Cezar Migliorin

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    Para Cezar Miglio rin, um coleti vo secaracteriza por sua multiplicidade,desmesura e atualizao singular(se forja entre obras e pessoas comum brao estendido para o caos).

    O autor ressalta ainda a importnciado espao, que no se reduz a umateli ou a um centro de negcios,mas abriga as dimen ses eco nmicas,produtivas, cria tivas e fe stivas do ssujeitos. E, claro, em algumlugar sempre h alguma infiltraoou goteira, ambas com sua beleza.

    CEZAR MIGLIORIN

    O QUE UM COLETIVO

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    Quando diversos grupos de cinema e audiovisual passam a sedenominar coletivos, quando a Coca-Cola lana uma campanha naInternet estimulando os consumidores a fazerem parte do ColetivoCoca-Cola, quando os funcionrios do Ministrio da Cultura avisamque iro incentivar os coletivos ou quando, em debates pblicos,cineastas e artistas dizem que no aguentam mais falar em coletivos, hora de desacelerarmos um pouco para tentar tracejar minimamente

    o que seja um coletivo.

    MULTIPLICI DADES

    s vezes preciso comear pelo bvio. Um coletivo mais que um.Certo, acho que at a h consenso por mais que um sujeito sozinhopossa ser muitos. Entretanto, ao colocarmos assim, restam outrasvariveis importantes. Um coletivo mais que um e aberto. Essa umaprimeira caracterstica que evita que tratemos os coletivos como umgrupo, como algo fechado; melhor seria dizer que um coletivo antes umcentro de convergncia de pessoas e prticas, mas tambm de trocas emutaes. Ou seja, o coletivo aberto e seria, assim, poroso em relao aoutros coletivos, grupos e blocos de criao comunidades.

    Tal prtica coletiva no significa que um coletivo se crie simplesmentecom todos produzindo junto: ele se cria porque pessoas compartilhamuma intensidade de trocas maiores entre elas do que com o resto dacomunidade, do que com outros sujeitos e prticas e, em um dadomomento, encontram-se tensionadas entre si. O coletivo, assim, uma formao no de certo nmero de pessoas com ideais comuns,mas de um bloco de interesses, afetos, dilogos, experincias aosquais certo nmero de pessoas adere, reafirmando e transformandoesse mesmo bloco. Um coletivo no faz unidade, mas formado porirradiao dessa intensidade, um condensador, agregador de sujeitose ideias, em constantes aproximaes, distanciamentos, adeses edesgarramentos. Um coletivo , assim, fragilmente delimitvel seja

    pelos seus membros, seja por suas reas de atuao e influncia,e seus movimentos um novo filme, um festival, uma intervenourbana ou poltica no se fazem sem que o prprio coletivo setransforme e entre em contato com outros centros de intensidade.Certo, toda criao coletiva, quando criamos estamos em dilogo;desde os gregos o indivduo s concebvel em relao. No hpgina em branco, a comear pela lngua e pela prpria pgina invenes coletivas. Toda criao um diferenciar-se, uma operao

    de montagem com o que o mundo nos d. Entretanto, no com tudoe com todos que estabelecemos o mesmo nvel de interao e troca.Nesse sentido, um coletivo um campo de troca privilegiado, umaconcentrao de encontros de intensidade distinta.

    DESME SURAS

    Podemos ainda afirmar que, em termos de desejo, investimento,criao, um coletivo est sempre em estado de crise, uma vez que seusmembros no se articulam em funo de uma institucionalidade, de umcontrato ou de uma posio na cadeia produtiva, mas por conta de umaafinidade que se concretiza em aes em tempos variados. Um filme,um roteiro, uma obra, uma ideia. A crise constante assim determinadapela heterogeneidade necessria e pelas mltiplas velocidades queconstituem um coletivo. E a manuteno da intensidade que atravessaum coletivo depende da possibilidade de suportar e fomentar acoabitao de velocidades distintas, presenas inconstantes e dedicaesno mensurveis em dinheiro ou tempo, uma vez que so as intensidadestransindividuais que garantem a fora irradiadora do coletivo. Porexemplo, um sujeito ou gesto que pouco se faz presente fisicamente pode

    ser decisivo para a manuteno do coletivo como intensidade de conexocom outros coletivos, foras e criaes, permitindo a participao emredes que os transcendem. A instabilidade essencial de um coletivo estabelecida por investimentos e experincias no mensurveis, epor isso um coletivo precisa conviver com regimes de trabalho nopautados pela lgica da medida seja ela temporal ou econmica.Voc trabalhou menos que eu, voc ganhou mais que Fulano, voc noconsertou o vazamento. Sim, s vezes a manuteno de um coletivo seassemelha quela de uma casa. Essas acusaes negam o coletivo nono trabalhou ou no ganhou, mas na insistncia no voc em relaoao vazamento, como nos lembra Gilles Deleuze, todo sistema hidrulicodepende da fluidez do lquido e das paredes dos canos. 1

    Frequentemente um coletivo pode ter um lder ou um sujeito que ganhamuito dinheiro ou algum de grande destaque em sua rea. Esse pontofora da curva s se estabelece uma vez que ele entra em uma narrativaque atravessa o coletivo o sucesso financeiro, a lgica da celebridade e passa a operar dentro de uma hipersignificao dessa narrativa nointerior do coletivo. As crises dos coletivos so, frequentemente, formasde incorporar narrativas externas que tambm o constituem semque essas narrativas estandardizem a tenso do mltiplo que configura

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    Sobre os sistemashidrulicos, ver Tratado de

    nomadologia: a mquina deguerra, em DELEUZE eGUATTARI, 1997b.

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    um coletivo. A crise se configura como um processo de desmanche dahipersiginificao das narrativas duras. A lgica do sucesso que estem tudo e hierarquiza uma empresa, uma famlia, uma sala de aulatorna-se hipersignicante em um coletivo se ele se verticaliza e perde aintensidade de conexo. A crise torna-se uma forma de fazer o pontofora da curva se assemelhar ao lder que Pierre Clastres descreve emseu livroA sociedade contra o Estado. Em determinada tribo estava ntida

    a necessidade de haver um chefe. Sua incumbncia era bastante clara:como todo chefe, ele deveria falar para a tribo. Todos os dias, no mesmohorrio, o chefe se deitava em sua rede e falava. Entretanto, ningumo escutava. As crianas brincavam em volta e os adultos seguiam emseus afazeres. Se porventura um desses chefes se tornasse um oradorescutado e suas palavras comeassem a significar na tribo, ele logoera substitudo. Lembremos ainda os lobos caadores de Elias Canetti,citados por Deleuze:

    Nas constelaes cambiantes da matilha, o indivduo se manter

    sempre em sua per iferia. Ele estar dentr o e, logo depois, na borda,na borda e, logo aps, dentro. Quando a matilha se pe em crculo ao

    redor de seu fogo cada um poder ter vizinhos direita e esquerda,

    mas as costas esto livres, as costas esto expostas natur eza selvagem(Canetti, 1966apud DELEUZE, 1997a: 45).

    Reconhece-se a posio esquizo, estar na perifer ia, manter-se ligado

    por uma mo ou um p... Opor-se- a isto a posio paranoica do

    sujeito de massa, com todas as identicaes do indivduo ao grupo,

    do grupo ao chefe, do chefe ao grupo; estar bem fundido com a massa,

    aproximar-se do centro, nunca car na periferia, salvo prestando

    servio sob comando (DELEUZE, 1997a: 45).

    Esse parece ser o frequente desafio dos coletivos. Quando um saida curva, ou se torna um desgarrado do mltiplo, preciso inventarestratgias para que sua fora pessoal retorne ao coletivo e a narrativade um no se sobreponha ao todo. Cada linha reta, cada narrativa forte atingida para logo ser abandonada, virar comdia no coletivo sem quea linha reta precise ser quebrada. Que o sucesso e o dinheiro no nosabandonem! Assim, quando um coletivo se dissolve, no h fracasso,a menos que a dissoluo se d pela adeso a ordens que escapam sinvenes do coletivo, s prticas dominantes que impossibilitaro tantoseu movimento quanto a existncia dos indivduos ss e associados,simultaneamente. O fracasso a hiprbole da linha reta.

    O coletivo pode ser formado por uma srie de indivduos que, olhandopara o fogo, para alguma centralidade, trazem todo um mundo nas costas.Diferentemente das pirmides, no na acumulao de blocos iguaisque se dar a construo de algo, mas no encontro no hierarquizado dosmundos que trazemos nas costas. E so esses mundos que nos coletivosso mediados. Quando a filtragem dos mundos se d de maneira dura eexterior aos coletivos, ele perde o sentido.

    ATUALIZAES

    H uma pragmtica dos coletivos. Eles se efetivam em ato, nas atualizaesdos encontros que podem se dar das mais diversas formas: obras,filmes, seminrios, livros, invenes simblicas e econmicas. Quandodestacamos o carter processual de muitas obras feitas por coletivos, talcaracterstica no se deve ao fato de serem eles grupos ou produtorasque se forjam apenas para a execuo de algo, mas ao fato de haver,nessas obras, uma parte da intensidade de estar junto, com evidentesconsequncias para a esttica das obras. Trabalho e vida se atualizamem obras, fundamentais em vrios sentidos, mas nunca tomadas comoo fim do coletivo. Estar junto, fazer, conectar, assim as obras so tambm

    contaminadas pela fora do coletivo. Uma produtora produz filmes.No limite, um coletivo pode ou no produzir filmes, e se produz hojepode deixar de produzir adiante. Quando a lgica dos coletivos ganhaintensidade, para alm da pura retrica conectivista ou coletivista, pareceser justamente o momento em que artistas, cineastas e documentaristasmais exploraram a ideia da obra como disparador de encontros, apostandoem uma intensificao da comunidade por meio de instalaes flmicas,site specific, espacializao da msica, desespecificao das artes einveno de maneiras de ocupao do espao. As obras so atravessadaspor uma investigao em torno da organizao entre corpos e imagens,normalmente no pautada por uma centralidade roteiro, autor, artista.

    Jacques Rancire (2003) faz uma crtica veemente grande parte daproduo contempornea em artes plsticas que opta por dispositivosrelacionais e tratada como arte essencialmente poltica. Rancirecritica a falta de conflito e a tendncia enfaticamente consensual dasobras que se fiam em um estar junto da comunidade e em pequenosrearranjos do grupo. Assim, ele dir que essas obras operam dentro deum regime tico ou seja, meramente prolongando o ethos, as formasde ser da comunidade, sem comprometer a organizao das partes dacomunidade, aqueles que tm direito fala e ao sensvel.

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    A revoluo, que fica como um pano de fundo dessa crtica, efetivamenteno tem lugar. Mas seria excessivamente redutor desconsiderar osefeitos micropolticos de obras que no operam por amplas rupturas,mas so agregadoras e ao colocarem junto podem, sim, tocar o limitedas harmonias possveis quando se est em tenso com o real. Para isso,no basta estar junto, mas preciso atualizar o contato: diferena que seencontra com a diferena. Nesse sentido, um coletivo se forja entre obras

    e pessoas com um brao estendido para o caos um outropotencial.

    ESPAOS

    Como os sistemas hidrulicos, os coletivos existem atravessados porfluidez e abertura, disponveis a novas conexes, mas ao mesmo tempodependem de pontos fixos de convergncia. Caso contrrio, a dispersoimpede a configurao de um ponto de tenso, de um irradiador deintensidade. Esse ponto de convergncia pode ser um espao, umambiente em que sujeitos, ideias e disperses de todas as naturezas sexuais, alucingenas ou depressivas encontram a possibilidade decoexistir. O espao se constitui frequentemente como catalisador e comorazo para a manuteno do coletivo, mesmo quando nada se conecta,

    mesmo quando as redes no se fazem ou quando pouco se materializa.

    O espao de um coletivo no um ateli nem um centro de negcios,mas tende a contemplar as dimenses econmicas, produtivas, criativase festivas dos sujeitos que o constituem. Atravessado por vrias ordens epresente em configuraes de trabalho que no esto preestabelecidas,o espao tende a ser ponto de convergncia mas, no seu interior, a fluideztambm grande: novas paredes aparecem, outras caem; mudanas desala, cadeiras que se deslocam de um lugar para outro, paredes abrigamora uma imagem, ora outra, e o telhado ganha novos contornos paraevitar o excesso de calor. Mesmo o espao de convergncia e consumode comida, caf e drogas tende a ser mvel, apesar de frequentementeser aquele que resiste mais transformao. E, claro, em algum lugarsempre h alguma infiltrao ou goteira, ambas com sua beleza.

    REDE S

    Finalmente, os ltimos anos nos apresentaram um tipo de mobilizaoem torno do cinema e do audiovisual que traz singularidades para ahistria dos coletivos. Por questes tecnolgicas, polticas, econmicas esubjetivas, vimos novas redes de produo e consumo se forjarem. Essas

    redes produziram muito e barato, baixaram filmes de todas as pocas,transformaram as polticas pblicas, tensionaram o Estado, inventaramcursos de cinema e audiovisual em muitas cidades, multiplicaram oscineclubes e festivais, fizeram o audiovisual muito presente em ONGs,escolas e associaes as mais diversas, inventaram revistas de crtica etc.No se trata de valorar aqui esse processo, mas de perceber que a noode coletivo reaparece em um contexto inalienvel dessa configurao

    que atravessa as vidas e essas vrias redes sociotcnicas. Diria, ento,que uma das caractersticas dessas redes estabelecer a conexo entrecoletivos e que os coletivos aparecem como uma tentativa micropolticade sincronia com movimentos de redes que os ultrapassam e para asquais eles so fundamentais. O coletivo um ponto na rede e, tambm,ele prprio uma rede. Na construo de redes, acentradas, entremltiplos atores em um espao ilimitado, os coletivos aparecem comocentros de concentrao de ideias, pessoas, criao, foras de onde novasconexes podem sair para compor outras redes.

    Uma rede no por princpio um valor, mas difcil pensarmos umcinema, uma arte ou uma comunicao que se forje de maneira potentee democrtica e no passe pela ampliao dessas redes de pessoas,

    tecnologias, polticas e criaes. Ser afetado por um filme, como espectadorou como produtor, passar a fazer parte de um mundo, de uma comunidade,dessas redes sociais e tcnicas. Nesse sentido, sempre houve coletivosna histria das artes, mas eles existem enquanto se diferenciam notempo, enquanto esto engajados com o que varia no presente e com aspossibilidades de atualizao criativa, poltica e subjetiva que no se repetemno tempo. Coletivos existem nos atos que afirmam o presente, em operaesque no encontram resposta em outro lugar, mas nas prprias prticas.

    CANETTI, Elias. Masse et puissance. Paris : Gallimard, 1966.

    CLASTRES Pierre. A sociedade contra o Estado. So Paulo: Francisco Alves, 1978.

    DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. So Paulo:Editora 34, 1997a. v. 1.

    ____. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. So Paulo: Editora 34, 1997b. v. 5.

    RANCIRE, Jacques. Le destin des images. Paris: La Fabrique, 2003.

    VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Encon tros. Rio de Janeiro: Azoug ue, 2008.