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c a p í t u l o p r i m e i r o Os poemas perdidos do ciclo troiano O desenrolar da antiga poesia épica grega forjou a constituição de ciclos temáticos. Dois desses ciclos encontram-se bem configurados, o tebano e o troiano, cujos poemas desenvolvem os episódios das duas maiores guerras da mitologia grega; e se discute a possível existência de um ciclo coríntio, formado por épicos ligados à cidade de Corinto e transmitidos sob a autoria do poeta Eumelo 1 . Neste capítulo, realiza-se uma reconstituição e um estudo das epopéias perdidas do ciclo troiano: Cantos Cíprios, Etíope, Pequena Ilíada, Saque de Ílion, Retornos e Telegonia. A investigação desse ciclo não representa o objetivo maior desta tese, sua função “limita-se” aqui ao edificar de um referencial profícuo para as discussões que eclodem nos capítulos seguintes. Destarte, não se tem a pretensão de compulsar minuciosamente o assunto – para a consulta de trabalhos mais detalhados sobre os ciclos épicos gregos, recomendam-se as obras citadas ao longo deste capítulo. 1 WEST, 2002.

Ciclo Troiano_Tese Do Edi

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  • c a p t u l o p r i m e i r o

    Os poemas perdidos do ciclo troiano

    O desenrolar da antiga poesia pica grega forjou a constituio de ciclos temticos. Dois desses ciclos encontram-se bem configurados, o tebano e o troiano, cujos poemas desenvolvem os episdios das duas maiores guerras da mitologia grega; e se discute a possvel existncia de um ciclo corntio, formado por picos ligados cidade de Corinto e transmitidos sob a autoria do poeta Eumelo1.

    Neste captulo, realiza-se uma reconstituio e um estudo das epopias perdidas do ciclo troiano: Cantos Cprios, Etope, Pequena Ilada, Saque de lion, Retornos e Telegonia. A investigao desse ciclo no representa o objetivo maior desta tese, sua funo limita-se aqui ao edificar de um referencial profcuo para as discusses que eclodem nos captulos seguintes. Destarte, no se tem a pretenso de compulsar minuciosamente o assunto para a consulta de trabalhos mais detalhados sobre os ciclos picos gregos, recomendam-se as obras citadas ao longo deste captulo.

    1 WEST, 2002.

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    O ciclo troiano O sculo XIX e o princpio do XX testemunharam um germinar de significativos

    estudos do ciclo troiano, como o de F. G. Welcker, no livro Der Epische Kyklus, oder die homerischen Dichter (em dois volumes: o I em 1835 e o II em 1849), o de Wilamowitz-Mellendorff, no livro Homerische Untersuchungen (1884), o de A. Rzach, no artigo Kyklus (1922), o de D. B. Monro, no artigo The Poems of the Epic Cycle (1884) e no livro Homers Odyssey, Books XIII-XXIV (1901, captulo Homer and the Epic Poets), o de T. W. Allen, no artigo The Epic Cycle (1908) e no livro Homer. The Origins and the Transmission (1924), o de E. Bethe, no livro Homer. Dichtung und Sage, vol. II (1922) e III (1927), e o de A. Severyns, no livro Le Cycle pique dans lcole dAristarque (1928b). Essas investigaes derivaram, em grande parte, do perscrutar dos poemas homricos, constituindo uma espcie de apndice necessrio a uma melhor compreenso da Ilada e da Odissia; nesse contexto, conformam, at certo ponto, frutos indiretos do fascnio que a descoberta da originalidade da mente e da literatura gregas despertava em pesquisadores (sobretudo germnicos) no sculo XVIII.

    Desde ento, o ciclo troiano atrai a ateno de diferentes reas do conhecimento: estudiosos da literatura, da histria, da arqueologia e das artes figurativas publicam cada vez mais trabalhos dedicados a esse assunto, especialmente artigos. Dessa massa de pesquisas, destacam-se algumas de mais flego: a de F. Jouan (1966), a de G. H. Huxley (1969), as de M. Davies (1986 e 1989a), as de N. M. Horsfall (1979a, 1979b, 1983), a de Anderson (1997), as de Martin West (2000, 2002, 2003c), a de J. S. Burgess (2001) e a de A. Debiasi (2004).

    Esse interesse tem favorecido a elaborao de edies de testemunhos e fragmentos das epopias perdidas: cedo surgiram as edies de Kinkel (1877), Thomas W. Allen (1912), Evelyn-White (1914) e E. Bethe (1922, reeditada em 1966); mais recentemente, as de A. Bernab Pajares (1979), M. Davies (1988) e Martin West (2003a)2.

    Em meio s diversas fontes de testemunhos e fragmentos, dois textos merecem um comentrio prvio: a Biblioteca de Apolodoro e os sumrios de Proclus.

    A Biblioteca de Apolodoro constitui um manual de mitologia contendo, entre outras, histrias ligadas guerra de Tria. Sua datao incerta: seguindo uma atribuio feita por Photius (c.820-893), pensou-se durante muito tempo que Apolodoro fosse um gramtico

    2 Essa edio substitui a de Evelyn-White na coleo Loeb.

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    ateniense do sculo II a.C., discpulo de Aristarco de Samotrcia (c.220-144 a.C.); hoje, no entanto, contesta-se essa identificao e acredita-se que o autor dessa Biblioteca tenha vivido entre os sculos I e II de nossa era3. Tal obra compe-se de trs livros e de um Eptome, com a seguinte distribuio de contedo: o Livro I compreende uma teogonia, a estirpe de Deucalio e as aventuras dos argonautas; o II, a estirpe de naco, os doze trabalhos, outras faanhas e a morte de Hrcules e a histria dos Heraclidas; o III, a estirpe de Agenor, a saga dos sete contra Tebas, a estirpe de Pelasgo, a de Atlante, a de Asopo e os reis de Atenas; o Eptome abrange as faanhas de Teseu, a estirpe de Tntalo, a guerra de Tria, os retornos e as viagens de Odisseu. At o sculo XIX, as edies da Biblioteca encerravam apenas os livros I, II e III, interrompendo-se bruscamente em meio s faanhas de Teseu; os textos do Eptome provm de dois manuscritos descobertos no final do sculo XIX, o Codex Vaticanus 950 e o Codex Sabbaiticus4. Ainda que haja dvidas quanto atribuio desses eptomes ao Apolodoro autor da Biblioteca, eles aparecem nessa obra desde a edio publicada por R. Wagner em 1894, que serve de base para as posteriores5. No caso desta investigao, o interesse maior reside no Eptome, especialmente nas passagens referentes guerra de Tria (3-5).

    No que tange aos sumrios de Proclus (autor de origem e perodo de vida incertos6), trata-se de textos de uma obra (perdida) intitulada Chrestomathia. De acordo com Severyns (1928b, p. 245), essa composio seria uma ampla histria da literatura grega, da qual os sumrios dos poemas do ciclo troiano representariam apenas uma parte do captulo consagrado poesia pica. Fichamentos desses textos surgiram inicialmente em uma obra do sculo IX tambm intitulada Biblioteca, do mesmo Photius citado h pouco. Mais tarde, extratos dos sumrios originais relativos gesta troiana foram descobertos em manuscritos da Ilada: textos referentes aos Cantos Cprios irromperam em diversos manuscritos; porm textos referentes aos demais poemas dessa gesta acharam-se apenas no Venetus A (codex de Villoison7), dos sculos X/XI.

    Embora forneam dados importantes acerca de poemas perdidos, durante muito tempo houve certo descrdito em relao a esses sumrios, principalmente em razo do

    3 Cf. GUIDORIZZI, 1995, in: APOLLODORO. Biblioteca, p. XLIV.

    4 Para maiores detalhes sobre essas descobertas e os manuscritos usados para o estabelecimento do texto da

    Biblioteca, ver a edio de Frazer (APOLLODORUS. The Library, 1921, p. xxxiii-xliii). 5 As referncias Biblioteca de Apolodoro sero doravante indicadas apenas com autor e localizao na obra.

    6 Duas possibilidades sobressaem a respeito da identidade de Proclus: poderia ser o filsofo neoplatnico

    falecido em 485 ou um gramtico da poca Antonina. 7 Jean-Baptiste Gaspard de Villoison (1750/1753-1805), descobridor do manuscrito.

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    desconhecimento da identidade de Proclus e de discordncias entre o contedo deles e de alguns testemunhos e fragmentos das epopias; somente aps a publicao do Eptome da Biblioteca de Apolodoro no final do sculo XIX, os sumrios passaram a ser mais valorizados, dada a coincidncia entre seu contedo e o do Eptome no tocante s histrias da guerra de Tria.

    Ainda que a descoberta do Eptome tenha proporcionado mais autoridade aos sumrios de Proclus, no conseguiu dirimir problemas concernentes s referidas discordncias. Por isso, discute-se ainda se Proclus teria adaptado os picos para evitar repeties e incoerncias. A esse respeito, Severyns (1928b, p. 245) admite que as supostas alteraes no tenham sido da lavra de Proclus, mas de um gramtico qualquer que viveu entre os sculos II e IX: esse desconhecido teria tido a idia de extrair da obra de Proclus os sumrios do ciclo troiano para us-los como prefcio leitura dos poemas homricos. Como exemplo, cita o codex Venetus A, que traz os resumos copiados antes do texto da Ilada. Essa nova funo outorgada aos sumrios teria ento incitado modificaes de seu contedo com o objetivo de melhor adapt-los aos poemas homricos8.

    A reconstituio do contedo das epopias perdidas proposta a seguir alicera-se nas edies de testemunhos e fragmentos de Davies (1988) e West (2003a): a escolha da primeira deve-se ao fato de o autor conjugar aos textos dessa edio comentrios tecidos em seu livro The Epic Cycle (1989a); a segunda foi escolhida por ser a mais atualizada, tendo colhido frutos de estudos mais recentes sobre o assunto9. Alm dessas edies, outras fontes participam eventualmente desta elaborao.

    Respeitando as fontes, o contedo dos poemas reconstitudo de forma mais linear e destacado10 do texto terico; tenta-se com isso recuperar, at onde for possvel, o sabor de uma narrativa inteiria. Os sumrios de Proclus funcionam como espinha dorsal da reconstituio, qual so acrescentadas passagens fundamentadas nos testemunhos, nos

    8 Sem discutir quem atrelou os sumrios aos manuscritos da Ilada, Davies (1989, p. 7-8) tambm acredita que

    essa nova funo tenha sido a responsvel pelas discrepncias entre os textos de Proclus e os fragmentos dos picos. 9 No texto, os testemunhos e fragmentos provenientes da edio de Davies so indicados respectivamente com as

    abreviaes test. D e fr. D; os da edio de West, com test. W e fr. W. 10

    Em itlico, fonte 10 e com um recuo direita.

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    fragmentos e, quando coerente, na Biblioteca de Apolodoro11 alguns episdios vm acompanhados de variantes oriundas de outras fontes, reputadas significativas para a anlise em curso. Quanto s muitas hipteses e discusses dos estudiosos, apresenta-se uma triagem que procura esboar bem o estado da questo e valorizar aspectos mais relevantes para os propsitos desta tese.

    11 Para a eventual combinao do contedo exposto por Proclus com o exposto por Apolodoro, segue-se a edio

    de West.

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    Cantos Cprios

    O curioso ttulo dessa epopia (Ku/pria) encontraria justificativas em sua atribuio ao cipriota Estasino e no papel proeminente de Afrodite, deusa venerada em Chipre. Sua autoria recaa tambm sobre Homero12; Herdoto (Histria, II, 116-117) confirma essa imputao ao argumentar contra a possibilidade de Homero ser o autor dessa obra. Quanto data de sua composio, grande parte dos estudiosos a situa na primeira metade do sculo VII a.C.; nessa linha de pensamento, Jouan (1966, p. 24-27 e n. 3 da p. 27) tenta ser mais preciso e a posiciona entre 680 e 660, fundamentando-se de modo especial em representaes figuradas de supostos episdios do poema. West (2003a, p. 13), por sua vez, recorrendo a caractersticas lingsticas perceptveis nos fragmentos (traos de uma lngua mais recente do que a dos poemas homricos), julga que a composio dessa epopia dificilmente antecederia segunda metade do sculo VI a.C.

    A efabulao dos Cantos Cprios abarcava eventos da guerra de Tria anteriores aos da Ilada, os quais estariam divididos em 11 livros (segundo Proclus). De acordo com um esclio ao verso 5 do canto I da Ilada13, tudo partiria de um plano de Zeus para diminuir a populao da Terra, a qual, sofrendo com o peso e com a impiedade dos homens, teria solicitado ao deus uma diminuio desse fardo. Em resposta, Zeus reduziria a humanidade provocando duas guerras: inicialmente a de Tebas, a de Tria em seguida14. Momo (uma personificao da argcia, do sarcasmo) seria o idealizador da segunda contenda e de dois estratagemas para execut-la: o casamento de Ttis com um mortal e a gerao de uma belssima filha de Zeus. Tais fatos causariam mais tarde a guerra de Tria15. Todavia, os versos do fragmento em si, apenso ao comentrio do escoliasta, relatam apenas a sobrecarga da terra, o apiedar-se de Zeus diante das circunstncias e a resoluo de aliviar esse fardo atravs da guerra de Tria, na qual muitos guerreiros morreriam. A ltima frase do fragmento

    (Dio\j d )e)telei/eto boulh/) retoma o final do promio da Ilada (v. 1-5). Para Davies (1989a, p. 34), essa frase na Ilada diria respeito apenas ao resultante da ira de Aquiles, o enviar de

    12 Test. D e W.

    13 Esclio (DINDORFIUS) Ilada, I, v. 5-6 = fr. 1 D e W.

    14 Alberto B. Pajares (1999, p. 106) comenta nesse ponto a possibilidade de essa queixa da Terra e de a

    conseqente reduo da humanidade constiturem laivos de um antigo mito etiolgico (presente em vrias culturas) referente origem da morte (os homens seriam imortais no princpio, e sua multiplicao teria sobrecarregado a Terra; a morte surgiria ento para solucionar o problema). 15

    Esse mito tambm freqenta duas obras atribudas a Hesodo: Os Trabalhos e os Dias (v. 156-173) e Catlogo de Mulheres (fr. 96, 56-91 e 68 EVELY-WHITE).

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    vrias almas ao Hades. Essa leitura mais evidente corresponde s dos gramticos alexandrinos Aristfanes de Bizncio (260-181 a.C.) e Aristarco de Samotrcia, que procuravam explicar os poemas homricos sem recorrer a textos dos poetas cclicos. De fato, na abertura do esclio, figura a seguinte lio de Aristarco: unir sem pontuao o verso 5 ao 6 do canto I da Ilada; a leitura decorrente tornaria o plano de Zeus uma contingncia da guerra de Tria oriunda do pedido de Ttis, e no de uma razo anterior ao conflito.

    O contexto desse fragmento muito significativo para o poema, e diante dele surge a primeira dvida: alm de tratar do fardo imposto Terra pela grande quantidade de homens, os Cantos Cprios abordariam a impiedade humana, as guerras tebanas, o conselho de Momo para desencadear a guerra de Tria?

    No livro Euripide et les Chants Cypriens (1966), Jouan dedica um captulo (La volont de Zeus) a tal questo. Depois de examinar argumentos alheios e refletir sobre o assunto, avalia mais verossmil a hiptese segundo a qual todos esses temas apareceriam ao menos no prlogo desse pico (p. 47-48) pode-se acrescentar outro elemento a favor dessa hiptese: episdios das guerras tebanas manifestam-se efetivamente nos Cantos Cprios, em uma digresso tecida por Nestor; assim, tais guerras poderiam j integrar o prlogo do poema. Pleiteando a participao desse conselheiro de Zeus na epopia, Jouan (p. 46) cita um drama satrico (perdido) de Sfocles intitulado Momos, que se ligaria s peas ris (sobre a querela entre as deusas) e Crsis (sobre o julgamento de Pris16); apoiando-se nisso, argumenta que essas trs peas deveriam extrair assuntos dos Cantos Cprios; depois relembra Momo ser irmo de Nmesis (a me de Helena na verso adotada nesse pico) e de ris, a entidade deflagradora da discrdia entre as deusas17; em conseqncia, julga plausvel que os trs irmos desempenhassem um papel relevante na implementao do plano de Zeus.

    Embora haja dvidas quanto participao de Momo, suas sugestes para a deflagrao da guerra de Tria realmente se concretizam.

    Avesso ao pensamento de Jouan, Davies (1989a, p. 35) estima improvvel que os eventos presentes no comentrio do escoliasta fizessem parte do poema, pois os considera incompatveis com o fragmento em si.

    16 Para as peas, ver a edio de Radt (1977: ris, fr. 199-201; Crsis, fr. 360-361; Momos, fr. 419-424).

    17 As trs entidades so filhas da Noite em Hesodo (Teogonia, v. 214 e 225; Os Trabalhos e os Dias, v. 11-41).

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    Apesar das controvrsias, essas reflexes em torno do primeiro fragmento do a entender que o plano de Zeus deveria funcionar como fio condutor da trama dos Cantos Cprios, que se desenrola como segue.

    Zeus delibera com Tmis a respeito da guerra de Tria, de seu plano. Com a finalidade de gerar uma linda filha, Zeus persegue Nmesis, a qual tenta escapar fugindo atravs das terras e das guas, escondendo-se em meio escurido, mudando de forma: em peixe entre as ondas do mar, em criaturas assombrosas criadas pela Terra... Contudo, quando assume o feitio de um ganso, Zeus, com o feitio de um cisne, une-se a ela. Dessa unio, ela concebe um ovo e o abandona entre rvores. Um pastor o encontra e o leva para Leda, esposa de Tndaro, rei de Esparta. Com os cuidados de Leda, do ovo nasce a linda Helena, que a rainha adota como filha18.

    Em outra verso, Leda a me de Helena19. Segundo Severyns (1928b, p. 266-271), a variante que faz de Leda a me de Helena teria suplantado a mais antiga, com Nmesis, sobretudo a partir do sculo IV a.C. Jouan (1966, p. 148), ao contrrio, supe que a variante adotada nos Cantos Cprios seja a mais recente e resultante de um arranjo para melhor integr-la ao plano de Zeus (Momo-Nmesis-ris) e desse modo estabelecer um paralelo entre a concepo de Helena e a de Aquiles; esse autor (p. 148, n. 5) ainda reproduz uma hiptese segundo a qual as variantes refletiriam regionalismos: a verso com Helena nascida de Leda seria prpria do Peloponeso; a com Helena nascida de Nmesis, prpria da tica.

    A outra parte do projeto tem curso com os episdios do casamento de Ttis e Peleu.

    Para agradar Hera, Ttis rejeita o assdio de Zeus20. Zangado, o deus a obriga a casar-se com um mortal, Peleu21. Ciente de que Ttis resistir a essa unio, o centauro Quron ensina a Peleu como captur-la, como deve proceder enquanto ela se

    18 ATENEU, Deipnosophistae, 334 = fr. 7 D, 10 W; FILODEMO, De Pietate B 7369 Obbink = fr. 8 D, 11 W.

    19 Como em Apolodoro (III, 10, 7) ou na Helena (v. 17-21), de Eurpides.

    20 De acordo com Huxley (1969, p. 140) e Debiasi (2004, p. 114-115 e 116, n. 36), a esse episdio

    corresponderia um fragmento do gramtico Herodiano (Peri\ Monh/rouj Le/cewj, livro 9, in: LENTZ (1870, p. 914, linha 15-19) = fr. 26 D, 30 W), o qual menciona as Grgonas, moradoras de Sarpedo, uma ilha de pedra em pleno oceano turbulento: fugindo de Zeus, Ttis ter-se-ia refugiado ao p das Grgonas, suas primas sendo o pai dela, Nereu, o irmo mais velho de Frcis e Ceto, pais das Grgonas (HESODO, Teogonia, v. 233-239 e 270-276). 21

    FILODEMO, De Pietate B 7241 Obbink = fr. 2 D e W. Essa verso aparece ainda em Apolnio de Rodes (Argonuticas, IV, v. 790-798) e em Apolodoro (III, 13, 5). Comparando esse relato com o comentrio do escoliasta do fragmento 1, no se sabe se h divergncia ou se o assdio e o rancor de Zeus consistem apenas em um artifcio para pr em prtica o conselho de Momo.

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    metamorfosear em fogo, em gua, em animal22... Ele precisa ret-la at que ela reassuma sua forma original23. Peleu assim o faz.

    Conquistada a noiva, a festa do casamento acontece no Monte Plio. Deuses, ninfas, graas chegam e trazem presentes: Quron oferece uma lana ao recm-casado, engendrada por Atena e confeccionada por Hefesto, com a qual Peleu e depois Aquiles ho de se impor nas batalhas; Posdon oferece os cavalos imortais Blio e Xanto24... Ento, para dar continuidade a seu plano, Zeus pede a Hermes que barre a entrada de ris, a fim de que ela, por vingana, semeie a discrdia entre os convivas. Assim, em meio cerimnia, eclode uma disputa entre as divindades: Atena, Hera e Afrodite concorrem quanto beleza25.

    Atendendo a uma solicitao de Zeus, Hermes as conduz ao monte Ida, onde Alexandre far o julgamento. No caminho, Afrodite prepara-se com zelo para seduzir o juiz: banha-se, veste uma roupa tecida pelas Graas e pelas Horas, tingida e perfumada de flores primaveris; em seguida, ela, Ninfas e Graas constroem guirlandas de flores e enfeitam as cabeas26. Aps esse ritual, seguem para monte o Ida.

    Uma vez diante de Alexandre, cada concorrente prope-lhe uma recompensa em troca de uma sentena favorvel: Hera, reinados; Atena, vitrias em guerras; Afrodite, o amor de Helena. Encantado com a possibilidade de sua unio com Helena, Alexandre concede a vitria a Afrodite27.

    Com relao ao narrado at aqui, Jouan (1966, p. 48) desenvolve uma reflexo ousada (e talvez influenciada pela tragdia) a respeito do tratamento da impiedade humana no poema: os Cantos Cprios trariam tona a noo de julgamento moral, que no emergiria na Ilada nem deveria fazer parte do mito antes da confeco desse pico. Por esse prisma, analisa o aspecto moral do plano de Zeus e a participao dos deuses em sua execuo (p. 49): ris cumpriria bem sua incumbncia, enquanto Nmesis resistiria, tentaria fazer face a esse desgnio de Zeus; e Afrodite, talvez inconscientemente, guisa de instrumento, produziria o

    22 Ttis assimilada a Nmesis, e o nascimento de Aquiles ao de Helena.

    23 Esclio (MAASS) Ilada, XVIII, v. 434a; Apolodoro, III, 13, 5 = fr. 3 W. Em Pndaro (Nemias, 4, v. 62),

    ocorre a primeira apario literria conhecida desse mito. 24

    Esclio (DINDORFIUS) Ilada, XVI, v. 140 = fr. 3 D, 4 W. 25

    Davies (1989a, p. 36) comenta a possibilidade de no haver nesse pico o pomo da discrdia, que deveria ser uma inveno posterior, provavelmente alexandrina. 26

    Segundo Ateneu (Deipnosophistae, 682d-f = fr. 4 e 5 D, 5 e 6 W), estaria no livro I do poema o ritual de preparao de Afrodite. Eurpides descreve esse ritual na pea Ifignia em ulis (v. 1294-1299). 27

    Mencionado na Ilada (XXIV, v. 25-30); esses versos, porm, so contestados por Aristarco, argumentando que Homero no faz referncia ao julgamento das divindades (SEVERYNS, 1928b, p. 261-264).

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    desencadear de tudo28; a partir desse ponto de vista, Aquiles e Helena no deveriam ser condenados individualmente por seus atos, visto serem manipulados pelos deuses; o poema deveria ento julgar a impiedade humana de forma coletiva, isentando de culpa os heris usados pelos deuses na execuo dos desgnios destes.

    Os passos iniciais da realizao do plano de Zeus e essa reflexo de Jouan pem Aquiles e Helena em evidncia: o maior dos heris e a mais bela das mortais seriam os instrumentos principais do desenvolvimento desse plano. Essa constatao auxilia a compreender melhor o teor e o encadeamento dos episdios da epopia.

    Eleita a mais bela das deusas, Afrodite cumpre sua promessa: sob suas instrues, os troianos constroem uma frota para Alexandre29. Heleno emite profecias a respeito da expedio que se prepara. Afrodite encarrega seu filho, Enias, de acompanhar Alexandre. E Cassandra tambm revela o futuro da misso30.

    Zarpam. Aportam inicialmente na Lacedemnia, onde so recebidos por Castor e Plux; depois, em Esparta, onde so bem acolhidos por Menelau. Durante um banquete proporcionado pela famlia real aos troianos, Alexandre oferece presentes a Helena em agradecimento pela hospitalidade.

    Em meio visita, Menelau precisa partir para Creta, para os funerais de seu av materno, Crateu31. Antes de viajar, o rei solicita a Helena que providencie tudo de que os hspedes necessitem at que estes partam.

    Com a ausncia de Menelau, Afrodite provoca um encontro amoroso entre Helena e Alexandre. Consumada a unio sob os auspcios da deusa, os amantes colocam parte do tesouro do palcio em um barco e vo-se noite32. Na fuga, Helena abandona a filha, Hermone, ento com nove anos33.

    28 Esse papel dos deuses suscita uma interpretao alegrica: Momo, ris, Nmesis e Tmis... o sarcasmo, a

    discrdia, o castigo e a justia. Pena no dispormos desse poema! A confeco de alegorias constitui, alis, um trao bem caracterstico da pica cclica o qual Virglio explora. 29

    Esclio (DINDORFIUS) Ilada, III, v. 443 = fr. 8 W. O canto V da Ilada (v. 59-64) narra a morte do construtor da frota de Pris, Freclo. E Apolodoro (Eptome, 3, 2) refere o mesmo construtor. 30

    Segundo Aristarco (esclio (MAASS) Ilada, XXIV, v. 699), Cassandra no profetisa nos poemas homricos (cf. SEVERYNS, 1928b, p. 266), essa caracterstica viria dos new/teroi poihtai/. E Davies (1989a, p. 39-40) comenta o relevo que esse pico concede a orculos e profecias, diferentemente do que acontece nos poemas homricos. A pea perdida Alexandros (RADT, fr. 91a-99), de Eurpides, exporia tais profecias de Cassandra; em fragmentos da pea perdida Alexander (JOUAN; VAN LOOY, 1998, in: EURIPIDE, Tragdies, tome VIII, 1e partie), de nio, modelada na de Eurpides, aparecem traos do provvel contedo dessas profecias. 31

    Apolodoro (Eptome, 3, 3) conta que Menelau fez companhia a Pris por nove dias em Esparta e que seguiu para Creta no dcimo dia. Percebe-se nesse relato um paralelo com a durao e com o desenrolar da guerra de Tria: aps nove anos de resistncia, Tria cai no dcimo. 32

    Ilada III, v. 70-72, 91-93, 281-287. 33

    APOLODORO, Eptome, 3, 3.

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    A viagem de Esparta a lion dura apenas trs dias, graas a um vento favorvel e a um mar calmo34. Ao chegarem, acontece a celebrao do casamento de Alexandre e Helena.

    Com relao ao retorno de Esparta a Tria, no se segue o sumrio de Proclus, que relata o seguinte: a frota de Pris aoitada em alto mar por uma tempestade provocada por Hera e empurrada para Sdon, na Fencia; os troianos ento saqueiam essa cidade e depois rumam para Tria. Segundo Apolodoro (Eptome, 3, 4), a tempestade leva a frota a Sdon e a Chipre, locais onde Pris demora-se algum tempo precavendo-se contra uma possvel perseguio.

    Essa digresso por Sdon mencionada na Ilada (VI, v. 289-292). Todavia squilo (Agammnon, v. 691-692) e Eurpides (Helena, v. 1117), ao abordarem esse episdio, do a entender uma viagem rpida, em acordo com o testemunho de Herdoto. Diante dessas divergncias, concedendo-se crdito idia de que esses tragedigrafos acompanharam os passos dos Cantos Cprios para a composio do episdio, possvel supor que a insero da tempestade e da digresso no enredo dessa epopia teria sido posterior a Eurpides. Considerando a questo, Jouan (1966, p. 182, n. 1) e Burgess (2001, p. 19) corroboram a possibilidade de se tratar de uma alterao posterior ao testemunho de Herdoto (e talvez at mesmo incitada pela observao desse historiador), concebida para estabelecer uma harmonia entre o relato dos Cantos Cprios e o de Homero.

    Aps as npcias, o poema retomaria a histria de Castor e Plux.

    Castor e Plux so apanhados roubando as vacas de Idas e Linceu, filhos de Afareu, que , por sua vez, irmo de Tndaro. Procurando os ladres, Linceu escala o monte Tageto para ver ao longe; com sua viso privilegiada, avista Castor escondido na cavidade de um carvalho35 e avisa Idas, que ento mata Castor36. Vingando o irmo, Plux mata Idas e Linceu. E Zeus concede aos Discuros a imortalidade em dias alternados.

    34 HERDOTO, Histria, II, 116-117 = fr. 11 D, 14 W.

    35 Esclio (DRACHMANN) X Nemia (v. 114a) de Pndaro = fr. 13 D, 16 W.

    36 FILODEMO, De Pietate B 4833 Obbink = fr. 14 D, 17 W.

  • 22

    Pausnias (Descrio da Grcia, III, 16, 1)37 nos guia a outra aventura de Castor e Plux que poderia integrar os Cantos Cprios. Tratando de um santurio de Hilara e Febe, filhas de Leucipo, Pausnias informa que o autor desse pico afirmava serem filhas de Apolo. A participao delas no poema evocaria outro conflito envolvendo Castor e Plux e os filhos de Afareu. No idlio XXII de Tecrito (sc. IV-III a.C.) e na fbula LXXX de Higino (c.64 a.C.-17 d.C.), encontram-se Febe e Hilara prometidas a Idas e Linceu; apaixonados por elas, Castor e Plux as raptam, provocando uma disputa na qual morrem Linceu, Idas e Castor38. Um esclio (DINDORFIUS) ao verso 243 do canto III da Ilada conta que Castor e Plux foram convidados ao matrimnio de Linceu e Idas e que o rapto ocorreu antes da consumao do casamento; em decorrncia, uma luta explodiu entre os primos, na qual Idas, Linceu e Castor faleceram. Apolodoro (III, 11, 2) relata os dois conflitos, primeiramente o rapto das noivas, depois o roubo das vacas; este ltimo seria a razo da luta mortal entre os primos em acordo com Proclus, o qual expe apenas o conflito causador das mortes.

    A mais antiga descrio original de um episdio da morte de Castor e Plux se aproxima da que integrava os Cantos Cprios, trata-se daquela presente na dcima Nemia de Pndaro (518-438 a.C.). Nesse poema, Pndaro canta a cidade de Argos referindo-se inicialmente a feitos de seus filhos ilustres e beleza de suas mulheres: Perseu, pafo, Hipermnestro, Diomedes, Anfiarau, Alcmena, Dnae, o pai de Adrasto, Tlao39 (filho de Bias), Anfitrio e Hrcules. Na segunda (v. 19-36) e na terceira parte (v. 37-54) da ode, faz o elogio do atleta destinatrio do poema, Theaios, filho de Oulias. No final da terceira parte (v. 49-54), introduz Castor e Plux: so membros de uma famlia geradora de bons atletas, patronos de Esparta, presidem jogos e tm a incumbncia de proteger os justos. Aps introduzir e caracteriz-los (na quarta parte, v. 55-72), Pndaro narra suas vidas aps a morte: um dia no Olimpo, outro no Hades (porque Plux decidiu partilhar sua imortalidade com Castor, aps este ser morto em um confronto); em seguida narra o combate que lhes selou o destino (v. 60-72): contrariados porque Castor e Plux roubaram seu gado, Idas e Linceu planejam uma vingana; Linceu, com sua viso privilegiada, espreita do alto do Tageto,

    37 Fr. 9 D, 15 W. Referncias posteriores a Pausnias dizem respeito a essa obra e sero indicadas apenas com

    autor e localizao no livro. 38

    No idlio XXII de Tecrito, apenas Idas e Linceu morrem na querela por causa do rapto das Leucpides. E Proprcio (I, 2, v. 15-16), oferecendo mais detalhes a essa histria, conta que Castor encantou-se por Febe, Plux por Hilara. 39

    De acordo com Pausnias (Descrio da Grcia, II, 21, 2), Linceu e Tlao possuam sepulcros lado a lado na gora de Argos.

  • 23

    ento descobre Castor escondido no tronco de um carvalho e avisa Idas, que fere Castor com uma lana; Plux chega e persegue Idas e Linceu, os quais param perto do tmulo de Afareu e enfrentam Plux; os irmos retiram uma pedra do tmulo e atiram-na contra o peito de Plux, mas no o aniquilam; Plux, por sua vez, arremessa sua lana e mata Linceu, enquanto Zeus fulmina Idas com um raio; os dois corpos jazem juntos na solido. Na quinta parte da ode (v. 73-90), prossegue o relato: Plux corre para junto de Castor e o encontra ainda com vida; soluando, derrama muitas lgrimas e se dirige a Zeus lamentando seu sofrimento. Em seu discurso emocionado, Plux pede a Zeus que lhe retire a vida, pois no h glria possvel para aquele que perde um amigo querido, e ressalta o companheirismo de Castor, proclamando haver poucos homens fiis nos momentos adversos, capazes de partilhar proezas perigosas (v. 76-79). Zeus ento afirma que Plux seu filho; Castor, por outro lado, foi concebido depois por Tndaro. Com isso Plux deveria escolher entre seu destino natural, evitando a morte e a velhice no Olimpo, ou partilhar um destino alternativo com Castor, vivendo a metade da vida no Olimpo e a outra sob a terra. Plux no hesita e escolhe partilhar um destino com Castor, que reanimado.

    Essa verso de Pndaro segue de perto a dos Cantos Cprios. Ademais, quando se examina com mais vagar a referida exposio de Apolodoro, percebe-se que o casamento de Castor e Plux com as leucpides no gerou conflito por outro lado, parece conveniente e revestido de um halo religioso40 e que a morte deles de fato se deu por ocasio de um roubo de gado. Diante disso, a verso de Pndaro no apenas refora a dos Cantos Cprios mas tambm sugere que a verso da morte por ocasio do rapto das leucpides seria um desdobramento posterior, evocado em parte por Tecrito e seguido por Higino.

    Enfim, cabe ressaltar que a morte dos irmos nessa epopia teria como funo primordial justificar a ausncia deles na guerra de Tria e, sobretudo, na Ilada lamentada por Helena (III, v. 228-242) em meio ao clebre episdio no qual identifica alguns dos guerreiros gregos para Pramo.

    Ainda sobre a participao de Castor e Plux, ao comentar um texto de Clemente de Alexandria (Protrepticus, II, 30, 5)41, Severyns (1928b, p. 268-274) admite que o poema

    40 A etimologia de Leucipo indica cavalo branco; e Castor e Plux tambm so atrelados a esse campo

    semntico: leukopw/lwn / Tundarida=n (Pndaro, Ptica I, v. 66-67). Frazer (1921, p. 30, n. 4, in: APOLLODORUS. The Library, vol. 2) estima haver nessa unio um carter religioso vinculado ao culto do cavalo branco. 41

    Fr. 6 D, 9 W.

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    tambm abordaria o nascimento deles42 (o qual seria anterior ao de Helena) e uma expedio empreendida contra Atenas, em decorrncia do rapto de Helena por Teseu e Pirtoo: desejando uma filha de Zeus por esposa, raptam primeiramente Helena para Teseu e a conduzem a Atenas; depois, seguem ao Hades em busca de Persfone para Pirtoo, mas antes deixam Helena na cidade tica de Afidna, sob a proteo do rei Afidno e aos cuidados da me de Teseu, Etra; enquanto Teseu e Pirtoo empreendem a segunda expedio, Castor e Plux renem um exrcito e marcham para resgatar a irm; nessa empresa, saqueiam Afidna, resgatam Helena e arrebatam Etra como cativa; na luta, Castor ferido na coxa direita pelo rei Afidno; em seguida, no encontrando Teseu, pilham Atenas43.

    Infelizmente, no se sabe se todas essas aventuras integravam os Cantos Cprios nem como as que de fato a ele pertenciam funcionavam em sua trama. De qualquer forma, estranho e ao mesmo tempo sugestivo o encadeamento exposto por Proclus: as aventuras de Castor e Plux alternam-se com os acontecimentos do rapto de Helena. Que estratgia textual essa arquitetura traduziria?

    Aps o segundo episdio de Castor e Plux, ris, mensageira dos deuses, vai a Menelau e lhe revela o que aconteceu na casa deste. O rei ento segue para o palcio de Agammnon, em Micenas, onde deliberam sobre uma expedio contra lion. Depois, Menelau visita Nestor. O velho o acolhe e lhe oferece vinho com as seguintes palavras:

    Vinho, Menelau, dos deuses o melhor feito aos mortais para aplacar os males.44

    E, tecendo uma digresso, Nestor lhe conta como Epopeu teve sua cidade, Scion, inteiramente destruda aps seduzir Antope, a filha de Licurgo45; em seguida,

    42 Com a seguinte filiao: Castor, mortal, sendo filho de Tndaro e Leda; Plux, imortal, de Zeus e Leda.

    43 Esclio (DINDORFIUS) Ilada, III, v. 242 = fr. 12 D e W.

    44 ATENEU, Deipnosophistae, 35c (oi)=no/n toi, Mene/lae, qeoi\ poi/hsan a)/riston / / qnhtoi=j a)nqpw/poisin

    a)poskeda/sai meledw/naj) = fr. 15 D, 18 W. 45

    Antope aparece na Odissia (XI, v. 260-265) em meio ao catlogo de mulheres vistas por Odisseu durante a nekyia; aqui filha do rio Asopo e me de Zeto e Anfon, filhos de Zeus e fundadores de Tebas. Essa passagem, contudo, considerada parte de uma interpolao que se estenderia do verso 225 ao 626 (cf. o comentrio de Brard, in: HOMRE. LOdysse, tome II, p. 92, nota ao verso 225). Em um fragmento do poeta sios de Samos (sc. VI a.C., citado por Pausnias (II, 6, 4) = fr. 1 West (2003a, p. 254)), Antope tambm filha do rio Asopo, mas Zeto e Anfon so agora concebidos por Zeus e Epopeu. Os esclios (DINDORFIUS) ao verso 260 do canto XI da Odissia informam que os trgicos fazem dela a filha de Nicteu, irmo de Lico (que seria o mesmo Licurgo); de fato, na tragdia perdida Antope, de Eurpides (JOUAN & VAN LOOY, 1998, p. 213-274), ela filha de Nicteu. Nas Argonuticas, Apolnio de Rodes apresenta as duas verses: ela filha de Asopo no canto I (v. 735-741) e de Nicteu no IV (v. 1090). Pacvio segue Eurpides em sua Antiopa (Iouis ex Antiopa Nyctei nati , in: JOUAN & VAN LOOY, 1998, p. 272). Em Higino (Fb., 7 e 8, sendo esta ltima uma

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    narra a histria de dipo46, a loucura de Hracles e a histria de Teseu e Ariadne47.

    Essa digresso tem despertado o interesse de muitos estudiosos, que se perguntam qual seria o liame entre os fatos contados por Nestor e o enredo dos Cantos Cprios, em particular no que diz respeito situao de Menelau. Retomando a questo, Jouan (1966, p. 373-374) destaca de incio duas posies: para alguns, esse episdio no se relacionaria diretamente com o enredo do poema, refletiria apenas uma caracterstica de Nestor j presente nos poemas homricos, isto , o gosto por contar histrias48; para outros, que procuram ver na seleo das narrativas de Nestor uma relao direta com a situao de Menelau, as histrias serviriam de exemplos reconfortantes para o rei de Esparta ( mais fcil entrever tal aspecto na primeira e

    compilao das peas de Eurpides e Pacvio), Antope tambm filha de Nicteu. Apolodoro (III, 5) e Proprcio (III, 15) tambm do Nicteu como pai de Antope. Diante dessas abordagens da lenda de Antope, a atribuio de Proclus afigura-se estranha; contudo, no possvel saber se isso constitui um equvoco ou se nos Cantos Cprios Lico realmente aparecia como pai de Antope. Apresenta-se na seqncia um resumo dos episdios dessa lenda para os quais h maior concordncia. Antope, famosa pela beleza, possuda por Zeus; o pai descobre tudo e ameaa castig-la; temerosa, foge; na fuga, arrebatada ou acolhida, acaba junto de Epopeu, em Scion. Antes de morrer em conseqncia desse drama, Nicteu pede a Lico que resgate Antope; Lico, novo governante de Tebas, invade Scion, mata Epopeu e resgata Antope. Durante o regresso, nas proximidades do Citron ou mesmo sobre tal monte, ela d luz gmeos, que so recolhidos por um pastor, o qual lhes pe os nomes de Zeto e Anfon; mais tarde, ela foge dos castigos recebidos na casa de Lico e, vagando perto do Citron, reconhecida pelo pastor, que revela a verdade a Zeto e Anfon; estes ento atacam Tebas e tomam o trono a Lico. Antope deve ter partilhado o leito de Lico, o que tambm explica a raiva que a esposa deste, Dirce, nutre por ela; e Higino (Fb., 7) chega mesmo a dar Antope como esposa de Lico. No se pode dizer de qual se trata e at onde se estende a verso que Nestor conta nos Cantos Cprios; mesmo assim, Jouan (1966, p. 375) supe os seguintes eventos nesse pico: Epopeu, rei de Scion, durante uma visita a Lico, na Becia, seduz a filha deste, Antope, e a rapta; ento Lico marcha contra Scion, toma a cidade, mata Epopeu e leva Antope de volta para casa, onde esta castigada por sua culpa. Tal lenda pertence ao ciclo tebano, embora tambm no se possa dizer se integrava uma epopia e qual seria. possvel ainda compreender o interesse que a lenda de Antope despertou nos escritores latinos; com efeito, possui muitos pontos em comum com a de Ria Slvia e dos gmeos. 46

    Como a lenda de Antope, a de dipo evoca o ciclo tebano, diretamente os poemas Tebada e Edipodia. 47

    Ariadne tambm aparece em meio ao catlogo de mulheres da Odissia (XI, v. 321-325). Alm de o todo ser considerado uma interpolao, Brard (HOMRE. LOdysse, tome II, p. 96) fornece um argumento a mais para se desconfiar dessa passagem: tais versos citam o deus Dioniso, que no figura em nenhum outro lugar no poema. No esclio ao verso 322 (DINDORFIUS), conta-se a histria de Teseu e Ariadne, atribuda a Ferecide (Severyns, 1928b, p. 281-283): Atena manda Teseu partir para Creta e abandonar Ariadne; Afrodite aparece para Ariadne e diz que ela esposar Dioniso; ela morta por rtemis por ter violado sua virgindade Severyns (1928b, p. 283) acredita que essa seria a verso contada por Nestor nos Cantos Cprios e (ibidem, n. 1,) supe ainda que o abandono de Ariadne por outra mulher no faria parte da verso mais antiga dos new/teroi, seria um desenvolvimento posterior. Jouan (1966, p. 386) tambm cr que esse esclio represente a verso dos Cantos Cprios, no entanto sem a frase que diz que Ariadne foi morta por rtemis, pois seria estranho que a deusa matasse Ariadne estando esta sob a proteo e sob o amor intenso de Dioniso; isso seria uma retomada da verso exposta na nekyia da Odissia. Mesmo eliminando a morte sbita de Ariadne, a razo de sua culpa poderia permanecer, ou seja, a quebra do voto de virgindade. 48

    Jouan (1966, p. 373, n. 3) enumera os principais partidrios de tal posio.

  • 26

    na ltima lenda, que mostram raptos de jovens e conseqncias negativas para os raptores)49. Recordando o emprego do mito como exemplo, Jouan (p. 374) estima que a segunda posio seja mais verossmil e que nessa digresso o poema tambm indique suas escolhas entre as variantes de cada uma das lendas.

    Alm desse aspecto, cabe salientar que a digresso de Nestor evoca os demais temas maiores da pica grega perdida: o ciclo tebano e os poemas independentes em torno de Hracles e Teseu. Estaria o autor dos Cantos Cprios fazendo aluses diretas a poemas existentes ou apenas a mitos muito difundidos? Que papel essa digresso desempenharia na epopia? Seria interessante encontrar respostas a tais questes, especialmente porque o

    episdio de Nestor, sobretudo sua estratgia de composio, parece ter sido fecundo para poetas posteriores.

    De volta ao enredo dos Cantos Cprios...

    Menelau e Nestor percorrem a Hlade em busca de aliados, reunindo os chefes. Agammnon tambm participa dessa misso enviando um arauto para cada rei, lembrando-lhes o juramento feito e que essa afronta afeta a casa de cada um deles50.

    Tentando furtar-se expedio, Odisseu finge insanidade. Todavia, a farsa descoberta e desfeita por Palamedes, filho de Nuplio51.

    Tomando agora parte ativa no projeto, Odisseu viaja com Menelau e Taltbio at o palcio de Cniras, em Chipre, onde convencem o rei a apoiar a expedio. Cniras promete em juramento fornecer cinqenta barcos e sela seu compromisso enviando a Agammnon uma couraa de presente; no entanto, no momento de cumprir sua promessa, lana ao mar uma embarcao real, sob o comando do filho de Pigmalio52, e quarenta e nove feitas de argila53.

    Findado o processo de convocao dos chefes gregos, os que aderem empresa se renem em ulis e realizam sacrifcios. Nesta ocasio, ocorre o prodgio da serpente e dos pssaros54, a partir do qual o adivinho Calcante prediz o desenrolar da guerra.

    A expedio tem incio. Aps algum tempo de viagem, aportam no litoral de

    49 Jouan (1966, p. 374, n. 1) enumera os principais partidrios de tal posio.

    50 APOLODORO, Eptome, 3, 6.

    51 Segundo Apolodoro (Eptome, 3, 7), Palamedes segue Odisseu; em determinada ocasio, arranca Telmaco do

    seio de Penlope e saca a espada como se fosse matar a criana; para evitar a morte do filho, o pai confessa o ardil e aceita integrar a expedio. 52

    Correo de West (2003a, p. 72), no cdice aparece Mugdali/wnoj. 53

    APOLODORO, Eptome, 3, 8. Este episdio teria sido retomado por Sfocles na pea (perdida) )Odusseu\j maino/menoj (RADT, 1977, fr. 462-467). 54

    Relatado por Odisseu na Ilada (II, v. 303-332).

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    Teutrnia, na Msia. Pensando j se tratar de lion, saqueiam a cidade. Vendo seu reino atacado, Tlefo, rei da Msia e filho de Hracles, arma os msios

    e persegue os gregos at os barcos, matando muitos, entre os quais Tersandro, filho de Polinice. Porm, enfrentado por Aquiles, Tlefo resolve fugir; durante a fuga, fica preso em um galho de videira e ento ferido em uma coxa pela lana de Aquiles55.

    Controlada a reao dos msios, os gregos deixam a regio. No mar, so surpreendidos por uma tempestade, que os dispersa. Na disperso, Aquiles acaba aportando em Ciros, onde se casa com Deidmia, filha de Licomedes.

    A respeito do equivocado alvo da expedio, Apolodoro (Eptome, 3, 17) explica que os gregos no conheciam bem a rota para Tria, da a confuso com a Msia. Essa ignorncia justifica o papel desempenhado por Tlefo na continuidade do poema.

    Quanto ao rumo dos gregos aps a contenda com os msios, um esclio (DINDORFIUS) ao verso 59 do canto I da Ilada informa que teriam navegado para Argos aps a tempestade. E, alm do relato de Proclus, Pausnias (X, 26, 4)56 atesta a existncia no poema de um episdio com Aquiles e Pirro no palcio de Licomedes: nos Cantos Cprios, Licomedes atribua ao neto o nome de Pirro por conta de seus cabelos ruivos, e Fnix o de Neoptlemo por ser filho de algum que comeou jovem a guerrear57.

    Em outro pico do ciclo troiano, a Pequena Ilada58, tambm se narrava a ida de Aquiles ilha de Ciros, empurrado por uma tempestade, aps a aventura com Tlefo, na Msia. Tal repetio leva Severyns (1928b, p. 285-291) a empreender uma interessante pesquisa. De incio, examina duas passagens da Ilada (IX, v. 666-668 e XIX, v. 326-333) relativas ao elo entre Aquiles e Ciros: os textos mostram que o heri tomou essa ilha de assalto (pois dlopes descontentes com o governo de Peleu queriam se libertar), fez cativos e nela possui um filho, Neoptlemo. Essa verso difere da mais difundida, na qual Aquiles escondido em Ciros entre as filhas do rei Licomedes para no ir guerra. Em seguida, Severyns elenca todas as aluses encontradas em esclios e fragmentos dos picos acerca desse assunto (um total de 16), analisa-as e expe sua hiptese para a verso dos Cantos Cprios: Aquiles educado pelo centauro Quron; raptada Helena e feitos os primeiros

    55 Nessa verso, o fato de Tlefo ter ficado preso em uma videira resultaria da vontade de Dioniso, irritado com

    Tlefo por este haver privado o deus de suas honras. 56

    Fr. 16 D, 19 W. 57

    De ne/oj + poleme/w (ptoleme/w). 58

    Esclio (DINDORFIUS) Ilada, XIX, v. 316 = fr. 4 D e W.

  • 28

    preparativos para a guerra de Tria, Peleu, sabendo que seu filho morrer caso participe da guerra, resolve conduzi-lo a Ciros e confi-lo ao rei Licomedes; este disfara o jovem com roupas femininas e o esconde entre suas filhas; Aquiles engravida Deidmia, filha do rei; a embaixada grega formada por Odisseu, Fnix e Nestor chega e, usando um ardil de Odisseu, descobre Aquiles, que forado a participar da expedio contra Tria; mais tarde, depois da aventura na Msia contra Tlefo, Aquiles levado por uma tempestade outra vez a Ciros e nessa ocasio se casa oficialmente com Deidmia, tendo j o filho nascido59. Tal hiptese no entra em conflito com o resumo de Proclus.

    Quanto a Tlefo, o tempo passa, e seu ferimento recusa-se a sarar. Apolo ento lhe diz que somente seria curado quando aquele que lhe causou a ferida cuidasse dela. Com isso, Tlefo encaminha-se para Argos60. Chegando cidade, suplica a Aquiles que o cure, prometendo-lhe em troca guiar os gregos at lion. Acreditando que Tlefo seria de fato um bom guia para a expedio, Aquiles resolve cur-lo: o pelida ento raspa a crosta oxidada do cobre de sua lana do Plio sobre o ferimento de Tlefo. Curado, Tlefo revela o caminho de lion aos gregos, sendo a veracidade de suas informaes atestada por profecias do adivinho Calcante61.

    No referido esclio (DINDORFIUS) ao verso 59 do canto I da Ilada, h uma verso da histria de Tlefo atribuda aos new/teroi62 na qual esse heri tambm figura como o guia

    dos gregos a Tria diferentemente de Homero, que concede tal misso a Calcante (Ilada, I, v. 68-72).

    Servindo-se principalmente de representaes feitas em um vaso tico do princpio do sculo V a.C., a taa de Hiero, Jouan (1966, p. 48-49) prope uma reconstituio do episdio de Tlefo no palcio de Agammnon, em Argos: no interior do palcio, Aquiles ameaa matar Tlefo, ainda irritado por ter este ferido Ptroclo na Msia; Tlefo encontra refgio junto ao altar domstico; nesse momento, o prprio Ptroclo intervm e, com o auxlio de Nestor, acaba convencendo Aquiles a curar Tlefo.

    59 A maior parte desse relato provm de esclios ao verso 326 do canto XIX da Ilada.

    60 No esclio (DINDORFIUS) ao verso 59 do canto I da Ilada, diz-se que Tlefo chegou a Argos envolvido em

    trapos. Severyns (1928b, p. 295, n. 2) e Jouan (1966, p. 251) julgam que o detalhe da vestimenta no fazia parte do pico, viria da pea Tlefo, de Eurpides. Ver o ensaio de reconstituio e o estudo que Jouan (p. 222-255) faz dessa tragdia, cotejando, quando possvel, seus episdios com os correspondentes dos Cantos Cprios. 61

    APOLODORO, Eptome, 3, 20. 62

    Essa verso considerada por Severyns (1928b, p. 293) um verdadeiro resumo do episdio correspondente dos Cantos Cprios.

  • 29

    Enquanto a frota se prepara em ulis para uma segunda expedio contra lion, Agammnon mata um cervo em uma caada e se vangloria de ser melhor que rtemis. Zangada, a deusa envia tempestades, que impedem a frota de zarpar. Calcante explica a razo do mau tempo e diz que no podero navegar enquanto a mais bela filha de Agammnon no for imolada em honra de rtemis. Decidindo-se a realizar o sacrifcio, Agammnon envia Odisseu e Taltbio a Clitemnestra para perguntar por Ifignia, afirmando que a jovem estava prometida a Aquiles em recompensa pela participao deste na expedio. Iludida, a me entrega a filha. Quando Ifignia chega, o altar j est pronto para sua imolao. No entanto rtemis retira a virgem do altar, colocando em seu lugar um cervo, e a leva para junto dos Tauros, na Crimia, onde lhe concede a imortalidade63.

    Findo o ritual, zarpam outra vez rumo a lion64. Alcanam Tnedos, ilha governada por Tenes, filho de Prclea e Cicno (ou de Apolo), sendo este o rei de Colono, cidade situada no litoral troiano em frente de Tnedos65. Ao ver os gregos, Tenes tenta repeli-los atirando pedras, mas acaba morto por Aquiles, apesar de este ter sido avisado por Ttis para no matar Tenes, porque Apolo, por sua vez, haveria de se vingar levando o pelida morte.

    Controlada a situao, os gregos organizam um banquete, para o qual Aquiles convidado de ltima hora, o que o leva a discutir com Agammnon. Enquanto se banqueteiam, Filoctetes, detentor do arco de Hracles, picado por uma serpente aqutica. Sendo o ferimento incurvel e fonte de uma terrvel pestilncia, os gregos so obrigados a abandon-lo em Lemnos66.

    Enfim chegam a lion. Lembrando o orculo segundo o qual o primeiro a grego a descer seria o primeiro a morrer, Ttis aconselha Aquiles a esperar um pouco para deixar seu barco. Os troianos acorrem praia tentando impedir o desembarque. O primeiro aqueu a lanar-se ao combate Protesilau: aps matar muitos troianos, o jovem, recm-casado, encontra a morte nas mos de Heitor67.

    63 APOLODORO, Eptome, 3, 21-22.

    64 Comentando o prodos de Ifignia em ulis, de Eurpides, Jouan (1966, p. 295-298) aborda a hiptese da

    existncia de um catlogo dos gregos nessa epopia, expresso durante os preparativos para essa segunda partida. 65

    APOLODORO, Eptome, 3, 23. A histria da separao entre Cicno e Tenes e da chegada deste a Tnedos contada por Apolodoro (Eptome, 3, 24-25). 66

    APOLODORO, Eptome, 3, 26-27 com o ferimento de Filoctetes ocorrendo durante um sacrifcio em honra de Apolo, tambm provocado por uma serpente aqutica, proveniente do altar do deus. Referido na Ilada (II, v. 716-728). 67

    APOLODORO, Eptome, 3, 29-30.

  • 30

    (Morto Protesilau, Polidora, sua infeliz esposa, continua e devotar-lhe amor: erige uma esttua do marido e lhe dedica carcias e oferendas68.)

    Aquiles s ento desembarca, acompanhado dos mirmides. Em suas primeiras aes, mata Cicno, filho de Posdon, atirando-lhe uma pedra na cabea. Vendo Cicno morto, os troianos voltam para a cidade69. Com isso, os gregos saem dos barcos sem temor, perseguem os troianos, enchem a plancie de corpos e conseguem sitiar os inimigos.

    Os gregos trazem os barcos para terra; cuidam em seguida de seus mortos e enviam uma embaixada aos troianos solicitando a devoluo de Helena e do tesouro. Os troianos recusam. Diante dessa resposta, consolida-se o cerco de lion70. Instalados, os gregos fazem um reconhecimento dos arredores, o que lhes permite saquear cidades prximas.

    Depois disso, Aquiles tomado do desejo de ver Helena. Atendendo a esse impulso, Afrodite e Ttis proporcionam um encontro entre os dois.

    Tempos depois, os gregos manifestam a inteno de retornar para suas casas; e Aquiles os reprime71.

    Essa atitude de Aquiles derivaria provavelmente de seu encontro com Helena. Esse passo do poema relembra o plano de Zeus, do qual seriam os instrumentos principais. Para Severyns (1928b, p. 304), esse episdio viria em seguida ao da embaixada e nele deveria existir um elogio da beleza de Helena, o que teria despertado em Aquiles a vontade de

    68 O poema abordaria ainda o sofrimento e o suicdio de Polidora nome cuja etimologia indica o culto ao

    marido: a que cobre de dons. Ela seria filha de Clepatra e Melagro, o filho de Oineu (PAUSNIAS, 4, 2, 7 = fr. 18 D, 22 W). Pausnias estabelece uma genealogia que liga a esposa de Protesilau a Idas (irmo de Linceu) e, conseqentemente, s aventuras dos Discuros presentes nos Cantos Cprios. Segundo Apolodoro (Eptome, 3, 30), o nome da esposa seria Laodamia; mas isso provavelmente vem da pea (perdida) composta por Eurpides sobre esse tema. Jouan (1966, p. 329-330) faz um ensaio de reconstituio desse episdio nos Cantos Cprios: aps a chegada s margens de Tria, cientes do orculo, os gregos hesitam, temem desembarcar; ento Protesilau, impetuoso, avana seu barco, salta e enfrenta os troianos, que esperavam os gregos; depois de uma aristia, morre sob os golpes de Heitor. 69

    APOLODORO, Eptome, 3, 31. Os troianos recuam com a morte de Cicno porque esse heri era considerado invulnervel (Aristteles, Ret., II, 22, 1396b). Essa morte retoma o modo como Tenes, o filho de Cicno, tentou repelir os gregos em Tnedos. 70

    A ordem dos fatos parece estranha: primeiramente o ataque, depois a embaixada. Essa embaixada abordada na Ilada (III, v. 203-224; XI, v. 138-141), mas nada informado quanto ao momento em que acontece. Herdoto tambm a expressa (Histrias, II, 118); segundo ele, depois que os gregos desembarcam e se instalam em Tria, enviam a embaixada. Em Apolodoro (Eptome, 3, 28-29), do mar entre Tnedos e Tria, os gregos enviam Odisseu e Menelau para reclamar a devoluo de Helena e do tesouro; em assemblia, os troianos decidem no apenas no aceitar as exigncias gregas, mas tambm matar os emissrios, que so salvos por Antenor; depois disso, os gregos comeam a desembarcar. 71

    Desempenhando o papel de Odisseu e Diomedes na Ilada (respectivamente em II, v. 172-335 e IX, v. 17-49).

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    contempl-la, pois ainda no a conhecia de fato, era jovem demais na poca do rapto. Essa hiptese confere mais coerncia ao enredo.

    Explorando outra vez a regio, Aquiles encontra Enias pastoreando seu gado no monte Ida em companhia de alguns troianos. O pelida investe contra eles; Enias escapa, mas os vaqueiros e um filho de Pramo, Mestor, so mortos. E Aquiles rouba o gado72.

    Aps essa empresa, Aquiles devasta Lirnesso, Pdaso, de onde traz Briseide73, e vrias outras cidades da redondeza.

    Ele ainda encontra Troilo nos arredores de lion e o mata junto de um altar de Apolo Timbreu74.

    Na Ilada, ocorre uma nica meno a Troilo, no canto XXIV (v. 257), quando Pramo, lamentando a morte de Heitor, relembra os filhos mortos curiosamente, o monarca refere-se perda de Mestor e Troilo, cujas mortes constituiriam dois episdios sucessivos dos Cantos Cprios segundo Proclus e Apolodoro. De acordo com um esclio (MAASS) ao referido verso homrico, na pea (perdida) Troilo, de Sfocles (RADT, 1977, fr. 618-635), o filho de Pramo teria sido emboscado por Aquiles enquanto exercitava seus cavalos perto do templo de Apolo Timbreu.

    Discutindo esse episdio, Severyns (1928b, p. 305-306) e Jouan (1966, p. 369) exibem uma reconstituio feita por C. Robert (1881), fundamentada em pinturas de vasos de figuras negras75: nesse momento da guerra, pouco depois do desembarque, os gregos ainda se encontram longe de Tria e no conhecem bem os arredores; isso concede aos troianos uma relativa tranqilidade para se aventurar fora dos muros e realizar determinadas atividades comuns poca de paz; por conseguinte, Polxena e Troilo saem certo dia de Tria e dirigem-se a uma fonte, ela para buscar gua, ele para dar de beber aos cavalos; em uma emboscada, Aquiles os ataca; ela consegue fugir e retornar cidade, mas Troilo alcanado, levado at o templo de Apolo Timbreu e morto; Antenor percebe Polxena chegar em desespero e avisa

    72 APOLODORO, Eptome, 3, 32. Episdio aludido na Ilada (XX, v. 90-93; v. 188-194). De acordo com

    Pausnias (X, 26, 1 = fr. 23 D, 28 W), no poema a esposa de Enias chamar-se-ia Eurdice. 73

    Esclio (MAASS) Ilada, XVI, v. 57 = fr. 21 D, 23 W. Na Ilada (II, v. 688-693), Aquiles captura Briseide em Lirnesso. 74

    APOLODORO, Eptome, 3, 32. 75

    BOARDMAN, 2001, p. 52, fig. 62; p. 64, fig. 84. Para vasos com o episdio de Troilo atribudos a Polignoto (ativo entre 450-420 a.C.), ver Matheson (1995, p. 249-250). Williams (1960, p. 146-147) tambm comenta esse episdio a partir de pinturas.

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    Pramo do perigo; e Polites, tendo visto o drama de um posto de vigilncia, adverte os troianos e parte em companhia de Heitor, Defobo, Enias e o penio Pirecmes em socorro do jovem; no entanto, quando chegam, j tarde, Aquiles lana-lhes a cabea de Troilo; mas ento Aquiles que se v em perigo, cercado pela elite troiana; em seu socorro vm Atena, Ttis e Hermes, o deus das emboscadas; com o amparo das divindades, o heri consegue escapar e retorna aos barcos.

    Aps a emboscada de Troilo, Aquiles penetra na cidade noite e captura Licon, outro filho de Pramo. Ptroclo leva o prisioneiro para Lemnos e o vende como escravo76.

    Acontece uma partilha do butim conseguido com os saques j efetuados. Aquiles toma Briseide como sua parte; Agammnon, Criseida, capturada em Tebas Hipoplcia, onde se encontrava por conta de sacrifcios em honra de rtemis77.

    Tempos depois, a fome castiga os gregos. Nessa circunstncia, Palamedes aconselha Agammnon a buscar as filhas de nio para aliment-los. Uma passagem por Delos ento recordada: rumo a lion, os gregos aportaram em Delos, onde o rei nio, filho e sacerdote de Apolo, recebeu-os calorosamente e, apoiando-se em uma profecia, tentou convenc-los a permanecer na ilha por nove anos; com efeito, instrudo pelo conhecimento divino de seu pai, vaticinou que a expedio enfrentaria nove anos de lutas duras e somente conseguiria a vitria no dcimo; durante esses anos difceis, os gregos poderiam permanecer em Delos, onde a subsistncia seria assegurada por suas filhas, Eno, Espermo e Elais78, as vinhateiras, s quais Dioniso concedera o poder de gerar vontade os produtos referentes aos seus nomes; os gregos, porm, recusaram a oferta e partiram. O conselho seguido, e elas so conduzidas ao Reteu79.

    Em certo dia desse perodo de fome, Palamedes vai pescar. Odisseu, auxiliado por Diomedes, aproveita a oportunidade para vingar-se de Palamedes afogando-o80.

    A morte de Palamedes constituiria o ltimo acontecimento dos Cantos Cprios. Severyns (1928b, p. 309-313) julga que as vinhateiras seriam lembradas durante esse episdio

    76 Referido na Ilada (XXI, v. 34-44 e XXIII, v. 746-747).

    77 Comentrio de Eustcio Ilada (119, 4) = fr. 22, 24 W. Este relato est em acordo com os versos 365-369 do

    canto I da Ilada. Davies (1989a, p. 48-49) reitera aqui a idia de que algumas dessas coincidncias entre o contedo dos Cantos Cprios e o da Ilada podem representar alteraes impostas por Proclus para tornar o poema uma espcie de prefcio da Ilada. 78

    Esses nomes evocam respectivamente as idias de vinho, semente (trigo) e leo (azeite). 79

    A histria das vinhateiras e sua relao com os Cantos Cprios emergem em esclios (LEONE) aos versos 570b, 580 e 581 do poema de Licofron = fr. 19 D, 26 W. Sobre as vinhateiras, ver tambm Ovdio (Metamorfoses, XIII, v. 632-674) e Srvio (ad Aen., III, v. 80). 80

    PAUSNIAS, 10, 31, 2 = fr. 20 D, 27 W.

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    porque as circunstncias denotariam um momento de fome (o guerreiro encontrava-se pescando, reflexo de carncia de alimento); e somente nessa ocasio a passagem por Delos seria relatada no poema, em forma de recordao. Sem tentar reconstituir os eventos, Debiasi (2004, p. 118-122) tambm supe que nio e suas filhas participariam do poema vinculados a Palamedes e fornece mais um argumento para tal hiptese: ao motivo da fome junta-se uma origem comum a Palamedes e nio, ambos so originrios da Eubia.

    Jouan (1966, p. 357-359) tem outra opinio a respeito das vinhateiras e tece um interessante comentrio acerca do papel de Palamedes nos Cantos Cprios: o episdio das filhas do rei nio no figuraria originalmente no poema, teria sido adicionado mais tarde ao de Palamedes, provavelmente no perodo alexandrino; esse heri, por sua vez, rivalizaria com Odisseu em sabedoria e engenhosidade, o que alimentaria a inveja e a raiva que este sentia por aquele; por conseguinte, Palamedes funcionaria como um contraponto para se avaliar melhor o carter de Odisseu, que recebe aqui um tratamento bem menos glorioso do que aquele concedido pelos poemas homricos81.

    Findados os episdios dos Cantos Cprios, o sumrio de Proclus j anuncia a Ilada.

    Etope

    Dando seqncia aos eventos narrados na Ilada, vinha o Etope (Ai)qiopi/j), atribudo a Arctino de Mileto82. Esse ttulo encontra justificativa na participao do heri etope Mmnon. Em termos de datao, Jouan (1966, p. 26-27) estima que pertencesse camada de epopias mais antiga depois da Ilada, tendo sido composto entre 725 e 700 a.C., poca muito prxima (e julga talvez at mesmo anterior) da criao da Odissia; Huxley (1969, p. 144) tambm indica o final no sculo VIII a.C.; j Debiasi (2004, p. 131 e n. 53) sugere o floruit de Arctino no comeo do sculo VII a.C.

    81 O Odisseu de carter recriminvel revelado nesse pico retomado pelos tragedigrafos gregos, sobretudo

    Eurpides, e por poetas romanos como Virglio. 82

    Severyns (1928b, p. 313) cr recente a tradio que atribui tal poema a Arctino. Burgess (2001, p. 163) levanta uma hiptese que vai ao encontro dessa opinio de Severyns: o autor desse pico seria desconhecido; ento estudiosos antigos, reconhecendo nele um fundo milsio (sobretudo no episdio da Ilha Branca), teriam escolhido um poeta milsio arcaico de renome a quem pudessem atribuir a composio.

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    O poema deveria apresentar duas reparties bem marcadas: a primeira constituda de eventos envolvendo Pentesilia; a segunda, Mmnon83. De acordo com Proclus, tais eventos distribuam-se em cinco livros.

    H pouqussimos testemunhos e fragmentos do Etope; destarte, os principais dados para a reconstituio de seu contedo provm da Chrestomathia de Proclus e do Eptome (5, 1-6) da Biblioteca de Apolodoro.

    Aps a morte de Heitor, o maior guerreiro troiano, outros heris vieram em auxlio das foras de Pramo; nesse contexto, o pico principiaria com a chegada de Pentesilia, filha de Ares, amazona oriunda da Trcia.

    Pentesilia chega. Encaminhou-se a lion por seu ardor guerreiro e, sobretudo, para ser purificada por Pramo da morte de Hiplita, um crime involuntrio84. Em combate, envia ao Hades um grande nmero de gregos, entre os quais o grande Macon. Sua aristia, no entanto, finda quanto se defronta com Aquiles. Os troianos ento lhe rendem honras fnebres.

    Depois disso, Aquiles insultado por Tersites, especialmente em funo de um sentimento amoroso que o pelida demonstra por Pentesilia: vendo-a morta, ter-se-ia apaixonado por ela. Perdendo o controle face aos insultos de Tersites, Aquiles o mata com um soco. Os gregos recriminam o ato e discutem a conduta do heri85. Em conseqncia, Aquiles viaja para a ilha de Lesbos, onde executa sacrifcios em honra de Apolo, rtemis e Leto e purificado do crime com o intermdio de Odisseu.

    Discute-se a possibilidade de que ao comeo do Etope pertena uma variante do ltimo verso da Ilada (XXIV, v. 804a) acompanhada de outro verso, os quais anunciam a chegada de Pentesilia, filha de Ares, logo aps os funerais de Heitor (w(\j oi(\ g ) a)mfi/epon ta/fon (/Ektoroj, h)=lqe d ) )Amazw/n, / )/Arhoj quga/thr megalh/toroj a)ndrofo/noio86). Para Severyns (1928b, p. 314), esses versos (j existentes) devem ter sido adicionados a alguma

    83 Pentesilia no mencionada nos poemas homricos; Mmnon, por sua vez, aparece na Odissia (IV, v. 188 e

    XI, v. 522 passagens que podem ser interpolaes). 84

    Quinto de Esmirna (Posthomricas, I, v. 18-35) conta que Pentesilia, tendo ceifado a vida de sua irm durante uma caada, via-se perseguida pelas Ernias, da a necessidade de buscar a purificao desse crime em Tria. 85

    Davies (1989a, p. 54) ressalta certo desacordo entre o Tersites deste poema, cuja morte desencadeia uma revolta, e o impopular Tersites do canto II da Ilada, punido por Odisseu. No Posthomricas (I, v. 722-781), a morte de Tersites revolta Diomedes, e uma relao de parentesco entre eles aflora: Tersites seria filho de grios, irmo de Oineu, sendo este av de Diomedes. Nessa tradio, Tersites , pois, um nobre diferentemente da homrica. 86

    Esclio (MAASS) ao verso 804a do canto XXIV da Ilada = fr. 1 W do Etope.

  • 35

    edio alexandrina de Homero, com o objetivo de estabelecer uma seqncia harmoniosa entre a Ilada e o Etope.

    Tal variante significativa para uma ponderao de E. Christian Kopff (1981). Analisando a relao entre a Eneida e os picos do ciclo troiano, esse estudioso (p. 930-931) defende a hiptese de que a chegada de Pentesilia no caracterizaria o comeo do Etope, antes haveria uma retomada da morte de Heitor, episdio que seria o paradigma da imagem apresentada no templo de Juno, em Cartago (Eneida, I, v. 483-487): a chegada e a ao de Pentesilia constituiriam a segunda parte do Etope, e a variante do verso final da Ilada marcaria justamente a passagem do episdio da morte de Heitor para o da chegada da amazona. Kopff prope ainda uma reconstituio para essas duas partes: no princpio do poema, Aquiles comporta-se como um ser cruel, mutilando e profanando o corpo de Heitor diante da famlia deste e dos muros da cidade que este protegia; Pramo espera que a vinda de Pentesilia salve Tria; a amazona no salva a cidade, mas salva Aquiles, pois, ao contemplar a face da mulher que acaba de matar, o guerreiro comea a compreender suas aes; assim, quando Tersites mutila o corpo de Pentesilia, Aquiles ultrajado e o mata; poludo pelo sangue, precisa ser purificado por Odisseu. Essa hiptese tentadora e no captulo II (parte I), por ocasio do estudo da referida passagem da Eneida, ser apreciada com a argumentao apresentada por Kopff.

    Aps Pentesilia, em auxlio dos troianos vem Mmnon, filho da deusa Eos e de Titono (um troiano que ela arrebatou e a quem concedeu a imortalidade, esquecendo-se, todavia, de lhe atribuir a juventude eterna). Mmnon dispe de armas feitas por Hefesto87, como Aquiles, e traz consigo uma grande fora de etopes.

    Ttis previne seu filho dos fatos decorrentes da chegada de Mmnon. Em combate, o guerreiro etope demonstra sua excelncia e mata Antloco, filho

    de Nestor88. Contudo, Aquiles o enfrenta e o mata. Morto o filho, Eos implora a Zeus o direito de lhe conceder a imortalidade; e o deus aquiesce.

    Depois dessa faanha, Aquiles tenta empurrar os troianos para o interior da cidade; nesse momento, seu destino se consuma: nas portas Cias, uma flecha atinge seu

    87 Davies (1989a, p. 55) cita os versos 383 e 384 do canto VIII da Eneida como uma possvel indicao de que,

    no Etope, Eos convena Hefesto a confeccionar armas para seu filho com um mtodo semelhante ao empregado por Ttis no canto XVIII da Ilada. 88

    Davies (1989a, p. 56) levanta a possibilidade de haver nesse pico uma cena de despedida entre Nestor e Antloco; como argumento, supe que, assim como a referncia a Eos no verso 384, Virglio tambm possa ter se inspirado no Etope para compor a cena de despedida entre Evandro e Palante no canto VIII da Eneida.

  • 36

    calcanhar, atirada por Pris, guiada por Apolo89. Tem curso ento uma terrvel luta pelo corpo do heri. jax mata Glauco,

    recupera as armas de Aquiles e pede aos gregos que as levem para os barcos; em seguida, pega o corpo do heri e o carrega na direo dos barcos, enquanto Odisseu reprime os troianos.

    A morte de Aquiles seria o momento mais elevado do poema90. Severyns (1928b, p. 321-322) acredita que as imagens de uma nfora calcdica de figuras negras, datada do sculo VI a.C., inspiraram-se no episdio da luta pelo corpo desse heri, dada a coincidncia existente entre a narrativa das imagens e a de Apolodoro (Eptome, 5, 4). Com base nessas duas fontes, reconstitui assim o episdio do Etope (p. 322):

    Atena, armada de uma lana e rodeada de serpentes, observa o combate de gregos e troianos em volta do corpo de Aquiles. No centro da composio, jaz Aquiles, atingido por duas flechas, uma no calcanhar, outra no peito.

    O troiano Glauco abaixa-se para atar ao p de Aquiles uma correia com a qual o cadver ser arrastado para fora do campo de batalha. Enquanto Glauco ocupa-se dessa tarefa, jax, sob uma chuva de piques e flechas, atinge-o com um golpe de lana. direita, Pris, puxando o arco, seguido de dois guerreiros com a lana no alto, um dos quais Enias; um pouco mais direita, Ladoco, filho de Antenor, ferido, dobra o joelho, e outro guerreiro, Equipo, lana-se ao combate.

    esquerda, e separado do grupo de combatentes pela imagem de Atena, Estnelo cuida da mo ferida de Diomedes.91

    89 Acontecimento em acordo com o que Heitor, ao morrer, prediz a Aquiles na Ilada (XXII, v. 356-360). Quanto

    a esse nico ponto vulnervel do pelida, questo ausente dos poemas homricos, Davies (1989a, p. 58) se pergunta se o Etope j apresentaria tal motivo, o que faria dele, at onde se sabe, a primeira fonte literria da lenda do calcanhar de Aquiles. 90

    West (2003a , p. 14) acrescenta que esse clmax seria comparvel ao da Ilada, a morte de Heitor. Esse paralelo alimenta a hiptese de Kopff, a de uma retomada da morte de Heitor no comeo do Etope. 91

    Desenho apresentado por Reinach (1899, vol. I, p. 82). Texto original (sic): Athna, arme dune lance, et environne de serpents, regarde le combat des Grecs et des Troyens autour du corps dAchille. Au centre de la composition gt Axilleuj, perc de deux flches, lune dans le talon, lautre dans la poitrine.

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    Um dos anncios feitos na Ilada envolvendo a morte de Aquiles diz respeito a Enias: no canto XX (v. 332-339), quando este heri, induzido por Apolo, tenta enfrentar Aquiles, Posdon aparece e o dissuade de tal insanidade; na ocasio, o deus lhe diz que, to logo Aquiles perea, pode lanar-se ao combate sem temor, pois nenhum dnao poder venc-lo. Essa revelao haveria de se cumprir em uma poca posterior aos fatos da Ilada; considerando sua relevncia e a maneira como o poema homrico a deixa pronta para ser desenvolvida, seria natural que outro pico do ciclo troiano a concretizasse. A morte de Aquiles ocorre no Etope; logo, seguindo a revelao de Posdon, seria oportuna a ocorrncia de uma aristia de Enias nesse episdio. E, nessa reconstituio de Severyns, v-se justamente Enias tomando parte em um dos acontecimentos mais importantes da guerra de Tria cabe ressaltar que na Odissia (XXIV, v. 36-42) esse evento descrito por Agammnon como um combate intenso, que durou um dia inteiro e do qual participaram grandes guerreiros troianos e gregos. Em concluso, desenvolvendo o referido anncio da Ilada, o Etope deve ter concedido a Enias uma valorosa aristia nesse momento, logo aps a morte de Aquiles a grande significncia desse fato para nosso estudo h de se confirmar no captulo seguinte.

    De volta ao acampamento, os gregos fazem o funeral de Antloco e preparam o corpo de Aquiles. Ttis ento chega com suas irms, as Nereides, e com as Musas para prantear o heri. Ela arrebata o filho da pira e o leva para Leuce, a Ilha Branca, no Mar Negro92. Quanto aos gregos, erigem um monumento funerrio e organizam jogos em honra do guerreiro: Eumelo vence a competio de carros; Diomedes, a corrida de curta distncia; jax, o arremesso de disco; Teucro, o concurso de arco e flecha. E as armas de Aquiles so oferecidas como prmio ao heri mais valoroso, o que provoca uma disputa entre jax e Odisseu93. E Odisseu conquista as armas.

    Le Troyen Gl(a)uqoj se baisse pour attacher au pied dAchille une lanire avec laquelle le cadavre sera tran hors du champ de bataille. Tandis que Glaucos est occup ce travail, Aiaj environn dune pluie de piques et de flches, le perce dun coup de lance. Plus droite, Parij , tirant de larc, est suivi de deux guerriers, la lance haute, dont lun est Aineej ; plus droite encore, Leodoqoj (Laodocos, fils dAntnor), bless, plie le genou, et un autre guerrier, Exippoj, se lance dans la mle. gauche, et spar, par la figure dAthna, du groupe combattant, Sqeneloj panse la main blesse de Diomedej. 92

    Burgess (2001, p. 163) e Debiasi (2004, p. 32, n. 88 e p.124-125) discutem a relao entre a regio dessa ilha, de antiga colonizao milsia, e a autoria do Etope. 93

    Uma verso dessa disputa aflora na oitava Nemia de Pndaro. O combate pelo corpo de Aquiles, a preparao do cadver para as cerimnias, o lamento de Ttis, Nereides e Musas e os jogos fnebres aparecem na Odissia (XXIV, v. 36-92) passagem que Severyns (1928b, p. 324) julga inspirada no Etope, considerando que Aristarco delimitava o final da Odissia no verso 296 do canto XXIII.

  • 38

    Transtornado, jax suicida-se.

    Embora Proclus no mencione o suicdio de jax, sua presena neste pico atestada por um esclio ao verso 58b da quarta stmica de Pndaro94. Davies (1989a, p. 60) e West (2003a, p. 12) julgam que Proclus tenha suprimido esse episdio do final do poema porque ele tambm figura na Pequena Ilada. J Severyns (1928b, p. 325) postula no se dever a Proclos essa suposta supresso, mas a quem retirou da Chrestomathia uma parte do captulo referente ao ciclo troiano para inclu-la, como prefcio, em uma edio de Homero. E Debiasi (2004, p. 132 e n. 60) vai mais longe nessa discusso, acredita que no apenas o suicdio de jax mas tambm a disputa pelas armas de Aquiles deveriam fazer parte desses dois picos.

    Para concluir, uma breve sondagem da importncia de Mmnon e conseqentemente desse pico na gesta troiana.

    Davies (1989a, p. 55 e 59) reconhece no Etope um paralelo entre Mmnon e Aquiles: Hefesto confecciona as armas dos dois guerreiros; a morte de Mmnon conduz Aquiles ao fim que lhe destinado; mortos, os dois recebem a imortalidade e so transportados por suas mes para outra regio (Mmnon para o Leste, terra dos negros, Aquiles para a Ilha Branca, Leuce). Podemos acrescentar a esse paralelo a origem dos heris: Aquiles, filho de Ttis (filha de Nereu), divindade marinha, e de um mortal; Mmnon, filho de Eos, que sai do mar toda manh, e de um mortal. Debiasi (2001, p. 125) chega mesmo a qualificar Mmnon de alter ego de Aquiles.

    Pausnias descreve representaes envolvendo Mmnon e Aquiles. Um magnfico trono em Amiclia, obra do arquiteto e escultor Bticles de Magnsia (sc. VI a.C.), expunha o combate entre os dois (III, 18, 12). Esse combate tambm figurava em uma arca de cedro recoberta de figuras (umas em marfim, outras em ouro e outras entalhadas na prpria madeira), na qual Cpselo (governante de Corinto aproximadamente de 655 a 625 a.C.), recm-nascido, foi escondido por sua me para no ser apanhado por membros de sua prpria famlia, os Bacchiadae; mais tarde, essa arca foi oferecida em Olmpia pelos descendentes de Cpselo, em agradecimento (V, 19, 1)95. Em um pedestal semicircular colocado em um ngulo do Hippodamium, em Olmpia, dedicado pelo povo de Apolnia, no mar Jnio, havia um grupo de esttuas: no centro, encontravam-se Zeus, Ttis e Dia, estas suplicando ao deus pelos

    94 Fr. 1 D, 6 W.

    95 O nome Cpselo derivaria dessa lenda da arca (kuye/lh em grego).

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    seus filhos; nas extremidades, Aquiles e Mmnon, opondo-se em posio de combate; e assim outros guerreiros se opunham, sempre um grego de um lado relacionado a um brbaro do outro: Odisseu e Heleno; Alexandre e Menelau; Diomedes e Enias; jax, filho de Tlamon, e Defobo (V, 22, 2).

    Duas peas perdidas de squilo tambm retratavam o prncipe etope: Mmnon e Psychostasia (Yuxostasi/a). Supe-se que essas e uma outra, desconhecida, formassem uma trilogia em torno de Mmnon96. Dentre elas, a Psychostasia desperta maior interesse. No tratado De Audiendis Poetis (2, 17 A), composto por volta do ano 80 de nossa era, Plutarco afirma que, inspirado no episdio do canto XXII da Ilada (v. 208-213), squilo teria escrito a tragdia Psychostasia, na qual Zeus pesava as almas de Aquiles e Mmnon, tendo ao seu lado Ttis e Eos, suplicando por seus respectivos filhos. Fraenkel (1962, p. 229), comentando o verso 438 do Agammnon de squilo, acredita que esse autor tenha de fato sido influenciado pela passagem homrica na qual Zeus pesa as du/o kh=re e principalmente pela variante do

    Etope, que teria substitudo kh=re por yuxai/. O tema do peso das almas de heris teve

    grande repercusso na Antigidade: Taplin (1977, p. 431), apoiando-se em dados de Caskey-Beazley (1931), atesta que a psychostasia de Aquiles e Mmnon aparece em pelo menos nove vasos datados de antes de squilo at cerca de 450 a.C. e que em apenas um deles Zeus segura a balana que pesa o destino dos heris, nos demais Hermes que a sustm. A predominncia de Hermes e a presena de Mmnon nesse episdio pem em dvida o fato de tais pinturas serem representaes do episdio do canto XXII da Ilada em que Zeus pesa o destino de Aquiles e Heitor; em decorrncia, acredita-se que a fonte delas seja o Etope, poema no qual o tema da psychostasia desempenharia um relevante papel. Com isso, Taplin (p. 431), contestando a opinio de Plutarco, considera o Etope o modelo maior da pea de squilo. mesma concluso Severyns (1928b, p. 318-320) chega antes de Taplin. Analisando um esclio (DINDORFIUS) ao verso 70 do canto VIII e esclios (DINDORFIUS e MAASS) ao verso 209 do canto XXII da Ilada e ainda citando representaes do episdio nas artes figurativas97, Severyns apresenta uma reconstituio da psychosthasia segundo o Etope (ressaltando se tratar de uma conjectura), a qual seria inspirada no episdio homrico do peso das kh=re de Aquiles e Heitor: por ocasio do combate entre Aquiles e Mmnon, Ttis e Eos

    96 RADT, 1985, p. 114, 236-239, 374-377. TAPLIN, 1977, p. 422-423, 431-433.

    97 Cf. ROBERT, 1923, p. 1181, n. 3.

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    vo ao Olimpo implorar a Zeus pela vida de seus filhos; para resolver a questo, Zeus concebe

    o peso das kh=re dos heris e encarrega Hermes de realizar tal operao; a balana pende do

    lado de Mmnon, que morto por Aquiles; Eos consegue de Zeus ao menos a imortalidade para seu filho e parte carregando o corpo deste.

    Diante dessas referncias e do paralelo exibido, Mmnon aflora como o grande rival de Aquiles aps a morte de Heitor. A importncia desse heri e do Etope deve muito ao episdio da morte do pelida, ou seja, a magnitude de Aquiles engrandece o heri e o pico que se relacionam diretamente com sua morte. Por que ento o Etope no nos chegou? Por que Mmnon no encontra destaque em obras antigas gregas ou latinas que nos chegaram?

    Pequena Ilada

    Segundo Proclus, a Pequena Ilada ( )Ilia\j Mikra/ ) compunha-se de quatro livros e era atribuda a Lesques de Pirra (ou de Mitilene ambas em Lesbos). Severyns (1928b, p. 314), Jouan (1966, p. 26-27), West (2003a, p. 16) e Debiasi (2004, p. 131) situam a composio do poema no sculo VII a.C., com os trs ltimos fornecendo mais precises: Jouan entre 700 e 680 a.C.; West, por volta do terceiro quarto desse sculo; Debiasi posiciona o floruit de Lesques em 658/7 a.C.

    A Vida de Homero (16) do Pseudo-Herdoto98 conserva os supostos versos iniciais desse pico: )/Ilion a)ei/dw kai\ Dardani/hn eu)/pwlon, / h(=j pe/ri po/lla pa/qon Danaoi\ qera/pontej

    )/Arhoj. diferena das aberturas dos poemas homricos, nas quais o canto emana de uma divindade, aqui o prprio poeta toma posse de sua arte e da inspirao de sua obra (a)ei/dw). A estruturao do primeiro verso (com o objeto direto e em seguida o verbo em primeira pessoa) lembra a do comeo de um poema cclico recriminado por Horcio: Fortunam Priami cantabo et nobile bellum (Arte Potica, v. 137)99.

    No sumrio de Proclus, dando continuidade ao Etope, a epopia principiaria com a disputa entre jax e Odisseu pelas armas de Aquiles.

    Nestor recomenda que alguns gregos se aproximem dos muros de lion para tentar descobrir o que se pensa de jax e Odisseu. Os enviados ouvem uma discusso

    98 Edio de WEST (2003b) = fr. 1 D e W.

    99 Essa estrutura tambm lembra o verso inicial da Eneida: Arma uirumque cano. A esse respeito, consultar o

    artigo de Kopff (1981, p. 924, 927-928).

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    entre duas jovens exatamente a respeito do valor dos dois guerreiros: a primeira assegura ser jax o mais valoroso, porque transportou o corpo de Aquiles para o acampamento grego, o que Odisseu no conseguiria; a outra, inspirada por Atena, retruca dizendo que at uma mulher seria capaz de carregar um homem desde que algum o colocasse sobre seus ombros, porm uma mulher no poderia proteger jax dos outros guerreiros como o fez Odisseu. Esse debate decide a questo em favor de Odisseu100.

    Tendo perdido tais armas, jax enlouquece, ataca violentamente os animais dos gregos e acaba se suicidando101.

    Zangado com essa atitude, Agammnon no permite que o corpo de jax seja cremado. Em conseqncia, esse heri torna-se o nico dos que pereceram em lion a ser inumado102, recebendo um sepulcro no Reteu.

    Retomando a guerra, Odisseu captura Heleno em uma emboscada; e o adivinho revela aos gregos os fata para a tomada da cidade. Seguindo revelaes de Heleno, Diomedes traz Filoctetes de Lemnos103. Curado por Macon104, filho de Asclpio, Filoctetes mata Pris em um grande combate.

    Ao ver o prncipe troiano morto, Menelau extravasa toda sua clera mutilando o cadver. Esse suplcio, todavia, logo termina, pois os troianos conseguem recuperar o corpo de Pris e mais tarde lhe concedem honras fnebres.

    Morto Pris, Helena tomada como esposa por Defobo105. Em seguida, Odisseu traz Neoptlemo de Ciros106 e lhe entrega as armas de

    Aquiles. Filiado ao exrcito e de posse dessas armas, Neoptlemo recebe a visita do fantasma de seu pai.

    100 Esclio (BLAYDES) ao verso 1056 da pea Os Cavaleiros, de Aristfanes = fr. 2 D e W. H outras verses

    para esse julgamento: na Odissia (XI, v. 547 possvel interpolao), os juzes so filhas (cativas) dos troianos e Palas Atena no esclio (DINDORFIUS) a esse verso, conta-se que os gregos consultaram os prisioneiros troianos a respeito da questo (Davies (1989a, p. 60) acredita que essa seria a verso do Etope); na oitava Nemia de Pndaro, os gregos decidem o pleito atravs de um voto secreto. 101

    Segundo Apolodoro (Eptome, 5, 6-7), jax preparava-se para fazer um ataque noturno aos gregos quando Atena o enlouqueceu e desviou o ataque para os animais, que ele trucidou acreditando serem os gregos; depois, caindo em si, suicidou-se. 102

    PORFRIO, Paralipomena, fr. 4 SCHRADER, apud EUSTCIO 285, 34-35 (VAN DER VALK) = fr. 3 D e W. 103

    Apolodoro (Eptome, 5, 8-11) apresenta uma verso diferente: Calcante profetiza a necessidade do arco e das flechas de Hracles (Odisseu e Diomedes vo a Lemnos); depois da morte de Pris, Heleno e Defobo disputam Helena; sendo este o vencedor, Heleno retira-se da cidade e vai morar no monte Ida; Calcante revela que Heleno conhece os orculos protetores de Tria; ento Odisseu arma uma emboscada e o prende; Heleno obrigado a revelar os seguintes meios para capturar a cidade: a recuperao dos ossos de Plops, a agregao de Neoptlemo ao exrcito e o roubo do Paldio. Srvio (ad Aen., II, v. 166) tambm refere a verso de Apolodoro); e Severyns (1928b, p. 337) julga essa verso corresponder da Pequena Ilada. 104

    Em Apolodoro (Eptome, 5, 8), Podalrio quem cura Filoctetes, uma vez que nesta obra Macon foi morto por Pentesilia (Eptome, 5, 1) para Severyns (1928b, p. 317 e 333), Apolodoro seguiria o Etope quanto morte de Macon. 105

    Essa idia encontraria eco no verso 276 do canto IV da Odissia, considerado, porm, uma interpolao. 106

    Uma segunda revelao de Heleno.

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    Os acontecimentos da incorporao de Neoptlemo do azo evocao da passagem de Aquiles por Ciros: ao deixarem a Msia, os gregos foram surpreendidos por uma tempestade, e Aquiles foi levado ilha de Licomedes, onde ocorreu sua unio com Deidmia e a concepo de Neoptlemo107.

    As armas de Aquiles deveriam receber um tratamento abrangente no poema, em especial a peculiar lana de ponta bifurcada, sobre a qual dois esclios fornecem informaes: um ao verso 142 do canto XVI da Ilada (MAASS) e um ao verso 68b da sexta Nemia de Pndaro108 (DRACHMANN). Para Severyns (1928b, p. 342), o fantasma de Aquiles surgiria justamente para ensinar ao filho o segredo do manejo dessas armas.

    De um lado, Neoptlemo integra-se ao exrcito grego; de outro, Eurpilo, o filho de Tlefo e Astoque, irm de Pramo, chega em auxlio de lion trazendo um exrcito de Msios. A bravura de Eurpilo e de seus guerreiros proporciona aos troianos o domnio do campo de batalha; em meio sua aristia, Eurpilo mata Macon109. Suas faanhas findam, no entanto, quando enfrenta Neoptlemo, que o mata110. Sem seu recm-chegado defensor, os troianos refugiam-se no interior da cidade.

    Os gregos ento imaginam uma forma de penetrar em lion. E eis que surge o plano do cavalo de madeira. Seguindo instrues de Atena, Epeu comea a construir a mquina.

    107 Esclio (MAASS) Ilada, XIX, v. 326 = fr. 4b D, 4 W. Enquanto nos Cantos Cprios tal episdio era de

    ao; aqui seria apenas recordado. Por curiosidade, quantos anos teria o filho de Aquiles ao chegar a Tria? Apolodoro (Eptome, 3, 18) tangencia essa questo ao explicar que desde o rapto de Helena at o fim da guerra transcorreram vinte anos: dois desde o rapto at o fim dos preparativos para a primeira expedio, ento aconteceu o equvoco na Msia; da at se reunirem novamente em ulis para o incio de uma segunda expedio, desfiaram-se mais oito anos. Esse relato de Apolodoro est em acordo com a afirmao de Helena no canto XXIV da Ilada (v. 765-766) e com a de Agammnon no canto II (v. 134). Com base nessas informaes, ao chegar a Tria, Neoptlemo teria por volta de 17 anos segundo a Pequena Ilada e entre 18 e 19 anos segundo os Cantos Cprios. Diante desses dados, Severyns (1928b, p. 338) supe que os Cantos Cprios, poema mais recente, deveria corrigir uma questo criticada na Pequena Ilada. 108

    Fr. 5 D e W. 109

    PAUSNIAS, III, 26, 9 = fr. 7 D e W. No Posthomricas (VI, v. 390-435), tambm Eurpilo quem mata Macon, o qual, ao morrer, como Heitor, profetiza o fim prximo de seu algoz. Retomando Apolodoro (Eptome, 5, 1), v-se Macon morto por Pentesilia; na Pequena Ilada, por Eurpilo. Nas consideraes de Severyns (1928b, p. 317 e passim), tais diferenas revelariam o quanto os autores se esforavam para renovar lendas j abordadas antes. 110

    interessante notar aqui a tessitura do pico, as relaes de causa e conseqncia envolvendo Msia e Ciros, Tlefo e Aquiles, Eurpilo e Neoptlemo. A morte de Eurpilo mencionada na Odissia (XI, v. 519-521). Examinando esclios referentes expresso gunai/wn e(/neka dw/rwn do verso 521 desse trecho da Odissia, Severyns (1928b, p. 342-346) chega concluso de que a Pequena Ilada deveria fazer meno a um presente oferecido por Pramo a Astoque para que esta permitisse o auxlio do filho aos troianos, tal presente seria o cacho de ouro ofertado por Zeus a Trs em troca de Ganimedes.

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    Dando seqncia ao estratagema, cabe a Odisseu a misso de fazer um reconhecimento de lion; assim, em trajes de mendigo111 e desfigurado por ferimentos112, chega juntamente com Toas cidade inimiga. J dentro dos muros, Odisseu acaba sendo identificado por Helena. Todavia, com seu poder de persuaso, faz com que ela concorde com o plano em marcha. Depois desse encontro, mata alguns troianos e consegue regressar aos barcos com a misso cumprida.

    Mais tarde, Odisseu e Diomedes penetram em lion e roubam o paldio, a esttua protetora da cidade. No retorno ao campo grego, noite, Odisseu caminha detrs de Diomedes; cobiando toda a glria da faanha, ergue a espada para matar o companheiro. Porm Diomedes percebe a sombra da lmina provocada pela luz da lua e impede o golpe; em seguida, para evitar qualquer perigo, obriga Odisseu a marchar na frente e o segue espetando-o com a espada113.

    Concludo o cavalo, alguns dos principais heris escondem-se em seu ventre114. Os demais queimam o acampamento e partem para a ilha de Tnedos, deixando no local apenas Snon, incumbido de lhes guiar noite com o sinal de uma tocha.

    Cientes da partida dos gregos, os troianos pensam que a vitria enfim lhes sorri. Encontram o acampamento abandonado e o cavalo de madeira. Decididos a introduzir a mquina na cidade, demolem uma parte do muro e pela abertura fazem-na passar. Depois festejam a suposta vitria.

    Entretanto, no meio da noite, sob uma lua brilhante, Snon cumpre sua tarefa115.

    O episdio da demolio do muro para a entrada do cavalo requer uma ateno especial, pois parece encerrar significados mgico-religiosos e pode constituir uma inovao dessa epopia (a ser discutida no estudo do Saque de lion). W. F. J. Knight (1930, artigo complementado em 1931), investigando esse episdio na Eneida, explora a idia de o cavalo

    111 Esclio (DINDORFIUS) ao verso 248 do canto IV da Odissia (= fr. 9 W) verso de uma passagem em que

    Helena relata esse episdio (v. 242-264). 112

    No sumrio de Proclus, o prprio Odisseu se desfigura (para reforar o disfarce). No esclio (LEONE) ao verso 780 do poema de Licofron (= fr. 8 D e W), Odisseu permite que Toas lhe faa ferimentos. 113

    Esse episdio origina o provrbio Diomh/deioj a)na/gkh = fr. 9 D, 11 W. Tem-se a idia de que as informaes colhidas na primeira expedio de Odisseu servem para a execuo do roubo do paldio. 114

    Segundo Apolodoro (Epitome, 5, 14 = fr. 10 D, 12 W), seriam treze os guerreiros no interior do cavalo na Pequena Ilada nos cdices, o nmero trs mil; inverossmil, essa quantidade foi corrigida para treze. Comentando o episdio, Severyns (1928b, p.35