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MUNDO MODERNO UM FILME DE SABRINA MALEK E ARNAUD SOULIER DOCUMENTÁRIO FRANÇA 2005 CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC DOC TAGV / FEUC INTEGRAÇÃO MUNDIAL, DESINTEGRAÇÃO NACIONAL: A CRISE NOS MERCADOS DE TRABALHO

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS … · a noção de profissão parece dissolver-se, para se reduzir unicamente à dimensão de se trabalhar só para ganhar a vida

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MUNDOMODERNO

UM FILME DE SABRINA MALEK E ARNAUD SOULIER

DOCUMENTÁRIO

FRANÇA 2005

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC

DOC TAGV / FEUC

INTEGRAÇãO MUNDIAL, DESINTEGRAÇãO NACIONAL:

A CRISE NOS MERCADOS DE TRABALhO

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC

DOC TAGV / FEUC

INTEGRAÇãO MUNDIAL, DESINTEGRAÇãO NACIONAL:

A CRISE NOS MERCADOS DE TRABALhO

A REDE MUNDIAL DA pRECARIEDADE NO TRABALhO:

UM ExEMpLO NA CONSTRUÇãO NAvAL

UM MUNDO MODERNO

UM FILME DE SABRINA MALEK E ARNAUD SOULIER

DOCUMENTáRIO, FRANçA, 2005

DEBATE COM A pARTICIpAçãO DE:

MÁRIO SOARES

JOSé MANUEL pUREzA (FEUC)

LUíS MOURA RAMOS (FEUC)

TEATRO ACADéMICO DE GIL VICENTE

15 DE SETEMBRO DE 2007

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1. O TRABALhO E A pRECARIEDADE:

REFLExõES SOBRE O FILME Mundo Moderno 1

Mundo ModernoDossier de imprensa

Sinopse

Há alguns anos, os estaleiros navais “Chantiers de l’Atlantique”, situados em Saint-Nazaire (França), introduziram novas formas de organização laboral, tendo como fundamentação o objectivo de redução dos custos de produção. O lema consistiu em recorrer maciçamente à subcontratação e ao trabalho temporário. Os trabalhadores dos estaleiros contam-nos como viveram esta precariedade organizada, no contexto da construção do maior navio do mundo, o Queen Mary 2. Quais as consequências deste tipo de reorganização a nível individual e colectivo? Que alterações provoca nas condições de trabalho e nas relações laborais?

Filmar o trabalho

Os antecedentes deste filme remontam a Setembro de 2002, quando o “Centro de Cultura Popular Saint-Nazaire” (associação inter-comités de empresa) se ofereceu para nos receber pelo período de um ano. Esta longa imersão permitiu-nos definir que tipo de filme queríamos fazer. Retratar um certo mundo moderno, ou de como o trabalho tinha vindo a ser reorganizado nestes últimos anos nos “Chantiers de l’Atlantique”, tornando cada vez mais precárias as relações laborais - sendo esta reorganização, para nós, um paradigma das mudanças que atravessam o mundo do trabalho como um todo.

1 Título nosso.

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Entrar nos “Chantiers de l’Atlantique” para filmar livremente a actividade laboral revelou-se impossível, porque nunca conseguimos obter as necessárias autorizações de filmagem.

A impossibilidade de filmar a actividade laboral não nos impediu, contudo, de conseguir que esta esteja presente no filme. Mantivemo-nos às portas da empresa, o mais perto possível das grades, e é daí, com essa “distância”, que filmámos a actividade laboral. Na verdade, a representação do trabalho nunca foi tratada muito a fundo pelo cinema. Basta-nos pensar nos irmãos Lumière, que já filmavam às portas da sua fábrica (cf. a “Saída das Fábricas Lumière”). Quando as câmaras podiam penetrar nos locais de trabalho, era, na maior parte dos casos, em situações excepcionais em que o trabalho estava paralisado (greve, ocupação, encerramento, deslocalização...). É como se, ainda hoje, a questão da representação do trabalho seja um tabu. Optámos, por conseguinte, por trabalhar nestas condições de proibição e colocámos a nossa câmara de filmar nos principais lugares à volta dos Estaleiros. São as palavras dos trabalhadores que nos transportam lá para dentro.

Intenção

Uma cidade, Saint-Nazaire.

Campos verdejantes, vacas a pastar, a essência do Loire e do percurso sinuoso do rio. As rodas do comboio soam ritmadas nas ligações dos carris. Estamos no comboio entre Nantes e Saint-Nazaire. A uma dezena de quilómetros antes da chegada, as vacas nos prados dão lugar a grandes tanques de armazenamento. São os tanques de petróleo da refinaria de Donges. Um odor acre e desagradável penetra profundamente no comboio, desvanecendo-se somente um ou dois quilómetros mais à frente, depois de se ter passado pelos diversos emaranhados de tubagens da refinaria. Donges é o ponto de partida de uma sucessão de zonas industriais que ladeiam o rio Loire até ao centro da cidade. O terminal petrolífero, o terminal de metanol, os estaleiros e as suas numerosas unidades de armazenamento ou de transformação, as instalações da indústria aero-espacial, com os seus enormes hangares que acolhem os aviões em construção, e por último, no final da linha, um dos orgulhos da cidade, os “Chantiers de l’Atlantique”, com a sua ponte sobreposta ao rio Loire. Aqui diz-se “os Estaleiros” ou “ a Naval”. Os estaleiros são imediatamente identificáveis pela sua imensa ponte rolante, marcada com o símbolo da Alstom, e pelas

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chaminés dos “reis dos mares” que dominam as infra-estruturas dos estaleiros. As rodas do comboio chiam sob a pressão dos travões e entramos na estação. Logo que descemos do comboio, eis-nos imediatamente mergulhados no universo de Saint-Nazaire. Em alinhamento com os carris, os navios em construção dominam plenamente os tectos da cidade. A estação também não escapa aos desígnios desta cidade, sendo construída com a forma de navio.

No centro da cidade, as ruas, muito largas, todas elas perpendiculares umas às outras, são ladeadas de edifícios não muito altos. A arquitectura data dos anos 50, recorda-nos Brest, Caen ou Calais. Arrasada durante a guerra, Saint-Nazaire foi reconstruída sob o modelo “americano”. Contrariamente a Baule, situada a alguns quilómetros, a zona frontal ao mar não é aqui o centro nevrálgico da cidade. Nem restaurantes, nem cafés, somente alguns bancos dispersos bordejam o passeio. A cidade parece resolutamente de costas voltadas para o mar.

Passadas estas primeiras impressões, o que chama particularmente a atenção é o grande número de agências de trabalho temporário. Ao longo dos últimos anos, têm substituído gradualmente os bares no centro da cidade e no bairro de Penhoët, perto dos Estaleiros. Esta presença maciça reforça a nossa percepção de uma cidade construída, estruturada, organizada em função de um só eixo, o trabalho. A imagem do trabalho, que tínhamos como uma imagem de firmeza, manifesta-se perante nós, finalmente, sob o prisma da precariedade, da fragilidade. Como é que a precariedade organizada se instalou em Saint-Nazaire?

Reorganização do trabalho ou organização da precariedade

Vilvorde, Lewis, Marks & Spencer, LU e, mais recentemente, Metal Europe, tantos nomes que evocam despedimentos, perda de identidade social, regiões destruídas, dramas humanos. O desafio do filme não será retratar o encerramento de uma determinada empresa e as suas consequências, mas sim o de sintetizar a situação geral, ou seja, a generalização do trabalho precário e, a partir daí, questionar as alterações operadas nas relações de trabalho dequem trabalha neste novo contexto. Ao longo dos anos, assistimos a alterações profundas na organização do trabalho e, por conseguinte, na percepção que se tem do próprio trabalho. Exige-se, gradualmente, dos trabalhadores mais polivalência, mais disponibilidade, mais flexibilidade na utilização do tempo de trabalho, mais mobilidade, mais rentabilidade, etc. Em contrapartida, temos os tempos livres, a sociedade do lazer.

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Desenha-se, pouco a pouco, uma sociedade ilusória, de cenários de papelão, onde, com um simples bilhete de lotaria, se fica milionário, onde uma passagem pela televisão nos dá acesso à fama, onde comprar um automóvel, uma casa, vestuário, um microondas são as nossas únicas preocupações, enfim, onde o desejo de ter, ultrapassa e é mais importante que o desejo de ser. Onde, por isso mesmo, o trabalho, o seu lugar e as condições em que ele se efectua deixam de ser importantes.

Também não se trata, neste filme, de uma visão nostálgica, com referência a um “Eldorado” já desaparecido, em que o assalariado vai “para o trabalho” todo contente. Quer esteja na situação de contrato sem termo ou como temporário, um trabalhador é sempre um trabalhador. Em contrapartida, a erosão de contra-poder nas relações entre assalariados e proprietários, a redução ou o pôr em causa de certas conquistas sociais e de numerosas convenções colectivas, o enfraquecimento das organizações sindicais, vem acompanhando esta alteração da organização do trabalho, a qual é apresentada como uma necessidade, ou mesmo, como uma fatalidade. Como a vivem e como a pensam os trabalhadores? Quais as consequências que esta nova reorganização do trabalho provoca a nível individual e colectivo? No que é que isto altera a relação dos assalariados com o seu trabalho? E nas relações entre assalariados? Que identidade social se pode construir a partir destas mudanças?

Esta reorganização do trabalho, apresentada como necessária e inelutável para quem quer continuar a ser competitivo num mundo em total mutação, arrisca-se, a médio prazo, a conduzir a nossa sociedade “moderna” para uma desorganização total. De ano para ano, o estatuto de assalariado degrada-se. Daqui a algum tempo, o que é que restará deste estatuto? Ainda existirá, ou será que cada indivíduo, trabalhador independente, se limitará simplesmente a vender no mercado de trabalho a sua capacidade de produzir?

O fraccionamento em múltiplas pequenas sociedades em proveito da mais forte (a subcontratação) bem como a multiplicação de estatutos mais ou menos precários para os assalariados, agrupados em pequenas unidades (os contratos temporários), levam-nos a pensar assim. Este esquema observa-se em todos os sectores da sociedade. Ultimamente, a reforma das condições de passagem à reforma e, em breve, do regime da segurança social, inscrevem-se nesta mesma lógica. A coberto da liberdade e da independência, as nossas sociedades “modernas” tendem na verdade a fabricar indivíduos que se devem “encarregar de si próprios, que devem ser, cada um, como “uma empresa”, eliminando, assim, tudo o

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que é da esfera do colectivo. Estas noções são gradualmente incutidas nos trabalhadores mais jovens. A diversidade do trabalho, o aumento das responsabilidades, conforta-os nessa consciencialização. Estes mesmos assalariados confessam, no entanto, serem confrontados com condições de trabalho cada vez mais difíceis, física e psicologicamente. Além disso, a noção de profissão parece dissolver-se, para se reduzir unicamente à dimensão de se trabalhar só para ganhar a vida.

Temos a noção de que o que contribuiu para a aceitação desta situação por parte de certos assalariados foi uma ruptura de transmissão que se operou nos últimos vinte anos. É como se os assalariados mais jovens não tenham nada a ver, não façam parte da história social do país. O único sentido que parecem pôr naquilo que fazem, é ganhar dinheiro, sem se importarem grandemente com o colectivo, com as conquistas sociais. Esta mesma lógica reencontramo-la também do lado dos empregadores. O que predomina é a visão de curto prazo.

Assim, a outra consequência desta reorganização do trabalho é a diluição das relações sociais.

2. FESTIvAIS E pRéMIOS

Selecções:Festival de DouarnenezÉtats généraux du Film Documentaire (Lussas)Festival d’UzesteFestival Résonances (Bobigny)Festival BesançonFestival Escales Documentaires (La Rochelle)Regards sur le travail (Bruxelles, Belgique)Festival des luttes sociales (Roubaix)Festival des Étonnants voyageurs (Saint-Malo)

PrémiosPrix du Festival Les Écrans Documentaires2004 (Arcueil)

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3. FILMOGRAFIA DOS AUTORES

Principais realizações de filmes de Sabrina Malek e Arnaud Soulier:

-René Vautier, cinéaste franc-tireur (documentário , 60 minutos, DVCam, 2000-2002)Produção: TS Productions, Les films de mars, France 3 OuestDifundido na estação de televisão France 3 (Novembro 2004) e France 3 Ouest

(17 Maio 2003), no Festival International du Documentaire de Marselha (Julho 2002),no Festival international des minorité de Douarnenez (Agosto 2002), eseleccionado para o Fipa, em Biarritz (Janeiro 2003).

-Une autre route(documentário, 66 minutos, Beta SP, 1999-2001)Produção : Cémea, TS ProductionsDifundido no canal de televisão Arte, em La vie en face (5 Junho 2001).

-Paroles de grève(documentário, 52 minutos, Beta SP, 1996)Produção : Cémea NTC, Lucie FilmsDifundido no canal Arte, em La vie en face (17 Dezembro de 1996), Prémio: Prix des Journalistes Ferroviaires, no Festival International du Film

Ferroviaire, Tours (1997).

-Chemins de traverse(documentário, 84 minutos, Beta SP, 1996)Produção : Cémea NTC, Lucie Films (1996)Prémio : Prix du Patrimoine no Festival du Cinéma du Réel (Paris, 1997).

Os pontos 1., 2. e 3. foram traduzidos de Un Monde Moderne, Dossier de Press, documento disponível em

http://lesfilmsdemars.free.fr/unmondemoderne/pdf/dp_unmondemoderne.pdf.

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4. TRABALhADORES DESCARTÁvEIS

Antoine MathEconomista, Instituto de Investigação

Económica e Social (IRES)Alexis Spire,

Sociólogo, Centro de Estudos e de Investigação de Administração e de Políticas (CERAP)

Plein Droit, n.° 61, Junho, 2004

A modalidade (ou modo) de prestação de serviços prevista no Acordo Geral sobre o Comércio e Serviços (AGCS) 2, e referenciada em 4.º lugar (doravante designada por “modo 4”) visa, em nome da livre concorrência, facilitar a transacção mundial de serviços entre empresas, permitindo recorrer a trabalhadores migrantes deslocados. Este “modo 4” inscreve-se numa tendência mais geral das políticas que privilegiam migrações de trabalhadores deslocados sob contrato de trabalho e com maior sujeição ao empregador. O que põe em causa a igualdade dos direitos e das normas que regem o emprego.

Em Setembro de 2003, em Cancun, os países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) deviam renegociar o Acordo Geral sobre o Comércio e Serviços (AGCS) com o objectivo de estender a liberalização da transacção de serviços a novos sectores e a novas modalidades - ou modos - de fornecimento de serviços. Os representantes dos diferentes países da OMC não conseguiram chegar a acordo, mas falou-se muito, nesta ocasião, do modo 4 do AGCS, o qual permitiria a deslocação de emigrantes temporários, em condições de trabalho e de salário bem mais precárias que as que estariam em vigor no país de acolhimento. A aplicação do modo 4 do AGCS não constituiria, de resto, uma

2 Veja-se documento da Attac sobre a OMC e o AGS, pag.19.

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novidade radical: situa-se no prolongamento do que existe já em matéria de destacamento de emigrantes temporários no âmbito de uma prestação transfronteiriça de serviços. Esta forma de mobilização da mão-de-obra estrangeira deixa emergir uma nova categoria de trabalhador, a do migrante destacado: trata-se de um estrangeiro que tem o direito de permanecer no território apenas no âmbito da sua relação contratual com o seu empregador e que é obrigado a regressar ao seu país em qualquer momento, por vontade do empregador e, em qualquer caso, no final do contrato de serviços.

Um tal regime permite tornar compatível o crivo das fronteiras dos Estados mais desenvolvidos com a necessidade das empresas em recorrerem a trabalhadores migrantes, naturalmente mais maleáveis e mais dóceis que os que integram o mercado de trabalho nos países mais desenvolvidos. Assim sendo, os termos do debate sobre o futuro da imigração devem ser reformulados: o importante não é saber qual será a quantidade de migrantes necessária para o mercado de trabalho, como o pretende o discurso dominante, mas antes, quais serão as condições legais e sociais em que os migrantes serão mantidos.

A característica principal do AGCS é a de alargar ainda mais a mercantilização das actividades humanas, indo muito para além duma simples extensão das transacções dos serviços. O AGCS cobre de tal modo todos os sectores, que todas as actividades humanas são potencialmente visadas, incluindo a saúde, os serviços sociais, a educação, os serviços recreativos, culturais e desportivos, a investigação, o turismo, os transportes, as telecomunicações, os serviços de ambiente (água, energia, etc.) ou mesmo a genética. Além disso, o AGCS segue as regras da OMC, que vão bem para além dos acordos de comércio livre do GATT e ultrapassam o que pode ser considerado propriamente como comércio enquanto tal: qualquer país pode contestar como “barreira ilegal ao comércio” qualquer medida (lei, decisão) nacional ou local num outro país, se esta medida, no âmbito, por exemplo, social ou ambiental, comprometer as vantagens ou lucros que as empresas estrangeiras podiam razoavelmente esperar obter nos termos dos compromissos assumidos pelos Estados no Acordo AGCS.

Migrantes destacados

A lógica da liberalização das trocas defendida pela OMC visa sobretudo corresponder aos interesses das empresas, e mais particularmente aos dos países do Norte. O modo 4 do AGCS é uma das quatro formas de exportar um serviço nos termos do AGCS, quando

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este serviço é fornecido através da deslocação temporária de pessoas por uma empresa, para efectuar uma prestação de serviços num outro país. Neste quadro, trata-se de definir as concessões e os direitos das empresas que efectuam as transacções, mas a livre circulação prevista não é aplicável às pessoas, por forma a que o Acordo continue a ser compatível com as legislações nacionais restritivas de entrada e estadia de estrangeiros. O emigrante destacado não adquire nenhum direito à estadia.

Este processo de liberalização institucionaliza a categoria do migrante destacado, cujo contrato de trabalho é estabelecido no país de origem, com o risco, se nenhuma restrição ao livre comércio dos serviços estiver prevista, que sejam as regras sociais do país de origem que lhe sejam aplicáveis. Ao contrário da prática da utilização do trabalho de estrangeiros em situação irregular, esta forma de “deslocação localizada” efectuar-se-ia, não como irregularidade, mas no âmbito de uma nova legalidade internacional.

Uma tal lógica de dumping social, através do modo 4, inscreve-se na continuidade do princípio da livre - troca, tal como é defendido pela OMC. A deslocação, por períodos curtos, de trabalhadores destacados permitiria pôr em concorrência directa sistemas produtivos diferentes e fazer pressão sobre os salários. O secretariado da OMC escrevia o seguinte a propósito dos serviços de saúde: “os benefícios significativos não virão tanto da construção e da gestão dos hospitais, etc., mas sim da possibilidade de empregar pessoal mais qualificado, mais eficaz e/ou mais barato do que o que se poderia encontrar no mercado trabalho local” 3.

Perante esta lógica, potencialmente destrutiva dos sistemas sociais mais desenvolvidos, as organizações sindicais pediram garantias, tais como a protecção dos trabalhadores migrantes contra qualquer forma de discriminação, o respeito das normas de trabalho internacionais e das leis nacionais sobre o trabalho e sobre a segurança social, e o respeito dos acordos colectivos. 4

Contrariamente a algumas declarações alarmistas, os líderes da UE comprometeram-se, aquando da preparação da cimeira de Cancun, a que “as condições de trabalho, os requisitos salariais mínimos e eventuais convenções colectivas salariais em vigor na UE [permaneçam]

3 Secretariado da l’OMC, «Background note on health and social services».4 Declaração dos sindicatos sobre as negociações AGCS, Global Unions, Etuc et Wcl, 7 junho de 2002.

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aplicáveis” 5. Estas condições incidem sobre quatro categorias de trabalhadores: os quadros dirigentes, os visitantes de negócios, os assalariados no âmbito de um fornecimento contratual de serviços e os trabalhadores independentes.

Até agora, nenhuma destas propostas tem sido aplicada, dado que os negociadores de Cancun não chegaram a acordo, mas é necessário ter em conta as transformações já em vigor a nível europeu. O modo 4 do AGCS existe já em certas situações e para certos sectores. Além disso, é apenas uma das formas possíveis existentes no âmbito das legislações comunitárias e nacionais no que diz respeito à deslocação de trabalhadores temporários para uma prestação transfronteiriça de serviços.

A nível comunitário, diferentes textos definem já as regras relativas aos trabalhadores migrantes destacados no Espaço Económico Europeu (EEE). A liberdade de circulação de serviços é uma regra geral na Comunidade Europeia, mas uma directiva adoptada em 1996 (96/71/CE) veio limitá-la um pouco, impondo que o assalariado deslocado no âmbito de uma prestação de serviços no EEE beneficie das regras sociais do país de exercício da actividade. O falso destacamento é, além disso, proibido: deve existir previamente uma relação de trabalho entre a empresa de origem e o trabalhador destacado.

Nenhum direito à estadia

Neste caso, o empregador deve aplicar aos trabalhadores deslocados as regras do país em que se executa a actividade, em especial no que respeita aos períodos máximos de trabalho e aos períodos mínimos de descanso, às férias anuais, ao salário mínimo, e, por último, às regras de segurança e higiene no trabalho. Para destacamentos por menos de um mês, as empresas podem, contudo, subtrair-se a algumas destas obrigações. Podem, igualmente, escapar às restrições que incidem sobre os cidadãos de Estados terceiros em matéria de livre circulação na UE. Com efeito, em nome da livre circulação dos serviços, uma empresa implantada na União pode perfeitamente deslocar no espaço EEE um dos seus assalariados, cidadão comunitário ou não, cujo direito a aí permanecer está, então, estritamente sujeito à vontade da empresa no âmbito da prestação dos serviços: “ao contrário dos trabalhadores migrantes, os trabalhadores destacados no âmbito da prestação de serviços voltam ao seu

5 Comissão Europeia, «OMC – services. L’UE propose d’améliorer les échanges commerciaux au bénéfice des pays en développement» IP/03/582, Bruxelas, 29 de Abril 2003.

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país de origem após o cumprimento da sua missão, sem ter acesso, em momento algum, ao mercado de emprego do Estado-Membro de acolhimento” 6. Estas regras foram transpostas para o direito do trabalho francês, e estendem-se a qualquer prestação transfronteiriça de serviços, incluindo a de uma empresa implantada fora da Europa 7.

Em matéria de protecção social, o empregador deve, em princípio, pagar as contribuições aos organismos do país onde a actividade é exercida e o assalariado beneficia do regime de segurança social deste mesmo país. Mas, no caso de um trabalhador destacado no âmbito de uma prestação de serviço no espaço EEE (ou na Suíça), é possível manter a integração no regime de segurança social do país de origem. O Regulamento 1408/71 define as condições, nomeadamente a duração limitada a doze meses, excepcionalmente prolongável a mais doze meses. As convenções bilaterais entre a França e cerca de trinta países (entre os quais os do Magrebe, a Turquia, as Filipinas, os Estados Unidos) permitem, igualmente, às empresas implantadas nestes países efectuarem tais destacamentos e beneficiarem, assim, da isenção das contribuições.

Há normas mínimas aplicáveis em matéria de direito do trabalho ou protecção social que, por conseguinte, estão previstas pelas legislações comunitárias e francesas, a fim de evitar que possam desenvolver-se actividades exercidas por trabalhadores que têm direitos sociais bem inferiores aos que estão em vigor no mercado nacional de trabalho. Mas, na prática, a utilização de migrantes destacados abre o caminho à erosão das normas sociais, por três razões cumulativas.

A primeira tem a ver com a dificuldade em fazer respeitar as normas sociais obrigatórias, devido ao número insuficiente de inspectores do trabalho e à fraca presença sindical em numerosas empresas. As ilegalidades são ainda mais difíceis de detectar quando se trata de trabalhadores destacados que chegam, por um período limitado, a um país de que nem sempre conhecem quer a língua quer a legislação. A natureza temporária dos empregos limita igualmente, de forma acentuada, as possibilidades de controlo da administração e favorece o ensejo de contornar as normas aplicáveis ao trabalho. Assim, há cada vez mais

6 Communicação da Commissão Europeia de 25de Julho de 2003 sobre a aplicação da directiva 96/71/CE nos Estados Membros (COM(2003) 458 final).7 As disposições estão nos artigos D. 341-5 e seguintes do Código de Trabalho.

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empresas a deslocar assalariados falsamente destacados, e os inspectores do trabalho têm muita dificuldade em provar a infracção, sobretudo quando os documentos estão na língua de origem dos trabalhadores. No caso das empresas implantadas fora do espaço EEE, as dificuldades para controlar a eficácia das normas legais são ainda maiores. No âmbito do modo 4, o risco seria o de nos depararmos com uma miríade de empresas instaladas em paragens longínquas, mas sem implantação real nessas paragens, alimentando o nosso mercado de trabalho temporário pela utilização de trabalhadores incessantemente renovados.

O segundo risco de erosão das normas sociais vem da posição de subordinação muito forte que os trabalhadores destacados têm para com o empregador. O seu direito à estadia, estando estritamente condicionado à realização da prestação do serviço, leva a que disponha de um poder de negociação muito desfavorável. No caso de litígio, corre o risco de, em qualquer momento, perder não somente o emprego, tal como os outros assalariados, mas também o direito de permanecer no território. A natureza muito temporária da estadia e o poder absoluto conferido ao empregador impedem, igualmente, qualquer possibilidade de representação sindical.

A terceira razão que favorece o ensejo de contornar as normas sociais reside na desigualdade de tratamento relativamente aos assalariados locais. Com efeito, o assalariado estrangeiro deslocado para França no âmbito de uma prestação transfronteiriça de serviços não beneficia de todas as normas legais do direito do trabalho: não pode prevalecer-se das regras relativas ao contrato de trabalho, ao despedimento, à representação e, sobretudo, à tabela salarial para além do salário mínimo (e nem mesmo a este último em certos casos). Pode, por exemplo, ocupar um posto de trabalho pago pelo salário mínimo, quando a tabela salarial no mercado de trabalho do país de acolhimento para o mesmo tipo de emprego é mais elevada; neste caso, não pode fazer intervir a concorrência para obter uma remuneração correspondente ao emprego que ocupa.

Ao contrário de qualquer outro assalariado residente, e excepto se for de nacionalidade dum dos países do espaço EEE (ou da Suíça), não beneficia da livre circulação e não pode, por conseguinte, ameaçar mudar de empregador. O risco de erosão das normas sociais é neste caso bem real. Assim, na sequência da concretização, no início dos anos 90, do acordo único dos serviços no espaço EEE, subcontratantes portugueses, e seguidamente polacos, entraram no mercado alemão fornecendo mão-de-obra muito barata e utilizando

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o sistema de substituição contínua. O recurso a esta mão-de-obra estrangeira, em sistema de destacamento, constituiu na Alemanha uma forte pressão à baixa dos salários e provocou uma erosão das convenções laborais existentes.

O que é verdade no espaço EEE, sê-lo-á mais ainda no âmbito do AGCS, que autoriza os Estados a limitarem a imigração com “a condição de não anular ou comprometer as vantagens [para as empresas] decorrentes” do livre fornecimento de serviços no quadro do modo 4. As empresas podem assim recorrer a trabalhadores estrangeiros, com toda a legalidade, apesar da legislação restritiva sobre a estada de estrangeiros no território. A empresa Alstom pôde, por exemplo, nos estaleiros de Saint-Nazaire, obter autorização para que os seus subcontratados pudessem recorrer legalmente a trabalhadores destacados; esta possibilidade deu seguidamente lugar a inúmeras ilegalidades, que a generalidade da imprensa atribuiu ao rigor insuficiente das leis sobre a imigração. Este erro de análise, largamente difundido, resulta da ignorância das normas legais da livre prestação de serviços no espaço EEE.

Na realidade, o risco de erosão das normas sociais é maior quando o trabalhador migrante é mantido, como acontece no âmbito de um destacamento, num estatuto mais precário e inteiramente subordinado ao empregador. Para se opor a este risco de dumping social, é absurdo querer endurecer ainda mais a legislação sobre a imigração, dado que não é ela que rege a deslocação de trabalhadores destacados. Pelo contrário, será concedendo a estes trabalhadores os mesmos direitos que aos residentes, dando-lhes a possibilidade de se oporem e resistirem às exigências dos empregadores, que se garantirá o respeito efectivo das normas sociais em vigor.

Tradução livre de Antoine Math et Alexis Spire, “Des travailleurs jetables”, Plein Droit, n.° 61, Junho, 2004,

artigo disponível em www.gisti.org/doc/plein-droit/61/jetables.html.

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5. ALSTOM, REI DA SUBCONTRATAÇãO

Plein Droit, n.° 61, Junho, 2004Entrevista de André Fadda

responsável da Union Syndicale Multi-professionnelle (CGT) des Chantiers de l’Atlantique, realizada por Nathalie Ferré

André Fadda é responsável da União Sindical Multi-Profissional (CGT) dos “Chantiers de l’Atlantique” e explica-nos como a Alstom – “Chantiers de l’Atlantique” optou por um modo de funcionamento que anuncia o que se está a desenhar ao nível da OMC, e como é que esta empresa, pelo jogo da subcontratação em cascata a nível internacional, se exime das suas responsabilidades e se propõe fragilizar a consciência colectiva dos trabalhadores, forçando-os a diferentes condições de trabalho. Estas novas relações de poder social levam a questionar a acção sindical.

P. O que é que caracteriza hoje a realidade colectiva dos trabalhadores dos Estaleiros?

R. Primeiro a precariedade. Em 1998, a direcção dos “Chantiers de l’Atlantique” instaurou uma nova estratégia, designada “cap 21”, cujo objectivo evidente é reduzir os custos de construção dos navios em 30%, por razões de competitividade. Realmente, a Alstom-Marine prosseguia – e continua a prosseguir – outro objectivo mais nefasto, o de dividir os trabalhadores. Para o conseguir, a empresa apoia-se no desenvolvimento da subcontratação em cascata: os “Chantiers de l’Atlantique” subcontratam trabalhos a um grande número de empresas, entre 600 e 650, neste local que tem 130 ha. É, obviamente, um meio fácil de a direcção se eximir das suas próprias responsabilidades e furtar-se às suas obrigações, nomeadamente legais e financeiras. O recurso à subcontratação a esta escala provoca, concretamente, a subversão dos estatutos e dos corpos profissionais: não menos de quinze convenções colectivas são aplicáveis nestes estaleiros. O essencial da mão-de-obra das empresas que subcontratam – 70 a 80% dos efectivos – é composto por trabalhadores

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precários (temporários, assalariados sob contratos a termo, estagiários, etc). Embora o pessoal dos Estaleiros se encontre coberto por contratos sem termo, é necessário assinalar a redução regular destes mesmos efectivos, dado que não se substituem nem os assalariados que vão para a reforma, nem os que beneficiaram de “pré-reforma” (efectivo actual dos Estaleiros: 4.000). Assim, a actividade principal dos Estaleiros fica entregue ao regime de subcontratação. É claro que, para a direcção, o recurso, em 1998, a esta “externalização” das tarefas constituía uma espécie de laboratório em que era necessário avaliar os benefícios, nomeadamente, testar as novas formas de poder social que permitissem quebrar o sindicalismo fortemente enraizado e moldar os comportamentos dos trabalhadores colocando-os em concorrência entre si. Atomização e fragmentação da força laboral para impedir qualquer solidariedade e expressão colectiva, eram estes os efeitos que se procuravam alcançar.

P. Neste contexto, como se organizam eficazmente no plano sindical?

R. Para fazer face a uma tal estratégia de divisão do colectivo de trabalhadores, é necessário ir além do sindicalismo de empresa. Assim, em 1998, na sequência de uma reunião entre os sindicatos das empresas subcontratadas, o sindicato dos Estaleiros e os sindicatos do trabalho temporário, criou-se uma coordenação sindical que veio a dar origem à união sindical multi-profissional (USM) – CGT. A palavra de ordem da USM-CGT é clara: a conquista de um estatuto único para todos os que trabalham nos Estaleiros e a obtenção de novos direitos.

Esta estrutura funciona em rede, tendo em conta a dificuldade para organizar os trabalhadores precários e que não têm todos o mesmo empregador. O USM tem como sua missão principal, por um lado, informar os trabalhadores sobre tudo o que se passa nos estaleiros, bem como sobre os seus direitos e, por outro lado, procurar inculcar a noção de reivindicação e de luta e de intervir colectivamente com celeridade no terreno, sempre que é necessário, nomeadamente em caso de situações perigosas ou de infracções aos direitos e liberdades. É necessário ir além das relações clássicas assalariados-empregadores.

P. Quantos assalariados há nos Estaleiros?

R. Desde a saída do Queen Mary II, em Dezembro de 2003, muitas empresas subcontratadas saíram ou desapareceram. Pode considerar-se que 7.500 empregos (no conjunto de todos os estatutos laborais e sectores) foram suprimidos; e ainda se esperam

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mais 2.000 supressões de empregos. Tudo depende das encomendas. Em 2002, chegaram a estar em actividade 14.000 assalariados (destes, entre 8.000 e 9.000 trabalhadores eram trabalhadores subcontratados). Para a construção do navio, vieram trabalhadores de toda a parte, de Marselha, de Abra, de Brest, etc., sem contar com os trabalhadores estrangeiros.

P. Precisamente, falemos destes. Em que quadro vieram?

R. Este quadro inscreve-se na estratégia global da direcção dos estaleiros: após a subcontratação local, regional e nacional, a ALSTOM lançou-se na subcontratação internacional, com o mesmo objectivo de reduzir os custos de construção do navio e anular qualquer possibilidade de luta laboral. Deve aqui ser recordado um episódio que esteve na base de uma campanha mediática de denúncia. No final de 2001, um sindicalizado interceptou um documento altamente confidencial dirigido pelos “Chantiers de l’Atlantique” a várias empresas subcontratadas, um documento com um título evocador: “montagem exótica”. Tratava-se, claramente, de incitar aquelas empresas a recrutarem mão-de-obra a baixos salários “proveniente de países de baixo custo” (Ucrânia, Marrocos, Portugal, Emiratos árabes...). A direcção dos Estaleiros convidava estas mesmas empresas para uma reunião para as apoiar nesta diligência.

A USM denunciou de imediato publicamente esta nota interna e o esquema preconizado, sublinhando o desígnio da ALSTOM em desenvolver a precariedade e a escravidão laboral moderna, servindo-se da máscara da subcontratação, e de pôr em confronto trabalhadores sujeitos a condições de trabalho e de remuneração muito diferentes. Para se justificar, a direcção invocou dificuldades para encontrar mão-de-obra local e exibiu as ofertas de empregos da ANPE por satisfazer. Curiosamente, nestas ofertas, pretendem-se, para trabalharem nos estaleiros, soldadores que falem inglês ou alemão! É claro que a ANPE foi conivente com a direcção dos Estaleiros.

P. Antes de 2001, os “Chantiers de l’Atlantique” nunca tinham recorrido a esta subcontratação internacional?

R. Em 1999, italianos, croatas e portugueses surgiram em pequeno número, no âmbito do “cap 21” e da livre prestação de serviços. As empresas que os recrutavam fora da França, eram, por vezes, francesas, mas sem sequer uma caixa postal naqueles países de origem. Noutros casos, as empresas utilizavam as suas sucursais estrangeiras para fazerem as

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contratações. Já em 1999 a USM-CGT se preocupou com o destino destes trabalhadores, informando-os, em primeiro lugar, dos seus direitos, por folhetos em italiano e em português, e, em seguida, interessando-se pelas suas condições reais de vida e de alojamento. Foi assim que, naquela época, se chegou a saber que os trabalhadores portugueses, seja dito de passagem, trabalhavam 55 horas por semana e viviam numa espécie de acampamento, dormindo em colchões no chão e sem sequer dispor de água quente. Uma semana depois de conhecermos esta realidade, a empresa que os subcontratava arrumou as malas e transferiu-se com os seus assalariados para a petroquímica.

P. Com a construção do Queen Mary, o fenómeno amplificou-se? As condições de trabalho são ainda piores, tendo em conta os imperativos deste estaleiro?

R. Em 2001, chegou um número importante de indianos, croatas, eslovenos, húngaros, romenos, polacos e de gregos. Na USM empreendeu-se então uma melhor organização, de modo a acompanhar, o mais de perto possível, as condições de vida e de trabalho destes trabalhadores, desde o início da sua contratação, bem como do início ao fim de cada dia de trabalho. Detectaram-se muito rapidamente situações inaceitáveis, do ponto de vista das exigências do código do trabalho: falta de vestiários, falta de visitas médicas, nenhumas condições para comerem, trabalho para além da duração máxima de trabalho... Os trabalhadores estão rigorosamente “controlados”: conduzem-nos ao trabalho, depois reconduzem-nos aos lugares de alojamento, às vezes afastados da cidade. Não se lhes permite contactos com o exterior, chegando mesmo à sua proibição. Foi o caso dos trabalhadores croatas. Os que ousaram desobedecer foram transferidos. Estes mesmos assalariados croatas, transportados em camioneta, viviam em aquartelamento dormindo 6 a 8 por quarto, em camas sobrepostas. Os indianos estavam melhor nesta questão, como o estavam também quanto a horários de trabalho, dado que eram os únicos aqui a trabalharem 35 horas.

P. E, no entanto, foram os primeiros a lutar e a fazer greve, não foi?

R. As 35 horas eram para esconder o resto. Os trabalhadores indianos, recrutados em Bombaim e em Kerala por uma empresa indiana que pertence a um grupo ligado à ALSTOM, tinham inicialmente muito medo de falar connosco. Finalmente, pudemos encontrar-nos, mas fora das instalações. Descobrimos, então, que os seus passaportes tinham sido confiscados pela sociedade empregadora, e que, nos dois contratos de trabalho

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estabelecidos para cada assalariado (um em língua mãe e o outro em francês), figurava uma cláusula prevendo o regresso à Índia em caso de indisciplina, e que, nas suas fichas de pagamento apareciam contribuições ao abrigo do seguro de doença... sem que tivessem direito a qualquer reembolso de cuidados médicos ou de medicamentos. Mas há ainda “a cereja em cima do bolo”: na parte inferior da ficha de salário é mencionada uma retenção (de 450 a 500 euros) que pretensamente corresponde a um adiantamento anterior. O que não era verdade: esta soma descontada aos trabalhadores visava reembolsar todas as despesas “havidas com eles” (alimento, transportes, alojamento...). No fim das contas feitas, restava-lhes apenas 300 euros de salário por mês! É necessário, além disso, acrescentar que estes trabalhadores, que eram considerados mesmo qualificados, por terem trabalhado em diversos estaleiros, nomeadamente no Golfo Pérsico, tinham sido recrutados pelo valor mais baixo da convenção colectiva, pelo valor que é pago aos jovens à saída do sistema escolar.

Pôs-se então em marcha um esquema embrionário de coordenação entre os diferentes locais de alojamento e, após quatro meses de preparação, os assalariados indianos entraram em greve (Fevereiro de 2003), manifestando-se e elaborando uma plataforma reivindicativa. A acção acabou por ser um sucesso: os passaportes foram rapidamente restituídos e os famosos “adiantamentos” reembolsados.

Houve, no entanto, bloqueio quanto às classificações profissionais convencionadas. Com o aval da CFDT, o empregador aceitou reexaminar os respectivos coeficientes, mas apenas para o pessoal de enquadramento. Assistiu-se, ao mesmo tempo, a um fenómeno importante de sindicalização dos 230 indianos a trabalhar nos estaleiros; em Junho de 2003, cerca de 180 sindicalizaram-se na CGT, dispostos a empenharem-se no movimento sindical. Um deles passou mesmo a ser delegado sindical, algumas semanas depois.

P. Sabe-se que os romenos também se bateram para denunciar as suas condições de trabalho...

R. Não são os únicos. Aquando da luta dos trabalhadores indianos, os romenos, com efeito, abandonaram os seus locais de trabalho duas horas mais cedo, porque não tinham nada para comer. O empregador tinha suprimido os subsídios de refeição. Dois trabalhadores, de entre os grevistas, foram imediatamente repatriados para a Roménia. Mas sentia-se que as pessoas começavam a perder o medo e estavam prontas para lutarem pelos seus direitos.

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Os gregos, privados de salário há seis meses e não tendo direito senão a parte dos salários, também entraram em luta. Na USM-CGT, intentou-se então uma acção rápida junto da justiça, reclamando-se o pagamento dos salários. Mas foi um insucesso, porque o tribunal declarou-se incompetente, invocando o motivo de que a empresa era internacional, havendo embora matéria para contestação relativamente ao pagamento das remunerações...

Na verdade, olhando com atenção, percebe-se efectivamente que todas as empresas - ditas empregadoras - estão interligadas, e que, por detrás, estão sempre os Estaleiros. Para nós, há um vazio legal no domínio da subcontratação nacional e internacional quanto à responsabilidade financeira do empregador. Em todo o caso, esta acção foi mediatizada e a pressão revelou-se mesmo muito forte, ao ponto de os Estaleiros se terem substituído ao empregador e terem pago aos assalariados 41% das verbas devidas. Recusaram, contudo, pagar mais... A empresa grega fechou as portas na sequência de liquidação judicial e os vinte cinco assalariados gregos decidiram regressar ao seu país.

Entretanto, a centena de trabalhadores romenos, entre os quais os mais combativos recebiam ameaças de morte por parte dos seus empregadores, preparava-se para a luta. Pagos a entre 3 a 4 euros, por hora, muito aquém, por conseguinte, dos mínimos convencionados, estavam privados, mesmo deste salário, desde Junho de 2003. Reclamaram, por conseguinte, para além da restituição destes montantes, o reembolso dos 600 euros que pagaram para vir trabalhar em França. Foi uma luta muito dura, com bloqueio dos acessos aos estaleiros, graças ao apoio dos militantes da CGT. Finalmente, por força da pressão mediática, os trabalhadores foram convocados para um hotel onde se lhes entregou um envelope por troca da assinatura de uma declaração de que estava tudo pago, tendo um camião de Brink trazido o dinheiro fresco. A USM-CGT fez parar esta fantochada e os trabalhadores romenos acabaram por recuperar uma parte dos seus salários. A direcção dos estaleiros, tendo que enfrentar vários movimentos, optou para acabar com a greve – fará uso do mesmo método várias vezes – por denunciar os contratos comerciais que a ligava às referidas empresas subcontratadas. Os trabalhadores deixaram de imediato de ter qualquer legitimidade para permanecerem nos estaleiros.

Os trabalhadores polacos, por sua vez, com contratos de trabalho dos mais estranhos, entraram em greve durante um dia; alguns foram repatriados para a Polónia. Assiste-se então a uma espécie de jogo da cabra-cega: mudança de empregadores, para

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conservar certos trabalhadores na sequência da denúncia dos contratos de subcontratação, ameaça ou repatriamento para os países de origem, quer dos assalariados mais renitentes, quer do conjunto das pessoas da mesma nacionalidade.

P. O que se deve reter destas lutas?

R. A luta destes trabalhadores estrangeiros mostrou que se podia estar na situação de precariedade contratual e, mesmo assim, lutar. A direcção não o esperava: estava convencida que haveria uma grande docilidade. No conjunto, os trabalhadores franceses tiveram muito respeito pelas lutas daqueles trabalhadores. Pode dizer-se a mesma coisa da população em geral, que esteve atenta, não demonstrando nenhuma agressividade. Para os Estaleiros, o recurso à subcontratação e ao trabalho temporário tornou-se um modo de funcionamento, mas daí a imaginar-se que estes trabalhadores, que não dominam nem a língua francesa nem o direito francês, iriam pôr a nu todas as práticas ilegais e, assim, beliscar a imagem de marca da empresa... Para além desta lição, a luta permitiu revelar a realidade dos Estaleiros: estes são precursores do que se prepara mais detalhadamente na OMC e no famoso “modo 4” do Acordo Geral sobre o Comércio dos Serviços (AGCS), isto é, a deslocação de mão-de-obra com vínculo laboral precário, tanto em termos do direito de estadia como dos direitos sociais, a coberto da livre prestação de serviços, para a realização de trabalhos a mais baixo custo. O que é ilegal hoje, tornar-se-á perfeitamente legal amanhã. A esse respeito, o alargamento da União Europeia vai desenvolver estas práticas patronais noutros sectores de actividade. Os objectivos do patronato continuam a ser os mesmos: beneficiar de mão-de-obra barata e de grande flexibilidade laboral através da concorrência com os trabalhadores locais. É o fenómeno da “deslocalização localizada” que é posta em prática. De maneira geral, nos Estaleiros, os assalariados estrangeiros efectuaram entre 240 e 250 horas por mês e foram pagos, cada um deles, a cerca de 1.000 euros. São condições salariais sem qualquer relação com as convenções colectivas. Por último, estas lutas puseram em cheque a estratégia dos Estaleiros e evidenciaram uma falha na legislação francesa que impede que se obriguem a responsabilizar, no caso de subcontratação à escala internacional, os adjudicatários. É necessário inserir nos contratos comerciais de subcontratação uma “cláusula de salvaguarda” que obrigue os adjudicatários a tomar a seu cargo as obrigações dos empregadores subcontratados, no caso destes o não fazerem. Lutar contra o dumping social é defender a ideia da igualdade de tratamento e assegurar aos trabalhadores a protecção prevista pelo código do trabalho francês em todas as suas dimensões (salário, condições de trabalho, de saúde e de segurança nos locais de trabalho...). É, também, conseguir novos direitos que protejam todos os assalariados, qualquer que seja a nacionalidade.

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P. Qual foi o papel da OMI, da inspecção do trabalho e, mais fundamentalmente, dos poderes públicos?

R. Os trabalhadores oriundos de países de fora de União Europeia foram enquadrados no âmbito de contratos OMI. Nestes contratos, em especial no que respeita aos indianos e aos romenos, a tabela horária indicada era a do salário mínimo. Realmente, e como se viu, estes trabalhadores foram pagos abaixo deste limiar legal, e os serviços públicos sabiam-no perfeitamente.

Aquando da “montagem exótica”, os estaleiros, para se justificarem, afirmaram publicamente que os trabalhadores franceses custavam demasiado caro. A inspecção do trabalho, pelo seu lado, não pôde fazer grande coisa. Por falta de meios, de pessoal, mas também por bloqueio da hierarquia, uma vez que eram os inspectores superiores que tinham os processos em mãos. Em Saint-Nazaire, todos estão dependentes da ALSTOM, incluindo certas organizações sindicais. Foi necessário esperar o endurecimento da greve e a saída do antigo dirigente da Administração Regional, para que as autoridades locais interviessem. Assim, na sequência da ruptura do contrato de subcontratação com a empresa, quando os indianos se encontravam completamente desprotegidos, a Administração Regional contribuiu para que não fossem expulsos do alojamento em que estavam, e o apoio popular (comida dos pobres) assegurou-lhes a alimentação. A Câmara Municipal acabou por assumir os encargos do transporte destes trabalhadores entre o local de alojamento e os estaleiros, de modo a que pudessem continuar o seu movimento. É a importância das lutas e da sua forte mediatização, sem esquecer o intuito de preservar a imagem de marca dos estaleiros, que, enfim, levou os poderes públicos a reagir.

P. O que é que veio a acontecer com estes trabalhadores estrangeiros?

R. -Na generalidade, foram-se embora, com a conclusão do contrato, por vezes até antes, como se viu no caso de resposta positiva da entidade patronal às suas reivindicações e protestos. No caso de algumas nacionalidades, a rotação era grande – estada inferior a três meses, sem sequer terem relação com a duração dos trabalhos – de forma a não permitir a estes assalariados que estabelecessem contactos.

Tradução livre de “ALSTOM, roi de la sous-traitance”, Plein Droit, n.° 61, Junho, 2004, artigo disponível em

http://www.gisti.org/doc/plein-droit/61/alstom.html.

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6. A DIRECTIvA BOLKESTEIN EM pRÁTICA:

TRINTA TRABALhADORES pOLACOS víTIMAS DE BANDITISMO pATRONAL

COMUNICADO DE IMpRENSA

Union Syndicale Multiprofessionnelle CGT des Chantiers de l’Atlantique de Saint-Nazaire

Coordination marée noireSaint-Nazaire, 6 de Fevereiro, 2006

Trinta assalariados polacos destacados em França em regime de subcontratação nos estaleiros “Chantiers de l’Atlantique” denunciam a espoliação, as pressões, as ameaças, os vexames, e o seu repatriamento... por terem ousado reclamar o pagamento dos seus salários.

Chegados aos estaleiros em Julho de 2005, os 30 assalariados polacos da sociedade SAFE reclamaram o pagamento das suas remunerações e a aplicação da Convenção Colectiva em vigor na Metalurgia Loire-Atlantique. Estes trabalhadores qualificados trabalham como pintores a bordo dos navios e fazem 65 horas por semana, pagos à tabela de 5,50 euros por hora, sem lhes serem pagas as horas suplementares! Além disso, estes assalariados estão alojados a uns vinte quilómetros de Saint-Nazaire, em verdadeiras barracas, em condições de insalubridade mais absoluta e sem as normas elementares de segurança e de higiene. Na semana passada, a intervenção da confederação sindical CGT permitiu o realojamento destes trabalhadores em condições dignas. Contudo, na noite de sábado, a 4 de Fevereiro, a direcção da SAFE veio fazer ameaças para tentar romper a unidade dos trabalhadores. Fez mesmo o repatriamento forçado de vários trabalhadores para a Polónia.

A sociedade SAFE tem sede em Gdynia, na Polónia, e trabalha em regime de subcontratação para a sociedade alemã COSTAS, sendo esta, por sua vez, subcontratada pelos “Chantiers de l’Atlantique”.

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A sociedade COSTAS já tinha dado que falar em Setembro de 2005 quando os seus 25 trabalhadores polacos, destacados pela sociedade polaca KORPA, tinham posto em greve por razões idênticas.

Na altura deste conflito, a CGT tinha avisado a Direcção dos “Chantiers de l’Atlantique” e os poderes públicos contra o recrudescimento destas práticas à margem da lei. No entanto, em Dezembro passado, outros assalariados polacos, destacados pela sociedade GAWA, também se puseram em luta para defender os seus direitos.

Uma vez mais, a CGT veio exigir dos poderes públicos o fim do “trabalho forçado” nos estaleiros navais.

O Ministro do Trabalho, Gérard LARCHER, e o Primeiro – Ministro Villepin são os principais responsáveis por estes repetidos escândalos. No momento em que AKER, o novo comprador norueguês dos estaleiros, chega com grande pompa, estes dramas sociais confirmam que esta grandeza e prestígio escondem afinal uma realidade social sórdida. O cavalo de Tróia da directiva BOLKESTEIN já faz estragos! A chantagem exercida pela Alstom-Marine sobre a população de Saint-Nazaire com o anúncio “de novas encomendas de navios com a condição de se trabalhar mais barato”, ilustra as fundações desta escravidão moderna nos estaleiros Saint-Nazaire. Pela mão do seu Presidente, Patrick BOISSIER, a cidade portuária regressa aos tempos majestosos dos navios... e dos escravos.

Trabalhadores polacos, vítimas da Máfia polaca

Na noite de quarta para quinta-feira, 9 de Fevereiro, os trabalhadores polacos da sociedade SAFE pediram socorro.

Militantes da CGT foram contactados por telefone, com urgência, porque fortes ameaças de repatriamento forçado para a Polónia recaíam sobre toda a equipa ainda a trabalhar nos estaleiros.

Estes trabalhadores denunciaram, igualmente, o repatriamento efectuado na terça-feira, 7 de Fevereiro, contra a sua vontade, dos trabalhadores mais activos do movimento reivindicativo. Que reclamavam apenas o pagamento das quantias que lhes são devidas.

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O medo, a pressão e a vigilância exercida sobre eles, 24 sobre 24 horas, pelas hierarquias, são tais, que não há possibilidade de apresentarem queixa à polícia. Verifica-se, por conseguinte, um fenómeno mafioso em grande escala.

A CGT acaba de alertar, uma vez mais, os poderes públicos para a situação e de exigir protecção para estes trabalhadores, bem como o respeito dos seus direitos individuais e colectivos.

Esta manhã, aliás, 35 agentes da inspecção do trabalho, da operação “coup de poing”, estão nos “Chantiers de l’Atlantique” para identificar as numerosas infracções ao Código de Trabalho de que são responsáveis diversas empresas subcontratadas com a conivência dos gestores dos estaleiros.

Esta operação vem dar sequência às múltiplas denúncias feitas pela nossa organização junto do departamento do Trabalho e do Emprego (DDTE) da região Loire-Atlantique, no seguimento das violações dos direitos dos trabalhadores subcontratados, nomeadamente estrangeiros.

Com este conflito dos trabalhadores polacos da sociedade RAFE, subcontratada da sociedade alemã COSTAS, os “Chantiers de l’Atlantique” enfrentam o seu quarto escândalo em menos de 6 meses.

Em caso algum a CGT tem a intenção de manchar a imagem e prestígio dos “Chantiers de l’Atlantique”. Se a imagem de marca está degradada é pela atitude irresponsável e imobilista duma gestão ávida até ao limite de maior produtividade e lucros, o que conduziu esta região a uma realidade social sórdida.

Para a CGT, é inconcebível que a directiva Bolkestein se perpetue nos “Chantiers de l’Atlantique”.

Tradução livre de Union Syndicale Multiprofessionnelle CGT des Chantiers de l’Atlantique de Saint-Nazaire,

“Bolkestein à l’œuvre: 30 salariés polonais victimes du banditisme patronal”, Comunicado de Imprensa, Saint-Nazaire,

6 de Fevereiro, 2006, artigo disponível em http://www.coordmareenoire.net/article.php3?id_article=3197.

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7. A OMC E O AGCS EM 10 pONTOS

ATTAC, pORTUGAL

1. A OMC (Organização Mundial do Comércio) foi fundada em 1995, fora do âmbito das Nações Unidas, e conta hoje com 145 países aderentes. Apesar da sua designação, a OMC não tem por objecto apenas actividades de “comércio”: inclui também “investimentos”.

2. O Acordo Geral de Comércio e Serviços – AGCS, ou GATS (em inglês) – é um acordo negociado no âmbito da OMC e pretende regular o comércio internacional das actividades não industriais e não agrícolas. Inclui o comércio e os investimentos de “todos os serviços presentes e futuros”, classificados em 12 sectores e 160 subsectores. Os grandes capítulos referem-se a: comunicações, obras públicas e engenharia, distribuição, educação, ambiente (incluindo água), finanças, saúde e serviços sociais, turismo, lazer, cultura e desporto, transportes e “outros”.

3. Um dos princípios que o AGCS prossegue, aplicando-se a todos os sectores, é a importantíssima “Cláusula da nação mais favorecida”, segundo a qual um país não pode oferecer a outro país condições ou vantagens que não conceda a todos os outros (isto aplica-se também às empresas e serviços nacionais, que não podem por isso ser subvencionadas pelos Estados, para “não prejudicar a livre concorrência”).

4. O AGCS, graças ao seu Artigo VI 4, permite que a OMC intervenha no interior de fronteiras nacionais com vista a eliminar todos os obstáculos (legais ou outros) que “afectem o comércio de serviços, colocando obstáculos desnecessários”. Há regras genéricas que se aplicam ao conjunto dos serviços. Mas há outras que só se aplicam aos sectores que cada país decidir “envolver” no Acordo. A saúde e a educação estão neste segundo caso, embora se ouçam muitas vozes a dizer que estes sectores estão cada vez mais “maduros” para serem também incluídos.

5. Os Serviços Públicos não estão formalmente incluídos no AGCS, pelo menos obrigatoriamente. Contudo, tal como os conhecemos, estão ou podem vir a estar.

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Na verdade, o texto actual do Acordo em negociação prevê a exclusão dos “serviços fornecidos no âmbito do poder estatal”, mas acrescenta que isso só se aplica aos que forem fornecidos “numa base não comercial nem em concorrência com um ou mais fornecedores”, o que poderia abrir praticamente todos os sectores num país como o nosso em que os serviços públicos fornecidos pelo Estado são quase todos pagos e não são fornecidos em regime de monopólio estatal. Repare-se que serviços como fornecimento de água, electricidade, comunicações e serviços postais, entre outros, que nos habituámos a considerar como serviços públicos, estão já incluídos no acordo como sectores a liberalizar.

6. A OMC tem um Tribunal designado por “Órgão de resolução de diferendos”, que pode impor a sua vontade (ao contrário do que acontecia no GATT, em que não existia tal instância).

7. Na OMC a regra formal de decisão é “um país, um voto”. Mas os dirigentes da OMC orgulham-se muito da tradição de aprovarem tudo por consenso. As aprovações por consenso podem ser úteis quando estamos perante entidades iguais em direitos e em poder real. Mas não é o caso dos países aderentes à OMC e, portanto, aqui o consenso serve, de facto, para que os países do QUAD (Estados Unidos, União Europeia, Canadá e Japão) imponham a sua vontade (certamente que, se isso não acontecesse, o consenso teria os dias contados).

8. Há quatro modalidades, ou modos, de fornecimento de serviços previstos no Acordo:Modo 1: serviços originados num país com destino a outro (exemplo: telefonema

de Portugal para o Brasil);Modo 2: serviços prestados num país a um consumidor de outro país (exemplo:

turismo em Portugal para um turista canadiano);Modo 3: serviços fornecidos pela presença comercial de um país fornecedor

noutro país (exemplo: todo o tipo de investimentos no estrangeiro);Modo 4: serviços fornecidos pela presença física de pessoas de um país noutro

país (exemplo: emigração temporária ou permanente).

9. Cada país faz, em relação a todos os países estrangeiros, pedidos de abertura de serviços, ou seja, faz uma lista do tipo de serviços que pretende fornecer num dos

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quatro modos previstos. E cada país faz, também, ofertas de serviços que se propõe abrir à concorrência, ou seja, que admite venham a ser fornecidos no seu país por outro país, também num dos quatro modos previstos. Se um país quiser incluir um sector no “pedido”, tem que inclui-lo também na “oferta” que fizer. Destes pedidos e ofertas resultarão acordos bilaterais entre países, que terão de respeitar as regras estritas do AGCS.

10. É possível, em teoria, romper acordos deste tipo, mas as teias de relações que se estabelecem são de tal forma complexas (fornecimentos, contrapartidas, etc.) que, no fundamental, os acordos são irreversíveis.

ATTAC Portugal, “A OMC e o AGCS em 10 pontos”, artigo disponível em

http://www.portugal.attac.org/attacomc20030915.html.

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8. OS ESTALEIROS SAINT NAzAIRE E A GLOBALIzAÇãO:

ExEMpLO DA ACTUAL DIvISãO DO TRABALhO 8

Bruno LefebvreProfesseur de Sociologia

Universidade de Nantes, LESTAMP2005

A geografia humana de Saint Nazaire em 2000/03

Na zona de Saint Nazaire são sistematicamente testadas, durante os ciclos da construção de navios, todas as novas formas de emprego. Para além da gestão controlada dos custos da mão-de-obra temporária local, os principais empregadores, Chantiers Navals e AéroSpatiale, obrigaram ao reagrupamento dos empregadores em empresas subcontratadas, bem como ao desenvolvimento de “sociétés de portage” (empresas que contratam freelancers para prestarem serviços a terceiros) e ao esquema de trabalho a tempo parcial partilhado entre vários empregadores. Estes tipos de prestações de serviços permitem ao empregador principal exercer o controlo dos custos de recrutamento, de adaptação, de formação, de ruptura de contrato, de reorganização do trabalho, e, eventualmente, de “remotivação” do pessoal. As empresas donas de obras intitulam-se pomposamente desde há alguns anos como “sistemas integradores”, para dissimularem o peso coercivo que exercem sobre as empresas subcontratadas ou “parceiros”. Fala-se, por vezes, também, “de empresas alargadas” ou de “integradores locais”. O congelamento das contratações e as estratégias que consistem em fazer reduzir localmente o custo do trabalho temporário coincidem com o reforço do controlo sobre as empresas subcontratadas através das normas ISO, das cartas de qualidade e da intervenção do dono da obra nos sistemas de formação dos subordinados.

8 Títulos nossos.

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Nos estaleiros, existe uma quinzena de convenções colectivas de trabalho diferentes. Os horários de trabalho são fragmentados; todas as meias horas, há equipas de trabalho a terminar a sua jornada e o objectivo dos sindicatos e dos comités de empresa consiste em fazer assegurar condições de higiene e de segurança, de harmonizar as condições de trabalho para os estrangeiros, e de identificar todos os tipos de contratos de trabalho. Sabe-se que o pessoal externo (de uma empresa subcontratada) nunca tem acompanhamento da medicina do trabalho, quando, por exemplo, para certos tipos de soldadura, devem ser efectuadas regularmente análises à urina. É extremamente difícil obter fotocópias das folhas de pagamento: só os portugueses e os italianos aceitam mostrá-las, e só quando estas estão em conformidade com o direito europeu. As 640 empresas subcontratadas que intervêm nos estaleiros empregam 80% de trabalhadores em situação precária, com contratos a termo, com contratos temporários, ou com contratos de “duração indeterminada de estaleiro” (CDIC, no original, em francês). Este último tipo de contrato constitui uma derrogação ao direito do trabalho no sector da construção e obras públicas, desde os anos 70, mas não é legal no sector metalúrgico. Na construção e reparação navais, encontramos esta prática nas zonas de Cherbourg, Havre, ou Brest. As empresas francesas recrutam o pessoal num determinado local, qualquer que seja a região de implantação, e, seguidamente, transferem-no para os estaleiros. É um vínculo frágil que não prevê compensação de precariedade por ser trabalho temporário, nem compensação por final de obra. O contrato pode ser dado por findo em qualquer momento, quando um trabalhador termina uma simples tarefa: isto sujeita a mão-de-obra a uma forte pressão; pois pode, em qualquer momento, ser deslocada de estaleiro para estaleiro, estando fora de causa eventuais reivindicações.

Oficialmente, segundo fontes sindicais, os efectivos estrangeiros a trabalharem em Saint Nazaire são:

280 Portugueses, 160 Italianos, 200 Alemães, 75 Ingleses, 20 Espanhóis, 60 Polacos, 20 Croatas; um número indeterminado de Romenos; 150 Húngaros, 200 Gregos, 45 Dinamarqueses, 25 Finlandeses, 20 Holandeses, 10 Austríacos; alguns Belgas; 100 Senegaleses, 400 Indianos (eram 600 em 2003) e 60 assalariados Americanos do armador.

O recenseamento exacto destes trabalhadores é difícil porque o recenseamento varia de acordo com os trimestres e, simultaneamente, não há coincidência entre os registos das declarações à Direction Régionale du Travail, das credenciações de entrada no estaleiro e das licenças de trabalho dos trabalhadores extra-comunitários. Fotocopiámos, inclusivamente,

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autorizações de estada falsas. Os horários semanais são, frequentemente, de 55 horas, mas os gregos são sobejamente conhecidos por trabalharem até às 70 horas por semana. O sindicato da CGT da Union Locale Interprofessionnelle só pode entrar em contacto, efectivamente, com os trabalhadores quando há graves problemas, como foi, por exemplo, com as equipas de Polacos que dormiam e comiam a bordo dos navios em construção, porque não tinham encontrado alojamento fora do estaleiro ou não tinham meios para alugar quartos, ou ainda como os Lituanos, contratados por uma empresa subcontratada do Luxemburgo, que não eram pagos há cinco meses. Um problema similar pôs-se com aos trabalhadores Indianos, contratados por uma empresa subcontratada italiana, que tinham vindo de Bombaim para efectuarem trabalhos de soldadura, e que não receberam remunerações nos meses de Fevereiro e Março de 2002, mas parece que estas situações de falta de pagamento terão sido resolvidas. Quando as fraudes são flagrantes, faz-se rapidamente a substituição da mão-de-obra.

A maior parte dos trabalhadores assina contratos de três meses, renováveis, sendo extremamente variável a definição das condições de trabalho e do alojamento, para além de que as pequenas empresas de cerca de 30 assalariados se preocupam muitíssimo pouco com as condições de vida dos seus trabalhadores. Os delitos de exploração da mão-de-obra francesa são severamente perseguidos pelo sindicato Interprofissional. Mas a inspecção do trabalho local não regista a partida das equipas de assalariados e, quando se suspeita ou se descobre uma infracção ao direito do trabalho, é muito difícil localizar as equipas de trabalhadores, que são rapidamente deslocadas para outros estaleiros em França, para o Havre, ou para as refinarias da região parisiense.

A grande preocupação dos sindicatos é o projecto de deslocalização dos trabalhos de acabamento dos navios para um porto do sul da Itália. Os estaleiros de Saint Nazaire passariam a fabricar apenas o casco, enquanto os acabamentos (maquinaria, habitat, arranjo interno...), que hoje são subcontratados no local, passariam a serem efectuados no porto de Manfredonia, na Puglia, região da Itália conhecida pela sua pobreza e pela sua mão-de-obra albanesa e curda, muito barata. As empresas subcontratadas pelos estaleiros passariam a trabalhar ali. Este porto de 100 ha, com 10.000 m2 de área de estaleiro, e que trabalha já para Saint Nazaire, está muito bem equipado, está situado numa região não congestionada, podendo receber novos navios de qualquer tonelagem, e já tem programado o alojamento, o abastecimento e o fornecimento diário, em alimentação, dos futuros trabalhadores. Podem ser entregues diariamente, por exemplo, 25.000

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toneladas de trigo, tencionando-se transformar uma parte no local. Os industriais que se queiram ali instalar e criar empregos poderão beneficiar de benefícios fiscais e sociais da Comunidade Europeia.

Nos estaleiros, os trabalhadores portugueses, de uma empresa do Porto, que também haviam trabalhado em Angola, na Bélgica e na Holanda, sendo multi-especializados, ganham o dobro do salário mínimo português e recebem 640 euros líquidos, quinzenalmente, para as despesas de alojamento e de alimentação.

O movimento de trabalhadores de todas as nacionalidades nos estaleiros dá a impressão de que os estaleiros estão situados no centro da Europa, ou mesmo do Mundo, mas pode colocar-se a questão da legalidade da sua presença. A Delegação Interministerial da Luta contra o Trabalho Ilegal (DILTI) constatou que as operações de destacamento de assalariados estrangeiros em França encobrem práticas de cedência ilícita de mão-de-obra, a menor custo e sem respeito dos direitos sociais relativamente aos salários mínimos, às durações máximas de trabalho, aos tempos de descanso mínimos e às condições de higiene e de segurança. As empresas subcontratadas estrangeiras que intervêm em Saint Nazaire deveriam entregar uma declaração de presença aos serviços da Inspecção do Trabalho, o que parece não ser sistemático, dado que 85% delas não o fazem, constatando-se, além disso, um cuidadoso silêncio por parte da administração, da direcção do estaleiro, dos municípios e dos proprietários dos alojamentos em acampamentos ou em edifícios.

Provavelmente, por efeito do trabalho sindical nos estaleiros, 250 Indianos paralisaram o trabalho, em Março de 2003, e manifestaram-se na cidade, seguidos, depois, por uma centena de Romenos e de vinte e cinco trabalhadores gregos. As reivindicações prendiam-se com vários meses de salários em atraso e, logo de imediato, croatas, eslovenos, húngaros, polacos juntaram-se para denunciar as semanas de trabalho demasiado longas, as condições de alojamento (6 pessoas num quarto de 12m2), a má qualidade da alimentação ao almoço... Os portugueses reclamavam a assinatura de contratos de trabalho. Esta manifestação permitiu finalmente recensear 2600 estrangeiros a ganhar entre 2,6 e 7 Euros por hora, quando um trabalhador contratado directamente pelos estaleiros recebe cerca de 10 Euros por hora, com 35 horas de trabalho semanais. Nos estaleiros estão estabelecidas actualmente 840 empresas em regime de subcontratação.

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A subcontratação e a divisão (local e internacional) do trabalho

A subcontratação é um sistema de relações industriais e de relações de trabalho muito antigo, mas assumiu uma dimensão de dumping social nestes dez últimos anos com a desregulamentação profissional na Europa e no Mundo. A livre circulação da mão-de-obra permite pôr em concorrência os custos salariais, os encargos sociais, as convenções colectivas e as qualificações para competências iguais. As empresas subcontratadas estão vinculadas entre si pelo direito comercial, que estabelece relações de subordinação, dependência económica e de contratualização das relações sociais. As empresas subcontratadas perdem o seu poder económico e o controlo técnico em proveito da entidade integradora, ou seja, do dono da obra. Os riscos técnicos, humanos e financeiros são transferidos para as empresas subcontratadas, que são as responsáveis pelas condições sociais e económicas, e que devem fazer face aos riscos. O poder económico e, por conseguinte, político, dos estaleiros navais permite-lhes impor a sua vontade aos municípios e à região.

Mas o direito reconhece apenas imperfeitamente a noção de dependência económica, o que possibilita evitar o debate sobre as consequências das estratégias industriais. Uma opinião, largamente divulgada nos meios de comunicação social, pretende, no entanto, que o dono da obra informe a empresa subcontratada sobre a situação industrial futura para que esta possa conhecer os riscos que incorre ao perder a sua autonomia. Com efeito, parece lógico assumir os riscos industriais se, e só se, podermos avaliar a sua dimensão. Os recentes processos nos Tribunais de Relação nos anos 80 e 90 revelam que as queixas se limitam a descrever os abusos, mas que é sempre muito difícil pôr em causa ou requalificar os contratos de trabalho ou de empresa. Para proteger a relação com as empresas subcontratadas, instauraram-se procedimentos de certificação dos trabalhadores, cartas e normas ISO. Uma outra manobra consiste em reduzir o número de empresas subcontratadas, ou seja, consiste em “depurar o mercado” ou, por outras palavras, em suscitar falências. As redes de empresas subcontratadas, que fazem somente, em média, 30% do volume de negócios num estaleiro, são seleccionadas de acordo com quatro critérios ordenados:

- A qualidade da produção, o respeito dos prazos, a consolidação de “know-how” e o preço das prestações.

- A base financeira da empresa subcontratada, a sua capacidade de reorientação das tarefas no decorrer da laboração, a experiência de trabalho com o dono da obra.

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- A flexibilidade da mão-de-obra e a sua capacidade de adaptação laboral, bem como a frequência dos contactos com os trabalhadores do dono da obra.

- A organização e a capacidade de produção, o custo de transportes e de deslocações, e as relações pessoais com os gestores.

Na realidade, existem numerosas tipologias de subcontratação do emprego, que vão desde actividades de trabalho temporário clássico, de associação de trabalho temporário, de associação de empresários, de empresas de inserção, de associações de intermediação, de associações de prestação de serviços ao domicílio... As proibições legais são contornadas pela multiplicação dos tipos de contratos comerciais de cedência de pessoal. O trabalho temporário não é um trabalho independente, dado que há transferência de autoridade, responsabilidade e controlo da empresa empregadora subcontratada para o utilizador, o qual pode determinar a substituição do trabalhador. O regulamento interno da empresa dona da obra faz lei tanto no que respeita à disciplina como à formação profissional e aos acidentes de trabalho. No espírito da lei, o contrato de trabalho temporário deve permitir a cobertura dos custos do trabalho, considerando-se que as quantias recebidas pela cedência da mão-de-obra cubram as despesas de gestão da mão-de-obra.

Foi no início dos anos 70, em França, que o legislador procurou proteger as empresas subcontratadas dos abusos do dono da obra (pela Lei de 1975 relativa aos contratos de subcontratação industrial) bem como definir mais rigorosamente a subcontratação do emprego, ou seja, o trabalho temporário, justificado numa época em que os movimentos sociais eram vivos, em que havia uma “crise da autoridade” nas relações de trabalho na empresa. Em 1973, o Conselho Económico e Social tinha apresentado uma definição lata da subcontratação, a qual podia referir-se tanto aos artesãos como às multinacionais e, rapidamente, a proliferação da subcontratação em cadeia veio pôr em evidência quer os problemas de segurança para os trabalhadores, quer de qualidade dos produtos (não se aborda aqui a perspectiva dos consumidores).

Passemos agora da subcontratação do emprego à subcontratação técnica. No caso de um estaleiro naval, por exemplo, o armador faz a encomenda dum navio e adquire-o a um dono da obra, o estaleiro naval. O dono da obra estabelece um contrato com um empreiteiro, um empresário. Este empreiteiro estabelece, por sua vez, um contrato de subcontratação com

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uma terceira empresa, um subempreiteiro. O empreiteiro deve, então, submeter ao dono da obra a aprovação da empresa subcontratada e, nessa sequência, este subempreiteiro pode, por sua vez, subcontratar a realização dos trabalhos. Assim, o esquema básico da subcontratação engloba pelo menos três empresas, para além da empresa armadora.

Os contratos feitos entre as empresas consideraram-se “contratos de empreitada” e podem configurar-se como verdadeiros quebra-cabeças jurídicos. Definem uma pessoa jurídica que se obriga a fornecer um determinado trabalho, de forma independente. Estes contratos de empreitada são diferentes do mandato, no qual se está perante uma figura de representação, são também diferentes do contrato de trabalho, no qual se estabelece uma relação subordinada de trabalho, e são também diferentes do contrato de compra e venda, que consiste no fornecimento de mercadorias mediante pagamento pelo cliente. O contrato é definido por defeito. No caso dum estaleiro naval, trata-se de compra e venda entre o armador e o dono da obra, dado que o estaleiro vende um navio em fase de projecto, para o qual estabelece um preço global no âmbito de um concurso público e pretende ter o controlo técnico do fabrico do navio. Cerca de 10.000 contratos de empreitada são habitualmente estabelecidos no âmbito da construção de um navio, como acontece, por exemplo, na construção de um navio de cruzeiro. A lei prevê que o empreiteiro deve prestar uma garantia bancária para garantir o pagamento às empresas subcontratadas, mas que a garantia não tem que ser prestada se o empreiteiro delegar a responsabilidade da obra no subempreiteiro. Desta forma, em caso de litígio, o subempreiteiro, para ser pago, pode agir directamente contra o dono da obra e, neste caso, o tribunal deve decidir se os contratos que vinculam as partes são contratos de empreitada ou contratos de compra e venda. Na construção naval, os montantes envolvidos nos litígios ascendem frequentemente a vários milhões de euros.

Para não se quebrar a cadeia da subcontratação, os contratos entre as empresas envolvidas não devem poder ser identificados como contratos de compra e venda. Em caso de litígio, para identificar um contrato como sendo de compra e venda ou de subcontratação, o tribunal dispõe de dois critérios: um critério económico, no qual intervêm o custo das mercadorias, das matérias-primas e do trabalho; e um critério conceptual, noutros termos “psicológico”, segundo o qual o objecto da transacção é analisado de acordo com especificidades técnicas precisas. Assim, se as características da compra e venda estão presentes logo desde as encomendas por catálogo, existe toda uma continuidade ou várias situações intermédias entre a compra e venda e a subcontratação. Pode distinguir-se a situação do fabricante vendedor,

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da situação do empreiteiro em que o cliente intervém pouco no processo de produção. Se a empresa cliente supervisiona ou controla a produção, estamos a falar de “contratos de empreitada mitigados” ou de “compra e venda mitigadas”. Para além das questões que esta abordagem jurídica coloca, as redes “socio-técnicas” que pretendemos analisar na perspectiva sociológica, através do fenómeno da subcontratação, englobam todas os traços seguintes: tratar-se-ia então de um estudo sobre a divisão do trabalho na acepção de Durkheim, da qual nem os juristas, nem os economistas dão uma definição satisfatória.

A subcontratação em cascata multiplica as dificuldades de que o dono da obra deve ser o garante, dificuldades ainda maiores quando as cadeias de subcontratação são internacionais. Com efeito, problemas de prazos de execução de trabalhos, de fornecimentos, de mercadorias, de segurança para os homens e para o ambiente e de qualidade dos serviços, devem ser controlados, porque os subempreiteiros voltam-se cada vez mais contra os donos da obra para serem pagos, o que levanta a questão do montante das garantias e explica as reservas que os bancos e as companhias de seguros levantam. Com efeito, chama-se agora “grandes catástrofes” não às catástrofes sobre o ambiente ou sobre as pessoas, como foi a maré negra provocada pelo navio Erika nas costas da Bretanha, em 1999, ou a explosão da fábrica AZF, em Toulouse, em 2001, mas ao que as companhias de seguros têm de pagar se não disposerem de artifícios jurídicos que lhes valham.

Depois de 1995, com o objectivo de eliminar os problemas de definição e de caracterização dos contratos como de empreitada ou de compra e venda, a empresa Chantiers Navals de l’Atlantique instituiu uma carta de subcontratação, que foi subscrita por uma centena de empresas regionais, o que não impede a subcontratação a nível europeu e mundial instituída há várias dezenas anos. Pressupõe-se que esta carta venha resolver os problemas de formação profissional, o reconhecimento das empresas colaboradoras em termos de qualidade e a ultrapassagem de diversos diferendos entre os órgãos de gestão das empresas. Em Saint Nazaire, o pessoal em actividade nos estaleiros, entre 1996 e 2003, era composto, em média, por 4000 empregados directamente contratados pelos estaleiros e 12000 sem esse estatuto, ou seja, assalariados ou trabalhadores temporários das empresas subcontratadas, 20% dos quais estrangeiros. Para além dos problemas de organização do trabalho, de coordenação entre as equipas das empresas subcontratadas às ordens dos responsáveis dos estaleiros, eram numerosos os acidentes de trabalho. Embora esta carta de subcontratação tenha, para os estaleiros, a função de externalizar os riscos, a carta institui

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obrigações recíprocas em termos de “fidelidade” e de “equidade” entre o dono da obra e as empresas subcontratadas, salvaguardando ao mesmo tempo os requisitos de flexibilidade ao longo da cadeia de empresas subcontratadas.

Esta carta de subcontratação é actualmente considerada como modelo e deveria estender-se a todos os estaleiros franceses. Mas trata-se meramente de um contrato “de cavalheiros” entre empresários, largamente mediatizado, destinado a tranquilizar os poderes locais, departamentais, regionais, nacionais (para obter subsídios), dado que só as normas ISO reconhecidas internacionalmente têm valor jurídico independentemente da sua localização geográfica, as empresas subcontratadas não devem ter mais de 30% dos seus assalariados num mesmo estaleiro e são responsáveis pelas suas próprias subcontratadas, estando a seu cargo os problemas logísticos. Esta carta visaria igualmente melhorar a qualidade das intervenções, a gestão da subcontratação e a organização interna dos estaleiros, a segurança das pessoas e favorecer igualmente as inovações técnicas e organizacionais, tanto ao nível do dono da obra como das empresas subcontratadas. Durante muito tempo, os donos das obras tinham gerido as empresas subcontratadas mais no âmbito da execução do que na concepção e deixaram desenvolver a subcontratação em cascata de maneira autónoma, o que colocava problemas de controlo e perda de pessoal qualificado. Muito frequentemente, como verificámos recentemente junto de empreiteiros especializados em trabalhos de isolamentos (na construção naval), era necessário recorrer a trabalhadores temporários para enquadrar os trabalhadores do quadro das empresas subcontratadas, o que gera dificuldades na organização hierárquica das equipas e discordâncias quanto ao montante das remunerações: todo o pessoal operário é pago mais ou menos pelo salário mínimo, mas enquanto os trabalhadores temporários têm suplementos relativos à precariedade dos contratos e têm dificuldades em contrair empréstimos bancários, os trabalhadores do quadro beneficiam de suplementos de antiguidade e de risco.

Esta carta de subcontratação supõe que os empreiteiros sejam capazes de integrar os estudos prévios de concepção, o aprovisionamento, a logística, o fabrico e a montagem, na base de um contrato de montante global, e de se lançar de imediato junto do dono da obra nos trabalhos de concepção e de execução. Fala-se hoje, neste sentido, tomando a indústria japonesa como exemplo, de “co-contratação” ou parceria, mas estes dispositivos são demasiado recentes para haver legislação. Os actores em causa consideram, por conseguinte, que a lei enquadrará estas práticas quando estas se tornarem vulgarizadas. O dono da obra decide

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no entanto como valorizar ou não as empresas subcontratadas que devem ser consideradas “exemplares” no seu âmbito e dar suporte a uma actividade em crescimento. É desta forma que empreiteiros e subempreiteiros de primeira fila podem ter acesso a certificações hierarquizadas (A, B, C...) concedidas pelo dono da obra, as quais são na prática equivalentes à certificação pelas normas ISO, permitindo participar em concursos de fornecimentos noutros domínios em condições favoráveis. A estas estratégias de posicionamento no mercado sobrepõem-se os discursos sobre a “lealdade” entre parceiros, sobre o desenvolvimento económico e social das empresas regionais, sobre a valorização mediática das cidades do litoral, sobre a luta contra o trabalho clandestino. Através de jornais distribuídos pelas Câmaras de Comércio e Indústria e de emissões regulares das cadeias de televisão regionais, são colocados em destaque empresas “subcontratadas exemplares”, são difundidas entrevistas de empresários e são relatados os sucessos comerciais da rede “sócio-técnica”. De maneira mais discreta, realizam-se regularmente reuniões entre empresários para troca de informações e de opiniões.

Podemos, por conseguinte, considerar que estamos em presença duma evolução do direito que, por um lado, faz tender a noção de subcontratação para a de cooperação ou de “co-contratação” e, por outro lado – de acordo com a tendência observada por numerosos juristas noutros domínios – relega a jurisprudência, as regulamentações e as convenções das leis nacionais para o âmbito da negociação privada. Mas no domínio do trabalho e da indústria, tal como nos outros domínios, dada a complexidade dos sistemas “sócio-técnicos”, os juristas descartam-se dos regulamentos técnicos ou comerciais para os peritos privados.

Tradução livre de excertos de Bruno Lefebvre, “La circulation de la main d’oeuvre en Europe”, 2005, artigos

disponível em http://www.sociologie-cultures.com/articles/europe.main.oeuvre.htm.

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9. MONTAGENS ExÓTICAS

François RuffinLe Monde Diplomatique

Novembro2005

Acha possível uma sociedade informática em Paris, ou de pneumáticos na Picardia, cujo director e subdirector sejam franceses, e a trabalhar de acordo com as convenções francesas (horários, salários, férias) enquanto o resto do pessoal, indianos, afegãos, búlgaros trabalha de acordo com as convenções de trabalho, respectivamente, indianas, afegãs, búlgaras?

No entanto, este funcionamento existe com o Registo Internacional Francês (RIF), e deputados e senadores acabam de o legalizar para os navios, numa relativa indiferença. Erradamente: “é uma directiva Bolkestein à escala mundial”, resume Philippe Mühlstein, membro do conselho científico de Attac. “Com o recurso aos pavilhões de conveniência, aos paraísos fiscais, aos traficantes de pessoas, a liberalização tem trinta anos de avanço sobre os oceanos. Mas os sindicatos, todos os sectores, teriam interesse em acompanhar o que se passa neste domínio”...

Tanto mais que este primeiro exemplo dum mercado de trabalho à escala mundial, onde a mão-de-obra se compra e se vende sem regras seguras, sem outra lei que não seja a da oferta e da procura, este modelo a-social por conseguinte, vindo de longe, atinge já as nossas costas marítimas e poderá bem alcançar as nossas terras.

Os Estaleiros do Atlântico, primeiro. Num documento de 25 de Outubro de 2001, Alstom recomendava aos seus “co-tratantes” que recorressem a uma “montagem exótica: como se sabe, a nossa política de redução dos custos leva-nos permanentemente a encontrar vectores de progresso. Um destes vectores chama-se “montagem exótica”, ou seja

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o contributo de mão-de-obra proveniente de países de baixos custos. Identificámos alguns países – Marrocos, Ucrânia, Portugal, Emiratos Árabes, etc. – que têm a possibilidade de fornecer uma mão-de-obra qualificada.

Portanto, por meio de subcontratações em cascata, afluirão trabalhadores croatas, romenos, polacos, indianos, etc., com alguns deles “a dormirem mesmo no chão”, a trabalharem “55 horas por semana”, enquanto outros, “com os passaportes confiscados”, poderão ver ser retidos “450 a 500 euros” do o seu salário mínimo teórico para se reduzir a um “salário real de 300 euros por mês”: “de maneira geral, nestes locais”, testemunha André Fadda, sindicalista CGT, “os assalariados estrangeiros trabalham entre 240 e 250 horas por mês e são pagos a cerca de 1.000 euros. São condições salariais sem qualquer relação com as convenções colectivas”. Os insubmissos grevistas são, obviamente, repatriados e muito rapidamente.

Porque é que o Estado aceitou este território de não-direito social? Porque se trata, sem dúvida, de Saint-Nazaire e do Queen- Mary 2: como se a desregulamentação, oficializada no mar, pudesse atingir ou mesmo ancorar-se nas nossas costas.

Todos os portos, agora. Com todo o seu ardor “de uma competitividade a aumentar”, e apesar da rejeição do Parlamento Europeu, a Comissão Europeia considera ter “o direito e mesmo o dever de examinar todas as possibilidades para progredir na abertura do mercado da prestação de serviços portuários”. Para esse efeito, encara, para além de uma “liberalização” (como é original!..) da “rebocagem” e da “amarragem”, uma autorização para a “auto-assistência”.

Que significa este conceito? A possibilidade para um armador, para uma empresa, de descarregar e carregar as suas mercadorias, de as armazenar num terminal, de prepará-las eventualmente para expedição, sem recorrer aos estivadores (contudo, já sob contrato privado). Tudo tarefas que poderão ser desempenhadas, doravante, pelo “pessoal navegante regular” e, por conseguinte, filipino, chinês, malgache, nas condições sociais do país de origem, filipinas, chinesas, malgaches. Seria admissível esta forma de “deslocalização no local”, com a mesma discrição, se se tratasse também não de estivadores no Havre, mas de canalizadores indonésios ou birmaneses numa qualquer cidade francesa?

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Pactuarmos com estas zonas cinzentas comporta um risco. Ou mesmo uma certeza: “É algo de mecânico, diz-nos François Lille 9, economista formado pelo Conservatoire National des Artes et Métiers (CNAM): “na primeira fase, utilizam-se espaços fora do alcance das leis nacionais, os pavilhões de conveniência ou as zonas francas; deixa-se instaurar certas práticas, os negócios, a des-fiscalização. Em seguida, estas práticas, suficientemente generalizadas, tornam-se uma norma económica: quando os armadores afirmam que só podem trabalhar se for desta forma, tendo em conta a concorrência, então, estas práticas tornam-se numa realidade. E, por fim, numa terceira fase, introduzem-se estas normas económicas na legislação nacional, o que permitirá seguidamente estendê-las a outros sectores.

9 François Lille, no âmbito do Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios na FEUC, estará em Coimbra no mês de Outubro onde vem proferir uma conferência e comentar o filme Os Navios da Vergonha, no Teatro Académico Gil Vicente.

Tradução livre de François Ruffin, “Montages exotiques”, Le Monde Diplomatique, Novembro, 2005,

artigo disponível em http://www.monde-diplomatique.fr/2005/11/RUFFIN/128.

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC

DOC TAGV / FEUC

INTEGRAÇãO MUNDIAL, DESINTEGRAÇãO NACIONAL:

CRISE NOS MERCADOS DE TRABALhO

ACTIvIDADES pROGRAMADAS ATé DEzEMBRO DE 2007

15 DE SETEMBRO

A rede mundial da precariedade no trabalho: um exemplo na construção naval

Filme Un monde moderne, de Malek Sabrina e Arnaud Soulier, 2005 (84 minutos)

Debate com a participação de Mário Soares, José Manuel Pureza (FEUC) e Luís Moura Ramos (FEUC)

8 DE OUTUBRO

Globalização e marinha mercante: A rede mundial da precaridade no trabalho

Filme Les navires de la honte, de Malcolm Guy e Michelle Smith, 2006 (75 minutos)

Conferência de François Lille (Conservatoire des Artes et Métiers, Paris) sobre Mundialização dos Mercados de Trabalho,

com comentários de Mário Ruivo (Presidente do Conselho Científico das Ciências do Mar e do Ambiente da FCT)

Debate com a participação de François Lille, Mário Ruivo e Álvaro Garrido (FEUC)

5 DE NOvEMBRO

Globalização e deslocalizações: As dificuldades na reprodução da relação salarial

Filme Where do you stand: stories from an american mill, de Alexandra Lescaze, 2004 (60 minutos)

Conferência de El Mouhoub Mouhoud (Universidade de Paris XIII e Director de investigação no CEPN - CNRS)

sobre Globalização e Deslocalizações no espaço comunitário e problemas de emprego

e de Edward Gresser (Progressive Policy Institute-Estados Unidos) sobre Deslocalizações no espaço da NAFTA e problemas de emprego,

com comentários de Paulo Pedroso (ISCTE) e Margarida Antunes (FEUC)

Debate com a participação de El Mouhoub Mouhoud, Edward Gresser, Paulo Pedroso e Margarida Antunes

30 DE NOvEMBRO

Globalização e mercados de trabalho: As assimetrias na Repartição, Nacional e Mundial

Filme Maquilopolis: city of factories, de Vicky Funari e Sergio de la Torre, 2005 (70 minutos)

Conferência de Branko Milanovic sobre Global income inequality (Banco Mundial),

Erik Reinert (Presidente da The Other Canon Foundation, Noruega),

sobre How rich countries got rich… and why poor countries stay poor

com comentários de Margarida Chagas Lopes (ISEG) e Luís Peres Lopes (FEUC)

Debate com a participação de Branko Milanovic, Erik Reinert, Margarida Chagas Lopes e Luís Peres Lopes

13 DE DEzEMBRO

Globalização e deslocalizações: A Europa sem mecanismos de protecção ao emprego

Filme Metaleurop Germinal, de Jean-Michel Vennemani, 2003 (95minutos)

Debate com a participação de José António Correia Pereirinha (ISEG),

Fausto Correia (Deputado no Parlamento Europeu) e Vítor Neves (FEUC)