11

Cesta Básica Capítulo 14

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Urban Life Style Magazine from São Paulo

Citation preview

Page 1: Cesta Básica Capítulo 14
Page 2: Cesta Básica Capítulo 14

Editorial

Confesse! Mesmo sabendo quea Cesta Básica é bimestral,você conferia seu e-mail diari-amente. Confessamos! Somosgratos por isso.Esse capítulo é especial; As fo-tos são de Renan Rosa e o tex-to de Aline Stürmer. Provavel-mente, enquanto você lê con-fortavelmente, eles estão em-barcando para mais algum ce-nário exótico. Boa viagem!Para você e para eles.

Capítulo 14

mais fotos : http://renanrosa.viewbook.com/

ExpedienteDiagramação:Thiago Ronza BentoColaboração: Renan Rosa eAline Stürmer

Gostou? Quer colaborar?Mande seu material [email protected] gente não paga nem cobranada, mas dá os créditos.

Page 3: Cesta Básica Capítulo 14

3OUTRA COISA

Texto: Renan Rosa e Aline StürmerFotos: Renan Rosa

O olhar do fotógrafo Renan Rosa empassagem pela Costa Leste AfricanaMesmo com passagens anteriores por aproximadamente 40 países ao redor doscinco continentes, o fotógrafo exprimia, a partir do Brasil, uma imensa expectati-va sobre seu ensaio permeando a cultura e o povo de países da África Ocidental

Entre maio e junho de 2009, Renan Rosa vi-sitou parte do continente africano. Essa éuma síntese de impressões, relatos e vivências

do artista, acerca de aspectos cotidianos e sócio-cul-turais dos povos, a realidade dos imigrantes na capi-tal sul-africana Joanesburgo, a cultura popular e asprincipais cidades do Moçambique, da capital daTanzânia, suas fronteiras e paraísos recônditos, e atradicional tribo dos Masais no Quênia.

Expressivo e intenso em suas buscas por experi-ências e pela compreensão das pessoas, o fotó-grafo exibe em 11 anos de viagens, contrastes en-tre sua vida e obra, formando um mosaico de po-vos e etnias enquanto experiências pessoais e ar-tísticas. É na África, berço da humanidade, queRenan vivenciou a alegria do povo africano, movi-mentações e transformações do espírito humano,onde os problemas preservam-se como intrínse-cos e indissociáveis da realidade.

Durante a viagem, o artista desprendeu-se de gran-de parte seus costumes, mergulhando numa incurssãopelo habitat e cultura local, produzindo ensaios en-tre ataques febris de malária, experiências espiritu-ais inesperadas, alimentando-se e locomovendo-sede forma precária, entre tentativas de sequestro,extorsão policial, viagens com bóias-frias e imigrantesilegais entre fronteiras.

Renan decifrou, em imagens e relatos, expressõesoscilantes que sublimam as diferenças e a própriaarte fotográfica. A experimentação da fotografia atra-vés das origens do homem, dos olhares aflitos, sin-ceros e dignos, que transpassam a animosidade dahistória contada, segundo o registro in natura de umartista humanamente existencial. Sem qualquer sen-so de lógica ou ordem dos acontecimentos, Renantraz em sua obra um legado de amor e dor, comoobservador e viajante.

Page 4: Cesta Básica Capítulo 14

Artesanato em bronze de Nelson Mandela, Pretória,África do Sul

Albino, Joanesburgo, África do Sul

África do Sul

Apresentando um território síntese do homem negrolocal, da passagem dos europeus, principalmente in-gleses e holandeses, e dos escravos trazidos da Ásianos séculos XVII e XVIII, a África do Sul é marcadapor cisões culturais e políticas. A principal delas é oapartheid - política de segregação racial e socialentre os brancos e as demais etnias presentes no país,iniciada em 1948, resultou em uma guerra civil nadasilenciosa que perdurou até 1991.

Nelson Mandela, líder do Congresso Nacional Afri-cano (ANC) e um dos maiores representantes daoposição ao apartheid, fora condenado à prisãoperpétua em 1964. Com a abertura do parlamentoem 1990, com F. W. Klerk, Mandela é libertado,tornando-se presidente da África do Sul nas pri-meiras eleições presidenciais livres do país.

explícitas por parte dos europeus nas manifestaçõespré e pós-apartheid, percebe-se claramente a se-gregação social e étnica no país.

Por parte da população negra, a hostilidade não sepredispõe somente aos brancos, mas também, aosimigrantes de outros países africanos em busca demelhores condições. "Sinto que meu ensaio naÁfrica do Sul acabou, apesar do pouquíssimotempo para produzi-lo, o interesse pelos imigran-tes moçambicanos que trabalham informalmenteem Joanesburgo, me faz acreditar que um en-saio sobre o Moçambique seja muito represen-tativo do sentimento que estou explorando naÁfrica..."

Hoje a principal representação geográfica doapartheid é o bairro negro de Soweto, na cidade deJoanesburgo. Localizado a sudoeste da capital, olocal abriga a casa de Nelson Mandela e é conheci-do por ser foco de resistência à política de segrega-ção. Atualmente, possui um dos maiores hospitais domundo, o Chris Hani Baragwanat, e sediará jogosda Copa do Mundo de Futebol de 2010.

“É impactante presenciar os resquícios doapartheid pela segregação existente dentro daprópria cidade e nos arredores de Joanesburgo...é realmente difícil a situação por lá apesar dastentativas de camuflar...".Toda a capital ainda édividida, brancos em um lado e negros em outro.Apesar de não haver mais demonstrações racistas

Moçambique

Integrante da Comunidade dos Países de LínguaPortuguesa, o Moçambique, antiga colônia de Por-tugal, obteve sua independência em junho de 1975.Pertencente à costa leste africana, faz fronteira aonorte com a Zâmbia, Malawi e Tanzânia, a lestecom o Oceano Índico, e a sul e oeste com a Áfricado Sul, Suazilândia e Zimbábue. Após a indepen-dência, foi instituído um regime socialista de partidoúnico, que viria a degradar progressivamente atéculminar em uma série de acordos realizados como Banco Mundial e o FMI. A abertura do regimefoi ditada pela crise econômica em que o país seencontrava, pelo desencanto popular com as políti-cas de cunho socialista e pelas consequências insu-portáveis da guerra civil que o país atravessou en-tre 1976 e 1992.

Em sua passagem pelo Moçambique, Renan retra-tou o cotidiano de pessoas nas mais expressivas ci-dades do país: Maputo (capital) e Beira, além de lo-

Page 5: Cesta Básica Capítulo 14

busca do necessário para viver. Peixe, barco,mercados de rua e muitos dizeres: "como vai? -bem, obrigado!!! só não a sei a ti ?!!

Os casarões dos barões estão todos a mercê damaresia e do descaso; alguns invadidos, outrosfantasmagóricos e abandonados. Tem um forteno final direito da praia: muitos piratas forammortos, e muitos navios afundados por ali: tur-cos, holandeses, entre outros. A ilha é patrimôniohistórico mundial, e a UNESCO proíbe inter-venções e visitas turísticas em alguns edifícios.

Ontem de noite tive uma febre assustadora, echoques de frio... peguei mesmo malária e qua-se morri na estrada com dores terríveis, sendoatendido num hospital que era a visão do infer-no... pessoas agonizando por ali, e os familiaresdormindo fora da sala de emergência, no chãode terra batida. Muitas crianças com malária,desesperadas e já perdidas entre soluços eberros, entre outros cortados e quebrados...Ocaminho entre o hospital e a casa em que mehospedava foi lindo: o sol estava aparecendo evárias cores no céu anunciavam que a tempes-tade tinha passado. Dormi novamente e acordei

cais que pertencem ao patrimônio histórico, como aIlha do Moçambique e a pequena Brasil, como éconhecida a cidade de Quilimane, onde comemora-se o carnaval tipicamente brasileiro. A singularidadedo povo moçambicano revela uma profunda vivaci-dade e a alegria expressos através do olhar do fotó-grafo. Ao sair de Beira, o artista seguiu para o nortedo país, passando pela pequena cidade de Caia:

Minha visão imaginária de Caia era de uma ci-dade pequena com uma infraestrutura básica:estradas, lojas, estabelecimentos comerciais; noentanto, não passa de um grande acampamentosem qualquer estrutura... esperei no rio de Caiamais de 15 horas pra atravessar e continuar vi-agem, e ali dormi numa casa de caniço cheia deratos... ... ficamos horas esperando ajuda, enada... saí caminhando pela estrada com a ba-gagem, na esperança de conseguir uma carona.

Cheguei na Ilha do Moçambique - o lugar é umparaíso e as fotos estão mesmo incríveis. O lu-gar só tem três quilômetros de extensão. A cida-de é patrimônio histórico mundial, tem muitasfortalezas e casas coloridas, estilo colonial, e avida das pessoas não passa de um ir e vir em

Escola ao lado da casa de Nelson Mandela, Soweto, África do Sul

Page 6: Cesta Básica Capítulo 14

com um café da manhã tipicamente moçambicanona cama: dois pães com peixe, ovos e chá.

Mesmo doente fiz o máximo que pude pra podercomplementar o ensaio da Ilha do Moçambiquecom maestria condizente a beleza do local. Mi-nha vontade de produzir algo com impacto so-bre a mais importante cidade histórica do paísparece ter dado resultado positivo como meuteste de malária. O descaso das autoridades coma saúde aqui é alarmante, e inúmeras pessoasficam agonizando sem atendimento, ficando emsituações gravíssimas por causa da malária eoutras enfermidades.

"Tenho estado mesmo nas favelas, nos guetos,vivendo como o povo daqui vive, e sem muitasprevisões para os dias seguintes. Estou fican-do expert em sobrevida em meio a infernosparadisíacos!"

Tem sido mesmo difícil a continuidade do traba-lho tendo em vista todos os problemas que venhoencontrando por aqui nestes últimos dias, princi-palmente pelo problema sério de saúde que tivena Ilha, mas nada me fará voltar antes de termi-nar este trabalho, pois estou realizando aqui umsonho como artista e viajante. Os retratos gri-tam, choram, são cheios de cores e mesmo quan-do em P/B cromatizam com a expressividade des-te povo que é incomparável. A luz é sempre suavee linda; as pessoas também, impressionante!!!

Pemba é uma das maiores cidades do país, e écomparável aos mais belos mares que já vi naminha vida. Lindas árvores na encosta do mar eágua cristalina emolduram a paisagem. Aquinunca se sabe o horário de chegada de uma via-gem e um percurso de 200 quilômetros pode du-rar até 15 horas. Nunca se sabe se está pegandoum transporte regularizado ou não, e se as con-dições serão boas.

O karma aqui é mesmo muito forte, e en-tre todos os problemas que estou enfren-tando, a saúde tem sido mesmo o maispreocupante. O mais louco disso tudo éque estou feliz. Cada dia a luz está me-lhor, as pessoas mais próximas de mim.Sigo em breve para a Tanzânia, onde po-derei fotografar muito sobre a vida mu-

çulmana na África. Mesmo assim, aqui noMoçambique pude também vivenciar umpouco desta cultura.

A experiência de estar na África é incompará-vel, e talvez só a passagem pela Índia tenha sidoforte como isso tudo que vivo aqui. A força es-piritual que se respira, os olhares profundamen-te conectados e a dor que não quer cessar, anun-ciam mesmo futuros bálsamos a serem degusta-dos, pois nada, nada mesmo deve continuar as-sim desta forma.

Nada do que está acontecendo aqui se trata deazar ou sorte, mas sim de um legítimo e triun-fante caminho que precisa da dor para poderreconhecer a alegria da vida como ela há de ser.Choro muito agora, mas não é de sofrimento oude algum sentimento negativo; mas por acredi-tar que aceitar o destino da nossa vida é umadádiva, seja qual for o fim que a natureza nosresguarda. Apesar de tudo, é implacavelmentelinda a força de estar à mercê da natureza. Mes-mo que isso seja passageiro, levarei esta experi-ência pro resto da minha vida, me transforman-do numa pessoa mais bonita e aberta para no-vas vivências.

A superação pessoal de Renan por seu grito foto-gráfico é uma grande inspiração. É a arenosidadeque precede a imagem que nos faz pensar se é issomesmo o que estamos vendo e sentindo, nos dei-xando estarrecidos e vitrificados pela poesia huma-na que ele faz. A viagem no Mocambique pareceestar chegando ao final, e já nem posso lem-brar que um dia estive na África do Sul, tão in-tensa tem sido minha vida por aqui. Durante estetempo, todo o meu empenho se voltou para afotografia, mesmo quando parecia descambarpara um terreiro de Pai de Santo.

A simplicidade do cotidiano das famílias, a pro-ximidade proporcionada em grande parte pelalíngua portuguesa, o respeito pela cultura brasi-leira, produziram um espectro natural de olhos,formas e cores, em movimentos gingados e mo-mentos retratados na busca de um povo por suasubsistência: pessoas em mercados públicos aber-tos unidos por um falatório animado, pescado-res pela costa, turistas cercados pela atençãolocal; a culinária com influências indiana, base-

Page 7: Cesta Básica Capítulo 14

ada no uso da mandioca, banana, coco, e condi-ções precárias de higiene e saúde perfazem opainel do Moçambique.

Após passagem por Mocimboa da Praia, o fotógra-fo atravessou a fronteira para a Tanzânia, chegandona cidade de Mtwara. A República Unida daTanzânia, faz fronteira com o Oceano Índico, Burundi,República Democrática do Congo, Quênia, Malawi,Moçambique, Ruanda, Uganda e Zâmbia. Possui emseu território pontos mundialmente conhecidos, comoo Lago Vitória e o Monte Kilimanjaro.

Apesar do idioma oficial do país ser o swahili, gran-de parte da população da Tanzânia fala o inglês.Com cerca de um terço da população vivendo emáreas urbanas, destaca-se a antiga capital Dar esSalaam, com mais de um milhão de pessoas, eDodoma, atual capital administrativa da Tanzânia.O país apresenta uma diversidade de crenças: cer-ca de 35% da população é muçulmana, 30% cris-tã, e 35% adeptos de 120 crenças nativas.

A história da Tanzânia envolve a ocupação da cos-ta por imigrantes árabes e indianos a partir do sé-

Page 8: Cesta Básica Capítulo 14

culo VII. Durante o século XIX, com a dominaçãoeuropeia no continente africano, a Tanzânia passoua ser protetorado alemão. Após a 1ª. Guerra Mun-dial, no entanto, o país passou ao domínio britânicodefinido pela Liga das Nações. Com o fim da 2ª.Guerra Mundial, a Tanzânia tornou-se território tu-telado da ONU, sob a administração de Londres,que começou a adotar medidas que contribuiriam,para viabilizar a independência do país em 1961.Em 1964, é assinado um tratado de união a Tanzâniae a ilha de Zanzibar, formando a República Unidada Tanzânia. Posteriormente, o país foi invadido pordiferentes povos que influenciaram as manifestaçõesartísticas como a arquitetura colonial portuguesa etraços da cultura chinesa e persa.

Apesar de seu quadro de estabilidade política, naTanzânia a situação de pobreza extrema afeta ametade da população, segundo os critérios do Ban-co Mundial. A agricultura, especialmente as cultu-ras do café, algodão, castanha de caju e cravo-da-índia, é responsável por 60% do PIB, 85% das ex-portações e 80% da mão-de-obra empregada, e éconsiderada a principal atividade econômica do país.Ganham destaque também a pesca como atividadede subsistência, e a indústria incipiente dos ramosalimentício, têxtil, tabaco e de bebidas.

Mtwara é um paraíso recôndito, com praias lin-das e muito comércio de pescado. A vida muçul-mana por aqui é intensa e ouço diariamente nosmesmos horários as chamadas vindas das mes-quitas chamando os fiéis para o início das cele-brações e rezas. Apesar de parecer pacata,Mtwara, como toda cidade de fronteira acolhemuitos criminosos, e policiais corruptos.

A viagem para Dar es Salaam começou cheiade preocupações, pois tinha que sair pela noitede Mtwara, caminhando do hotel até a estação,e não é mesmo recomendável aqui na África um"muzungo" (branco) andar sozinho pela noite.Ao chegar na rodoviária, aconteceu exatamen-te o que esperava: pessoas me pegando pelo bra-ço, tentando arrancar minha mochila e me le-var para um táxi insistentemente. Um grandepercentual de pessoas que vivem nas ruas e de-pendem destas para viver não podem ver um"muzungo" que acham que vamos dar a elesdinheiro para viver um mês! Aqui na África, comturistas é assim: se você dá corda, eles te su-

gam, se você ignora, querem tua alma.Fui sequestrado por supostos 'policiais' e no ca-minho da 'delegacia', falavam que se eu tivessedinheiro poderiam resolver aquilo sem proble-mas, que fotografar sem permissão era proibi-do, e que eu poderia ter grandes problemas eaté ser preso. Só me deixaram em liberdade apóslevar todo o dinheiro que tinha, me jogaram numlixão na saída da cidade e saíram em disparada.Achei que iriam me matar antes de irem embo-ra, mas Deus estava do meu lado naquele mo-mento e só levei algumas coronhadas e chutes.Quando cheguei no pequeno hotel onde me hos-pedava, meu quarto estava arrombado e semparte de minha bagagem. Um dos funcionáriosdo hotel, que estava dormindo acordou com oberreiro e veio perguntar cinicamente o que ha-via acontecido. Estava claro que o próprio donodo hotel havia roubado minhas coisas.

Minha sorte em Dar es Salaam foi ter encontra-do um alemão e uma brasileira, que me abriga-ram em uma congregação cristã de missionári-os salvatorianos, e que me ajudaram a recupe-rar minhas coisas roubadas no hotel. A periferiada capital parece o fim do mundo; muitas fave-las, crianças na rua em situações deploráveis,ônibus urbanos lotados com pessoas pendura-das pelas janelas, e outras se estapeando na en-trada da porta por um lugar. A conspiração nãohavia terminado aqui na Tanzânia, mas possolhes dizer de coração aberto: é maravilhoso,cheios de coisas lindas, entretanto, abriga umpovo confuso, sem informação, e muitas vezespreconceituoso.

Tanga é uma cidade que faliu depois do fim da co-lonização. É repleta de prédios antigos e tem um

Retorno para o lar

Page 9: Cesta Básica Capítulo 14

dos maiores portos da Tanzânia. Muita pesca, mui-tos indianos e muçulmanos. Um lugar por onde pas-saram portugueses e que tem uma história bem típi-ca da África. ... Tanta pancada que levei aqui naTanzânia, e que vi os outros levarem...negrosespacando negros, brancos abraçando negros,brancos chorando, negros sorrindo, brancos sor-rindo, negros chorando, brancos sangrando pordentro, negros sangrando por fora!!!

Certas realidades, e percebi que levas sempre noolhar o que sua terra lhe ensina ou lhe ensinou, esomos em parte reflexo do que toda a nossa na-ção significa pra outros povos e para nós mes-mos. Sinto este paralelo entre terra e espírito sem-pre que atravesso a linha imaginária das frontei-ras, e é impressionante como as coisas mudam!

Quênia

O Quênia, cujas fronteiras limítrofes são o Ocea-no Índico, a Etiópia, a Somália, a Tanzânia,Uganda e Sudão, possui como principais cidadesNairóbi (a capital, ao centro do país) e Mombasa(no litoral sul, importante pólo turístico). Ao norte,apresenta extensa savana, formada por gramínease arbustivas; ao sul, apresenta uma mata equatori-al, densa, e frondosa.

Enquanto país, o local é uma construção políticadecorrente de sua colonização britânica (iniciadadurante o século XIX), com o intuito de dividir etniasaliadas e extrair minerais preciosos e recursos na-turais (madeiras e especiarias). No início da déca-da de 1950, surgiram movimentos de libertação dopovo queniano, sendo o principal um movimento

da tribo Gikuyu (de etnia Kikuyu) denominado MauMau (Burning Spears). Em dezembro de 1963, aInglaterra reconheceria a independência do Quênia.

A expressão econômica do país concentra-se naagricultura, pecuária e indústria de derivados. OQuênia atualmente enfrenta sérios índices de de-semprego, representando quase metade da popu-lação economicamente ativa, enquanto que mais dametade dos quenianos empregados recebe saláriosbaixíssimos (de oitenta a cem dólares, quase du-zentos reais). Marcado pela abusiva corrupção políti-ca, o local apresenta elevados indicadores de sonega-ção de impostos pela classe economicamente alta edesvio de verbas públicas, principalmente nos investi-mentos ligados ao transporte e infraestrutura viária.

A língua oficial do Quênia é o inglês. Mesmo assim,o idioma dominante é o Swahili, uma junção do ára-be com a língua dos bantus. O Swahili é tão impor-tante que é utilizado em vários países do leste afri-cano, como Uganda, Tanzânia, norte doMoçambique e sul da Somália, o que facilita o diá-logo entre tais países. Cada tribo tem seu própriodialeto como característica de suacultura regional,o que faz do Quênia uma nação com mais decinquenta dialetos.

São mais de cinquenta tribos presentes no Quênia,divididas entre sete etnias distintas. São exemplosde tradições mantidas em tempos globalizados, astribos Masai, Samburu, Turkana, e Kikuyu. Em vi-sita à tribo Masai, de natureza nômade que apre-sentam-se divididos entre o Quênia e a Tanzânia, ofotógrafo vivenciou seus costumes e hábitos.A reli-gião é diversificada, as tribos mais tradicionais são

Da esquerda para a direita: fogo produzido por atrito em madeira, vista noturna da Ilha

Page 10: Cesta Básica Capítulo 14

politeístas, relacionados com a natureza. Por outrolado, a colonização trouxe o cristianismo presenteno catolicismo, protestantismo e até o satanismo.

Cheguei a Nairobi, e o centro da cidade é bemdesenvolvido, cheio de coisas pra se fazer e comar bem cosmopolita. Tem em média três milhõesde habitantes e uma das reservas econômicasmais importantes para o desenvolvimento doleste africano. Não correrei os riscos de fotogra-far Nairobi. Apesar do desenvolvimento aparen-te, sinto uma hostilidade muito forte com os bran-cos, e tenho ouvido histórias assustadoras queaconteceram recentemente com turistas aven-tureiros, e conheço-me o suficiente para saberque não ficaria satisfeito em fazer somente fo-tos do centro da cidade, onde tudo parecetranquilo, e ao mesmo tempo nada interessantepara o tipo de trabalho que faço.

Instalado na capital, pude comer um prato cheio,dormir numa cama quente e voltar a respirarares de tranquidade; não deixei de perceber oquanto aqueles momentos de desespero e de fomeme iluminaram como ser humano, e o quantoaquilo foi importante para fazer da minha via-

gem aqui na África um verdadeiro mergulho den-tro das pessoas daqui, e que passam por tudoque passei diariamente. Foi indispensável pas-sar por tudo isso e levar junto do meu olhar averdade através da mesma experiência, reconhe-cimento quase que pessoal sobre o que se passapor aqui, e a chegada no Quênia reforçou aindamais tudo isso.

O fotógrafo, apesar de apreciar o aparente desen-volvimento de Nairobi, sentiu-se intimidado pelahostilidade racial presente na capital, e partiu nosegundo dia para realizar seu ensaio em MasaiMara, seu principal intuito no país. Tive muita sor-te em conhecer o chefe da tribo Masai, e ter sidoacompanhado por ele em quase todo meu traje-to pelas vilas que cercam a tribo em geral. Eleme explicou sobre os perigos de se viver por ali,sobre a cultura milenar que ainda seguem, emuitas histórias sobre as famílias e o primeiromasai, que é o pai de todos, a pessoa que geroutoda a comunidade.

A dieta deles é basicamente leite com sangue, efarinha com água. As condições de higiene sãoprecárias, e as crianças vivem com moscas por

Dry Fountain’s Harvcest

Page 11: Cesta Básica Capítulo 14

todo o corpo, principalmente no rosto. A belezadas savanas é digna deste povo tão amável esingelo. Mesmo como turista, após três dias, metratavam pelo nome, dividiam suas experiênci-as, com pouca distinção. Aqui em Masai Mara,há um mercado de artesanatos incríveis, e é re-almente uma pena que meu dinheiro tenha aca-bado. Além de querer levar estas lembranças,gostaria muito de ajudá-los, pois o artesanato éuma das principais fontes de renda da tribo.

Cheguei ao topo da montanha, bem distante docentro de Masai Mara, onde vive a senhora maisvelha da tribo. O nome dela é Koko e sou real-mente iluminado por ter conseguido esta ima-gem raríssima desta verdadeira lenda viva datribo. É muito estranho falar em fotografar aalma, mas é o que venho sentindo quando foto-grafo alguém aqui; não vejo mais através dalente um corpo, um semblante, uma beleza físi-ca exposta, mas sim uma alma, uma luz.

Plano de Vôo: O Retorno

A história e suas guerras construíram asfronteiras e limites, e cada povo que plan-

tou nestes espaços suas culturas e tradiçõeslevaram ao longo de várias gerações o es-pírito comum que ali foi construído. Mesmoque por meio de uma convenção política ede interesses excusos, a interdependênciaque se cria em uma nação é digna de fato-res que atingem patamares de união quaseque familiares, e pude sentir muito isso nospaíses africanos que conheci.

Muitas vezes ao voltar para o Brasil depois deum ensaio, escuto muitas críticas sobre meu es-tilo e escolhas focadas no trabalho. Talvez nãoentendam que minhas viagens como fotógrafonão se tratam somente de ensaios profissionais,mas sim de um ensaio humano, para revelar aespiritualidade que a cidade engole; outro pas-so para a vida que se esconde atrás das longasnoites sem dormir e sem motivos para sorrir, eque ao menos para mim, agora, se revela comouma infinita estrada a ser descoberta na razãodo desconforto, da precariedade de um pulmãoesfumaçado pela poluição, na fragilidade de umsangue tomado pela malária, e da dignidade deser alguém que pode amar em qualquer umadestas condições.

Koko