CESAR, America - Autoria Entre Os Pataxo

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AMRICA LCIA SILVA CESAR

LIES DE ABRIL:CONSTRUO DE AUTORIA ENTRE OS PATAX DE COROA VERMELHA.

CAMPINAS2002

AMRICA LCIA SILVA CESAR

LIES DE ABRIL:CONSTRUO DE AUTORIA ENTRE OS PATAX DE COROA VERMELHA.

Tese apresentada ao Departamento de Ps-Graduao em Lingstica Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, como requisito parcial para a obteno do ttulo de doutor em Lingstica Aplicada, na rea de Educao Bilinge.

Orientadora: Prof. Dra. Marilda do Couto Cavalcanti Co-orientadora: Prof Dr Stella Maris Bortoni-Ricardo

CAMPINAS 2002

Ficha catalogrfica

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BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________________________ Profa. Dra. Marilda do Couto Cavalcanti Universidade Estadual de Campinas (Orientadora) ________________________________________________________________________ Profa. Dra. Stella Maris Bortoni de Figueiredo Ricardo Universidade de Braslia (Co-Orientadora) ________________________________________________________________________ Profa Dra. Angela Del Carmen Bustos Romero de Kleiman Universidade Estadual de Campinas ________________________________________________________________________ Prof. Dr. Lynn Mario Trindade Menezes de Souza Universidade Estadual de So Paulo ________________________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Rosrio Gonalves de Carvalho Universidade Federal da Bahia ________________________________________________________________________ Profa. Dra. Terezinha de Jesus Machado Maher Pontifcia Universidade Catlica de Campinas/ Universidade Estadual de Campinas

Campinas, 22 de maio de 2002

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A Amaranta, Tiago e Gabriel, Pela compreenso e incentivo sempre. minha me, pelo amor incondicional, em memria.

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AGRADECIMENTOS

So muitos os que contriburam para a realizao deste trabalho. Certamente ser difcil listar todos numa s folha de agradecimentos. Mesmo correndo o risco de esquecer alguns nomes certamente estaro no fundo do corao- gostaria de agradecer em especial: Aos Patax de Coroa Vermelha que me acolheram, na pessoa de D. Isabel (Zabel), D. Mirinha e D. Nega; s amigas e amigos da Escola Indgena Patax de Coroa Vermelha e da Reserva da Jaqueira: Aderno Patax, Alzira Ferreira, Aru Patax, Ademrio Ferreira, Cristina Ferreira, Cleivane, Diana Ferreira, Edenildo Ferreira, Jandaya Patax, Kapimbar Patax, Leidvaldo Patax, Seo Liberato, Marilene Ferreira, Matalaw Patax, Maria dos Reis, Nayara Patax, Neia, Neuza Patax, Nitinaw Patax, Raimunda de Jesus, Raimunda Patax-H-H-He, Rose Fulni-, Tapera Patax. s crianas Patax, especialmente Carol, Careca, Ednaldo, Janile, Franois, Ludmila, Jocimar, Juari, Samara, Taiane. Aos professores e professoras Kiriri, Patax, Patax H-H-He, Kaimb, Kantarur, Xucuru Kariri, Pankarar, Pankaru, Tupinamb e Tux e aos colegas do Curso de Formao de Professores Indgenas, pelo prazer de trabalharmos juntos e pela amizade. A Marilda Cavalcanti, pela orientao segura e paciente que permitiu os meus vos. A Stella Maris Bortoni-Ricardo, pela ateno e estmulo j antigos. A Maria Rosrio de Carvalho, pelos ensinamentos generosos na Antropologia. A Jos Augusto Sampaio, quem me orientou pelas terras indgenas de Coroa Vermelha, com informaes e conselhos preciosos. A Angela Kleiman, Lynn Mrio Souza e Terezinha Maher, pelas contribuies decisivas para os rumos do trabalho nos exames de qualificao. Aos professores Denise Bertolli, Ins Signorini, Jos Carlos Almeida, Raquel Fiad e aos funcionrios do Instituto de Estudos da Linguagem, especialmente Belkis Donato Carlos Bastos, Elizabeth Cardoso, Haroldo Batista, Leandra Barbosa, Marluce Correia, Rogrio Cerqueira, Rosemeire Marcelino e Sebastiana Barbosa.. A Rosa Virgnia e Pedro Agostinho, pelo incentivo primeiro. A me Beb, Valdina Pinto e Ana Lcia Menezes, pelos caminhos de So Bartolomeu . E aos colegas, amigos e amigas, antigos e novos, de muitos lugares, que contribuiriam cada um de uma forma: Andria Mendes, Cllia Crtes, Clia Teles, Dbora Freitas, Daniela Silva, Edson Cunha, Eduardo Almeida, Eneida Cunha, Florentina Souza, Gia e Theo, Ian Freire, Ir e Slvio Oliveira, Iracema Souza, Iva e Cosme Batista, Jackeline Mendes, Januria Oliveira, Jacira Cedraz, Jacira Motta, Jesiel Filho, Jean Franois e Milene, Jnatas Conceio, Letcia Martins, Luiz Zelada, Masa Souza, Malu, Manuela Freire, Maria Clia Brasil, Maralice Neves, Maria Ceres, Maria do Socorro Seplveda, Mrcia Nascimento, Nazar Lima, Rosa Costa, Sheila Brasileiro, Silvana Ribeiro, Snia Borba, Suzana Cardoso, Therezinha Barreto. A Moema Franca, pela reviso cuidadosa e diagramao da tese A Amaranta Cesar e Renata David, pelas fotografias. queles, de casa, que deram o apoio necessrio para essa aventura, especialmente a querida tia Nildinha, Lula, que cuidou dos nossos filhos, e meu querido irmo. ANAI, Capes, UFBA e Unicamp, pelo apoio institucional. v

Alguns meses depois, j possvel sair um pouco da perplexidade em que me encontrava. Perplexidade que se traduz em silncio. E esse silncio, suspeito, tem vrios significados. Entre eles, o no poder dizer. Ou talvez, ter que decidir... O que dizer... Tudo bem. No estive em campo toa digo para me convencer - e, justia seja feita, fui to sria e rigorosa quanto pude. Tinha um compromisso: escrever/descrever/registrar. E ciosos orientadores, de vez em quando no meu p, para me fazer no esquecer do compromisso. Ento, no encalo dessa histria, com o indefectvel caderno de notas, gravador e fitas, a cada dia, por segurana, tentava sempre atender clssica pergunta: o que est acontecendo aqui? No raras vezes, no curso dessa perplexidade renitente, que interferia at na escrita diria, uma outra pergunta transcendia: o que estou fazendo aqui? Eu s precisava da primeira pergunta para dar conta da tarefa de fazer uma etnografia, segundo recomenda Erikcson. Mas, no decorrer do tempo, que algumas vezes parecia longo demais e outras rpido como um redemoinho, fui descobrindo os dilemas de estar no meio dos acontecimentos e "registrar", trazendo o caderno cintura enquanto o olho caminhava em mais de uma direo, ao contrrio da mo. Ainda hoje, com os cadernos e os olhos repousados, me dou conta da dificuldade de realizar esta tarefa. Mais perguntas: para que(m) escrevo? O que significa uma etnografia, se o que eu conto vai sempre contaminado pelo meu olhar, que torna visvel o que quero dizvel? Ou mesmo, tico entrar numa comunidade, partilhar da sua intimidade, conviver com as pessoas nos momentos mais dramticos, ouvir os seus desabafos e, ainda mais nesse caso, compartilhar os impactos violentos que essas pessoas sofreram e sair por a tornando-as objetos da minha fala, quando elas mesmas nem querem falar disso? Se o que disser, rebate, torna-se acontecimento, interfere? Como ter certeza de que estou dizendo o que "deve" ser dito? "Deve", para quem? Por outro lado, fico pensando se o que move o silncio tambm no um outro vis desse meu desejo, como seu avesso: botar a boca no mundo, dando uma importncia desmedida ao meu texto, pelo menos para "reparar" algumas falas, "reescrever" as cenas que me chocaram tanto... Ento, retorno ao fio da minha trajetria. Procuro no que foi possvel descrever do vivido, do compartilhado, as pistas, os pontos mais visveis para mim, que sero sempre o meu recorte pessoal, a partir da minha inteno, e principalmente daquela limitao inaugural, enquanto linguagem. Como o pseudo detetive Quinn, personagem de Paul Auster em Cidade de Vidro, vou tentar denominar esses pontos a partir das referncias de que disponho e, entre eles, traar linhas no papel para ver se, talvez, com a ligao dos pontos, surjam desenhos e seja possvel reconhecer nos seus traados algumas letras. Com essas letras, tentar formar (outras) palavras e encontrar sentidos: as histrias contidas na histria contada... Talvez seja isso que Geertz chama antropologia interpretativa, ou que em Paul Auster seja fico. Enfim, apreender as palavras, amarrar as diversas pontas numa trama, torn-las apenas mais um texto... Sei que no to simples assim: todo mais um , antes de tudo, um. E todo um corre o risco da reificao. Mas, vamos l... (Primeiras elaboraes das notas de campo / setembro de 2000). vi

SUMRIO LISTA DE SIGLAS ..... vi RESUMO .... vii ABSTRACT ... viii INTRODUO 1 1 BREVE PANORAMA / ABRIL 2000: A GUERRA DOS 500 ANOS ........ 8 1. 1 Brasil: uma curiosa e indita experincia de civilizao tropical 8 1. 1. 1 O Projeto Governamental para as Comemoraes: a Comisso, o Made e seus desdobramentos .. 10 1. 1. 2 O Movimento Brasil: 500 anos de Resistncia Indgena, Negra e Popular... 14 1. 2 Os Patax, Quem So? ... 17 1. 2. 1 Um pouco de Histria Patax ... 18 1. 3 Os 500 Anos e a Luta dos Povos Indgenas pelo Direito Terra .. 22 1. 3. 1 A luta pela terra ..... 22 1. 3. 2 A luta pela Terra Indgena de Coroa Vermelha 25 1. 4 Vrias Coroas Vermelhas .. 27 1. 4. 1 Coroa Vermelha: Primeiras aproximaes ... 28 1. 4. 2 Outra Coroa Vermelha .. 39 1. 4. 3 As primeiras reunies ... 40 1. 5 Breve Cronologia dos Acontecimentos de Abril ..... 46 2 AUTORIA E AUTONOMIA: DISCUSSO DOS CONCEITOS .... 54 2. 1 Primeiras Aproximaes 54 2. 2 Revendo as Concepes de Autor(ia) .... 59 2. 3 Redefinindo a Autoria 61 2. 3. 1 Autoria: autonomia e prxis . 65 2. 3. 2 Autoria e Autonomia 71 3 LIES DE ABRIL / PRIMEIRA PARTE 73 3. 1 Lio 1 - A Duplicidade da Cruz: Autoria e Tempo ... 74 3. 2 Lio 2 - O Monumento Indgena: Aquele que a comunidade decidiu ser criado e foi decidido pela polcia .. 89 3. 3 Lio 3 - Entre o Crach e o Walkie- Talkie: Autoria e Invisibilidade 100 4 LIES DE ABRIL / SEGUNDA PARTE......................................................... 115 4. 1 Lio 4 - A Resistncia das Mulheres Patax de Coroa Vermelha . .. 115 4. 2 Lio 5 A Reserva da Jaqueira: uma outra escola ............ 122 4. 3 Lio 6 - A Missa dos 500 Anos: autoria e escrita . 128 5 LIES DE ABRIL TERCEIRA PARTE 135 5. 1 Educao Escolar Indgena e a Formao de Professores ... 135 5. 1. 1 Um breve histrico do movimento pela educao escolar indgena no Brasil .. 136 5. 2 Escola Indgena Patax de Coroa Vermelha . 139 5. 2. 1 A retomada do territrio escolar 139 5. 2. 2 Breve descrio da escola indgena 141 5. 3 A Escola e os seus Significados 146 5. 4 A Pesquisadora e a Escola 156 vii

5. 5 O Professor, o Pesquisador, os Acontecimentos .... 159 6 LIES DE ABRIL QUARTA PARTE: ALGUMAS QUESTES DE METODOLOGIA E TICA ........................................................................... 167 6. 1 O que estou fazendo aqui? ............... 167 6. 2 A Lingstica Aplicada e a Educao Pluricultural e Bilinge ..... ... ..170 6. 3 A (meta)lngua que me enreda .. 174 6. 4 O Movimento Indgena e a Construo da Autoria/Autonomia .. 176 6. 5 O que eu fao com isso? ... 177 7 CONSIDERAES FINAIS .. 181 REFERNCIAS ........................................................................................................................ 188

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LISTA DE ILUSTRAES

MAPA 1 MAPA 2 MAPA 3 MAPA 4 MAPA 5 FOTO 1 FOTO 2 FOTO 3 FOTOS 4/ 5 FOTOS 6 / 7 MAPA 6 FOTO 8 FOTO 9 MAPA 7 FOTO 10 FOTOS 11 / 12 FOTO 14 FOTO 13 FOTO 16 MAPA 8 MAPA 9 MAPA 10 FOTO 17

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- ESCOLA NOVA EM DIA DE AULA. ACERVO PESSOAL................

TERRAS INDGENAS PATAX MERIDIONAIS..................................... PLANTA BAIXA DE COROA VERMELHA/PROJETO MADE.............. MAPA MENTAL AUTOR ARIANE PATAX........................................... MAPA MENTAL AUTOR JULIETE PATAX......................................... MAPA MENTAL AUTOR CLCIO PATAX........................................... ESCOLA PATAX DE COROA VERMELHA ANTIGA. ACERVO PESSOAL..................................................................................... OBRAS NA ALDEIA DE COROA VERMELHA- ACERVO PESSOAL. ......................................................................ACERVO PRPRIO........ POLICIAIS E NDIOS NA ENTRADA DA TERRA INDGENA DE COROA VERMELHA- AMARANTA CESAR........................................... MARCHA INDGENA - 22 DE ABRIL DE 2000.. AMARANTACESAR. MAPA PRODUZIDO EM ATIVIDADE DE LINGUAGEM AUTOR ANTNIA BRAZ.......................................................................................... A CRUZ ANTIGA EM PROCESSO DE DEMOLIO ACERVO PESSOAL....................................................................................................... A RETOMADA DA CRUZ DE MADEIRA - JORNAL A TARDE, ANTNIO ALBERGHINI............................................................................ PLANTA BAIXA DE COROA VERMELHA/PROJETO MADE............... ZABEL PATAX, MISSA DOS 500 ANOS DE EVANGELIZAO DO BRASIL. RENATA DAVID................................................................... RESERVA DA JAQUEIRA (ENTRADA) E CRIANAS PATAX BRINCANDO NA JAQUEIRA- ACERVO PESSOAL................................ KIJEME NA JAQUEIRA.............................................................................. ALTAR DA MISSA DOS 500 ANOS E NDIOS PATAX- RENATA DAVID........................................................................................................... MATALAW PATAX, DEPOIS DO DISCURSO NO ALTAR DA MISSA DOS 500 ANOS RENATA DAVID................................................. ESCOLA PELAS CRIANAS...................................................................... ESCOLA PELAS CRIANAS......................................................................

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LISTA DE SIGLAS

AcipaCover ANAI APOINME CAPOIB Cimi CNBB COIAB Conder EIARima Funai FOIRN Ibama IBDF Made MEC MinC MNU MST OIT Prodetur RNCEI Sebrae SPI TAC UNI

_ Associao Comunitria Indgena Patax de Coroa Vermelha _ Associao Nacional de Ao Indigenista Associao dos Povos e Organizaes Indgenas do Nordeste Minas Gerais e Esprito Santo Conselho de Articulao dos Povos e Organizaes Indgenas do Brasil Conselho Indigenista Missionrio Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia Estudo de Impacto Ambiental / Relatrio de Impacto Ambiental Fundao Nacional do ndio Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis _ Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal Museu Aberto do Descobrimento Ministrio de Educao e Cultura Ministrio da Cultura Movimento Negro Unificado Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra _ Organizao Internacional do Trabalho (Programa de Desenvolvimento Turstico da Bahia) Referencial Nacional Curricular para a Escola Indgena. Servio Brasileiro de Apoio s Micros e Pequenas Empresas Servio de Proteo ao ndio Termo de Ajustamento de Conduta Unio das Naes Indgenas

CONVENES PARA A TRANSCRIO Transcrio ortogrfica, observando as seguintes convenes: Pausa marcada por vrgula [,], substituda por [...] Letras em caixa alta no interior da palavra para destacar a entonao. Recortes no trecho transcrito (...) x

RESUMO

Esta tese, fruto de pesquisa de cunho etnogrfico e colaborativo, na rea da Lingstica Aplicada, em sua interface com a Antropologia, focaliza as construes de autoria entre os Patax de Coroa Vermelha, no perodo recoberto pelas comemoraes dos 500 anos do Brasil. Compreende-se por construes de autoria prticas sociais realizadas por sujeitos individuais ou coletivos no sentido de deslocar posies de subalternidade. Ao deslocar a autoria das concepes tradicionais, ressalta-se o seu carter poltico, identificando-se categorias como o tempo, o silncio, o enfrentamento explcito e o acatamento negociado, teis para a compreenso das questes colocadas nesse contexto. A anlise, intitulada Lies de Abril, est dividida em quatro partes. Nas primeira e segunda partes, destacam-se seis pontos que abordam as relaes entre indgenas e no-indgenas no processo de implantao do projeto governamental no perodo das comemoraes. Na terceira parte, encontram-se a descrio da escola indgena e a anlise de atividade de letramento em que o professor indgena reflete sobre os acontecimentos de abril. Por fim, descreve-se a trajetria do pesquisador no sentido de definir o seu objeto de estudo e campo terico. PALAVRAS-CHAVE: autoria, autonomia, educao indgena, Brasil 500 anos, formao de professores indgenas, Patax.

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ABSTRACT

Being the result of a collaboratively and ethnographically based research project in the area of Applied Linguistics, in its interface with Anthropology, this thesis focus on authorship constructions among the Patax People from Coroa Vermelha, within the period of time (April, 2000) officially devoted to Brazils 500 Years Celebration activities. Authorship constructions is here to be taken as individual or collective social practices carried out to dislocate submissive positions. Traditional conceptions of authorship were disregarded in this work in order to emphasize the political aspect of the term. Thus, categories such as time, silence, explicit confrontation, and negotiated acceptance were included, since they have shown to be useful for the understanding of the issues that had to be faced in this context. Data analysis is divided into four parts. In the first parts, six different ways to approach the nature of the relationship between indigenous and non-indigenous people during the establishment of the governmental celebration project for such historical period are highlighted. A description of a Patax school and an analysis of a literacy event in which its teacher reflects upon the events of April can be found in the third part of this work. Finally, efforts to describe the path taken by the researcher in order to define the object of her

investigation, as well as its theoretical foundations, are made to conclude data analysis.

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INTRODUO

Os Patax, que me acolheram nas suas terras e permitiram este estudo, vem-se cada vez mais envolvidos em fluxos culturais e polticos (HANNERZ, 1997), que tm testado a sua tradicional criatividade e resistncia histrica. Nesse sentido, os acontecimentos de abril1 se tornaram um momento exemplar, quando, sob fogo cruzado, os Patax de Coroa Vermelha enfrentaram desafios diversos. O processo de preparao e realizao das oficialmente chamadas Comemoraes do V Centenrio do Descobrimento do Brasil, as aes organizadas pelas sociedades indgenas, pelas entidades dos movimentos negro e popular, e principalmente a atuao dos Patax, que inclui a retomada do Monte Pascoal (captulo 1), podem ser exemplos emblemticos, que permitem pensar como se do as complexas relaes intertnicas nesse momento da nossa histria e como responderam a esses desafios as sociedades historicamente relegadas excluso.

Neste trabalho, fruto de pesquisa de cunho etnogrfico (ERICKSON, 1984, 1987, 1989) e colaborativo (CAMERON et al., 1992) na rea da Lingstica Aplicada, em sua interface com a Antropologia, tento retomar minha experincia de campo entre os Patax de Coroa Vermelha durante o ano de 2000. Na anlise etnogrfica, pretendo focalizar algumas prticas discursivas no sentido de compreender o que estou chamando de movimento de autoria, no processo de afirmao poltica e cultural dessa sociedade indgena. Para isso, tomarei no s a escola Patax de Coroa Vermelha, principalmente no que diz respeito luta para sua implantao e gesto autnoma pela comunidade indgena, como tambm para o contexto mais amplo em que se inscreve a minha observao, no pedao de tempo em que acontecimentos significativos marcaram a Histria Patax. Por autoria entendo as prticas discursivas realizadas por representantes dessa comunidade indgena, individual ou coletivamente, no sentido de deslocar determinadas posies subalternas, historicamente estabelecidas. Retomando as prticas discursivas como percursos prprios, na1

Estou denominando acontecimentos de abril as aes governamentais para as chamadas Comemoraes do V Centenrio do Descobrimento do Brasil, e os atos do Movimento Brasil - Outros 500, da Marcha e Conferncia Indgenas e da Marcha do MST, que culminam com os acontecimentos em 22 de abril de 2000, tendo como foco os 500 anos do Brasil.

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maioria das vezes invisibilizados, com que esses sujeitos enfrentam a ordem dominante, pretendo discutir essa construo de autoria (captulo 2), no sentido de prxis fazer refletido (CASTORIADIS, 2000) , ou de apropriao, no sentido de tornar prprio (DE CERTEAU, 1985), quando o sujeito do discurso, no processo de interlocuo, marca a sua diferena (BAKHTIN, 1997).

Entendendo autoria enquanto prxis, privilegia-se o seu aspecto scio-histrico e no-reitervel enquanto acontecimento, na medida em que cada enunciado um acontecimento discursivo nico, um todo acabado, que se constri socialmente, mas, como tal, faz parte de uma cadeia scio-discursiva em que todo e qualquer dizer se insere (BAKHTIN, 1997). Destaco, no que estou chamando construo de autoria, a possibilidade de deslocamentos produzidos por atores sociais nas suas prticas discursivas. Para enfatizar o carter scio-histrico da autoria, estarei associando esse conceito tal como formulado aqui ao de autonomia (CASTORIADIS, 2000).

Nesse sentido, os discursos produzidos durante o perodo estudado so bastante reveladores de como os Patax de Coroa Vermelha, diretamente envolvidos no processo de preparao e realizao do projeto governamental para as comemoraes e no conjunto de aes preparadas pelos movimentos sociais em contrapartida aos atos comemorativos oficiais, foram construindo respostas que traziam a marca da sua autoria e autonomia (captulos 3 e 4).

A tarefa que me impus, de observar a escola Patax Coroa Vermelha, no sentido de investigar mais de perto a prtica pedaggica dos professores em questo, como docente do curso de formao de professores indgenas na Bahia (captulo 5), rea de trabalho, naquela poca, relativamente nova para mim2, fez com que eu passasse a morar em Coroa Vermelha, no perodo de maro a dezembro de 2000, e tivesse oportunidade de participar desses acontecimentos de abril, na condio de pesquisadora (captulo 6). Na verdade, a escolha pelos Patax de Coroa Vermelha define-se no processo de aproximao com os professores indgenas no curso de formao e nas conversas com os antroplogos com quem dialogava nessa poca. Destaco, entre as possveis razes, o fato de Coroa Vermelha ser a maior das aldeias Patax, em nmero de habitantes, de ser um ponto de intercmbio, de troca de informaes entre os Patax, alm de

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configurar um panorama intertnico bastante diversificado, inclusive pelo fato de estar submetida s circunstncias da implementao do projeto governamental para as comemoraes dos 500 anos. preciso, contudo, dizer que as manifestaes afetivas como os bilhetinhos que algumas professoras e professores Patax de Coroa Vermelha me endereavam ao final de cada etapa do curso somaram -se s razes de ordem acadmica e acabaram pesando na deciso.

Nesse perodo em que convivi com diversos membros da comunidade Patax de Coroa Vermelha, com o objetivo precpuo de observar a escola indgena, cheguei concluso de que, para compreender a escola e seus professores, precisaria compreender as complexas relaes e acontecimentos que constituam essa parte de sua histria. A dramaticidade das intervenes do projeto governamental para as comemoraes oficiais em Coroa Vermelha, alterando violentamente o tecido de relaes entre as pessoas e o lugar (captulos 1 e 3), destruindo laos diversos, culminou com a represso aos movimentos sociais organizados que tentaram colocar suas vozes naquele cenrio, acirrando o sentimento de espoliao que se abateu sobre representantes indgenas que participaram das manifestaes (captulos 3 e 4). Assim, a experincia de campo entre os Patax durante esses acontecimentos me levou a redimensionar os meus objetivos de pesquisa, que inicialmente focalizavam a construo da autoria no curso de formao e na escola indgena, passando a descrever e analisar as prticas discursivas de autoria num contexto mais amplo.

Portanto, se, de um lado, tornou-se uma tarefa difcil desviar o foco de observao da escola indgena para dar maior espao aos acontecimentos de abril, por outro se revelou tarefa prioritria, especialmente diante da cobertura feita pela grande imprensa farta, mas fragmentada e parcial - a respeito da atuao dos Pataxs de Coroa Vermelha nesses episdios3. Tais circunstncias me impeliram a reagir com uma outra voz, tambm fragmentada e parcial, mas de quem tinha olhado, ainda que estrangeiramente e por um breve perodo de tempo, alguns movimentos internos daquela comunidade.

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Os meus primeiros contatos com os Patax aconteceram durante a Etapa I do Curso de Formao de Professores Indgenas da Bahia, em dezembro de 1997, na Aldeia de Barra Velha. 3 Pelas prprias circunstncias da atividade jornalstica, a cobertura realizada refletiu na maioria das vezes a abordagem e interesses de atores sociais externos comunidade indgena de Coroa Vermelha.

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No obstante, o texto em epgrafe, escrito nas primeiras tentativas de elaborao das notas de campo, reflete minha resistncia a falar ou escrever sobre o acontecido, que foi visvel tambm entre os Patax: ainda hoje se evitam comentrios, tenta-se esquecer. Lembro que logo em seguida ao desfecho da Marcha e Conferncia Indgenas (item 1. 5), as atividades de linguagem no curso de formao de professores e na escola indgena, que propunham a discusso dos recentes acontecimentos, foram realizadas sob certa resistncia, tanto de alunos da escola indgena, quanto dos professores no curso de formao (captulo 5). Acredito que a reflexo sobre os acontecimentos em variadas ticas, inclusive e principalmente sob a tica dos que sofreram e ainda sofrem os seus efeitos na pele, vai se fazendo primeiro nesse silncio e, aos poucos, em diversos fruns dos quais representantes Patax participam; vai se fazendo, gradativamente, nas conversas e nos escritos de alguns dos seus representantes, e est sendo tentada na escola indgena, com a perspectiva de produo de material didtico, mais de um ano depois 4. Tambm da minha parte, na observao participante, as elaboraes tericas que j vinha realizando em torno das questes da autoria (captulo 2) funcionaram como linha de fora para costurar muitos dos acontecimentos que, isoladamente, para mim, fariam pouco sentido. Contudo, essa costura no aconteceu de uma forma racional, tranqila: foi resultado da perplexidade inercial, que me acompanhou durante a permanncia em campo e anlise dos fatos. O investimento paulatino na manipulao do material da pesquisa e oportunidades de produzir discursos a partir da experincia conversas com as orientadoras e outros interlocutores, comunicaes em congressos, seminrios, aulas, exame de qualificao foram criando condio para o deslocamento do pesquisador da perplexidade do observador participante para um lugar de escuta/escrita em que se foram tambm transformando percepes e sentimentos iniciais, proporcionando maior segurana no manuseio do acervo de mais de cem fitas gravadas em udio, dirios de campo, notcias de jornais e revistas de grande circulao, alm de certa iniciativa para promover os recortes que precisavam ser feitos nesse material.

Uma etnografia das diversas possibilidades de interpretao dos acontecimentos pode ser um exerccio de reflexo que leve ao mapeamento, no plano interno da comunidade, dos impactos sofridos. H atualmente a presena de um antroplogo na rea, com a tarefa de fazer um relatrio para processo judicial, no sentido de avaliar danos sofridos pela comunidade e as responsabilidades das autoridades governamentais de ento.

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De todo modo, sem perder de vista a insero dos Patax no movimento dos povos indgenas no Brasil e os seus projetos de afirmao tnica e autonomia poltica, tenho ainda por horizonte da pesquisa a pergunta: como se constri a autoria na formao do professor indgena? Na medida em que, gradativamente, foi ficando cada vez mais claro que a escola indgena e a prtica pedaggica no funcionam descoladas dos projetos polticos e da dinmica cultural da sua comunidade, creio que a pergunta continua pertinente. Na esteira dessa discusso, muitas outras questes podem ser tambm abordadas, como algumas arroladas no projeto de pesquisa inicial: que elementos so relevantes nesse processo de construo de autoria? Como se constituem as prticas discursivas dos diversos atores? A reflexo sobre a experincia de campo, portanto, traz muitos dados e questes que poderiam ser considerados. Vou procurar, contudo, abordar a autoria nos chamados acontecimentos de abril, focalizando apenas alguns pontos. No primeiro captulo, tento, inicialmente, uma descrio dos acontecimentos, apenas para compor um panorama das aes e tenses que foram num crescendo at explodir no dia 22 de abril, tendo como eplogo a resposta dos Patax na Missa dos 500 anos, quatro dias depois. Retomo, tambm panoramicamente, a Histria dos Patax e uma descrio da Aldeia de Coroa Vermelha a partir das falas dos seus moradores, de estudos etnogrficos e da minha viso como pesquisadora. A descrio mida da minha aproximao como pesquisadora uma tentativa de depreender o processo de transformao que pude observar e, de certa forma, engessar alguma coisa no lugar, mesmo fragmentariamente, no texto escrito, diante do sentimento de perplexidade e indignao que o ritmo das obras e o processo de implantao do projeto governamental geravam.

Discuto, no captulo 2, os conceitos principais que fundamentam a anlise: autoria e autonomia. O corpo propriamente dito da anlise est dividido em quatro partes, reunidas sob o ttulo comum de Lies de Abril. Nas Lies de Abril - Parte I, a anlise do captulo 3 aborda: (a) o episdio da implantao da cruz e a sua repercusso no interior da comunidade Patax de Coroa Vermelha, com seus desdobramentos um ano depois; (b) a construo e destruio do monumento indgena pela ao da Polcia Militar do Estado da Bahia, que se seguiu implantao da cruz de Mrio Cravo; (c) a Conferncia e Marcha Indgenas, analisadas sob o ngulo da dissenso na organizao indgena o chamado racha de Coroa Vermelha; nas

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Lies de Abril Parte II, o captulo 4, discute (d) a resistncia das mulheres Patax; (e) o trabalho de etnoturismo e educao ambiental desenvolvido pela Associao Patax de Ecoturismo e, por fim, (f) a resposta dos Patax na missa dos 500 anos.

Os seis pontos abordados nos captulos 3 e 4 esto relacionados diretamente com fatos que foram veiculados na mdia, ou tiveram algum grau de exposio fora da comunidade indgena. Os dados analisados no captulo 5, nas Lies de Abril - Parte III, esto de algum modo vinculados aos acontecimentos de abril, mas incluem dados da observao de campo no curso de formao de professores indgenas na Bahia realizado no Centro Cultural Patax de Coroa Vermelha durante o ano de 2000. No captulo 5, apresentarei brevemente o Curso de Formao de Professores Indgenas na Bahia e a Escola Indgena Patax de Coroa Vermelha, para situar o cenrio em que se realizou o evento de letramento analisado: a fala/escrita dos professores em uma aula no decorrer da IV Etapa do Curso de Formao, em Coroa Vermelha, no incio de maio de 2000.

A prpria implantao da escola indgena parte dessa luta por afirmao tnica e autonomia poltica dos Patax. Como conseqncia, espera-se que a reflexo sobre o fazer poltico que envolveu uma comunidade mais ampla, na qual se situaram os professores indgenas em formao e alunos da escola indgena, tenha implicaes na construo do currculo escolar e na formao dos professores, a serem retomadas no ltimo captulo. Finalmente, nas Lies de Abril - Parte IV, no captulo 6, retomo o meu percurso como pesquisadora, discutindo os dilemas do lugar terico onde a pesquisa se inscreve e os percalos da experincia de campo do ponto de vista terico-metodolgico. Digo dilema porque, nesse caso, inscrio significa um trnsito constante entre diversas reas, principalmente as da Antropologia, Sociolingstica Interacional e Educao. De todo modo, a Lingstica Aplicada representou esse lugar prprio, j que se constitui contemporaneamente como um campo transdisciplinar, em que se fez possvel trazer para a anlise contribuies tericas diversas, principalmente de Bakhtin (1988,1997), De Certeau (1985, 1995), Castoriadis (2000), Freire (1974, 1981, 1982, 1997), Geertz (1989, 2001), Clifford (1998), entre outros.

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No entanto, nesse meio de campo, faltam ainda instrumentos tericos para compreender o tecido de uma comunidade que passa a falar ao invs de ser falada. So muitos problemas ticos, polticos e terico-metodolgicos que me fazem refletir sobre o papel do intelectual em contato com as minorias (captulo 6). Por que precisamos estud-los, sem que eles possam fazer o mesmo conosco? Por que no esto tambm eles, como desejam, fazendo pesquisas, inclusive nas Academias?

Mesmo no esquecendo que j se inicia um debate sobre essas relaes de poder entre pesquisadores e pesquisados, em alguns estudos e iniciativas de grupos de pesquisa na Lingustica Aplicada e outras disciplinas das Cincias Sociais, de um modo geral, ainda h uma lacuna quando se trata de implementar programas direcionados para a insero dos representantes das sociedades minoritrias no interior das Universidades pblicas, em programas de formao universitria, do mesmo modo que so ainda insatisfatrias as polticas pblicas no sentido de garantir educao especfica e de qualidade para povos herdeiros de culturas tradicionais.

Ento, na medida em que reflito sobre o movimento de autoria/autonomia que desenvolvem hoje alguns sujeitos que se autodenominam Patax, estarei, na verdade, tentando construir e compreender os impasses e contradies no meu prprio movimento de autoria. Compreender esses movimentos tentar entender como se do complexas relaes intertnicas entre atores/autores dessa histria; tentar entender como se constitui a complexidade da organizao poltica dessa sociedade indgena, do prprio movimento indgena (e indigenista) e da construo de uma nacionalidade brasileira no singular, que recusa a participao e nega a soberania das diversas sociedades minoritrias que convivem no territrio brasileiro. Na verdade, um conflito e um desencontro que se atualiza quando o assessor, pesquisador, professor/formador nondio, marcado pela posio que ocupa, submetido s presses instituicionais marcadamente etnocntricas, defronta-se com o outro, em relaes desiguais de poder, inclusive no prprio texto acadmico.

De todo modo, os sujeitos pesquisados esto nos dizendo que no mais possvel fazer do mesmo jeito que sempre foi feito. Eles esto querendo fazer, esto fazendo e sinalizando tambm como fazer pesquisas com eles, no s para eles ou por eles. Reafirmando a certeza de que,

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embora tenha os meus colaboradores da pesquisa como referncia subjacente para minha escrita, os interlocutores que tenho em mira neste texto no so eles, deixo, por fim, uma dvida: ser que, com nossa lngua e teoria, nesta fala isolada, consegui ouvi-los e entend-los?

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1 BREVE PANORAMA / ABRIL 2000: A GUERRA DOS 500 ANOS

1. 1 Brasil: uma curiosa e indita experincia de civilizao tropical1

Se as comemoraes dos 500 anos do Brasil foram, do ponto de vista oficial, um motivo para rememorar e fortalecer o imaginrio de uma nao que se quer nascida sob o signo da cruz europia, pretendendo-se projet-la no mar bravio do mundo globalizado, o que terminou por atravessar, de volta, os oceanos, foram notcias do naufrgio da nau capitnea2 e a imagem do ndio Gilson Terena ajoelhado perante coturnos, escudos e fuzis de policiais militares3. O Ministro da Justia, Jos Gregori, retoricamente, teria afirmado: Afinal, no houve mortos, nem feridos!4 Contabilizadas por alto, no entanto, ficaram visveis, a olho nu, as fraturas provocadas na imagem de nao pretendida pelo governo, no prprio governo, no movimento indgena e indigenista, e, em especial, na organizao interna dos Patax, principalmente da comunidade de Coroa Vermelha, cujas terras indgenas serviram de palco para a saga comemorativa.

A reflexo sobre esses acontecimentos exige retomar as malhas do empreendimento colonizador, cujos mecanismos de implantao foram responsveis por um genocdio dos primeiros habitantes, certamente mais cruel do que o dos judeus durante o holocausto, se for considerado que existem, hoje, no Brasil, cerca de 350 mil representantes de mais de duzentas etnias, quando, por volta do incio do sculo XVI, estima-se entre 3 e 9 milhes o nmero de indivduos de mais de 900 povos nativos. A gesto colonial foi tambm responsvel por um etnocdio sem tamanho, quando, atravs da catequese ou de processos administrativos e ideolgicos diversos, tentou retirar dos grupos sociais indgenas o reconhecimento da sua indianidade e dos seus direitos mais

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In: CUNHA, 1999. Diretrizes e Regulamento da Comisso Nacional para as Comemoraes do V Centenrio do Descobrimento do Brasil. 2 Rplica da nau usada por Pedro lvares Cabral, construda especialmente para as comemoraes do V Centenrio do Brasil, que no conseguiu navegar at Porto Seguro ao sair do Porto de Salvador. 3 Ver item 1.5 neste texto , OLIVEIRA FILHO, 2000 e CUNHA, 2000, entre outros. 4 H estimativas entre 40 a 70 ndios e outros manifestantes atendidos no Posto Mdico de Coroa Vermelha e hospitais da regio, segundo rgos da imprensa local.

12 legtimos, demonstrando uma arraigada capacidade de reinventar a dominao, projetada no ideal de nao que se constitui a partir do incio do sculo XIX, com a Proclamao da Independncia5.

Contrariamente ao esforo genocida e etnocida da colonizao e do sistema escravista que, travestido de outras roupagens, ainda se tenta impor s populaes afrodescendentes e sociedades indgenas, sob o manto de um pretenso poder hegemnico com que se quer costurar uma nacionalidade no singular, genrica e harmnica, vislumbram-se, contudo, respostas e propostas das diversas nacionalidades6 minoritrias7 no complexo de relaes em que se constituem as suas identidades e prticas ao longo desses ltimos 500 anos.

E se o Brasil no teve vozes to vigorosas como a do espanhol Bartolom de Las Casas, que viveu em Santo Domingo e no Mxico, no sculo XVI, denunciando os horrores da colonizao; se, ao contrrio, consagramos um Rui Barbosa que mandou queimar os arquivos da escravizao dos africanos e seus descendentes; pelo menos, o chamado "descobrimento do Brasil", no seu anacronismo8, foi questionado em diversas vozes e espaos, na esteira dos contradiscursos que j se vinham fortalecendo no processo histrico de resistncia e organizao dos movimentos sociais, principalmente a partir das comemoraes dos 500 anos da conquista da Amrica.

Segundo CUNHA (1999, p. 175):

A partir do momento em que por circunstncias vrias, no s as atuais e comemorativas aqui no foco de observao as vozes internas que foram silenciadas alcanaram com maior freqncia os veculos de ampla ressonncia social, ou, dito de modo mais completo, os seus sujeitos conquistam o poder de contrapor, s representaes de si institudas pelas narrativas da "comunidade imaginada", as suas prprias produes de imagens identitrias e as suas demandas culturais e vivenciais, o resultado daquela primeira operao de homogeneizao e compartilhamento de um tempo nico e plano, o tempo da Nao, fica irremediavelmente fraturado.

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Ver entrevista do historiador Fernando Novais, autor do livro Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (177-1801), na Folha de So Paulo de 24/04/00. 6 Sobre a denominao de povos para os agrupamentos indgenas ver MARS, 1999. 7 Por minoritrios entendo grupos ou povos subjugados, que se encontram alijados das fontes do poder, embora em certos casos numericamente majoritrios em relao aos segmentos hegemnicos. 8 Ver OLIVEIRA FILHO (2000) e entrevista do historiador Fernando Novais, citada anteriormente.

13 Esse processo de enfrentamento crtico, embora com suas contradies e fragilidades, conforme veremos adiante, exps conflitos polticos e tenses intertnicas, colocou em evidncia os mecanismos de silenciamento a que esto submetidos os povos ditos minoritrios, ao tempo em que ps em xeque o discurso oficial com que mais uma vez se tentava decalcar a nacionalidade brasileira, conforme se apresenta nas Diretrizes da Comisso Nacional para as Comemoraes do V Centenrio do Descobrimento do Brasil (apud CUNHA, 1999, p. 178): Dever ser considerado que a cultura brasileira demonstra (...) essa pluralidade que se manifesta antes pela agregao que pela segregao e conflito. Como resultado desse caldeamento de etnias e culturas, o Brasil se apresenta hoje como uma indita experincia de civilizao tropical, com traos prprios e singulares.

1. 1. 1

O Projeto Governamental para as Comemoraes: a Comisso, o Made e seus desdobramentos

Para motivar a sociedade civil e o poder pblico para a importncia das comemoraes dos 500 anos, no sentido do discurso oficial, criou-se comisso interministerial, denominada Comisso Nacional para as Comemoraes do V Centenrio do Descobrimento do Brasil, em 1993. Significativamente, o Projeto das Comemoraes proposto pela Comisso Nacional, que prev uma srie de aes a serem desenvolvidas no extremo-sul da Bahia, adota o Projeto do Museu Aberto do Descobrimento (Made), da Fundao Quadriltero do Descobrimento9. O projeto, que foi implantado por decreto do Presidente da Repblica de 22 de abril de 1996, pregava a defesa do patrimnio cultural ambiental da regio e prometia beleza, ordem e informao. Concretamente, porm, propunha implantao de um Museu Aberto numa extenso de 1.200 quilmetros quadrados, definido como um retngulo entre Belmonte e a Costa do Cahy10, ou seja, a costa do descobrimento. O Made tinha um forte apelo direcionado para o turismo de alto poder aquisitivo, valorizando as terras dessa regio. Curiosamente, previa a construo de

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Criada por Roberto Pinho, ex-assessor poltico do governo municipal em Salvador, para propor o projeto do Made. Belmonte uma cidade do extremo-sul da Bahia, ao norte de Santa Cruz Cabrlia. O Cahy situa-se entre Corumbau e Cumuruxatiba, ao sul de Porto Seguro. Na Barra do Cahy, pelo relato dos primeiros navegantes portugueses, teria sido coletada gua potvel, at que a esquadra aportasse em Coroa Vermelha, em 1500.

14 monumentos alusivos chegada dos portugueses, mas menosprezava as populaes indgenas ao longo de todo esse trecho da Costa, vtimas de problemas sociais graves, entre eles a discriminao e negao das suas identidades tnicas.

Entre as obras previstas pelo Made encontrava-se o Mini-Parque da Coroa Vermelha, que, depois de sofrer diversas modificaes, seria chamado Memorial do Encontro, cujo projeto foi assinado pelo arquiteto Wilson dos Reis Neto. O projeto para Coroa Vermelha desenha, na sua concepo original, um conjunto de obras com quatro elementos. O terreiro da cruz seria nada menos do que uma plataforma no meio do mar, sobre a coroa e arrecifes de coral com um cruzeiro, iluminado noite artificialmente. Este patamar de concreto sobre o mar seria interligado Terra Indgena de Coroa Vermelha por uma passarela elevada de cimento e pedras. Alm disso, previa construo de uma taba semelhante s habitaes Kamayur do Xingu, composta de cinco ou seis ocas, que seria uma espcie de museu indgena, com um palco. A terceira unidade seria o Museu do Encontro, construo destinada a abrigar rplicas das caravelas e outras peas histricas, alm de salas de projeo e auditrios. Por fim, um "ptio jesutico", composto por um conjunto de lojas articulado a estacionamentos, equipamentos de apoio e de lazer, inclusive "quiosques padronizados" para bares e restaurantes, a ser implantado ao longo da praia; ou seja, um shopping comercial, que no comtemplava os comerciantes indgenas j existentes no local.

O projeto original do Made, que teve o aval de intelectuais e artistas como Antnio Risrio, Caetano Veloso e Gal Costa, sofreu duras crticas, articuladas por intelectuais e ambientalistas baianos, principalmente a antroploga Celene Fonseca, autora de um projeto para a organizao de um Memorial Tupinamb, a ser construdo de acordo com a tica dos ndios e negros. Este projeto circulou nos espaos acadmicos mas no obteve apoio oficial. A antroploga Celene Fonseca, numa anlise detalhada do livro Museu Aberto do Descobrimento O Brasil renasce onde ele nasce publicao patrocinada pela FIESP para lanar o Made- critica o esboo do projeto, que apresentado num dos captulos do livro referido. Na avaliao que faz, a antroploga Celene Fonseca chama a ateno para o problema conceitual da proposta, que se baseia numa viso equivocada sobre o Brasil e os brasileiros, como se a cultura brasileira fosse um prolongamento do mundo luso, organizado sob o signo do mito e da utopia. Esse embate,

15 veiculado na mdia local e nacional, lhe rendeu um processo judicial, que est em andamento at hoje.

Entre maro e agosto de 1996, a ANAI lanou duas notas: a primeira, escrita pelo antroplogo Jos Augusto Sampaio, cuja crtica incidia principalmente na perspectiva lusocntrica do Projeto Made; e a segunda, do antroplogo Edwin Reesik, discutindo longamente os sentidos polticos e econmicos na concepo do referido projeto. Em maro de 1998, a ANAI lanou outra nota reiterando as suas crticas iniciativa do Made, principalmente quanto forma autoritria com que estava sendo conduzida a sua implantao.

No Seminrio Museu Aberto do Descobrimento - Made: Impacto e Desenvolvimento Sustentvel na Regio, realizado em Porto Seguro-BA, entre 14 e 24 de setembro de 1998, o professor Pedro Agostinho da Silva, palestrante convidado pelos organizadores do evento, estranhou a falta de informaes pormenorizadas sobre o projeto Made e o seu subprojeto para Coroa Vermelha, principalmente no que dizia respeito aos Patax de todas as aldeias da regio, chamando a ateno para a necessidade de ouvir os representantes indgenas locais.

Durante a discusso e implantao do projeto governamental para as comemoraes, a partir de 1996, desenvolve-se, paralelamente, o processo de regulamentao das terras indgenas de Coroa Vermelha. Realiza-se tambm, no ano de 1999, o EIA- Rima (Estudo de Impacto AmbientalRelatrio de Impacto Ambiental) das obras do Made, resultado da campanha desenvolvida por grupos ambientalistas e indigenistas da Bahia. O EIA-Rima foi autorizado por representantes que se encontravam frente da Comisso Nacional, notadamente o Embaixador Wladimir Murtinho, representante do Ministrio da Cultura, e o General Gasto. Quando o EIA-Rima concludo e se percebe que ele no autoriza as obras, o governo abandona a linha poltica com que vinha conduzindo o processo, a coordenao da Comisso posta de lado e a ala pefelista do governo assume a implementao das obras, tendo frente o Ministrio do Turismo. Como assessores diretos, responsveis por acompanhar no local a implantao do projeto, nomeiam-se Ivo Mendes, pelo Ministrio do Turismo e alguns tcnicos do Conder, empresa vinculada ao Governo do Estado da Bahia. Na execuo das obras, os novos gestores do projeto no questionam o EIARima; simplesmente o ignoram.

16 Entre julho e novembro de 1999, eles dedicam todo esforo ao corpo-a-corpo com os Patax, no sentido de convenc-los a realizar o projeto de acordo com a perspectiva do governo, conseguindo retirar os no-ndios que ocupavam a rea e boa parte dos ndios do local, negociando individualmente. A Funai, na gesto do Presidente Mrcio Lacerda, cuja assessora especial junto ao projeto oficial era a antroploga Ana Costa, no questiona a poltica adotada pelos representantes do Ministrio do Turismo e do Conder. Quando Frederico Mars assume a presidncia da Funai, envia um assessor especial para a rea, o indigenista Eduardo Almeida11, no incio de janeiro de 2000, que tenta articular o papel de mediador da Funai na defesa dos direitos indgenas, eclipsado na gesto anterior12. Enquanto isso, na Bahia, Dr. Mrcio Torres assume a Procuradoria da Repblica em Ilhus, e fica com a responsabilidade de acompanhar o processo de implantao do projeto governamental na Aldeia.

Alm disso, aps a regularizao da Terra Indgena de Coroa Vermelha (item 1.3.2), cuja homologao s foi efetuada em 1999, os Patax de Coroa Vermelha e outros interlocutores passam a fazer parte das discusses em torno da implantao do projeto do Made na Terra Indgena de Coroa Vermelha, e este sofre modificaes em alguns dos itens originalmente concebidos por seu autor, que interferem tambm na sua concepo ideolgica.

Ento, nesses ltimos meses, entre dezembro e abril, novamente aglutinam-se foras dos pataxs13 mais resistentes e seus aliados para enfrentar a conduo do Conder e do Ministrio do Turismo nesse processo. Embora as obras continuassem sendo realizadas, consegue-se, com alguma eficcia, frear as presses dos assessores do governo sobre os ndios que tinham resistido, e tenta-se fechar um Termo de Ajustamento de Conduta, o TAC, com o Ministrio do Turismo, que garantisse, aps abril, a continuao das obras de interesse dos Patax. A assinatura do TAC pelas partes envolvidas, no entanto, terminou no se realizando.

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O indigenista Eduardo Almeida, alm de diplomado e funcionrio pela FUNAI, era membro da ANAI e militante ativo do Movimento Brasil Outros 500, tendo conhecimento aprofundado da situao dos povos indgenas no extremo-Sul da Bahia. 12 O Presidente Frederico Mars tenta reverter o processo de negociao j instaurado, mas preciso considerar as dificuldades estruturais, seja pela precariedade de meios e qualificao dos quadros do rgo indigenista regionalmente (Eunpolis), seja pela menor fora poltica dentro do esquema oficial geral, j que o Ministro da Justia na poca no enfrentou, no trato da questo, a conduo do Ministrio do Turismo e do Governo do Estado da Bahia. 13 Estarei usando a grafia pataxs, quando me referir aos indivduos do grupo.

17 Assim, os desdobramentos da luta pela demarcao da terra nas esferas governamentais imbricam-se com as tentativas de negociao e implantao do projeto do Made. O embate, fartamente divulgado na mdia local, estabelecido entre o autor do projeto do Made e aqueles que o criticaram, revela o n subjacente s aes que se desencadearam sob o mote do descobrimento, decorrente de uma divergncia radical no s quanto s concepes dos projetos para as Comemoraes, mas principalmente quanto ao prprio lugar social e poltico dos povos subjugados nesse processo. Estes, no entanto, continuam se organizando em diversas frentes, conforme se ver a seguir.

1. 1. 2 O Movimento Brasil: 500 Anos de Resistncia Indgena, Negra e Popular14

Um ano depois das primeiras iniciativas em torno da criao da Comisso oficial, algumas pessoas e entidades comearam a articular o que mais tarde viria a se chamar Movimento Brasil 500 Anos de Resistncia Indgena, Negra e Popular, cuja inspirao encontra-se nos movimentos sociais desencadeados por ocasio dos 500 anos da colonizao espanhola da Amrica. Em 1995, houve um encontro em So Paulo, especificamente de entidades do Movimento Negro nas Amricas, tendo, como pauta, a discusso do papel do negro nos quinhentos anos do Brasil, e dando incio articulao de instituies ligadas questo indgena, principalmente o Conselho lndigenista Missionrio (Cimi). Em Salvador, comearam as reunies em dezembro de 1998, quando foi elaborado o manifesto oficial, embora o lanamento da Campanha s acontecesse em 19 de agosto de 1999.

O documento oficial estabelece as linhas de ao do movimento Brasil: 500 Anos de Resistncia Indgena, Negra e Popular ou Brasil, Outros 500, como ficou popularmente conhecido. A leitura da histria da colonizao no Brasil exposta no manifesto comea por explicitar o lugar de onde se fala no movimento: um lugar bem definido dos que sofreram e lutaram contra a14

Fontes utilizadas: documento oficial de lanamento do Movimento Brasil: 500 Anos de Resistncia Indgena, Negra e Popular (dez 1998); Quinhentos Anos de Excluso: Por uma democracia multirracial no Brasil, pronunciamento do deputado federal Luiz ALBERTO, do MNU e PT-BA, em 13 de maio de 1998; entrevistas a integrantes do movimento e outras matrias veiculadas pela imprensa local e nacional, obtidas atravs da rede de monitoramento da ANAI.

18 espoliao colonial e explorao de classe, dos condenados da terra, das periferias das cidades e da histria oficial. E, como objetivo precpuo, em seus prprios termos, pretende expor a divergncia clara e transparente com relao concepo oficial das comemoraes, explicitando a noo de conflito conflito entre povos, entre classes, entre ideologias, entre concepes de vida, de mundo, do humano, como central na histria do Brasil .

Nesse mesmo manifesto histrico, elenca-se, entre as linhas de ao do movimento Brasil 500 anos, a instaurao de um processo de reflexo e articulao do movimento com as lutas sociais j existentes em mbito local, regional e nacional, com a expectativa de projet-lo no circuito internacional, tanto na Amrica Latina como na Europa, particularmente em Portugal. Alm disso, j esto previstas diversas aes no extremo-sul da Bahia marcha conjunta, ato ecumnico e ato cultural para estimular a sociedade brasileira a refletir sobre o significado destes 500 anos de histria do ponto de vista indgena, negro e popular.

Contudo, na realizao do projeto do Brasil 500 Anos, ou Brasil Outros 500, emergiram disputas que dificultaram uma maior articulao e organizao dos diversos segmentos com trajetrias e interesses especficos, acirrando-se pela no-convergncia interna quanto ao papel e as tarefas do prprio movimento. Enquanto alguns defendiam uma atuao centrada na realizao dos eventos, outros entendiam que o movimento deveria estrategicamente discutir questes no eixo de reviso histrica, do papel dos excludos, e caracterizar a permanncia do colonialismo enquanto sistema de dominao, que no mudou com a independncia do pas.

Na avaliao do jornalista e indigenista Eduardo Almeida, significativa no interior do Movimento Brasil Outros 500:

que teve uma participao

Um dos objetivos especficos seria produzir um documento substancioso. O manifesto que resultou, no entanto, ficou muito aqum das expectativas. O documento era falho em caracterizar o colonialismo e fazer a ponte com o presente. Enfim, na prtica, embora aprovada em reunies, no houve interesse objetivo de levar adiante essa posio de trabalhar mais intensamente em cima da intelectualidade, artistas, formadores de opinio, lideranas dos movimentos sociais. (...) (Depoimento gravado em 22 de novembro de 2001)

Essa dificuldade de articulao se refletiu no segundo encontro, tambm realizado em Salvador, entre julho e agosto de 1999, alm de um outro, em Braslia, articulado com o Grito dos

19 Excludos, em setembro do mesmo ano. A articulao do Movimento Brasil Outros 500 com o movimento estudantil, de um modo geral, mas especialmente na Bahia, tambm se revelou frgil15. Mais tarde, o Cimi e algumas organizaes indgenas se voltaram para a organizao do que viria a ser a Marcha e Conferncia Indgenas. Os militantes do MST seguiram por uma deriva prpria, que culminanou com o acordo entre lideranas partidrias e o governo para a retirada dos seus militantes da cidade de Porto Seguro no dia 17 de abril de 200016. Assim, o posterior confinamento das comitivas do MST, em Eunpolis, pela ao da Polcia Militar do Estado da Bahia, j no dia 21 de abril, e a organizao indgena em torno da Marcha e da Conferncia Indgenas fazem com que o prprio termo Brasil, Outros 500 passe a ser usado na imprensa principalmente para fazer referncia aos segmentos do Movimento Negro, dos estudantes, sindicalistas e representantes do movimento anarcopunk que se reuniram em Coroa Vermelha em rea no-indgena, no acampamento referido por Quilombo.

No documento de avaliao do movimento Brasil Outros 500 (FONSECA, 2001), as principais dificuldades apontadas foram: (a) a inexistncia de apoio financeiro dos partidos e organizaes de oposio para a implementao do movimento como um todo, principalmente diante da pouca autonomia econmica dos movimentos negros e indgenas, para maior organizao do Quilombo e divulgao da Marcha; e (b) as divergncias no interior dos movimentos negro e indgena.

A veiculao dos eventos e aes, que se desencadeia a partir de 1996 (CUNHA, 1999), esteve tambm deriva do complicado jogo de interesses polticos que regulam a ocupao dos espaos na mdia. A ttulo de exemplo, podemos lembrar a manifestao pblica do movimento Brasil Outros 500, em Salvador, com participao de mais de trs mil pessoas, no dia 19 de abril de 199917 e no dia 22 de abril do mesmo ano em Porto Seguro, no sul da Bahia. Prevista para ocorrer paralelamente ao evento oficial que tradicionalmente comemora a data de 22 de abril, em Porto

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Estava prevista a articulao com o movimento estudantil em nvel local e nacional, atravs das suas representaes, em todo o processo da organizao do Movimento Brasil Outros 500. 16 Ver item 1.5. 17 A manifestao do movimento Brasil Outros 500, realizada em Salvador-Bahia, em 19 de abril de 1999, foi a maior realizada em todo o perodo pr abril-2000, intencionalmente no Dia do ndio. Participaram dela, alm de membros do Movimento e das entidades a ele ligadas, sobretudo entidades do Movimento Negro e MST, integrantes de sociedade indgena Tux e membros de quilombos, trazidos pelo Movimento especialmente para a manifestao.

20 Seguro, a manifestao preparada pela comitiva que sara de Salvador sofreu uma srie de contratempos18, mas terminou acontecendo, conduzida sobretudo pelos ndios Patax H-H-He e Patax do Extremo-Sul, com assessoria do Cimi, os quais, com as faixas de protesto, em nome do Movimento Brasil Outros 500, enfrentaram os policiais e protestaram durante a solenidade oficial, fazendo com que autoridades estaduais e federais e seus assessores sassem s pressas do local. Curiosamente, s a Folha de So Paulo veiculou, numa pequena nota, notcia sobre o ocorrido em Porto Seguro, em 199919. De todo modo, foram vrios os fatos polticos que se tornaram notcias e imagens na mdia20. Apesar das fragilidades e dificuldades enfrentadas na articulao das diversas frentes no territrio nacional, os movimentos sociais organizados conseguiram produzir um contra-discurso que atravessou as fronteiras do pas. Entre os principais resultados e desdobramentos, ainda de acordo com o Relatrio de Atividades do Movimento Brasil Outros 500 (FONSECA, 2001, p. 10-15), destacam-se o desnudamento do apartheid e o contraponto s comemoraes oficiais o fiasco dos 500 anos de Brasil. Alm disso, coloca-se como relevante a presena negra e popular nos acontecimentos, chamando ateno para o fato de que a primeira batalha se configurou atravs da ao repressiva da polcia sobre o Quilombo.

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O nibus fretado pelo movimento Outros 500 que sara de Salvador com destino a Porto Seguro, para a manifestao do dia 22 de abril de 1999, sofreu durante a viagem uma srie de intercorrncias, como o caso dos miguelitos espalhados na estrada, com um saldo de quatro pneus furados e a blitz policial de madrugada, que fez com que a comitiva no chegasse a tempo em Porto Seguro, o que foi interpretado como um ato de represso, acionado provavelmente pelos servios secretos da PM e rgos federais, at porque na passeata do dia 19 em Salvador foi anunciada do carro de som a organizao da comitiva, alm de local de sada do nibus e outras informaes. Inclusive, ocorreram fatos estranhos na reserva de assentos no nibus que ajudam a reforar essa suspeita. Sobre esses acontecimentos, a imprensa nada disse, apesar de o movimento ter feito um release e encaminhado a todos os jornais. 19 De acordo com informaes fornecidas pela assessoria de imprensa do movimento, que acompanhava de perto as aes naquela poca. 20 CUNHA (1999, p. 5) destaca, do ponto de vista da questo indgena, num inventrio que a prpria autora considera incompleto o dilema pela demarcao de terras em vrios pontos do territrio nacional; a esterilizao de mulheres Patax, no sul da Bahia; a montagem de peas teatrais por 13 ndios potiguares da aldeia do Galego, Paraba; o protesto de um grupo de 400 caincangues em Ira, Rio Grande do Sul, contra os cortes no oramento da Funai; a atuao de ndios da Amaznia em uma montagem teatral que retoma O Guarani unindo Alencar e Carlos Gomes , intitulada "Tupi Tu s", em So Paulo; a ocupao do stio histrico de Monte Pascoal; o comrcio ilegal de madeiras, cmbio entre o santurio ecolgico (que se pretende que as reas indgenas preservem) e a comida necessria sobrevivncia; a gravao de um CD por ndios guaranis, do litoral norte de So Paulo; o pedido de rapidez na demarcao das terras e apurao do assassinato do seu lder, dirigido ao Supremo Tribunal Federal por 40 ndios xucurus, de Pernambuco; alm das manchetes mais drsticas, sobre, por exemplo, os ataques de

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1. 2 Os Patax, Quem So?

Os Patax so hoje a sociedade indgena mais numerosa no Estado da Bahia, com mais de 6.000 representantes entre os chamados Patax Meridionais e Patax H-H-He, distribudos em 18 aldeias21. Apesar dessa disperso, os Patax encontram-se num significativo processo de organizao e articulao poltica nas duas ltimas dcadas, realizando vrias retomadas das suas terras e lutando pela regularizao da sua posse. Com propsitos e demandas polticas especficas, tm afirmado a organizao entre si como fundamental para o seu fortalecimento tnico e poltico, em virtude da desvantagem em que se encontram diante do governo e do Estado Nacional brasileiro. A luta pela terra e por outros direitos, a exemplo da educao escolar indgena, imbrica-se tambm nesse esforo de reafirmao tnica e poltica (ver captulo 3).

Atualmente, para alm das suas fronteiras tnicas, tm mantido entendimentos com os Tupinamb que habitam a costa do sul da Bahia, cujos representantes encontram-se tambm mobilizados no sentido do reconhecimento dos seus direitos como povo indgena. Com efeito, representantes Tupinamb tm participado das reunies do Conselho de Caciques Patax, que composto tambm por caciques Patax H-H-He22. Essa aproximao de certa forma se deve localizao geogrfica dessas populaes indgenas, mas possivelmente tambm aos laos de solidariedade tnica genrica enquanto ndios reforada, acredito, pelo fato de que muitos que se reconhecem como Patax H-H-He e Patax possuem ascendncia Tupinamb. Alm disso, os Patax de Minas Gerais tambm mantm um constante intercmbio com os Patax do Extremo-Sul, uma vez que, egressos de Barra Velha (ver item 1.2.1), consideram-na aldeiame.garimpeiros ou o alcoolismo e o suicdio coletivos, que ameaam e destroem grupos indgenas com a mesma eficcia dos antigos bandeirantes e capites-do-mato. 21 So dos Patax Meridionais, ou Patax do Monte Pascoal, as seguintes aldeias: guas Belas, Aldeia Nova do Monte Pascoal, Aldeia Velha,.Barra Velha, Boca da Mata, Cahy, Coroa Vermelha, Corumbauzinho, Guaxuma, Imbiriba, Meio da Mata, Mata Medonha, Trevo do Parque. Alm disso, tem-se a Terra Indgena Fazenda Guarani, em Minas Gerais, cujos habitantes, chamados Patax de Minas, tem Barra Velha como referncia identitria, como aldeia-me. Ocupando outro territrio, ao sul do Estado, encontram-se Aldeias Patax H-H-He de Caramuru, Bahet, Panelo e Nova Vida (Dados fornecidos pela ANAI-BA). 22 A composio, neste momento, do Conselho de Caciques atualiza entre os Patax um conflito de posies polticas, que se acirrou por ocasio da Conferncia e Marcha Indgenas: algumas lideranas Patax do Extremo-Sul,

22

No entanto, com a disperso e heterogeneidade que caracterizam os Patax, a sua articulao poltica revela-se complexa e flexvel. Se, em alguns momentos, mais frutfera preparativos para as comemoraes dos 500 anos e criao do Conselho de Caciques, por exemplo em outros parece refluir, a exemplo do difcil consenso em torno de encaminhamentos de lutas vide a dissenso durante e posterior aos acontecimentos de abril (item 1.5).

1. 2. 1. Um pouco da Histria Patax23

Os Patax certamente pertenciam aos povos que os portugueses identificaram como Aimors palavra de origem Tupi. A designao aimors refere-se quelas etnias classificadas no tronco Macro-J, que foram desalojadas pelos Tupi vindos do sul pela costa leste e nordeste do Brasil. Povos nmades que se movimentavam em pequenos grupos, os Patax, segundo relato de WEID-NEUWIED (1987)

distriburam-se, a partir da ocupao Tupi, no territrio que se estendia no interior da costa, tambm habitado pelos Maxakali. Os PataxAcervo ANAI

concentravam-se, porm, na rea mais prxima

costa, enquanto os Maxakali possivelmente ocupavam as cercanias da serra dos Aimors atual divisa entre Bahia e Minas Gerais. Esses grupos resistiram durante mais de dois sculos aos contatos com os portugueses: Os documentos dos sculos XVII at incio do sculo XIX fazem referncias a bandos selvagens, que atacavam periodicamente os Tupi24 da costa e as

como o cacique de Aldeia Nova, e lideranas Patax H-H-He esto em desacordo com a orientao poltica com que tm sido conduzidas as lutas especficas deste povo. 23 Para esta breve contextualizao histrica, tomarei como fontes CARVALHO (1977), SAMPAIO (1996, 1999, 2000), que, por sua vez, referem-se a fontes histricas e etnogrficas, entre outras, URBAN (1992), WEIDNEUWIED (1985), alm dos seus prprios dados etnogrficos. 24 Os povos Tupi da Costa foram designados nos documentos coloniais por Tupiniquim.

23 populaes de colonos nas capitanias de Ilhus e Porto Seguro. Com o estabelecimento de rotas terrestres entre o Rio de Janeiro e o Nordeste, o prprio governo real passa a combater sistematicamente esses povos indgenas da regio (SAMPAIO, 1999, p. 12).

Segundo CARVALHO (1977), os primeiros contatos dos Patax com representantes do Estado Brasileiro foram no incio do sculo XIX. Em 1861, por determinao do presidente da Provncia da Bahia, toda a populao indgena da regio foi obrigada a concentrar-se numa nica aldeia, junto foz do rio Corumbau, dando origem atual aldeia de Barra Velha. Assim, inicialmente, a aldeia de Barra Velha reuniu no apenas ndios Patax, mas tambm Maxakali e, possivelmente, Botocudos das vizinhanas, entre outros. O etnnimo Patax certamente prevaleceu, no s por serem os Patax mais numerosos, como pela localizao da aldeia em territrio tradicionalmente reconhecido como Patax. Em Barra Velha, viveram isolados de contato mais regular com a sociedade nacional entre 1861 e 1951.

Na poca do massacre denominado Fogo de 1951, os Patax ocuparam o noticirio da imprensa de Salvador. Segundo CARVALHO (1997), lderes Patax que foram ao Rio de Janeiro, na expectativa de obter do Marechal Rondon o direito a suas terras, retornaram da referida cidade acompanhados por dois indivduos de identidade misteriosa que os levaram a atacar alguns comerciantes de povoados vizinhos, o que desencadeou a investida policial armada, a partir das cidades de Porto Seguro e Prado, seguida de violenta perseguio aos Patax, com a destruio das habitaes na Aldeia, mortes, alm de torturas e estupros, conforme relatos dos mais antigos que sobreviveram ao massacre.

Segundo relato de D. Josefa, uma das representantes mais respeitadas da aldeia, ela e alguns parentes mais prximos retornaram para reconstruir a aldeia algum tempo depois. Mas a maioria das famlias de Barra Velha adentrou as matas, formando outras aldeias, ou subiu a costa, enquanto muitos fugiram para as cidades, tentando esquecer o acontecido, negando at mesmo sua origem indgena. O Fogo de 51 representa um marco na sua histria. Pela violncia que sofreram, at hoje os Patax se reportam aos acontecimentos de 1951 com desconforto, o que demonstra o quanto pesam na memria dos que a eles sobreviveram e na dos seus descendentes.

24 Segundo SAMPAIO (2000, p. 126):Este trgico episdio foi percebido por muitos Patax como um mal- entendido que causaria a perda das suas terras. (...) teria fornecido o pretexto para que governantes inescrupolosos aps as mortes de Rondon e Getlio Vargas, protetores dos ndios distorcessem o objetivo original, entregando o Parque para um rgo o atual Ibama que , a partir dos anos sessenta e aps as arbitrariedades policiais sofridas pelos Patax nos anos cinqenta assumiria a tarefa de perseguir os ndios e tomar suas terras, como vem fazendo at hoje.

Com efeito, a implantao do Parque Nacional do Monte Pascoal, em 1961, retirando os Patax das terras que habitavam tradicionalmente, proibindo-os de caar e fazer roas, obriga-os a buscar outras alternativas para sobreviver, como outras ocupaes em lugares mais distantes da sua terra de origem, conforme a memria oral dos seus habitantes:... Assim ia levando a vida.. No podia fazer roa... antes... ns no podia fazer roa! No podia fazer roa... por qu ? Porque naquela poca era o IBA... era o IBDF que empatava muito... botar roa...pra gente comer a farinha...meu pai saa da de Barra Velha pra ir l nas guas Belas pra trocar caranguejo e peixe com outros ndios de l... porque c em Barra Velha no tinha como botar roa que os guarda desmanchava tudo. Primeiro quem botou roa foi tio Firmo... de tio Firmo... a via Josefa... a comeou aquela encrenca. Fazia a cerca... os guarda desmanchava. Fazia cerca... os guarda desmanchava. Teve uma vez que meu tio quase que ia matando um guarda e tambm quase que ele ia matando tio Firmo. Porque ele desmanchou... e tio Firmo com um machado e ele com o revlver... Tio Firmo ia dar uma marretada na cabea dele. Num instante ele chegou boa. Ento... um sofrimento entre ns. O meu conhecimento... que eu sei... que me alembro... foi dessa forma...E por outro tempo.... o tempo que nem o tempo de Amintas... de Enquias... que mais velho... acontecia mais coisas ainda...as pessoa no respeitava ns ndio... pra [essa] gente... era um bicho ali... chegava a e tomava ousadia. (Depoimento de Tapera Patax,/ 2000)

A partir da dcada de 70, mudanas scio-econmicas ocorridas na regio do Extremo-Sul, a exemplo da construo da BR-101 e da explorao sistemtica da Mata Atlntica por grandes madeireiras - responsveis pela exportao em larga escala de madeiras nobres -, a pecuria e o incremento do turismo trouxeram transformaes nos fluxos culturais locais e repercutiram tambm na organizao socioeconmica e cultural dos Patax, com implicaes na construo de sua identidade tnica. De essencialmente agrcolas, passam a se dedicar a atividades direcionadas para o turismo, com a produo e comercializao do artesanato indgena. Com isso, os contatos com outros segmentos sociais externos comunidade indgena so intensificados.

25 De acordo com CARVALHO (1977), quando a Funai, no incio da dcada de setenta, assume a tutela e assistncia aos ndios da regio, estabelece um acordo com o IBDF mais tarde Ibama para que os ndios pudessem plantar nas capoeiras existentes na rea do Parque, mas no enfrenta a questo fundiria latente, que o domnio sobre as terras do Parque. Em 1977, foi firmado um convnio entre a Funai e a Universidade Federal da Bahia para estudos e assessoria aos povos indgenas do Estado. Os estudos resultantes desse trabalho25, no entanto, foram ignorados pela direo da Funai, que optou por uma negociao com o IBDF sobre a diviso da rea, cuja proposta foi recusada pelo rgo ambiental. De acordo com SAMPAIO (2000, p. 129):

No contexto de tais negociaes ganhava relevo uma centenria disputa simblica pela prpria posse do Monte Pascoal (...) Logo ficaria claro que uma real reconstituio do territrio dos Patax que lhes permitissem retomar seus tradicionais processos produtivos, isto , aqueles vigentes at 1961, significaria reduzir cerca de 16.000 a 18.000 dos 22.500 hectares, reduzindo-o apenas s reas em torno do Monte Pascoal, possibilidade explicitamente colocada como inaceitvel pelo IBDF, tanto pela reduo drstica da rea sob sua administrao, quanto pela perda da faixa costeira do Parque, valorizada pela presena do que seria o nico ecossistema de manguezais associados Mata Atlntica includo em uma unidade de conservao ambiental do pas.

Como conseqncia da recusa do IBDF, a Funai afasta os ndios e os estudiosos da questo e faz um pretenso acordo em 1980 com o IBDF para a ocupao da rea, retirando dos Patax o domnio sobre o manguezal e os terrenos mais propcios sua agricultura tradicional. A resistncia dos Patax em permanecer no local, com o tempo, leva ao acirramento das tenses, culminando com a retomada do Monte Pascoal, em 19 de agosto de 1999.

Os Patax retomam o Monte Pascoal, colocando para fora do Parque os funcionrios do Ibama, e assumem a sua administrao. Demonstrando a importncia do Parque no s para a sobrevivncia dos Patax, as lideranas indgenas reafirmam o seu projeto de preservar o Parque. Na vspera da comemorao dos 500 anos, divulga-se moo de apoio regularizao do territrio Patax do extremo sul da Bahia, assinada por diversas representaes indgenas e outras entidades no-indgenas. Reivindicam-se a regularizao e reconhecimento do Monte Pascoal como terra indgena, educao e sade diferenciadas para os indgenas, respeito sua cultura e tradies, alm de projetos auto-sustentveis, entre outros pontos.

25

Ver CARVALHO (1977) e AGOSTINHO SILVA (1981)

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Alm disso, as tenses na rea impelem a Funai a realizar estudos de identificao e delimitao da Terra Indgena Corumbauzinho e reviso dos limites da terra indgena Barra Velha. No incio do ano 2000, os Patax continuam pressionando para conseguir na Justia a desapropriao de fazendas que invadiram o territrio indgena, e do continuidade ao movimento de ocupao de vrias dessas fazendas localizadas no sul do Estado da Bahia.

Em agosto de 2001, as aldeias Patax no Monte Pascoal Barra Velha, Boca da Mata, guas Belas, Corumbauzinho, Aldeia Nova, Craveiro, Guaxuma, Trevo do Parque, Meio da Mata, Barra do Cahy e Imbiriba lanam o Manifesto do Monte Pascoal reafirmando que:O Monte Pascoal terra indgena, baliza da nossa histria, salo de nossas festas, altar e memria de nossos antepassados. Terra que representa o canto do Paih, o sossego da ona pintada, o som do sabi, o tinido da araponga, a sombra do jequitib e tantas outras formas de vida da Mata Atlntica que queremos preservar como sempre fizemos. Conclamamos a sociedade brasileira para juntos exigirmos do governo federal a demarcao das terras indgenas do Brasil, inclusive o Monte Pascoal, em nome da Justia e da Memria.

1. 3 Os 500 Anos e a Luta dos Povos Indgenas pelo Direito Terra

1. 3. 1 A luta pela terra

Como constata LATOUR (1997), paralelamente fantasia de novas tecnologias e expanso do mercado mundial, um contradiscurso contundente vem crescendo nas esteiras das contradies dos modelos econmicos, porque no se pode negar o fim das esperanas do capitalismo de conquista ilimitada e de dominao total. E se as multides que deveriam ser salvas da morte caem aos milhes na misria, as naturezas que deveriam ser dominadas nos dominam de forma igualmente global, essa simetria s no percebida pelos governos dos pases ricos do Ocidente, que acreditam ser os nicos a conhecer o estratagema que permite ganhar sempre, justamente quando talvez tenham perdido tudo.

27 Desse modo, j sabemos no ser mais possvel pensar o pequeno pedao onde se vive, sem que esse lugar esteja diretamente vinculado ao mais longnquo dos lugares exticos ou escondidos. Nesse panorama que as terras indgenas e suas populaes ganham uma ateno especial de governantes e organizaes no-governamentais, colocam-se na mira dos grandes interesses, em preocupaes manifestas, reunies e agendas dos organismos que tomam as decises e definem polticas internacionais. E, se as naes hegemnicas se interessam e se arvoram em avaliar e intervir nos usos que populaes tradicionais fazem hoje dos seus territrios, olhando para as fronteiras internas do pas, essa situao no menos delicada.

O direito terra hoje um dos pontos fundamentais da luta por autodeterminao dos povos indgenas do Brasil, e freqentemente traz tona diversos conflitos, sejam com latifundirios, posseiros, garimpeiros, ambientalistas, sejam no mbito dos rgos governamentais26. No Encontro Continental dos Povos Indgenas, em 1990, ocorrido em Quito, declara-se o direito ao territrio como uma demanda fundamental dos povos indgenas da Amrica Latina.

Durante o perodo dos preparativos e realizao das comemoraes oficiais, foram diversos os conflitos e reivindicaes pela demarcao e reconhecimento de terras indgenas, ao longo do territrio brasileiro. Tambm na Conferncia Indgena de Coroa Vermelha, a primeira e mais relevante questo tratada foi a da regularizao das terras indgenas, ponto vital para a sobrevivncia e soberania das sociedades indgenas.

A leitura do mapa oficial da Funai demonstra que, se por um lado a rea total das terras indgenas reconhecidas pelo rgo indigenista perfaz um total de 97,2 milhes de hectares, o que equivale a 11,38 % do territrio nacional27, deve-se observar que, comparando-se com o territrio ocupado26

Por ocasio da retomada do Monte Pascoal, por exemplo, instaurou-se um debate polarizado entre indigenistas e representantes indgenas de um lado, e ambientalistas e representantes do governo de outro, a propsito da ocupao da rea, considerada unidade de conservao. Os ambientalistas mais radicais entendem que as unidades de conservao no devem ser ocupadas por populaes indgenas, enquanto organizaes indigenistas e indgenas defendem a soberania indgena e ocupao sustentvel das unidades de conservao em rea indgena. 27 O levantamento feito pelo Cimi, de maro de 2000, estima em 739 o nmero de terras indgenas no Brasil, embora no mapa da Funai s constem 561 terras indgenas, das quais 356 so consideradas demarcadas, 60 em fase de demarcao e outras 145, a identificar. A diferena est em que, do ponto de vista oficial, considera-se terra demarcada aquela que est em um dos trs estgios de demarcao: declarao, homologao e registro. Nos dados do Cimi, incluem-se outras 179 terras indgenas reivindicadas por diversos povos indgenas mas ainda no reconhecidas para identificao pelo rgo indigenista oficial.

28 pelos povos indgenas em 1500, a usurpao dessas terras dos povos nativos equivale a algo em torno de 757,5 milhes de hectares. Nesse sentido, a questo do direito fundirio indgena um captulo revelador do jogo de dominao e poder exercido pelas elites ao longo desses 500 anos, que expe o esforo de negao de direitos bsicos das sociedades indgenas, como demonstra MARS (1999) na anlise sobre o estatuto jurdico das terras indgenas no Brasil.

O desenho da concepo jurdico-legal do perodo colonial evidencia que era a integrao a preocupao maior dos colonizadores no que dizia respeito aos indgenas, sem ateno para os que os ndios pensavam ou queriam fazer.

No Imprio, a cultura do Estado brasileiro nascido com a Constituio de 1824 encarnava a concepo burguesa de que no h estamentos intermedirios entre o cidado e o Estado, no havendo lugar, portanto, para grupos humanos com direitos prprios de coletividade. No se refere a negros e ndios, partindo-se do pressuposto de que seriam livres e cidados, o que, na verdade, no passava de falcia, porque os negros continuavam escravos e os ndios no foram integrados como cidados. Assim,

O sistema jurdico que se pretende uno e regido por um Estado impessoal e poderoso no podia fazer melhor do que os conquistadores portugueses e espanhis: (...) os colonialistas roubavam o ouro, a madeira, a vida dos indgenas, dizendo que queriam purificar sua alma; os Estados Burgueses exigiram sua alma, no para entreg-la a um deus, mas para igual-las a de todos os pobres e, ento, despojados de vontade, apropriar-se de seus bens. (MARS, 1999, p. 56)

Ainda segundo MARS (1999), nos sculos XIX e XX as leis no admitem o nome de territrio para indicar o espao ocupado pelos povos indgenas, preferindo o termo terras, como se se tratasse de terras particulares dentro do territrio nacional. Assim como tambm as palavras povo e soberania provocam a repulsa de todos os setores que se dizem nacionalistas, especialmente os militares. Portanto, oferece-se garantia aos ndios, no plural, mas no se trata claramente de um direito coletivo.

29 1. 3. 2. A luta pela Terra Indgena28 de Coroa Vermelha.

Diante do que foi exposto at aqui, a regularizao da Terra Indgena Patax, principalmente as Terras Indgenas Patax H-H-He e as Terras Indgenas de Barra Velha e Corumbauzinho, incluindo o direito de posse do Monte Pascoal, uma saga reveladora da luta pelo reconhecimento do direito terra que os povos indgenas enfrentam no Brasil. Do mesmo modo, a finalizao do longo processo de demarcao da Terra Indgena de Coroa Vermelha, que coincide com o processo de preparao dos eventos comemorativos de abril, representa um quadro tambm particularmente revelador de como se imbricaram a luta pela terra e os interesses, nem sempre maiores, dos governantes.

Em 1985, a Funai deu incio ao processo de regularizao fundiria da "rea indgena de Coroa Vermelha. Tal processo sofreria sucessivos entraves, entre eles uma srie de presses encabeadas pelo prprio Governo do Estado da Bahia que, em janeiro de 1996, editara decreto que feria frontalmente determinaes da prpria Constituio Federal, no sentido da desapropriao da faixa de terra de Coroa Vermelha onde seria implantado o Memorial do Encontro29, tendo em mira as comemoraes dos "500 Anos do Descobrimento", no ano de 2000.

Entre 1996 e 1999, desenrola-se a ltima etapa do processo para a demarcao da Terra Indgena de Coroa Vermelha. Segundo o antroplogo Jos Augusto Sampaio, estudioso do povo Patax e autor do relatrio do Grupo Tcnico (GT) para a demarcao da Terra Indgena de Coroa Vermelha, essa uma longa histria. Aps a concluso dos trabalhos do GT e aprovao do relatrio final, nas instncias tcnicas da Funai, segue-se um processo de obstruo em decorrncia do decreto do Governo do Estado da Bahia, que desapropriava a rea prevista para a realizao das obras do projeto governamental para as comemoraes. Essa rea sobrepunha-se s ocupaes indgenas em Coroa Vermelha. Foi preciso a Procuradoria da Repblica intervir para garantir a assinatura do despacho que aprovou o parecer tcnico pelo ento presidente da Funai, Jlio Geiger, o que s aconteceu em 17 de janeiro de 1997.

28 29

Terra Indgena uma figura jurdica que designa um tipo de propriedade da Unio. Ver Dirio Oficial do Estado de 24 de janeiro de 1996

30 Enquanto isso, o governador do Estado da Bahia na poca, Paulo Souto, mandou ao Ministro da Justia, Nelson Jobim, uma carta solicitando retirada, no processo de demarcao da terra indgena, de toda a rea em que se instalaria o Made, entre o Rio Jardim e o Pontal da Coroa, coberta pelo decreto de desapropriao que fizera aprovar no ano anterior, mas que fora contestado pela Procuradoria da Repblica.

Nas prprias palavras do autor do referido relatrio, que acompanhava, como membro da ANAI, a comunidade de Coroa Vermelha nesse processo:

Isso chegou s minhas mos por vias no oficiais (...) Ento... eu mandei uma carta para o ministro Jobim... sob o argumento de que seria impopular para o Brasil... comemorar os 500 anos removendo ndio de terra indgena... ou desautorizando terra indgena. Embora o Geiger tenha ficado em cima do muro... a Procuradoria pediu uma audincia com Geiger... me levou junto... o Dr. Danilo Cruz... personagem importante... deu um prazo ao presidente da Funai: trinta dias para que ele aprovasse o relatrio j havendo parecer tcnico da prpria Funai. (Depoimento gravado em 14 de dezembro de 2001)

Ainda segundo Sampaio, aprovado na Funai, o processo seguiu para o Ministrio da Justia, para contestaes. No houve contestaes. O interesse em uma pronta definio quanto ao uso da terra indgena para as comemoraes dos "500 anos", por parte dos governos estadual e federal, e a excessiva confiana em seu poder de presso poltica, da parte dos interesses empresariais, foram as provveis razes pelas quais nenhuma contestao foi formalmente apresentada Funai no prazo legal dos noventa dias que se sucederam edio do Despacho Identificatrio.

Nesse tempo, j se havia realizado uma audincia com o Itamaraty e com a Procuradoria da Repblica. Na referida reunio, curiosamente havia a presena do ento presidente da Comisso dos 500 anos e mais alguns dos seus membros, entre eles o General Gasto. O ento coordenador da Comisso, Ministro do Itamaraty, Lauro Moreira, sugeriu a hiptese de os ndios cederem parte do seu territrio para o Projeto do Made. O projeto era da autoria do Ministrio da Cultura, mas a execuo da obra ficaria sob a responsabilidade do Governo da Bahia, com recursos do Estado da Bahia, do Prodetur.

31 Na madrugada de 20 de abril de 1997, houve o assassinato do ndio Galdino de Jesus, Patax HH-He, por jovens adolescentes de classe mdia alta, que atearam fogo sua roupa, enquanto dormia sob a marquise de um ponto de nibus em Braslia, porque no tivera como chegar ao seu alojamento. Galdino, a propsito, estava em Braslia tentando resolver o sofrido processo de desocupao das terras Patax H-H-He30. O assassinato de Galdino repercutiu nacionalmente, gerando grande comoo, e repercutiu tambm no processo de legalizao das terras de Coroa Vermelha, fazendo com que o processo se apressasse, talvez por desconhecimento de escales governamentais de que os Patax do Monte Pascoal e os H-H-He ocupavam territrios especficos.

No entanto, a ao da imobiliria "Ges-Cohabita", na primeira semana de outubro, invadindo a rea da Mata onde atualmente se localiza a Reserva da Jaqueira e retirando madeira, provocou tambm a reao dos Patax. Cientes dessa ameaa, os Patax conseguiram uma impressionante mobilizao que, em poucos dias, reuniu, em um acampamento sobre a rea atacada, cerca de seiscentos ndios de doze aldeias Patax na Bahia, o que parece ter surtido efeito em convencer as autoridades governamentais do prejuzo poltico ao protelar a regularizao da Terra Indgena.

No dia 14 de outubro de 1997, o ministro da Justia, ris Resende, finalmente assinou Portaria (publicada no Dirio Oficial da Unio em 16 de outubro de 1997) declarando "de posse permanente indgena" a rea de Coroa Vermelha, no litoral dos municpios de Santa Cruz Cabrlia e Porto Seguro, Bahia.

1. 4 Vrias Coroas Vermelhas

30

Os Patax H-H-He receberam uma reserva de 54 mil hectares em 1926 no sul da Bahia. Dez anos depois, comearam a ser expulsos pelo ento governador Juracy Magalhes, que arrendou as suas terras a cacauicultores com o aval do SPI e do Ministrio da Guerra. Durante dcadas, os Patax vm enfrentando a violncia dos conflitos com grileiros da regio. Entre 1976 e 1980, os governadores Roberto Santos e Antnio Carlos Magalhes distriburam ttulos a arrendatrios da Reserva Caramuru. Ainda no sculo XXI, os Patax H-H-He continuam na luta pela desintruso das suas terras, que j contabiliza diversas mortes, entre elas a emblemtica tragdia do ndio Galdino.

32 Neste item, a Aldeia de Coroa Vermelha ser descrita a partir de diversas representaes dos seus habitantes, de dados de estudos etnogrficos e atravs da sistematizao das minhas prprias representaes, inclusive das anotaes de campo.

1. 4. 1 Coroa Vermelha: primeiras aproximaesQuando eu cheguei aqui no tinha esse tanto no... devia ter uns duzentos... trezento... por a...Quando ns chegou pra aqui no tinha... s tinha isso a...S tinha essa pista... e a cruzinha l com aquelas negoa... aqueles escadinha... e no tinha nada... e a pedra... que tinha. No tinha nada! Tinha seu Itamb... que morava ali...no tinha nada... aqui tudo era mato. A foi chegando... foi chegando... foi chegando... tudo... os brancos tambm... comprando terreno... o que t hoje em dia a. (Depoimento gravado, em entrevista, por ZabelPatax, em Coroa Vermelha)

Quando cheguei a Coroa Vermelha, na primeira visita como pesquisadora, em abril de 1999, a primeira impresso foi de estranhamento. Tinha uma imagem de Coroa de uns vinte anos atrs, quando passei por l para visitar um parente que morava em Santa Cruz Cabrlia. Lembro-me de que, dessa remota passagem, ficou a imagem de ndios e ndias, adultos e crianas, de tangas e pintados, que, num pequeno terreno, preenchido com algumas barracas, vendiam objetos aos que passavam na estrada, no meio de uma paisagem verde, cheia de coqueiros. Isso devia ser no incio do ano de 1976.

No meu imaginrio, os ndios ali presentes viviam mais ou menos isolados em sua aldeia. Mesmo o material bibliogrfico a que tive acesso no conseguiu influir nessas imagens da minha memria. Antes, lia as informaes tentando recriar aquele cenrio. Do mesmo modo, o contato com os professores Patax de Coroa Vermelha, nos encontros do Curso de Formao de Professores Indgenas na Bahia, desde 1997, quando me falavam da sua aldeia, ou as conversas com os antroplogos31 que me orientavam no trabalho, no foram suficientes para modificar essas representaes que ficaram da primeira visita, h tanto tempo. Mas na segunda visita, j no caminho, percebi que no reconhecia aquela paisagem. Do lado oposto ao mar, hotis, pousadas, asfalto, loteamentos... beira-mar, o trecho de estrada que sai31

Entre a primeira visita deste ano Coroa Vermelha e a minha mudana definitiva para a rea, mantive conversas com a Prof. Dr. Maria Rosrio de Carvalho, do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia,

33 de Porto Seguro at a aldeia vai sendo pontuado por muitas placas e barracas, que nada mais so do que armaes de madeira, em dois andares, que oferecem, em painis (Ax Moi, Barramares, Ta-ta) os seus servios: comida, bebida, ax music, lambadas, alm de banheiros e outros equipamentos. Em algumas dessas barracas, estacionamentos para carros e at heliporto em reas cimentadas invadem a praia, ocupada por cadeiras, mesas, sombreiros e turistas.

Chego em Coroa por essa mesma estrada BR-367, que, na altura dos km 76 a 78, margeia a terra indgena em direo a Santa Cruz Cabrlia. Dessa vez, vejo muitos ndios e no-ndios, sem se distinguirem assim a princpio, convivendo no mesmo espao, muitas lojas e constr