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CADERNO CRH, Salvador, v. 17, n. 40, p. 61-77, Jan./Abr. 2004 61 DOSSiÊ INTRODUÇÃO A justiça fundamenta a democracia moder- na, pois é garantidora da liberdade e da igualdade. Nas formas de institucionalização dos direitos modernos do homem, a justiça entremeia os re- cursos e mecanismos de reciprocidade e troca em todos os aspectos da vida coletiva: normativos, distributivos e aqueles que confirmam a inclusão do indivíduo na esfera da cidadania em relação ao Estado, à coletividade e na garantia da individua- lidade. Portanto, ela provê o lastro para a realiza- ção do sujeito político: individualizado e, ao mes- mo tempo, igual como delimita a liberdade mo- derna. Pode-se dizer que a justiça conforma o pró- prio sentido da democracia, porque ela situa o in- divíduo na coletividade, equilibra o diálogo, ga- rante a participação e regula os acordos. Em seu âmago, ela é integradora e inclusiva na relação en- tre indivíduo e sociedade por meio dos valores de cultura política democrática. Em última instância, ela é a manifestação dos sistemas morais e dos pro- cessos de sociabilidade e produtora de solidarie- dade social. Por enunciar o próprio sentido da demo- cracia, a realização da justiça revela, não obstante, as desigualdades existentes em sociedades onde a inclusão não se realiza plenamente. No Brasil hoje, conquanto haja uma constituição identifi-cada com a própria universalização da cidadania a Consti- tuição de 1988 , e mesmo evocada continuamen- te nos confrontos e tensões entre indivíduos ou grupos que expressam desigualdades materiais e simbólicas, a justiça está muito aquém da realiza- ção da democracia. O papel do Ministério Públi- co, aggiornado pela nova Carta, abriu espaço na relação entre indivíduo, Estado e sociedade, objetivando uma maior defesa e implementação dos direitos modernos fundamentais para o usufruto da própria cidadania e, portanto, de uma transfor- mação democrática substantiva da própria demo- cracia. Buscando realizar este novo papel, o Mi- nistério Público da Bahia, por meio da Promotoria de Justiça de Defesa Comunitária, idealizou e implementou um projeto para levar a justiça até a população carente: o projeto Ministério Público Vai às Ruas (MPVR). Conquanto seu papel consti- JUSTIÇA E DESIGUALDADES: o descompasso da cidadania como forma de exclusão social Márcia Regina Ribeiro Teixeira Ruthy Nadia Laniado

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INTRODUÇÃO

A justiça fundamenta a democracia moder-na, pois é garantidora da liberdade e da igualdade.Nas formas de institucionalização dos direitosmodernos do homem, a justiça entremeia os re-cursos e mecanismos de reciprocidade e troca emtodos os aspectos da vida coletiva: normativos,distributivos e aqueles que confirmam a inclusãodo indivíduo na esfera da cidadania em relação aoEstado, à coletividade e na garantia da individua-lidade. Portanto, ela provê o lastro para a realiza-ção do sujeito político: individualizado e, ao mes-mo tempo, igual – como delimita a liberdade mo-derna. Pode-se dizer que a justiça conforma o pró-prio sentido da democracia, porque ela situa o in-divíduo na coletividade, equilibra o diálogo, ga-rante a participação e regula os acordos. Em seuâmago, ela é integradora e inclusiva na relação en-tre indivíduo e sociedade por meio dos valores decultura política democrática. Em última instância,ela é a manifestação dos sistemas morais e dos pro-cessos de sociabilidade e produtora de solidarie-dade social.

Por enunciar o próprio sentido da demo-cracia, a realização da justiça revela, não obstante,as desigualdades existentes em sociedades onde ainclusão não se realiza plenamente. No Brasil hoje,conquanto haja uma constituição identifi-cada coma própria universalização da cidadania – a Consti-tuição de 1988 –, e mesmo evocada continuamen-te nos confrontos e tensões entre indivíduos ougrupos que expressam desigualdades materiais esimbólicas, a justiça está muito aquém da realiza-ção da democracia. O papel do Ministério Públi-co, aggiornado pela nova Carta, abriu espaço narelação entre indivíduo, Estado e sociedade,objetivando uma maior defesa e implementação dosdireitos modernos fundamentais para o usufrutoda própria cidadania e, portanto, de uma transfor-mação democrática substantiva da própria demo-cracia.

Buscando realizar este novo papel, o Mi-nistério Público da Bahia, por meio da Promotoriade Justiça de Defesa Comunitária, idealizou eimplementou um projeto para levar a justiça até apopulação carente: o projeto Ministério PúblicoVai às Ruas (MPVR). Conquanto seu papel consti-

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tucional lhe atribua funções no âmbito dos direi-tos coletivos e difusos, o Ministério Público (MP)tem sido levado a contribuir também na difusão eimplementação dos direitos civis básicos, a gran-de dívida do Estado e da sociedade para com gran-de parte da população. São aqueles que formamos grupos atingidos pelas mais diversas formas decarências: renda, educação, habitação, saúde, sa-neamento, cultura, enfim, a cidadania que confi-gura a vida cotidiana e a vida política do cidadão.

O presente artigo traz uma análise da con-tribuição do projeto MPVR, implementado entrejulho/2000 e junho/2001 no bairro do Uruguai emSalvador,1 atuando no seio de uma população quepouco sabe sobre os seus direitos e pouco conse-gue fazer para deles usufruir plenamente. A análi-se enfoca a experiência da ação do projeto de for-ma a observar o atendimento da justiça para aque-les que o procuraram, informando sobre: (i) a per-cepção dos direitos e deveres e sua acessibilidadepela população atendida pelo projeto, (ii) a avalia-ção que essa população faz do acesso à justiça, e(iii) os ganhos (em relação a valores ou benefíciosmateriais) obtidos pelo acesso aos direitos promo-vidos pelo MPVR. Pode-se antecipar que, por meiode atividades de difusão, educação e serviços deatendimento jurídico, a ação do Ministério Públi-co do Estado da Bahia contribuiu para, por umlado, implementar a distribuição dos direitos en-tre aqueles que pouco acesso têm aos mesmos, e,por outro lado, a intervenção do MPVR expôs odescompasso entre os direitos constitucionalmen-te garantidos e o precário usufruto dos mesmos,mostrando uma das faces mais complexas da desi-gualdade na democracia contemporânea.

EXPANDINDO OS LIMITES DA JUSTIÇA: oprojeto MPVR

De dezembro de 1997 a dezembro de 1999,o MPVR atuou em doze bairros de Salvador(Cajazeiras, Mussurunga, Soledade, Periperi, Pauda Lima, Bonfim, Chapada do Rio Vermelho,Narandiba, Retiro, Boca do Rio, Castelo Branco eOgunjá.) e mostrou, por meio dos serviços presta-dos, a alta demanda existente por assistência jurí-dica, somando mais de 15.539 atendimentos. Osacordos sobre direitos individuais de família (6.693casos - 43%) formaram, de longe, a maior partedas demandas, seguidos da orientação jurídica eencaminhamentos (4.193 casos - 27%).2 No perío-do subseqüente, de janeiro/2000 a dezembro/2001,o projeto MPVR expandiu-se para mais oito bair-ros: Pirajá, Paripe, Novo Marotinho, Uruguai,Candeal, Cosme de Farias, Nazaré e Pau Miúdo.Os atendimentos realizados que mais impactaramno desempenho do projeto, nesse segundo perío-do, foram: acordos diversos com a prevalência dequestões sobre pensão alimentícia, guarda dos fi-lhos e reconhecimento de paternidade, totalizando97.53% dos acordos. As ações ajuizadas tambémdizem respeito a questões de família. Na verdade,da função constitucional precípua do MinistérioPúblico – defender os direitos coletivos ou difusos– o projeto só foi acionado em 0,43% dos casos(poluição sonora, lixo, asfalto, semáforo e postode saúde).3

Nesse período, os dados informam umaampliação do número de acordos em relação ao

1 O bairro do Uruguai é o mais populoso da Península deItapagipe, que compõe a II Região Administrativa de Sal-vador e abriga uma população de 142.291 habitantes,distribuídos desigualmente por 14 bairros. O bairro doUruguai responde sozinho por 22% desse total, ou seja,32.034 habitantes e apresenta um rendimento médio deaté 02 SM (CONDER, 2000), confirmando o perfil dosusuários do MPVR. Dispõe de poucos equipamentosurbanos e de infra-estrutura, pouca oferta de serviçospúblicos de saúde e educação, e reduzida possibilidadede se obterem esses serviços na rede particular, dado operfil da renda, desemprego, pobreza, doenças infecto-contagiosas, violência, drogas, dentre outros, da maioriada população residente.

2 Relatório MPVR 1997-1999, realizado em 2000.3 A atuação do MPVR nos oito bairros mencionados em

2000-2001 resultou nos seguintes atendimentos: (a)acordos: alimentos (51,4%), guarda dos filhos (32,9%),reconhecimento de paternidade (13,2%), questões devizinhança (2,0%), poluição sonora (0,4%), lixo +recapeamento asfáltico + semáforo + posto de saúde(0,1%); (b) ações ajuizadas: questões de família (52,8%),pensão alimentícia (45,3%), alvarás (1,9%), dentre 7.461atendimentos. Nesses bairros, foram ainda concedidas4.807 orientações (informações verbais registradas emfichas), 1.400 encaminhamentos a outros órgãos encarre-gados de questões de atendimento jurídico (OAB e promo-torias especializadas) e social (orientações previdenciárias ede assistência social). Outras atividades proveram a atu-ação do MPVR totalizando 4.954 (audiências, contatoscom órgãos governamentais, visitas domiciliares, pales-tras, reuniões com a comunidade, visitas de inspeção apostos de saúde, entre outros).

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período anterior, mesmo que em um número me-nor de bairros, apenas oito comparativamente aosdoze outros. Os registros dos tipos de atendimen-to realizado pelo MPVR oferecem como diagnósti-co, a constatação de que o projeto não conseguiuperseguir seu objetivo original: esclarecer e defen-der os direitos coletivos nas comunidades caren-tes e prover uma estratégia de ação para tal. Tevede se adaptar às demandas da população-alvo, quenecessitava de um atendimento básico, de nature-za jurídica individual, desde a regularização dedocumentos pessoais até mesmo informações so-bre a existência e gratuidade de serviços de assis-tência jurídica, como a Defensoria Pública e ospróprios escritórios-modelo das Faculdades de Di-reito.

Há críticas a esse tipo de experiência do Mi-nistério Público. Para alguns promotores de justi-ça, o papel da instituição estaria sendo desfigura-do, pelo exercício de função da Defensoria Públi-ca (Sanches Filho, 1998). Tal consideração ocorretambém em outros estados que implantaram pro-jetos similares, a exemplo do Distrito Federal,Amapá e Pará. A despeito disso, os promotores de

justiça envolvidos no projeto MPVR decidirampersistir na proposta do projeto, prolongando, in-clusive, a permanência das unidades móveis doMPVR (ônibus adaptados para funcionar como umórgão público “ambulante”) nos bairros, conside-rando as necessidades daquela população. Para tor-nar mais eficaz a realização dos objetivos propos-tos, foram promovidas reuniões entre o serviçosocial do MP, a comunidade local e suas lideran-ças, de maneira a melhorar o entendimento sobrea função da promotoria de justiça e os objetivosdo projeto MPVR. Decidiu-se, também, que oMPVR permaneceria de julho/2000 a junho/2001em um ponto fixo do bairro, a praça do final delinha da Igreja dos Alagados, no bairro do Uru-guai. O conjunto dessas ações e os resultados al-cançados podem ser descritos no Quadro 1. Deum total geral de 3.443 atendimentos, 1.456 (42,3%)foram acordos e 246 (7,14%) ações ajuizadas. Àsemelhança dos resultados da totalidade dos bair-ros atendidos pelo projeto, as duas categorias abaixodiscriminadas mostram um predomínio de casosrelativos a direitos individuais básicos para o bair-ro do Uruguai: pensão alimentícia 76,51%, pater-

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nidade 14,21% e guarda dos filhos 7,41%. As ques-tões relativas aos direitos coletivos, tais como po-luição sonora, lixo e asfalto, representaram apenas0,55% dos atendimentos.

No bairro do Uruguai, os atendimentos in-cluíram, ainda, 636 orientações, 1.105 encami-nhamentos com especial destaque para os órgãos deacessória jurídica gratuita (761 dos encaminhamen-tos), além de 1.105 audiências e 83 atividades liga-das a apoios mais gerais, tais como palestras, visi-tas domiciliares, visitas a postos de saúde e delega-cias e reuniões com a comunidade.

Dos 3.443 atendimentos gerais menciona-dos, apenas 521 (15,13%) usuários eram realmen-te residentes no bairro do Uruguai; os demais ti-nham domicílio nos bairros próximos, comoBonfim, Massaranduba, Ribeira, ou até mesmo emlocalidades mais distantes como Itapoã, Cajazeiras,Nova Sussuarana e outros. Pode-se dizer que agrande demanda do bairro do Uruguai ratifica osresultados dos demais bairros onde o MPVR reali-zou intervenção, ou seja, há uma concentração dedemandas relativas a questões do direito de famí-lia (alimentos, investigação de paternidade, guar-da e visita etc), a orientações jurídicas para benefí-cios previdenciários, documentação civil, divór-cio, defensores públicos para propositura de açõesde separação, etc.

Os dados oferecem um panorama claro darealidade que emergiu da implantação do projetoMPVR: a de que a população do bairro do Uru-guai4 carece de assistência jurídica básica, o queenfraquece a proposta original do MPVR – atuarno âmbito dos direitos coletivos – forçando-o a

um tour de force para suprir as classes carentesdas ausências dos órgãos públicos em matéria deserviços relativos à condição civil e à justiça. Comoos resultados apresentam um elevado número deacordos logrados, pode-se dizer que a ação doMPVR propiciou as condições para uma soluçãopacífica e dinâmica dos conflitos da vida cotidianada comunidade, sinalizando a marca de uma daspolaridades no debate da sociologia jurídica: opapel do direito em garantir soluções harmonio-sas de conflitos que afetam a integração social eque realizam, em última instância, o bem comum(Sousa Santos, 1999).

A PERCEPÇÃO DOS DIREITOS E DEVERES EA SUA ACESSIBILIDADE

A Constituição de 1988 trouxe avanços sig-nificativos quanto aos novos direitos e o espectrode garantias do cidadão, mas observa-se que istonão é suficiente para aproximar a sociedade dascondições que os tornam mais efetivos, a fim deconstruir uma cidadania socialmente eficaz (SousaSantos, 1999). No Brasil, convive-se, historicamen-te, com uma desigualdade que gera exclusão o que,conforme Martins (1994), configura uma pobrezados direitos de cidadania, obstaculizando uma de-mocracia substantiva, principalmente porque ain-da se vive a formação do que Marshall (1967) des-creveu como o conjunto das garantias legais – ci-vis, políticas e sociais – que, no entanto, muitasvezes, estão fora do alcance do indivíduo. Ao sereconhecer que condições mínimas de existênciaprovidas por educação, saúde, trabalho e seguran-ça são essenciais para se viver a liberdade e a igual-dade, considera-se importante haver um nível mo-derador no âmbito do Estado e das relaçõessociopolíticas, isto é, o nível da justiça (Cavalcanti,1999).

O processo de evolução da cidadania foilento e assimétrico, um período que durou algunsséculos no Ocidente. O tema essencial ao longo daformação da sociedade burguesa é a construção daigualdade para garantir a liberdade em condição

4 O perfil da população estudada do bairro do Uruguaimostra que, entre os respondentes, 98,1% buscavamajuda jurídica, e somente 1,9% eram líderes comunitári-os. Eram majoritariamente mulheres, 78,8%, reclaman-do pensões alimentícias para os filhos ou a regularizaçãode documentos. A faixa etária predominante é jovem, jáque 57,7% dos atendidos estão entre 21–40 anos. Aspessoas acima de 51 anos buscam menos soluções noâmbito da justiça. A escolaridade é baixa: 6l,6% têm atéo primeiro grau e 34,6% o segundo grau. O perfilocupacional do grupo mostra que: 28,8% prestam servi-ços temporários, 17,3% têm vínculo empregatício nosetor privado, 19,2% são donas de casa e 11,5% sãoempregadas domésticas. A renda mostra uma concen-tração na classe de até 1 SM (42,3%) a até 2 SM (26,9%).

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de justiça. E os direitos foram o lastro moral enormativo da conjunção dessas três dimensões.Ademais, eles produzem o sentimento de reconhe-cimento mútuo aos membros de uma mesma cole-tividade, uma pertença e solidariedade social, ouseja, uma consciência nacional (Marshall, 1967).Ou ainda, como propõe Ribeiro (1997), os direitosconstroem a coisa comum e formam também osdeveres; ambos são faces constitutivas da mesmacidadania em um contínuo processo de inclusãocrescente, permitindo as condições de distribui-ção e de justiça social. São complementados coma dimensão social consolidada com o welfare state

e suas abrangentes políticas sociais, impondo aosEstados modernos obrigações para com os sujei-tos individuais e coletivos. Caracterizou-se, assim,a transformação do Estado Protetor em Estado Pro-vedor (Rosanvallon, 1991), emergindo de uma di-nâmica de ação positiva do Estado na efetivaçãodos direitos, estabelecendo-se padrões mínimos dequalidade de vida – trabalho, saúde, educação, mo-radia, dentre outros –, para conter os conflitos so-ciais.

Para operar todos os benefícios, o Estadode Bem-Estar se organizou a partir de uma gestãoadministrativa, fundada em um pressuposto dedisponibilidade de recursos necessários para ga-rantir os mecanismos de compensação e distribui-ção de bens e qualidade de vida. A ampliação dainclusão social, de certo modo, desencadeou umincremento das demandas sobre o Estado, em umprocesso crescente no período do pós-guerra, demultiplicação dos direitos (Bobbio, 1992) e umaconseqüente explosão de conflitos em torno de di-reitos e benefícios, porque os cidadãos aprende-ram a demandá-los e a defendê-los (Faisting, 1999).Entretanto, se o Brasil orientou-se por algumasmedidas de um welfare state, com as transforma-ções ocorridas nos anos quarenta pela regulamen-tação da relação entre Estado e cidadão e entre ca-pital e trabalho, não conseguiu elaborar o seu pró-prio modelo de cidadania amplamente inclusiva eativa. Aqui, as tradições de cultura política foramfundadas em práticas clientelistas e patrimo-nialistas, em detrimento da normatividade posta,

o que reforçou a desigualdade e a exclusão social(Laniado, 2001a; Ramos, 2000).

No desenvolvimento da democracia e dosdireitos, estudos indicam que, nas democraciasmodernas, a evolução histórica da justiça não seviabilizou de modo a promover a igualdade socialem parâmetros minimamente justos (Sousa San-tos, 1999; Cappelletti, 1998; Souza Jr., 1993; Fa-ria, 1998; Teixeira, 2001). Isto é, a justiça repro-duz, em termos do acesso e efetividade, desigual-dades muito próximas daquelas encontradas noâmbito da ordem social, aumentando o afastamen-to dos setores de baixa renda do sistema legal ejudiciário: tribunais, advogados, órgãos do Estado– pouco conhecidos por falta de informação, alémde burocratizados e caros. Convive-se, pois, comum paradoxo: por um lado, uma igualdade jurídi-co-formal enclausurada em uma ritualística dopoder judiciário que leva às diferentes instânciasdo sistema de justiça, sem permitir que se cheguea um destino final; pelo outro, uma desigualdadereal de não usufruto dos direitos da cidadania, dajustiça (Cavalcanti, 1999).

Diante do difícil acesso à justiça, a fragili-zação da cidadania impede a inserção nos siste-mas de sobrevivência que regulam a distribuiçãodas oportunidades de vida, impedindo a vivênciada igualdade na liberdade e igualdade nas oportu-nidades como processos sociais concomitantes(Laniado, 2001a). Esse aspecto forma o primeirodescompasso da cidadania no Brasil, na relaçãoque integra o sujeito político, individual ou coleti-vo, com as instituições e a dificuldade para se cons-truir confiança nas mesmas. Disso resulta, muitasvezes, sentimentos de frustração cívica, pelo en-tendimento de que os direitos não são igualmenteviabilizados para todos, a despeito de serem con-siderados universais. Herança de uma cidadaniaque foi realizada, em longas fases da história soci-al brasileira, de cima para baixo, ou seja, por meiodo Estado, sem a presença ativa dos cidadãos.

Para melhor entender essa questão do Bra-sil contemporâneo, observando o entendimento dosindivíduos sobre a relação entre direitos, deverese justiça, procurou-se saber como a população do

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bairro do Uruguai atendida pelo projeto MPVR5

percebe os direitos da cidadania. Instados a citar,livremente, três direitos e três deveres, os respon-dentes puderam expressar motivações ou objeti-vos manifestos.6 Dentre os mais citados (Gráfico1) estão os direitos individuais relativos às condi-ções objetivas e materiais de sobrevivência (saúde,educação, moradia, trabalho e lazer), totalizandoum significativo percentual de 66 pontos entreaqueles que souberam mencionar algum direito.Os direitos civis individuais, viga mestra da for-mação da democracia, evocam o direito à vida e àliberdade, totalizando 11,1%. Na perspectiva de

Heller (1993), esses direitos universais podem serresumidos em igual liberdade para todos e iguaisoportunidades de vida para todos. Para tanto, osvalores incondicionais da liberdade e da vida secombinam com o valor condicional da igualdade(uma conquista de cada sociedade), tornando-sevirtudes cívicas que contribuem para a vida de to-dos os cidadãos.

A segurança é um direito coletivo e aparececomo o terceiro mais citado, com 17,4%. Chama aatenção o fato de que os direitos relativos à partici-pação política – união e luta – não foram mencio-nados de forma significativa, alcançando apenas2,7% das respostas. Não obstante o Brasil ter maisde 90 milhões de eleitores, o direito ao voto não

foi citado como talmas sim como umdever. Isso se devetanto à obrigatorie-dade do voto como àfalta de confiança nopoder político, queinfluenciam o imagi-nário popular com aidéia do voto maiscomo obrigação im-posta do que umagarantia constitucio-nal. Conseqüente-mente, configura-seuma certa ambigüida-de entre direito e de-

ver nas representações dos cidadãos sobre a polí-tica. Os dados ainda indicam que, na categoria“outros”, 3,7% dos respondentes entenderam quecuidar da família e amar a Deus é um direito, oque, em verdade, retrata o primeiro indicador comouma responsabilidade social e, o segundo, comouma condição de ordem moral individual.

No que se refere aos deveres, a contrafaceda condição cidadã, verificou-se uma maior difi-culdade em citá-los, porque 52% não foram capa-zes de mencionar sequer uma idéia relativa aosdeveres. Ora, a condição de cidadão é o queMarshall (1967) relaciona com obrigações voltadas

5 Dos 521 residentes do bairro do Uruguai atendidos peloMPVR, a pesquisa identificou 114 indivíduos com osdados pessoais e residenciais devidamente cadastradosnos registros do projeto. Ainda assim, nesse grupo, ha-via dados de residência desatualizados e, por isso, so-mente 52 deles foram localizados, formando o gruposelecionado para a pesquisa. Foi aplicado um questioná-rio semi-estruturado, com trinta questões (fechadas eabertas).

6 Entre os 52 entrevistados, apenas 17,3% (9) não soube-ram citar qualquer direito, contrastando com dados deoutras pesquisas. Pandolfi (1999) observou que, entre apopulação da região metropolitana do Rio de Janeiro, desetembro de 1995 a julho de 1996, 56,7% não souberamexplicitar quaisquer dos direitos considerados impor-tantes.

Gráfico 1 - Direitos mais citados

Fonte: Pesquisa de campo, 2003.

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para o bem estar da comunidade e que não podemser desconhecidas ou ignoradas, pois a relaçãoequilibrada entre o binômio direito e dever é fun-damental para uma democracia inclusiva e tole-rante. Ou, conforme Putnam (2000), as práticas ine-rentes à cidadania baseiam-se na solidariedade eno encontro entre direitos e deveres. Este é umsegundo aspecto do descompasso da cidadania noBrasil na relação que integra a sua dimensão indi-vidual e coletiva a partir da prática dos atores, que,ao apresentarem uma baixa referência aos deveres,mostram uma fraca estruturação dos valores sim-bólicos que contribuem para o bem comum. OGráfico 2 mostra a distribuição das referênciasevocadas.

As obrigações que formam os laços básicosde vida em sociedade emergem tanto das interaçõesde relações primárias como em ambientes maisamplos e complexos, como os da esfera pública.Institucionalizadas no âmbito dos direitos, as obri-gações tornam-se as representações dos deveres quea sociedade moderna espera e cobra do cidadão.No entanto, são os deveres familiares que foram osmais citados, em 38,1% dos casos, com referência

a: ser boa mãe, educar os filhos, ser boa avó. Osvalores de vida, que, no âmbito da cultura políticae da sociabilidade, condicionam a mentalidade eas normas de vida, aparecem em segundo lugarcom 29,3%, destacando-se entre eles: honestida-de, humildade, amor e respeito ao próximo, res-ponsabilidade, esperança, saber ouvir, não julgaro outro. Vê-se, portanto, a vinculação da dimen-são dos valores a uma ordem moral e cívica tam-bém no sentido descrito por Heller (1993), comosendo o conjunto de elementos que formam a rela-ção prática do indivíduo com as normas e regrasde boa conduta. O respeito às leis, com 14,1% dasmenções, agrupa questões referentes a pagar im-postos e cumprir as leis, o que Marshall (1967)qualifica como o dever mais imediato no âmbitodos direitos. Preservar o meio ambiente (7,6%),respeito à comunidade (5,4%) e trabalho (2,2%)enunciam um sentido mais coletivo dos deverescomo obrigação do indivíduo na comunidade. Areferência a esses deveres tão amplos sinaliza umapreocupação com uma dimensão mais cooperativado social, estabelecendo-se, de certa forma, um sen-timento de pertencimento local e global. Na cate-goria “outros” (3,3%), foram contabilizadas as in-formações vinculadas a interesses mais pessoais epatrimoniais, tal como amar a Deus ou ganhar di-

nheiro. Nenhum de-ver de ordem políti-ca foi mencionado.

Para melhordesenhar a percepçãodos entrevistados so-bre o mesmo tema,eles foram defronta-dos com uma relaçãode nove direitos as-segurados pela Cons-tituição Cidadã: saú-de, educação, condi-ções sanitárias, segu-rança pública, lazer ediversão, cultura,

proteção à criança e ao adolescente, previdênciasocial e aposentadoria, e a proteção à maternida-Fonte: Pesquisa de campo, 2003

Gráfico 2 - Deveres mais citados

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de. Para melhor caracterizar a informação sobre eles,a questão foi confrontada com o acesso ou usufru-to dos mesmos. O mapeamento do conhecimentodemonstrado e do acesso viabilizado é apresenta-do no Gráfico 3, abaixo. Saúde e educação, amboscom 96,2%, são os direitos mais conhecidos, se-guidos de lazer ou diversão (92,3%) como mani-festação da liberdade individual na vida cotidia-na. Segurança pública, um direito coletivo, apare-ce com 88,5% das indicações. Proteção à materni-dade, que inclui a condição da mulher e da infân-cia, ocupa o quarto lugar (84,6%). Os direitos me-nos conhecidos foram proteção à criança e ao ado-lescente e o direito à cultura (69,2%). Mais umavez, refulge a visibilidade dos direitos à saúde e àeducação.

Quanto à possibilidade de acesso a essesdireitos, os indivíduos apontaram para um certonível de acessibilidade à saúde e à educação, am-bos com um percentual de 67,5. Paralelamente, osmenos conhecidos foram também citados como osmenos acessíveis: proteção à criança e ao adoles-cente (26,9%) e o direito à cultura (36,5%). Outrodado relevante é que 34,6% dos respondentes afir-maram não ter acesso à segurança pública, o querealça a vulnerabilidade em face da violência (cri-minal ou por parte do aparelho do Estado - polici-ais) nos tempos atuais, sobretudo nas áreas maispobres dos grandes centros urbanos.

Os dados acima, que relacionam conheci-mento e acessibilidade, corroboram o primeirodescompasso da cidadania, pois revelam que tan-to a desinformação, uma conseqüência da não-edu-cação do indivíduo para poder viver plenamente acidadania, quanto a ineficiência do aparatoinstitucional para a realização da igualdade e da

justiça, produzem a de-sigualdade social e en-fraquecem as institui-ções, empobrecendo aconfiança e, em um es-copo mais amplo, o pró-prio capital social quenutre a cidadania e acultura cívica da comu-nidade.

Ao caracterizarmelhor as dificuldadespara ter o acesso aos di-reitos, os moradores dobairro do Uruguai aten-didos pelo projetoMPVR citaram7 que,para eles, os maioresobstáculos eram os po-líticos ou o governo,com 34,6% das respos-

7 Na questão sobre quais osobstáculos que eles mais enfrentavam para ter acessoaos direitos, 28,8% não souberam responder.

Gráfico 3 - Conhecimento e acesso aos direitos

Fonte: Pesquisa de campo, 2003

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tas, seguido da falta de informação (21,2%).Imobilismo (5,8%) e falta de dinheiro (3,8%) tam-bém foram citados como obstáculos. A despeitode a população investigada ser majoritariamentepobre, as respostas mostram que ela conseguehierarquizar os problemas com um aguçado sensocrítico sobre a inoperância do poder público, res-ponsabilizando-o mais pela condição de desigual-dade social vivenciada do que a própria precarie-dade dos recursos materiais das famílias. Essaconsciência se torna visível pela indicação do go-verno e dos políticos como a grande barreira deacesso aos direitos, sendo a expressão “governo”usada indistintamente tanto para designar o po-der de um Estado ineficiente e burocrático quantoa pessoa que o exerce – incompetente e injusta. Adesinformação é retratada como um instrumentocapaz de aprisionar a consciência política populare, por conseguinte, tornar-se um obstáculo na trans-formação das relações entre cidadão e Estado8.

Ao se perguntar se o projeto MPVR ajudoua conhecer melhor os direitos da cidadania, 90,4%dos entrevistados responderam que sim. Consi-deraram a informação e o conhecimento como con-quistas importantes e necessárias, reforçando, por-tanto, uma visão crítica sobre a desinformação comoum dos motivos responsáveis pela inacessibilidadeaos direito (Carneiro, 1999).

Pode-se dizer que a presença do MPVR juntoà comunidade trouxe contribuições, mesmo quebásicas, sobre o acesso à justiça, e, por conseguin-te, permitiu conhecer tanto sobre direitos comosobre instituições e espaços que trabalham com aoferta de assistência jurídica, desvelando-se, as-sim, parte do “véu da ignorância” referido porRalws (2000). A formação de uma consciência so-bre os direitos e a familiarização com o intrincadosistema de justiça, a partir de um referencial aces-sível – o MPVR –, de uma certa forma resgatou o

princípio da dignidade da pessoa humana nessapopulação.

Para melhorar o acesso aos direitos consti-tucionais, a população mencionou a importânciada participação, indicando especificamente: luta emobilização (21,8%), educação (14,5%), voto(14,5%), trabalho (5,5%) e justiça (3,6%), mostran-do preocupação com valores garantidores da cida-dania na democracia. Essa visão sugere a crençana possibilidade de mudanças, na medida em queos obstáculos citados estariam eles mesmos con-dicionados a uma mudança provocada a partir de-les próprios, da comunidade. Ou seja, há umavalorização, ainda que genérica, da importância daparticipação (política) dos cidadãos. Por outro lado,é significativo também que 23% dos respondentesnão souberam indicar como poderiam acessar di-reitos, o que revela um sentimento de impotênciaou desorientação bastante representativo. Luta evoto como recursos de acesso aos direitos é ilus-trado nas falas que seguem:

“Votar nas pessoas certas. Aprender a escolher osnossos governantes.”9

“Seria pensar melhor em quem votar. Passamosmuita humilhação, os governantes dizem que estãomelhorando tudo, e eles nem sabem o que a genteprecisa mesmo”.10

Inicialmente, surpreende o percentual refe-rente ao voto (14,5%), na medida em que, por-quanto a expansão do corpo eleitoral seja uma só-lida realidade numérica no Brasil, não é uma tôni-ca nacional a maciça participação dos cidadãos napolítica, o que lembra o cansaço eleitoral dos ritu-ais democráticos, analisado por Bobbio (1992). Éverdade que o “voto” não se revelou como um dosdireitos mais citados, quando os entrevistados fo-ram instados a citar pelo menos três, não obstanteas falas sugerissem uma preocupação com a políti-ca, na medida em que, nos depoimentos, encon-tra-se implícita a qualidade desse “voto”, como sig-

8 “... A sociedade espera que os direitos aconteçam; achoque a sociedade deveria sair dessa acomodação e deve-ria ir buscá-los.” (Entrevistado 1).“... As pessoas são acomodadas, não procuram se infor-mar dos seus direitos. Elas deveriam correr atrás.” (En-trevistado 12).

9 (Entrevistado 3)10 (Entrevistado 25)

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nificado carregado de consciência crítica e políti-ca. A “imobilidade da sociedade”, citada por al-guns, indica, por um lado, uma baixa participa-ção, mas, por outro, mostra uma preocupação coma importância do engajamento dos indivíduos namudança das condições de vida, conforme se podeobservar nos excertos que seguem.

“Para valer os direitos, devemos nos organizar edenunciar o que está errado”.11

“A comunidade precisa se organizar para buscarmosos nossos direitos”.12

As relações sociais devem estar fundadasem parâmetros mínimos de justiça (Laniado, 2001;Heller, 1998). Na medida em que não se transitapelo sistema de justiça, dispondo do seu uso efruição, os direitos inalienáveis de liberdade e igual-dade se desqualificam diante da escassez de opor-tunidades, o que torna o tecido social desvitalizado,incapaz de alimentar a formação de redes, de vín-culos sociais e de solidariedade no campo da cida-dania. Sabe-se, pois, que a sincronicidade entre obinômio igualdade e liberdade é nuclear para pro-duzir participação social, conforme propugnam osusuários do MPVR em suas falas. O engajamentodos indivíduos permite transcender o individua-lismo, dando um espaço maior aos interesses pú-blicos, fortalecendo a própria comunidade(Laniado, 2001a; Putnam, 2000), o que irá, por suavez, melhor prover o indivíduo. A mobilizaçãopopular, de fato, é capaz de desencadear umaconscientização e influir na cultura política de aco-modação. O paradoxo aqui suscitado, que chamaa atenção, é que, embora os indivíduos se refiramà importância da participação política e damobilização social nos espaços públicos, para as-cenderem aos direitos constitucionais, verifica-seque apenas 3,85% declararam participar de ativi-dades associativas (Associação dos Moradores doBairro do Uruguai e sindicato), o que demonstra

um baixo grau de participação.13 O que reforça ofato de que, no Brasil, ainda hoje, os índices deassociativismo são baixos, o que pode estar relaci-onado à trajetória histórica brasileira, marcada pordesigualdades e relações sociais hierarquizadas, he-ranças de uma cultura política pautada em padrõesautoritários, patrimonialistas e clientelistas, e queainda marcam a trajetória da política nacional, in-compatíveis com o projeto contemporâneo de de-mocracia social.

A força do associativismo é fundamentalpara a democratização da sociedade, como obser-va Tocqueville (1977), ao analisar os alicerces dademocracia americana já no século XIX. A associ-ação contempla tanto a representatividade comoos instrumentos de ação que permitem a coopera-ção por meio de instituições livres que promovemos direitos civis e políticos e reforçam a consolida-ção dos interesses particulares com os interessespúblicos, e não contra eles. Uma sociedade mobi-lizada em torno de interesses comuns cria os me-canismos de pressão necessários para frear o po-der do Estado, sendo mais capaz de influenciar eintervir nas decisões e nas políticas públicas (Telles,1992; Jacobi, 2000).

O ACESSO À JUSTIÇA

O acesso à justiça é um tema árduo e desa-fiador das democracias contemporâneas, tanto paraa sociologia política quanto para a sociologia jurí-dica e o direito processual. Os direitos da arenaformal estão diretamente vinculados à prestaçãodos serviços legais tradicionais; já os serviços maisinovadores priorizam a mediação, as ações coleti-vas, as demandas e a ética comunitária, o que en-volve valores e princípios consolidados desde abase das relações políticas e sociais, com o fim de

13 Ao se questionar os entrevistados sobre como tomaramconhecimento do projeto MPVR, 52% informaram quefoi através de amigos ou vizinho, 21,1% por divulgaçãodo projeto, 15,4% por meios de comunicação e apenas9.6% tiveram conhecimento através de alguma associa-ção.

11 (Entrevistado 34)12 (Entrevistado 49)

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influenciar positivamente essas relações.Os direitos são produtos históricos resul-

tantes da relação dinâmica entre as demandas dasociedade civil e as políticas do Estado. Essa rela-ção intervém na estruturação e normatização daspróprias relações sociais, na reciprocidade e nasolidariedade. O acesso à justiça, como é compre-endido hoje, inexistiu no Império brasileiro. Apósa Proclamação da República, foi incorporado comoum espectro de atividades de concessão caritativa,ou seja, como favor prestado aos hipossuficientes,correspondendo à inspiração do ideal do Estadoliberal (Silva, 1996). Dentro de uma noção maispróxima da formação da cidadania, o princípio doacesso à justiça foi incorporado primeiramente àConstituição de 1934, recuperado em 1946 e reno-vado na Constituição de 1988.14 Entretanto, obser-va-se a existência de muitos obstáculos (econômi-cos, sociais e culturais) que dificultam o acesso aosistema como um todo. E, na medida em que oacesso ao poder judiciário é uma das faces da rela-ção entre o cidadão e o Estado na democracia, ainacessibilidade ou, dito de outra forma, a indis-ponibilização da justiça, retrata a própria delimita-ção das relações sociais e de poder assimétricas declasses e grupos em relação ao Estado – as desi-gualdades sociais. Esse elemento forma o terceirodescompasso da cidadania no Brasil.

O processo histórico brasileiro de afirma-ção dos direitos volta-se tanto em direção à suaampliação (a luta por mais direitos), como à suaabrangência ou universalização (inclusão de maispessoas e grupos sociais), tendo sido a titularida-de de muitos estendida a grupos (a extensão dacapacidade processual de agir), ou atribuída a su-jeitos diferentes do homem (animais, natureza,ambiente). Nesse sentido, dos direitos individu-

ais passou-se aos direitos sociais e também aosdifusos. Entretanto, não foi pelo simples fato de aConstituição de 1988 ter incorporado os novosdireitos, modernizando-se, que se garantiu a re-versão das práticas de injustiça, pois se vive emmeio a sistemáticas violações ou privações dos di-reitos, restringindo-se o papel da justiça como es-fera de distribuição de interesses e resoluções deconflitos (coletivos ou individuais) e persistindocomo fonte das desigualdades (Laniado, 2001a).

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a lutapor direitos se confunde com a busca de amplia-ção da cidadania e da justiça social. Assim, surgeo projeto MPVR, com a diretriz de recriar, no es-paço público, um ponto de conscientização sobreo direito a ter direitos, a fiscalização de políticaspúblicas, a descentralização de serviços, etc. Mas,frente à demanda encontrada e à fraca percepçãodas comunidades carentes sobre direitos coletivose difusos, como já dito, o MPVR se viu forçado aredirecionar sua ação, mantendo o princípio dapopularização da justiça, possibilitando novas for-mas, políticas e jurídicas, que incentivem a auto-nomia e combatam a dependência burocrática, efocalizando as competências interpessoais e cole-tivas, ao invés de subordiná-las a padrões abstra-tos. Essas novas formas produziriam as condiçõesde enfrentamento das desigualdades assentadas emsexo, raça, qualidade de vida, consumo e outros,que, a seu modo, aprofundam a exclusão baseadana classe social. Trata-se, portanto, de ampliar aemancipação da sociedade como arena privilegia-da de resolução de conflitos, reduzindo o papelregulador do Estado em relação aos interesses so-ciais mais amplos (Sousa Santos, 1999).

A ação do MPVR intentou potencializar atendência de solucionar conflitos envolvendo-sediretamente com a comunidade, um modo bemdiferente daquele praticado pelos diversos órgãose agências no Brasil. Instalando-se no bairro, rela-cionando-se com a população, buscando firmarlaços de confiança e integração para captar as de-mandas de interesse público local, desenvolveutrabalhos parceiros e não intervenções limitadas,orientadas verticalmente ou conforme mecanismos

14 Como direito fundamental, o acesso à justiça encontra-se sedimentado na Constituição Federal, art. 5º, LXXIV,que incumbe o Estado a prestar assistência judiciáriaàqueles que comprovarem insuficiência de recursos paraassumir o ônus processual (advogados e custascartoriais), bem como no disposto no mesmo artigo 5ºda Carta Magna, inciso XXXV, que afirma não poder ojudiciário deixar de apreciar qualquer lesão ou ameaça aodireito, pois ele atua como instrumento garantidor dosdireitos fundamentais do cidadão e efetiva o controle doEstado pela sociedade (Silva, 1996).

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de tutela que caracterizam a “cidadania concedi-da” (Sales, 1994). Considerando-se que a percep-ção sobre os direitos é matizada pelo acesso à pró-pria justiça, bem como pela oferta dos serviçosparalegais, buscou-se identificar o entendimentoda população estudada sobre o desempenho dosdiversos órgãos que prestam serviços legais e oacesso a esses órgãos. As principais causas quemotivaram os entrevistados a procurar o projetoMPVR eram de natureza individual, relacionadasao direito tradicional e voltadas para a pessoa. Essaclasse de direitos perfez um total de 81,6% dosatendimentos do MPVR, cobrindo problemas daárea do direito de família. Já as questões relativasaos direitos coletivos somaram 18,1% do total deatendimentos, uma significativa diferença, confor-me se observa na Tabela 1.

Pode-se dizer que não há uma significativademanda dos chamados novos direitos, os coleti-vos. Saneamento básico, por exemplo, uma ques-tão que não é uma proposição de resolução indivi-dual, aparece com a insignificante participação de1%. Isso sugere a dificuldade de uma consciênciacívica no âmbito das demandas coletivas, haven-

do um predomínio dos direitos individuais civis,os quais, no Brasil, ainda não tiveram usufrutogeneralizado devido às condições da dinâmicainstitucional. Entretanto, é possível também afir-mar que a população desconhece a diversidadedos direitos promovidos pelo órgão ministerial,15

ou seja, o amplo espectro de interesses que po-dem ser tratados pelo Ministério Público, no queconcerne aos direitos difusos e coletivos contem-porâneos. Isso pode ser associado à baixa escolari-dade e ao padrão de renda da população dos bair-ros populares. Mas, por outro lado, a experiênciado projeto MPVR esclarece para além da comuni-dade dos bairros onde atuou. Isso porque a com-plexidade do campo de atuação do Ministério Pú-blico, desde 1988, torna-o, por vezes, difícil deentender, confundindo os cidadãos independen-temente do seu grau de escolaridade e renda.

Estudando mais de perto quem, na visãodos entrevistados, defende os direitos do cidadedão, apontaram, na relação de possíveis órgãos,primeiramente, os defensores dos direitos consti-tucionais,16 o Ministério Público (33,6%) e aDefensoria Pública (20,7%), seguidos de ServiçoAtendimento ao Cidadão (14,3%), polícia (12,8%),OAB (8,6%) e a televisão e outras agências e ór-gãos do governo (secretarias e autarquias), com 5%cada uma. Chama a atenção que 62,9% apontaramórgãos que prestam, de alguma forma, serviços deorientação jurídica legal (MPVR, Defensoria Públi-ca e OAB). Destaca-se, ainda, o percentual bastan-te relevante concernente à Defensoria Pública, quese apoia em um trabalho legal tradicional desen-volvido desde 1966. Quanto à alta indicação feitaao Ministério Público, por meio do MPVR, talvezesses dados reflitam a influência do atendimentodo projeto à população do bairro.

Procurou-se avaliar se os usuários busca-ram outro órgão para resolver o seu problema an-

RVPMouorucorpeuqroP-1alebaT

sovitoM N %

aicítnemilaoãsneP 24 9,24

serailimafsotnemidnetneseD 22 5,22

ronemedadrauG 01 3,01

edadinretapedoãçagitsevnI 6 1,6

1latotbuS 08 8,18

railimafaicnêloiV 6 1,6

SUSoicífeneB 2 0,2

edúasàossecaededadlucifiD 2 0,2

alocseeehcercmesagaV 1 0,1

ocisábotnemaenasedatlaF 1 0,1

sohnizivmocsamelborP 1 0,1

lanimircaxieuQ - -

aronosoãçiuloP - -

sortuO 5 1,5

2latotbuS 81 2,81

lareGlatoT 89 0,001

.3002,opmacedasiuqseP:etnoFsadidnetaseõtseuqsasadotsadatupmocmaroF:atoN

,sezevrop,oãdadicmueuqmeadideman,soiráusurop.sadnamedsasreviduereuqer

16 Os entrevistados podiam indicar mais de um órgão,totalizando 140 indicações.

15 Perguntados sobre quais eram as funções do MinistérioPúblico, os entrevistados informaram que ele atendia aquestões de família (36,5%), direitos do cidadão (21,1%)e meio ambiente (3,8%). Não souberam responder38,6%.

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17 Quinze respondentes buscaram outras agências parasolucionar uma ou mais questões de direitos antes derecorrerem ao MPVR. As agências mais indicadas foram:OAB (33,3%), Defensoria Pública (27,8%), delegacia ejuizado de menores (11,1% cada). Os motivos mencio-nados por não terem conseguido resolver os problemas,foram: demora/lentidão (33,3%), reencaminhamento(33,3%), falta de senha (13,3%), outros (20%).

tes de procurar o MPVR, e apenas 28,8% disse-ram que sim. Isso sugere estarem pouco habitua-dos a reclamar ou resolver questões de direitos, namedida em que o ambiente formal e moroso dosistema de justiça não estimula a procura para asolução de conflitos.17 Para Sadek (2001), são mui-tas as razões para o baixo recurso à justiça; maspode-se mencionar, principalmente, a descrençana lei e nas instituições judiciais, o que consolidauma visão de que os direitos são letra morta, poisnão são cumpridos. Para Sousa Santos (1999), oindivíduo de classe mais baixa recorre pouco aotribunal, seja em função de experiências negativasanteriores com a justiça, seja por não saber, namaioria das vezes, onde, como e quando contatarum advogado e, ademais, por se encontrar geogra-ficamente distante - nos bairros da cidade ou nasregiões mais afastadas - dos órgãos de justiça e dostribunais. Em condição de pobreza, a desigualda-de no recurso à justiça é acrescida do custo (advo-gado e custa do processo) que a mesma envolvepara o cidadão.

Entre as reclamações da população carente,além da demora e da burocracia, está o fato de, narealidade, haver uma indisponibilidade dos servi-ços, uma vez que o Estado não equaciona a ofertacom o grande número de demandas, disponibili-zando poucos profissionais para a assistência ju-rídica, o que provoca um grande represamento delitigiosidade, fazendo do cidadão comum um de-sigual para viver a democracia como igualdade einclusão perante a justiça. A engrenagem do siste-ma jurídico - por onde transitam delegado, pro-motor, juiz, defensor público, servidores e serven-tuários - é um complexo desconhecido da popula-ção, sobretudo entre os mais carentes, que passama perceber a justiça como um sistema inacessível,que não cumpre a sua finalidade, privilegiando afalta de confiança nas instituições que compõem o

seu sistema.Ainda assim, o cidadão parece entender que

é no âmbito das responsabilidades dos poderespúblicos que está a solução, já que, para melhoraro acesso à justiça, indicou como condições prin-cipais: recorrer ao MPVR (25%); procurar órgãosou sistema de justiça (12,5%) e o governo criarmais serviços disponíveis (7,1%). As condiçõesde ter dinheiro (5,4%) e recorrer a relações pesso-ais (3,6%) ocuparam uma fraca posição em relaçãoàs menções evocadas para solucionar o acesso àjustiça. Estes dados revelam um paradoxo, por-que descrevem condições que se referem tanto aopoder material do dinheiro (que falta às classesmais pobres) quanto ao recurso a relações pesso-ais para a solução de questões institucionais (umelemento tão valorizado na tradição da culturapolítica nacional). No geral, isso sugere que a mai-oria se ressente da incapacidade estatal para resol-ver problemas, argumentando como fatoresdeterminantes desde “tudo ser difícil e demorado

com a Justiça”, “a distância do centro urbano”(onde estão concentradas as agências provedorasdesses serviços), até a extensa e prolongada “buro-

cracia, corrupção e lentidão generalizada”, con-forme se observa nas declarações apresentadas aseguir:

“... A imagem da justiça é de morosidade e corrupçãoe, por isso, as pessoas têm medo de se expor e virar sómais um dado estatístico...”18

“Os órgãos que atendem são lentos e confusos; aexceção foi o Ministério Público, pois esse projetovem facilitando muito, indo aos bairros, sem custonenhum para a população...”19

A AÇÃO DO MPVR NA VISÃO DOS MORADO-RES DO BAIRRO

É importante cotejar os sentimentos e asimpressões da população atendida em relação aosserviços prestados pelo MPVR, pois o pronto aten-dimento e o grau de satisfação formam fatores re-

18 (Entrevistado 45)19 (Entrevistado 33)

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presentativos dos interesses dos cidadãos, na me-dida em que extrapolam o formalismo da legisla-ção e, ao aproximar-se da população, contribuempara transformar a ação em confiança. Pode-se di-zer que os moradores do bairro do Uruguai aten-didos pelo projeto avaliaram-no de forma muitopositiva, com 92,3% das respostas “excelente” e“bom”; outros 78,8% informaram que a experiên-cia ajudou a resolver seus problemas, permitindo-lhes, dessa forma, acesso à justiça, ainda que, para21,2%, as demandas não tenham sido soluciona-das. A percepção dos usuários sobre o atendimentodo MPVR pode ser ilustrada como segue:

“Esperei muitos anos até resolver meu problema; noônibus, a solução foi dada.”20

“Fez justiça porque resolveu problemas quedemoravam há anos, e em um mês tudo estavaresolvido...”21

“Me orientou e me encaminhou para um lugar ondeeu consegui advogado de graça e resolvi meuproblema...”22

“Tive com quem saber sobre os meus direitos parame proteger...”23

Como já dito, as demandas individuais in-duziram a mudança da proposta originária do pro-jeto MPVR. Ainda assim, não se pode dizer que oatendimento aos direitos difusos e coletivos sejamais importante que os individuais. A presenteanálise informa que o perfil das demandas enca-minhadas ao MPVR reforça o fato de que setoresda base da pirâmide social ganham consciência dosdireitos, que formam o lastro básico da cidadania,quando há mediação no espaço público e um equi-líbrio entre demanda e atendimento. SegundoHeller (1993), a cidadania se realiza no dia a dia;ela é processual e se edifica a partir da singulari-dade de cada cidadão. Com isso, criam-se as con-dições para que o indivíduo possa desenvolveruma consciência política plural e coletiva, convi-vendo com o outro no espaço público. Pode-sedizer, portanto, que o projeto MPVR produziu uma

pedagogia política, contribuindo para a constru-ção de um ethos comum. A novidade, nesse caso,não está atrelada tão somente à utilização de ca-nais inéditos de mediação no âmbito jurídico; onovo, em iniciativas tal como a do MPVR, estáassentado no objetivo de aproximar setores popu-lares, alijados ou ignorados, da arena judicial, for-çando o Estado e a sociedade a uma reordenaçãodo sistema de justiça, democratizando-o(Campilongo, 1997).

A cultura política brasileira coexiste com asheranças tradicionais do clientelismo e dopatrimonialismo, que afetam a democracia. O pri-meiro, por criar redes e mecanismos de alianças eprivilégios que impactam nos sistemas democráti-cos de participação e distribuição, produzindo ohibridismo institucional do qual nos fala Santos(1993). O segundo, por diluir as fronteiras entre opúblico e o privado, permitindo que o aparelhodo Estado seja apropriado por grupos de poderque se organizam ou de forma clientelística oucorporativa (Martins, 1994). Por conseguinte, háuma forte desigualdade na relação entre cidadãose Estado. Tende a predominar uma lógica de des-confiança (Renno Jr., 2000; Santos, 1993), quedeságua em dificuldades para o fortalecimento dasrelações interpessoais nos sistemas de troca mo-dernos e na relação dos indivíduos com as insti-tuições, refletindo-se na conformação de uma so-ciedade pouco solidária ou influenciada pelofamilismo amoral, como analisado por Reis (1995).Essa lógica da desconfiança parte da premissa queo indivíduo, no âmbito cultural e institucional,não é estimulado a solucionar as tensões e os con-flitos diários na esfera pública. Para avaliar essadimensão da relação entre cultura política e justi-ça, investigou-se o grau de confiabilidade da po-pulação do bairro do Uruguai em relação a algu-mas instituições ou lideranças, conforme os da-dos do Gráfico 4.

Pode-se dizer que a confiança é um elemen-to de conteúdo da ação social diretamente relevan-te para a cultura política, pois condicio-na a moti-vação dos indivíduos, seus objetivos ou desejos,em direção aos outros e às próprias instituições

20 (Entrevistado 6)21 (Entrevistado 12)22 (Entrevistado 23)23 (Entrevistado 35)

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sociais. Por outro lado, uma acentuada desconfi-ança é reveladora de uma anomia, ampliando ocampo das incertezas e reduzindo a cooperaçãosocial, o que repercute nas condutas e decisões nacomunidade ou nas decisões políticas (Laniado,2001a). É justamente o espectro da confiança naesfera pública que se procurou captar em relaçãoaos entrevistados. Como se vê acima, confia-se maisna família (90,4%), a instituição da proximidadeinterpessoal que ordena o cotidiano dos indivídu-os, assentada na afetividade e no vínculo de confi-ança. Para Carvalho (1999), esse aspecto pesa nacultura política nacional, pois os brasileiros sóconfiam na casa e, fora dela, somente nos religio-

sos. Já a confiança nos vizinhos é de apenas 36,5%,com um grau de desconfiança de 23,1 pontospercentuais. Tais dados ajudam a compreender,de maneira mais clara, os baixos níveis associativosaqui encontrados, na medida em que os laços en-tre os cidadãos se revelam mais frágeis e, portanto,indicam que as chances de envolvimento com as-suntos de natureza coletiva são menores.

O nível de confiança nas igrejas e líderesreligiosos é alto, 82,7%. No bairro do Uruguai, háuma simpatia da população pelas igrejas, seja soba influência do padre da Igreja dos Alagados, quetem um trabalho comunitário no local, seja em ra-zão da disseminação das igrejas evangélicas. O Mi-nistério Público, através do MPVR, obtém o tercei-ro lugar, com 76,9% de grau de confiança, o queexpressa o reconhecimento daquela iniciativa para

dar à população acessoà justiça. No que se re-fere aos representantesdo executivo (governa-dor e prefeito) e dolegislativo (deputados evereadores), atores fun-damentais nos governosrepresentativos, elescontam com um nívelmuito baixo de confian-ça - apenas 9,6% cadaum. Ao mesmo tempo,registra-se um alto graude desconfiança em re-lação a eles:25 para o exe-cutivo, uma desconfi-ança de 61,5%, e parao legislativo de 63,5%,sinalizando um desgas-te dessas instituições,do ponto de vista dasua representatividadepolítica e legitimação

24 As instituições e(ou) lideranças foram avaliadas de 1 a10, segundo o grau de confiança. Aplicou-se a média.

Gráfico 4 - Grau de confiança

Fonte: Pesquisa de campo, 2003.24

25 O baixo grau de confiança nos políticos aparece emquase todas as pesquisas. Como exemplo, a pesquisa:Lei, justiça e cidadania, de Pandolfi (1997), que tambémse refere a dados do IBOPE de 1988 e 1999.

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pela população.A confiança nas lideranças políticas é me-

nor do que nas instituições de segurança pública.Dessas, a polícia militar obtém 23,1% de confian-ça e a civil (delegacia de polícia) 15,4%. A Defenso-ria Pública alcança uma taxa de confiabilidade bas-tante satisfatória: 44,2% confiam e 46,2% confiamem termos, uma taxa de avaliação global de 90,4%.O empregador ou patrão goza de um grau reduzi-do de confiança entre os entrevistados: 21,2%.

O grande índice de desconfiança manifesta-do em relação às instituições e lideranças é umindicador de risco no processo de consolidaçãodemocrática, pois reflete um distanciamento doscidadãos em relação aos órgãos públicos, à partici-pação política, deixando espaço para a manuten-ção do caráter híbrido da cultura política brasileira(entre o formal e o informal, entre o universal e oparticular), conforme Santos (1993). No entanto,sabe-se que, mudando as instituições, pode-semudar a prática política, renovando valores e cri-ando recur-sos democráticos para o funcionamen-to satisfatório das mesmas (Putnam, 2000). A ex-periência que o MPVR, na micro esfera da demo-cratização da justiça, orienta-se nesse sentido, jáque 96,1% afirmaram que o projeto trouxe benefí-cios para a comunidade, por meio de maior aces-sibilidade à justiça (55,9%), informação e conheci-mento (23,5%) e proximidade do cidadão (16,2%).Isso demonstra que há uma potencialidade do aten-dimento da justiça para reduzir a desigualdadesocial. As seguintes falas ilustram o espectro denecessidades que direcionam o cidadão para abusca por justiça:

“Tem ainda muitas pessoas que não tiveramoportunidade de serem atendidas para resolver seusproblemas. Muitas mulheres, inclusive, que nãotiveram coragem e precisam ainda de ajuda...” 26

“Tem muitas mães que precisam dos alimentos enão têm dinheiro nem roupa para procurar oMinistério Público ou a defensoria na cidade...”27

“Muita gente ainda precisa desse atendimento[MPVR] e não pode ir onde o Ministério Públicoestá...”28

“Iria incentivar outras pessoas a comparecer, eesclarecer sobre seus direitos. O MPVR abriu as portaspara resolver problemas jurídicos de muita gente.As pessoas sentem falta até hoje...”29

À GUISA DE CONCLUSÃO

No Brasil, é fato que os direitos estãopositivados e reconhecidos na Constituição Fede-ral, embora poucos deles estejam efetivamentepostos no cotidiano. Pode-se dizer que ainda seencontra largamente disseminada uma demandapor justiça nos seus aspectos básicos universa-lizantes, relativa à distribuição de bens primáriosdos direitos modernos. A ação do Ministério Pú-blico, por meio do MPVR, conquanto tenha a for-ma de uma realocação do atendimento da justiçafora dos seus espaços convencionais, apoiada emuma ação focalizada dessa agência do sistema dejustiça, mostra, com considerável importância, ajustiça como meio de inserção social. Não que oatendimento básico oferecido possa caracterizarmudanças significativas na condição de desigual-dade em que se encontra uma população como ado bairro do Uruguai, como tantos que há no Bra-sil. Mas, a ação do MPVR, certamente, está emconsonância com o feitio de maior peso para a re-alização da cidadania hoje, o da inclusão social.Para Fitoussi & Rosanvallon (1996), é importanteconceber a inclusão, na democracia contemporâ-nea, como o acesso direitos novos a serem con-quistados para além dos direitos tradicionais dasliberdades e crenças. O vazio de justiça básica noBrasil contemporâneo permite incorporar a essanoção a da própria expansão dos direitos básicosainda não realizados, o que, para contingentes enor-mes de populações no mundo moderno, ainda re-

28 (Entrevistado 24)29 (Entrevistado 38)

26 (Entrevistado 6)27 (Entrevistado 8)

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presenta uma conquista, tardia, de algo velho, queainda é, infelizmente, novo para tantos.

(Recebido para publicação em maio de 2004)(Aceito em junho de 2004)

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