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ÉTICA E ENGENHARIA GENÉTICA: PODE O FILÓSOFO AJUDAR?

Charles Feldhaus*

Richard Hare, no primeiro capítulo de seu - Essays on Bioethics

- Medical Ethics - Can the Moral Philosopher Help?- avalia em que

medida o pensador na área da filosofia moral pode contribuir aos

intrincados debates da ética aplicada atual, em particular da ética

médica. Ele é categórico em seu veredicto: se a filosofia não puder

ajudar, então, ou a disciplina é inútil ou o praticante da disciplina é

incompetente. Se este é o caso, então o filósofo precisa abandonar

seu negócio, isto é, o filosofar. No entanto, ele não acredita que a

filosofia seja inútil neste aspecto e, portanto os filósofos podem

manter-se na labuta. Hare considera que a filosofia desenvolveu tal

sofisticação nos padrões gerais de rigor no raciocínio e na

argumentação que é possível ter esperança de estabelecer bases

firmes na disciplina no que diz respeito ao tratamento destas

questões. Contudo, não se deve pensar que essa sofisticação no

raciocínio signifique que a filosofia tenha a função de provar para as

pessoas não filósofas o que elas precisam pensar ou que conclusões

precisam deduzir com base em premissas irrefutáveis. Por padrões de

rigor no raciocínio, Hare entende consistência teórica nos enunciados,

na capacidade de explicação do significado dos termos que se está

empregando assim como a explicitação da existência ou não de nexos

lógicos seguros entre as premissas utilizadas, na consistência lógica

entre os enunciados empregados entre outras coisas.

Para exemplificar o papel do filósofo na reflexão moral a

respeito da medicina, Hare trata do caso do aborto, entretanto, o

foco do presente trabalho será outro. Tentar-se-á avaliar o papel do

filósofo, particularmente do professor de filosofia, nas questões éticas

médicas relacionadas com a reprodução assistida que recorre à * Doutorando pela Universidade Federal de Santa Catarina

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engenharia genética, em especial a manipulação genética à luz do

diagnóstico genético de pré-implantação (DGPI). Esse tema é

discutido atualmente por diversos filósofos, contudo, o escopo do

presente estudo será orientado pelas considerações do defensor da

ética discursiva realizada por Jürgen Habermas em seu livro Die

Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen

Eugenik?. Habermas empreende uma tentativa de desvendar o

núcleo racional da reação de oposição por parte de vários setores da

sociedade contemporânea àquilo que ele chama de eugenia liberal, a

saber, o uso das tecnologias de reprodução assistida baseadas na

engenharia genética para fins de cura e aperfeiçoamento genético

assim como a pesquisa com embriões humanos.

Nessa intervenção, já célebre e bastante controversa, o filósofo

herdeiro da escola de Frankfurt defende uma posição abertamente

contrária ao uso do DGPI e a terapia gênica para fins de

aperfeiçoamento com base em vários argumentos, no entanto,

convém ressaltar aqui que ele apela a uma ética da espécie

(Gattungsethik) e a uma inviolabilidade da vida humana pré-pessoal,

ou seja, da vida humana do embrião a ser manipulado. O argumento

habermasiano, além do mais, caracteriza-se por evidenciar uma

contradição interna na visão liberal relacionada com o uso da nova

tecnologia para fins reprodutivos, principalmente quando usada para

selecionar traços preteridos pelos pais e não restrita apenas a lógica

da cura.

Os defensores da prática do aperfeiçoamento genético recorrem

ao direito à liberdade de procriação e reprodução para legitimá-la,

mas, focando na liberdade dos progenitores, desconsideram a

liberdade ética do indivíduo futuro manipulado geneticamente.

Mesmo defensores da eugenia liberal como Nicholas Agar, 1

reconhecem que certos tipos de intervenção genética comprometem

a liberdade ética do indivíduo futuro. Habermas, ao desenvolver sua 1 AGAR, N. 2004.

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estratégia argumentativa, baseia-se nas considerações de Agar, no

entanto, ressalta que este não teria avançando longe o bastante nas

conseqüências normativas das considerações que fez.

Retornando brevemente a Hare, este descreve a tarefa da

filosofia no campo da ética médica e até mesmo a exigência de

moderação da filosofia no que diz respeito às questões substantivas

relativas à vida boa ou não fracassada. Contudo, a visão hareana da

filosofia implica um papel apenas formal da filosofia, restrito às

atividades de avaliar a coerência lógica e o encadeamento adequado

dos raciocínios, nunca entrando no terreno dos conteúdos.

Entretanto, Habermas considera que os desenvolvimentos recentes

no campo da engenharia genética têm implicações normativas que

leva ele a se perguntar se “pode a filosofia se permitir a mesma

moderação também em questões relativas à ética da espécie?” 2 Ou

seja, não caberia a filosofia nesse caso avançar no campo dos

conteúdos, ao menos no que diz respeito à ética da espécie, ou para

colocar em outros termos quando entram em jogo os fundamentos

naturais e normativos da vida humana, fundamentos biológicos da

identidade pessoal.

Uma vez que apresentamos o contexto filosófico do debate no

que diz respeito ao papel do filósofo nas sociedades contemporâneas,

é possível fazer uma incursão no debate acerca do papel do filósofo

em sala de aula, a saber, do professor de filosofia. Com certeza,

entre as prerrogativas do professor de filosofia (do ‘filósofo’) no que

diz respeito à bioética atualmente estão chamar a atenção dos

educandos para as intrincadas questões desencadeadas pelo

crescente desenvolvimento científico. A ciência cada vez mais nos

obriga a repensar nossas intuições normativas. A bomba atômica nos

obrigou a repensar as intuições normativas a respeito da

responsabilidade dos comandantes de exércitos e até mesmo suscitou

a questão sobre a correção de buscar obter esse tipo de 2 HABERMAS, J. 2001, 9.

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conhecimento, isto é, um conhecimento técnico científico que

colocaria nas mãos humanas o poder de dizimar cidades inteiras,

países e até mesmo o mundo inteiro supondo a ocorrência de um

conflito bélico mundial com diferentes potências dotadas de poder

nuclear. Esta mesma ciência evidencia a cada vez mais as

semelhanças entre seres humanos entre si e até mesmo de seres

humanos com as outras espécies animais, pois o homem também é

um animal, não devemos esquecer. Estas descobertas levam os seres

humanos a precisar repensar o escopo dos seres que merecem

consideração e respeito. Além disso, esta informação coloca

empecilhos às visões racistas e diria até especistas reinantes até

pouco tempo. Todavia, a biologia apenas mostrou a semelhança entre

seres humanos entre si e isso apenas evidenciou que não existem

raças biologicamente falando, mas isso não deve servir de pretexto,

quer para dizer que o racismo não existe, quer para decidir sem

debate ulterior questões como cotas para minorias historicamente

excluídas. A biologia mostrou que não existem raças e não que o

racismo não existe, esta diferença não pode ser ignorada.

O desenvolvimento recente da biotecnologia moderna com a

clonagem e a engenharia genética tem provocado questões ainda

mais intrigantes e cabe ao filósofo (‘professor’) a função de buscar

familiarizar os alunos com os principais problemas morais suscitados.

Cabe ao professor fornecer arcabouço teórico e permitir aos discentes

uma visão geral das principais posições envolvidas nos debates éticos

contemporâneos, a fim de fornecer material para reflexão e

ponderação. Entre as principais questões provocadas pela

biotecnologia moderna aplicada à reprodução assistida estão: se é

moralmente correto que as companhias seguradoras exijam a

realização de um teste genético antes de aprovarem um plano de

saúde ou determinarem o preço da mensalidade? Por que razão é

justo cobrar mensalidades maiores para fumantes e grupos com

comportamento de risco, mas não é justo cobrar de pessoas com

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predisposição genética para doenças? Se um dia for possível realizar,

há algo moralmente errado em escolher as características do próprio

filho como cor dos olhos, sexo, inteligência, habilidades atléticas ou

artísticas e assim por diante. Há algo moralmente errado em utilizar

embriões em pesquisa? É o embrião humano uma pessoa dotada de

direitos?

Entretanto, apresentar diretamente a posição normativa de

célebres pensadores contemporâneos a respeito deste intrincado

tema pode não ser pedagogicamente adequado. Por este motivo,

uma abordagem adequada precisaria inquirir primeiramente os

educandos e tentar fazer com que eles mesmos descubram as

principais questões envolvidas. Além disso, há outros tipos de

dificuldades que um professor de filosofia pode enfrentar em sala de

aula, ao tentar abordar temas bioéticos tão complexos. Uma delas

relaciona-se com a necessidade de respeitar a liberdade de credo e

livre pensamento dos educandos, uma vez que diversas religiões

compartilhadas pelos educandos recusam a priori a maior parte das

intervenções genéticas discutidas aqui. Se o filósofo ficasse restrito a

posição anunciada por Hare, ou seja, uma função meramente de

exame da perspectiva da lógica e da semântica dos enunciados e

argumentos apresentados estaria respeitada o direito à liberdade de

credo e pensamento dos educandos. Contudo, a mera análise

semântica e formal dos argumentos dos alunos ou de filósofos

previamente selecionados para tratar em sala provavelmente não

será suficiente para esclarecer ao educando o que de fato está em

litígio.

Não parece suficiente apenas explanar que no confronto

bioético existem visões seculares e religiosas, liberais e

conservadoras que tendem a centrar o debate na determinação do

estatuto moral do embrião e que vivemos em sociedades pluralistas

em que não parece possível encontrar qualquer descrição

ideologicamente neutra aceitável para todos deste estatuto e,

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portanto, o debate moral é decidido conforme uma escolha pessoal. 3

O caso discutido neste texto, isto é, o que veio a ser chamado de

eugenia liberal (liberal eugenics) não se configura da mesma maneira

que o debate sobre o aborto. Existem muito mais minúcias a ser

examinadas. É preciso avaliar as semelhanças e dessemelhanças

entre práticas familiares e não familiares, como por exemplo, se o

direito de procriação e reprodução configura-se da mesma maneira

em ambos os casos ou há diferenças moralmente relevante. Se não

diferenças qualitativas, se não há quantitativas (de grau), como

ressalta Agar, discutindo as implicações da eugenia liberal para

justiça distributiva. 4 Se a determinação do plano de vida dos filhos

resultante das intervenções pelo meio dos pais na educação e a

determinação do plano de vida dos filhos resultante da manipulação

genética têm diferenças que impliquem julgamentos morais distintos

para ambas as práticas. Estes são apenas alguns dos pressupostos da

discussão bioética atual relacionada com o tema e como são

pressupostos exigem reflexão. Com isso, não se está querendo jogar

o ônus da dissolução deste intrincado debate quer aos professores de

filosofia, quer aos próprios educandos, mas apenas tentar tornar as

pessoas do presente, os cidadãos do presente (e não do futuro, como

alguns costumam rotular) cientes do cerne da divergência atual. Com

esta estratégia de abordagem não se estará nem tentando fazer os

educandos pensar da maneira que o professor pensa o que é muito

censurável em função da necessidade de respeito à liberdade de livre

pensamento, a qual, além de ser um direito fundamental

constitucional, é conditio sine qua non do próprio filosofar.

Além disso, esta abordagem ultrapassa outra abordagem do

tema que considero de veras censurável que consiste na mera

exposição por parte do professor das posições divergentes, sem uma

apresentação mais aprofundada das questões norteadoras do debate.

3 HABERMAS, J. 2001, 58-59. 4 AGAR, N. 2004, 137-8.

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Desta maneira, sugiro dois roteiros de desenvolvimento do tema.

Primeiro, familiarize os educandos com as questões criando situações

que os permitam reconhecer algumas das grandes questões

norteadoras; segundo, uma vez identificadas às questões busque

fazer os educandos procurarem respostas próprias; em terceiro, uma

vez apresentadas as respostas dos educandos, crie uma situação de

embate das soluções levando eles mesmos a identificar forças e

fraquezas nas propostas apresentadas; depois, sugira bibliografia

filosófica dos autores que discutem o tema, para ser apresentada

pelos educandos e peça para os educandos prestarem atenção e

buscarem identificar-se ou não com as posições apresentadas e

tentar indicar os motivos da concordância ou divergência; depois

disso, juntamente com os alunos procure evidenciar, em sala, os

motivos da divergência entre os pensadores apresentados e peça

para desenvolverem textos refletindo a respeito do ponto da

divergência. Finalmente, pode ser apropriado apresentar aos alunos,

para concluir a tarefa, a visão do professor, não propriamente qual

seja ela, é o importante, mas quais foram os motivos, com base nos

quais o professor adotou sua posição, e quais os prós e contras da

adoção de posições diferentes da do professor assim como da própria

posição adotada por ele.

Outra sugestão de roteiro de atividade relaciona-se com justiça

distributiva num cenário em que a eugenia liberal predomina. Escolha

algum filme de ficção científica, GATTACA é uma boa sugestão, que

aborde a engenharia genética e suas possíveis conseqüências sociais.

O professor (‘filósofo’) pode optar por apresentar algum material

relacionado ao tema antes, se quiser, no entanto, talvez seja

apropriado passar o filme de modo descompromissado uma vez e

depois, no decorrer do trabalho retornar aos trechos do filme com

maior relevância ao tema e tratar de modo pontual das questões

suscitadas. Depois, indague os educandos acerca dos tipos de

questões sociais, às quais as sociedades contemporâneas são

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confrontadas; depois de identificadas as principais questões,

complemente a lista se for necessário; depois disso, reúna eles em

grupos e peça que procurem responder a seguinte questão: ‘as

questões sociais listadas serão resolvidas, agravadas ou permanecerá

tudo igual com o advento da eugenia liberal? Justifique sua resposta’.

Aos que responderam que mudará para pior, com base nas respostas

destes, peça para tentarem identificar por que estas tecnologias

tornaram a sociedade mais desigual socialmente. Qual a diferença

entre estas tecnologias e as tecnologias já existentes de reprodução

assistida, medicamentos, drogas que aumentam o desempenho entre

outras coisas. Caso tenham dificuldade de responder em sala, este

tipo de questões, o que é muito provável, peça pesquisa de

bibliografia extra-classe, a fim de obter estas respostas. Aos que

responderam que a sociedade se tornará mais igualitária, peça uma

reflexão acerca das perspectivas de acesso atual à educação, a

assistência saúde, etc. e o quadro de acesso provável às novas

tecnologias discutidas; e então pergunte se estas considerações

afetam a resposta previamente dada. Se possível procure identificar

esse ponto na exposição dos que disseram que mudará para pior para

evitar intervir demasiadamente nesta parte do processo educativo.

Aos que disseram que não muda nada no que diz respeito à igualdade

social, peça a eles explicitem os motivos desta decisão e o significado

de mudança no contexto que estão usando. Uma vez que podem

entender que não existe mudança por que a sociedade continuará

desigual como já é. Todavia, seria então pertinente pedir a eles que

reflitam sobre o grau de desigualdade presente na sociedade atual e

numa sociedade em que a eugenia liberal fosse o caso. Finalmente,

seria interessante que a turma produzisse ao menos um texto

coerente e com certa densidade defendendo a posição adotada

levando em consideração todo trabalho anterior realizado.

Entretanto, estes dois roteiros de trabalho em sala de aula

restringem a função do filósofo demasiado, se os argumentos

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apresentados por Habermas ao tratar da eugenia liberal são

pertinentes. Ambos os roteiros restringem-se a uma explicitação das

questões norteadoras de fundo do debate e a uma confrontação das

posições apresentadas pelos alunos em sala de aula acrescidas de

colocações de filósofos renomados e do próprio professor, sempre

respeitando a liberdade de credo e pensamento dos educandos. Mas,

se Habermas estiver certo, a filosofia precisa entra no terreno dos

conteúdos ao tratar deste debate. E, o que significaria entrar no

terreno dos conteúdos no contexto da dinâmica da aula de filosofia

tratando deste intrincado tema? Para Habermas, entrar no terreno

dos conteúdos significa defender uma determinação

autocompreensão ética da espécie, uma vez que a eugenia liberal

coloca em xeque as pressuposições normativas de nossa

autocompreensão como seres morais autônomos e responsáveis.

Mas, não estaria o professor de filosofia (o filósofo) desrespeitando a

liberdade ética dos cidadãos de uma sociedade democrática e liberal

como a brasileira ao defender uma determinada autocompreensão

ética, numa sociedade pluralista marcada pela pluralidade das visões

éticas.

O respeito às liberdades de credo e pensamento garantidas na

constituição da República Federativa do Brasil seria garantido, porque

ao defender uma autocompreensão ética específica da espécie homo

sapiens não estaria sendo imposta nenhuma forma de vida ética

particular aos cidadãos das sociedades liberais democráticas, em

particular aos alunos, mas sim resguardando as condições

indispensáveis à própria concepção liberal e moderna de pessoa

autônoma e capaz de agir com responsabilidade. As noções de

responsabilidade pelo plano de vida ético escolhido e o direito à

liberdade de escolha (autonomia) na formulação dos projetos ou

planos de vida permeiam qualquer forma de vida ética razoável, ou

concepção de bem abrangente, para usar o termo de Rawls. Nas

próprias palavras de Habermas:

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a forma de lidar com a vida humana pré-pessoal suscita questões de um calibre totalmente diferente. Elas aludem não a esta ou àquela diferença na variedade das formas de vida cultural, mas a autodescrições intuitivas, a partir das quais nos identificamos como pessoas e nos distinguimos de outros seres vivos – portanto, nossa autocompreensão enquanto seres da espécie.5

Entretanto, ainda não fica claro como instrumentalizar este tipo de

abordagem resultante da visão habermasiana em sala de aula. A

discussão desenvolvida por Habermas em Die Zukunft der

menschlichen Natur pode incitar à seguinte abordagem do tema no

ambiente educacional: entrar naquele aspecto central em que a

posição habermasiana a respeito do papel do filósofo na bioética se

diferencia da visão de Hare, a saber, é preciso entrar no terreno dos

conteúdos. E, o que significa entrar no terreno dos conteúdos no

ambiente de sala discutindo questões bioéticas? Caberia ao professor

de filosofia (filósofo) realizar um tipo de imersão na posição

habermasiana, uma vez que a posição habermasiana se apresenta

como uma contra corrente no debate bioético atual sobre a

biotecnologia moderna, principalmente no que diz respeito à

estratégia de argumentação anglo-norte-americana. Habermas

procura realçar as conseqüências antiliberais de uma eugenia liberal.

Para realizar uma imersão, seria necessário identificar as

principais questões desenvolvidas na conferência de Habermas sobre

a eugenia liberal. Habermas ressalta a incongruência da atitude de

gerar seres humanos ‘apenas se’ certas condições de saúde forem

cumpridas e esta atitude incita a um trato instrumental para com a

vida humana da pré-pessoa do embrião incompatível com certas

práticas liberais atuais, que, promovem o respeito as mais diversas

formas de vida, inclusive da vida humana portadora de algumas

doenças. A eugenia liberal poderia inclusive, embora não seja este o

5 HABERMAS, 2001, 72.

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ponto de Habermas, levar a algum tipo de eugenia negativa

obrigatória, pois é orientada pela auto-otimização da espécie.

Habermas, além disso, enfatiza que a noção responsabilidade será

afetada pela eugenia liberal. Por isso, seria adequado discutir e

explicitar a dificuldade de nossa moral convencional lidar com a noção

de responsabilidade moral pelas ações num contexto no qual

poderiam ser, ao menos cogitadas, ações com co-autores, como é

caso da manipulação genética. A distinção entre intervenções que

visam à cura e aquelas que visam ao aperfeiçoamento é sustentada

por Habermas ser o marco diferenciador entre o moralmente proibido

e o moralmente permitido exatamente por afetar a autocompreensão

normativa da espécie humana, particularmente a autocompreensão

moderna. Por isso cabe ao professor filósofo discutir com os alunos

em sala as noções de aperfeiçoamento e cura utilizadas pelo filósofo

como marco normativo para distinguir dos usos permitidos daqueles

não permitidos principalmente centrando-se na questão se essas

noções são construções sociais ou tem base objetiva definidora (ao

discutir este tema, seria interessante convidar um profissional da

área da saúde para oferecer uma palestra aos educandos, a fim de

ter alguma base para ulterior reflexão).

Faz parte de a posição habermasiana evidenciar a diferença

entre o debate sobre o aborto e a discussão sobre a eugenia liberal,

por este motivo caberia enfatizar junto aos educandos os pontos em

que estes dois debates se distanciam, sem, contudo deixar de

usufruir das conseqüências benéficas do próprio debate sobre o

aborto, principalmente do caráter improdutivo de recorrer à questão

do estatuto moral do embrião. Além disso, ao distanciar do debate da

eugenia liberal da discussão acerca do aborto, buscar evidenciar os

aspectos em que a biotecnologia moderna incorre em conseqüências

antiliberais desmascarando as posições que enfatizam demasiado as

liberdades de procriação e reprodução baseados na suposta paridade

entre educação e manipulação genética.

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Ao tratar do liberalismo e da compatibilidade deste com a

eugenia liberal, seria oportuno discutir rapidamente a história do

liberalismo a partir de Locke, Kant, Rawls explicitando os principais

aspectos da visão liberal política posteriormente explicando os

possíveis motivos pelos qual a eugenia liberal estaria atentando

contra os princípios fundamentais desta visão. Enfim, adentrar no

reino dos conteúdos, como sugere o ilustre filho da escola de

Frankfurt, implica adentrar na estratégia argumentativa exposta em

Die Zukunft der menschlischen Natur, evidenciar seus pressupostos e

discuti-los abertamente em sala de aula como advoga a própria ética

discursiva da qual Habermas é partidário.

Como último aspecto a ser considerado em sala de aula, seria

oportuno avaliar a pressuposição central da estratégia argumentativa

habermasiana, a saber, a exclusiva possibilidade de presumir

consentimento no caso de intervenções genéticas que visam à cura

de doenças relacionadas com genes e não no caso de

aperfeiçoamento genético. É conveniente lembrar que a presunção de

consentimento é uma noção muito utilizada nas questões bioéticas

tradicionais, particularmente pelo principialismo na bioética (inclusive

seus princípios estão incluídos nas instruções normativas da CTNBio e

na Resolução 196/96 do Conselho Federal de Saúde).

Para finalizar, seria pertinente avaliar em que medida as

propostas de trabalho em sala de aula apresentadas relacionam-se

com os dois tipos de papéis atribuídos ao filósofo, neste caso, o

professor de filosofia e, além disso, buscar evidenciar qual é, de fato,

a contribuição da filosofia neste debate normativo. Primeiramente,

seguimos os passos de Hare e ilustramos uma visão do papel do

filósofo (professor de filosofia) como um perito em lógica e semântica

instruindo os não filósofos acerca do uso adequado dos enunciados

morais, sem adentrar no terreno dos conteúdos. Todavia, a seguir,

orientados pelas considerações habermasianas em Die Zukunft der

menschlichen Natur, a função do filósofo (professor) foi ampliada na

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bioética e foi estendida ao terreno dos conteúdos. Essa extensão foi

feita sem desrespeitar o direito à liberdade de pensar e ao pluralismo

razoável de concepções de bem vigentes nas sociedades

democráticas contemporâneos, pois o núcleo central do conteúdo

exposto não se baseava nesta ou naquela concepção abrangente de

bem, mas nas condições necessárias ao desenvolvimento de qualquer

concepção de bem, a saber, as noções de responsabilidade,

autonomia e numa defesa da necessidade de coerência do

liberalismo. Portanto, a principal contribuição da filosofia (enquanto

disciplina do currículo escolar) ao debate bioético contemporâneo

sobre a biotecnologia moderna consistiria não apenas na

apresentação e na avaliação de argumentos lógica e semanticamente

bem construídos, mas também numa defesa fervorosa da atual

concepção moderna (antropológica) de moralidade fundada na

autonomia e na responsabilidade.

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