Chartier_a Leitura - Uma Prática Cultural

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Capítulo final do livro de Chartier A leitura. O capítulo refere-se a uma abordagem de Bourdieu.

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  • PRTICAS DA FEITURA

    Pierre Bourdieu Franois Bresson

    Roger Chartier (Org . ) Robert Darnton

    Daniel Fabre Jean Marie Goulemot

    Jean Hbrard Louis Marin

    Daniel Roche

    Estao Liberdade

  • Publicado originalmente sob o ttulo Pratiques de Ia lecture pela ditions Rivages, O 1985; 1993 ditions Payot & Rivages, Paris, para a edio de bolso da Introduo: Alcir Pcora, 1996 1996. 1998. 2001. para esta edio

    Reviso de texto Composio

    Capa Ilustraes da capa

    Editores

    Marcelo Rondinelli e Angel Bojadsen

    Marcelo Higuchi / Estao Liberdade

    Nuno Bittencourt / Letra & Imagem

    Jan Vermeer, M o a lendo carta, leo s/ tela, c . 1657, Gemlde-Galerie, Dresden; Giuseppe Maria Crespi, Estante de biblioteca com partituras encadernadas. Conservatrio de Msica, Bolonha Angel Bojadsen e Edilberto F. Verza

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Prticas da Leitura / sob a direo de Roger Chartier ; uma iniciativa de Alain Paire ; traduo de Cristiane Nascimento ; introduo de Alcir Pcora. 5a. ed. So Paulo : Estao Liberdade. 2011.

    Ttulo original: Pratiques de la lecture. Vrios autores. Bibliografia. ISBN 978-85-85865-14-6

    1. Leitura 2. Leitura - Histria 3. Livros e leitura I. Chartier, Roger. II. Paire, Alain. III. Pcora, Alcir.

    01-0183 CDD-418.4

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. Leitura : Lingstica 418 .4

    2. Prtica da leitura : Lingstica 418 .4

    ESTE LIVRO, PUBLICADO NO MBITO DO PROGRAMA DE PARTICIPAO PUBLICAO,

    CONTOU COM O APOIO DO MINISTRIO FRANCS DAS RELAES EXTERIORES

    Todos os direitos reservados Editora Estao Liberdade Ltda.

    Rua Dona Elisa, 1 1 6 - 01155-030 - So Paulo - SP Tel.: (11) 3661 2881 Fax: (11) 3825 4239

    http://www.estacaoliberdade.com.br

  • A L E I T U R A : U M A P R T I C A C U L T U R A L

  • A leitura: uma prtica cultural

    Debate entre Pierre Bourdieu e Roger Chartier

    ROGER CHARTIER: Creio, Pierre Bourdieu, que vamos basear este dilogo no trabalho e na reflexo coletivos realizados por ocasio do encontro sobre leitura que houve em Saint-Maximin. Talvez fosse bom lembrar por que esse tema parecia importante. A idia inicial era dupla. Por um lado, claro que para numerosas abordagens em cincias sociais ou em crtica textual, o problema da leitura um problema central. E, por outro, no menos claro que as maneiras de abordar esse problema permaneceram muito tempo compartimentadas e que bem poucos dilogos foram instaurados entre socilogos e psiclogos, socilogos e historiadores ou historiadores da literatura. A idia inicial deste encontro era portanto misturar, cruzar, se possvel, as abordagens conduzidas em termos de crtica literria e em termos histricos. Parece-me tambm que para debater a compreenso possvel das prticas culturais, o exemplo da leitura um exemplo muito bom, uma vez que sobre esse terreno encontram-se colocados, como num microcosmo, os problemas passveis de ser reencontrados em outros campos e com outras prticas.

    PIERRE BOURDIEU: Penso que estaremos de acordo em ter em mente, a cada vez que a palavra leitura for pronunciada, que ela pode ser substituda por toda uma srie de palavras que designam toda espcie de consumo cultural isto para desparticularizar o problema. Dito isto, este consumo cultural, que apenas um entre outros, tem suas particularidades. E eu gostaria talvez de comear por a, por uma

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  • 1*11 RUI IV H IRHIEU / RcXiER CHARTIER

    espcie de retlexo profissional. Parece-me muito importante, quando abordamos uma prtica cultural qualquer, interrogarmo-nos como pra-ticantes, ns mesmos, dessa prtica. Creio que importante sabermos que somos todos leitores e que, a esse ttulo, corremos o risco de atribuir leitura multides de pressupostos positivos e normativos. K, para avanar um pouquinho nessa reflexo, gostaria de lembrar a oposio medieval que me parece muito pertinente entre auctore lector O auctor aquele que produz ele prprio e cuja produo autorizada pela auctoritas, a de auctor; o filho de suas obras, cle-bre por suas obras. O lector algum muito diferente, algum cuja produo consiste em falar das obras dos outros. Esta diviso, que corresponde quela de escritor e crtico, fundamental na diviso do trabalho intelectual. Se me parece til evocar esta oposio, porque somos, por posio - penso em todos aqueles que esto neste colquio para refletir sobre a leitura - , lectores, e penso que corremos o risco de investir todo um conjunto de pressupostos inerentes posio de lector em nossas anlises das leituras, dos usos sociais da leitura, da relao com a escrita e das escritas com as prticas. Vou em seguida tomar um exemplo e estender a idia que foi apresentada, desde o primeiro dia, por Franois Bresson: existe uma escrita das prticas? E, neste ponto, como procurei mostrar nos trabalhos antropolgicos que realizei, os etnlogos cometem freqentemente um erro em sua relao com as coisas que descrevem, notadamente em todos os ri-tuais, um erro que consiste em ler as prticas como se se tratassem de escritos. No perodo estruturalista, muitos livros traziam em seus ttulos a palavra leitura. Ora, o fato de se lerem coisas que no sabe-mos se foram feitas para serem lidas introduz um vis fundamental. Por exemplo, ler um ritual, que seja algo como uma dana, como se se tratasse de um discurso, como alguma coisa de que se pode dar uma formulao algbrica, parece-me produzir nele uma alterao essencial. Poderamos tambm tomar o exemplo mais prximo que foi abordado na discusso, o da pintura. Quando afirmamos ler uma pintura, penso que empenhamos toda uma srie de pressupostos. Poderamos prolongar a lista...

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  • A LEITURA: UMA PRTICA CULTURAL

    R.C.: Creio que esta projeo universalista do ato de leitura, que nossa, tambm tem sido praticada pelos historiadores numa dimenso diacrnica ao projetar retrospectivamente nossa relao com os textos como sendo a nica relao historicamente possvel. E, mesmo se nos eximirmos disso, se no tomarmos todas as precaues possveis, corremos constantemente o risco de recair nessa iluso. Ora, creio que atravs de vrias comunicaes deste colquio emerge a idia muito clara de que, assim como as capacidades de leitura postas em funcionamento num dado momento por determinados leitores frente a determinados textos, as situaes de leitura so historicamente vari-veis. A leitura sempre um ato de foro privado ntimo, secreto, que reenvia individualidade? No, porque esta situao de leitura no foi sempre dominante. Creio, por exemplo, que nos meios urbanos, entre os sculos XVII e XVIII, existe todo um outro conjunto de relaes com os textos que passa pelas leituras coletivas, leituras que manipu-lam o texto, decifrado por uns para outros, por vezes elaborado em comum, o que pe em jogo alguma coisa que ultrapassa a capacidade individual de leitura. Portanto, aqui tambm preciso tentar evitar a constante tentao da posio universalizante dos lectores que somos.

    P.B.: E a universalizao de uma maneira particular de ler, que uma instituio histrica. Penso, por exemplo, na leitura que pode-mos chamar de estrutural, a leitura interna que considera um texto nele mesmo e por ele mesmo, que o constitui como autossuficiente e procura nele mesmo sua verdade, fazendo abstrao de tudo o que est ao redor. Penso que uma inveno histrica relativamente recente, que se pode situar e datar (Cassirer associa-a a Schelling, o inventor da palavra tautegrica em oposio a alegrica). Estamos de tal maneira habituados a essa maneira de ler um texto sem referi-lo a nada alm dele mesmo que ns a universalizamos inconscientemente, embora seja uma inveno relativamente recente. Talvez achssemos um equivalente disso, nos tempos mais antigos, na leitura dos textos sagrados, a despeito de esses textos terem sempre sido lidos com uma inteno alegrica. Procuravam-se ali as respostas. Historicizar nossa relao com a leitura uma forma de nos desembaraarmos daquilo que a histria pode nos impor como pressuposto inconsciente.

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  • I'n UKI IV uIRINI-II / RCHER CHARTIER

    Ao contrrio do que se pensa comumente, longe de relativizar ao historiz-la, tambm nos damos um meio de relativizar sua prpria prtica, portanto, de escaparmos relatividade. Se verdade que o que eu digo da leitura produto das circunstncias nas quais tenho sido produzido enquanto leitor, o fato de tomar conscincia disso talvez a nica chance de escapar ao efeito dessas circunstncias. O que d uma funo epistemolgica a toda reflexo histrica sobre a leitura.

    R.C.: H algo mais talvez nesse uso no controlado da palavra leitura, aplicada a todo um conjunto de materiais que lhe resistem. E claro que se pode decifrar um quadro, um ritual, um mito, mas o conjunto desses modos de decifrao, que no referem dispositivos que funcionam na leitura de textos, no so enunciveis, contudo, seno atravs dos prprios textos. H, portanto, na prpria restrio uma incitao a essa universalizao contra a qual difcil de se precaver.

    P.B.: A metfora da cifra tipicamente uma metfora de leitor. H um texto que codificado, logo se trata de extrair o cdigo para torn-lo inteligvel. E essa metfora nos conduz a um erro de tipo intelectualista. Pensamos que ler um texto compreend-lo, isto , descobrir-lhe a chave. Quando de fato nem todos os textos so feitos para serem lidos nesse sentido. Alm da crtica dos documentos que os historiadores sabem fazer muito bem, h que fazer, segundo parece, uma crtica do estatuto social do documento: para que uso esse texto foi feito? Para ser lido como o lemos, ou ento, por exemplo, como uma instruo, isto , um escrito destinado a comunicar uma maneira de fazer, uma maneira de agir? H toda espcie de texto que pode passar diretamente ao estado da prtica, sem que haja necessariamente mediao de uma decifrao no sentido em que a entendemos.

    R.C.: Sim, mas o processo de inteligibilidade existe sempre, mesmo em face de um ritual ou de um quadro. Portanto, como tentar diz-lo numa linguagem que quase forosamente lhe inadequada? O proble-ma , pois, o de enunciar por escrito a compreenso de uma prtica que, ademais, no poderia ser dita em nenhuma lngua fora a sua, ou de uma pintura que apenas se poderia compreender no inefvel.

  • A LEITURA: UMA PRTICA CULTURAL

    A partir do momento em que se admite que existe a possibilidade de comunicar a inteligibilidade de uma prtica ou de uma imagem, creio que preciso aceitar a ambigidade de uma traduo a partir do texto, a qual se sabe no lhe jamais totalmente adequada.

    P.B.: Dito isto, uma das coisas que me pareceram importantes nas diferentes comunicaes e um ponto sobre o qual todo mundo estava de acordo - o fato de que os textos, quaisquer que sejam, quando so interrogados no mais somente como textos, transmitem uma informao sobre o seu modo de usar. E o senhor mesmo nos mostrou que a separao em pargrafos podia ser muito reveladora da inteno de difuso, por exemplo: um texto de longos pargrafos enderea-se a um pblico mais selecionado que um texto separado em pargrafos pequenos. Isto repousa sobre a hiptese de que um pblico mais popular demandar um discurso mais descontnuo, etc. Assim, a oposio entre o longo e o curto, que pode manifestar-se de mltiplas formas, uma indicao sobre o pblico visado e, ao mesmo tempo, sobre a idia que o autor tem dele mesmo, de sua relao com os outros autores. Outro exemplo, toda a simbologia do grafismo, que foi longamente analisada. Penso num exemplo entre mil, aquele do itlico, e mais genericamente em todos os signos que se destinam a manifestar a importncia do que se diz, a dizer ao leitor "a preciso prestar ateno no que digo", o emprego das maisculas, os ttulos, os subttulos etc., que so igualmente manifestaes de uma inteno de manipular a recepo. H, portanto, uma maneira de ler o texto que permite saber o que se quer fazer que o leitor faa.

    R.C.: Penso que isso nos remete ao problema das condies de possibilidade da histria da leitura, considerando-se que essa histria da leitura pode ser um dos meios de objetivar nossa relao com esse ato. Penso que existem vrias vias possveis. H uma que foi seguida aqui por Robert Darnton, aps Cario Ginzburg, que discernir o que um leitor nos diz de suas leituras. O problema que se coloca aqui que evidentemente essa confisso insere-se sempre numa situao de comunicao particular. Ou a declarao extorquida, no caso dos leitores aos quais se obriga a dizer quais tm sido suas leituras, porque

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  • I'N URI IVIUROIBU / R(K;KR CHARTIER

    elas parecem "saber mal f", como se dizia no sculo XV, ou uma vontade de construir uma identidade e uma histria pessoal a partir ile lembranas de leituras. uma via possvel, mas difcil, na medida em que essas espcies de textos so historicamente pouco numerosas. Outra via tentar reinterrogar os objetos lidos eles prprios, em to-das as suas estruturas, jogando, de um lado, com os protocolos de leitura inscritos nos prprios textos e, de outro, com as disposies de imprimir s quais o senhor fez aluso. Nesses dispositivos, existe generalidade num determinado perodo. Um livro de 1530 no se apresenta como um de 1880 e h evolues globais que atingem toda a produo impressa em suas regras e seus deslocamentos. Mas certo tambm que nessas transformaes colocam-se intenes de pblico ou, mais ainda, intenes de leitura. Quando um texto passa de um nvel de circulao a outro, mais popular, ele sofre um certo nmero de transformaes, das quais uma das mais claras a fragmentao operada ao pr-se em livro, seja no nvel do captulo, seja no nvel do pargrafo, destinada a facilitar uma leitura nada virtuosstica.

    P.B.: H um ponto em que se opem freqentemente historiadores e socilogos, e sobre o qual temos concordado de fato: idia do livro que se pode compor, do qual se pode seguir a circulao, a difuso, a distribuio, etc., preciso substituir a idia de leituras no plural e a inteno de buscar indicadores das maneiras de ler. um ponto a propsito do qual os historiadores dizem - aparentam - enviar o socilogo: os senhores tm a chance, interroguem as pessoas sobre o que elas leem, no somente sobre o que leem, mas sobre a maneira de ler. De fato, evidentemente, a mais elementar interrogao da interrogao sociolgica ensina que as declaraes concernentes ao que as pessoas dizem ler so muito pouco seguras em razo daqui-lo que chamo de efeito de legitimidade: desde que se pergunta a algum o que ele l, ele entende "o que que eu leio que merea ser declarado?" Isto : "o que que eu leio de fato de literatura legtima?" Quando lhe perguntamos "gosta de msica?", ele entende "gosta de msica clssica, confessvel?". E o que ele responde no o que es-cuta ou l verdadeiramente, mas o que lhe parece legtimo naquilo que lhe aconteceu de ter lido ou ouvido. Por exemplo, em matria

  • A LEITURA: UMA PRTICA CULTURAL

    de msica, dir: "Gosto muito das valsas de Strauss". Portanto, as de-claraes so extremamente suspeitas, e penso que os historiadores estariam de acordo em dizer que os testemunhos biogrficos ou ou-tros nos quais as pessoas declaram suas leituras, isto , seu itinerrio espiritual, devem ser tratados com suspeio. Nessas condies, onde encontrar indicadores dessas leituras diferenciais? Pois, diante do livro, devemos saber que existem leituras diversas, portanto competncias diferentes, instrumentos diferentes para apropriar-se desse objeto, instrumentos desigualmente distribudos, segundo o texto, segundo a idade, segundo essencialmente a relao com o sistema escolar, a partir do momento em que o sistema escolar existe. E, tanto quanto se saiba, para nossas sociedades, o modelo relativamente simples. A leitura obedece s mesmas leis que as outras prticas culturais, com a diferena de que ela mais diretamente ensinada pelo sistema escolar, isto , de que o nvel de instruo vai ser mais poderoso no sistema dos fatores explicativos, sendo a origem social o segundo fator. No caso da leitura, hoje, o peso do nvel de instruo mais forte. Assim, quando se pergunta a algum seu nvel de instruo, tem-se j uma previso concernente ao que ele l, ao nmero de livros que leu no ano, etc. Tem-se tambm uma previso no que diz respeito sua maneira de ler. Pode-se rapidamente passar da descrio das prticas s descries das modalidades dessas prticas.

    R.C.: Creio que possvel historicamente controlar essa anlise pelo estudo do objeto em si, o livro e todas as outras formas de escri-to, impresso ou manuscrito. Esta anlise pode ser mais rigorosa, mais interrogativa sobre o objeto, mobilizando o que se pode saber, seja das capacidades que se confrontam com esse objeto, seja de seus usos. Daniel Roche, para as cidades do sculo XVIII; Daniel Fabre, para os campos dos Pireneus no sculo XIX, deram exemplo de uma anlise possvel do material escrito que circula e para o qual possvel balizar legitimamente a distribuio, os lugares e freqncias de aparecimento. No se trata, portanto, de considerar que toda anlise de sociologia distribucional no teria objeto, nem interesse. Mas o problema com-pletar essa anlise das freqncias e de seu enraizamento social por uma reflexo sobre as competncias e usos.

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  • I'n KHI lVniiuntu / ROC.ER CHARTIER

    RH.: Penso que uma coisa importante e que retoma o que eu disse no comeo. Um vis ligado posio de leitor pode consistir em omitir a questo de saber porque lemos, se ler se d por si mesmo, se existe uma necessidade de leitura, e devemos colocar a questo das condies nas quais se produz essa necessidade. Quando se observa uma correlao entre o nvel de instruo, por exemplo, e a quantidade de leituras ou a qualidade da leitura, podemos perguntar como isso se passa, pois se trata de uma relao que no auto-explicativa. possvel que se leia quando existe um mercado no qual possam ser colocados os discursos concernentes s leituras. Se essa hiptese pode surpreender, at chocar, porque somos precisamente pessoas que tm sempre mo um mercado, alunos, colegas, amigos, cnjuges, etc., a quem podemos falar de leituras. Terminamos por esquecer que, em muitos meios, no possvel falar de leituras sem ter um ar pretensioso. Ou leituras de que no podemos falar, inconfessveis, que fazemos s ocultas. Dito de outra forma, h uma oposio entre os leitores dessas coisas de que no podemos falar, os leitores de coisas que no merecem a leitura, e os outros, que praticam a nica leitura verdadeira, a leitura do no perecvel, a leitura do eterno, do clssico, do que no pode ser jogado fora. Disse j que no h necessidade de leitura; diria, um tanto jocosamente, que quando se trata da leitura, a necessidade, na sua forma elementar, antes que seja constituda socialmente, manifesta-se nas estaes. A leitura o que ocorre espontaneamente quando se vai ter tempo para no fazer nada, quando se vai ficar fechado sozinho em algum lugar. Esta necessidade de distrao talvez a nica necessidade no social que o socilogo pode reconhecer.

    R.C.: Essa uma perspectiva um pouco redutora, porque certo que mesmo nas sociedades tradicionais, mais distantes do escrito im-presso do que a nossa, existem situaes e necessidades de leitura que no so reduzveis a uma competncia de leitores considerada como um mercado social, mas que esto, num certo sentido, muito profun-damente enraizadas nas experincias individuais ou comunitrias. Poderia citar as prticas profissionais de oficina que se apoiam desde muito cedo, desde o sculo XVI, sobre livros que servem de guias

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  • A LEITURA: UMA PRTICA CULTURAL

    para o trabalho manual. Poderia dizer a mesma coisa das associaes festivas nas cidades, esses monastrios de juventude, de ofcio ou de bairro que apresentam escritos ou prolongam-se atravs deles.

    P.B.: Eu voluntariamente forcei a hiptese, para questionar de modo vigoroso a idia de uma necessidade de leitura que est muito profundamente inscrita no inconsciente dos intelectuais, sob a forma de um direito de leitura. Penso que os intelectuais se sentem no dever de dar a todos o direito de leitura, isto , o direito de l-los... a isso que me atinha! Mas pode-se discutir...

    R.C.: Sim, e perguntar sobre as condies de possibilidade e de eficcia de uma poltica da leitura, de uma poltica que se incumbe da edio e do encontro entre o livro editado e seu leitor, que organiza o conjunto dos circuitos de distribuio, ou que os reorganiza. O senhor pensa realmente que a necessidade de leitura seja apenas um artifcio de autores com maus propsitos?

    P.B.: preciso que esse gnero de coisas seja dito, porque de outra maneira permanecem no inconsciente; h coisas um pouco penosas que preciso infligir-se quando se quer fazer cincia de certos objetos. Participo tambm da crena na importncia na leitura, participo tambm da convico, de que muito importante ler e de que algum que no l mutilado etc. Vivo em nome disso tudo. Ora, penso que se cometem erros polticos, e tambm cientficos, enquanto se movido por pressupostos de posio. Os erros polticos no so meu negcio. O erro cientfico que me importa. Durante anos, fiz uma sociologia da cultura que se fixava no momento de colocar a questo: mas como produzida a necessidade do produto? Procurava estabelecer relaes entre um produto e as caractersticas sociais dos consumidores (quanto mais se sobe na hierarquia social, mais se con-somem bens situados num nvel elevado da hierarquia de bens, etc.). Mas eu no me interrogava sobre a produo da hierarquia de bens, e sobre a produo do reconhecimento dessa hierarquia. Ou pelo menos eu me contentava em nome-la, sem mais, enquanto me parece que o prprio das produes culturais que preciso produzir a crena

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  • INi-HRIR ROUHPIEU / RIX;ER CHARTIER

    no valor do produto, e que essa produo da crena, um produtor no pode jamais, por definio, dominar sozinho; preciso que todos os produtores colaborem nisso, mesmo que combatam. A polmica entre intelectuais faz parte da produo da crena na importncia do que fazem os intelectuais. Portanto, entre as condies que devem ser preenchidas para que um produto intelectual seja produzido, est a produo da crena no valor do produto. Se, querendo produzir um objeto cultural, qualquer que seja, eu no produzo simultaneamente o universo de crena que faz com que seja reconhecido como um objeto cultural, como um quadro, como uma natureza-morta, se no produzo isso, no produzi nada, apenas uma coisa. Dito de outra ma-neira, o que caracteriza o bem cultural que ele um produto como os outros, mas com uma crena, que ela prpria deve ser produzida. isso que faz com que um dos nicos pontos sobre os quais a poltica cultural pode agir seja sobre a crena: ela pode contribuir, de uma maneira ou de outra, para reforar a crena. De fato, seria preciso comparar a poltica cultural a um desses casos particulares, que a poltica lingstica. Se as intervenes polticas em matria de cultura so freqentemente ingnuas por excesso de voluntarismo, o que no seria preciso dizer das polticas lingsticas! Isto no pessimismo de socilogo; as leis sociais tm uma fora extraordinria e, quando so ignoradas, elas vingam-se.

    R.C.: Entre as leis sociais que modelam a necessidade ou a capa-cidade de leitura, as da escola esto entre as mais importantes, o que coloca o problema, ao mesmo tempo histrico e contemporneo, do lugar da aprendizagem escolar numa aprendizagem da leitura, nos dois sentidos da palavra, isto , a aprendizagem da decifrao e do saber ler em seu nvel elementar e, de outro lado, esta outra coisa de que falamos, a capacidade de uma leitura mais hbil, que pode se apropriar de diferentes textos. O interessante aqui o fato de mostrar, como havia feito Jean Hbrard a partir da interrogao minuciosa de narrativas autobiogrficas, como a aprendizagem da leitura se apoia muito mais sobre os questionamentos pr ou extra-escolares, ligados a descoberta pela criana de problemas que pertencem difcil com-preenso da ordem do mundo, do que sobre uma escolarizao ou

    .MO

  • A LEITURA: UMA PRTICA CULTURAL

    uma aprendizagem escolar. O senhor pensa que uma mesma propo-sio poderia ser formulada para a escola contempornea e para seu papel na criao de uma capacidade e de uma necessidade de leitura?

    P.B.: Essa uma questo muito difcil. Evidentemente no posso respond-la. Parece-me que estava no centro de nossas discusses e que todo mundo esquivou-se dela. Parece-me que, quando o sistema escolar representa o papel que representa em nossas sociedades, isto , quando se torna a via principal ou exclusiva do acesso leitura, e a leitura torna-se acessvel praticamente a todo mundo, penso que ele produz um efeito inesperado. O que me surpreendeu nos teste-munhos de autodidatas que nos foram relatados que testemunham uma espcie de necessidade de leitura que, de uma certa maneira, a escola destri para criar outra, de uma outra forma. H um efeito de erradicao da necessidade de leitura como necessidade de in-formao: aquele que toma o livro como depositrio de segredos, de segredos mgicos, climticos (com o almanaque para prever o tempo), biolgicos, educativos, etc., que possui o livro como um guia de vida, como um texto ao qual se pergunta a arte de viver, sendo o modelo o livro por excelncia, a Bblia. Penso que o sistema escolar tem esse efeito paradoxal de desenraizar essa expectativa - pode-se admir-lo ou deplor-lo esta expectativa de profecia, no sentido weberiano de resposta sistemtica a todos os problemas da existncia. Penso que o sistema escolar desencoraja essa expectativa e, de uma vez, destri uma certa forma de leitura. Penso que um dos efeitos do contato mdio com a literatura erudita o de destruir a experincia popular, para deixar as pessoas enormemente despojadas, isto , en-tre duas culturas, uma cultura originria abolida e outra erudita que se frequentou o suficiente para no mais poder falar da chuva e do bom tempo, para saber tudo o que no se deve dizer, sem ter mais nada para dizer. E eu penso que esse efeito do sistema escolar, jamais descrito, efetivamente espantoso quando reconstitudo atravs dos testemunhos histricos que foram dados.

    R.C.: Uma outra tenso que existe no ato de leitura diz respeito nossa relao com esse prprio ato. De um lado, todos o diagnosticamos,

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  • 1*11 UKI IV 1URDIKU / RoCiER CHARTIER

    as leituras so sempre plurais, so elas que constroem de maneira diferente o sentido dos textos, mesmo se esses textos inscrevem no interior de si mesmos o sentido de que desejariam ver-se atribudos. I;. e justamente essa diferenciao da leitura, desde suas modalida-des mais fsicas at seu trabalho intelectual, que pode constituir um instrumento de discriminao entre os leitores, muito mais do que a repartio supostamente diferencial deste ou daquele tipo de objeto manuscrito ou impresso. E preciso, portanto, insistir-se sobre o que h de criador e de distintivo na leitura. Mas, de outro lado, nosso trabalho no nos conduz, como leitores, a procurar constantemente a interpretao correta do texto? E essa leitura plural que identifica-mos como realidade e como instrumento de anlise, no a negamos tambm, de um certo ponto de vista, ao estabelecer o que deve ser a justa leitura dos textos, que reencontrar a posio do clrigo que d a correta interpretao da Escritura? No est a o fundamento, o enraizamento mais profundo do exerccio intelectual na definio que lhe d a sociedade ocidental?

    P.B.: Sim. Se compreendo bem, isso recoloca a questo do que fazemos quando lemos. Penso que uma parte muito importante da atividade intelectual consiste em lutar pela boa leitura. mesmo um dos sentidos da palavra leitura: isto , uma certa maneira de estabe-lecer o texto. H livros que so cartadas de luta por excelncia; a Bblia um deles. O capital outro. "Ler O capital" quer dizer ler enfim O capital. Vamos saber o que contm esse livro que jamais foi lido verdadeiramente antes. Se o livro que est em jogo um livro capital, cuja apropriao se acompanha da apropriao de uma autoridade ao mesmo tempo poltica, intelectual, etc., a cartada muito importan-te. isso que faz com que a analogia entre as lutas intelectuais e as lutas teolgicas funcione to bem. Se o modelo da luta entre o padre lector e o profeta auctor, que evoquei no comeo, se transpe to facilmente, porque, entre outras razes, uma das apostas da luta a de se apropriar do monoplio da leitura legtima: sou eu que lhes digo o que est dito no livro ou nos livros que merecem ser lidos em oposio aos livros que no o merecem. Uma parte considervel d.i vida intelectual se esgota nessas reverses da tbua de valores, da

  • A LEITURA: UMA PRTICA CULTURAL

    hierarquia das coisas que devem ser lidas. Em seguida, tendo definido o que merece ser lido, trata-se de impor a boa leitura, isto , o bom modo de apropriao, e o proprietrio do livro aquele que detm e impe o modo de apropriao. Desde que o livro, como disse antes, um poder, o poder sobre o livro evidentemente um poder. por isso que as pessoas que so estranhas ao mundo intelectual se espantam de ver como os intelectuais lutam, e com uma violncia singular, pelo que, para aquelas, parecem ensejos triviais. De fato, os embates podem ser de uma importncia extrema. O poder sobre o livro o poder sobre o poder que exerce o livro. Eu evoco ali alguma coisa que todos os historiadores lembraram, isto , o poder extraordinrio que tem o livro quando se torna um modelo de vida. o que nos disse, por exemplo, Robert Darnton, a propsito do leitor de Rousseau que ele estudou. O livro de Rousseau, e Rousseau como o autor exemplar de um livro exemplar, isto , como "profeta exemplar", podia agir de forma mgica sobre pessoas que no havia visto jamais. por isso que os intelectuais tm freqentemente sonhos de mgicos, pois o livro algo que permite agir a distncia. Existem outros meios, como a ordem poltica, sendo homem poltico aquele que pode agir a distncia ao dar ordens. Mas o intelectual tambm algum que pode agir a distncia ao transformar as vises de mundo e as prticas cotidianas, que pode agir sobre a forma de aleitar as crianas, a forma de pensar e de falar namorada, etc. Assim, penso que a luta pelos livros pode ser uma cartada extraordinria, uma cartada que os prprios inte-lectuais subestimam. Eles esto de tal maneira impregnados de uma crtica materialista de sua atividade que terminam por subestimar o poder especfico do intelectual, que o poder simblico, o poder de agir sobre as estruturas mentais e, atravs da estrutura mental, sobre as estruturas sociais. Os intelectuais esquecem-se de que por meio de um livro se pode transformar a viso do mundo social e, atravs da viso de mundo, transformar tambm o prprio mundo social. Os livros que celebram o mundo social no so somente os grandes livros profticos, a Bblia ou O capital\ h tambm o doutor Spock, que, do ponto de vista da eficcia simblica, sem dvida, em sua ordem, to importante quanto numa outra foi O capital.

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  • I 'n mu IVHIUPII u / ROUER CHARTIER

    R.C.: Sim, mas isso no supor igualmente que o livro tem uma eficcia total, imediata e, portanto, negar o espao prprio da leitura? Pois se o livro, por ele mesmo, em certos casos, pela interpretao c( )i reta em outros, tem essa fora, ou pensa-se que ele tem, isso no destri o prprio objeto que nos reuniu aqui, que a leitura como um espao prprio de apropriao jamais redutvel ao que lido, e isso no recair no que pensava a pedagogia clssica quando designava os espritos das crianas como uma cera mole na qual se podia imprimir com toda legibilidade as mensagens do pedagogo ou do livro? Esse poder que o senhor descreve talvez, em grande parte, um poder fantasmtico, sonhado, desejado, mas em contradio com a leitura tal como a constatamos.

    P.B.: A objeo muito forte e muito justa. Penso evidentemente na famosa frmula do senso comum: "S pregamos a convertidos". E evidente que no preciso atribuir leitura uma eficcia mgica. Essa eficcia mgica supe condies de possibilidade. E no por acaso que o leitor de que nos falava Darnton era um protestante de Genebra...

    R.C.: De La Rochelle...

    PB.: Sim, uma pequena Genebra. Entre os fatores que predis-pem a ler algumas coisas e a ser "influenciado", como se diz, por uma leitura, preciso reconhecer as afinidades entre as disposies do leitor e as disposies do autor. Mas, dir-se-, voc no explicou nada e destruiu voc mesmo o poder simblico que invoca. De modo algum, pois penso que entre uma disposio tcita, silenciosa, e uma predisposio expressa, que se conhece num livro, num escrito, tendo autoridade, sendo publicado, portanto publicvel, portanto pblico, portanto visvel e legvel diante de qualquer um, h uma diferena essencial. Basta pensar naquilo que se chama revoluo dos costumes: o fato de que algumas coisas que eram censuradas, que no podiam ser publicadas, se tornassem publicveis, tem um efeito simblico enorme. Publicar tornar pblico, fazer passar do oficioso ao ofi-cial. A publicao a ruptura de uma censura. A palavra censura

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  • A LEITURA: UMA PRTICA CULTURAL

    comum poltica e psicanlise, e isso no por acaso. O fato de que uma coisa que era oculta, secreta, ntima ou simplesmente indizvel, mesmo que no recalcada, ignorada, impensada, impensvel, o fato de que essa coisa se torne dita, e dita por algum que tem autoridade, que reconhecido por todo mundo, no somente por um indivduo singular, privado, tem um efeito formidvel. Evidentemente, esse efeito s se exerce se houver predisposio.

    R.C.: H, portanto, tenso entre dois elementos. De uma parte, o que est do lado do autor, e por vezes do editor, e que visa a impor explicitamente maneiras de ler, cdigos de leitura (foi lembrada a pro-liferao crescente dos prefcios), seja de maneira mais sub-reptcia uma leitura precisa (atravs de todos os dispositivos antes evocados, sejam tipogrficos ou textuais). Esse conjunto de intenes explcitas ou depositadas no prprio texto, no limite, postularia que um nico leitor pudesse ser o verdadeiro detentor da verdade da leitura. Louis Marin lembrava que Poussin explicava a seu comitente como ele devia ler corretamente seu quadro, como se um nico homem no mundo pudesse deter a chave da correta interpretao desse quadro. Mas, de outro lado, cada livro tem uma vontade de divulgao, dirige-se a um mercado, a um pblico, ele deve circular, deve ganhar extenso, o que significar apropriaes mal governadas, contrassensos, falhas na relao entre o leitor ideal, mas no limite singular, e de outra parte o pblico real que deve ser o mais amplo possvel.

    P.B.: Sim, creio, contra todos os pressupostos implcitos dos leitores que somos, que um livro pode agir atravs dos contrassensos, isto , atravs daquilo que, do ponto de vista do leitor legtimo, armado de seu conhecimento do texto, um contrassenso. O que age sobre o protestante de La Rochelle no o que Rousseau escreveu, o que pensa "o amigo Jean-Jacques". H erros de leitura que so muito efi-cientes. Seria muito interessante observar o aparecimento de todos os signos visveis do esforo de controlar a recepo: esses signos no aumentam na medida em que cresce a ansiedade relativa ao pblico, isto , o sentimento de que se tem um negcio com um vasto mercado e no mais com alguns leitores escolhidos? O esforo desesperado de

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  • 1'II KKI BUURIUEU / RXER CHARTIER

    todos os autores para controlar a recepo, para impor as normas da percepo de seu prprio produto, esse esforo desesperado no deve mascarar que finalmente os livros que mais agem so os livros que agem de inconsciente a inconsciente. uma viso muito pessimista talvez da ao dos intelectuais. Mas penso, por exemplo, no que di-zia Max Weber hoje eu cito apenas ele - a propsito de Lutero: ele leu a Bblia "com as lunetas de sua atitude inteira", eu diria, de sua maneira de ser, isto , com todo o seu corpo, com tudo o que ele era, e, ao mesmo tempo, o que ele leu nessa leitura total foi ele mesmo. Encontramos no livro o que colocamos nele e no saberamos diz--lo. Sem recair na mitologia da criao, do criador nico, no se pode esquecer que os profissionais da produo so pessoas que tm um verdadeiro monoplio de trazer ao explcito, de trazer ordem do dizer coisas que os outros no podem dizer no, sabem dizer, uma vez que, como se diz, eles no encontram as palavras.

    R.C.: Ademais, pode-se construir talvez essas leituras historica-mente s avessas, em relao inteno do autor ou a nossa prpria leitura, como definindo justamente um nvel de leitura ou um horizonte de leitura particular, de modo algum mais rapidamente qualificado em termos sociais, mas diferente da leitura erudita que lhe contem-pornea. Pode-se algumas vezes encontrar ainda vestgios no objeto, uma vez que, por exemplo, nas edies de grande circulao que os impressores de Troyes editaram em grande nmero a partir do scu-lo XVII, a ateno ao sentido no o mais fundamental, como se o contrassenso e o desvio em relao ao sentido no fossem obstculos anuladores da leitura. Vimos que a operao que constitui unidades de textos breves e fragmentados pode fazer-se cortando-se uma frase ao meio, o que lhe retira toda correo gramatical e toda significao intelectual: essa mesma indiferena ao sentido fixado poderia explicar, alis, a extraordinria negligncia tipogrfica e a multiplicidade das gralhas dos livretos azuis que s vezes tornam as palavras completa-mente ininteligveis. Essas alteraes so efetivamente visveis quando ile sua passagem de um mesmo texto de uma edio comum e correta para uma edio de Troyes. Nestas ltimas, o sentido preciso no o elemento absolutamente decisivo da leitura, o que se ope a toda

  • A LEITURA: UMA PRTICA CULTURAL

    atitude intelectual, que a do autor, de mximo controle do objeto, e isto, cada vez mais na medida em que a figura do escritor se torna uma figura carismtica, que julga enunciar uma mensagem numa forma acabada, claramente identificada por seu leitor.

    P.B.: Considero um ltimo exemplo desta lgica. Toda a histria da filosofia - isto talvez v chocar novamente, e no tenho todos os elementos da prova; portanto, uma piada que se pode tratar como uma hiptese - repousa sobre uma filosofia implcita da histria da filosofia, que admite que os grandes autores s se comunicam atravs de textos interpostos. Dito de outra forma, o que Kant discute quando ele discute Descartes seria o texto de Descartes que os historiadores da filosofia leem. Ora, parece-me, com alguns elementos, que isso consis-te em esquecer que o que circula entre os autores no so somente os textos: basta pensar em nossas relaes entre contemporneos, onde o que circula no so textos, mas palavras, ttulos, palavras-s/ogans que rompem a confiana. Por exemplo, quando Descartes fala da esco-lstica, ele pensa num autor particular ou num manual? O papel dos manuais sem dvida enorme. Certamente, h pessoas que estudam os manuais, mas estudam-nos no nvel da histria da pedagogia e no no nvel da histria da filosofia. Na ordem do sagrado, h apenas os grandes textos. Eis um exemplo, parece-me, de pressupostos de leitores formados num certo tipo de frequentao dos textos, que faz esquecer a realidade das trocas intelectuais, que se cumpre, para muitos, de inconsciente a inconsciente, atravs de coisas que esto na ordem do rumor. Penso que seria muito interessante estudar o rumor intelectual como um veculo de coisas importantes para constituir--se aquilo que ser contemporneo, aquilo que ser um intelectual hoje na Frana. Seria importante saber o que as pessoas sabem sobre os outros autores ou sobre os editores, os jornais, os jornalistas, um conjunto de saberes que o historiador no encontrar mais. Quase no encontrar mais vestgios, pois eles circulam de forma oral. E, con-tudo, eles orientam a leitura. Sabe-se que este publica naquele, que est brigado com aquele, e tudo isso faz parte das condies que preciso ter em mente para compreender algumas estratgias retricas, algumas referncias silenciosas, algumas contradies que no sero

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  • I'U L: IVHIRDIF.U / R O G E R CHARTIER

    mais compreendidas totalmente, polmicas que parecero absurdas. Mas creio que, ainda que talvez muito distante, haja a um elo com nosso tema: numa civilizao de leitores, restam inmeros pr-saberes que no se veiculam pela leitura, mas que contudo a orientam.

    PERGUNTAS DO PBLICO

    P E R G U N T A : Minha pergunta dirige-se sobretudo a Pierre Bourdieu, a propsito do que ele disse sobre as ordens de leitura. Pareceu-me ao ouvi-lo que o senhor fala essencialmente do que chamamos hoje de no fico. O senhor tem a impresso de que, nessas prticas de leitura de que nos falou, h no leitor, qualquer que seja, uma distino entre suas prticas em vista de um livro de fico ou de outro tipo de livro?

    P.B.: Penso que, do ponto de vista histrico, Roger Chartier responderia melhor do que eu. O que posso dizer, simplesmente, que me parece que um livro no chega jamais ao leitor sem marcas. Ele marcado em relao a sistemas de classificao implcitos, e um dos papis da sociologia da leitura tentar descobrir o sistema de classificao implcita que os leitores pem em ao ao dizer: o livro " para mim" ou "no para mim", "muito difcil" ou "fcil", etc. Quando o livro chega a um leitor, est predisposto a receber mar-cas que so histricas. A oposio entre fico e nofico uma dessas oposies histricas. Como constituda? Por exemplo, hoje, distinguimos os ensaios da literatura. Chamaremos de escritor um romancista, mas chamaremos mais dificilmente um ensasta de escritor, palavra pejorativa. Tudo isso tende a mostrar que o leitor defrontado com um texto j codificado e que sua leitura vai ser orientada inconscientemente.

    R.C.: Creio que existem duas abordagens dos sistemas de classi-licaco da leitura. A primeira reconhece as classificaes explcitas, < >1 jjeios de divergncias e afrontamento, sejam as divises da ordem do s.iher ou as classificaes bibliogrficas - assim como a de Gesner, no

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  • A LEITURA: UMA PRTICA CULTURAL

    sculo XVI. Ou ainda as classificaes utilitrias, as das bibliotecas, que permitem classificar os livros e recuper-los facilmente. H um outro aspecto que o sistema de classificao construdo por todo leitor. E o livro pode ele prprio jogar com esses sistemas de classificao mltiplos. Tomarei um exemplo: o da literatura da misria que cons-titui uma parte da Biblioteca Azul publicada, pelos autores de Troyes, para um amplo pblico. Est muito claro que os signos depositados nesses livrinhos jogam com a ambigidade das classificaes possveis. Para alguns leitores, os livros produzem um efeito de realidade e so tomados literalmente. Os pedintes tm realmente uma organizao mo-nrquica, os mendigos esto realmente organizados em corporaes, a gria realmente uma lngua secreta e perigosa. Mas o autor deposita tambm em seu texto algumas aluses e referncias que convidam o leitor atento a no se deixar prender ao p da letra e fazem com que o leitor reconhea a escrita burlesca e a pardia carnavalesca. H portanto a um jogo muito sutil da escrita e da prpria edio sobre a pluralidade possvel das classificaes.

    P E R G U N T A : Poder-se-ia dizer da funo primeira da leitura aquilo que Lvi-Strauss disse da funo primeira da escrita, a saber, que antes de ser um uso esttico desinteressado, um uso de advertncia?

    PB.: Vou esquivar-me um pouco da questo. Penso que o pro-blema muito importante, mas aps dois dias de convvio com his-toriadores, digo somente que h apenas uma resposta histrica o que no quer dizer relativa. Sempre se trata de poder na escrita e na leitura. Penso que j se disse o suficiente, talvez demais. Sendo assim, esse poder varia consideravelmente segundo as conjunturas.

    R.C.: Em todo livro de aprendizagem, h sempre um excedente em relao a essa aprendizagem, seja nos manuais contemporneos ou naqueles do sculo XVII. H sempre na escolha dos exemplos a inculcao de uma ideologia. Os senhores sabem como os historiadores buscaram ver por que, em 1914, pde ser criado um consenso nacional na Alemanha e na Frana (ainda que se tenha talvez exagerado) atravs dos costumes criados pela escola primria face a face com um certo

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  • 1*111 ' IVHJRIUEU / ROGER CHARTIER

    nmero de temas patriticos ou nacionalistas. Assim sendo, sou sempre um lanio reticente diante da idia segundo a qual haveria uma imediata e lotai eficcia das mensagens ideolgicas depositadas sutilmente nos lextos ou manuais. Creio que Pierre Bourdieu tem razo em dizer que as condies histricas do manejo desses motivos importam tanto quanto seu contedo intrnseco. A fora de imposio das significaes depende das condies histricas nas quais so manipuladas.

    P E R G U N T A : O senhor evocou os livros que so dados com seu cdigo de leitura ou seu cdigo narrativo, ou as pinturas que so da-das com seu protocolo de leitura. No h uma dinmica do protocolo de leitura, uma dinmica do cdigo de leitura? Para dizer as coisas sem rodeios, por exemplo, quando a semiologia de vanguarda tiver chegado aos liceus, no haver apenas a semiologia de vanguarda como protocolo de leitura?

    P.B.: Posso reformular a questo para ver se a compreendi? O se-nhor quer dizer que o protocolo superado no momento em que se enuncia?

    PERGUNTA: N O momento em que vulgarizado, em que difundido...

    P.B.: Sim, isso faz parte, enfim, dos fatores que explicam que o intelectual algum que perde o controle do sentido de suas obras. Um especialista em assuntos chineses, Levenson, dizia aproxima-damente que nos esquecemos de que um livro muda pelo fato de que no muda enquanto o mundo muda. muito simples. Quando o livro permanece e o mundo em torno dele muda, o livro muda. Por fim, o espao dos livros em que sero lidos mudar. Um texto que hoje parece estruturalista amanh vai parecer durkheimiano, pelo simples fato de que o universo dos compossveis ter mudado. () esforo do intelectual para controlar o uso de seu prprio produto e necessariamente desesperado, e isso apenas porque transformar a recepo por meio desse produto. Da mesma maneira, por exemplo, c isio e dar crdito alis aos intelectuais, dever (como dizia Marx: "eu nao sou marxista") passar seu tempo dizendo que no preciso

  • A LEITURA: UMA PRTICA CULTURAL

    l-lo como ns o lemos ou que ele mudou em relao ao que disse, ou destruindo os efeitos de seus produtos antigos, que tornam difcil a leitura de seu novo produto. Mas existem outros efeitos. De um ponto de vista normativo, penso que se pode dizer que, no universo cultural como em toda parte, enquanto h luta, h esperana. Atual-mente, onde h uma ortodoxia, um monoplio da leitura legtima, um monoplio absoluto, no h mais leitura e freqentemente nem mesmo leitores!

    PERGUNTA: Sobre o tema do poder da escrita, o senhor disse, Pierre Bourdieu, que o grafismo era uma inteno de manipular a recepo. No haveria outra via de abordagem e de manipulao, que abrigaria um estudo talvez mais sistemtico de todas as formas da escrita? Penso em particular na distribuio sinttica de que falou Roger Chartier. No haveria uma maneira de comparar-se a forma do texto com o sentido aparente que deseja ser dado pelo texto?

    R.C.: Sobre esses pontos, falamos rpido demais. Creio que a idia de retornar ao objeto para interrog-lo o mais profundamente possvel naquilo que pode nos ensinar sobre sua leitura possvel implica uma tenso extrema, uma vez que, em boa lgica, impossvel recons-truir uma relao conhecendo apenas um de seus termos. Portanto, h uma aposta quase impossvel. Mas talvez dever dos historiadores e socilogos ao menos arrisc-la. O senhor tem razo de dizer que a interrogao muito global, e creio que se devem distinguir os proce-dimentos da colocao em texto dos procedimentos da composio em livro. E isso no efetivamente a mesma coisa. Os procedimentos de elaborao de texto so constitudos pelo conjunto dos procedimentos retricos, dos comandos que so dados ao leitor, dos meios pelos quais o texto construdo, dos elementos que devem conduzir convico ou ao prazer. Existem, de outra parte, os procedimentos de compor em livro, que podem apropriar-se diferentemente do mesmo texto. Eles variam historicamente e tambm em funo de projetos editoriais que visam a usos ou leituras diferentes. Portanto, sobre um mesmo texto, que tem suas prprias regras de elaborao, os procedimentos de se compor em livro podem variar de maneira extremamente acentuada.

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  • Pi RR BouRiutu / RIXHR CHARTIER

    A pergunta histrica deve atuar justamente sobre esses dois registros. Um remete para o lado da anlise e da pragmtica dos textos, da anlise das formas retricas, do estudo literrio. O outro remete para um saber mais tcnico, o da histria do livro, da bibliografia material, da histria da tipografia. Creio que de seu cruzamento poder nascer uma reinterrogao do objeto-livro em funo dos problemas que hoje colocamos.

    P.B.: Acrescento uma palavra. Como se faz freqentemente nas cincias sociais, escrevemos certo por linhas tortas: priorizamos os contedos da mensagem escrita que correm o risco de exercer efeitos de persuaso clandestina, o que pode passar mais despercebido. Antes e depois de Aristteles, estamos preparados para balizar os efeitos retricos, mas possvel esquecermos os efeitos de extenso do pargrafo, os efeitos de formato do texto ou de qualidade do papel, de que falamos hoje, e por isso que insistimos sobre esses aspectos, mas evidentemente podemos raciocinar a fortiori. Dizemos com freqncia que a sociologia no serve para nada ou que ela pessimista, que ensina o fatalismo social. Creio que h a um exemplo de como pode contribuir para uma prtica pedaggica, por exemplo, de como uma sociologia ou uma histria social da narrativa pode contribuir, por exemplo, para uma prtica pedaggica. Pode dar s pessoas instrumentos de defesa contra os efeitos de persuaso clan-destina que os escritos exercem. Assim como existem armas como o jud para a autodefesa fsica, penso que um certo tipo de anlise histrica das estratgias ocultas de manipulao do leitor pode ter um efeito liberador.

    PERGUNTA: Estou pensando em textos polticos ou em panfletos sindicais. Tais escritos preciso ler no somente em seu contedo, mas tambm em sua forma, que um meio de ao sobre o leitor.

    PB.: Sim, evidentemente, nessa retrica, a poltica no est l onde se acredita. Penso que o mais importante politicamente est muitas vezes no insignificante. Assim, em Maio de 68, viu-se muito bem, atravs do aparecimento de uma nova retrica, do panfleto ou

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  • A mu 'ii > i ii i M'h 11 n \ i i 'i 11 'ii >i

    ilo cartaz, at que ponto a retrica antiga esta\.i i iu |i.ul.i \ m -.. aparecer grande liberdade no modo de expresso, no siipoiic il.i expresso, no estilo, etc., que faziam aparecer o carter esclen >sad< >, rgido, cristalizado, dos modos de expresso em vigor. Assim como as manifestaes de estudantes que queimavam as bandeiras, ou as cartas de convocao, etc., revelaram at que ponto as estratgias de lutas tradicionais estavam estereotipadas. Assim como, s vezes, o essencial do que diz um texto ou um discurso est naquilo que ele no diz. Est na forma em que o diz, est na entonao, de que nos falou Franois Bresson e que uma das mediaes entre a leitura, esse ato muito abstrato de inteleco, e o corpo. Penso que a maneira de falar intervm naquilo que dito, talvez por efeito da crena que ela produz. H uma maneira de falar neutralizada, retrica, oratria, etc., que faz com que, mesmo que concordemos com o que ouvimos, no creiamos nela. Haveria muito a dizer sobre esse ponto. Penso, por exemplo, que assim que procuramos mudar o contedo de uma mensagem poltica sem mudar a retrica, a mensagem poltica afinal no muda tanto. Por qu? Porque mudar a mensagem poltica na sua forma supe uma mudana mais profunda do emissor do que uma mudana do contedo da mensagem poltica. Mas eu fico por aqui no tocante a esse tema, pois me tornaria subversivo.

    PERGUNTA: Gostaria de saber se o sistema social levado a transfor-mar obrigatria e quase automaticamente todo fato social em dinmica de poder. Quando algum que escreve, um poeta qualquer, escreve alguma coisa que ter fora, todo sistema social levado a transformar essa produo em poder?

    PB.: sempre a histria de escrever certo por linhas tortas. Temos de tal maneira tendncia a esquecer, em nome de uma viso sacra-lizada, religiosa, tudo o que intelectual, produo intelectual, etc., que muito importante, de forma um pouco obsessiva e insistente, dizer que tambm questo de poder. A que est. Mas no creia que pensamos apenas nisso!

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