Upload
eduardo-barroso
View
305
Download
1
Embed Size (px)
Citation preview
Aplicao das classificaes CID-10 e CIF nas
definies de deficincia e incapacidade
Heloisa Brunow Ventura Di Nubila
Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao da Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Sade Pblica. rea de concentrao: Epidemiologia. Orientadora: Profa. Dra. Cassia Maria Buchalla
So Paulo
2007
2
Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta tese, por processos fotocopiadores.
Assinatura:
Data:
3
Dedicatria:
Dedico esta tese
Ao meu esposo Carlos, companheiro, revisor paciente e colaborador incansvel.
s minhas filhas Angela e Julia, fonte de motivao, alegria e inspirao.
memria de meu tio Roberto, que viveu a maior parte de sua vida com epilepsia,
internado numa instituio, sem poder decidir o seu destino.
4
AGRADECIMENTOS:
Agradeo a orientao, o apoio e a generosidade da orientadora Prof Dra. Cassia
Maria Buchalla neste trabalho de tese, mas tambm em outras situaes de
necessrio aprofundamento no uso e no entendimento da CIF.
Ao Professor Ruy Laurenti por me permitir o privilgio do seu convvio e contnuo
aprendizado no CBCD (Centro Brasileiro de Classificao de Doenas).
amiga Lucila Faleiros Neves, que mesmo enfrentando os momentos mais difceis
com a sua surdez no trabalho, me incentivou a enveredar pela CIF.
Aos pacientes, familiares, amigos e colegas da AVAPE (Associao para
Valorizao e Promoo de Excepcionais) que me ensinam todos os dias.
Aos amigos Ana Rita de Paula e Antonio Carlos Munhoz, a quem muito admiro
como protagonistas ativistas pelos direitos das pessoas com deficincia.
A Maria Ceclia Mathias Coelho Tamantini, querida amiga, cuja ajuda me tornou
possvel participar dos encontros internacionais da CIF.
amiga Jacqueline Louise Schefler que me permitiu fazer a primeira aproximao
das pessoas escondidas nos diagnsticos e prognsticos neurolgicos.
A todas as maravilhosas pessoas envolvidas com o Movimento de Direitos das
Pessoas com Deficincia que tive o prazer de conhecer neste caminho.
5
RESUMO
Di Nubila HBV. Aplicao das classificaes CID-10 e CIF nas definies de
deficincia e incapacidade [tese de doutorado]. So Paulo: Faculdade de Sade
Pblica da Universidade de So Paulo; 2007.
A Organizao Mundial de Sade tem hoje duas classificaes de referncia para a
descrio dos estados de sade: a CID-10 (Classificao Estatstica Internacional de
Doenas e Problemas Relacionados Sade) e a CIF (Classificao Internacional de
Funcionalidade, Incapacidade e Sade). A utilizao da CIF vem sendo aguardada
com grande expectativa pelas organizaes de pessoas com deficincias e
instituies relacionadas. A falta de definio clara de deficincia ou
incapacidade tem sido apontada como um impedimento para a promoo de sade
de pessoas com deficincia. Este trabalho tem como objetivo apresentar definies
de deficincia, discutindo a utilizao da CID-10 e da CIF e a contribuio da CIF
para melhorar a compreenso sobre definies de deficincia a partir do conceito de
funcionalidade e dos fatores contextuais. Foram revisados alguns diferentes
conceitos/definies de deficincia, bem como publicaes envolvendo a aplicao
da CIF. So apresentadas algumas categorias de diagnsticos de estados de sade da
CID-10 hoje utilizadas em alguns sistemas, alm de elementos da recm-apresentada
CIF, que podem contribuir para diferentes campos de aplicabilidade no que diz
respeito ao entendimento das definies de deficincia ou incapacidade.
Palavras-chave: Classificaes; CID; CIF; Definies; Deficincia; Incapacidade.
6
ABSTRACT
Di Nubila HBV. Aplicao das classificaes CID-10 e CIF nas definies de
deficincia e incapacidade/ Application of the classifications ICD-10 and ICF on
definitions of disability [doctoral thesis]. So Paulo (BR): Faculdade de Sade
Pblica da Universidade de So Paulo; 2007.
The World Health Organization has nowadays two reference classifications for
description of health conditions: ICD-10 (International Statistical Classification of
Diseases and Health Related Problems) and ICF (International Classification of
Functioning, Disability and Health). Organizations of people with disabilities and
related institutions are waiting with high expectation for the ICF utilization. Lack of
clear definition of disability is being pointed out as a deterrent for promoting the
health of people with disabilities. The objective of this work is to evaluate definitions
of disability, and discuss the use of ICD-10 and ICF and the contribution of ICF to
improve understanding of definitions of disability through functioning and contextual
factors. Some different definitions of disability have been reviewed, as well as
publications involving ICF application. Diagnostic categories of health conditions of
ICD-10 used in some systems are presented, as well as ICF components that could
contribute for different fields of applicability regarding the understanding of
definitions of disability.
Key-words: Classifications; ICD; ICF; Definitions; Impairment; Disability.
7
NDICE 1. Introduo
1.1 Questes de identidade
1.2 - Questes de traduo
8
12
21
2. Objetivo 29
3. Desenvolvimento do tema
3.1 CID-10 e CIF
3.1.1 Histrico das duas classificaes 3.1.2 - CID-10 3.1.3 CIF 3.1.4 - Definies de deficincia e incapacidade da CIF 3.1.5 - Natureza complementar e sobreposies das duas
classificaes 3.2 - Definies de deficincia ou incapacidade
3.2.1 Definies nas Leis dos Estados Unidos 3.2.2 Definies na Unio Europia 3.2.3 Baremas 3.2.4 Definies de Leis no Brasil
3.3 - CID-10 para definir deficincia ou incapacidade
3.4 - Categorias da CIF e da CID-10 relacionadas a deficincia ou incapacidade
29 39 41 46 51
54
62 66 73 80
94
96
4. Consideraes finais 100
5. Referncias 104
6. Anexos Anexo1 Anexo2 Anexo3
113 142 154
8
1. Introduo
A definio e a mensurao da incapacidade tema de interesse crescente a
partir do momento em que as pessoas comearam a viver por mais tempo e as
doenas crnicas e suas conseqncias tm-se tornado relativamente mais comuns
(CHATERJI e col., 1999).
Queixas mdicas, molstia, enfermidade, doena crnica, distrbio,
limitaes funcionais, deficincia e incapacidade para o trabalho so fenmenos
complexos e mal definidos. A incapacidade, em particular, uma categoria
escorregadia e potencialmente expansiva, inerentemente subjetiva, ambgua,
imprecisa, impalpvel e problemtica para definir e medir. A deficincia muitas
vezes no pode ser observada diretamente, mas pode ser inferida a partir de causas
presumidas (prejuzos, danos) com distintas conseqncias, isto , uma restrio ou
incapacidade para desempenhar normalmente vrios papis, principalmente de
trabalho. Danos sade que causam deficincia ou incapacidade precisam ser
certificados medicamente, embora a certificao clnica de dano seja necessria, mas
no suficiente para certificar a incapacidade para o trabalho ou elegibilidade para
benefcios por incapacidade (MARIN, 2003).
Para LOLLAR (2002), a falta de uma definio clara de deficincia ou
incapacidade tem sido apresentada como um impedimento para a promoo da
sade de pessoas com deficincia. A vigilncia e a interveno dependeriam da
capacidade para identificar as pessoas que deveriam ser includas.
Tanto no setor da sade como em outros setores que necessitam avaliar o
estado funcional das pessoas, como o caso da previdncia social, do emprego, da
educao e dos transportes, entre outros, a CIF pode desempenhar um papel
9
importante. O desenvolvimento das polticas nestes setores requer dados vlidos e
confiveis sobre o estado funcional da populao. As definies de incapacidade de
mbito legislativo e regulamentar tm de ser consistentes e fundamentarem-se num
modelo nico e coerente sobre o processo que origina a incapacidade (PORTUGAL,
2006).
O processo de certificao de deficincia ou incapacidade pode s vezes ser
bastante litigioso devido a diferenas entre suas definies legais, administrativas,
sociais e culturais. Diferentes sistemas definem deficincia ou incapacidade de
acordo com suas prprias necessidades e regulaes, mas as definies tipicamente
carecem de critrios especficos, impossibilitando determinaes precisas
(BARRON, 2001).
Associar as categorias de diagnsticos de estados de sade da CID-10 com os
elementos da recm-apresentada CIF, oferecendo uma discusso sobre a prtica
possvel a partir das duas classificaes, pode contribuir para um melhor
entendimento de possveis definies de deficincia ou incapacidade.
O modelo mais amplo de funcionalidade, incapacidade e sade oferecido pela
CID-10 e pela CIF, quando aplicado para a construo de instrumentos para
levantamentos de sade e incapacidade, poderia reforar o campo da pesquisa em
sade e incapacidade, na infncia (MCDOUGALL & MILLER, 2003), mas tambm
nas outras etapas do ciclo de vida.
Um estudo sobre elegibilidade para Programas de Interveno Precoce nos EUA
utilizou um sistema de classificao com descritores para condies de sade, atraso
no desenvolvimento e fatores associados com estado de risco, baseado na CID-10 e
na CIF (SIMEONSSON e col., 2002). Este estudo pode oferecer um modelo ou um
10
ponto de partida para a elaborao de recursos para utilizao em outras faixas
etrias ou outros sistemas, no que diz respeito no s a definies e elegibilidade,
mas tambm para propostas de interveno, avaliao, certificao, destinao de
recursos em reabilitao e, de modo mais amplo, no estabelecimento de polticas.
A CID registra uma condio anormal de sade e suas causas, sem registrar o
impacto destas condies na qualidade de vida da pessoa ou paciente, e hoje uma
exigncia legal para todos os benefcios e atestados relacionados ao paciente
(BATTISTELLA e BRITO, 2002). A maioria das leis no Brasil, que concede
benefcios a pessoas com deficincia, tem como exigncia a apresentao de laudo
mdico, algumas vezes acompanhado da avaliao e assinatura de outros
profissionais de equipes multiprofissionais, com o preenchimento de campos
especficos para cdigos da CID ou a simples informao destes cdigos em
atestados mdicos em receiturio comum assinado por mdico.
Para a autora deste trabalho, na posio de mdica em um servio de
reabilitao, a questo das definies de deficincia surgiu a partir da
responsabilidade de ser quem certifica a condio, para fins de acesso a vrios tipos
de benefcios. Quem e quem no elegvel? Acostumada a usar os cdigos da CID-
10 para cobrir exigncias legais, a autora participou de um grupo que, no sistema de
transporte, discutia quais os limites e prioridades de atendimento, dentro de um
conjunto de situaes muito vasto e heterogneo. Mais difcil ainda, como fazer isto
usando como parmetros definies legais vagas, fortemente ancoradas em
diagnsticos mdicos, com pouqussima orientao quanto a aspectos funcionais?
A publicao da CIF neste caminho, como classificao complementar CID,
com seu foco sobre a funcionalidade, trouxe o interesse em explorar as sobreposies
11
e interfaces das duas classificaes, no que tange aos prprios limites a serem
desenhados para as definies de deficincia.
Este trabalho ter cumprido sua funo se com ele for possvel avanar alguns
passos nesta discusso e contribuir para maior clareza e justia, menor arbitrariedade
e crena pessoal, no processo de julgar e certificar a condio de incapacidade de
uma pessoa, pelos profissionais e pelas prprias pessoas interessadas nestes limites.
12
1.1 Questes de Identidade
Questes de identidade precisam ser levadas em conta ao discutir definies
de deficincia e incapacidade, pois estas definies influenciam o imaginrio social,
partindo de diferentes instituies, produzindo identidades construdas externamente
e em parte incorporadas internamente. importante discutir as definies, pois elas
ao mesmo tempo influenciam e so o reflexo da maneira como pensa a sociedade.
Segundo ROCHA (1999), no seu trabalho de doutoramento, a expanso e o
fortalecimento das organizaes de pessoas com deficincia dependem, entre outros
fatores, principalmente da construo de uma mentalidade em relao ao que seja
deficincia, diferente das noes vigentes no senso comum, de excepcional,
subnormal, aleijado, incapaz, coitadinho, que refletem uma viso paternalista e
assistencialista. O conceito de deficincia, nos dias atuais, resulta de pelo menos dois
sculos de construo terica.
A deficincia como categoria cientfica s passou a existir no sculo XIX.
At ento, as pessoas consideradas deficientes enquadravam-se no grupo dos
sobrenaturais, aleijados, loucos, leprosos, contagiosos, delinqentes, e a
deficincia percebida como produo mtica, religiosa ou de ameaa social (SILVA,
1986).
A partir do sculo XIX, a deficincia passa a ser compreendida como uma
patologia na lgica cientfica da poca, tornando-se passvel de estudos,
classificaes e objeto de intervenes especficas, de acordo com os principais
problemas de ordem mdica. Neste momento, a deficincia adquire uma nova
expresso de sua negatividade: a de pertencer ao universo de anomalia da natureza.
13
Esse novo enquadramento na negatividade social, por sua vez, passa a requerer
solues por meio de intervenes normatizadoras, previstas pelas instituies
cientficas. Assim, as deficincias so classificadas em mental, fsica,
perceptivas/sensoriais (auditiva, visual) e, nesta lgica, so organizados modelos
especficos de interveno para cada tipo de deficincia, em instituies
especializadas (ROCHA, 1999), divididas de acordo com seus tipos, fragmentadas e
retificadoras.
O avano da Medicina no conhecimento da etiologia das doenas, dos tipos e
manifestaes das deficincias, tambm levou a uma classificao das mesmas, de
forma cada vez mais especfica. A preciso na determinao da patologia torna-se
cada vez mais presente e cumpre a finalidade de observar onde est a causa e agir
sobre ela tambm de forma preventiva. A classificao das deficincias, a partir do
olhar cientfico do sculo XIX e XX, foi fundamental na constituio de modelos de
interveno. O aprofundamento das causas e dos tipos de deficincia fez com que as
prticas de reabilitao passassem a ser cada vez mais especializadas e pautadas pelo
modelo mdico, com finalidades corretivas. No entanto, mesmo que o conceito de
patologia tenha se tornado referncia dos projetos de interveno teraputica e de
organizao de servios, isto no foi capaz de eliminar a verso religiosa da viso da
pessoa com deficincia, inclusive nos dias atuais. Ocorreram transformaes tambm
sobre o conceito de doena do sculo XIX para o XX, havendo o deslocamento
gradativo da idia de um corpo doente individual para um conceito de corpo social,
aproximando-se cada vez mais da idia de que as doenas so produes histrico-
sociais. Nessa linha, o conceito de deficincia tambm passou a ser contemplado
com um olhar cientfico, que amplia seu objeto: de um corpo deficiente individual
14
para um corpo deficiente social, com incapacidades e desvantagens, um corpo
biolgico, individual, incapacitado, excludo do social. No corpo individual est
expressa toda a negatividade social da deficincia, justificando-se a interveno que
busca sua correo. O conceito de desvantagem, introduzido com a CIDID/ICIDH,
colocaria o corpo social como objeto ampliado das prticas de interveno em
sade e reabilitao. Com o conceito de desvantagem e a necessidade de intervir no
ambiente, nas relaes pessoais e sociais, esboa-se a idia de interveno no corpo
social, que deve ser objeto de mudanas a fim de minorar as incapacidades e perdas
da pessoa deficiente, embora o enfoque, a finalidade, ainda esteja no individual, uma
vez que visa o desempenho timo de cada pessoa com deficincia na sociedade. Com
o deslocamento do objeto do corpo individual para o corpo social proposto pela
OMS, tem-se uma redefinio da negatividade da deficincia (ROCHA, 1999).
A psicloga Dra. Ana Rita de Paula, estudando em sua tese o asilamento de
pessoas com deficincia, considera a instituio do ponto de vista exclusivamente
poltico (micropoltica), onde geralmente a noo de sujeito abandonada,
privilegiando-se os mecanismos de produo de lugares institucionais/sociais. O
objeto do qual se apropria a instituio asilar o cuidado com aqueles que no so ou
deixaram de ser capazes de viver em sociedade. As razes atribudas a essa
impossibilidade, a essa incapacidade social, dizem respeito situao de
dependncia, de incapacidade para o autocuidado dessas pessoas, associada, porm, a
dficits sociais, isto , falta de outras instncias para suprir essas necessidades de
cuidado. Esto associadas carncia econmico-cultural das famlias e s vezes,
limitao de recursos tcnicos de assistncia, que colocam os servios disponveis
como privilgio de poucos, ou como bens to preciosos que no devem ser
15
desperdiados com indivduos que no podem tirar o mximo de aproveitamento.
diante de um quadro de total dependncia, impossibilidade de mudana ou de
progresso, que a instituio asilar vai cuidar daqueles a quem ningum quer ou
ningum pode cuidar, nem mesmo a prpria pessoa. a instituio da incapacidade
social, tanto dos indivduos internados, quanto da sociedade, de manter uma relao
que no a da excluso e segregao. Em outros termos, a instituio asilar propaga
uma representao de duas faces: a de que a pessoa com deficincia incapaz de
cuidar de si mesma e a de que a sociedade incapaz de conviver com estas pessoas
no cotidiano, garantindo sua participao e incluindo-as. Quando se est diante de
um caso na rea de reabilitao, e se objetiva a promoo de mudanas no sentido da
maior autonomia possvel, preciso, antes de mais nada, compreender as
interligaes existentes entre a deficincia enquanto incapacidades funcionais
concretas e suas representaes no imaginrio individual e familiar. Interpretar a
demanda feita, conhecer o desenho, a matriz das relaes estabelecidas, para, s
ento, definir-se quem , ou que so o caso, quais os profissionais que atuaro, no
qu, e em qu sentido (PAULA, 2000).
Em seu trabalho de anlise do discurso em servios de reabilitao, NALLIN
(1994) argumenta que os contnuos ataques identidade, que vo configurando um
lugar de clientela, podem levar a pessoa deficiente a assumir um modelo de
deficiente ideal, proposto pela instituio o deficiente que persiste, que supera as
dificuldades, que se empenha, que constri uma nova vida, que se cuida, que se
inspeciona, que trabalha, num processo de individualizao da responsabilidade pela
no-integrao, e de alienao de si mesmo, contribuindo para que no se rompa com
esta padronizao e submisso, reforadas pela Tcnica e pelo Saber. Assim, criado
16
um modelo ideal de deficiente o reabilitando -, que opera uma separao entre os
deficientes reabilitveis e os no-rebilitveis, por uma dupla determinao
classificatria. So estabelecidas categorias de pessoas deficientes pela patologia
face da cincia e pelo aspecto moral face da filantropia. Legitima-se e se refora,
deste modo, um processo social de excluso, que incide sobre um grupo j excludo
pela deficincia.
Pode-se distinguir entre categorizao social e identificao de grupo. Uma
categoria definida e reconhecida por outros, enquanto a identificao de grupo
ocorre atravs do auto-reconhecimento e reconhecimento mtuo entre os membros
do grupo. Categorizao social pode afetar a identificao de grupo porque
categorias sociais afetam o modo como as pessoas so tratadas na sociedade, por
exemplo, por agncias de bem-estar social. A relao entre categorizao e
identificao no direta, contudo: grupos podem se rebelar contra e subverter
categorias sociais que os afetam. Alm disso, no se deve exagerar o impacto da
categorizao social na identificao de grupo. possvel para pessoas pertencer a
uma categoria social sem saber da sua existncia, ou do fato de ser membro desta.
Definies de deficincia ou incapacidade utilizadas em inquritos so em geral
construdas a posteriori a partir de respostas a perguntas sobre sade e limitaes na
vida diria. Os respondentes provavelmente no sabem que as suas respostas sero
usadas para classific-las como deficientes ou incapacitadas. Algumas vezes as
medidas de inquritos de deficincia ou incapacidade se dizem baseadas em
autodefinio, mas isto enganoso: elas so baseadas nas limitaes na vida diria
auto-referidas, no em deficincia ou incapacidade autodefinida. As circunstncias
nas quais pessoas definem a si mesmas como deficientes ou incapacitadas no foram
17
muito pesquisadas. Mesmo que as pessoas estejam freqentemente conscientes das
suas categorizaes na poltica social para concesso de benefcios (seu status como
detentor de direito ao recebimento de benefcios), elas no necessariamente adotam
estas categorizaes como identidades. Um sinal da disjuno entre categorias e
identidades terminolgico: os termos usados para categorias so freqentemente
rejeitados como termos para identidades precisamente porque seu significado
construdo por outros, no pela identidade do grupo por si s (BRUNEL , 2002).
Um estudo de Watson (WATSON, 2002 abstract, apud BRUNEL, 2002)
aponta diretamente a questo de auto-identificao como deficiente ou incapacitado.
A maioria dos membros de sua amostra de pessoas com deficincias demonstrou
considervel resistncia para adotar a identidade de uma pessoa deficiente ou
incapacitada. A maioria dos seus respondentes procurou estabelecer identidades
sociais que no eram dominadas pelas suas deficincias: identidades como membros
de famlias e grupos de amizade, como indivduos produtivos e cheios de
habilidades, como pessoas que levam vidas normais. Isto pode ser visto como um
genuno reflexo da importncia limitada da deficincia (no nvel do corpo) ou ento
como uma forma de falsa conscincia motivada pelo estigma ligado deficincia
ou incapacidade. As pessoas devem ser capazes de desenvolver e escolher suas
prprias identidades, no ter uma identidade imposta a elas com base em algumas
caractersticas imputadas. Os informantes politicamente ativos do estudo de Watson
tambm rejeitaram uma identidade construda na deficincia, mas eles se
identificaram com outras pessoas deficientes ou incapacitadas ao descrever
experincias de opresso. Isto sugere que a mobilizao poltica de um grupo com
experincias comuns no tem que se colocar sobre definir uma identidade fixa e
18
comum. Mobilizao poltica poderia ser vista como envolvendo um terceiro
processo ao lado dos processos de identificao e categorizao da poltica social.
Este processo pode ser chamado de construo social. Construes sociais
seriam esteretipos sobre grupos particulares de pessoas que tm sido criados por
polticas, culturas, socializao, histria, meios de comunicao, literatura, religio e
outras, exercendo uma forte influncia na formao da poltica pblica. til notar
as diferenas entre construes sociais e categorias de polticas sociais para
concesso de benefcios. Construes sociais caracterizam grupos de pessoas, mas
no se preocupam com a tarefa de determinar que indivduos precisamente esto no
grupo que est sendo descrito. De fato, alguma dificuldade em encontrar indivduos
que correspondam a construes sociais inerente a sua natureza estereotpica. Elas
freqentemente se apiam sobre casos e anlise seletiva. Existem claramente
conexes entre construes sociais e categorias de poltica social para concesso de
benefcios: por exemplo, regras que definem categorias podem refletir questes sobre
excluir grupos negativamente-construdos tais como parasitas ou incluindo pessoas
merecedoras positivamente-construdas, mas estas conexes so freqentemente
problemticas devido natureza retrica das construes sociais. A burocracia que
administra categorias pode ser influenciada por esta retrica, mas igualmente pode
estar consciente das dissonncias entre os grupos construdos e as circunstncias das
pessoas realmente encontradas. Muito do debate sobre a definio de deficincia ou
incapacidade ocorre sobre a construo social da deficincia ou incapacidade. Este
debate preocupa-se com o modo como a imagem pblica de deficincia ou
incapacidade formada. Isto muito importante para o desenvolvimento de polticas
de deficincia ou incapacidade. Defensores dos direitos das pessoas com deficincia
19
ou incapacidade fizeram avanar diferentes construes sociais de deficincia ou
incapacidade no processo de buscar livrar-se da imagem de merecedor, mas
dependente da deficincia ou incapacidade no olhar pblico, e promoveu o
desenvolvimento de novos tipos de poltica com diferentes arrazoamentos para
medidas tradicionais de bem-estar social. Entretanto, inovaes na construo social
de deficincia ou incapacidade no se traduzem num caminho simples no processo
de categorizao nas polticas sociais (BRUNEL, 2002).
Segundo KAPLAN (2003), as questes da definio de pessoa com uma
deficincia ou incapacidade e como as pessoas com deficincia ou incapacidade
percebem a si mesmas so difceis e complexas. No acidental que estas questes
estejam emergindo ao mesmo tempo em que o status das pessoas com deficincia ou
incapacidade na sociedade est mudando dramaticamente. Nos Estados Unidos da
Amrica, a lei conhecida como ADA (Americans with Disabilities Act) a causa
de algumas destas mudanas, mas tambm o resultado da mudana de direo na
poltica pblica. Questes de status e identidade esto no cerne da poltica de
deficincia ou incapacidade. Para Kaplan, um dos objetivos centrais do movimento
de direitos na deficincia ou incapacidade, o qual pode chamar para si a
responsabilidade poltica primria pelo ADA, mover a sociedade americana para
um entendimento novo e mais positivo do que significa ter uma deficincia ou
incapacidade.
importante compreender as representaes sociais que esto na base das
definies. Diferentes instituies propagam estas representaes e alimentam as
construes sociais das quais derivam as definies. No h como entender a
deficincia ou incapacidade ficando apenas no nvel do corpo e do funcionamento,
20
sem atingir a compreenso das representaes que foram apontadas neste tpico.
Uma mudana no modo de trabalhar com estas definies pode produzir mudanas
de cultura, que no ocorrem a curto prazo, o que bem pde ser observado ao longo
dos ltimos 30 anos, com o movimento de direitos das pessoas com deficincia.
21
1.2 Questes de Traduo
A CIF foi revisada em vrios idiomas considerando o ingls apenas como o
idioma operacional. Vrios colaboradores da OMS lideraram o trabalho de traduo,
anlise lingstica e reviso editorial dos idiomas oficiais da OMS. A verso ao
portugus da CIF foi realizada pelo Centro Colaborador da OMS para a Famlia de
Classificaes Internacionais na Faculdade de Sade Pblica da Universidade de
So Paulo (OMS CIF, 2003).
No anexo sobre questes terminolgicas e taxonmicas da CIF, termos so
definidos como a designao de conceitos e se traduzem em expresses lingsticas,
tais como palavras ou frases. A maioria dos termos que geram confuso utilizada
com um significado baseado no senso comum da linguagem corriqueira, falada e
escrita. Os termos deficincia, incapacidade e limitao (ou desvantagem)
so usados freqentemente com o mesmo sentido dos contextos quotidianos. Na
verso de 1980 da CIDID/ICIDH, esses termos j passavam a ter um significado
mais preciso. Durante o processo de reviso, o termo desvantagem ( ou
limitao, como traduo da palavra handicap) foi abandonado e o termo
"incapacidade" foi utilizado para abranger todas as trs perspectivas corporal,
individual e social. Sendo a CIF uma classificao escrita, traduzida em vrias
lnguas, particularmente importante usar de clareza e preciso para definir os vrios
conceitos, de maneira que possam ser escolhidos os termos mais apropriados para
expressar de maneira no ambgua cada um dos conceitos subjacentes. Tambm
essencial chegar a um acordo sobre os termos que possam melhor refletir o contedo
em cada idioma. Com a possibilidade de vrias alternativas, preciso que as decises
22
sejam tomadas com base em princpios de preciso, aceitabilidade e utilidade geral
(OMS CIF, 2003).
Dentro do esquema hierrquico de estruturao da CIF, as definies so
importantes pois especificam as qualidades, propriedades ou relaes (atributos
essenciais) do conceito designado para cada categoria. Cada definio estabelece que
tipo de coisa ou de fenmeno designado por um termo, indicando como ele difere
de outras coisas ou fenmenos relacionados (OMS CIF, 2003).
Do ponto de vista da terminologia, qualquer classificao tem sua base na
distino fundamental entre os fenmenos que esto sendo classificados e a prpria
estrutura da classificao. Em geral, importante distinguir entre o mundo e os
termos que utilizamos para descrev-lo. Por exemplo, os termos dimenso ou
domnio podem ser definidos precisamente para se referir ao mundo e
componente e categoria definidos para se referir apenas classificao. Ao
mesmo tempo, h uma correspondncia, ou seja, uma funo de compatibilidade,
entre esses termos e h a possibilidade de que uma grande variedade de usurios
possa utilizar esses termos de maneira intercambivel. Para exigncias mais
especializadas, montagem de bancos de dados e pesquisas, por exemplo, essencial
que os usurios identifiquem separadamente, e com uma terminologia claramente
distinta, os elementos do modelo conceitual daqueles da estrutura da classificao.
Todavia, chegou-se concluso de que a preciso e pureza fornecidas por este tipo
de abordagem no valem o preo pago em um nvel de abstrao que pode solapar a
utilidade da CIF ou, mais importante, restringir a faixa de potenciais usurios desta
classificao (OMS CIF, 2003).
23
Segundo SASSAKI (2006), medida que o movimento inclusivo se espalha
pelo mundo, palavras e conceituaes mais apropriadas ao atual patamar de
valorizao dos seres humanos esto sendo incorporadas ao discurso dos ativistas de
direitos, por exemplo, dos campos da deficincia e da sade mental. Este considera,
em primeiro lugar, a questo do vocbulo deficincia, colocando que a traduo
correta das palavras (respectivamente, em ingls e espanhol) "disability" e
discapacidad" para o portugus falado e escrito no Brasil deveria ser deficincia,
pois esta palavra permanece no universo vocabular tanto do movimento das pessoas
com deficincia como dos campos da reabilitao e da educao, como uma
realidade terminolgica histrica. O termo anormalidade seria utilizado na CIF
estritamente para se referir a uma variao significativa das normas estatsticas
estabelecidas (isto , como um desvio da mdia da populao dentro de normas
mensuradas) e ele deveria ser utilizado somente neste sentido.
Para este autor, o conceito de deficincia no pode ser confundido com o de
incapacidade, colocando que esta palavra uma traduo, tambm histrica, do
termo "handicap". O conceito de incapacidade denotaria um estado negativo de
funcionamento da pessoa, resultante do ambiente humano e fsico inadequado ou
inacessvel, e no um tipo de condio, apontando como exemplos: a incapacidade
de uma pessoa cega para ler textos que no estejam em braile, a incapacidade de uma
pessoa com baixa viso para ler textos impressos em letras midas, a incapacidade de
uma pessoa em cadeira de rodas para subir degraus, a incapacidade de uma pessoa
com deficincia intelectual para entender explicaes conceituais, a incapacidade de
uma pessoa surda para captar rudos e falas. Assim estaria configurada a situao de
desvantagem imposta s pessoas com deficincia atravs daqueles fatores
24
ambientais que no constituem barreiras para as pessoas sem deficincia, segundo
o seu entendimento (SASSAKI, 2006).
Ainda segundo Sassaki, infelizmente para quem luta h dcadas pelo uso de
terminologias corretas, a CIF foi oficialmente traduzida para o portugus como
Classificao Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Sade. Sassaki
critica o fato de ser utilizada apenas a palavra incapacidade toda vez que, no texto
original, aparece o vocbulo disability (que para o portugus corrente seria
deficincia). Defende que, do ponto de vista formal, deva-se manter a palavra
deficincia no singular, apresentando como exemplos: pessoas com deficincia
visual (e no pessoas com deficincias visuais), ou pessoas com deficincia
intelectual (e no pessoas com deficincias intelectuais). Salienta a importncia
de usar o singular ao nos referirmos deficincia e/ou ao tipo de deficincia,
independentemente de, no idioma ingls, ser utilizado o plural ("persons with
disabilities", "persons with intellectual disabilities") ou o singular ("persons with a
disability", "persons with an intellectual disability") (SASSAKI, 2006).
Apontando para o comentrio sobre o portugus corrente referido no
pargrafo anterior, deve-se lembrar que a maioria dos termos que se presta a
confuses tem sido utilizada, no dia a dia, com o significado que o senso comum lhes
atribui habitualmente (OMS CIDID, 1989). Mesmo muitos profissionais que
trabalham na rea de reabilitao ainda utilizam termos para se referir deficincia e
incapacidade que fazem parte de vocabulrio comum, com pouca diferenciao do
seu real significado.
Uma razo fundamental da falta de informao sobre a situao social e sobre
outras condies das pessoas com deficincia, inclusive o prprio nmero de pessoas
25
que apresentam deficincia ou incapacidade na populao, provm do fato das
diversas organizaes oficiais implicadas no partilharem de uma definio comum e
desprovida de ambigidade sobre o que constitui a incapacidade, a deficincia e
limitao de atividade. Por outro lado, tambm se verificam incoerncias quanto
identificao de problemas. Dentro dos conceitos da CIDID/ICIDH, o problema de
fundo provm dos conceitos relacionados com incapacidade e desvantagem no
serem suficientemente apreciados, estudados e, conseqentemente, no ter se
desenvolvido uma prtica sistemtica da linguagem especfica referente a estas
questes. Embora as distines semnticas possam ser levadas ao exagero, na
verdade o que justifica a opo por determinada nomenclatura o fato de, com ela,
ser possvel conseguir vantagens prticas. Tais vantagens devem tornar-se evidentes
medida que uma descrio mais esclarecedora dos processos revelar a forma de
solucionar os problemas. J no manual da CIDID/ICIDH, deu-se muita ateno aos
termos descritivos utilizados, de forma a reforar as distines de tipo conceitual
(OMS CIDID, 1989).
No dicionrio Houaiss da lngua portuguesa, h uma descrio da origem
etimolgica da palavra inglesa handicap que remonta ao ano de 1754, explicando o
sentido de desvantagem, para uma corrida ou competio em que uma vantagem
concedida ou uma desvantagem imposta a um participante para igualar as chances
de vitria dos competidores; desvantagem que torna mais difcil alcanar uma meta,
deficincia fsica. O termo provm de handicap, que seria uma alterao de hand in
cap descrito como um tipo de jogo em que o dinheiro pago como penalidade ficava
em um chapu. A descrio como substantivo masculino oferece trs significados:
(1) na rubrica esportes h a explicao em corridas e outras competies,
26
vantagem que se concede a um ou mais competidores (pessoa ou animal) para
compensar deficincias de sua parte e igualar as possibilidades de vitria para
todos; (2)como derivao em sentido figurado como qualquer desvantagem que
torna mais difcil o sucesso ou (3) deficincia fsica ou mental que dificulta as
atividades normais de uma pessoa (HOUAISS, 2002).
Uma descrio semelhante pode ser encontrada no Dicionrio
Contemporneo da Lngua Portuguesa de Caldas Aulete para a palavra inglesa
handicap relacionando-a ao turfe, corrida em que cavalos de diferentes classes
recebem pesos proporcionais a suas qualidades, a fim de igualar-lhes suas
possibilidades de vitria. Por extenso, nas provas esportivas de fora, destreza ou
agilidade, descrito como qualquer desvantagem artificial imposta ao concorrente
havido como superior; desvantagem (AULETE, 1964).
No Dicionrio de Sinnimos American Century Thesaurus, o termo
handicap tem entre vrios sinnimos, a palavra disability. A palavra disability,
por sua vez tem como sinnimos as palavras handicap, impairment,
disablement, inability, incapacity entre outras (URDANG, 1997).
Podemos perceber que a dificuldade com o uso adequado destes termos no
s da lngua portuguesa e fazer a traduo dos mesmos acaba por esbarrar no uso
intercambivel de termos que se fez por muito tempo, tambm na lngua inglesa.
Mesmo reconhecendo as questes de uso das palavras no idioma portugus, a CIF de
alguma maneira d definies para os termos impairment e disability, tendo sido
abandonado o termo handicap.
Em Portugal, ao ser iniciada a discusso do modelo biopsicossocial da CIF,
foi posto em questo o tradicional modelo mdico. Este modelo est baseado em
27
classificaes categoriais e em critrios estritamente mdicos, critrios estes
assentados sobre terminologias, conceitos e definies que so ancoradas em
inferncias causais relativas deficincia e inerentes pessoa, sem tomar em
considerao os fatores externos ou ambientais. O termo deficincia (no nvel do
corpo) no deixa transparecer o papel relevante do meio ambiente e carrega um
conceito de conotao eminentemente biolgica, prpria do modelo mdico.
Segundo esta discusso, a utilizao deste termo seria, ao mesmo tempo, causa e
conseqncia da permanncia de algumas opes de poltica quanto organizao
de recursos, procedimentos e critrios de elegibilidade, bem como de
representaes sociais e profissionais mais negativas relativas s pessoas com
deficincia (PORTUGAL, 2006).
Implementar a CIF como um novo sistema de classificao complexo e
requer esforos conjugados, sobretudo de diferentes setores da Administrao
Pblica, de organizaes no governamentais, de pessoas com deficincia ou
incapacidade, de universidades e escolas superiores, de profissionais e especialistas
de diferentes reas disciplinares, bem como requer a colaborao internacional,
especialmente da OMS e dos seus mecanismos estabelecidos para efeitos de apoio aos
diferentes pases que queiram implementar tal sistema. Portugal defende que, para
incrementar de maneira coerente a sua aplicao progressiva, este novo modelo seja,
desde j, o elemento orientador para a reformulao de polticas setoriais, de sistemas
de informao e estatstica, de quadros legislativos, de procedimentos e de
instrumentos de avaliao e de critrios de elegibilidade. Nesta perspectiva, Portugal
prope que todos os esforos sejam empreendidos em diferentes nveis para a adoo
do termo incapacidade, como termo genrico que engloba os diferentes nveis de
28
limitaes funcionais relacionados com a pessoa e o seu meio ambiente, para referir o
estado funcional da pessoa, expressando os aspectos negativos da interao entre um
indivduo com problemas de sade e o seu meio fsico e social, em substituio ao
termo deficincia (que corresponde apenas s alteraes ou anomalias no nvel das
estruturas e funes do corpo, incluindo as funes mentais) que se configura mais
restritivo e menos prximo do modelo social (PORTUGAL, 2006).
No entanto, reconhecendo que deficincia ainda o termo de referncia
predominante na lngua portuguesa, no documento Plano de Ao para a Integrao
das Pessoas com Deficincias ou Incapacidades, Portugal opta pela utilizao
simultnea dos termos incapacidade e deficincia de modo a estabelecer uma
transio, indicando um caminho para a adoo da nova terminologia (PORTUGAL,
2006).
Desta forma, entendendo a questo apresentada por Sassaki, mas tambm
buscando a melhor maneira de aproximar as tradues e os conceitos descritos na
CIF, a autora opta por utilizar nesta tese a palavra pessoa com deficincia ou
incapacidade para traduzir person with a disability, pessoa deficiente ou
incapacitada para traduzir disabled person, incapacitante para disabling,
desvantagem para handicap e apenas deficincia onde houver a palavra
impairment, da maneira como Portugal aponta para uma forma de transio.
29
2. Objetivo:
Apresentar definies de Deficincia e Incapacidade, contidas em bibliografia
especializada, bem como em leis brasileiras e de alguns outros pases, discutindo a
possvel contribuio das classificaes CID-10 e CIF nesta rea.
3. Desenvolvimento do tema:
3.1 CID-10 e CIF
3.1.1 Histrico das duas classificaes
A Dcima Reviso da Classificao Internacional de Doenas (CID),
denominada Classificao Estatstica Internacional de Doenas e Problemas
Relacionados Sade, ou de forma abreviada CID-10, a mais recente reviso da
Classificao de Bertillon ou Lista Internacional de Causas de Morte de 1893. Os
antecedentes histricos dos principais fatos que levaram classificao, organizada
por Bertillon, so apresentados no Volume 2 da CID-10. Com a dcima reviso, o
ttulo da classificao foi alterado para tornar mais claro o contedo e a sua
finalidade, mas tambm para refletir a extenso progressiva da abrangncia da
classificao alm de doenas e leses, sendo mantida a familiar abreviatura "CID".
Na atualizao da classificao, as afeces foram agrupadas de forma a torn-la mais
adequada aos objetivos de estudos epidemiolgicos gerais e para a avaliao de
assistncia sade (OMS CID-10, 1996).
Em 1983 iniciou-se o trabalho para a Dcima Reviso da CID, quando foi
realizada uma Reunio Preparatria sobre a CID-10, em Genebra. O programa de
trabalho foi conduzido por meio de reunies peridicas dos Diretores de Centros
30
Colaboradores da OMS para a Classificao de Doenas. Foram realizadas vrias
reunies para estabelecer o plano de ao, incluindo as reunies do Comit de Peritos
em Classificao Internacional de Doenas, realizadas em 1984 e 1987. Muitos
comentrios e sugestes foram provenientes dos Pases Membros da OMS e dos
Escritrios Regionais da OMS, alm das contribuies tcnicas oferecidas por vrios
grupos de especialistas bem como de peritos individuais. Esses comentrios e
sugestes resultaram na circulao, pelos pases, dos rascunhos das propostas da
Reviso em 1984 e 1986. Vrios modelos alternativos de estrutura foram avaliados
seguindo sugestes apresentadas durante a preparao da Nona Reviso da
Classificao, pois foram feitas sugestes de que uma estrutura bsica diferente
poderia atender melhor s necessidades de muitos e variados tipos de usurios.
Entretanto, ficou claro que o modelo tradicional de eixo com varivel nica da
classificao, assim como outros aspectos de sua estrutura que davam nfase a
afeces que eram freqentes, que representavam altos custos ou, por outro lado,
eram de importncia em sade pblica, resistiu ao tempo e que muitos usurios no se
satisfaziam com os modelos apresentados como possveis substitutos. Assim, foi
mantida a tradicional estrutura da CID, com um esquema de cdigo alfanumrico que
substituiu o anterior que era apenas numrico. Isso levou a um sistema com muito
maior nmero de cdigos deixando espaos para que em futuras revises no
houvesse rompimento da ordenao, como ocorria nas revises anteriores (OMS
CID-10, 1996).
A Classificao foi aprovada pela Conferncia Internacional para a Dcima
Reviso em 1989 e apresentada Quadragsima Terceira Assemblia Mundial de
Sade. Por meio das recomendaes do relatrio da Conferncia Internacional para a
31
Dcima Reviso da Classificao Internacional de Doenas, foi adotada a lista
detalhada de categorias de trs caracteres e subcategorias opcionais de quatro
caracteres com as Listas Abreviadas de Tabulao para Mortalidade e para
Morbidade, constituindo a Dcima Reviso da Classificao Estatstica Internacional
de Doenas e de Problemas Relacionados Sade, para entrar em vigor em 1 de
janeiro de 1993. Foram includas as definies, normas e requisitos para informaes
relacionadas s mortalidades materna, fetal, perinatal, neonatal e infantil, alm das
regras e instrues para as codificaes da causa bsica de mortalidade e da causa
principal em morbidade. Foi estabelecido um processo de atualizao para ocorrer
durante o ciclo de dez anos da reviso (OMS CID-10, 1996).
A CID era inicialmente uma classificao de causas de morte. Apenas a partir
da Sexta Reviso, passou a ser uma classificao que incluiu todas as doenas e
motivos de consultas, possibilitando seu uso em morbidade (LAURENTI, 1991).
A CID-10 retm pontos-chave da Classificao de Bertillon, original do
sculo XIX, e muitas das caractersticas da sexta reviso, a CID-6, adotada em 1946.
O contedo da CID-10 foi desenvolvido a partir de 1983-1989 e reflete o
conhecimento e o pensamento daquela poca (WHO FDC Bethesda, 2001).
No perodo de 1984 a 1987, durante o processo de reviso, muitos usurios
manifestaram o desejo de que a CID inclusse outros tipos de dados alm da
"informao diagnstica" que sempre havia includo, surgindo o conceito de uma
"famlia" de classificaes. Segundo esse conceito, a CID atenderia as necessidades
de informao diagnstica para finalidades gerais, enquanto outras classificaes
seriam usadas em conjunto com ela, tratando com diferentes enfoques a mesma
informao ou tratando de informao diferente (principalmente procedimentos
32
mdicos e cirrgicos e as incapacidades). Na Quadragsima Terceira Assemblia
Mundial de Sade foram endossadas as recomendaes da Conferncia Internacional
para a Dcima Reviso relativas ao conceito e a implementao de uma famlia de
classificaes de doenas e de problemas relacionados sade, tendo como ncleo
central a Classificao Estatstica Internacional de Doenas e de Problemas
Relacionados Sade, cercada por vrias classificaes relacionadas ou
suplementares a ela e a Nomenclatura Internacional de Doenas. Com base nesta
necessidade, a partir da Dcima Reviso passa a existir uma famlia de
classificaes para os mais diversos usos em administrao de servios de sade e
epidemiologia (LAURENTI, 1991; OMS CID-10, 1996).
A CIF (Classificao Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Sade)
pertence a esta famlia de classificaes, desenvolvida pela Organizao Mundial
da Sade (OMS) para aplicao em vrios aspectos da sade (STUN, 2002).
A Classificao Internacional das Deficincias, Incapacidades e
Desvantagens foi publicada em 1980 (conhecida pela sigla CIDID em portugus ou
ICIDH do nome em ingls, International Classification of Impairments, Disabilities
and Handicaps,), em carter experimental, aps sucessivas revises que foram
incorporando categorias correspondentes s conseqncias duradouras das doenas
(CASADO, 2001; OMS CIDID, 1989).
A CIF a segunda reviso da CIDID/ ICIDH de 1980. Como segunda
reviso, a CIF foi desenvolvida aps estudos de campo sistemticos e consulta
internacional que duraram pelo menos cinco anos, sendo ento aprovada em maio de
2001 para uso internacional (STUN, 2002; OMS CIF, 2003).
33
Organizaes de pessoas com deficincia, como a Rehabilitation
International (RI) e outras, tiveram participao importante em questes conceituais
ao longo das revises sucessivas da CIDID/ICIDH at a verso final da CIF
(CASADO, 2001).
O processo de reviso da CIDID/ICIDH comeou no incio dos anos 90. Aps
numerosas verses resultantes deste processo de reviso, a CIF sucedeu a
CIDID/ICIDH, refletindo o conhecimento e o pensamento de uma dcada diferente
(WHO FDC Bethesda, 2001; EGEA e SARABIA, 2001). Esta dcada diferente
compe o pano de fundo de importantes mudanas de concepes e no modelo da
classificao, com a aprovao e publicao de documentos de extrema relevncia
para o movimento de direitos das pessoas com deficincia no mundo. um perodo
que sucede importante movimentao poltica para democratizao, com impacto
diferenciado em diferentes pases, podendo ser lembrado o perodo de abertura
poltica no Brasil.
A OMS desenvolveu um esquema relacionado com as conseqncias da
doena de natureza preliminar em 1972, sendo, em poucos meses, sugerida uma
abordagem mais abrangente. As sugestes foram feitas com base em dois princpios
importantes: distinguir entre as deficincias e a sua importncia, ou seja, as
conseqncias funcionais e sociais, e classificar independentemente, com diferentes
cdigos, esses vrios aspectos ou eixos de informao. Explorou-se a possibilidade
de constituir um esquema que fosse compatvel com os princpios da estrutura da
CID, com tentativas para sistematizar a terminologia aplicada s conseqncias das
doenas. Em 1973, essas sugestes circularam de modo informal e foi solicitada
especial ajuda de grupos do setor da reabilitao. Em 1974, circularam classificaes
34
distintas para deficincias e para desvantagens e as discusses continuaram, sendo
recolhidos comentrios para a elaborao de propostas definitivas. Em outubro de
1975, estas propostas foram submetidas considerao da Conferncia Internacional
para a Nona Reviso da Classificao Internacional de Doenas que recomendou a
sua publicao em carter experimental (OMS CIF, 2003).
Concomitantemente, em 1975, foi aprovada pela Assemblia Geral da ONU a
Resoluo que estabeleceu a primeira Declarao dos Direitos das Pessoas
Deficientes. Um ano depois, em 16 de dezembro de 1976, foi aprovada a Resoluo
que proclamava o ano de 1981 como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes,
que agregou grupos de defesa dos direitos das pessoas com deficincia, projetos e
recomendaes para atividades em nvel nacional e internacional, diversas metas a
curto, mdio e longo prazo, representando uma importante conquista. Este ano teve
como tema Participao plena e igualdade, trazendo o foco para o reconhecimento
mundial de que as pessoas com deficincia tm os mesmos direitos de todos os
outros cidados de se beneficiar dos servios postos disposio pelo Estado e pela
sociedade em geral a todos os outros cidados, entendendo como participao plena a
participao em todos os aspectos da vida comunitria, incluindo as atividades
polticas, econmicas, sociais e culturais (SILVA, 1987).
Em 1976 a OMS aprovou, para teste, a CIDID/ICIDH como manual das
conseqncias da doena, para ser publicada em 1980 na verso oficial em ingls.
Em 1987, estabelece-se a rede de centros colaboradores da OMS para aplicao e
desenvolvimento da CIDID/ICIDH e neste mesmo ano o Conselho Europeu cria um
Comit de Especialistas para a aplicao da CIDID/ICIDH. Em 1989 o Conselho
Europeu cria um documento sobre a utilizao da CIDID/ICIDH e em 1992 realiza-
35
se uma reunio anual sobre a CIDID/ICIDH na Holanda em que so revisados alguns
itens da Classificao, redigida uma nova introduo, com o acordo de levar adiante
o processo de reviso, com o estabelecimento de responsabilidades aos distintos
centros colaboradores (OMS CIF, 2003; EGEA e SARABIA, 2001).
Em 1992, ano em que se decide efetivamente avanar na reviso da
CIDID/ICIDH, foi proclamado o Dia Internacional das Pessoas com Deficincia pela
Assemblia Geral das Naes, para ocorrer todos os anos na data de 3 de dezembro,
com o objetivo de promover, na populao em geral, a compreenso das questes de
deficincia e mobilizar o respeito pela dignidade, pelos direitos e pelo bem-estar das
pessoas com deficincia.
Na reunio anual de 1993 sobre a CIDID/ICIDH realizada em Washington,
programa-se o processo de reviso e so distribudas tarefas e responsabilidades entre
os centros colaboradores. A OMS publica uma reimpresso da CIDID/ICIDH em que
aparece a meno para teste com o acrscimo um novo prlogo. Neste mesmo ano,
as Naes Unidas publicam as Normas Uniformes para a Equiparao de
Oportunidades para as Pessoas com Deficincia (OMS CIF, 2003; EGEA e
SARABIA, 2001).
Em 1996, foi redigida a verso preliminar alfa da nova CIDID/ICIDH, que
passa a utilizar a sigla ICIDH-2, por razes histricas, ou seja, indicando que se
tratava de uma verso da classificao original, em processo de modificao. De
maio de 1996 a fevereiro de 1997 a verso preliminar Alfa circulou entre os centros
colaboradores e os grupos de trabalho, sendo centralizados na OMS, em Genebra,
todos os comentrios e as sugestes coletados. Uma lista de perguntas bsicas
36
englobando os principais problemas relacionados com a reviso tambm circulou
para facilitar a coleta dos comentrios (OMS CIF, 2003; EGEA e SARABIA, 2001).
Em maro de 1997, foi elaborada uma verso preliminar Beta-1 que integrava
as sugestes recolhidas nos anos anteriores, sendo apresentada na reunio de reviso
da CIDID/ICIDH em abril de 1997. Aps a incorporao na CIDID/ICIDH das
decises da reunio, foi produzida em junho de 1997 a verso preliminar ICIDH-2
Beta-1, para estudos de campo. Este segundo rascunho beta-1 da ICIDH-2, recebeu
o nome provisrio de Classificao das Deficincias, Atividades e Participao.
Entre janeiro e abril de 1999, com base em todos os dados e outras informaes
provenientes dos estudos de campo da verso Beta-1, foi redigida a verso preliminar
Beta-2. A verso resultante foi apresentada e discutida na reunio anual da ICIDH-2
em Londres em abril de 1999. O novo rascunho beta-2 da ICIDH-2 recebeu o
nome de Classificao do Funcionamento e da Incapacidade. Aps a incorporao
das decises da reunio, a verso preliminar Beta-2 foi impressa e publicada em
julho de 1999 para ser utilizada em estudos de campo (OMS CIF, 2003; EGEA e
SARABIA, 2001).
Os estudos de campo concentraram-se em questes transculturais e
multisetoriais, desencadeando uma ampla participao dos Estados Membros da
OMS, com diferentes disciplinas, incluindo setores como seguros de sade,
previdncia social, trabalho, educao e outros grupos engajados na classificao das
condies de sade. O objetivo era chegar a um consenso, atravs de definies que
fossem claras e operacionais. Os estudos de campo constituram um processo
contnuo de desenvolvimento, consulta, feedback, atualizao e teste (OMS CIF,
2003).
37
Em 2000, com base nos dados do estudo de campo da verso Beta-2 e com a
colaborao dos centros colaboradores e do Comit de Peritos em Medio e
Classificao da OMS, foram feitos dois rascunhos pr-finais (em outubro e
dezembro, respectivamente) da ICIDH-2, com o nome de Classificao
Internacional de Funcionamento, Incapacidade e Sade. Em janeiro de 2001, o
Comit Executivo da OMS decide levar para aprovao na 54 Assemblia Mundial
da Sade, o rascunho pr-final de dezembro da ICIDH-2. Em abril, surgiu o
rascunho final da ICIDH-2 e em 22 de maio foi aprovada a nova verso desta
classificao com o nome definitivo de Classificao Internacional de
Funcionalidade, Incapacidade e Sade com a sigla CIF. O perodo de aplicao da
CIDID/ICIDH vai alm de 20 anos e seu perodo de reviso se prolongou por quase
uma dcada. Foi um longo processo, com ampla participao internacional (todos os
centros colaboradores, grupos de trabalho especficos para algumas partes,
instituies internacionais representativas e redes internacionais). Mais de 50 pases e
de 1800 peritos estiveram envolvidos nos testes de campo, cada um produzindo o seu
prprio relatrio. Foram utilizadas novas tecnologias da informao e da
comunicao (a OMS , em sua pgina da web, manteve uma parte dedicada reviso
da ICIDH). Ocorreram voltas surpreendentes neste processo de elaborao (termos
que apareceram e desapareceram, inclusive o prprio nome da classificao,
desdobramento ou agrupamento das diferentes escalas que compem a Classificao
e at uma mudana final nas siglas que a iriam reger desde o momento de sua
aprovao pela Assemblia Mundial da Sade de 2001) (OMS CIF, 2003; EGEA e
SARABIA, 2001).
38
Uma das razes para as mudanas de nome da classificao durante o
processo de reviso e ao final a mudana da sigla para CIF, envolve o entendimento
de que a CIDID/ICIDH apresentava apenas os aspectos negativos da deficincia ou
incapacidade, buscando com os termos funcionalidade e sade reforar os
aspectos positivos e o fato de ser uma classificao de sade. Houve muitas
modificaes e, na prtica, muito pouco restou da CIDID/ICIDH em termos de
conceitos e da terminologia empregada (EGEA e SARABIA, 2001).
A CIF evoluiu a partir de uma classificao de conseqncias de doenas
para uma classificao de componentes da sade. Componentes da sade
definem o que constitui a sade, enquanto conseqncias focalizam o impacto das
doenas ou outras condies que se seguem como um resultado. Neste caminho, a
CIF toma um lugar neutro com respeito etiologia e permite aos pesquisadores
chegar a inferncias causais com mtodos cientficos (STUN, 2002).
A CIF faz um deslocamento paradigmtico do eixo da doena para o eixo da
sade, permitindo uma viso diferente da sade, permitindo entender a condio ou
estado de sade dentro de contextos especficos. Como classificao de sade, a CIF
introduz um novo modo de compreender a situao de sade de indivduos ou
populaes, mais dinmico e mais complexo, compatvel com a complexidade que
envolve compreender a experincia completa de sade.
A verso final da Classificao Internacional de Funcionalidade,
Incapacidade e Sade, foi disponibilizada nos seis idiomas oficiais na pgina da
famlia de classificaes e publicada na lngua portuguesa para todos os pases
lusfonos em novembro de 2003 (OMS CIF, 2003; EGEA e SARABIA, 2001; ICF
WHO homepage).
39
3.1.2 - CID-10
Pode-se definir uma classificao de doenas como um sistema de categorias
que so atribudas a entidades mrbidas segundo algum critrio estabelecido, com
vrios eixos de classificao possveis. Um determinado eixo pode vir a ser
selecionado, dependendo do uso das estatsticas elaboradas. Todas as entidades
mrbidas devem ser includas dentro de um nmero manusevel de categorias em
uma classificao estatstica de doenas (OMS CID-10, 1996).
Ao ser aprovada, a CID-10 passou de dois para trs volumes. No volume 1 est
a Lista Tabular, que a Classificao propriamente dita nos nveis de trs e quatro
caracteres, alm da classificao de morfologia das neoplasias, listas especiais de
tabulao para mortalidade e para morbidade, as definies e os regulamentos da
nomenclatura. No volume 2, que um Manual de Instrues, so apresentadas notas
sobre a certificao mdica e sobre a classificao, que estavam antes includas no
volume 1, agora com maior quantidade de informaes e de material de instruo e
orientaes sobre o uso do volume 1, sobre as tabulaes e sobre o planejamento para
o uso da CID, o que se julgou que faltava nas revises anteriores. Inclui tambm a
parte histrica que antes estava na introduo do volume 1. No volume 3, que o
ndice Alfabtico, consta o ndice propriamente dito com uma introduo e maior
quantidade de instrues sobre o seu uso (OMS CID-10, 1996).
Como publicao oficial da OMS, a CID-10 foi adotada por todos os pases
membros para finalidade de apresentaes estatsticas das causas de morte
(mortalidade) ou das doenas que levam a internaes hospitalares ou atendimentos
ambulatoriais (morbidade). At a nona Reviso (CID-9), as revises da CID eram
40
decenais e no havia atualizaes entre as revises. No relatrio da Conferncia
Internacional para a Dcima Reviso, em 1989, que aprovou a CID-10, foi lanada a
recomendao de que "a OMS endosse o conceito de um processo de atualizao no
perodo entre duas revises e considere os mecanismos para que esta atualizao seja
colocada em prtica" (OMS CID-10,1996).
Hoje a classificao diagnstica padro internacional para propsitos
epidemiolgicos gerais e administrativos da sade, incluindo anlise de situao
geral de sade de grupos populacionais e o monitoramento da incidncia e
prevalncia de doenas e outros problemas de sade. Embora a CID seja adequada
para estas aplicaes, ela nem sempre permite a incluso de detalhes suficientes para
algumas especialidades, e s vezes pode ser necessria a informao acerca de
diferentes atributos das afeces classificadas (OMS CID-10, 1996).
41
3.1.3 CIF
A CIF organiza a informao em trs componentes: (1) O construto do Corpo,
que compreende duas classificaes, uma para funes do corpo e uma para
estruturas do corpo, cujos captulos so organizados de acordo com os sistemas do
corpo; (2) Os construtos de Atividade e Participao, que cobrem a extenso
completa de domnios que denotam aspectos da funcionalidade a partir da
perspectiva individual e social; (3) Uma lista de fatores ambientais. Os fatores
ambientais tm um impacto sobre todos os trs construtos e so organizados a partir
do ambiente mais imediato do indivduo para o ambiente geral. Os domnios do
componente de Atividades e Participao esto includos numa lista nica que
engloba a totalidade das reas vitais (desde a aprendizagem bsica ou a mera
observao at reas mais complexas, tais como, interaes interpessoais ou de
trabalho). Os domnios deste componente so qualificados pelos dois qualificadores
de desempenho e capacidade. O qualificador de desempenho descreve o que um
indivduo faz no seu ambiente real. Devido ao fato de que o ambiente real traz um
contexto social, o desempenho pode tambm ser entendido como envolvimento em
uma situao de vida ou a experincia vivida das pessoas no contexto real nas
quais vivem. Este contexto inclui os fatores ambientais todos os aspectos do mundo
fsico, social e de atitudes que podem ser codificados usando os Fatores Ambientais.
O qualificador de capacidade descreve a capacidade de um individuo para executar
uma tarefa ou ao descrita na classificao em um ambiente uniforme. Este
construto oferece um entendimento do mais elevado nvel provvel que uma pessoa
pode alcanar em um dado domnio em um dado momento. Um ambiente uniforme
como um termo especfico, cobre os fatores ambientais relevantes para o domnio
42
especificado e no deve ter barreiras ou obstculos, de modo que permita a algum
avaliar a total capacidade do indivduo. Assume-se que ambiente uniforme seja o
mesmo para todas as pessoas em todos os pases para permitir comparaes
internacionais (STUN, 2002; OMS CIF, 2003).
A CIF cobre todos os componentes possveis da sade e alguns componentes de
bem-estar relacionados sade (tais como educao, trabalho, etc) para descrio e
avaliao. Como uma classificao, a CIF sistematicamente agrupa diferentes
domnios. Os domnios da CIF so descritos por duas listas bsicas: (1) funes e
estruturas corporais; (2) atividades e participao (STUN, 2002).
A CIF descreve estes aspectos da sade humana e os relacionados sade como
domnios da sade e domnios relacionados sade. Os estados de sade
associados com todas doenas, distrbios, leses e outras condies de sade podem
ser descritos usando a CIF. A unidade de classificao , portanto, o domnio da
sade e dos estados relacionados sade (STUN, 2002).
A CIF uma classificao com mltiplos propsitos, idealizada para servir a
vrias disciplinas e diferentes setores. Seu objetivo especfico prover uma base
cientfica para a compreenso e o estudo de condies de sade e estados
relacionados sade e os seus determinantes, alm de estabelecer uma linguagem
comum para descrever os estados de sade que permitiro a comparao de dados
entre pases, disciplinas de cuidados de sade, entre servios e ao longo do tempo.
Mesmo a CIDID/ICIDH foi utilizada para vrios propsitos, tais como estatsticas de
sade, pesquisa, trabalho clnico e poltica social. A CIF uma classificao de
sade e de domnios relacionados sade e estes so agrupados de acordo com suas
caractersticas comuns (tais como origem, tipo ou similaridade) e ordenados de um
43
modo significativo. A CIF d definies operacionais dos domnios da sade ao
contrrio das definies de sade vernaculares (ou seja, definies prprias dos
idiomas dos pases a que pertencem). Estas definies operacionais descrevem os
atributos essenciais de cada domnio (por exemplo, qualidades, propriedades e
relacionamentos) e contm informao sobre o que est includo e excludo em cada
domnio, com pontos de ancoramento para avaliao, de modo que as definies
possam ser traduzidas em questionrios, ou de modo inverso, resultados de
instrumentos de avaliao possam ser codificados em termos da CIF. Por exemplo,
viso definida como uma pessoa poder ver claramente objetos a distncias
variadas, o campo visual e a qualidade da viso, enquanto a gravidade da dificuldade
de viso pode ser codificada como de nvel leve, moderado, grave ou total (STUN,
2002; OMS CIF, 2003).
Os cdigos da CIF somente so completos pela presena de pelo menos um
qualificador, que denota a magnitude do nvel de sade (por exemplo, gravidade do
problema) seja em termos do construto Desempenho ou do construto
Capacidade. Os Qualificadores so codificados como um ou dois nmeros aps um
ponto decimal. O uso de qualquer cdigo deve ser acompanhado por pelo menos um
qualificador. Sem os qualificadores, os cdigos no tm significado quando usados
para indivduos ou casos (STUN, 2002; OMS CIF, 2003)
Dificuldades ou problemas nestes domnios podem surgir quando existe uma
alterao qualitativa ou quantitativa no modo como as funes nestes domnios so
realizadas. Limitaes ou restries so avaliadas contra um padro geralmente
aceito para a populao. O padro em relao ao qual a capacidade e o desempenho
de um indivduo comparado aquele de um indivduo sem uma condio similar de
44
sade (doena, distrbio ou leso, etc.). Limitao ou restrio registram a
discordncia entre o desempenho observado e o esperado. O desempenho esperado
a norma da populao, que representa a experincia de pessoas sem a condio
especfica de sade. Esta a mesma norma no qualificador de capacidade, de modo
que algum pode fazer inferncias sobre o que pode ser feito ao ambiente da pessoa
para melhorar seu desempenho (STUN, 2002; OMS CIF, 2003).
Os fatores contextuais representam o histrico completo da vida e do estilo de
vida de um indivduo. Incluem fatores ambientais e fatores pessoais que podem ter
um impacto sobre o indivduo com uma condio de sade e sobre a sade ou os
estados relacionados sade do indivduo. Os fatores ambientais representam o
ambiente fsico, social e de atitudes nos quais as pessoas vivem e conduzem suas
vidas. Estes fatores so externos aos indivduos e podem ter influncia positiva ou
negativa sobre a participao de um indivduo como um membro da sociedade, no
seu desempenho de atividades ou sobre a sua funo ou estrutura corporal. Os fatores
pessoais so o conjunto de caractersticas individuais da vida de um indivduo e da
sua existncia, compostos por caractersticas que no so parte de uma condio de
sade ou estado de sade. Estas podem incluir idade, raa, gnero, nvel educacional,
experincias, estilo de carter e personalidade, aptides, outras condies de sade,
preparo fsico, estilo de vida, hbitos, tipo de criao, estilos de enfrentamento,
substrato social, profisso e experincia passada e atual. Os fatores pessoais no so
classificados na CIF (STUN, 2002; OMS CIF, 2003).
Na CIF, so dados a uma pessoa conjuntos de cdigos que compreendem as
trs partes da classificao. Geralmente a verso mais detalhada de 3 ou 4 nveis
usada por servios especializados (por exemplo, resultados em reabilitao, geriatria,
45
etc) enquanto a classificao de 2 nveis pode ser usada para levantamentos e
avaliao de resultados clnicos. No modelo das Medidas Resumo de Sade de
Populaes - Summary Measures of Population Health (SMPH), a CIF fornece um
modelo til para capturar as mltiplas dimenses de resultados ou desfechos de
sade no fatais (nonfatal health outcomes) (STUN, 2002).
Descries de estados de sade incluem a informao sobre a doena e as
habilidades funcionais afetadas em vrios domnios. A CIF d um perfil de tais
habilidades funcionais, que so definidas de uma forma padronizada para observao
e mensurao (por exemplo, vrias funes corporais, mobilidade, autocuidados,
cognio, relaes interpessoais, etc.). Estas descries podem ser usadas como um
elemento valioso para avaliaes do estado de sade por medidas resumidas de
sade. Como avaliao, expressa como um nico valor numrico e obtida atravs
de um processo onde a descrio de estados de sade dada para elicitar os valores
dados em termos de importncia, tempo, pessoa, dinheiro, probabilidade ou risco. As
descries a partir da CIF oferecem uma ferramenta til para chegar a exerccios de
avaliao conceitualmente compreensveis e culturalmente significantes. As
descries da CIF oferecem um modelo comum com definies padro e pontos de
ancoramento, que so factveis e cientficos. Usando o modelo da CIF, pode-se
tambm estudar a mudana aps um evento-chave tal como adaptao,
enfrentamento, ajustamento e acomodao, uma vez que a CIF permite a codificao
e medidas de capacidade, fatores ambientais e fatores pessoais (OMS CIF, 2003;
STUN, 2002).
46
3.1.4 - Definies de deficincia ou incapacidade da CIF
O desenvolvimento de uma terminologia formal relacionada a funcionalidade
e incapacidade apresenta desafios nicos devido ambigidade conceitual dentro
deste campo. A CIF uma fonte rica de termos relevantes, conceitos e relaes
requeridas para terminologias formais, oferecendo um importante ponto de partida
para o desenvolvimento destas (HARRIS e col., 2003).
Durante dcadas foram disponibilizadas ferramentas teis para coletar dados
sobre causas de morte e modos de estimar a mortalidade da populao. Embora as
disciplinas da reabilitao tenham produzido incontveis instrumentos de avaliao e
medidas de qualidade de vida, ficou faltando uma classificao completa que
pudesse assegurar coleta de dados confiveis e comparabilidade internacional. Esta
foi a primeira motivao para levar ao desenvolvimento da CIF. A CIF agora serve
como modelo da OMS para sade e incapacidade, como uma base conceitual para a
definio, medidas e formulaes de poltica para todos os aspectos da deficincia ou
incapacidade (MC DOWELL e NEWELL, 1996; BICKENBACH, 2003).
Ao construir as definies das categorias da CIF, foram consideradas
caractersticas ideais das definies operacionais. So consideradas caractersticas
ideais das definies terem um significado e serem consistentes do ponto de vista
lgico, identificando unicamente o conceito pretendido pela categoria. Ainda
segundo caractersticas ideais, as definies devem apresentar os atributos essenciais
do conceito tanto na inteno (o que o conceito significa intrinsecamente) como na
extenso (a que objetos ou fenmenos ela se refere), alm de serem precisas, sem
ambigidades, englobando o significado do termo na sua totalidade. Sua expresso
deve utilizar termos operacionais que envolvam gravidade, durao, importncia
47
relativa e possveis associaes. importante que seja evitada a circularidade, isto ,
o prprio termo, ou qualquer sinnimo, no deve aparecer na definio que tambm
no deve incluir um termo definido noutro local em que se utiliza o primeiro termo
na sua definio. Possveis fatores etiolgicos ou interativos devem ser referidos,
sempre que for apropriado. Obedecendo a regras de taxonomia, as definies de uma
determinada categoria devem-se ajustar aos termos das categorias superiores (um
termo do terceiro nvel deve incluir as caractersticas gerais da categoria de segundo
nvel qual pertence) e devem ser consistentes com os atributos dos termos
subordinados (os atributos do segundo nvel no devem contradizer os termos do
terceiro nvel subjacente). Alm disso, devem ser concretas e operacionais, evitando
sentido figurado ou metforas. adequado que suas formulaes empricas sejam
observveis, testveis ou dedutveis por meios indiretos. Sua formulao deve ser,
sempre que possvel, em termos neutros sem conotaes negativas desnecessrias.
Elas devem ser concisas, evitando-se, dentro do possvel, os termos tcnicos (com
exceo de alguns termos das Funes e Estruturas do Corpo). Cada definio deve
conter notas de incluso que forneam sinnimos e exemplos que levem em
considerao a variao e as diferenas culturais ao longo da vida, bem como notas
de excluso que alertem os usurios para possveis confuses com termos
relacionados (OMS CIF, 2003).
A seguir so alistadas as definies dos componentes da CIF.
- Funes Corporais: so as funes fisiolgicas ou psicolgicas dos sistemas do
corpo.
- Estruturas Corporais: so as partes anatmicas do corpo tais como rgos, membros
e outros componentes.
48
- Deficincias: so problemas na funo ou estrutura corporal, tais como um desvio
ou perda significativos.
-Funcionalidade: refere-se a todas as funes do corpo e desempenho de tarefas ou
aes como um termo genrico.
- Incapacidade: serve como um termo genrico para deficincias, limitaes de
atividades e restries participao, com os qualificadores de capacidade ou
desempenho.
A CIF tambm alista fatores ambientais que interagem com todos estes
construtos (STUN, 2002).
Funes Corporais e estruturas corporais referem-se ao organismo humano
como um todo, incluindo o crebro e suas funes, isto , a mente. Portanto, funes
mentais (ou psicolgicas) so agrupadas sob as funes corporais. Funes e
estruturas corporais so classificadas juntamente com sistemas corporais. As
deficincias de estrutura podem envolver uma anomalia, defeito, perda ou outro
desvio significativo em estruturas corporais. As deficincias representam um desvio
de certos padres geralmente aceitos para a populao no estado biomdico do corpo
e de suas funes. As deficincias podem ser temporrias ou permanentes;
progressivas, regressivas ou estticas; intermitentes ou contnuas. O desvio da norma
pode ser leve ou grave e pode flutuar ao longo do tempo. Estas caractersticas so
capturadas em descries ulteriores, principalmente nos cdigos, por meio dos
qualificadores (STUN, 2002; OMS CIF, 2003)
Na CIF, o termo deficincia corresponde, como descrito acima, a alteraes
nas funes ou estruturas corporais, ou seja, apenas no nvel do corpo, enquanto o
termo incapacidade seria bem mais abrangente, constituindo um termo genrico para
49
deficincias, limitaes de atividades e restries participao, indicando os
aspectos negativos da interao entre um indivduo (com uma determinada condio
de sade) e seus fatores contextuais (fatores ambientais ou pessoais) (OMS CIF,
2003).
O modelo dinmico da CIF mostrado abaixo, na figura 1, incluindo os fatores contextuais.
Figura 1: Interaes entre os componentes da CIF
Extrado de: OMS CIF, 2003.
Uma importante caracterstica da abordagem que foi adotada na CIF a
universalizao do entendimento de deficincia ou incapacidade. Esta abordagem
reconhece que a populao inteira de risco para as circunstncias concomitantes
de doena crnica e incapacidade ou deficincia. O esquema da CIF no fornece
limites para definir quem deficiente e quem no . Entretanto, reconhece aspectos e
graus de deficincia ou incapacidade passveis de ocorrer em toda a populao.
Muitos usos estatsticos de dados de deficincia ou incapacidade no requerem o
estabelecimento de limites. Por exemplo, estatsticas que resumem a sade da
populao podem incorporar elementos relacionados a deficincia ou incapacidade
50
num continuum de estado de sade. Neste tipo de abordagem, no existe a
necessidade de uma definio de quem se conta como deficiente e quem no, de onde
se depreende que a comparao internacional de estatsticas de deficincia no
necessariamente requer pontos de limite para serem resolvidos (BRUNEL, 2002).
Seus construtos de experincia relacionada sade substituem termos
anteriormente usados - deficincia, incapacidade e desvantagem e estendem
seus significados para incluir experincias positivas. Os novos termos so definidos e
detalhados dentro da classificao. importante notar que estes termos so usados
com significados especficos que podem diferir do seu uso corriqueiro (STUN,
2002).
Definindo as rubricas de domnios da sade e domnios relacionados sade
(no da sade), a CIF pode ser til para desenhar a linha entre a sade e a no-
sade para a descrio de desfechos de sade no fatais. Funcionaria assim como
uma Pedra de Rosetta (como uma matriz de traduo) para vrios instrumentos de
descrio de estados de sade porque quase todos estes instrumentos poderiam ser
mapeados dentro da CIF como um modelo comum (STUN, 2002).
51
3.1.5 Natureza complementar e sobreposies das duas classificaes
A OMS agora tem duas classificaes de referncia para a descrio dos
estados de sade, a CID-10 e a CIF (WHO FDC Bethesda, 2001).
Na famlia de classificaes internacionais da OMS, as condies ou estados
de sade propriamente ditos (doenas, distrbios, leses, etc.) so classificados
principalmente na CID-10, que fornece um modelo basicamente etiolgico, embora
tenha uma estrutura com diferentes eixos ou grandes linhas de construo, entre estes
o etiolgico, o antomo-funcional, antomo-patolgico, clnico e epidemiolgico. A
funcionalidade e incapacidade associadas aos estados de sade so classificadas na
CIF (OMS CIF, 2003; STUN, 2002).
A CID-10 e a CIF so consideradas classificaes complementares, sendo os
usurios estimulados a utiliz-las em conjunto. A CID-10 fornece um diagnstico
de doenas, distrbios ou outras condies de sade e essas informaes so
complementadas pelas informaes adicionais fornecidas pela CIF sobre
funcionalidade. Em conjunto, as informaes sobre o diagnstico e sobre a
funcionalidade, fornecem uma imagem mais ampla e mais significativa para
descrever a sade das pessoas ou de populaes, que pode ser utilizada, entre outros,
para propsitos de tomada de deciso (OMS CIF, 2003; STUN, 2002).
Enquanto a CID-10 fornece os cdigos para mortalidade e morbidade, a CIF
fornece os cdigos para descrever a variao completa de estados funcionais que
capturam a experincia completa de sade (STUN e col, 2003).
importante reconhecer a sobreposio entre a CID-10 e a CIF. As duas
classificaes comeam com os sistemas do corpo. Deficincias, parte essencial da
CIF, referem-se s estruturas e funes do corpo que so, em geral, parte do
52
processo de doena e, portanto tambm utilizadas na CID-10. No obstante, a CID-
10 utiliza as deficincias (como sinais e sintomas) como partes de uma constelao
que forma uma doena ou, algumas vezes, como as razes para o contato com
servios de sade, enquanto que o sistema da CIF utiliza as deficincias como
problemas das funes e estruturas do corpo associados aos estados de sade (OMS
CIF, 2003).
Podem ser identificadas coincidncias de partes, termos ou categorias na
CID-10 e sobreposio com a CIF, e estas parecem estar principalmente em
componentes da CIF de Estrutura Corporal e Funo Corporal com o captulo de
sinais e sintomas da CID-10, com exemplos no quadro 1, apresentado abaixo.
Quadro 1. Sobreposies CID-10 e CIF. CID-10 Cdigo CIF Cdigo
Dor R52.9 e vrios cdigos
Dor b280-b289
Sintomas e sinais envolvendo estados emocionais
R45 Funes emocionais b152
Distrbios da Fala R47 Funes da voz e da fala b310-b399 Doenas do olho e anexos cegueira e viso subnormal
H54 Viso e funes relacionadas
b210-b229
Doenas do Ouvido e Processo mastide Surdez / Perda auditiva
H91 Audio e funes vestibulares
b230-b249
Incontinncia Urinria R32 Continncia Urinria b6202 Dorsopatias M40-M54 Estrutura da Coluna
Vertebral s7600
Anormalidades da Respirao R06 Funes da Respirao b440 Sintomas e sinais envolvendo cognio, percepo, estado emocional e comportamento sonolncia, estupor e coma
R40 Alterao de funes mentais Estado de conscincia Funes mentais que quando alteradas produzem estados como obnubilao da conscincia, estupor ou coma
b100
Fonte: WHO Family Development Committee, Bethesda, 2001
Algumas outras categorias dos componentes Funes e Estruturas do Corpo
e categorias da CID-10 parecem se sobrepor, principalmente no que se refere aos
53
sintomas e sinais. No entanto, os propsitos das duas classificaes so diferentes. A
CID-10 classifica sintomas em captulos especiais para documentar morbidade ou
utilizao de servios, enquanto que a CIF os mostra como parte das funes do
corpo, que podem ser utilizados para preveno ou identificao das necessidades
dos pacientes (OMS CIF, 2003).
54
3.2- Definies de deficincia ou incapacidade
Segundo Frank Mulcahy, secretrio da Disabled Peoples International
(DPI), por muitos anos, esta organizao e muitas outras organizaes no-
governamentais (ONG) internacionais no adotaram uma definio de deficincia ou
incapacidade, devido a vrias razes. Muitas circunstncias levaram a esta opo,
entre estas o fato de existirem muitas definies diferentes usadas na legislao em
diferentes pases, alm de que a maioria das definies em uso eram definies
mdica. Havia problemas com tradues de diferentes definies, bem como a
aceitao em alguns pases de termos rejeitados em outros. O modelo experimental
vigente da CIDID/ICIDH tambm foi apontado como uma razo para no adotar uma
definio de deficincia ou incapacidade (MULCAHY, 2003).
A apresentao da CIDID/ICIDH como um dos motivos para no adotar uma
definio de deficincia ou incapacidade, defendida por Mulcahy, possivelmente se
deve ao modelo mdico no qual se baseava, com a falta de mudana ao longo do
tempo e o fluxo unidirecional da deficincia para incapacidade e para desvantagem, o
que foi alvo de muitas crticas, segundo descrio do processo de reviso na prpria
CIF (OMS CIF, 2003), com a sugesto de representaes grficas alternativas, que
acabaram por resultar no modelo dinmico multidirecional e interativo da CIF,
apresentado anteriormente nesta tese na figura 1.
Todas as razes apresentadas acima e muitas outras, fizeram com que as
ONG internacionais, incluindo a DPI, deixassem a deciso sobre o modo como
abordariam a definio usada a cargo das Organizaes Membro Nacionais
(MULCAHY, 2003).
55
Pode-se ter qualquer nmero de definies sendo usadas para diferentes
legislaes, e isto cabe particularmente para definies de deficincia ou
incapacidade usadas para Pagamentos de Benefcios em comparao com as
definies Educacionais, de Treinamento e Emprego. A OMS iniciou a reviso da
CIDID/ICIDH nos anos 90 e a DPI foi representada neste processo. O documento
final, a CIF, adota uma abordagem que fortalece o modelo social de deficincia ou
incapacidade em comparao com o modelo mdico previamente usado. A prpria
DPI se viu requisitada em numerosas ocasies sobre qual definio de deficincia ou
incapacidade gostaria de ver utilizada. Estas questes vieram de organizaes
membro bem como de outras organizaes que apiam Direitos Humanos com base
na abordagem da deficincia ou incapacidade. At a publicao da CIF, a DPI no
tinha uma definio que pudesse ser passada para estas pessoas. Contudo, dentro da
CIF, a definio de deficincia ou incapacidade que usada poderia ser utilizada
para os propsitos da DPI. A CIF define incapacidade como o resultado da
interao entre uma pessoa com uma deficincia e as barreiras ambientais e de
atitudes que possa enfrentar. Assim, Mulcahy prope que poderia ser utilizada para
o momento como definio preferida esperando que