CHAGAS, Mário. Há uma gota

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    1a Parte: Vulco

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    1. H UMA GOTA DE SANGUE EM CADA MUSEU:preparando o terreno

    (...) a coleo e seu sinal de sangue; a coleo e seurisco de ttano; a coleo que nenhum outro imita.Escondo-a de Jos, por que no ria nem jogue foraesse museu de sonho.Carlos Dummond de Andrade (apud Pessanha[1989:1])

    Assim como M.A. reconhece e afirma que H uma gota de sangue em cada poema, assim tambm, parafraseando o poeta,queremos reconhecer e sustentar que h uma gota de sangue em cadamuseu.

    A possibilidade da parfrase ancora-se no reconhecimento deque h uma veia potica1 pulsando nos museus e na convico de que

    tanto no poema quanto no museu h um sinal de sangue a lhesconferir uma dimenso especificamente humana. Este sinal desangue tambm um inequvoco sinal de historicidade, decondicionamento espao-temporal. Admitir a presena de sangue nomuseu significa tambm aceit-lo como arena, como espao deconflito, como campo de tradio e contradio. Toda a instituiomuseal apresenta um determinado discurso sobre a realidade. Este

    discurso, como natural, no natural e compe-se de som e desilncio, de cheio e de vazio, de presena e de ausncia, de lembranae de esquecimento.

    A aceitao do museu como arena e campo de luta estbastante distante da idia de espao neutro e apoltico de celebraoda memria daqueles que prematura e temporariamente alardeiam oslouros da vitria. No entanto, desde o nascedouro, os museus - mesmo

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    estruturados sobre bases positivistas de celebrao da memria devultos vitoriosos e de culto saudade de heris consagrados por

    tradio inventada2 - esto indelevelmente marcados com os germesda contradio e do jogo dialtico.

    O vocbulo museu, como se sabe, tem origem na Grcia, noTemplo das Musas (Musein), edifcio principal do InstitutoPitagrico, localizado em Crotona (Sculo VI a.C.)3. As musas, porseu turno, foram geradas a partir da unio mtica celebrada entre Zeus(o poder e a vontade) e Mnemsine (a memria).

    A identificao da origem grega e mtica do termo museu notem nada de novo. Mltiplos so os textos de museologia que trazemessa referncia. Avanando um pouco pode-se reconhecer, ao lado dePierre Nora (1984), que os museus vinculados s musas por viamaterna so lugares de memria (Mnemsine a me das musas);mas por via paterna esto vinculados a Zeus, so estruturas e lugaresde poder.

    Assim, os museus so a um s tempo: lugares de memria ede poder. Estes dois conceitos esto permanentemente articulados emtoda e qualquer instituio museolgica.

    fcil compreender, por esta picada mitolgica, que osmuseus podem ser espaos celebrativos da memria do poder ouequipamentos interessados em trabalhar democraticamente com opoder da memria.

    O reconhecimento de que a memria tanto pode servir para adominao e domesticao dos homens quanto para a sua libertao,foi feito por Jacques Le Goff (1984:47) em um dos textos mais citadosno meio museolgico. Este reconhecimento coloca em evidncia adeficincia imunolgica da memria em relao ideologizao.Acrescentando a isso o fato de que a memria (provocada ouespontnea) construo e no est aprisionada nas coisas e sim

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    situada na dimenso interrelacional entre os seres, e entre os seres e ascoisas, teremos, ento, os elementos necessrios para o entendimento

    de que a constituio dos museus celebrativos da memria do poderdecorre da vontade poltica de indivduos e grupos, e representa osinteresses de determinados segmentos sociais. Por isso mesmo elestrazem, de modo explcito ou no, um indelvel sinal de sangue.

    Os museus celebrativos da memria do poder - ainda quetenham tido origem, em termos de modelo, nos sculos XVIII e XIX -continuaram sobrevivendo e proliferando durante todo o sculo XX.

    bvio que no se est falando aqui de museus esquecidos e perdidosna poeira do tempo; ao contrrio, a referncia tem por base modelosmuseolgicos que, superando as previses de alguns especialistas,sobrevivem por um processo de hemodilise sociocultural (permita-sea analogia) e continuam a deitar regras.

    Para estes museus, a celebrao ideolgica a pedra de toque.O culto saudade, aos acervos valiosos e gloriosos o fundamental.

    Eles tendem a se constituir em espaos pouco democrticos ondeprevalece o argumento de autoridade, onde o que importa celebrar opoder ou o predomnio de um grupo social, tnico, religioso oueconmico sobre os outros grupos. Os objetos, para aqueles quealimentam estes modelos museais, so cogulos de poder eindicadores de prestgio social. Distanciados da idia de documento,querem apenas monumentos. O poder, por seu turno, nestas

    instituies, concebido como alguma coisa que tem locus prprio evida independente. No se considera, por esta perspectiva, que o poderno est concentrado em indivduos ou grupos sociais, e simdistribudo entre os diversos feixes (linhas da teia) de relaes queinterligam os seres com os outros seres, e os seres com as coisas e como mundo.

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    A tendncia para celebrar a memria do poder responsvelpela constituio de acervos e colees personalistas, etnocntricas e

    monolgicas, tratadas como se fossem a expresso da totalidade dascoisas ou a reproduo museolgica do universal; como se pudessemexpressar a realidade em toda a sua complexidade ou abarcar associedades atravs de esquemas simplistas, dos quais o conflito banido por pensamento mgico e procedimentos tcnicos depurificao e excludncia.

    As relaes estreitas entre o Estado, os museus e as classes

    privilegiadas no Brasil tm favorecido o desenvolvimento de museusque distanciam-se da sociedade, que se incomodam pouco com o nocumprimento de funes sociais. No mera coincidncia o fato demuitos museus estarem fisicamente localizados em edifcios que umdia tiveram uma serventia diretamente ligada s estruturas de podercom alta visibilidade, tais como: Museu da Repblica e Museu doItamaraty - antigas sedes republicanas do poder executivo; Museu

    Imperial e Museu Nacional da Quinta da Boa Vista - antigasresidncias da famlia imperial; Pao Imperial - antiga sede do poderexecutivo; Museu Benjamim Constant - antiga residncia do fundadorda Repblica; Museu Casa de Rui Barbosa - antiga residncia de umdos ministros da Repblica; Museu Histrico Nacional - complexoarquitetnico que rene prdios militares do perodo colonial ( Fortede So Tiago, Arsenal de Guerra e Casa do Trem).

    A indicao desses poucos exemplos, convm esclarecer, noimplica a afirmao de que os museus surgidos com cartercelebrativo estejam maculados por pecado original e fadados a jamaisdesenvolver trabalhos de estmulo recepo crtica e maiorparticipao social. Ao contrrio, alguns deles dando provas de que amudana possvel, buscam transformar-se, gradualmente, em

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    equipamentos voltados democraticamente para o trabalho com o poderda memria.

    O diferencial, neste caso, no est no mero reconhecimento dopoder da memria e sim na colocao dos lugares de memria aoservio do desenvolvimento social, na compreenso terica e noexerccio prtico da memria como direito de cidadania e no comoprivilgio de grupos economicamente abastados.

    Trabalhar os museus e a museologia nesta perspectiva (dopoder da memria) implica afirmar o poder dos museus como

    agncias capazes de servir e de instrumentalizar indivduos e gruposde origem social diversificada para o melhor equacionamento de seuacervo de problemas. O museu que abraa esta vereda no estinteressado apenas em democratizar o acesso aos bens culturaisacumulados, mas, sobretudo, em democratizar a prpria produo debens, servios e informaes culturais. O compromisso, neste caso,no tanto com o ter e preservar acervos, e sim com o ser espao de

    relao e estmulo s novas produes, sem procurar esconder o seusinal de sangue.

    A memria, assim como a gota de sangue na atualidade,coloca-nos dramaticamente diante da vida e da morte. A vida envolveriscos, o reino do incerto. A morte o terreno das certezas.

    A existncia do museu - afirma Pessanha (1989: 1) -inscreve-se no conjunto de gestos humanos que tentam preservar da

    corroso do tempo os traos ou vestgios do j feito, j criado, jacontecido. Inscreve-se, assim, no conjunto de esforos e estratagemaspara resgatar o tempo perdido, por meio de algum tipo de reconstruonarrativa, fabulatria ou pretensamente cientfica. (...) O museu - nosentido de coleo pessoal, como o museu de sonho do poeta - todoconstitudo por cacos de loua antiga, ou enquanto instituio ,

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    portanto, uma tentativa de se remontar ao passado, ao que no maise deixou somente marcas, pegadas.

    Operando com objetos herdados ou construdos, materiais ouno-materiais, os museus trabalham sempre com o j feito e jrealizado, sem que isso seja, pelo menos em tese, obstculo s novasprodues e criaes culturais. Esta assertiva vlida tanto para osmuseus de arte contempornea, quanto para os museus vivos eecomuseus envolvidos com processos de desenvolvimentocomunitrio. preciso acrescentar citao de Pessanha - o que por

    ele no ignorado - que tanto se tenta justificar a preservao dopassado pelo passado, quanto pelo presente e pelo futuro; e que almdisso remontar ao passado , de algum modo, reinventar e remontarum passado, uma vez que dele guardamos apenas cacos, vestgios,reminiscncias.

    A tentativa de justificar (museologicamente) e remontar(museograficamente) o passado pelo passado assemelha-se a um

    esforo incuo de paralisao do tempo. A tentativa de remontar ejustificar o passado pelo futuro assemelha-se a um esforo de fugir dotempo. Resta, portanto, a perspectiva de compreender o passado pelopresente, como algo interferente na vida e interferido por ela. Comfreqncia os museus oscilam entre as duas posies anteriores.

    Importa perceber que, em qualquer hiptese, estamos diantede um modo de olhar, de uma perspectiva interpretante que traz em si

    a possibilidade de deformao. Em todo e qualquer museu este jogo,de cartas marcadas com sinal de sangue e de historicidade, acontece.Em todo e qualquer museu est em cena a apresentao (mais oumenos espetacular) de uma viso possvel sobre determinado fato,acontecimento, personagem, conjuntura ou processo histrico e no ahistria mesma.

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    O reconhecimento de que aquilo que se articula nos museusno a verdade pronta e acabada, e sim uma leitura possvel e

    historicamente condicionada, resgata para o campo museolgico adimenso do litgio: sempre possvel uma nova leitura; semprepossvel abrir gavetas no corpo das vnus museais e reabrir processosengavetados por interesses nem sempre nobres.

    claro que ao evitar a absolutizao corre-se o risco de ummergulho na relativizao absoluta. Os extremos se tocam,ensinavam os antigos taostas. O desafio, portanto, passa pela

    aceitao do diverso, dos mltiplos versos e dos mltiplos universos;pela compreenso da diversidade na unidade e da unidade nadiversidade; e passa tambm por uma dimenso tica: sem quererreduzir o outro ao eu (e vice-versa) importante perceber que o eu e ooutro crescem no encontro e nas relaes. E estas relaesespecificamente humanas so reflexivas, transcendentes, conseqentese temporais (Freire, 1979:32).

    Os museus - afirma Pessanha(1989:5) - se querem servir historicidade viva e portanto mltipla, no letal - se querem evitar orisco de ttano - devem encenar a pluralidade dos discursos retricosem confronto(...). Esta afirmao no implica sugesto de abandonode uma perspectiva nacional, e sim a indicao de que o nacional nose estabelece por uma tica de excludncia, e da mesma forma noimplica a defesa do imperialismo globalizante que, em nome do neo-

    liberalismo, busca destruir as polticas sociais.H uma gota de sangue em cada poema e, de igual modo,h uma gota de sangue em cada museu, e em tudo que criaohumana. A lio que queremos aprender com M.A. aquela queensina que no ocultando o conflito e fechando os olhos para asguerras que se alcana a paz; no pelo engodo e pela farsa daglobalizao que o colquio amoroso entre os povos se estabelece; e

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    tambm no pelo ocultamento das provas, pelo aviltamento edestruio dos outros, que o conflito desaparece.

    suave paz, grandiosa e lindaChegai! Ponde, por sobre os trgicos sucessos,dos infelizes que se digladiam,vossa varinha de condo!Tudo se apague! Este dio, esta clera infinda!Fujam os ventos maus, que ora esfuziam;que se vos oua a voz, no o canho.

    suave paz, meiga paz!...(M.A.,1980:15)

    NOTAS:

    1- La autntica comunicacin atravs de los museos ha engendradosiempre una forma de experiencia potica que es al mismo tiempo elnico fundamento de todas las consecuencias esperadas de esta

    comunicacin. (Sola, 1989:49)

    2- Por tradio inventada entende-se um conjunto de prticasnormalmente reguladas por regras tcita ou abertamente aceitas; taisprticas, de natureza ritual ou simblica, visam inculcar certos valorese normas de comportamento atravs da repetio, o que implica,automaticamente, uma continuidade em relao ao passado. Alis,

    sempre que possvel, tenta-se estabelecer continuidade com umpassado histrico apropriado.(Hobsbawn e Ranger, 1984:9)

    3- O instituto compreendia numerosas dependncias consagradas moradia, exerccios, jogos e artes. Seus vastos jardins plantados deciprestes e olivas, estendiam-se at o mar.(Mac, 1974:20)

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    2. OS MUSEUS E O SONHO: panorama museolgico brasileirono sculo XIX e incio do sculo XX.

    Os museus fazem parte, de modo claro, da casa desonhos da coletividade.Walter Benjamin (apud Montpetit [1992:84])

    Cada gerao se viu forada a interpretar esse termo

    - Museu - de acordo com as exigncias sociais depoca.Francis Taylor (apud Mendona [1946: 12])

    Museus, arquivos e bibliotecas espalhados por todo o mundo.Monumentos erguidos nas mais distantes cidades. Festas e exposiesnacionais e internacionais celebrando datas, fatos e acontecimentos

    prodigiosos desvinculados de causas e conseqncias, mas capazes decriar uma dramaturgia prpria, uma teatralizao de memria. Comosugere J. Le Goff (1984: 37) o sculo XIX assistiu a uma verdadeiraexploso do esprito comemorativo. dentro desse esprito que osmuseus proliferam e alcanam o sculo XX (Suano[1986: 49]).Naquele momento, o que acontecia no cosmos europeu, refletia-se, dealgum modo, no Brasil. No de hoje que olhamos o mar; no como

    quem medita no eterno movimento ou nas guas gensicas do parto,mas como quem aguarda o retorno do amor estrangeiro que partiu eque, oxal!, h de voltar com uma caravela de notcias religando-nos rede e nova ordem mundial. Olhamos o mar (de costas pro rio)como quem sonha no exlio com a terra que tem palmeira e cantode sabi.

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    Os museus brasileiros no sculo XIX apresentavam-se comouma espcie de materializao de fragmentos de sonho no exlio. A

    trajetria1 dessas instituies inicia-se com a chegada da famlia realportuguesa.

    A transferncia estratgica para o Brasil da famlia real, queencontrava-se numa linha de fogo cruzado entre os interessesfranceses e ingleses, gerou no panorama poltico, econmico e culturalda colnia um impacto sem precedentes.

    Ainda em 1808, alm do Banco do Brasil, do Hospital e

    Arquivo Militar, da primeira tipografia oficial e de diversas outrasreparties, foi criado o Horto Real de Aclimatao (atual JardimBotnico). A instalao da Corte no Brasil implicou investimentospblicos e particulares. Palcios e outras residncias foramconstrudos ou ampliados, o arsenal de marinha foi reformado, rgospblicos, que antes s existiam em Lisboa, passaram a funcionar noRio de Janeiro e a empregar nobres portugueses recm-chegados.

    A presena de um contingente aproximado de 15000 pessoasvindas da Europa para uma cidade colonial de clima tropical implicouainda a constituio de um sonho, qual seja: o de transplantar para anova sede da metrpole o modelo de civilizao europia, consideradocomo paradigma sem par.

    A realizao desse sonho envolvia a criao de equipamentose o desenvolvimento de aes que pudessem trazer para a cidade

    colonial a memria e os ares da Europa. Entre esses equipamentos eaes incluam-se: a Biblioteca Real (1810); o Teatro Real de SoJoo (1812) que tinha por modelo o Teatro So Carlos, em Lisboa; aEscola Real de Cincias Artes e Ofcios (1815); a Misso ArtsticaFrancesa (1816)2 e o Museu Real (1818)3.

    No decreto de criao desse padronmico museu D.Joo VIafirmava:

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    Querendo propagar os conhecimentos eestudos das Cincias naturais do Reino doBrasil, que encerra em si milhares deobjetos dignos de observao e exame, eque podem ser empregados em benefcio doComrcio, da Indstria e das Artes, quemuito desejo favorecer, como grandes

    mananciais de riqueza: Hei por bem quenesta Corte se estabelea um Museu Real,para onde passem, quanto antes, osinstrumentos, mquinas e gabinetes que jexistem dispersos por outros lugares,ficando tudo a cargo de pessoas que Eupara o futuro nomear. E sendo-Me

    presente que a morada de casas que nocampo de S.Anna ocupa o seu proprietrioJoo Rodrigues Pereira dAlmeida, reneas propores e cmodos convenientes aodito estabelecimento, e que o mencionadoproprietrio voluntariamente se presta avend-la pela quantia de trinta e dois

    contos por Me fazer servio: Sou servido aaceitar a referida oferta e que, procedendo-se competente escritura de compra paraser depois enviada ao conselho da Fazendae incorporada a mesma casa aos prpriosda coroa, se entregue pelo Real Errio comtoda a brevidade ao sobredito Joo

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    Rodrigues, a mencionada importncia detrinta e dois contos de reis.

    Thomaz Antonio Villa Nova Portugal, doMeu conselho, Ministro e Secretrio deEstado dos Negcios do Reino, encarregadoda presidncia do Meu Real Errio, o tenhaassim entendido e faa executar com osdespachos necessrios sem embargo dequaisquer leis ou ordens em contrrio.

    Palcio do Rio de Janeiro em 6 de junho de1818(D.Joo VI apud Netto, 1870:17)

    Ladislau Netto em seu livro Investigaes Histricas eCientficas sobre o Museu Imperial e Nacional, publicado em 1870,reconhecia que este decreto de redao grave e solene teve uma

    execuo mesquinha e falseada denunciando assim, o fossoexistente entre a lei no papel e a lei em ao, entre o aparentementedesejado e o efetivamente realizado.

    Folheando as sombrias pginas de seus anais - diz aindaLadislau Netto (diretor do Museu Imperial e Nacional no perodo de1874 a 1893) - julgamos estar diante dessa ferrenha apreciao comque eram e tm continuado a ser encaradas administrativamente as

    cincias, as letras e as artes no Brasil: dir-se-ia que s por ilusria eaparente satisfao aos estranhos tentara-se criar o primeiro e atagora o maior museu que possui o Brasil, museu cuja importantemisso, entretanto, j prendiam-se, como hoje, as mais ardentesesperanas do mundo cientfico e o amor prprio nacional4(Netto,1870:18)(grifo nosso).

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    Mesmo reconhecendo e denunciando que a criao do MuseuReal deu-se em bases ilusrias e de aparente satisfao aos

    estranhos, Ladislau Netto no deixou de sonhar com um grandemuseu que encarnasse as esperanas do mundo cientfico5 brasileiroe fosse capaz de exaltar o amor prprio nacional, tudo isso afinadocom o diapaso dos museus das cidades de Munique, Npoles,Copenhague, Estocolmo e Bruxelas. Para ele, o Museu Nacional,depois de ter passado por uma longa fase de descuido e apatia, foirecuperado a partir do anos 70 do sculo XIX, e com isso o Brasil

    pode, finalmente, erguer-se ao nvel das naes(1870:29). O prprioLadislau Netto no parece se dar conta de que os arqutiposmuseolgicos continuavam sendo buscados no exterior.

    Reproduo do modelo museolgico vigente no mundoeuropeu, o Museu Real, aberto ao pblico em 1821, reuniu um acervoproveniente em parte das colees da extinta Casa (museu) de HistriaNatural de Xavier dos Pssaros6. Posteriormente, este acervo foi

    acrescido das contribuies dos naturalistas que viajaram pelo Brasil:Langsdoff, Natterer, Von Martius, Von Spix e outros.

    Gradualmente, durante o sculo XIX, o Museu Real(Nacional) apresentou-se como um museu comemorativo da naoemergente e adotou uma prtica isolada, no sentido de dialogarexclusivamente com os centros europeus e americanos(Schwarcz[1989: 25]).

    Aps e durante o processo de Independncia, que se arrastoupor alguns anos, a intelectualidade brasileira estava, de uma maneirageral, empenhada na construo ritual e simblica da nao, problemaque cem anos depois seria renovado e atingiria o clmax nos anos 20 e30 do sculo em curso, e se imporia como um enigma para aatualidade.

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    Para a construo ritual e simblica da nao no bastava acriao de selos, moedas, bandeiras, hinos, armas e cores nacionais.

    Era preciso tambm, a exemplo de outros pases, constituir calendriose datas cvicas, fixar iconograficamente a imagem dos mandatrios danao, erigir monumentos, redigir documentos, elaborar um projetohistoriogrfico de nao independente, convocar artistas e outrosintelectuais para este projeto. Era preciso sobretudo constituir umanova inteligncia e estabelecer novos procedimentos de fixao dememria.

    A criao do Colgio Pedro II (1837), do Arquivo Nacional(1838), do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (1838) e acooptao de artistas plsticos da Academia Imperial de Belas Artesenquadram-se nos esforos de edificao de uma inteligncia e de umimaginrio sintonizado com os interesses do Estado Imperial que, adespeito das lutas internas, continuava sonhando com o modelo decivilizao europeu.

    Muitos foram os intelectuais brasileiros que no sculo XIXestudaram no Colgio Pedro II. A Academia Imperial de Belas Artesformou artistas que produziram obras que hoje encontram-seespalhadas pelos mais tradicionais museus do pas7. O InstitutoHistrico e Geogrfico Brasileiro, atuando num momento em que aformao na rea das cincias humanas (excetuando a jurdica) erapraticamente inexistente, exerceu um papel de relevncia nos campos

    da histria, da geografia, da arqueologia e mesmo da museologia.Segundo Guimares, M.L.S.[1988:8]os estatutos do IHGBapresentavam duas diretrizes bsicas: a coleta e publicao dedocumentos relevantes para a histria do Brasil e o incentivo, aoensino pblico, de estudo de natureza histrica. Estes mesmosestatutos estabeleciam as intenes do IHGB em manter relaes cominstituies, quer nacionais, quer internacionais, e em constituir-se

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    numa central, na capital do Imprio, que, incentivando a criao deinstitutos histricos provinciais, canalizasse de volta para o Rio de

    Janeiro as informaes sobre as diferentes regies do Brasil. Por estecaminho, o IHGB estabeleceu um modelo institucional quereproduziu-se em vrias provncias (So Paulo, Bahia, Pernambuco eMinas Gerais) e desenvolveu aes comemorativas epreservacionistas.

    Na segunda metade do sculo XIX intensificou-se aproliferao de atos que intencionavam comemorar e celebrar a

    memria do poder no Brasil. A Biblioteca Nacional implementouaes para a coleta de colees epigrficas e de manuscritos. O poetaAntnio Gonalves Dias em 1851 participou desse movimentocoletando e remetendo do Maranho para o Rio de Janeiro diversosdocumentos.

    A dcada de 60, marcada pela guerra com o Paraguai, assistiuao surgimento do Museu do Exrcito (1864), da Sociedade Filomtica

    (1866), que daria origem ao Museu Paraense Emlio Goeldi, e doMuseu da Marinha (1868). A criao de dois museus militares peloEstado Imperial brasileiro, num momento em que se travava umconflito armado internacional, inscreve-se com nitidez no espritocomemorativo do sculo XIX. Era preciso constituir uma tradio;construir o pedestal dos heris e celebr-los em bronze ou mrmore,povoar a memria com atos de bravura, herosmo, personagens

    ilustres e vultos invulgares8

    . O acontecimento da guerra representavauma dramaturgia capaz de iluminar determinados personagens, banh-los com a ptina da imortalidade, e colaborar com a construo danao de acordo com os moldes europeus. Em ltima anlise, os doismuseus militares so museus histricos de exaltao de umdeterminado modelo de nao. Isto se confirma com as aes deGustavo Barroso que, lanando mo de seu prestgio poltico, ir

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    promover a transferncia de boa parte do acervo desses museus para oMuseu Histrico Nacional, criado em 1922. A rigor, so estes acervos

    que, ao lado da coleo numismtica, iro constituir a base do projetobarrosiano, que ir transformar o sinal de sangue das armas, dosuniformes, dos bustos, das medalhas e das moedas, em sinal de glria.

    No ltimo quartel do sculo XIX foram criados ainda o MuseuParanaense (1876) voltado para a celebrao da histria do Paran e oMuseu Paulista (1895) instalado no monumento do Ipiranga, cujaconstruo foi iniciada em 1885, visando a celebrao da memria da

    Independncia, e concluda em 1890.O projeto enciclopdico delineado por H.Von Ihering para o

    Museu Paulista, como esclarece Schwarcz (1989: 41-47), ancorava-seno saber evolutivo, classificatrio das Cincias Naturais econstitua-se em modelo mimtico de museus europeus eamericanos.

    Segundo K.Pomian (1990), duas orientaes bsicas podem

    ser percebidas no conjunto dos denominados museus nacionais:

    1. Os museus que valorizam a civilizao e buscam sublinhara participao da nao no concerto universal e para issoprivilegiam as obras de arte de valor consagrado e ao seulado colocam os elementos da natureza e os artefatos depovos primitivos.

    2. Os museus que indicam a especificidade e aexcepcionalidade da nao e a sua trajetria no tempo,sublinhando os traos da histria nacional.

    Os museus brasileiros do sculo XIX enquadram-se, de umaforma ou de outra, na tipologia apresentada por K.Pomian. Elescolaboram com o projeto de construo ritual e simblica da nao;

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    organizam discursos com base em modelos museolgicosestrangeiros; buscam dar corpo a um sonho de civilizao bem-

    sucedida; guardam e s vezes apresentam sobejos de memria dessamatria de sonho. Mas quem sonha? As elites aristocrticastradicionais que sonham o sonho de um nacional sem nenhum sinalde sangue, sem a presena da cultura popular, dos negrosaquilombados, dos ndios bravios, dos jagunos revoltosos, dosfanticos sertanejos, dos rebeldes que no tm terra, mas tm nome,famlia e um cachorro preto (mefistoflica presena)9.

    Os museus fazem parte (...) da casa de sonhos dacoletividade, mas nem todos os sonhos da coletividade passam pelosmuseus.

    Jos Neves Bittencourt (1986:69), analisando a denominadapintura histrica produzida no sculo XIX a partir da AcademiaImperial de Belas Artes e o projeto (ou sonho) de construir umacivilizao de estilo europeu, sustenta que:

    o vivido atuou como fator corrosivo sobre osonhado, fazendo com que este ltimomudasse de sentido. Se no era possvelmudar a realidade forjada pelacolonizao, era possvel sonh-la, sonh-laeuropia, moderna, bela, limpa.

    Irrealizvel concretamente, a dimenso dosonho atinge uma tal potncia que acabacriando sua prpria realidade, umarealidade de aparncias que se cristaliza, deforma quase esquizofrnica, nas fachadasde pano pintado que servem de cenriopara os grandes eventos pblicos da poca.

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    Como no teatro, uma fachada de fantasia,um pano-de-fundo facilmente desmontvel

    no momento em que se encerra suautilidade.

    O espetculo de teatro de memria dramatizado pelos museus operade modo semelhante. este labirinto de sonho que se projeta comoherana museolgica no sculo XX, assumindo muitas vezes adimenso de um pesadelo.

    Em outras palavras: os modelos museolgicos dominantes nosculo XIX, ancorados no esprito comemorativo, distanciados dagota de sangue e alimentados pelas elites aristocrticas eoligrquicas brasileiras, projetam-se no sculo XX e reproduzem-se,sobretudo, nas regies perifricas afastadas da capital poltica eadministrativa do pas. As referncias intelectuais continuam sendoditados pelo Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, pela

    Academia de Belas Artes e pelo Museu Nacional, e, em menor escala,pelo Museu Paulista e pelo Museu Paraense Emlio Goeldi.

    Nesse contexto so criados: O Museu Jlio de Castilhos(1903) e o Museu Anchieta (1908), no Rio Grande do Sul; aPinacoteca Pblica do Estado (1906) em So Paulo e o Museu de Arteda Bahia (1918). A anlise dos acervos e das finalidades dessesmuseus confirma a assertiva. Apenas um exemplo: o Museu Anchieta

    rene colees de entomologia, ornitologia, animais empalhados,minerais e rochas do Rio Grande do Sul, fsseis de animais depequeno porte, conchas (coleo brasileira) e vegetais fsseis (coleoeuropia) e tem por finalidade pesquisar e divulgar diferentessetores da Histria Natural, dedicando-se principalmente fauna.Realiza tambm estudos do indgena brasileiro.(Almeida, 1972:51)

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    O panorama museolgico brasileiro, semelhana do queaconteceu em outros campos culturais, bem como na poltica e na

    economia, comeou a sofrer sensveis alteraes aps a PrimeiraGrande Guerra. Uma das explicaes para este fenmeno, sugereWerneck Sodr (1979: 55/56), deriva-se do fato do conflito militarinternacional ter afrouxado temporariamente os laos de dependnciapoltica e econmica e ter funcionado como barreira protecionistaestimulando a indstria nacional a produzir aquilo que antes eraimportado, visando a atender, sobretudo, as demandas do mercado

    interno.No plano cultural a situao no diferente. O perodo entre

    guerras favoreceu e estimulou a produo de bens culturais com vistasao mercado de idias com nfase no nacional. Desse mercado deidias participam grupos e indivduos com tendncias diferentes e atantagnicas.

    Nos anos 20, no Brasil, ainda que o debate em torno do

    nacional fosse a tnica dominante, ele (o debate) no estavasubmetido ao controle de um nico grupo. O nacional no seapresentava como alguma coisa pronta e definida partida ou mesmosubmetida a um nico olhar. Diferentes nacionalismos estavam em

    jogo naquele momento.Em carta dirigida a Carlos Drummond de Andrade (datada de

    18 de fevereiro de 1925), M.A. (1988:40) denuncia os diferentes

    nacionalismos:

    E a horas tantas voc levianamente diz quevamos acabar com as mesmas idias dumJoo do Norte10, por exemplo. Oh! Homerocochilou. A diferena to grande! Pracastigo lhe dou como tema fazer a distino

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    entre o nacionalismo dos Joes do Norte edo Sul e dos modernistas. (grifo nosso)

    A tese dos diferentes nacionalismos sustentada tambm porLuiz de Castro Faria (1995: 27-40) que, em texto publicado na SrieDebates - 2 (MINC/IPHAN), sob o ttulo Nacionalismo,Nacionalismos, dualidade e poliformia, refere-se presena nopanorama cultural brasileiro, no perodo entre guerras, de umnacionalismo retrico ou literrio, de um nacionalismo catlico11,

    tambm literrio, de um nacionalismo antilusitano e de umnacionalismo como poltica de Estado.

    Luiz de Castro Faria (apoiado em K.R.Minogue) sugere aindaque o debate em torno do nacional no Brasil, nesse perodo, sejaanalisado de acordo com trs etapas: 1a - agitao (marcada pelaSemana de Arte Moderna, 1922)., 2a - produo de identidade e 3a -consolidao (iniciada em 1937).

    Mesmo reconhecendo a importncia de se distinguir osdiferentes nacionalismos, em jogo no entre guerras, o que queremosrealar que a discusso do nacional e do popular no foi umainveno dos modernistas; ao contrrio, para participar do seu tempoeles precisavam aceit-la e enfrent-la apresentando respostas mais oumenos apropriadas.

    Como esclarece E.Hobsbawn: Se houve um momento em que

    o princpio da nacionalidade do sculo XX triunfou, esse foi o final daPrimeira Guerra Mundial, mesmo que isso no fosse previsvel nemintencional por parte dos futuros vencedores.(1990:159)

    M.A., enquanto trabalhador intelectual, sem dvida umafigura desse perodo. Ele convive com e vive o debate em torno donacional. A sua tica museolgica, as suas cartas de amizade e de

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    trabalho (escritas para serem publicadas - ou no?), a sua obra literriae as suas aes comprovam essa afirmao.

    O poeta apaixonado, das amizades exaltadas, vive com talintensidade o seu tempo e, em conseqncia, o debate em torno doBrasil e do nacional que passa a encarnar esse debate e a viver comdramaticidade no plano subjetivo problemas de ordem aparentementeobjetiva. Em carta (datada de 10 de novembro de 1924) ele escrevepara Carlos Drummond de Andrade:

    (...)li seu artigo. Est muito bom.Mas nele ressalta bem o que falta avoc - esprito de mocidadebrasileira. Est bom demais pravoc. Quero dizer: est muito bempensante, refletido, sereno,acomodado, justo, principalmente

    isso, escrito com esprito de justia.Pois eu preferia que voc dissesseasneiras, injustias, maldadesmoas que nunca fizeram mal aquem sofre delas. Voc uma slidainteligncia e j muito bemmobiliada... francesa. Com toda a

    abundncia do meu corao eu lhedigo que isso uma pena. Eu sofrocom isso. Carlos, devote-se aoBrasil, junto comigo. Apesar detodo o ceticismo, apesar de todo opessimismo e apesar de todo osculo 19, seja ingnuo, seja bobo,

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    mas acredite que um sacrifcio lindo. O natural da mocidade crer

    e muitos moos no crem. Quehorror. Veja os moos modernos daAlemanha, da Inglaterra, daFrana, dos Estados Unidos, detoda a parte: eles crem, Carlos, etalvez sem que o faamconscientemente, se sacrificam. Ns

    temos que dar ao Brasil o que eleno tem e que por isso at agorano viveu, ns temos que dar umaalma ao Brasil e para isso todo osacrifcio grandioso, sublime.(1988:22/23) (grifo nosso)

    A idia de um sacrifcio necessrio em termosestticos e de vida pessoal, visando a construo do Brasil e aadeso a valores de utilidade social mais forte, recorrente nacorrespondncia de M.A. (1988:26). como se ele prprio,mobilizando atvica religiosidade pag, precisasse encarnar atragdia, o bode (tragus) expiatrio e celebrar, com osacrifcio de sua alma, a alma coletiva de Dionisos.

    A alma aqui um princpio (ou hlito) de vida. Noter alma no viver por Si Mesmo e sim com o nimo deoutro. A alma (psiqu) ainda um elemento plstico mediadorentre Nous (esprito) e Soma (o corpo) e, neste sentido, elapode ser modelada, no est dada partida, nem permanece amesma sempiternamente.

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    NOTAS:

    1- A primeira experincia museolgica de que se tem notcia no Brasilcolonial data do sculo XVII e foi perpetrada na capitania dePernambuco, por ocasio do governo holands do Conde Maurcio deNassau-Siegen (1637-1644). Ali, no grande parque do palcio deVrijburg, foi instalado um museu, aberto ao pblico, contendo umobservatrio astronmico, jardins botnico e zoolgico especializadosna coleta, conservao, estudo e exposio de espcimes da flora e

    fauna tropicais. Experincia isolada, sem continuidade edesdobramentos. (Mello, J.A.G.[1978: 102-104]) e (Chagas e Oliveira[1983: 181-185]) .

    2- Com a Misso Artstica Francesa, chefiada por J. Lebreton, vierampara o Brasil os pintores Nicolas Antoine Taunay e J. B. Debret, oescultor Auguste Marie Taunay, o arquiteto Grandjean de Montigny e

    Simon Pradier. Ao grupo inicial juntaram-se posteriormente ZeferinFerrez (gravador), Marc Ferrez (escultor) e Segismundo Neukomn(msico e compositor).

    3- O Museu Real foi posteriormente denominado de Museu Imperial eNacional e hoje conhecido como Museu Nacional da Quinta da BoaVista.

    4- O livro Investigaes Histricas e Cientficas sobre o MuseuImperial e Nacional do Rio de Janeiro, publicado em 1870 peloInstituto Philomatico/Ministrio da Agricultura, obra rara. Umexemplar em boas condies de consulta encontra-se no MuseuHistrico Nacional.

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    5- O cientfico aqui ancora-se em paradigma evolucionista eclassificatrio.

    6- Em 1784, durante o governo de Luiz de Vasconcellos (vice-rei noperodo de 1779 a 1790), foi criado um Museu de Histria Natural,dirigido por Francisco Xavier Cardoso Silveira (Xavier dos Pssaros,por alcunha popular). Vinte e nove anos depois esse Museu foi extintoe o seu acervo foi transferido para a Academia Militar do Rio deJaneiro que funcionava na Casa do Trem, hoje incorporada ao

    complexo arquitetnico do Museu Histrico Nacional. SegundoLadislau Netto: Esse comeo de Museu, construdo sob as vistas doprprio Luiz de Vasconcellos pelos sentenciados das prises do Riode Janeiro, chegou a ter vivos nuns cubculos que lhe fizeram: umurubu-rei, dois jacars e algumas capivaras que foram remetidasdepois para o Museu de Lisboa.(Netto, 1870:11).

    7- As aes da Academia de Belas Artes intensificaram-segradualmente. Alm das exposies escolares organizadas por Debretem 1828 e 1830, foram levadas a efeito exposies gerais de belasartes nos anos de 1840, 1841, 1842 e 1843. Neste ltimo ano foiorganizada a Pinacoteca do Brasil com algumas obras trazidas daEuropa por Lebreton e outras pertencentes ao Conde da Barca.(LosRios Filho, A.M. de [1946:410-411]

    8- De acordo com essa mesma perspectiva, j havia sido inaugurado,em 1862, comemorando os quarenta anos da Independncia, no Largodo Rocio (atual Praa Tiradentes), o monumento a Pedro I. Trabalhodo escultor francs Louis Rochet, baseado em desenho do artista JooMaximiano Mafra.

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    9- Estes e outros temas foram includos na exposio Expanso,Ordem e Defesa, inaugurada em 1994 no Museu Histrico Nacional,

    coordenada por Solange S.Godoy, de acordo com proposta conceitualorientada pelo professor Ilmar R.Mattos. Vale conferir.

    10- Pseudnimo de Gustavo Barroso, fundador do Museu HistricoNacional e integralista militante.

    11- Temos aqui um interessante tema para investigao. A idia de um

    nacionalismo catlico sugere um confronto entre o pretensamentenacional e o pretensamente universal (catlico); alm disso a idiasugerida pela inverso dos termos, ou seja, a de um catolicismonacional, implica teorias e prticas freqentemente repudiadas pelocatolicismo propriamente dito (o catolicismo popular e sertanejo omelhor exemplo).

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    3. PROBLEMATIZANDO: mar (ou) rio de andrade?

    Nos mesmos rios entramos e no entramos, somos eno somos.Herclito de feso

    3.1.Tentativa de expor a ossatura

    No captulo anterior buscamos delinear a trajetria dos

    museus brasileiros no sculo XIX e incio do sculo XX evidenciandoque na teatralizao da memria por eles encenada possvel perceberfragmentos de um sonho (ou projeto) que anela esquecer asdeterminaes do passado colonial e dizer: a Europa aqui.

    Reservamos para este momento a apresentao das basestericas e metodolgicas que do ossatura nossa investigao.

    As questes que, guisa de bssola, nortearam o nosso

    trabalho so as seguintes:1. At que ponto as propostas museolgicas de M.A. representam

    consolidao ou rompimento com o pensamento modernista?2. Como se colocam na obra de M.A. - de modo especial naquela que

    est diretamente relacionada com a preservao do patrimniocultural, com a memria e a museologia - as questes referentes identidade nacional e cultural popular?

    3. Sendo o museu um lugar privilegiado de construo de memria,no seria tambm um baluarte da tradio? Em que sentido ummuseu pode ser ruptura? Como so tratadas as idias de coleo emuseu pelo poeta modernista?

    O questionamento aqui desenvolvido parte (evidentemente) dopressuposto de que h um pensamento museolgico em M.A.. Ao

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    tempo em que buscamos verificar as razes da materializao (ou no)desse pensamento, buscamos tambm perceber as suas articulaes

    com a militncia artstica, pedaggica e poltica do autor de O Carroda Misria.

    3.2. Marcos (alemes, italianos e brasileiros)

    Dois marcos temporais, como foi antecipado, delimitam oestudo: o primeiro (1917) - indica o lanamento do livro que inaugura

    a carreira de escritor de M.A. (H uma gota de sangue em cadapoema); o segundo (1945) - indica a sua morte fsica.

    O estabelecimento desse balizamento temporal serviu deinspirao para que buscssemos identificar intelectuaiscontemporneos do autor de Macunama capazes de fornecerferramentas para uma anlise crtica do seu pensamento. Por estecaminho deparamo-nos com Antonio Gramsci, que vivendo na Itlia

    no perodo do fascismo, dedicou-se a pensar do crcere a questocultural; e tambm com Walter Benjamin que viveu na Alemanhadurante a ocupao nazista, e dedicou-se tambm a pensar o cultural.

    Do primeiro destacamos a obra: Os Intelectuais e aOrganizao da Cultura, e do segundo destacamos: O autor comoprodutor; A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica eSobre o conceito de Histria. Entre os contemporneos, socorremo-

    nos de Pedro Demo (Metodologia Cientfica em Cincias Sociais),Marilena Chaui (Conformismo e Resistncia) , Renato Ortiz(Cultura Brasileira e Identidade Nacional) e Carlos GuilhermeMota (Ideologia da Cultura Brasileira - 1933/74). Com acolaborao destes e outros autores buscamos abordar a obra de M.A.de forma crtica. Como esclarece Marilena Chaui :

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    Normalmente se imagina que a crticapermite opor um pensamento verdadeiro a

    um pensamento falso. Na verdade, a crticano isso (...). A crtica um trabalhointelectual com a finalidade de explicitar ocontedo de um pensamento qualquer, deum discurso qualquer, para encontrar oque est silenciado por esse pensamento oupor esse discurso. O que interessa para a

    crtica no o que est explicitamentepensado, explicitamente dito, masexatamente aquilo que no est sendopensado de maneira consciente. Ou seja, atarefa da crtica fazer falar o silncio,colocar em movimento um pensamento(...).

    O que buscamos, portanto, no o tecido visvel, mas o fioinvisvel que o constitui, bem como o vazio cuja presena lhe dsentido. Est claro que para captar o silncio no discurso e o vazio notecido, para colocar o inerte em movimento, no abrimos mo de umaviso processual dialtica. Neste caso, a prpria obra de M.A. vistaem processo, em permanente troca com o seu tempo e com os outrostempos. Ela influencia e sofre influncias. Considerar a obra de M.A.

    em processo admiti-la em presena, em vir-a-ser, , em ltimaanlise, admiti-la como obra que se constri e reconstripermanentemente.

    Em Renato Ortiz e em Carlos Guilherme Mota colhemossubsdios para pensar as construes ideolgicas no processo deformao da denominada cultura brasileira, e como o intelectual atua

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    como mediador simblico entre o popular e o nacional. Comoesclarece Renato Ortiz:

    (...)O processo de construo da identidadenacional se fundamenta sempre numainterpretao.(...) se os intelectuais podemser definidos como mediadores simblicos porque eles confeccionam uma ligaoentre o particular e o universal, o singular e

    o global.

    M.A. aqui considerado um mediador simblico e o museu,uma das instncias concretas de mediao.

    Por honestidade, convm esclarecer que ao privilegiar aabordagem dialtica no estamos assumindo a posio domaterialismo histrico e dialtico, at mesmo porque, como esclarece

    Pedro Demo, esse ponto de vista no inaugura nem apresenta a ltimapalavra sobre dialtica.

    O suporte terico base necessria, mas no limite.Reconhecemos, e aqui vai uma diferena marcante, o livre direito depensar, ainda que a liberdade no seja absoluta, o direito sejaconstruo e o pensamento sofra os condicionamentos histricos.

    3.3.Objeto em construo: aceitando a realidade confusa.

    A partir do reconhecimento de nossa ignorncia sobre opensamento/discurso museolgico de M.A., reconhecemos tambmque o nosso objeto est em construo e apresenta-se como um campode interao possvel entre o sujeito e o objeto.

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    A silhueta do nosso objeto de estudo no est totalmentedemarcada, a sua imagem no totalmente ntida. Como esclarece

    Marilena Chaui, em entrevista publicada no Jornal do Brasil(14/11/92): (...) as idias s agarram a realidade se elas forem toopacas, complexas, confusas e contraditrias quanto a realidade .

    3.4. Tipologia da pesquisa: trabalhando sobre sobejos

    O que nos resta de M.A. aps sua morte fsica? Resta-nos a

    sua obra. Segundo Chaui (1983-XXI), Claude Lefort fala na obra depensamento exatamente como obra, isto , trabalho da reflexo sobrea matria da experincia, trabalho da escrita sobre a reflexo etrabalho da leitura sobre a escrita. O texto, por sua prpria forainterior, engendra os textos de seus leitores que, no sendo herdeirossilenciosos da sua palavra, participam da obra na qualidade depsteros. Resta, portanto, de M.A. obra de pensamento para a obra

    (trabalho) dos psteros. E esta obra de pensamento revela-se emdocumentos. Por esta razo, optamos para a execuo desse texto poruma anlise documental, na forma como a conceituam Ldke eAndr (1986: 25-44).

    O termo documento tem o sentido de suporte de informaopassvel de crtica1. Assim, o que buscamos analisar no so osdocumentos em si, mas as informaes de que so suportes.

    Compreendendo documento por este caminho, fica bastante claro queo conceito se aplica a uma carta, a um livro anotado, uma escultura,uma fotografia, um objeto de uso pessoal etc.

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    3.5.Fontes de da(r)dos

    O nosso universo de estudo a obra (terica/prtica) de M.A..Consideramos como elementos desse universo no apenas os escritospoticos, contos, romances, ensaios, crnicas e crticas de M.A., mastambm os seus outros escritos, incluindo a a sua fartacorrespondncia, os seus projetos e anteprojetos, os seus artigos ediscursos. De forma pouco tradicional consideramos como fazendoparte da obra de M.A. a sua biblioteca, as suas colees de

    instrumentos musicais e de obras de arte, e ainda o trabalho quedesenvolveu frente do Departamento de Cultura em So Paulo, noperodo de 1934 a 1938.

    Na categoria de fontes secundrias encontram-se os textostrabalhados a partir da obra de M.A..

    3.6.Fichinhas de leitura

    No mais, tomamos o cuidado de no prender nas teias doacademicismo a obra de um escritor que se considera umantiacadmico pesquisador(M.A .,1991:132). Ao seu lado queremosafirmar o direito de exercer esse profundamente humano dom que afaculdade de errar2.

    Que diabo! - diz M.A. em carta para CarlosDrummond de Andrade - estudar bom e eutambm estudo. Mas depois do estudo do livro e dogozo do livro, ou antes vem o estudo e gozo da aocorporal(...). Veja bem, eu no ataco nem nego aerudio e a civilizao, como fez o Osvaldo nummomento de erro, ao contrrio respeito-as e c

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    tenho tambm (comedidamente, muitocomedidamente) as minhas fichinhas de leitura.

    Mas vivo tudo. Que passeios admirveis eu fao,s! Mas ningum nunca est s a no ser emespeciais estados de alma, raros, em que o cansao,preocupaes, dores demasiado fortes tomam agente e h essa desagregao dos sentidos e daspartes da inteligncia e da sensibilidade.Ento a gente fica s por milhes de amigos que

    tenha ao lado. Se no, no. Um sentido conversacom outro, a razo discute com a imaginativa etc. e uma camaradagem sublime de pessoas tontimas como nenhum Castor e Plux ideais. Eento parar e puxar conversa com gente chamadabaixa e ignorante! Como gostoso! Fique sabendoduma coisa, se no sabe ainda: com essa gente

    que se aprende a sentir e no com a inteligncia e aerudio livresca. Eles que conservam o espritoreligioso da vida e fazem tudo sublimemente numritual esclarecido de religio. (1988:21-22)

    NOTAS:

    1- Evitamos uma discusso mais prolongada sobre o conceito dedocumento, considerando que isso foi realizado no livro Muselia(Chagas, 1996).

    2- Ver carta de M.A. para Cmara Cascudo, datada de 18 de junho de1934. (1991:132-133)