bordo, apresentados por Arias Neto, demonstram algumas

razões do temor que tinha a população a respeito do serviço na Marinha. Confinados a um

espaço reduzido dentro dos navios, a péssima alimentação, a quase inexistência de ventilação,

favoreciam, também, o aparecimento de doenças. Arias Neto, analisando a entrada de

enfermos no Hospital da Marinha em 1854 e 1865, verificou que, as doenças respiratórias,

venérias, febres e reumatismos eram as mais comuns durante o período, como se vê a seguir:

Em 1853, foram tratados na Armada [...] quatro mil oitocentos e setenta e quatro doentes, dos quais oitocentos e setenta e nove com doenças pulmonares (bronquites, pneumonias e tuberculose);seiscentos e cinqüenta e seis com doenças sifilíticas, trezentos e setenta e cinco com febres ( amarela, tifóide e outras); trezentos e noventa e seis com afecções reumáticas e cento e trinta e três com sarna. [...] em 1864, foram tratados cinco mil oitocentos e noventa e quatro doentes, dos quais mil cento e quatro com doenças sifilítica, novecentos e setenta e um com doenças respiratórias, trezentos e sessenta e seis com febres, trezentos e sete com reumatismo e trezentos e vinte e dois com sarna 199 .

Arias Neto ressaltou que, se por um lado, tais doenças não estavam desvinculadas das

condições insalubres das cidades portuárias, de outro, a alimentação semanal destinado aos

marinheiros era bastante precária, incapaz de fornecer a quantidade de nutrientes necessários

para a saúde do indivíduo. Deve-se acrescentar, também, que a bordo do navio as péssimas

condições de trabalho também favoreciam o aparecimento de inúmeras doenças. Diante deste

quadro desolador apresentado pelo serviço na Armada, Arias Neto afirma: o serviço militar

representava em si a negação do direito mais elementar consagrado pelo, liberalismo

198 ARIAS NETO, José Miguel. “Violência sistêmica na organização militar do Império e as lutas dos imperiais marinheiros pela conquista de direitos”. In: Revista do Centro de Memória do Judiciário: Justiça & História. V. 1, n.1, Porto Alegre, 2001, p.17. 199 Idem, p.28.

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moderno: o direito à vida e, consequentemente à liberdade, condição fundamental da

cidadania 200 .

Nesses termos, compreendem-se as razões pelas quais o serviço militar era encarado

com temor pela maior parte da população. No próximo momento, analisaremos como os

possíveis recrutados construíram estratégias para escaparem do recrutamento forçado.

4.3- As resistências ao recrutamento

No século XIX, homens livres e pobres, denominados de desclassificados sociais

viviam improvisando e inventando arranjos para escaparem das contingências materiais do

recrutamento forçado. Veja o que a historiadora Denise Moura afirma:

Sujeitos a tais imprevistos, homens livres e pobres ao invés de apenas fugirem ou se isolarem nos matos, ardilosamente engenharam atitudes visando lidar com os incômodos e constrangimentos impostos pelo alistamento e ao mesmo tempo manter suas práticas de viabilização de vida.Os recrutamentos [...] funcionaram, assim, como campos de reelaboração de práticas provisórias fundamentais próprias às formas de trabalho, lazer e sociabilidade [...]. Se os desafios impostos diariamente pela conscrição não anunciada germinava tensões e resistências, também recriava fazeres cotidianos, a partir de arranjos que ludibriavam a atuação da milícia201.

A resistência exercida pelos indivíduos sujeitos ao recrutamento, era caracterizada

pelo seu grande potencial criativo de estar sempre improvisando estratégias visando driblar

as determinações normativas, das autoridades e ao mesmo tempo preservar as práticas de

viabilização da sobrevivência202. Segundo Denise Moura, no suceder dos dias, os homens

susceptíveis ao recrutamento, estiveram permanentemente envolvidos na tarefa de

improvisação que se fundiam em relações de trabalho não lineares e arredias à fixidez203.

Sem distanciar-se da vida econômica e social do período, o homem pobre e livre se inseriu

nas ocupações oferecidas em diferentes esferas da economia da província, acenando para um

viver engenhoso que soube sabiamente se apropriar das incertezas e a partir delas,

reelaborar práticas da sobrevivência 204.

200 ARIAS NETO, José Miguel. Op. Cit, p.17. 201 MOURA, Denise. “A farda do tendeiro: cotidiano e recrutamento no Império”. Op. Cit, p.43 202 Idem, p.47. 203 Idem, p.47. 204 Ibidem, p.49.

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Em relação às práticas de sobrevivência reelaboradas pelos possíveis recrutados, deve-

se compreender que, a noção de fuga, segundo Denise Moura, pode ser um equívoco do

discurso oficial, pois a forma de trabalho adotada por tais homens era marcada pelo

descontínuo dos ajustes de trabalho. Sendo assim, a provisoriedade dos ajustes, pontuando

um tempo do trabalho fluído e descontínuo terminou por traduzir-se na imagem de que estes

homens não trabalhavam ou se recusavam a trabalhar 205.

Os ajustes de trabalho marcado pela fluidez e pelo descontínuo permitiam aos homens

pobres e livres menos vulnerabilidade e o logro aos recrutadores. Denise Moura salientou que,

no caso do paulista, a resistência ao recrutamento se efetivou pela sua costumeira capacidade

de mobilidade. Desde tempos coloniais, o andeja paulista foi empurrado pelas circunstâncias

econômicas, políticas e sociais, para avançar as fronteiras do seu território, na tentativa de

buscar em outro espaço aquilo que o seu não lhe proporcionava. Assim, a historiadora

ressalta:

A existência andeja do paulista, herdada dos bugres e aprimorada nos tempos da pobreza colonial incrustou na sua cultura fortes elementos de mobilidade que permearam o conteúdo das práticas ligadas aos enfrentamentos cotidianos. Mudar para outra região, fugir para os matos e grotas e vincular-se descontinuamente ao trabalho nas propriedades, estradas e na cidade, evitando a vulnerabilidade da fixidez e do contínuo, foram condutas ligadas às formas de resistência e acomodação em relação aos recrutamentos 206 .

Fugir para os matos e grotas, mudar-se para outra região, abandonar a terra natal, além

de representar a mobilidade de homens livres e pobres dentro do território, fazem parte das

inúmeras formas de resistência encontrada por eles para tentarem ludibriar as determinações

normativas. Vale lembrar que, muitos problemas, como a falta de gêneros básicos de consumo

eram provocados na época em que baixavam as ordens para o recrutamento, pois este

interrompia as tarefas ligadas à sobrevivência cotidiana. A lavoura de subsistência, praticada

pelos pequenos agricultores de parcos cabedais, era desarticulada, impedindo assim, o

abastecimento de mantimentos da cidade. Deve-se acrescentar que, a pequena lavoura sendo

guiada pelo calendário agrícola onde as fases da lua e dias santos eram avessos à linearidade,

também prejudicou, ainda mais, a produção de alimentos. Denise Moura salientou:

205 MOURA, Denise.Op. Cit, p. 47. 206 Idem, p.44.

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Ser recrutado sob a lua ou mês de plantio ou colheita, prenunciava dias de penúria, pois desobedecer este calendário mágico- agrícola implicava rigorosa punição. Amalgamadas a inúmeras práticas mágicas, sucediam-se as recomendações da lua e dos meses para cada cultivo, as quais [...] aqueles responsáveis pelo recrutamento permaneciam surdos, ignorando a coerência de um tempo alicerçado ao cíclico das pautas e retomadas 207.

Prado Júnior observou que, ao menor sinal de recrutamento a população desertava dos

lugares habitados indo refugiarem-se nos matos. Na Bahia, logo que começavam a fazer

recrutas, era infalível a carestia dos gêneros de primeira necessidade, porque os lavradores

abandonavam as roças208. Vilas e cidades eram abandonadas, os moços fugiam e a agricultura

e a indústria eram prejudicadas. Faria Mendes, caracterizou o recrutamento como um jogo de

gato-e- rato, onde,

Os recrutadores usam de todos os expedientes e ardis para completar suas cotas, e os recrutáveis potenciais, de sua parte, realizam esforços desesperados de evasão ou adequação às circunstâncias de isenção. Fuga, automutilação, resistência armada, falsificação de documentos, casamentos de última hora, tudo servirá na profusão de estratégias de evasão dos recrutáveis 209.

Na rede de relações patrono-cliente se constrói um imenso leque de isenções. Como as

instruções de 1822 possuíam critérios vagos e manipuláveis, a resistência ao recrutamento se

faz sentir pela proteção do senhor aos seus criados e dependentes, através da manipulação dos

critérios de isenção. As justificativas dos recrutáveis eram variadas e inventivas. Segundo

Faria Mendes, estas declarações alegavam idade insuficiente, doenças incuráveis, atividade

profissional isenta, arrimo de família. Como último recurso, alguns desesperados recorriam

à automutilação 210.

Poucos patronos aceitavam que seus clientes fossem recrutados, porque ser recrutado

um dos seus poderia significar a diminuição de prestígio diante de seus dependentes e

notáveis locais. Assim, Denise Moura observou que, o recrutamento de um camarada não

207 MOURA, Denise. Op. Cit, p.42. 208 PRADO JÚNIOR, Caio. A formação do Brasil contemporâneo: colônia. Op. Cit, p.318-319. 209 MENDES, Fábio Faria. “Encargos, privilégios e direitos: O recrutamento no Brasil nos séculos XVIII e XIX”.Op. Cit, p. 127. 210 Idem, p.127.

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implicava apenas no prestígio material da interrupção do serviço, mas em afetações ligadas

aos brios 211.

A resistência ao recrutamento não se expressava apenas no ambiente terrestre, mas

também, no ambiente marítimo. Nascimento afirmou que, um dos maiores problemas

enfrentados pela pasta da Marinha era a deserção de marinheiros.

De 1836 a 1884, foram detectados 6568 crimes de deserção no Corpo de Imperiais Marinheiros. Desse total, 3039 apresentaram-se ou foram capturados pela Marinha e força policial, sendo julgados pelos Conselhos de Guerra. Os outros 3529 continuaram desertores, sendo que boa parte, nestes 48 anos, nunca mais deva ter retornado para a Marinha de Guerra 212.

O historiador naval Brian Vale observou que, após o término das lutas pela

independência na Bahia, os marinheiros desertavam aos montes e que, pelo menos, cem deles

eram dados como desaparecidos. Para muitos estudiosos, estas deserções estavam ligadas a

uma deteriorização do moral na esquadra, como resultado das hostilidades abertas que já

tinham começado entre Cochrane e as autoridades brasileiras sobre o pagamento e prêmios

por presas de combate213 .

Na coleção das decisões do governo do Império, de 5 de março de 1823, o Imperador

mandou dar publicidade ao alvará de 6 de setembro de 1765, que estabelecia as penas, com

que se deviam ser punidos os desertores, e os que lhes derem asilo. Também mandou

conceder a todo aquele que entregasse preso um desertor a qualquer autoridade constituída

militar ou civil, um prêmio na quantia de oito mil réis. No decreto de 15 de junho de 1824, o

Imperador concedeu perdão a todos os desertores, que se achavam cumprindo sentenças,

qualquer que fosse o número, qualidade e circunstâncias das deserções, a fim de que

entrassem novamente no serviço da Pátria e pudessem reparar os erros que cometeram.

Em decreto de 30 de janeiro de 1826, o governo imperial concede perdão aos

desertores das tropas da guarnição da província da Bahia. Dando o prazo de quatro meses, a

partir daquela data, para que os residentes na província da Bahia se apresentassem aos seus

referidos Corpos; o prazo de seis meses aos que estivessem no Império; e o de oito meses aos

que estivessem fora dele. Parece que, os decretos de 15/06/1824 e o de 30/01/1826, em que o

211 MOURA, Denise. Op. Cit, p.46. 212 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Do convés ao porto: A experiência dos marinheiros e a Revolta de 1910. Op. Cit, p.62. 213 VALE, Brian. “ Marinheiros ingleses na Marinha do Brasil (1822-1850)”. In: Revista Marítima brasileira. V.119, n.4/6. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação geral da Marinha, 1999, p.114.

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governo concede perdão ao crime de deserção estavam ligados à demanda da Guerra da

Independência na qual requeria uma quantidade maior de marinheiros e soldados tanto para o

Exército como para a Marinha.

A historiadora Shirley Maria Silva Nogueira, analisando sobre os desertores no Grão-

Pará setecentista, considerou que as deserções estavam relacionadas ao recrutamento forçado,

uma vez que soldados e marinheiros ingressavam nas fileiras do Exército e da Marinha sem

vontade própria. Segundo Nogueira, a razão mais comum para a fuga de soldados parece ter

sido o desejo de retornarem a seus afazeres regulares e ao convívio com seus familiares214.

Os baixos soldos impulsionavam os soldados a pedirem baixa ou licença para manterem

economicamente seus familiares. Mas como muitos soldados não recebiam baixa, desertavam

com o objetivo de dar continuidade aos afazeres cotidianos que lhes possibilitavam seu

sustento e de seus familiares215.

Os desertores que consideravam perigosos a sua volta para casa, passavam a viver em

quilombos, juntamente com índios, negros e outros fugitivos coloniais. Nogueira ressaltou

sobre a existência de uma identidade comum entre esses indivíduos, que fôra criada por meio

de suas experiências históricas adquiridas pela situação de fugitivos na ordem colonial

escravista216. Os quilombos eram mais uma estratégia para aqueles que queriam escapar do

recrutamento, neles a comunidade de homens fugitivos tentavam controlar o curso de suas

vidas, aparentemente interrompido pelas autoridades metropolitanas217.

Segundo Nogueira, nos quilombos os desertores viviam por suas próprias leis. Neles,

os desertores podiam plantar, caçar, viver com seus familiares e cometer roubos para

complementar a produção de suas roças. Alguns donos de terras também davam proteção aos

desertores, escondendo-os em seus sítios, aqui, executavam seus antigos trabalhos e

sustentavam a si e a seus familiares, mesmo aqueles que não estavam perto deles. Assim,

Nogueira observa: desta forma, os desertores criaram uma vida autônoma dentro da ordem

estabelecida218.

Outra forma de resistência foi o suborno, onde os possíveis recrutados pagavam a seus

recrutadores para escaparem do recrutamento. Juvenal Greenhalgh escreveu que, em 21 de

outubro de 1825, o inspetor do Arsenal, Francisco Antônio da Silva Pacheco, informou ao

ministro da Marinha, Visconde de Paranaguá, sobre o suborno ocorrido a bordo da Galera 214 NOGUEIRA, Shirley Maria Silva. Esses miseráveis delinqüentes: desertores do Grão-Pará setecentista. In: Nova história militar brasileira. CASTRO, Celso (org.). Rio de Janeiro: FGV, 2004, p.89. 215 NOGUEIRA, Shirley Maria Silva. Op. Cit, p.98. 216 Idem, p.104. 217 Idem, p.106. 218 Ibidem, p.107.

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Nacional, Dom Domingos, onde um marinheiro pagou a quantia de 3 mil e 400 réis ao

sargento Feliciano José da Costa para não ser recrutado. O documento a seguir revela esta

situação:

Ill.mo e Ex.mo S.or Constando nesta inspeção ter havido vício no recrutamento de marinhagem feito segundo as ordens a bordo da Galera Nacional “Dom Domingos”, quando ultimamente estava neste Porto, por isso que o sargento mandado a esta diligência, Feliciano José da Costa, acompanhado de dois soldados, trocou no ato daquele recrutamento, honra e brio, por 3400r. com que o sobornou hum dos marinheiros para deixar de o recrutar [...]219.

Para escapar do recrutamento, os marinheiros das embarcações mercantes fugiam,

desembarcando fora da barra para não serem pegos nas levas. Para conter estas fugas, o aviso

de 24 de janeiro de 1826 estabeleceu que, o intendente geral da polícia devia tomar as

providências para que aqueles indivíduos fossem apreendidos e remetidos ao Arsenal da

Marinha220. Os fugitivos dos navios mercantes eram vistos como desertores aos olhos das

autoridades navais, e identificados pelo nome do navio de que eram tripulantes e pela sua

naturalidade, idade, estatura, rosto e soldo que recebiam.

Muitos marinheiros brasileiros se refugiavam nos navios mercantes portugueses. Esta

questão é vista em 1838, quando o inspetor Antônio Joaquim do Couto pede autorização ao

ministro da Marinha Rodrigues Torres para visitar os navios portugueses e recrutar os

marinheiros brasileiros que se escondiam nestes navios. Segundo o inspetor, os navios

cobertos pela bandeira portuguesa estavam a ocultar marinheiros brasileiros. Do lado

português, o Consulado reclamou ao governo brasileiro, em 1839, sobre a persistência em

recrutar marinheiros portugueses. Do lado do Brasil, o inspetor alegou que sempre que houver

recrutamento, absolutamente impossível será evitar-se a prisão de portugueses, visto terem

eles a mesma fisionomia, e falarem a mesma língua, que os nacionais 221.

Observou-se, no item anterior que, a população possuía grande receio em prestar

serviço militar na Marinha, em decorrência do distanciamento familiar, dos baixos soldos, do

trabalho penoso e repleto de perigos em alto mar, do medo de sofrer violência sexual, entre

outros. Assim, para ficar longe deste espaço ameaçador, apresentado pela Marinha, os

homens pobres e livres acabavam construindo inúmeras estratégias de resistência para

sobreviverem à constante ameaça do recrutamento forçado. Mas, aqueles que não conseguiam

219 APUD- GREENHALGH, Juvenal. Op. Cit, p.188. 220 GREENHALGH, Juvenal. Op. Cit, p.136. 221 APUD- GREENHALGH, Juvenal. Idem, p.191.

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ludibriar as determinações formais e, acabavam caindo nas garras dos agentes recrutadores,

tinham que reelaborar novas formas de sobrevivência dentro dos navios: construindo laços de

solidariedade entre a intensa e fervilhante diversidade humana reunida nos postos mais

baixos da hierarquia militar, reconhecendo os costumes e valores aceitos e vigentes entre os

homens, e descobrindo as brechas e formas de se proteger dos perigos e adversidades

impostas pelo quotidiano das embarcações e quartéis. Nascimento acrescenta: As únicas

saídas eram conviver no serviço tentando tirar algum proveito dele- ascendendo na carreira,

conhecendo outros lugares- ou desertar quando não mais suportasse aquela rotina- sabendo

que isto era um crime punido com prisão por um ano.

Dentro dos navios, pode-se supor que, a alta incidência de atos de indisciplina,

deserções, alcoolismo, jogos, entre outros, foram formas de resistência praticada por

marinheiros e soldados para demonstrarem suas insatisfações diante de uma estrutura militar

que postulava as desigualdades sociais e raciais, a exclusão, as arbitrariedades oriundas do

recrutamento forçado e a aplicação de códigos disciplinares fundados nos castigos físicos.

Para finalizar recorrer-se-á à memória oral. No Nordeste, várias canções, denominadas

cocos de jangadeiros ou emboladas, tem como tema o recrutamento forçado. Essas canções

expressam visões e narram histórias e circunstâncias ligadas àquela prática levada

sistematicamente a efeito contra marinheiros e pescadores pela Marinha de Guerra222. A

tradição oral mantém viva na memória acontecimentos ligados à vida do mar, envolvendo

canoeiros, marinheiros e jangadeiros do litoral nordestino. Agora, enfim, é hora de encerrar.

Para fazer o desfecho deste trabalho utilizou-se uma destas canções populares da Paraíba,

chamada Canoeiro, recolhida durante a década de 1920, por Mário de Andrade, assim são os

versos:

Olêlê, caro cumpad' Durante nossa viagem Nóis sintimo até friage Pru dentro do curação, Ai olêlê, puis nós viemo, Oh, meu Deus, que sorte ingrata, Jugado feito batata No fundo dum batelão

Olêlê, sargento Idalio, Para seu divertimento, Arranjo desligamento Pra mantêga deserta

222 SILVA, Luiz Geraldo. Op. Cit, p.225.

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Olêlê, por isso mesmo O povo cunstrangido No dumingo o pão cumido Tem que sêco mastiga Olêlê, pur te arranjado Esse ta desligamento Sem te o cunsentimento Do seu tenente Nué, Ai olêlê, foi que o Açúca Certamente indignado Deserto desbandêrado Lá do rancho do café”223.

223 APUD- SILVA, Luiz Geraldo. Idem, p.225.

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Considerações finais

O recrutamento entre dois mundos

No primeiro capítulo, notou-se alguns problemas inerentes à produção historiográfica

naval e os poucos trabalhos de historiadores acadêmicos sobre história militar. A pouca

produção acadêmica acabou por deixar nas mãos de historiadores navais a tarefa de escrever

sobre o passado da Marinha. Esta narrativa militar é carregada de problemas, uma vez que a

abordagem apóia-se numa valorização excessiva da instituição naval. Outro elemento

apontado por Fonseca e Castro diz respeito à ênfase dada pela produção historiográfica naval

a alguns personagens militares, como: Osório, Caxias e Cochrane. Desta forma, a ênfase em

torno de alguns “ícones militares” acabaram por deixar no esquecimento outros personagens,

como marinheiros, grumetes e soldados que também participaram do passado da instituição,

mas, que em decorrência de um tipo de abordagem saudosista e patriótica acabaram sendo

esquecidos pela memória histórica militar.

Observou-se ao longo do trabalho que, as particularidades do processo histórico de

formação do Estado Imperial e das Forças Armadas no Brasil, (aqui, tentou-se estudar

especialmente a Marinha de Guerra), moldaram um tipo de recrutamento, onde fundiram-se

elementos da antiga estrutura colonial com elementos que representavam as novas

expectativas em torno do Estado centralizado.

Do mundo colonial, herdamos a cultura, a política, os laços de sociabilidade da grande

família patriarcal. É a partir dela que se orientará as relações políticas, econômicas e sociais

do Estado Imperial que, fundadas em laços afetivos, acabam por criar um tipo de organização

política avessa aos ideais do Estado burocratizado.

No Brasil, o quadro familiar patriarcal se estenderá mesmo fora do recinto doméstico.

Os homens que tem por função gerenciar os negócios públicos os gerenciam como se fossem

negócios privados. Neste ambiente, onde o interesse privado se sobrepõe ao interesse público,

a figura paternalista dos notáveis locais é fundamental para a proteção de seus criados e

dependentes, pois, é a partir desta relação de patronato que se organizará o funcionamento do

corpo político. Deste mundo, herdamos um tipo de recrutamento baseado nas relações

patrono-cliente, onde prevaleciam a economia das regras não escritas.

Em paralelo ao mundo das regras não escritas, herdadas da sociedade colonial, havia o

mundo das ordens institucionais, oriundas do advento do Estado Imperial. No que tange ao

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recrutamento forçado, a ordem institucional - expressa pelas instruções de 1822 e pela

constituição de 1824 - nem sempre conseguia obter resultados satisfatórios, aliás, do

amálgama desses dois mundos, o que se observou, na documentação e historiografia

analisada, é que havia uma preeminência das ordens não escritas sobre as determinações

legais. Estas se esbarravam nas formas indiretas de governo que impediam a realização de um

recrutamento eficiente do ponto de vista do Estado.

Como escreveu Caio Prado Júnior, naturalmente o que antes de mais nada, e acima de

tudo, caracteriza a sociedade brasileira de princípios do século XIX, é a escravidão224. A

sociedade escravista permeou a realização do recrutamento, dando-lhe impulsos e limites,

impôs resistência à extensão dos poderes do Estado e à formação das Forças Armadas

Nacionais. Segundo Wilma Peres Costa, a escravidão deu impulsos centrípetos e centrífugos

ao processo de monopolização da violência legítima pelo Estado.

Os senhores de terras e escravos, ao mesmo tempo em que, apoiaram a formação do

Estado no intuito de que este preservasse a antiga estrutura social e econômica, trataram de se

aliar às oligarquias regionais em uma resistência aos impulsos extrativos do Estado. A ordem

escravista não só estreitou a base de recrutamento, dado que o escravo, não é recrutável, mas

também, exigiu para seu funcionamento a manutenção de pequenos exércitos privados, sendo

controlados diretamente pelos senhores. Isto significa que, a ordem escravista drenou para o

serviço privado da manutenção da ordem interna das fazendas boa parte da população

trabalhadora livre que poderia ser recrutada.

Observou-se também que, enquanto a Constituição de 1824 e as instruções de 1822

não mencionavam o braço escravo para o serviço militar - uma vez que ele pertencia à

camada de homens que estavam empregados nas atividades economicamente produtivas da

sociedade e, também pertenciam à proprietários que não queriam se dispor do direito de

propriedade- notou-se que, embora constituísse uma exceção, havia escravos que se alistavam

na Marinha escondidos de seus senhores, a fim de que com a prestação de serviço militar

alcançassem a liberdade. A idéia de liberdade desses escravos, segundo Sabina Ribeiro,

poderia estar vinculada à idéia de pertencimento à nação, pois, viam na independência política

uma possibilidade de participação no novo Estado que se construía. Foi observado que a

Marinha recebeu três tipos de escravos: os em correção, os fugitivos e os da nação. Assim, foi

possível compreender que as determinações legais e os acontecimentos na ordem da prática

224 PRADO JÚNIOR, Caio. A formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. Op. Cit, p.277.

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cotidiana, impuseram certas atitudes que se moldaram melhor às relações entre Estado,

proprietários de terras e escravos, e homens pobres livres.

A formação da Marinha de Guerra seguiu os propósitos da elite Imperial de preservar

a unidade nacional e integridade territorial. A disposição topográfica do país, e a difícil

comunicação pelas linhas terrestres, foram algumas, das justificativas para a formação da

Marinha, que tinha a função, dentre outras, de proteger o comércio e zelar pela ordem,

abafando as revoltas internas e repelindo os ataques externos. Através dos relatórios dos

ministros da Marinha foi possível observar o quão diminuta era a nossa Marinha na época da

independência: estaleiros em ruínas, corte inadequado das árvores, navios deteriorizados,

pagamento atrasado dos soldos, as embarcações desarmadas não eram cobertas de madeira e

se deterioravam com o clima, etc. Herdamos da Marinha portuguesa sua estrutura

administrativa e sua ordenação disciplinar (o Regimento Provisional e os Artigos de Guerra).

Como Prado Maia notou, as repartições da Marinha brasileira constituíam verdadeiro

desdobramento das já existentes em Portugal.

Do ponto de vista da sociedade Imperial, o serviço militar na Marinha era um castigo,

pois, para lá eram enviados vadios, criminosos, ladrões, enfim, os desclassificados sociais.

Tais indivíduos, que viviam à margem da sociedade escravista, sem nenhuma ocupação fixa,

eram aproveitados pelo Estado, servindo como uma espécie de reserva de mão-de-obra

escrava. Nesse sentido, a Marinha foi caracterizada como um lugar de exercício correcional

contra a vadiagem e o crime. Pois, os homens considerados vadios, servindo de mão-de-obra

por um custo baixo ao Estado, transformavam-se em utilidade. Desta forma, o recrutamento

forçado recaindo sobre os excluídos sociais, consolidou a idéia de que o serviço militar na

Marinha era uma punição aos vagabundos, sendo assim, não era um lugar de pessoas

honradas, cidadãs, proprietárias e trabalhadoras.

A Marinha de Guerra, fundada no recrutamento forçado, nos castigos físicos, na

exclusão e distinção social, não trazia nenhuma expectativa de futuro para o recrutado. O

trabalho pesado de bordo, o isolamento em relação ao ambiente terrestre, o afastamento

familiar, a inexistência de asilos para socorrer o marinheiro em sua velhice, a péssima

alimentação, as doenças, entre outros, foram elementos que favoreceram o repúdio da

população ao serviço militar.

Dentro dos navios haviam homens vindos dos quatro cantos do país, de todas as cores,

de valores e costumes dos mais variados. Nascimento observou a presença, nestes espaços, de

uma diversidade humana tal que poderia gerar laços de solidariedade, indiferença e

rivalidade. O universo marítimo impunha aos indivíduos embarcados um confronto diário

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contra a exploração dos oficiais, que fundados na lógica do tribunal do convés, fugiam das

prescrições legais, ficando a seu livre arbítrio a quantidade de castigos a ser aplicada ao

infrator; geralmente o que prevalecia era a constituição física e a resistência do faltoso.

Neste ambiente, marcado por todos esses sofrimentos, restava ao marinheiro aceitar

estas condições - servindo por anos a fio a carreira militar - ou desertar. A deserção, segundo

Nascimento, foi um dos maiores problemas enfrentados pelo Estado Imperial para a

organização das Forças Armadas. O governo Imperial através de avisos, decretos e portarias

estabeleceu, em alguns momentos, punições e, em outros, perdões aos desertores. Parece que

as punições eram estabelecidas em momentos de baixa demanda por praças pelo serviço

militar, enquanto que, o perdão ao crime de deserção era concedido em momentos que o

Estado Imperial enfrentava conflitos internos e externos, resultando numa maior demanda por

homens pelas forças armadas.

Para o desertor cabia reconstruir uma nova vida, reelaborando formas de sobrevivência

dentro da ordem estabelecida, buscando proteção dos moradores locais e dos fazendeiros, e

fazendo roubos para completar a produção de suas roças. Vivendo em quilombos ou

mocambos, junto com outros excluídos sociais- como: os índios e os escravos fugidos-

acabavam construindo uma identidade comum entre eles, oriunda das suas experiências

históricas adquiridas pela situação de fugitivos na ordem colonial escravista. Do ponto de

vista da historiadora Laura de Mello e Souza, havia uma camada social de indivíduos que

conviviam estreitamente na sociedade mineira do século XVIII, composta por homens livres

pobres, escravos, artesões modestos, roceiros pobres e mineradores miseráveis. Tais

indivíduos possuíam muitas características comuns entre eles como:

a cor da pele- negra, parda, vermelha, acobreada; branca as vezes- , o nascimento bastardo, a insegurança do quotidiano, o pânico permanente ante a justiça atente e rígida , a itinerancia, os concubinatos, as infrações que cometiam e acabavam por igualá-los e colocá-los como opositores do Poder e da Ordem Constituída225.

No entanto, tais características comuns entre eles, criavam solidariedades temporárias,

mas, muitos fatores agiam em sentido contrário, desmantelando as solidariedades e

dissolvendo a consciência de grupo226 . Tais como: o desclassificado social partia no encalço

de outro desclassificado, o vadio recrutado a força delatava os homens que estavam

225 SOUZA, Laura de Mello e. Op. Cit, p.212. 226 Idem, p.212.

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refugiados nos quilombolas, o homem pobre denunciava o seu igual à polícia local, tudo isso

demonstrava a fluidez desta camada social e impossibilitava uma tomada de consciência por

parte desta camada social.

Para escapar aos imprevistos do recrutamento forçado, o homem pobre livre- que não

conseguia proteção de um notável local, através da inserção nas relações patrono-cliente –

teve que aprender a viver em mobilidade dentro do território, ajustando-se a um tempo de

trabalho fluído e descontínuo que lhe rendeu a imagem de que não trabalhava ou se recusava a

trabalhar. Pode-se imaginar o quanto era difícil para esses homens viverem improvisando e

inventando arranjos para a viabilização da vida. Mas também, o quanto era difícil para seus

familiares verem seus entes queridos submetidos a esta situação, pois um recrutado era

considerado um ente morto para a sua família, dada as circunstâncias perigosas do serviço na

Marrinha de Guerra e em decorrência disso, as poucas chances de voltar para casa.

Em relação às permanências e mudanças em torno do recrutamento, observou-se que,

durante o século XIX muitos projetos entraram em discussão na Assembléia Legislativa, mas

nenhum capaz de abolir o recrutamento. Em 1874, estabelece a lei do sorteio militar que,

segundo José Murilo de Carvalho, redundou num completo fracasso, pois, o recrutamento

ainda continuou recaindo sobre homens pobres livres que não se inseriam na rede de patrono-

cliente. Talvez, a Revolta de 1910 tenha sido um momento importante no processo histórico

de mudanças em torno do recrutamento forçado e do sistema militar baseado num regime de

suplícios. Nesse momento, Arias Neto ressaltou que, a atmosfera de direitos, difundida pela

República, atingiu os marinheiros que começaram a ter consciência de seus direitos;

reivindicando-se sujeitos de direitos, pediram melhores condições de trabalho e maior

participação na Armada.

Em suma: tentou-se apontar, neste estudo, a existência de dois mundos no qual regiam

o recrutamento forçado. Em algumas vezes, talvez na maioria, o mundo das regras não

escritas se sobrepunha ao mundo das determinações legais, no entanto, o mundo das normas

legais era enfatizado em momentos em que proprietários de terras e escravos sentiam

ameaçado o direito de propriedade, postulado pelo liberalismo moderno e garantido pela

Constituição de 1824. Nesses momentos, tais proprietários se apoiavam nas normas legais,

alegando que o recrutamento forçado deveria ser realizado sem atingir as atividades

produtivas da sociedade. Observou-se então que, estes dois mundos, de índole completamente

opostas, podendo até ser caracterizados como dois extremos, coexistiam sem embaraços na

sociedade imperial do início do século XIX, tendo em vista que, aplicava-se aos homens

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pobres e livres, essencialmente, a lei; aos proprietários, seus escravos e clientes as normas não

escritas.

No Império, a camada social sujeita à violência do recrutamento forçado se

constituíam de homens brancos, pretos, pobres e livres. Para encerrar esta pesquisa, buscou-se

nos versos do cantor baiano, Caetano Veloso, alguns elementos da contemporaneidade que se

assemelham a algumas práticas da sociedade imperial. Tais costumes se baseiam no emprego

da violência em homens pretos e brancos pobres. Os versos do cantor expressam atos de

extrema violência do Estado Republicano contra homens pretos e brancos pobres que o faz

associar a realidade do Brasil ao Haiti. Assim são os versos:

Quando você for convidado pra subir no adro Da fundação casa de Jorge Amado Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos De ladrões mulatos e outros quase brancos Tratados como pretos Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos Como é que pretos, pobres e mulatos E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados [...]

Pense no Haiti, reze pelo Haiti O Haiti é aqui O Haiti não é aqui [...]

E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo Diante da chacina 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos [...]

Pense no Haiti, reze pelo Haiti O Haiti é aqui O Haiti não é aqui227.

Estes versos nos remetem ao pensamento de Marc Bloch que aponta ao historiador a

importância de não separar o estudo do passado com o presente, uma vez que estas duas

categorias de tempo devem estar em constante vaivém no trabalho historiográfico. Pois,

segundo Marc Bloch, o historiador deve compreender o passado a partir do presente e

compreender o presente à luz do passado. Nesse sentido, os versos de Caetano Veloso 227 Composição de GIL, Gilberto e VELOSO, Caetano. Música: Haiti.

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mostram alguns aspectos do presente que nos remetem ao passado imperial, apontando para

permanências no processo histórico.

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FONTES a) Relatórios dos Ministros da Marinha

b) Coleção das leis do Império do Brasil (1822-1840)

c) Atas do Conselho de Estado (1834-1840)

d) Microfilmes do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro acerca da Marinha

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