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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS FACULDADE DE HISTÓRIA CURSO DE HISTÓRIA - LICENCIATURA Cidadania e Multietnicidade: a Noção de Pertencimento e as Arengas Militares na Escrita de Xenofonte Eduardo Alves Garcia Porto Alegre 2015

Cidadania e Multietnicidade: a Noção de Pertencimento e as

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Page 1: Cidadania e Multietnicidade: a Noção de Pertencimento e as

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS

FACULDADE DE HISTOacuteRIA

CURSO DE HISTOacuteRIA - LICENCIATURA

Cidadania e Multietnicidade

a Noccedilatildeo de Pertencimento e as Arengas Militares

na Escrita de Xenofonte

Eduardo Alves Garcia

Porto Alegre

2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTOacuteRIA

CURSO DE HISTOacuteRIA - LICENCIATURA

Cidadania e Multietnicidade

a Noccedilatildeo de Pertencimento e as Arengas Militares

na Escrita de Xenofonte

Eduardo Alves Garcia

Trabalho de Conclusatildeo de Curso apresentado agrave

Comissatildeo de Graduaccedilatildeo do Curso de Histoacuteria -

Licenciatura da Faculdade de Histoacuteria da

UFRGS como requisito parcial e obrigatoacuterio

para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Licenciado em

Histoacuteria

Orientador Prof Dr Anderson Zalewski Vargas

Porto Alegre

2015

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AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo primeiramente agrave minha matildee que sempre mostrou interesse por este

trabalho assim como pelo resto das coisas importantes da minha vida

Tambeacutem aos meus colegas de trabalho do CSTI que ouviram muito sobre retoacuterica

mesmo que involuntariamente

Natildeo poderia esquecer o Allejandro a Ket e a Carol ndash os quais por conveniecircncia sorte

ou acaso constituem uma famiacutelia para mim e que acompanharam de perto minhas noites em

claro na formulaccedilatildeo deste trabalho

Tambeacutem ao meu orientador pelo auxiacutelio e pela inspiraccedilatildeo e agrave minha tia Carla que de

forma muito disposta me auxiliou com todo esmero natildeo poupando esforccedilos ndash mesmo que de

tatildeo longe ndash em me dar o amparo que precisei com urgecircncia

Por fim um agradecimento especial para Amanda meu grande amor ndash com quem

compartilho a paixatildeo pelas letras e pelo absurdo e quem me proporcionou apoio incondicional

na elaboraccedilatildeo desta pesquisa revisando todo o trabalho e me auxiliando ao longo da produccedilatildeo

deste Devo a realizaccedilatildeo deste trabalho principalmente ao seu carinho que sempre me serviu

de estiacutemulo para continuar

4

RESUMO

O presente trabalho tem a finalidade de determinar a noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio

recorrentes nas arengas militares presentes na escrita de Xenofonte (430ndash354 aC) Tal estudo

utiliza como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por

membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema valores a cidadania e as

arengas voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de diversas culturas

Eacute aplicada uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de autoria de Xenofonte

Anaacutebase e Ciropedia O emprego de tal metodologia consiste em destacar diferenccedilas teacutecnicas

como artifiacutecios retoacutericos e identificar nuacutecleos argumentativos para discernir nas diferenccedilas a

influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nos discursos A importacircncia da retoacuterica nesta pesquisa

tambeacutem se atribui ao fato de que a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo eacute composta com

bases em tal arte da persuasatildeo que influenciara a literatura da eacutepoca

Palavras-chave arenga militar Xenofonte retoacuterica historiografia

5

ABSTRACT

This research aims to determine the notion of belonging in a community recurrent in pre-

battle speeches present in Xenophonrsquos (430-354 BC) texts The method used in this study is a

comparison between pre-battle speeches addressed to an audience of members belonging in a

community who share the same value system and same citizenship and the pre-battle speeches

addressed to a multi-ethnic audience where members come from different cultures It applies

a comparative analysis of the rhetoric between two of Xenophonrsquos writings Anabasis and

Cyropaedia The method consists of pointing out technical differences such as rhetorical

artifices identifying the crux of the arguments in order to discern in the speeches especially

with their differences the influence of the notion of belonging The importance of the rhetoric

in this research is also due to the fact that the historiographic tradition of the Ancient World is

based in this art of persuasion which influenced the literature at the time

Keywords pre-battle speeches Xenophon rhetoric historiography

6

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase 37

Tabela 2 ndash Arengas Militares da Ciropedia 59

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnicas 67

7

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 9

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA14

21 A Retoacuterica 14

22 Retoacuterica e Historiografia19

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica 20

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO 23

31 Xenofonte 23

311 Obras com Narrativas Histoacutericas25

3111 Anaacutebase 26

3112 Ciropedia 26

3113 Hellecircnica 27

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia 28

33 Identidade Helecircnica 30

34 Cultura Militar 31

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE 33

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo 33

42 As Arengas Militares na Anaacutebase 36

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro 38

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase 39

423 Arenga III ndash Anaacutebase (1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto) 40

424 Arengas IV e V ndash Anaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1 ndash Emissor Xenofonte41

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase 43

425 Arengas VI e VII ndash Anaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2 ndash Emissor QuisriacutesofoCleanor 44

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase 45

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 45

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase 49

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte52

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase 52

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 53

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase 53

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 54

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase 54

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 55

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase 56

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 56

8

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57

43 Arengas Militares na Ciropedia 58

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65

433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66

434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67

44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73

9

1 INTRODUCcedilAtildeO

A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na

base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica

da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC

com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou

resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os

generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de

enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo

Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de

exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do

auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para

motivaacute-los nas lutas de determinada batalha

Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente

de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes

ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos

princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente

devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e

historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)

Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares

e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos

discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan

Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa

destacando

Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso

presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le

antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos

constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en

apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten

maacutes (ZOIDO 2007 p 22)

Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma

diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense

Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de

10

ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por

ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito

transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte

Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo

tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo

profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo

militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento

perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua

vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou

para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde

dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios

gregos (JAEGER 2010 p 1215)

Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte

sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise

Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja

as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa

O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a

respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a

presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no

conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que

a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o

que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no

decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas

poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as

democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte

asiaacutetica

Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da

identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de

pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas

reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o

corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico

por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo

prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da

historiografia do mundo antigo

Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um

auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em

11

seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com

membros provindos de diferentes culturas

Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica

desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das

arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios

retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a

um auditoacuterio multieacutetnico

A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem

eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de

401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a

finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo

vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados

em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de

volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o

Grande fundador do Impeacuterio Persa

A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de

exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio

formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute

constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se

trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a

historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees

De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no

Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no

acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo

em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave

negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar

metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma

relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro

da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja

a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo

1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre

diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade

tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos

Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)

12

tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da

Escola do Annales Barros nota que

Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de

conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores

como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem

comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo

de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que

analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a

considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de

singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)

Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que

abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo

antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca

(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio

Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La

diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda

Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo

Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um

tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa

sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos

se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta

de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para

entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e

historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)

O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash

constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado

pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a

primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha

pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em

respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

(ZOIDO 2007 p 32)

De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute

dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o

Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as

novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com

13

os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa

pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores

gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas

militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees

preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por

fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que

consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas

primeiras partes desse trabalho

14

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE

CLAacuteSSICA

A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde

aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do

pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam

para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular

Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a

definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a

ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos

acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos

referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje

21 A Retoacuterica

A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica

do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de

Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o

fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de

ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)

Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis

que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)

O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-

se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia

qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos

das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)

Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a

forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada

narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo

do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do

orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da

coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES

Retoacuterica 1 3 1358b)

15

A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia

(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de

apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo

pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor

das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os

sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos

tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam

advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os

sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal

Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta

mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave

retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva

considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a

cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta

pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a

adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila

A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus

contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente

por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser

capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para

por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de

argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute

vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo

houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio

ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)

Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum

discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo

como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a

comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou

emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade

estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se

sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se

transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003

p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de

certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo

16

Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um

importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a

retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se

baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade

grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o

bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na

retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte

Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados

y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la

oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica

claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que

describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)

A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora

princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica

Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da

existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo

republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em

assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam

para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia

de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no

senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento

para aquisiccedilatildeo de influecircncia

Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus

clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano

(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de

sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos

discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu

Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica

orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma

participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se

representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute

centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja

devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser

reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto

conforme Reboul novas perspectivas surgem

17

Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas

democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o

testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc

(REBOUL 2004 p 76)

Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai

preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O

cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina

religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo

para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma

atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as

passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio

entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem

duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se

tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca

A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois

tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos

vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os

responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes

que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de

evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para

insinuar falsas ideias no espiacuterito

No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis

pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em

nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada

vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica

em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute

a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo

(REBOUL 2004 p 81)

Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso

na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda

e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de

indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a

esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de

possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer

18

do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do

apoio massivo da populaccedilatildeo

Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de

diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash

protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave

anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos

ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma

retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)

Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma

interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas

que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por

representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais

importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os

tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim

classificando diversos tipos de argumentos

Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e

Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de

um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os

juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram

por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)

Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia

que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute

que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua

classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica

Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica

originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor

da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2

Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram

atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim

como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De

maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de

manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim

2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo

19

vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter

ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para

Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo

que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define

retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo

(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores

que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a

medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da

distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)

Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la

mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por

meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila

entre os indiviacuteduos

Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se

retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas

que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito

do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo

proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma

retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e

se confirma (MEYER 2007 p 26)

Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele

atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito

de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a

argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta

apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)

Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da

problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide

Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira

[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos

trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso

para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito

e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-

resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases

(MOSCA 2007 p 9)

22 Retoacuterica e Historiografia

20

Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela

retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma

pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal

arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou

exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a

importante observaccedilatildeo de Zoido

Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir

em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso

historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para

persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores

pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica

emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica

(ZOIDO 2007 p 67)

Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos

historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura

Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias

concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia

como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos

autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela

tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do

Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e

sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se

servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo

Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as

conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos

retoacutericos

Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y

particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico

haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por

tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues

quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos

ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica

Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os

de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma

21

forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos

de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos

de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido

amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal

diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais

que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel

acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante

notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a

um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o

historiador

Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga

Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente

ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute

mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte

eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-

se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos

retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato

Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de

exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse

respeito afirma que

Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el

marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las

eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la

evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y

historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)

Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo

justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo

inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave

literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as

diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra

de uma morte gloriosa

Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)

como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess

enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo

de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus

apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la

22

elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la

retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)

No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande

entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico

Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric

antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de

las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla

historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)

Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares

protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a

polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os

principais autores em debate

Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras

que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el

general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel

utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)

Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram

realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do

testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the

Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de

Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de

pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior

enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de

argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto

O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos

tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia

contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa

que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais

discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo

23

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO

31 Xenofonte

Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC

pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer

em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua

juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua

personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras

Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas

no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo

aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se

evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que

adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha

declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves

concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates

Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que

rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes

Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o

encontro de Xenofonte com Soacutecrates

Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-

lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos

Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam

excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo

e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)

Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo

o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma

passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e

publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis

Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa

filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na

composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se

junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu

irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento

3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar

um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta

24

resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio

hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas

obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de

personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e

para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)

Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central

Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei

Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos

lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os

baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei

de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens

em Atenas

O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos

historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no

afastamento de suas respectivas paacutetrias

Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados

voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes

que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido

Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta

circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no

fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten

ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones

exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de

um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)

O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma

propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal

conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de

agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse

histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo

(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana

ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e

Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever

4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu

significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho

pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais

educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed

Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)

25

Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave

multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um

apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio

que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador

entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre

uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do

tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador

de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da

escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo

de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha

aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)

Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para

acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para

verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais

se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um

dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante

na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de

novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em

Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do

gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos

santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em

favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo

Medina

Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O

Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da

CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A

Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos

seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um

testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez

e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)

311Obras com Narrativas Histoacutericas

26

Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado

a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus

elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm

sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC

3111Anaacutebase

Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha

militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar

Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o

antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o

interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os

mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa

A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs

as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas

durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum

o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado

grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da

parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes

pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu

Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes

poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os

exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no

entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo

eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de

atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes

3112Ciropedia

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras

gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem

enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia

de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro

comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas

conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do

acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo

27

possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica

Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal

como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do

seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom

comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)

Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se

corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira

poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas

correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o

governante

O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas

como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra

daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso

ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado

nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p

85)

Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria

dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p

1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo

paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma

referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar

riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre

os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes

guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute

uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia

Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade

na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de

Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da

Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha

proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo

3113Hellecircnica

Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se

passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do

28

ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431

aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento

A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o

mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009

p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque

criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente

admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia

Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado

independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se

um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a

coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da

Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais

com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e

ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6

cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7

Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como

em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma

no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa

forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas

O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia

da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento

poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e

de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma

divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das

foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando

pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem

diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate

contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige

como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois

partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a

forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos

oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)

5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado

em batalha

29

Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em

assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas

levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa

caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra

em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de

influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade

Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse

expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de

pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas

reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo

com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas

quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma

elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da

retoacuterica no periacuteodo

Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como

explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato

deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue

o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos

perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade

caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a

comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela

instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis

Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de

um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma

forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento

de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a

fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da

comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da

populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma

formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou

ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas

8 Identificado pelo termo grego Isegoria

30

De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma

classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de

vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal

como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida

regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo

pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)

33 Identidade Helecircnica

Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania

costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute

importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham

membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma

mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o

tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas

caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo

momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados

com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato

recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade

helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos

O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas

nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra

natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido

dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o

quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a

mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados

por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute

bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o

responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos

do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos

templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes

natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o

ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos

para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e

bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis

subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis

fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo

aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando

novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-

lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)

31

Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em

relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos

sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com

os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao

contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio

grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar

agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo

de alteridade para com os baacuterbaros

Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da

Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de

reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade

sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle

sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de

um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos

como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)

34 Cultura Militar

A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o

advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha

Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os

soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de

batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes

heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns

Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda

modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir

uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da

cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo

modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a

formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual

ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua

posiccedilatildeo dentro da falange

Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura

necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo

9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as

liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo

32

compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de

sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees

cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave

imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas

sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a

braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma

mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais

manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para

proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua

esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem

comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)

Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na

guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e

escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na

cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do

cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos

eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)

De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de

guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os

imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No

entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que

soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC

33

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE

Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo

militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se

como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por

membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e

as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de

diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de

Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na

composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o

papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal

personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais

oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser

comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos

A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos

de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos

um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa

ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre

uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo

a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia

em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de

metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e

baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia

algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes

religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo

Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos

argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a

finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte

Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do

loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce

no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos

34

eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do

auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as

estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio

Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns

referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas

consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos

de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts

Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)

A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute

persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado

discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do

orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute

se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo

lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas

peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a

ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao

tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees

como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees

propostas por este trabalho

Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo

preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL

2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a

disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos

Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para

persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema

criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)

O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato

passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos

dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma

determinada identidade presente em ambos

P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades

P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo

35

faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem

seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)

O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada

conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A

entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A

utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que

natildeo se mostra expliacutecito

() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a

atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito

de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos

ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar

com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se

confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa

uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E

no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter

problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)

No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os

argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A

identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum

tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o

argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a

analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e

realidade

Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da

problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior

sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de

forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica

Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo

discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do

estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido

(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen

und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas

militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos

eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias

diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade

36

sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a

comunidade

dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da

superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo

estrateacutegica

endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo

ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares

Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso

em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de

importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da

que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de

satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de

possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos

Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate

Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)

anterior ao combate

Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem

indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)

Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode

tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito

Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate

Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate

42 As Arengas Militares na Anaacutebase

A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de

acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p

537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico

o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais

discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino

37

Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa

atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela

tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus

emissores como demonstrado na seguinte tabela

Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 173-4 1 Ciro

2 176-7 1 Ciro

3 1812 4 Ciro

4 3115-26 1 Xenofonte

5 3135-45 1 Xenofonte

6 322-3 2 Quiriacutesofo

7 324-6 2 Cleanor

8 328-32 2 Xenofonte

9 3234-39 2 Xenofonte

10 3446 4 Xenofonte

11 4814 4 Xenofonte

12 5419-21 2 Xenofonte

13 6312-18 2 Xenofonte

14 6323-4 4 Xenofonte

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase

Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves

caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute

possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados

apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de

observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto

pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos

emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas

expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute

autor apenas das trecircs primeiras arengas

10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957

Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash

seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco

de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu

38

Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do

priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos

generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve

um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um

consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar

do trono do Impeacuterio Aquemecircnida

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro

I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-

vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como

sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas

Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme

e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de

vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-

vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar

inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu

lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra

Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem

pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do

perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute

raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o

fazer ao que satildeo de desmesurados

II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor

toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do

frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo

Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu

medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai

tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma

coroa de oiro

39

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase

No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e

sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro

Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento

presente no conjunto de valores helenos

Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como

gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens

helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que

represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra

deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do

discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores

Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela

liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a

sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a

liberdade

O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos

baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos

isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de

acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade

entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela

qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta

ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de

questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste

caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado

para uma comunidade grega

No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir

qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a

preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos

em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao

perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas

11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original

40

fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para

obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos

anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash

isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a

possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo

de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica

de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no

iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō

aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas

homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o

proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo

aos outrosrdquo

Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo

bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era

inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma

identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria

inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu

auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o

auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de

batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute

diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos

esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma

maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente

foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de

atingir os reais valores do auditoacuterio

423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)

Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro

persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei

12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados

41

III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa

A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada

aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica

424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor

Xenofonte

IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho

diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo

natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se

por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a

cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte

imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou

mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte

infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o

guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que

vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me

inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da

terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir

quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens

senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os

juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me

mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que

implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que

esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses

declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios

enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos

Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela

compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos

trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso

braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do

que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo

percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais

13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo

42

ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais

valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde

voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus

poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades

Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-

no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio

V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo

prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar

armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema

pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-

nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os

soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como

cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os

exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa

obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em

tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra

tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for

necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute

prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes

nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede

do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute

reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como

eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se

dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de

distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente

com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal

que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na

guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra

sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e

inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo

salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a

morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas

probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e

43

provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos

outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase

Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no

conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de

mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete

ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as

principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar

que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento

acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a

exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos

de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua

sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as

arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas

ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de

Tipo 4

Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer

a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem

sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave

arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se

apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO

2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja

ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo

O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de

expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave

traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo

sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os

baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os

capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E

como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil

tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o

44

segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a

debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais

aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera

mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom

a ajuda dos Deusesrdquo

Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz

parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam

implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos

os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos

deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva

uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte

incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo

425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor

QuisriacutesofoCleanor

VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples

camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu

ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como

gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a

fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro

A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno

VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem

patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de

vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou

prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos

enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que

trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu

sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se

para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os

14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo

15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros

45

Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra

eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase

Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de

tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por

Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por

Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte

vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas

relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos

aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o

elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso

de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que

ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor

Xenofonte

Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que

pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela

indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco

haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o

discurso nestes termos

VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem

inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles

necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos

capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela

Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos

com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria

Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram

graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou

16 στρατηγός no texto original

46

Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos

augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos

outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles

que estiverem de acordo ergam o braccedilo

Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave

Divindade Xenofonte prosseguiu

Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos

observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os

nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto

que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os

humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que

correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos

comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que

prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir

Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a

Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar

nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que

tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o

inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova

consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo

reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate

em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a

ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para

colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo

e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a

natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a

bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito

numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave

traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem

17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor

47

Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam

com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum

de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere

que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa

batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas

O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem

de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas

inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar

de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais

certeza de pocircr o corpo no seguro

Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou

Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com

a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os

mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse

Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas

da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E

quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los

onde os haacute e quantos nos decirc na gana

Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante

Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a

noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais

em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem

impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo

satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui

fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo

vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la

e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa

terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande

empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta

domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos

Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se

de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a

48

ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade

e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer

e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o

caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para

mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta

terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador

Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova

leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu

Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for

preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o

passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As

tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor

Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que

combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas

linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm

nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e

em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje

Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou

Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais

importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades

senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos

superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de

causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes

que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do

que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir

deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que

nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que

20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras

deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo

49

aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha

ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos

Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso

que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte

acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram

Xenofonte voltou entatildeo a dizer

IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se

discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer

que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito

me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda

semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e

deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso

eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a

impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute

nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos

que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse

E como todos se calassem desassombradamente proferiu

Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda

pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e

Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as

alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale

Ningueacutem o contraditou e concluiu

Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute

dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida

que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer

aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do

vencido

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase

50

O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e

com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo

mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees

pertinentes

Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o

nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a

exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem

ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo

Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto

pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]

Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso

Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio

possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata

do sacrifiacutecio de animais aos deuses

O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas

de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da

identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo

porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo

da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com

um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo

Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos

juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam

costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador

tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio

Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria

especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo

costumerdquo 22

Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis

edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a

qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e

os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses

22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um

dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da

paacutetria em ocasiotildees preacutevias

51

decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana

[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel

encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em

seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a

Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte

restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em

que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem

dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita

quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando

baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do

exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras

Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em

tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os

antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das

premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade

Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a

identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que

enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo

Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em

primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois

afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a

participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer

venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de

todosrdquo

Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente

compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos

a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel

estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo

ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as

canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um

animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir

Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a

relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda

de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por

exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o

52

fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem

duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam

uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida

(MEYER 2007 p 26)

Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente

natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que

sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar

Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]

que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim

do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero

epidiacutectico

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos

X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia

vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma

- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata

e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola

Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para

fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase

A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel

fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo

motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada

pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de

sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para

optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo

arranco23

23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois

no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante

deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda

53

Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo

dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e

para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de

valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave

sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga

tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o

fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo

Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado

criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada

por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do

cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo

com o restante da tropa

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los

em estilhas

()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo

dobrado

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase

O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um

uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a

premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em

estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel

Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute

fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos

reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN

TYTECA 2004p 302)

existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na

Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos

54

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e

aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os

grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os

companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via

disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse

XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que

ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os

Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram

com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem

podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se

afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila

connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente

diversa daquela com que se mediram haacute pouco

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase

Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que

poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a

devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante

constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e

exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)

que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute

por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a

cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo

Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas

principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus

proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus

argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias

reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem

castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade

55

em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso

por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua

companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele

incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que

pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas

agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a

vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o

inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar

de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute

estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso

acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das

tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a

certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo

tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma

oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte

sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado

dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar

salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que

natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a

cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de

tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de

maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que

nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos

para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da

vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em

jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante

Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade

toda e armasse tendas onde lhe desse gana

56

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase

O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o

inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela

exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja

buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que

julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos

No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta

a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como

ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a

agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para

oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar

um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de

acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)

O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo

algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis

ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem

recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem

de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada

O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a

respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de

pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no

discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador

todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com

integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade

entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se

todos pertencessem agrave mesma comunidade

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes

sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate

57

Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos

chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos

ouvirem contar os feitos que praticastes

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase

A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash

ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em

consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim

como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do

uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da

seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns

pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar

os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute

a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que

busquem a noccedilatildeo de pertencimento

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase

Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma

constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a

ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros

De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo

da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)

Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica

enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte

De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos

de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute

negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar

coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave

Greacutecia

24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)

58

Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios

retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a

distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os

baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais

possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o

orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que

todos pertencem a uma mesma comunidade

Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a

sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o

impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda

agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)

Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de

exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto

quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves

divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta

explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente

que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-

se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma

autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute

expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois

ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante

seus pares

Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por

sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade

43Arengas Militares na Ciropedia

A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem

de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p

59

537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no

quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1

Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 157-14 1 Ciro o Grande

2 2111 1 Ciro o Grande

3 2114-18 2 Ciro o Grande

4 232-4 2 Ciro o Grande

5 323-6 1 Ciro o Grande

6 3334-9 1 Ciro o Grande

7 3341-2 1 Ciro o Grande

8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios

9 3359 5 Soldados Persas

10 3361-2 5 Ciro o Grande

11 411-6 6 Ciro o Grande

12 4221-6 1 Ciro o Grande

13 6214-20 1 Ciro o Grande

14 6413-20 1 Ciro o Grande

15 7110-14 4 Ciro o Grande

16 7519-24 1 Ciro o Grande

Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia

Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2

podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a

obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso

ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo

que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma

grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou

seja as proferidas apenas aos capitatildees

Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada

pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um

25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo

Claacutessicos Jacson)

60

de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga

militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto

oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande

motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal

praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a

batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja

A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores

Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram

que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui

eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar

- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por

ventura nova coragem

- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais

elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons

arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco

uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio

preliminar

- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo

- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha

de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a

arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de

maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da

fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo

humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma

existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias

Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o

valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o

germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder

triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam

pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e

ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se

exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a

necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-

ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta

virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico

um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)

O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre

irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da

obra quatorze arengas

Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe

aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a

exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)

61

No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois

os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou

seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo

como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para

que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da

polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo

extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo

em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em

ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista

notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim

mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande

Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por

seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso

I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a

vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis

em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por

que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma

virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26

Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles

que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele

jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos

para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre

a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a

penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e

prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos

envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de

sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos

e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de

26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)

62

ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena

parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a

infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei

pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o

epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir

uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo

podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que

se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que

esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que

hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo

contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os

trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees

no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e

mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem

aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais

incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais

exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado

desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute

sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos

inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto

confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos

tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que

romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais

justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes

um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta

exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come

todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e

reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com

meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos

faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade

63

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia

Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-

comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de

comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos

pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade

devido agrave melhor formaccedilatildeo militar

Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a

resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera

rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como

tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes

CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de

comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra

Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia

considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso

conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha

enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de

gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis

fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos

O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que

os deuses satildeo favoraacuteveis

Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo

se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave

volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais

CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena

confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves

divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as

grandes quer as pequenas

O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo

AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente

puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses

Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre

CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos

persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence

Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e

nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar

os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos

Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um

importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte

utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que

Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar

cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa

64

cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o

reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer

O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio

irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem

a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal

Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN

TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma

Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar

espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se

entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute

gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois

de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei

ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que

depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria

deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e

estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se

poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para

motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate

mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um

grupo multieacutetnico

De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a

uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel

que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha

com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo

com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir

Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer

a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite

liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo

militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)

Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de

identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter

epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos

verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente

duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis

de Ciro que antecede a batalha de Sardes

65

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios

VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar

pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas

mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto

ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos

Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do

inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem

estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais

fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois

quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que

estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia

Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte

contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo

de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso

de pertencimento

Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas

vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia

do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses

valores

Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por

Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes

nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal

exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o

modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que

rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso

totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio

66

433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande

Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu

Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia

- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes

A outros

ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas

tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa

A outros

- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios

de possuir grandes bens mas dai provas de coragem

A outros

- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os

bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas

A outros

- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar

tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua

honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de

covardia ou de infacircmia

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia

Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se

trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a

totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a

exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga

extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro

O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de

pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso

explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1

67

Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um

padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as

arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista

de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes

de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e

antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica

- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a

pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 1124 2 Farnabazo

2 2413-17 3 Trasibulo

3 5114-17 2 Teleutias

4 7130 4 Arquidamo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27

Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes

palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de

olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era

quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e

crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre

todos os gregos

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica

Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio

do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante

lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No

entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras

de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim

27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu

68

Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como

nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um

discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel

Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias

metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo

literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte

Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da

Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no

corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante

regularidade

Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em

questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o

eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade

Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e

o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal

diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos

imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso

O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia

para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute

fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da

sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades

- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o

assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo

- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O

conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um

juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles

- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva

Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente

valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)

Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se

constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na

Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio

para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus

69

ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio

enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre

Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da

congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por

exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir

revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o

Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do

auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute

de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos

A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo

constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos

discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar

pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os

gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o

Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante

deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que

natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas

de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras

70

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos

discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por

Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em

perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos

detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que

esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou

ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso

definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o

pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()

Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila

atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as

arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o

Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria

de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o

Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos

que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los

Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra

personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de

Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao

longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em

questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador

Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio

natildeo eacute abolida

Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre

indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando

o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a

noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao

mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas

vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar

cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a

uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento

comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees

71

Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a

relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos

expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma

comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um

passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a

necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem

a uma mesma comunidade

A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia

verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que

formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas

virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite

compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um

auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal

como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um

estilo austero de uma vida militar

Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia

percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira

obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)

enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan

Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma

justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador

persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para

Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que

Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele

possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da

Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte

Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma

explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees

do autor em torno das arengas militares

De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um

discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo

aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que

almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta

72

para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo

de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir

um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo

Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da

histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas

epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras

Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise

retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a

necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua

sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal

A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos

interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno

da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu

muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio

para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas

possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema

73

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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puacuteblico Pensamentos poliacuteticos selecionados Satildeo Paulo Nova Alexandria 2000

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persas a la caiacuteda de Roma Silvia FURIOacute (trad) Barcelona Criacutetica 2012

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Parreira 4ordf Ed ndash Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

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KENNEDY GA La retoacuterica claacutessica y su tradicioacuten cristiana y secular desde la

Antiguedad hasta nuestros diasLogrontildeo Riojanos 2003

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XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo e Prefaacutecio de Aquilino Ribeiro

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ZOIDO Juan Carlos Iglesias The pre-battle speeches of Alexander at Issus and

Gaugamela Greek Roman And Byzantine Studies [si] v 50 n 2 p215-241 dez 2010

Disponiacutevel em lthttpgrbslibrarydukeeduarticleview1441gt Acesso em 02 out 2015

Page 2: Cidadania e Multietnicidade: a Noção de Pertencimento e as

2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTOacuteRIA

CURSO DE HISTOacuteRIA - LICENCIATURA

Cidadania e Multietnicidade

a Noccedilatildeo de Pertencimento e as Arengas Militares

na Escrita de Xenofonte

Eduardo Alves Garcia

Trabalho de Conclusatildeo de Curso apresentado agrave

Comissatildeo de Graduaccedilatildeo do Curso de Histoacuteria -

Licenciatura da Faculdade de Histoacuteria da

UFRGS como requisito parcial e obrigatoacuterio

para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Licenciado em

Histoacuteria

Orientador Prof Dr Anderson Zalewski Vargas

Porto Alegre

2015

3

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo primeiramente agrave minha matildee que sempre mostrou interesse por este

trabalho assim como pelo resto das coisas importantes da minha vida

Tambeacutem aos meus colegas de trabalho do CSTI que ouviram muito sobre retoacuterica

mesmo que involuntariamente

Natildeo poderia esquecer o Allejandro a Ket e a Carol ndash os quais por conveniecircncia sorte

ou acaso constituem uma famiacutelia para mim e que acompanharam de perto minhas noites em

claro na formulaccedilatildeo deste trabalho

Tambeacutem ao meu orientador pelo auxiacutelio e pela inspiraccedilatildeo e agrave minha tia Carla que de

forma muito disposta me auxiliou com todo esmero natildeo poupando esforccedilos ndash mesmo que de

tatildeo longe ndash em me dar o amparo que precisei com urgecircncia

Por fim um agradecimento especial para Amanda meu grande amor ndash com quem

compartilho a paixatildeo pelas letras e pelo absurdo e quem me proporcionou apoio incondicional

na elaboraccedilatildeo desta pesquisa revisando todo o trabalho e me auxiliando ao longo da produccedilatildeo

deste Devo a realizaccedilatildeo deste trabalho principalmente ao seu carinho que sempre me serviu

de estiacutemulo para continuar

4

RESUMO

O presente trabalho tem a finalidade de determinar a noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio

recorrentes nas arengas militares presentes na escrita de Xenofonte (430ndash354 aC) Tal estudo

utiliza como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por

membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema valores a cidadania e as

arengas voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de diversas culturas

Eacute aplicada uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de autoria de Xenofonte

Anaacutebase e Ciropedia O emprego de tal metodologia consiste em destacar diferenccedilas teacutecnicas

como artifiacutecios retoacutericos e identificar nuacutecleos argumentativos para discernir nas diferenccedilas a

influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nos discursos A importacircncia da retoacuterica nesta pesquisa

tambeacutem se atribui ao fato de que a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo eacute composta com

bases em tal arte da persuasatildeo que influenciara a literatura da eacutepoca

Palavras-chave arenga militar Xenofonte retoacuterica historiografia

5

ABSTRACT

This research aims to determine the notion of belonging in a community recurrent in pre-

battle speeches present in Xenophonrsquos (430-354 BC) texts The method used in this study is a

comparison between pre-battle speeches addressed to an audience of members belonging in a

community who share the same value system and same citizenship and the pre-battle speeches

addressed to a multi-ethnic audience where members come from different cultures It applies

a comparative analysis of the rhetoric between two of Xenophonrsquos writings Anabasis and

Cyropaedia The method consists of pointing out technical differences such as rhetorical

artifices identifying the crux of the arguments in order to discern in the speeches especially

with their differences the influence of the notion of belonging The importance of the rhetoric

in this research is also due to the fact that the historiographic tradition of the Ancient World is

based in this art of persuasion which influenced the literature at the time

Keywords pre-battle speeches Xenophon rhetoric historiography

6

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase 37

Tabela 2 ndash Arengas Militares da Ciropedia 59

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnicas 67

7

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 9

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA14

21 A Retoacuterica 14

22 Retoacuterica e Historiografia19

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica 20

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO 23

31 Xenofonte 23

311 Obras com Narrativas Histoacutericas25

3111 Anaacutebase 26

3112 Ciropedia 26

3113 Hellecircnica 27

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia 28

33 Identidade Helecircnica 30

34 Cultura Militar 31

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE 33

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo 33

42 As Arengas Militares na Anaacutebase 36

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro 38

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase 39

423 Arenga III ndash Anaacutebase (1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto) 40

424 Arengas IV e V ndash Anaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1 ndash Emissor Xenofonte41

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase 43

425 Arengas VI e VII ndash Anaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2 ndash Emissor QuisriacutesofoCleanor 44

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase 45

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 45

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase 49

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte52

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase 52

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 53

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase 53

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 54

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase 54

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 55

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase 56

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 56

8

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57

43 Arengas Militares na Ciropedia 58

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65

433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66

434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67

44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73

9

1 INTRODUCcedilAtildeO

A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na

base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica

da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC

com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou

resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os

generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de

enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo

Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de

exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do

auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para

motivaacute-los nas lutas de determinada batalha

Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente

de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes

ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos

princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente

devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e

historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)

Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares

e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos

discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan

Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa

destacando

Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso

presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le

antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos

constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en

apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten

maacutes (ZOIDO 2007 p 22)

Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma

diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense

Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de

10

ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por

ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito

transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte

Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo

tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo

profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo

militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento

perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua

vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou

para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde

dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios

gregos (JAEGER 2010 p 1215)

Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte

sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise

Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja

as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa

O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a

respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a

presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no

conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que

a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o

que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no

decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas

poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as

democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte

asiaacutetica

Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da

identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de

pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas

reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o

corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico

por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo

prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da

historiografia do mundo antigo

Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um

auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em

11

seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com

membros provindos de diferentes culturas

Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica

desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das

arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios

retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a

um auditoacuterio multieacutetnico

A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem

eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de

401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a

finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo

vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados

em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de

volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o

Grande fundador do Impeacuterio Persa

A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de

exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio

formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute

constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se

trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a

historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees

De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no

Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no

acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo

em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave

negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar

metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma

relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro

da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja

a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo

1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre

diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade

tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos

Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)

12

tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da

Escola do Annales Barros nota que

Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de

conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores

como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem

comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo

de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que

analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a

considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de

singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)

Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que

abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo

antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca

(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio

Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La

diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda

Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo

Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um

tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa

sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos

se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta

de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para

entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e

historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)

O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash

constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado

pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a

primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha

pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em

respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

(ZOIDO 2007 p 32)

De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute

dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o

Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as

novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com

13

os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa

pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores

gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas

militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees

preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por

fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que

consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas

primeiras partes desse trabalho

14

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE

CLAacuteSSICA

A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde

aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do

pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam

para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular

Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a

definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a

ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos

acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos

referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje

21 A Retoacuterica

A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica

do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de

Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o

fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de

ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)

Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis

que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)

O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-

se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia

qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos

das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)

Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a

forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada

narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo

do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do

orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da

coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES

Retoacuterica 1 3 1358b)

15

A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia

(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de

apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo

pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor

das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os

sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos

tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam

advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os

sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal

Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta

mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave

retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva

considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a

cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta

pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a

adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila

A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus

contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente

por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser

capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para

por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de

argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute

vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo

houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio

ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)

Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum

discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo

como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a

comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou

emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade

estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se

sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se

transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003

p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de

certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo

16

Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um

importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a

retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se

baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade

grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o

bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na

retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte

Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados

y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la

oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica

claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que

describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)

A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora

princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica

Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da

existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo

republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em

assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam

para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia

de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no

senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento

para aquisiccedilatildeo de influecircncia

Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus

clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano

(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de

sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos

discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu

Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica

orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma

participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se

representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute

centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja

devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser

reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto

conforme Reboul novas perspectivas surgem

17

Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas

democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o

testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc

(REBOUL 2004 p 76)

Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai

preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O

cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina

religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo

para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma

atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as

passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio

entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem

duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se

tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca

A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois

tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos

vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os

responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes

que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de

evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para

insinuar falsas ideias no espiacuterito

No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis

pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em

nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada

vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica

em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute

a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo

(REBOUL 2004 p 81)

Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso

na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda

e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de

indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a

esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de

possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer

18

do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do

apoio massivo da populaccedilatildeo

Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de

diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash

protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave

anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos

ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma

retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)

Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma

interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas

que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por

representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais

importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os

tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim

classificando diversos tipos de argumentos

Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e

Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de

um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os

juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram

por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)

Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia

que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute

que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua

classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica

Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica

originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor

da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2

Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram

atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim

como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De

maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de

manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim

2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo

19

vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter

ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para

Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo

que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define

retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo

(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores

que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a

medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da

distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)

Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la

mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por

meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila

entre os indiviacuteduos

Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se

retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas

que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito

do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo

proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma

retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e

se confirma (MEYER 2007 p 26)

Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele

atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito

de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a

argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta

apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)

Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da

problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide

Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira

[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos

trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso

para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito

e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-

resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases

(MOSCA 2007 p 9)

22 Retoacuterica e Historiografia

20

Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela

retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma

pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal

arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou

exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a

importante observaccedilatildeo de Zoido

Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir

em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso

historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para

persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores

pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica

emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica

(ZOIDO 2007 p 67)

Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos

historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura

Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias

concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia

como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos

autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela

tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do

Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e

sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se

servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo

Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as

conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos

retoacutericos

Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y

particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico

haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por

tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues

quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos

ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica

Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os

de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma

21

forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos

de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos

de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido

amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal

diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais

que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel

acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante

notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a

um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o

historiador

Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga

Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente

ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute

mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte

eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-

se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos

retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato

Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de

exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse

respeito afirma que

Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el

marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las

eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la

evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y

historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)

Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo

justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo

inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave

literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as

diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra

de uma morte gloriosa

Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)

como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess

enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo

de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus

apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la

22

elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la

retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)

No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande

entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico

Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric

antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de

las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla

historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)

Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares

protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a

polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os

principais autores em debate

Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras

que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el

general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel

utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)

Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram

realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do

testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the

Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de

Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de

pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior

enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de

argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto

O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos

tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia

contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa

que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais

discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo

23

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO

31 Xenofonte

Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC

pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer

em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua

juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua

personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras

Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas

no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo

aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se

evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que

adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha

declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves

concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates

Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que

rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes

Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o

encontro de Xenofonte com Soacutecrates

Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-

lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos

Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam

excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo

e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)

Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo

o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma

passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e

publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis

Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa

filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na

composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se

junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu

irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento

3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar

um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta

24

resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio

hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas

obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de

personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e

para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)

Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central

Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei

Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos

lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os

baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei

de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens

em Atenas

O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos

historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no

afastamento de suas respectivas paacutetrias

Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados

voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes

que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido

Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta

circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no

fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten

ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones

exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de

um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)

O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma

propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal

conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de

agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse

histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo

(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana

ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e

Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever

4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu

significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho

pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais

educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed

Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)

25

Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave

multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um

apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio

que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador

entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre

uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do

tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador

de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da

escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo

de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha

aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)

Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para

acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para

verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais

se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um

dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante

na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de

novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em

Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do

gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos

santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em

favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo

Medina

Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O

Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da

CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A

Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos

seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um

testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez

e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)

311Obras com Narrativas Histoacutericas

26

Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado

a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus

elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm

sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC

3111Anaacutebase

Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha

militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar

Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o

antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o

interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os

mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa

A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs

as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas

durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum

o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado

grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da

parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes

pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu

Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes

poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os

exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no

entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo

eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de

atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes

3112Ciropedia

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras

gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem

enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia

de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro

comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas

conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do

acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo

27

possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica

Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal

como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do

seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom

comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)

Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se

corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira

poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas

correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o

governante

O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas

como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra

daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso

ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado

nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p

85)

Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria

dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p

1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo

paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma

referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar

riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre

os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes

guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute

uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia

Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade

na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de

Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da

Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha

proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo

3113Hellecircnica

Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se

passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do

28

ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431

aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento

A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o

mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009

p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque

criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente

admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia

Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado

independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se

um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a

coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da

Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais

com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e

ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6

cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7

Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como

em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma

no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa

forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas

O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia

da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento

poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e

de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma

divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das

foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando

pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem

diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate

contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige

como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois

partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a

forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos

oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)

5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado

em batalha

29

Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em

assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas

levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa

caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra

em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de

influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade

Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse

expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de

pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas

reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo

com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas

quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma

elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da

retoacuterica no periacuteodo

Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como

explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato

deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue

o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos

perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade

caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a

comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela

instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis

Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de

um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma

forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento

de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a

fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da

comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da

populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma

formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou

ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas

8 Identificado pelo termo grego Isegoria

30

De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma

classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de

vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal

como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida

regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo

pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)

33 Identidade Helecircnica

Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania

costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute

importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham

membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma

mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o

tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas

caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo

momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados

com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato

recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade

helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos

O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas

nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra

natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido

dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o

quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a

mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados

por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute

bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o

responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos

do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos

templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes

natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o

ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos

para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e

bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis

subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis

fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo

aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando

novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-

lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)

31

Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em

relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos

sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com

os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao

contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio

grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar

agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo

de alteridade para com os baacuterbaros

Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da

Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de

reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade

sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle

sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de

um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos

como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)

34 Cultura Militar

A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o

advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha

Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os

soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de

batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes

heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns

Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda

modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir

uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da

cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo

modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a

formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual

ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua

posiccedilatildeo dentro da falange

Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura

necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo

9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as

liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo

32

compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de

sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees

cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave

imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas

sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a

braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma

mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais

manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para

proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua

esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem

comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)

Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na

guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e

escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na

cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do

cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos

eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)

De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de

guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os

imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No

entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que

soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC

33

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE

Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo

militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se

como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por

membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e

as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de

diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de

Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na

composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o

papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal

personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais

oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser

comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos

A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos

de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos

um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa

ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre

uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo

a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia

em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de

metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e

baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia

algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes

religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo

Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos

argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a

finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte

Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do

loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce

no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos

34

eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do

auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as

estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio

Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns

referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas

consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos

de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts

Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)

A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute

persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado

discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do

orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute

se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo

lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas

peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a

ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao

tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees

como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees

propostas por este trabalho

Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo

preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL

2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a

disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos

Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para

persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema

criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)

O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato

passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos

dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma

determinada identidade presente em ambos

P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades

P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo

35

faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem

seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)

O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada

conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A

entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A

utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que

natildeo se mostra expliacutecito

() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a

atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito

de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos

ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar

com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se

confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa

uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E

no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter

problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)

No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os

argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A

identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum

tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o

argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a

analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e

realidade

Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da

problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior

sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de

forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica

Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo

discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do

estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido

(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen

und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas

militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos

eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias

diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade

36

sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a

comunidade

dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da

superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo

estrateacutegica

endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo

ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares

Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso

em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de

importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da

que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de

satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de

possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos

Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate

Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)

anterior ao combate

Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem

indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)

Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode

tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito

Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate

Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate

42 As Arengas Militares na Anaacutebase

A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de

acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p

537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico

o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais

discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino

37

Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa

atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela

tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus

emissores como demonstrado na seguinte tabela

Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 173-4 1 Ciro

2 176-7 1 Ciro

3 1812 4 Ciro

4 3115-26 1 Xenofonte

5 3135-45 1 Xenofonte

6 322-3 2 Quiriacutesofo

7 324-6 2 Cleanor

8 328-32 2 Xenofonte

9 3234-39 2 Xenofonte

10 3446 4 Xenofonte

11 4814 4 Xenofonte

12 5419-21 2 Xenofonte

13 6312-18 2 Xenofonte

14 6323-4 4 Xenofonte

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase

Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves

caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute

possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados

apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de

observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto

pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos

emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas

expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute

autor apenas das trecircs primeiras arengas

10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957

Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash

seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco

de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu

38

Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do

priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos

generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve

um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um

consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar

do trono do Impeacuterio Aquemecircnida

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro

I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-

vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como

sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas

Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme

e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de

vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-

vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar

inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu

lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra

Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem

pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do

perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute

raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o

fazer ao que satildeo de desmesurados

II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor

toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do

frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo

Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu

medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai

tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma

coroa de oiro

39

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase

No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e

sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro

Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento

presente no conjunto de valores helenos

Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como

gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens

helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que

represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra

deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do

discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores

Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela

liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a

sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a

liberdade

O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos

baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos

isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de

acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade

entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela

qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta

ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de

questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste

caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado

para uma comunidade grega

No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir

qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a

preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos

em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao

perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas

11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original

40

fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para

obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos

anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash

isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a

possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo

de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica

de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no

iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō

aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas

homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o

proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo

aos outrosrdquo

Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo

bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era

inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma

identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria

inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu

auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o

auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de

batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute

diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos

esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma

maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente

foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de

atingir os reais valores do auditoacuterio

423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)

Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro

persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei

12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados

41

III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa

A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada

aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica

424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor

Xenofonte

IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho

diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo

natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se

por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a

cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte

imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou

mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte

infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o

guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que

vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me

inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da

terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir

quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens

senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os

juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me

mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que

implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que

esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses

declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios

enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos

Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela

compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos

trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso

braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do

que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo

percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais

13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo

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ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais

valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde

voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus

poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades

Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-

no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio

V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo

prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar

armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema

pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-

nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os

soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como

cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os

exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa

obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em

tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra

tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for

necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute

prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes

nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede

do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute

reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como

eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se

dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de

distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente

com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal

que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na

guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra

sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e

inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo

salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a

morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas

probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e

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provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos

outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase

Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no

conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de

mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete

ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as

principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar

que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento

acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a

exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos

de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua

sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as

arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas

ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de

Tipo 4

Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer

a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem

sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave

arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se

apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO

2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja

ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo

O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de

expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave

traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo

sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os

baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os

capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E

como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil

tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o

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segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a

debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais

aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera

mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom

a ajuda dos Deusesrdquo

Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz

parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam

implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos

os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos

deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva

uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte

incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo

425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor

QuisriacutesofoCleanor

VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples

camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu

ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como

gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a

fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro

A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno

VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem

patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de

vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou

prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos

enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que

trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu

sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se

para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os

14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo

15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros

45

Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra

eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase

Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de

tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por

Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por

Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte

vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas

relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos

aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o

elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso

de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que

ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor

Xenofonte

Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que

pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela

indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco

haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o

discurso nestes termos

VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem

inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles

necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos

capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela

Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos

com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria

Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram

graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou

16 στρατηγός no texto original

46

Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos

augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos

outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles

que estiverem de acordo ergam o braccedilo

Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave

Divindade Xenofonte prosseguiu

Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos

observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os

nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto

que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os

humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que

correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos

comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que

prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir

Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a

Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar

nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que

tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o

inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova

consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo

reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate

em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a

ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para

colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo

e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a

natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a

bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito

numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave

traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem

17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor

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Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam

com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum

de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere

que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa

batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas

O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem

de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas

inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar

de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais

certeza de pocircr o corpo no seguro

Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou

Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com

a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os

mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse

Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas

da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E

quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los

onde os haacute e quantos nos decirc na gana

Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante

Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a

noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais

em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem

impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo

satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui

fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo

vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la

e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa

terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande

empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta

domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos

Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se

de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a

48

ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade

e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer

e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o

caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para

mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta

terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador

Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova

leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu

Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for

preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o

passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As

tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor

Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que

combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas

linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm

nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e

em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje

Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou

Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais

importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades

senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos

superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de

causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes

que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do

que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir

deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que

nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que

20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras

deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo

49

aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha

ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos

Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso

que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte

acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram

Xenofonte voltou entatildeo a dizer

IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se

discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer

que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito

me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda

semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e

deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso

eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a

impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute

nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos

que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse

E como todos se calassem desassombradamente proferiu

Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda

pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e

Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as

alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale

Ningueacutem o contraditou e concluiu

Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute

dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida

que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer

aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do

vencido

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase

50

O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e

com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo

mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees

pertinentes

Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o

nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a

exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem

ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo

Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto

pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]

Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso

Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio

possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata

do sacrifiacutecio de animais aos deuses

O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas

de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da

identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo

porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo

da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com

um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo

Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos

juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam

costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador

tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio

Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria

especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo

costumerdquo 22

Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis

edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a

qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e

os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses

22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um

dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da

paacutetria em ocasiotildees preacutevias

51

decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana

[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel

encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em

seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a

Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte

restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em

que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem

dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita

quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando

baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do

exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras

Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em

tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os

antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das

premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade

Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a

identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que

enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo

Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em

primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois

afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a

participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer

venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de

todosrdquo

Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente

compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos

a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel

estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo

ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as

canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um

animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir

Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a

relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda

de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por

exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o

52

fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem

duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam

uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida

(MEYER 2007 p 26)

Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente

natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que

sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar

Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]

que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim

do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero

epidiacutectico

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos

X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia

vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma

- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata

e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola

Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para

fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase

A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel

fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo

motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada

pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de

sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para

optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo

arranco23

23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois

no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante

deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda

53

Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo

dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e

para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de

valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave

sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga

tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o

fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo

Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado

criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada

por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do

cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo

com o restante da tropa

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los

em estilhas

()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo

dobrado

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase

O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um

uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a

premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em

estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel

Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute

fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos

reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN

TYTECA 2004p 302)

existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na

Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos

54

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e

aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os

grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os

companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via

disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse

XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que

ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os

Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram

com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem

podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se

afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila

connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente

diversa daquela com que se mediram haacute pouco

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase

Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que

poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a

devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante

constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e

exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)

que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute

por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a

cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo

Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas

principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus

proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus

argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias

reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem

castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade

55

em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso

por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua

companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele

incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que

pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas

agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a

vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o

inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar

de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute

estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso

acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das

tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a

certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo

tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma

oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte

sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado

dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar

salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que

natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a

cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de

tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de

maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que

nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos

para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da

vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em

jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante

Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade

toda e armasse tendas onde lhe desse gana

56

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase

O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o

inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela

exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja

buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que

julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos

No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta

a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como

ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a

agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para

oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar

um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de

acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)

O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo

algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis

ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem

recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem

de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada

O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a

respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de

pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no

discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador

todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com

integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade

entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se

todos pertencessem agrave mesma comunidade

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes

sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate

57

Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos

chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos

ouvirem contar os feitos que praticastes

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase

A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash

ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em

consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim

como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do

uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da

seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns

pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar

os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute

a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que

busquem a noccedilatildeo de pertencimento

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase

Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma

constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a

ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros

De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo

da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)

Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica

enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte

De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos

de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute

negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar

coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave

Greacutecia

24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)

58

Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios

retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a

distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os

baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais

possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o

orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que

todos pertencem a uma mesma comunidade

Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a

sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o

impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda

agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)

Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de

exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto

quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves

divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta

explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente

que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-

se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma

autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute

expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois

ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante

seus pares

Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por

sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade

43Arengas Militares na Ciropedia

A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem

de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p

59

537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no

quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1

Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 157-14 1 Ciro o Grande

2 2111 1 Ciro o Grande

3 2114-18 2 Ciro o Grande

4 232-4 2 Ciro o Grande

5 323-6 1 Ciro o Grande

6 3334-9 1 Ciro o Grande

7 3341-2 1 Ciro o Grande

8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios

9 3359 5 Soldados Persas

10 3361-2 5 Ciro o Grande

11 411-6 6 Ciro o Grande

12 4221-6 1 Ciro o Grande

13 6214-20 1 Ciro o Grande

14 6413-20 1 Ciro o Grande

15 7110-14 4 Ciro o Grande

16 7519-24 1 Ciro o Grande

Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia

Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2

podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a

obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso

ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo

que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma

grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou

seja as proferidas apenas aos capitatildees

Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada

pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um

25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo

Claacutessicos Jacson)

60

de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga

militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto

oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande

motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal

praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a

batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja

A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores

Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram

que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui

eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar

- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por

ventura nova coragem

- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais

elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons

arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco

uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio

preliminar

- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo

- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha

de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a

arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de

maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da

fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo

humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma

existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias

Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o

valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o

germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder

triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam

pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e

ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se

exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a

necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-

ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta

virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico

um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)

O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre

irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da

obra quatorze arengas

Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe

aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a

exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)

61

No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois

os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou

seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo

como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para

que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da

polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo

extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo

em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em

ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista

notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim

mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande

Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por

seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso

I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a

vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis

em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por

que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma

virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26

Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles

que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele

jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos

para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre

a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a

penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e

prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos

envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de

sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos

e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de

26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)

62

ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena

parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a

infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei

pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o

epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir

uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo

podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que

se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que

esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que

hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo

contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os

trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees

no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e

mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem

aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais

incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais

exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado

desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute

sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos

inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto

confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos

tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que

romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais

justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes

um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta

exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come

todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e

reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com

meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos

faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade

63

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia

Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-

comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de

comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos

pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade

devido agrave melhor formaccedilatildeo militar

Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a

resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera

rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como

tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes

CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de

comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra

Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia

considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso

conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha

enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de

gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis

fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos

O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que

os deuses satildeo favoraacuteveis

Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo

se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave

volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais

CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena

confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves

divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as

grandes quer as pequenas

O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo

AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente

puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses

Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre

CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos

persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence

Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e

nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar

os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos

Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um

importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte

utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que

Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar

cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa

64

cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o

reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer

O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio

irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem

a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal

Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN

TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma

Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar

espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se

entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute

gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois

de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei

ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que

depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria

deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e

estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se

poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para

motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate

mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um

grupo multieacutetnico

De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a

uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel

que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha

com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo

com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir

Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer

a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite

liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo

militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)

Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de

identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter

epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos

verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente

duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis

de Ciro que antecede a batalha de Sardes

65

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios

VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar

pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas

mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto

ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos

Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do

inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem

estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais

fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois

quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que

estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia

Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte

contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo

de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso

de pertencimento

Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas

vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia

do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses

valores

Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por

Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes

nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal

exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o

modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que

rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso

totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio

66

433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande

Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu

Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia

- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes

A outros

ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas

tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa

A outros

- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios

de possuir grandes bens mas dai provas de coragem

A outros

- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os

bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas

A outros

- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar

tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua

honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de

covardia ou de infacircmia

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia

Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se

trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a

totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a

exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga

extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro

O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de

pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso

explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1

67

Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um

padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as

arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista

de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes

de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e

antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica

- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a

pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 1124 2 Farnabazo

2 2413-17 3 Trasibulo

3 5114-17 2 Teleutias

4 7130 4 Arquidamo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27

Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes

palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de

olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era

quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e

crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre

todos os gregos

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica

Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio

do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante

lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No

entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras

de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim

27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu

68

Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como

nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um

discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel

Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias

metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo

literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte

Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da

Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no

corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante

regularidade

Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em

questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o

eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade

Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e

o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal

diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos

imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso

O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia

para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute

fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da

sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades

- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o

assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo

- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O

conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um

juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles

- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva

Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente

valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)

Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se

constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na

Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio

para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus

69

ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio

enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre

Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da

congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por

exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir

revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o

Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do

auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute

de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos

A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo

constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos

discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar

pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os

gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o

Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante

deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que

natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas

de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras

70

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos

discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por

Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em

perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos

detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que

esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou

ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso

definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o

pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()

Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila

atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as

arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o

Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria

de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o

Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos

que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los

Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra

personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de

Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao

longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em

questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador

Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio

natildeo eacute abolida

Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre

indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando

o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a

noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao

mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas

vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar

cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a

uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento

comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees

71

Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a

relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos

expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma

comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um

passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a

necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem

a uma mesma comunidade

A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia

verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que

formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas

virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite

compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um

auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal

como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um

estilo austero de uma vida militar

Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia

percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira

obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)

enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan

Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma

justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador

persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para

Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que

Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele

possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da

Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte

Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma

explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees

do autor em torno das arengas militares

De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um

discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo

aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que

almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta

72

para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo

de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir

um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo

Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da

histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas

epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras

Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise

retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a

necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua

sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal

A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos

interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno

da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu

muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio

para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas

possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema

73

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

BARROS Joseacute Costa DrsquoAssunccedilatildeo A Escola dos Annales consideraccedilotildees sobre a Histoacuteria do

Movimento In Revista Histoacuteria em Reflexatildeo Vol 4 n 8 ndash UFGD - Dourados juldez

2010

BRIZZI Giovanni Guerreiro o soldado e o Legionaacuterio Os exeacutercitos no mundo claacutessico

Satildeo Paulo Madras 2003

BURKE Peter A Escola dos Annales (1929-1989) A Revoluccedilatildeo Francesa da Historiografia

2 ed Satildeo Paulo UNESP 2010

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Page 3: Cidadania e Multietnicidade: a Noção de Pertencimento e as

3

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo primeiramente agrave minha matildee que sempre mostrou interesse por este

trabalho assim como pelo resto das coisas importantes da minha vida

Tambeacutem aos meus colegas de trabalho do CSTI que ouviram muito sobre retoacuterica

mesmo que involuntariamente

Natildeo poderia esquecer o Allejandro a Ket e a Carol ndash os quais por conveniecircncia sorte

ou acaso constituem uma famiacutelia para mim e que acompanharam de perto minhas noites em

claro na formulaccedilatildeo deste trabalho

Tambeacutem ao meu orientador pelo auxiacutelio e pela inspiraccedilatildeo e agrave minha tia Carla que de

forma muito disposta me auxiliou com todo esmero natildeo poupando esforccedilos ndash mesmo que de

tatildeo longe ndash em me dar o amparo que precisei com urgecircncia

Por fim um agradecimento especial para Amanda meu grande amor ndash com quem

compartilho a paixatildeo pelas letras e pelo absurdo e quem me proporcionou apoio incondicional

na elaboraccedilatildeo desta pesquisa revisando todo o trabalho e me auxiliando ao longo da produccedilatildeo

deste Devo a realizaccedilatildeo deste trabalho principalmente ao seu carinho que sempre me serviu

de estiacutemulo para continuar

4

RESUMO

O presente trabalho tem a finalidade de determinar a noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio

recorrentes nas arengas militares presentes na escrita de Xenofonte (430ndash354 aC) Tal estudo

utiliza como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por

membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema valores a cidadania e as

arengas voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de diversas culturas

Eacute aplicada uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de autoria de Xenofonte

Anaacutebase e Ciropedia O emprego de tal metodologia consiste em destacar diferenccedilas teacutecnicas

como artifiacutecios retoacutericos e identificar nuacutecleos argumentativos para discernir nas diferenccedilas a

influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nos discursos A importacircncia da retoacuterica nesta pesquisa

tambeacutem se atribui ao fato de que a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo eacute composta com

bases em tal arte da persuasatildeo que influenciara a literatura da eacutepoca

Palavras-chave arenga militar Xenofonte retoacuterica historiografia

5

ABSTRACT

This research aims to determine the notion of belonging in a community recurrent in pre-

battle speeches present in Xenophonrsquos (430-354 BC) texts The method used in this study is a

comparison between pre-battle speeches addressed to an audience of members belonging in a

community who share the same value system and same citizenship and the pre-battle speeches

addressed to a multi-ethnic audience where members come from different cultures It applies

a comparative analysis of the rhetoric between two of Xenophonrsquos writings Anabasis and

Cyropaedia The method consists of pointing out technical differences such as rhetorical

artifices identifying the crux of the arguments in order to discern in the speeches especially

with their differences the influence of the notion of belonging The importance of the rhetoric

in this research is also due to the fact that the historiographic tradition of the Ancient World is

based in this art of persuasion which influenced the literature at the time

Keywords pre-battle speeches Xenophon rhetoric historiography

6

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase 37

Tabela 2 ndash Arengas Militares da Ciropedia 59

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnicas 67

7

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 9

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA14

21 A Retoacuterica 14

22 Retoacuterica e Historiografia19

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica 20

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO 23

31 Xenofonte 23

311 Obras com Narrativas Histoacutericas25

3111 Anaacutebase 26

3112 Ciropedia 26

3113 Hellecircnica 27

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia 28

33 Identidade Helecircnica 30

34 Cultura Militar 31

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE 33

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo 33

42 As Arengas Militares na Anaacutebase 36

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro 38

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase 39

423 Arenga III ndash Anaacutebase (1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto) 40

424 Arengas IV e V ndash Anaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1 ndash Emissor Xenofonte41

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase 43

425 Arengas VI e VII ndash Anaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2 ndash Emissor QuisriacutesofoCleanor 44

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase 45

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 45

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase 49

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte52

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase 52

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 53

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase 53

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 54

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase 54

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 55

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase 56

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 56

8

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57

43 Arengas Militares na Ciropedia 58

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65

433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66

434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67

44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73

9

1 INTRODUCcedilAtildeO

A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na

base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica

da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC

com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou

resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os

generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de

enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo

Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de

exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do

auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para

motivaacute-los nas lutas de determinada batalha

Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente

de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes

ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos

princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente

devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e

historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)

Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares

e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos

discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan

Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa

destacando

Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso

presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le

antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos

constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en

apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten

maacutes (ZOIDO 2007 p 22)

Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma

diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense

Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de

10

ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por

ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito

transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte

Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo

tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo

profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo

militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento

perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua

vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou

para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde

dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios

gregos (JAEGER 2010 p 1215)

Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte

sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise

Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja

as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa

O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a

respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a

presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no

conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que

a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o

que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no

decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas

poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as

democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte

asiaacutetica

Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da

identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de

pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas

reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o

corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico

por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo

prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da

historiografia do mundo antigo

Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um

auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em

11

seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com

membros provindos de diferentes culturas

Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica

desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das

arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios

retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a

um auditoacuterio multieacutetnico

A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem

eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de

401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a

finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo

vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados

em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de

volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o

Grande fundador do Impeacuterio Persa

A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de

exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio

formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute

constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se

trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a

historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees

De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no

Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no

acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo

em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave

negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar

metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma

relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro

da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja

a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo

1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre

diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade

tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos

Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)

12

tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da

Escola do Annales Barros nota que

Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de

conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores

como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem

comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo

de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que

analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a

considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de

singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)

Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que

abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo

antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca

(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio

Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La

diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda

Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo

Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um

tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa

sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos

se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta

de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para

entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e

historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)

O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash

constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado

pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a

primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha

pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em

respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

(ZOIDO 2007 p 32)

De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute

dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o

Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as

novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com

13

os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa

pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores

gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas

militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees

preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por

fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que

consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas

primeiras partes desse trabalho

14

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE

CLAacuteSSICA

A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde

aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do

pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam

para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular

Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a

definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a

ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos

acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos

referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje

21 A Retoacuterica

A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica

do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de

Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o

fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de

ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)

Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis

que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)

O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-

se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia

qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos

das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)

Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a

forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada

narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo

do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do

orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da

coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES

Retoacuterica 1 3 1358b)

15

A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia

(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de

apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo

pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor

das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os

sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos

tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam

advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os

sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal

Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta

mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave

retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva

considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a

cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta

pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a

adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila

A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus

contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente

por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser

capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para

por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de

argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute

vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo

houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio

ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)

Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum

discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo

como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a

comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou

emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade

estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se

sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se

transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003

p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de

certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo

16

Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um

importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a

retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se

baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade

grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o

bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na

retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte

Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados

y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la

oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica

claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que

describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)

A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora

princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica

Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da

existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo

republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em

assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam

para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia

de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no

senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento

para aquisiccedilatildeo de influecircncia

Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus

clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano

(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de

sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos

discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu

Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica

orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma

participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se

representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute

centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja

devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser

reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto

conforme Reboul novas perspectivas surgem

17

Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas

democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o

testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc

(REBOUL 2004 p 76)

Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai

preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O

cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina

religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo

para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma

atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as

passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio

entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem

duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se

tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca

A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois

tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos

vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os

responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes

que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de

evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para

insinuar falsas ideias no espiacuterito

No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis

pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em

nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada

vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica

em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute

a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo

(REBOUL 2004 p 81)

Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso

na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda

e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de

indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a

esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de

possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer

18

do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do

apoio massivo da populaccedilatildeo

Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de

diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash

protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave

anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos

ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma

retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)

Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma

interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas

que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por

representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais

importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os

tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim

classificando diversos tipos de argumentos

Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e

Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de

um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os

juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram

por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)

Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia

que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute

que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua

classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica

Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica

originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor

da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2

Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram

atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim

como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De

maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de

manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim

2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo

19

vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter

ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para

Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo

que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define

retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo

(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores

que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a

medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da

distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)

Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la

mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por

meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila

entre os indiviacuteduos

Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se

retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas

que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito

do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo

proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma

retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e

se confirma (MEYER 2007 p 26)

Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele

atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito

de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a

argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta

apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)

Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da

problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide

Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira

[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos

trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso

para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito

e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-

resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases

(MOSCA 2007 p 9)

22 Retoacuterica e Historiografia

20

Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela

retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma

pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal

arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou

exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a

importante observaccedilatildeo de Zoido

Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir

em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso

historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para

persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores

pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica

emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica

(ZOIDO 2007 p 67)

Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos

historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura

Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias

concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia

como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos

autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela

tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do

Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e

sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se

servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo

Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as

conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos

retoacutericos

Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y

particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico

haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por

tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues

quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos

ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica

Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os

de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma

21

forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos

de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos

de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido

amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal

diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais

que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel

acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante

notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a

um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o

historiador

Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga

Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente

ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute

mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte

eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-

se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos

retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato

Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de

exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse

respeito afirma que

Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el

marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las

eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la

evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y

historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)

Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo

justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo

inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave

literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as

diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra

de uma morte gloriosa

Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)

como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess

enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo

de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus

apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la

22

elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la

retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)

No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande

entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico

Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric

antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de

las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla

historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)

Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares

protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a

polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os

principais autores em debate

Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras

que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el

general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel

utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)

Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram

realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do

testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the

Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de

Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de

pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior

enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de

argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto

O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos

tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia

contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa

que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais

discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo

23

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO

31 Xenofonte

Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC

pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer

em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua

juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua

personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras

Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas

no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo

aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se

evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que

adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha

declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves

concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates

Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que

rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes

Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o

encontro de Xenofonte com Soacutecrates

Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-

lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos

Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam

excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo

e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)

Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo

o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma

passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e

publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis

Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa

filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na

composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se

junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu

irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento

3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar

um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta

24

resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio

hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas

obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de

personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e

para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)

Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central

Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei

Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos

lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os

baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei

de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens

em Atenas

O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos

historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no

afastamento de suas respectivas paacutetrias

Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados

voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes

que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido

Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta

circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no

fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten

ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones

exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de

um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)

O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma

propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal

conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de

agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse

histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo

(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana

ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e

Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever

4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu

significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho

pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais

educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed

Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)

25

Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave

multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um

apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio

que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador

entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre

uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do

tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador

de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da

escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo

de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha

aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)

Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para

acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para

verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais

se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um

dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante

na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de

novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em

Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do

gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos

santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em

favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo

Medina

Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O

Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da

CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A

Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos

seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um

testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez

e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)

311Obras com Narrativas Histoacutericas

26

Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado

a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus

elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm

sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC

3111Anaacutebase

Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha

militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar

Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o

antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o

interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os

mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa

A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs

as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas

durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum

o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado

grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da

parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes

pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu

Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes

poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os

exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no

entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo

eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de

atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes

3112Ciropedia

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras

gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem

enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia

de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro

comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas

conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do

acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo

27

possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica

Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal

como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do

seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom

comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)

Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se

corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira

poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas

correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o

governante

O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas

como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra

daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso

ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado

nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p

85)

Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria

dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p

1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo

paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma

referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar

riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre

os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes

guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute

uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia

Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade

na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de

Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da

Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha

proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo

3113Hellecircnica

Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se

passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do

28

ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431

aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento

A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o

mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009

p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque

criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente

admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia

Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado

independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se

um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a

coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da

Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais

com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e

ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6

cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7

Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como

em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma

no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa

forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas

O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia

da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento

poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e

de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma

divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das

foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando

pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem

diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate

contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige

como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois

partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a

forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos

oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)

5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado

em batalha

29

Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em

assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas

levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa

caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra

em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de

influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade

Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse

expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de

pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas

reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo

com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas

quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma

elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da

retoacuterica no periacuteodo

Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como

explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato

deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue

o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos

perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade

caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a

comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela

instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis

Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de

um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma

forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento

de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a

fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da

comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da

populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma

formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou

ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas

8 Identificado pelo termo grego Isegoria

30

De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma

classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de

vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal

como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida

regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo

pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)

33 Identidade Helecircnica

Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania

costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute

importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham

membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma

mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o

tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas

caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo

momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados

com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato

recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade

helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos

O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas

nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra

natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido

dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o

quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a

mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados

por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute

bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o

responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos

do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos

templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes

natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o

ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos

para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e

bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis

subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis

fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo

aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando

novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-

lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)

31

Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em

relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos

sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com

os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao

contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio

grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar

agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo

de alteridade para com os baacuterbaros

Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da

Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de

reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade

sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle

sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de

um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos

como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)

34 Cultura Militar

A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o

advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha

Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os

soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de

batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes

heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns

Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda

modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir

uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da

cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo

modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a

formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual

ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua

posiccedilatildeo dentro da falange

Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura

necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo

9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as

liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo

32

compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de

sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees

cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave

imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas

sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a

braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma

mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais

manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para

proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua

esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem

comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)

Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na

guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e

escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na

cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do

cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos

eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)

De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de

guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os

imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No

entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que

soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC

33

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE

Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo

militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se

como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por

membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e

as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de

diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de

Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na

composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o

papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal

personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais

oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser

comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos

A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos

de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos

um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa

ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre

uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo

a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia

em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de

metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e

baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia

algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes

religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo

Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos

argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a

finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte

Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do

loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce

no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos

34

eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do

auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as

estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio

Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns

referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas

consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos

de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts

Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)

A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute

persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado

discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do

orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute

se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo

lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas

peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a

ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao

tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees

como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees

propostas por este trabalho

Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo

preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL

2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a

disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos

Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para

persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema

criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)

O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato

passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos

dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma

determinada identidade presente em ambos

P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades

P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo

35

faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem

seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)

O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada

conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A

entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A

utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que

natildeo se mostra expliacutecito

() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a

atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito

de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos

ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar

com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se

confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa

uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E

no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter

problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)

No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os

argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A

identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum

tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o

argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a

analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e

realidade

Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da

problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior

sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de

forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica

Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo

discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do

estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido

(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen

und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas

militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos

eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias

diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade

36

sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a

comunidade

dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da

superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo

estrateacutegica

endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo

ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares

Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso

em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de

importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da

que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de

satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de

possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos

Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate

Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)

anterior ao combate

Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem

indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)

Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode

tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito

Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate

Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate

42 As Arengas Militares na Anaacutebase

A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de

acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p

537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico

o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais

discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino

37

Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa

atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela

tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus

emissores como demonstrado na seguinte tabela

Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 173-4 1 Ciro

2 176-7 1 Ciro

3 1812 4 Ciro

4 3115-26 1 Xenofonte

5 3135-45 1 Xenofonte

6 322-3 2 Quiriacutesofo

7 324-6 2 Cleanor

8 328-32 2 Xenofonte

9 3234-39 2 Xenofonte

10 3446 4 Xenofonte

11 4814 4 Xenofonte

12 5419-21 2 Xenofonte

13 6312-18 2 Xenofonte

14 6323-4 4 Xenofonte

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase

Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves

caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute

possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados

apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de

observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto

pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos

emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas

expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute

autor apenas das trecircs primeiras arengas

10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957

Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash

seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco

de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu

38

Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do

priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos

generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve

um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um

consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar

do trono do Impeacuterio Aquemecircnida

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro

I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-

vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como

sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas

Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme

e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de

vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-

vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar

inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu

lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra

Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem

pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do

perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute

raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o

fazer ao que satildeo de desmesurados

II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor

toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do

frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo

Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu

medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai

tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma

coroa de oiro

39

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase

No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e

sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro

Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento

presente no conjunto de valores helenos

Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como

gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens

helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que

represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra

deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do

discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores

Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela

liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a

sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a

liberdade

O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos

baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos

isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de

acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade

entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela

qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta

ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de

questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste

caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado

para uma comunidade grega

No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir

qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a

preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos

em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao

perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas

11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original

40

fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para

obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos

anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash

isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a

possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo

de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica

de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no

iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō

aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas

homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o

proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo

aos outrosrdquo

Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo

bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era

inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma

identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria

inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu

auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o

auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de

batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute

diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos

esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma

maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente

foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de

atingir os reais valores do auditoacuterio

423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)

Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro

persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei

12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados

41

III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa

A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada

aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica

424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor

Xenofonte

IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho

diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo

natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se

por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a

cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte

imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou

mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte

infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o

guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que

vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me

inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da

terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir

quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens

senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os

juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me

mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que

implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que

esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses

declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios

enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos

Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela

compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos

trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso

braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do

que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo

percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais

13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo

42

ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais

valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde

voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus

poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades

Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-

no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio

V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo

prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar

armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema

pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-

nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os

soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como

cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os

exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa

obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em

tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra

tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for

necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute

prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes

nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede

do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute

reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como

eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se

dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de

distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente

com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal

que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na

guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra

sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e

inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo

salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a

morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas

probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e

43

provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos

outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase

Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no

conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de

mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete

ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as

principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar

que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento

acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a

exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos

de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua

sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as

arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas

ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de

Tipo 4

Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer

a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem

sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave

arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se

apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO

2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja

ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo

O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de

expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave

traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo

sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os

baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os

capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E

como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil

tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o

44

segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a

debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais

aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera

mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom

a ajuda dos Deusesrdquo

Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz

parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam

implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos

os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos

deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva

uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte

incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo

425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor

QuisriacutesofoCleanor

VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples

camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu

ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como

gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a

fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro

A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno

VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem

patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de

vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou

prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos

enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que

trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu

sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se

para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os

14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo

15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros

45

Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra

eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase

Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de

tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por

Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por

Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte

vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas

relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos

aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o

elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso

de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que

ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor

Xenofonte

Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que

pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela

indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco

haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o

discurso nestes termos

VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem

inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles

necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos

capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela

Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos

com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria

Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram

graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou

16 στρατηγός no texto original

46

Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos

augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos

outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles

que estiverem de acordo ergam o braccedilo

Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave

Divindade Xenofonte prosseguiu

Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos

observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os

nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto

que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os

humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que

correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos

comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que

prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir

Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a

Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar

nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que

tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o

inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova

consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo

reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate

em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a

ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para

colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo

e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a

natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a

bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito

numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave

traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem

17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor

47

Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam

com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum

de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere

que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa

batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas

O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem

de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas

inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar

de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais

certeza de pocircr o corpo no seguro

Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou

Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com

a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os

mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse

Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas

da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E

quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los

onde os haacute e quantos nos decirc na gana

Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante

Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a

noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais

em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem

impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo

satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui

fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo

vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la

e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa

terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande

empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta

domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos

Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se

de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a

48

ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade

e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer

e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o

caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para

mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta

terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador

Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova

leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu

Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for

preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o

passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As

tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor

Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que

combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas

linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm

nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e

em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje

Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou

Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais

importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades

senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos

superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de

causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes

que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do

que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir

deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que

nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que

20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras

deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo

49

aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha

ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos

Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso

que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte

acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram

Xenofonte voltou entatildeo a dizer

IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se

discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer

que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito

me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda

semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e

deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso

eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a

impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute

nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos

que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse

E como todos se calassem desassombradamente proferiu

Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda

pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e

Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as

alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale

Ningueacutem o contraditou e concluiu

Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute

dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida

que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer

aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do

vencido

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase

50

O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e

com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo

mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees

pertinentes

Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o

nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a

exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem

ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo

Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto

pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]

Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso

Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio

possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata

do sacrifiacutecio de animais aos deuses

O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas

de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da

identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo

porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo

da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com

um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo

Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos

juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam

costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador

tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio

Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria

especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo

costumerdquo 22

Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis

edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a

qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e

os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses

22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um

dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da

paacutetria em ocasiotildees preacutevias

51

decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana

[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel

encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em

seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a

Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte

restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em

que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem

dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita

quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando

baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do

exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras

Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em

tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os

antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das

premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade

Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a

identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que

enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo

Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em

primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois

afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a

participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer

venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de

todosrdquo

Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente

compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos

a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel

estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo

ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as

canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um

animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir

Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a

relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda

de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por

exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o

52

fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem

duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam

uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida

(MEYER 2007 p 26)

Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente

natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que

sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar

Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]

que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim

do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero

epidiacutectico

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos

X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia

vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma

- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata

e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola

Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para

fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase

A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel

fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo

motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada

pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de

sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para

optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo

arranco23

23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois

no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante

deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda

53

Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo

dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e

para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de

valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave

sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga

tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o

fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo

Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado

criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada

por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do

cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo

com o restante da tropa

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los

em estilhas

()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo

dobrado

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase

O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um

uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a

premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em

estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel

Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute

fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos

reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN

TYTECA 2004p 302)

existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na

Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos

54

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e

aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os

grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os

companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via

disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse

XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que

ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os

Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram

com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem

podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se

afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila

connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente

diversa daquela com que se mediram haacute pouco

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase

Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que

poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a

devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante

constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e

exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)

que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute

por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a

cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo

Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas

principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus

proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus

argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias

reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem

castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade

55

em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso

por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua

companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele

incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que

pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas

agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a

vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o

inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar

de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute

estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso

acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das

tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a

certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo

tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma

oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte

sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado

dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar

salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que

natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a

cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de

tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de

maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que

nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos

para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da

vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em

jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante

Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade

toda e armasse tendas onde lhe desse gana

56

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase

O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o

inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela

exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja

buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que

julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos

No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta

a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como

ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a

agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para

oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar

um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de

acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)

O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo

algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis

ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem

recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem

de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada

O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a

respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de

pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no

discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador

todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com

integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade

entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se

todos pertencessem agrave mesma comunidade

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes

sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate

57

Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos

chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos

ouvirem contar os feitos que praticastes

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase

A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash

ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em

consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim

como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do

uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da

seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns

pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar

os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute

a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que

busquem a noccedilatildeo de pertencimento

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase

Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma

constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a

ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros

De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo

da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)

Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica

enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte

De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos

de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute

negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar

coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave

Greacutecia

24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)

58

Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios

retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a

distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os

baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais

possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o

orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que

todos pertencem a uma mesma comunidade

Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a

sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o

impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda

agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)

Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de

exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto

quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves

divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta

explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente

que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-

se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma

autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute

expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois

ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante

seus pares

Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por

sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade

43Arengas Militares na Ciropedia

A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem

de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p

59

537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no

quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1

Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 157-14 1 Ciro o Grande

2 2111 1 Ciro o Grande

3 2114-18 2 Ciro o Grande

4 232-4 2 Ciro o Grande

5 323-6 1 Ciro o Grande

6 3334-9 1 Ciro o Grande

7 3341-2 1 Ciro o Grande

8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios

9 3359 5 Soldados Persas

10 3361-2 5 Ciro o Grande

11 411-6 6 Ciro o Grande

12 4221-6 1 Ciro o Grande

13 6214-20 1 Ciro o Grande

14 6413-20 1 Ciro o Grande

15 7110-14 4 Ciro o Grande

16 7519-24 1 Ciro o Grande

Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia

Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2

podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a

obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso

ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo

que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma

grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou

seja as proferidas apenas aos capitatildees

Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada

pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um

25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo

Claacutessicos Jacson)

60

de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga

militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto

oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande

motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal

praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a

batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja

A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores

Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram

que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui

eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar

- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por

ventura nova coragem

- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais

elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons

arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco

uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio

preliminar

- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo

- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha

de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a

arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de

maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da

fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo

humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma

existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias

Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o

valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o

germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder

triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam

pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e

ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se

exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a

necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-

ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta

virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico

um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)

O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre

irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da

obra quatorze arengas

Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe

aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a

exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)

61

No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois

os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou

seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo

como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para

que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da

polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo

extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo

em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em

ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista

notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim

mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande

Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por

seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso

I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a

vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis

em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por

que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma

virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26

Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles

que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele

jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos

para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre

a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a

penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e

prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos

envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de

sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos

e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de

26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)

62

ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena

parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a

infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei

pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o

epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir

uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo

podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que

se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que

esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que

hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo

contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os

trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees

no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e

mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem

aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais

incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais

exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado

desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute

sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos

inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto

confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos

tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que

romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais

justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes

um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta

exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come

todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e

reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com

meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos

faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade

63

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia

Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-

comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de

comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos

pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade

devido agrave melhor formaccedilatildeo militar

Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a

resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera

rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como

tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes

CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de

comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra

Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia

considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso

conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha

enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de

gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis

fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos

O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que

os deuses satildeo favoraacuteveis

Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo

se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave

volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais

CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena

confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves

divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as

grandes quer as pequenas

O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo

AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente

puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses

Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre

CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos

persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence

Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e

nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar

os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos

Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um

importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte

utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que

Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar

cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa

64

cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o

reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer

O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio

irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem

a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal

Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN

TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma

Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar

espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se

entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute

gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois

de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei

ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que

depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria

deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e

estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se

poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para

motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate

mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um

grupo multieacutetnico

De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a

uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel

que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha

com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo

com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir

Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer

a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite

liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo

militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)

Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de

identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter

epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos

verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente

duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis

de Ciro que antecede a batalha de Sardes

65

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios

VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar

pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas

mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto

ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos

Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do

inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem

estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais

fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois

quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que

estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia

Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte

contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo

de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso

de pertencimento

Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas

vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia

do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses

valores

Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por

Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes

nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal

exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o

modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que

rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso

totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio

66

433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande

Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu

Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia

- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes

A outros

ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas

tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa

A outros

- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios

de possuir grandes bens mas dai provas de coragem

A outros

- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os

bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas

A outros

- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar

tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua

honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de

covardia ou de infacircmia

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia

Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se

trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a

totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a

exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga

extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro

O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de

pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso

explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1

67

Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um

padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as

arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista

de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes

de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e

antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica

- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a

pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 1124 2 Farnabazo

2 2413-17 3 Trasibulo

3 5114-17 2 Teleutias

4 7130 4 Arquidamo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27

Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes

palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de

olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era

quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e

crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre

todos os gregos

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica

Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio

do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante

lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No

entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras

de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim

27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu

68

Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como

nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um

discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel

Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias

metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo

literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte

Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da

Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no

corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante

regularidade

Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em

questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o

eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade

Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e

o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal

diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos

imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso

O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia

para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute

fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da

sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades

- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o

assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo

- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O

conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um

juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles

- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva

Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente

valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)

Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se

constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na

Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio

para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus

69

ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio

enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre

Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da

congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por

exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir

revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o

Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do

auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute

de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos

A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo

constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos

discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar

pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os

gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o

Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante

deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que

natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas

de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras

70

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos

discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por

Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em

perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos

detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que

esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou

ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso

definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o

pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()

Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila

atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as

arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o

Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria

de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o

Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos

que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los

Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra

personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de

Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao

longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em

questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador

Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio

natildeo eacute abolida

Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre

indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando

o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a

noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao

mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas

vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar

cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a

uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento

comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees

71

Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a

relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos

expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma

comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um

passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a

necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem

a uma mesma comunidade

A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia

verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que

formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas

virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite

compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um

auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal

como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um

estilo austero de uma vida militar

Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia

percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira

obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)

enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan

Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma

justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador

persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para

Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que

Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele

possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da

Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte

Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma

explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees

do autor em torno das arengas militares

De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um

discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo

aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que

almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta

72

para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo

de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir

um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo

Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da

histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas

epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras

Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise

retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a

necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua

sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal

A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos

interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno

da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu

muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio

para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas

possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema

73

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Page 4: Cidadania e Multietnicidade: a Noção de Pertencimento e as

4

RESUMO

O presente trabalho tem a finalidade de determinar a noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio

recorrentes nas arengas militares presentes na escrita de Xenofonte (430ndash354 aC) Tal estudo

utiliza como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por

membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema valores a cidadania e as

arengas voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de diversas culturas

Eacute aplicada uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de autoria de Xenofonte

Anaacutebase e Ciropedia O emprego de tal metodologia consiste em destacar diferenccedilas teacutecnicas

como artifiacutecios retoacutericos e identificar nuacutecleos argumentativos para discernir nas diferenccedilas a

influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nos discursos A importacircncia da retoacuterica nesta pesquisa

tambeacutem se atribui ao fato de que a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo eacute composta com

bases em tal arte da persuasatildeo que influenciara a literatura da eacutepoca

Palavras-chave arenga militar Xenofonte retoacuterica historiografia

5

ABSTRACT

This research aims to determine the notion of belonging in a community recurrent in pre-

battle speeches present in Xenophonrsquos (430-354 BC) texts The method used in this study is a

comparison between pre-battle speeches addressed to an audience of members belonging in a

community who share the same value system and same citizenship and the pre-battle speeches

addressed to a multi-ethnic audience where members come from different cultures It applies

a comparative analysis of the rhetoric between two of Xenophonrsquos writings Anabasis and

Cyropaedia The method consists of pointing out technical differences such as rhetorical

artifices identifying the crux of the arguments in order to discern in the speeches especially

with their differences the influence of the notion of belonging The importance of the rhetoric

in this research is also due to the fact that the historiographic tradition of the Ancient World is

based in this art of persuasion which influenced the literature at the time

Keywords pre-battle speeches Xenophon rhetoric historiography

6

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase 37

Tabela 2 ndash Arengas Militares da Ciropedia 59

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnicas 67

7

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 9

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA14

21 A Retoacuterica 14

22 Retoacuterica e Historiografia19

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica 20

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO 23

31 Xenofonte 23

311 Obras com Narrativas Histoacutericas25

3111 Anaacutebase 26

3112 Ciropedia 26

3113 Hellecircnica 27

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia 28

33 Identidade Helecircnica 30

34 Cultura Militar 31

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE 33

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo 33

42 As Arengas Militares na Anaacutebase 36

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro 38

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase 39

423 Arenga III ndash Anaacutebase (1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto) 40

424 Arengas IV e V ndash Anaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1 ndash Emissor Xenofonte41

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase 43

425 Arengas VI e VII ndash Anaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2 ndash Emissor QuisriacutesofoCleanor 44

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase 45

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 45

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase 49

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte52

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase 52

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 53

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase 53

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 54

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase 54

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 55

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase 56

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 56

8

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57

43 Arengas Militares na Ciropedia 58

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65

433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66

434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67

44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73

9

1 INTRODUCcedilAtildeO

A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na

base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica

da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC

com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou

resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os

generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de

enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo

Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de

exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do

auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para

motivaacute-los nas lutas de determinada batalha

Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente

de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes

ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos

princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente

devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e

historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)

Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares

e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos

discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan

Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa

destacando

Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso

presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le

antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos

constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en

apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten

maacutes (ZOIDO 2007 p 22)

Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma

diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense

Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de

10

ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por

ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito

transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte

Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo

tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo

profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo

militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento

perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua

vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou

para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde

dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios

gregos (JAEGER 2010 p 1215)

Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte

sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise

Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja

as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa

O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a

respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a

presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no

conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que

a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o

que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no

decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas

poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as

democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte

asiaacutetica

Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da

identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de

pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas

reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o

corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico

por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo

prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da

historiografia do mundo antigo

Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um

auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em

11

seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com

membros provindos de diferentes culturas

Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica

desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das

arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios

retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a

um auditoacuterio multieacutetnico

A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem

eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de

401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a

finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo

vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados

em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de

volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o

Grande fundador do Impeacuterio Persa

A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de

exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio

formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute

constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se

trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a

historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees

De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no

Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no

acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo

em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave

negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar

metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma

relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro

da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja

a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo

1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre

diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade

tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos

Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)

12

tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da

Escola do Annales Barros nota que

Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de

conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores

como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem

comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo

de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que

analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a

considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de

singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)

Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que

abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo

antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca

(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio

Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La

diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda

Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo

Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um

tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa

sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos

se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta

de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para

entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e

historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)

O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash

constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado

pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a

primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha

pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em

respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

(ZOIDO 2007 p 32)

De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute

dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o

Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as

novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com

13

os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa

pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores

gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas

militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees

preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por

fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que

consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas

primeiras partes desse trabalho

14

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE

CLAacuteSSICA

A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde

aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do

pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam

para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular

Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a

definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a

ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos

acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos

referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje

21 A Retoacuterica

A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica

do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de

Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o

fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de

ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)

Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis

que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)

O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-

se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia

qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos

das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)

Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a

forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada

narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo

do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do

orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da

coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES

Retoacuterica 1 3 1358b)

15

A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia

(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de

apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo

pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor

das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os

sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos

tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam

advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os

sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal

Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta

mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave

retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva

considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a

cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta

pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a

adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila

A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus

contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente

por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser

capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para

por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de

argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute

vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo

houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio

ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)

Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum

discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo

como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a

comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou

emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade

estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se

sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se

transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003

p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de

certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo

16

Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um

importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a

retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se

baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade

grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o

bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na

retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte

Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados

y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la

oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica

claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que

describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)

A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora

princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica

Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da

existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo

republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em

assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam

para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia

de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no

senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento

para aquisiccedilatildeo de influecircncia

Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus

clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano

(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de

sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos

discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu

Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica

orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma

participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se

representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute

centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja

devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser

reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto

conforme Reboul novas perspectivas surgem

17

Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas

democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o

testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc

(REBOUL 2004 p 76)

Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai

preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O

cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina

religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo

para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma

atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as

passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio

entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem

duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se

tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca

A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois

tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos

vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os

responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes

que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de

evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para

insinuar falsas ideias no espiacuterito

No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis

pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em

nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada

vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica

em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute

a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo

(REBOUL 2004 p 81)

Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso

na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda

e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de

indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a

esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de

possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer

18

do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do

apoio massivo da populaccedilatildeo

Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de

diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash

protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave

anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos

ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma

retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)

Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma

interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas

que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por

representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais

importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os

tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim

classificando diversos tipos de argumentos

Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e

Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de

um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os

juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram

por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)

Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia

que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute

que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua

classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica

Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica

originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor

da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2

Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram

atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim

como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De

maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de

manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim

2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo

19

vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter

ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para

Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo

que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define

retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo

(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores

que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a

medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da

distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)

Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la

mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por

meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila

entre os indiviacuteduos

Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se

retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas

que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito

do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo

proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma

retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e

se confirma (MEYER 2007 p 26)

Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele

atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito

de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a

argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta

apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)

Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da

problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide

Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira

[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos

trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso

para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito

e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-

resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases

(MOSCA 2007 p 9)

22 Retoacuterica e Historiografia

20

Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela

retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma

pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal

arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou

exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a

importante observaccedilatildeo de Zoido

Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir

em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso

historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para

persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores

pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica

emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica

(ZOIDO 2007 p 67)

Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos

historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura

Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias

concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia

como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos

autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela

tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do

Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e

sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se

servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo

Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as

conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos

retoacutericos

Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y

particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico

haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por

tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues

quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos

ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica

Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os

de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma

21

forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos

de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos

de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido

amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal

diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais

que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel

acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante

notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a

um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o

historiador

Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga

Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente

ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute

mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte

eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-

se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos

retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato

Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de

exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse

respeito afirma que

Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el

marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las

eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la

evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y

historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)

Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo

justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo

inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave

literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as

diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra

de uma morte gloriosa

Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)

como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess

enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo

de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus

apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la

22

elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la

retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)

No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande

entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico

Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric

antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de

las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla

historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)

Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares

protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a

polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os

principais autores em debate

Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras

que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el

general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel

utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)

Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram

realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do

testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the

Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de

Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de

pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior

enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de

argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto

O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos

tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia

contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa

que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais

discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo

23

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO

31 Xenofonte

Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC

pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer

em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua

juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua

personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras

Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas

no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo

aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se

evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que

adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha

declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves

concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates

Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que

rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes

Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o

encontro de Xenofonte com Soacutecrates

Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-

lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos

Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam

excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo

e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)

Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo

o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma

passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e

publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis

Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa

filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na

composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se

junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu

irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento

3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar

um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta

24

resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio

hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas

obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de

personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e

para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)

Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central

Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei

Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos

lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os

baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei

de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens

em Atenas

O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos

historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no

afastamento de suas respectivas paacutetrias

Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados

voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes

que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido

Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta

circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no

fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten

ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones

exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de

um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)

O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma

propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal

conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de

agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse

histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo

(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana

ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e

Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever

4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu

significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho

pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais

educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed

Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)

25

Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave

multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um

apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio

que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador

entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre

uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do

tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador

de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da

escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo

de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha

aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)

Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para

acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para

verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais

se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um

dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante

na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de

novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em

Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do

gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos

santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em

favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo

Medina

Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O

Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da

CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A

Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos

seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um

testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez

e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)

311Obras com Narrativas Histoacutericas

26

Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado

a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus

elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm

sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC

3111Anaacutebase

Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha

militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar

Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o

antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o

interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os

mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa

A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs

as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas

durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum

o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado

grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da

parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes

pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu

Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes

poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os

exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no

entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo

eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de

atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes

3112Ciropedia

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras

gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem

enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia

de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro

comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas

conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do

acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo

27

possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica

Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal

como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do

seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom

comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)

Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se

corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira

poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas

correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o

governante

O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas

como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra

daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso

ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado

nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p

85)

Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria

dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p

1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo

paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma

referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar

riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre

os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes

guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute

uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia

Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade

na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de

Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da

Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha

proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo

3113Hellecircnica

Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se

passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do

28

ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431

aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento

A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o

mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009

p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque

criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente

admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia

Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado

independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se

um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a

coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da

Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais

com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e

ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6

cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7

Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como

em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma

no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa

forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas

O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia

da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento

poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e

de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma

divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das

foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando

pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem

diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate

contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige

como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois

partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a

forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos

oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)

5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado

em batalha

29

Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em

assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas

levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa

caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra

em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de

influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade

Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse

expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de

pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas

reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo

com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas

quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma

elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da

retoacuterica no periacuteodo

Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como

explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato

deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue

o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos

perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade

caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a

comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela

instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis

Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de

um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma

forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento

de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a

fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da

comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da

populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma

formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou

ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas

8 Identificado pelo termo grego Isegoria

30

De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma

classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de

vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal

como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida

regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo

pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)

33 Identidade Helecircnica

Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania

costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute

importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham

membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma

mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o

tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas

caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo

momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados

com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato

recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade

helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos

O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas

nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra

natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido

dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o

quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a

mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados

por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute

bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o

responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos

do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos

templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes

natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o

ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos

para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e

bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis

subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis

fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo

aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando

novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-

lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)

31

Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em

relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos

sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com

os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao

contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio

grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar

agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo

de alteridade para com os baacuterbaros

Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da

Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de

reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade

sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle

sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de

um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos

como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)

34 Cultura Militar

A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o

advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha

Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os

soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de

batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes

heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns

Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda

modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir

uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da

cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo

modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a

formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual

ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua

posiccedilatildeo dentro da falange

Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura

necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo

9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as

liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo

32

compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de

sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees

cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave

imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas

sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a

braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma

mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais

manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para

proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua

esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem

comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)

Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na

guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e

escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na

cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do

cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos

eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)

De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de

guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os

imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No

entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que

soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC

33

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE

Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo

militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se

como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por

membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e

as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de

diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de

Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na

composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o

papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal

personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais

oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser

comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos

A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos

de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos

um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa

ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre

uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo

a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia

em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de

metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e

baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia

algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes

religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo

Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos

argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a

finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte

Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do

loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce

no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos

34

eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do

auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as

estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio

Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns

referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas

consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos

de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts

Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)

A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute

persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado

discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do

orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute

se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo

lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas

peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a

ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao

tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees

como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees

propostas por este trabalho

Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo

preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL

2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a

disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos

Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para

persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema

criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)

O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato

passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos

dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma

determinada identidade presente em ambos

P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades

P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo

35

faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem

seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)

O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada

conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A

entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A

utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que

natildeo se mostra expliacutecito

() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a

atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito

de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos

ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar

com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se

confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa

uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E

no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter

problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)

No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os

argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A

identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum

tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o

argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a

analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e

realidade

Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da

problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior

sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de

forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica

Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo

discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do

estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido

(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen

und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas

militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos

eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias

diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade

36

sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a

comunidade

dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da

superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo

estrateacutegica

endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo

ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares

Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso

em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de

importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da

que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de

satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de

possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos

Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate

Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)

anterior ao combate

Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem

indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)

Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode

tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito

Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate

Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate

42 As Arengas Militares na Anaacutebase

A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de

acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p

537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico

o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais

discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino

37

Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa

atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela

tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus

emissores como demonstrado na seguinte tabela

Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 173-4 1 Ciro

2 176-7 1 Ciro

3 1812 4 Ciro

4 3115-26 1 Xenofonte

5 3135-45 1 Xenofonte

6 322-3 2 Quiriacutesofo

7 324-6 2 Cleanor

8 328-32 2 Xenofonte

9 3234-39 2 Xenofonte

10 3446 4 Xenofonte

11 4814 4 Xenofonte

12 5419-21 2 Xenofonte

13 6312-18 2 Xenofonte

14 6323-4 4 Xenofonte

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase

Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves

caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute

possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados

apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de

observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto

pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos

emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas

expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute

autor apenas das trecircs primeiras arengas

10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957

Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash

seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco

de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu

38

Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do

priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos

generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve

um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um

consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar

do trono do Impeacuterio Aquemecircnida

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro

I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-

vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como

sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas

Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme

e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de

vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-

vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar

inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu

lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra

Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem

pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do

perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute

raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o

fazer ao que satildeo de desmesurados

II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor

toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do

frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo

Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu

medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai

tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma

coroa de oiro

39

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase

No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e

sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro

Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento

presente no conjunto de valores helenos

Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como

gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens

helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que

represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra

deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do

discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores

Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela

liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a

sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a

liberdade

O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos

baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos

isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de

acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade

entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela

qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta

ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de

questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste

caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado

para uma comunidade grega

No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir

qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a

preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos

em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao

perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas

11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original

40

fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para

obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos

anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash

isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a

possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo

de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica

de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no

iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō

aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas

homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o

proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo

aos outrosrdquo

Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo

bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era

inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma

identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria

inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu

auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o

auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de

batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute

diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos

esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma

maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente

foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de

atingir os reais valores do auditoacuterio

423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)

Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro

persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei

12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados

41

III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa

A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada

aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica

424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor

Xenofonte

IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho

diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo

natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se

por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a

cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte

imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou

mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte

infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o

guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que

vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me

inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da

terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir

quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens

senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os

juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me

mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que

implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que

esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses

declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios

enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos

Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela

compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos

trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso

braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do

que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo

percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais

13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo

42

ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais

valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde

voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus

poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades

Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-

no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio

V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo

prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar

armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema

pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-

nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os

soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como

cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os

exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa

obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em

tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra

tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for

necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute

prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes

nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede

do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute

reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como

eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se

dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de

distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente

com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal

que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na

guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra

sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e

inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo

salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a

morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas

probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e

43

provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos

outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase

Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no

conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de

mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete

ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as

principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar

que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento

acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a

exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos

de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua

sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as

arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas

ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de

Tipo 4

Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer

a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem

sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave

arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se

apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO

2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja

ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo

O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de

expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave

traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo

sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os

baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os

capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E

como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil

tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o

44

segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a

debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais

aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera

mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom

a ajuda dos Deusesrdquo

Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz

parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam

implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos

os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos

deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva

uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte

incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo

425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor

QuisriacutesofoCleanor

VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples

camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu

ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como

gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a

fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro

A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno

VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem

patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de

vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou

prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos

enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que

trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu

sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se

para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os

14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo

15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros

45

Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra

eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase

Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de

tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por

Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por

Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte

vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas

relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos

aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o

elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso

de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que

ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor

Xenofonte

Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que

pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela

indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco

haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o

discurso nestes termos

VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem

inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles

necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos

capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela

Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos

com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria

Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram

graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou

16 στρατηγός no texto original

46

Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos

augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos

outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles

que estiverem de acordo ergam o braccedilo

Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave

Divindade Xenofonte prosseguiu

Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos

observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os

nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto

que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os

humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que

correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos

comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que

prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir

Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a

Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar

nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que

tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o

inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova

consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo

reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate

em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a

ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para

colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo

e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a

natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a

bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito

numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave

traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem

17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor

47

Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam

com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum

de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere

que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa

batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas

O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem

de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas

inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar

de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais

certeza de pocircr o corpo no seguro

Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou

Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com

a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os

mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse

Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas

da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E

quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los

onde os haacute e quantos nos decirc na gana

Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante

Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a

noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais

em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem

impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo

satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui

fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo

vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la

e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa

terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande

empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta

domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos

Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se

de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a

48

ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade

e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer

e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o

caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para

mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta

terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador

Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova

leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu

Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for

preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o

passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As

tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor

Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que

combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas

linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm

nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e

em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje

Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou

Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais

importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades

senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos

superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de

causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes

que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do

que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir

deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que

nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que

20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras

deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo

49

aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha

ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos

Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso

que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte

acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram

Xenofonte voltou entatildeo a dizer

IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se

discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer

que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito

me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda

semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e

deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso

eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a

impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute

nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos

que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse

E como todos se calassem desassombradamente proferiu

Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda

pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e

Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as

alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale

Ningueacutem o contraditou e concluiu

Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute

dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida

que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer

aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do

vencido

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase

50

O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e

com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo

mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees

pertinentes

Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o

nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a

exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem

ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo

Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto

pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]

Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso

Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio

possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata

do sacrifiacutecio de animais aos deuses

O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas

de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da

identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo

porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo

da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com

um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo

Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos

juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam

costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador

tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio

Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria

especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo

costumerdquo 22

Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis

edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a

qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e

os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses

22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um

dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da

paacutetria em ocasiotildees preacutevias

51

decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana

[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel

encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em

seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a

Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte

restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em

que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem

dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita

quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando

baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do

exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras

Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em

tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os

antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das

premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade

Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a

identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que

enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo

Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em

primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois

afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a

participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer

venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de

todosrdquo

Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente

compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos

a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel

estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo

ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as

canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um

animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir

Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a

relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda

de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por

exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o

52

fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem

duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam

uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida

(MEYER 2007 p 26)

Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente

natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que

sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar

Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]

que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim

do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero

epidiacutectico

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos

X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia

vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma

- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata

e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola

Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para

fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase

A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel

fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo

motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada

pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de

sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para

optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo

arranco23

23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois

no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante

deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda

53

Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo

dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e

para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de

valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave

sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga

tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o

fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo

Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado

criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada

por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do

cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo

com o restante da tropa

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los

em estilhas

()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo

dobrado

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase

O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um

uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a

premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em

estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel

Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute

fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos

reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN

TYTECA 2004p 302)

existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na

Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos

54

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e

aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os

grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os

companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via

disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse

XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que

ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os

Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram

com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem

podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se

afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila

connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente

diversa daquela com que se mediram haacute pouco

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase

Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que

poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a

devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante

constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e

exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)

que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute

por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a

cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo

Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas

principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus

proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus

argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias

reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem

castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade

55

em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso

por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua

companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele

incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que

pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas

agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a

vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o

inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar

de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute

estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso

acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das

tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a

certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo

tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma

oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte

sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado

dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar

salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que

natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a

cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de

tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de

maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que

nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos

para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da

vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em

jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante

Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade

toda e armasse tendas onde lhe desse gana

56

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase

O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o

inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela

exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja

buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que

julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos

No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta

a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como

ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a

agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para

oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar

um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de

acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)

O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo

algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis

ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem

recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem

de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada

O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a

respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de

pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no

discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador

todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com

integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade

entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se

todos pertencessem agrave mesma comunidade

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes

sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate

57

Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos

chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos

ouvirem contar os feitos que praticastes

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase

A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash

ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em

consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim

como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do

uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da

seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns

pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar

os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute

a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que

busquem a noccedilatildeo de pertencimento

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase

Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma

constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a

ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros

De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo

da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)

Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica

enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte

De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos

de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute

negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar

coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave

Greacutecia

24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)

58

Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios

retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a

distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os

baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais

possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o

orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que

todos pertencem a uma mesma comunidade

Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a

sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o

impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda

agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)

Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de

exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto

quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves

divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta

explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente

que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-

se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma

autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute

expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois

ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante

seus pares

Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por

sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade

43Arengas Militares na Ciropedia

A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem

de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p

59

537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no

quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1

Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 157-14 1 Ciro o Grande

2 2111 1 Ciro o Grande

3 2114-18 2 Ciro o Grande

4 232-4 2 Ciro o Grande

5 323-6 1 Ciro o Grande

6 3334-9 1 Ciro o Grande

7 3341-2 1 Ciro o Grande

8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios

9 3359 5 Soldados Persas

10 3361-2 5 Ciro o Grande

11 411-6 6 Ciro o Grande

12 4221-6 1 Ciro o Grande

13 6214-20 1 Ciro o Grande

14 6413-20 1 Ciro o Grande

15 7110-14 4 Ciro o Grande

16 7519-24 1 Ciro o Grande

Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia

Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2

podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a

obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso

ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo

que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma

grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou

seja as proferidas apenas aos capitatildees

Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada

pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um

25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo

Claacutessicos Jacson)

60

de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga

militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto

oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande

motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal

praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a

batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja

A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores

Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram

que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui

eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar

- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por

ventura nova coragem

- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais

elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons

arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco

uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio

preliminar

- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo

- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha

de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a

arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de

maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da

fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo

humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma

existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias

Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o

valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o

germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder

triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam

pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e

ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se

exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a

necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-

ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta

virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico

um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)

O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre

irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da

obra quatorze arengas

Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe

aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a

exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)

61

No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois

os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou

seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo

como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para

que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da

polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo

extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo

em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em

ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista

notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim

mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande

Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por

seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso

I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a

vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis

em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por

que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma

virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26

Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles

que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele

jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos

para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre

a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a

penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e

prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos

envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de

sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos

e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de

26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)

62

ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena

parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a

infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei

pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o

epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir

uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo

podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que

se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que

esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que

hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo

contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os

trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees

no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e

mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem

aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais

incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais

exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado

desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute

sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos

inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto

confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos

tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que

romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais

justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes

um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta

exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come

todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e

reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com

meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos

faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade

63

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia

Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-

comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de

comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos

pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade

devido agrave melhor formaccedilatildeo militar

Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a

resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera

rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como

tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes

CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de

comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra

Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia

considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso

conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha

enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de

gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis

fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos

O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que

os deuses satildeo favoraacuteveis

Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo

se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave

volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais

CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena

confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves

divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as

grandes quer as pequenas

O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo

AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente

puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses

Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre

CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos

persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence

Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e

nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar

os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos

Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um

importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte

utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que

Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar

cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa

64

cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o

reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer

O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio

irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem

a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal

Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN

TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma

Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar

espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se

entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute

gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois

de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei

ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que

depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria

deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e

estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se

poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para

motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate

mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um

grupo multieacutetnico

De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a

uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel

que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha

com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo

com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir

Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer

a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite

liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo

militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)

Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de

identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter

epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos

verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente

duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis

de Ciro que antecede a batalha de Sardes

65

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios

VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar

pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas

mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto

ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos

Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do

inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem

estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais

fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois

quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que

estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia

Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte

contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo

de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso

de pertencimento

Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas

vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia

do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses

valores

Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por

Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes

nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal

exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o

modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que

rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso

totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio

66

433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande

Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu

Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia

- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes

A outros

ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas

tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa

A outros

- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios

de possuir grandes bens mas dai provas de coragem

A outros

- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os

bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas

A outros

- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar

tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua

honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de

covardia ou de infacircmia

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia

Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se

trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a

totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a

exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga

extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro

O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de

pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso

explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1

67

Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um

padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as

arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista

de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes

de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e

antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica

- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a

pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 1124 2 Farnabazo

2 2413-17 3 Trasibulo

3 5114-17 2 Teleutias

4 7130 4 Arquidamo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27

Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes

palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de

olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era

quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e

crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre

todos os gregos

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica

Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio

do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante

lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No

entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras

de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim

27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu

68

Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como

nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um

discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel

Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias

metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo

literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte

Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da

Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no

corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante

regularidade

Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em

questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o

eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade

Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e

o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal

diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos

imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso

O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia

para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute

fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da

sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades

- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o

assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo

- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O

conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um

juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles

- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva

Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente

valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)

Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se

constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na

Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio

para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus

69

ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio

enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre

Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da

congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por

exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir

revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o

Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do

auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute

de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos

A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo

constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos

discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar

pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os

gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o

Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante

deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que

natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas

de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras

70

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos

discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por

Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em

perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos

detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que

esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou

ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso

definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o

pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()

Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila

atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as

arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o

Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria

de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o

Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos

que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los

Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra

personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de

Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao

longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em

questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador

Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio

natildeo eacute abolida

Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre

indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando

o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a

noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao

mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas

vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar

cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a

uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento

comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees

71

Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a

relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos

expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma

comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um

passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a

necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem

a uma mesma comunidade

A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia

verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que

formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas

virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite

compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um

auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal

como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um

estilo austero de uma vida militar

Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia

percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira

obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)

enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan

Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma

justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador

persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para

Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que

Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele

possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da

Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte

Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma

explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees

do autor em torno das arengas militares

De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um

discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo

aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que

almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta

72

para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo

de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir

um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo

Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da

histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas

epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras

Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise

retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a

necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua

sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal

A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos

interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno

da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu

muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio

para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas

possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema

73

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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puacuteblico Pensamentos poliacuteticos selecionados Satildeo Paulo Nova Alexandria 2000

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Page 5: Cidadania e Multietnicidade: a Noção de Pertencimento e as

5

ABSTRACT

This research aims to determine the notion of belonging in a community recurrent in pre-

battle speeches present in Xenophonrsquos (430-354 BC) texts The method used in this study is a

comparison between pre-battle speeches addressed to an audience of members belonging in a

community who share the same value system and same citizenship and the pre-battle speeches

addressed to a multi-ethnic audience where members come from different cultures It applies

a comparative analysis of the rhetoric between two of Xenophonrsquos writings Anabasis and

Cyropaedia The method consists of pointing out technical differences such as rhetorical

artifices identifying the crux of the arguments in order to discern in the speeches especially

with their differences the influence of the notion of belonging The importance of the rhetoric

in this research is also due to the fact that the historiographic tradition of the Ancient World is

based in this art of persuasion which influenced the literature at the time

Keywords pre-battle speeches Xenophon rhetoric historiography

6

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase 37

Tabela 2 ndash Arengas Militares da Ciropedia 59

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnicas 67

7

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 9

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA14

21 A Retoacuterica 14

22 Retoacuterica e Historiografia19

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica 20

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO 23

31 Xenofonte 23

311 Obras com Narrativas Histoacutericas25

3111 Anaacutebase 26

3112 Ciropedia 26

3113 Hellecircnica 27

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia 28

33 Identidade Helecircnica 30

34 Cultura Militar 31

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE 33

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo 33

42 As Arengas Militares na Anaacutebase 36

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro 38

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase 39

423 Arenga III ndash Anaacutebase (1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto) 40

424 Arengas IV e V ndash Anaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1 ndash Emissor Xenofonte41

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase 43

425 Arengas VI e VII ndash Anaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2 ndash Emissor QuisriacutesofoCleanor 44

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase 45

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 45

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase 49

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte52

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase 52

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 53

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase 53

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 54

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase 54

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 55

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase 56

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 56

8

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57

43 Arengas Militares na Ciropedia 58

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65

433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66

434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67

44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73

9

1 INTRODUCcedilAtildeO

A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na

base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica

da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC

com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou

resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os

generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de

enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo

Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de

exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do

auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para

motivaacute-los nas lutas de determinada batalha

Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente

de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes

ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos

princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente

devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e

historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)

Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares

e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos

discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan

Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa

destacando

Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso

presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le

antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos

constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en

apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten

maacutes (ZOIDO 2007 p 22)

Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma

diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense

Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de

10

ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por

ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito

transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte

Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo

tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo

profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo

militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento

perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua

vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou

para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde

dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios

gregos (JAEGER 2010 p 1215)

Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte

sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise

Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja

as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa

O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a

respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a

presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no

conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que

a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o

que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no

decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas

poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as

democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte

asiaacutetica

Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da

identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de

pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas

reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o

corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico

por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo

prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da

historiografia do mundo antigo

Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um

auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em

11

seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com

membros provindos de diferentes culturas

Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica

desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das

arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios

retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a

um auditoacuterio multieacutetnico

A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem

eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de

401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a

finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo

vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados

em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de

volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o

Grande fundador do Impeacuterio Persa

A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de

exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio

formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute

constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se

trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a

historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees

De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no

Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no

acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo

em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave

negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar

metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma

relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro

da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja

a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo

1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre

diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade

tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos

Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)

12

tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da

Escola do Annales Barros nota que

Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de

conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores

como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem

comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo

de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que

analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a

considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de

singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)

Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que

abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo

antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca

(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio

Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La

diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda

Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo

Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um

tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa

sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos

se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta

de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para

entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e

historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)

O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash

constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado

pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a

primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha

pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em

respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

(ZOIDO 2007 p 32)

De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute

dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o

Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as

novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com

13

os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa

pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores

gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas

militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees

preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por

fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que

consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas

primeiras partes desse trabalho

14

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE

CLAacuteSSICA

A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde

aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do

pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam

para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular

Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a

definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a

ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos

acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos

referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje

21 A Retoacuterica

A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica

do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de

Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o

fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de

ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)

Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis

que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)

O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-

se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia

qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos

das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)

Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a

forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada

narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo

do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do

orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da

coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES

Retoacuterica 1 3 1358b)

15

A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia

(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de

apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo

pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor

das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os

sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos

tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam

advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os

sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal

Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta

mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave

retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva

considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a

cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta

pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a

adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila

A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus

contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente

por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser

capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para

por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de

argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute

vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo

houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio

ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)

Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum

discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo

como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a

comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou

emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade

estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se

sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se

transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003

p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de

certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo

16

Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um

importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a

retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se

baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade

grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o

bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na

retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte

Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados

y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la

oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica

claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que

describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)

A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora

princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica

Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da

existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo

republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em

assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam

para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia

de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no

senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento

para aquisiccedilatildeo de influecircncia

Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus

clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano

(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de

sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos

discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu

Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica

orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma

participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se

representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute

centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja

devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser

reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto

conforme Reboul novas perspectivas surgem

17

Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas

democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o

testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc

(REBOUL 2004 p 76)

Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai

preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O

cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina

religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo

para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma

atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as

passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio

entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem

duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se

tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca

A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois

tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos

vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os

responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes

que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de

evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para

insinuar falsas ideias no espiacuterito

No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis

pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em

nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada

vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica

em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute

a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo

(REBOUL 2004 p 81)

Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso

na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda

e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de

indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a

esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de

possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer

18

do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do

apoio massivo da populaccedilatildeo

Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de

diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash

protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave

anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos

ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma

retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)

Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma

interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas

que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por

representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais

importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os

tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim

classificando diversos tipos de argumentos

Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e

Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de

um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os

juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram

por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)

Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia

que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute

que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua

classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica

Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica

originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor

da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2

Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram

atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim

como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De

maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de

manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim

2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo

19

vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter

ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para

Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo

que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define

retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo

(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores

que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a

medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da

distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)

Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la

mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por

meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila

entre os indiviacuteduos

Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se

retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas

que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito

do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo

proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma

retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e

se confirma (MEYER 2007 p 26)

Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele

atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito

de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a

argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta

apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)

Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da

problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide

Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira

[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos

trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso

para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito

e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-

resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases

(MOSCA 2007 p 9)

22 Retoacuterica e Historiografia

20

Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela

retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma

pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal

arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou

exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a

importante observaccedilatildeo de Zoido

Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir

em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso

historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para

persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores

pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica

emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica

(ZOIDO 2007 p 67)

Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos

historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura

Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias

concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia

como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos

autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela

tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do

Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e

sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se

servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo

Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as

conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos

retoacutericos

Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y

particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico

haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por

tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues

quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos

ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica

Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os

de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma

21

forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos

de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos

de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido

amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal

diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais

que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel

acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante

notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a

um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o

historiador

Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga

Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente

ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute

mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte

eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-

se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos

retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato

Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de

exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse

respeito afirma que

Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el

marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las

eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la

evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y

historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)

Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo

justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo

inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave

literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as

diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra

de uma morte gloriosa

Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)

como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess

enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo

de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus

apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la

22

elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la

retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)

No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande

entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico

Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric

antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de

las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla

historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)

Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares

protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a

polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os

principais autores em debate

Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras

que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el

general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel

utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)

Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram

realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do

testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the

Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de

Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de

pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior

enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de

argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto

O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos

tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia

contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa

que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais

discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo

23

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO

31 Xenofonte

Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC

pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer

em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua

juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua

personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras

Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas

no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo

aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se

evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que

adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha

declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves

concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates

Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que

rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes

Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o

encontro de Xenofonte com Soacutecrates

Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-

lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos

Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam

excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo

e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)

Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo

o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma

passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e

publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis

Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa

filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na

composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se

junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu

irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento

3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar

um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta

24

resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio

hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas

obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de

personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e

para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)

Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central

Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei

Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos

lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os

baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei

de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens

em Atenas

O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos

historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no

afastamento de suas respectivas paacutetrias

Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados

voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes

que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido

Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta

circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no

fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten

ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones

exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de

um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)

O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma

propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal

conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de

agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse

histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo

(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana

ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e

Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever

4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu

significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho

pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais

educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed

Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)

25

Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave

multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um

apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio

que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador

entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre

uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do

tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador

de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da

escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo

de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha

aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)

Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para

acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para

verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais

se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um

dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante

na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de

novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em

Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do

gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos

santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em

favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo

Medina

Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O

Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da

CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A

Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos

seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um

testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez

e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)

311Obras com Narrativas Histoacutericas

26

Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado

a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus

elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm

sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC

3111Anaacutebase

Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha

militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar

Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o

antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o

interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os

mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa

A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs

as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas

durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum

o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado

grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da

parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes

pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu

Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes

poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os

exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no

entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo

eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de

atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes

3112Ciropedia

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras

gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem

enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia

de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro

comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas

conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do

acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo

27

possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica

Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal

como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do

seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom

comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)

Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se

corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira

poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas

correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o

governante

O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas

como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra

daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso

ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado

nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p

85)

Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria

dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p

1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo

paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma

referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar

riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre

os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes

guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute

uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia

Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade

na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de

Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da

Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha

proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo

3113Hellecircnica

Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se

passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do

28

ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431

aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento

A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o

mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009

p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque

criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente

admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia

Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado

independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se

um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a

coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da

Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais

com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e

ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6

cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7

Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como

em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma

no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa

forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas

O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia

da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento

poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e

de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma

divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das

foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando

pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem

diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate

contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige

como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois

partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a

forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos

oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)

5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado

em batalha

29

Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em

assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas

levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa

caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra

em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de

influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade

Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse

expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de

pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas

reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo

com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas

quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma

elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da

retoacuterica no periacuteodo

Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como

explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato

deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue

o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos

perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade

caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a

comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela

instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis

Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de

um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma

forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento

de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a

fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da

comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da

populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma

formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou

ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas

8 Identificado pelo termo grego Isegoria

30

De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma

classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de

vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal

como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida

regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo

pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)

33 Identidade Helecircnica

Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania

costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute

importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham

membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma

mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o

tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas

caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo

momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados

com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato

recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade

helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos

O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas

nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra

natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido

dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o

quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a

mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados

por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute

bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o

responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos

do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos

templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes

natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o

ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos

para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e

bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis

subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis

fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo

aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando

novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-

lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)

31

Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em

relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos

sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com

os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao

contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio

grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar

agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo

de alteridade para com os baacuterbaros

Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da

Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de

reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade

sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle

sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de

um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos

como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)

34 Cultura Militar

A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o

advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha

Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os

soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de

batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes

heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns

Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda

modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir

uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da

cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo

modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a

formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual

ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua

posiccedilatildeo dentro da falange

Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura

necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo

9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as

liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo

32

compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de

sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees

cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave

imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas

sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a

braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma

mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais

manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para

proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua

esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem

comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)

Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na

guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e

escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na

cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do

cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos

eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)

De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de

guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os

imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No

entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que

soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC

33

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE

Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo

militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se

como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por

membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e

as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de

diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de

Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na

composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o

papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal

personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais

oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser

comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos

A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos

de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos

um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa

ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre

uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo

a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia

em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de

metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e

baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia

algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes

religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo

Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos

argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a

finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte

Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do

loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce

no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos

34

eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do

auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as

estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio

Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns

referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas

consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos

de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts

Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)

A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute

persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado

discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do

orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute

se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo

lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas

peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a

ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao

tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees

como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees

propostas por este trabalho

Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo

preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL

2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a

disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos

Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para

persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema

criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)

O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato

passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos

dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma

determinada identidade presente em ambos

P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades

P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo

35

faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem

seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)

O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada

conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A

entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A

utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que

natildeo se mostra expliacutecito

() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a

atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito

de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos

ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar

com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se

confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa

uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E

no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter

problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)

No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os

argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A

identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum

tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o

argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a

analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e

realidade

Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da

problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior

sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de

forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica

Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo

discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do

estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido

(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen

und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas

militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos

eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias

diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade

36

sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a

comunidade

dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da

superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo

estrateacutegica

endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo

ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares

Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso

em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de

importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da

que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de

satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de

possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos

Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate

Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)

anterior ao combate

Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem

indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)

Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode

tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito

Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate

Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate

42 As Arengas Militares na Anaacutebase

A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de

acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p

537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico

o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais

discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino

37

Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa

atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela

tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus

emissores como demonstrado na seguinte tabela

Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 173-4 1 Ciro

2 176-7 1 Ciro

3 1812 4 Ciro

4 3115-26 1 Xenofonte

5 3135-45 1 Xenofonte

6 322-3 2 Quiriacutesofo

7 324-6 2 Cleanor

8 328-32 2 Xenofonte

9 3234-39 2 Xenofonte

10 3446 4 Xenofonte

11 4814 4 Xenofonte

12 5419-21 2 Xenofonte

13 6312-18 2 Xenofonte

14 6323-4 4 Xenofonte

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase

Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves

caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute

possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados

apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de

observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto

pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos

emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas

expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute

autor apenas das trecircs primeiras arengas

10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957

Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash

seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco

de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu

38

Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do

priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos

generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve

um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um

consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar

do trono do Impeacuterio Aquemecircnida

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro

I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-

vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como

sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas

Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme

e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de

vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-

vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar

inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu

lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra

Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem

pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do

perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute

raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o

fazer ao que satildeo de desmesurados

II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor

toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do

frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo

Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu

medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai

tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma

coroa de oiro

39

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase

No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e

sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro

Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento

presente no conjunto de valores helenos

Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como

gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens

helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que

represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra

deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do

discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores

Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela

liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a

sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a

liberdade

O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos

baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos

isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de

acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade

entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela

qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta

ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de

questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste

caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado

para uma comunidade grega

No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir

qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a

preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos

em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao

perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas

11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original

40

fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para

obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos

anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash

isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a

possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo

de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica

de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no

iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō

aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas

homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o

proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo

aos outrosrdquo

Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo

bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era

inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma

identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria

inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu

auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o

auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de

batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute

diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos

esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma

maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente

foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de

atingir os reais valores do auditoacuterio

423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)

Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro

persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei

12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados

41

III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa

A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada

aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica

424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor

Xenofonte

IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho

diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo

natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se

por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a

cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte

imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou

mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte

infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o

guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que

vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me

inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da

terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir

quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens

senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os

juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me

mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que

implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que

esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses

declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios

enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos

Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela

compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos

trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso

braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do

que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo

percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais

13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo

42

ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais

valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde

voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus

poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades

Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-

no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio

V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo

prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar

armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema

pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-

nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os

soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como

cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os

exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa

obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em

tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra

tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for

necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute

prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes

nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede

do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute

reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como

eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se

dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de

distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente

com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal

que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na

guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra

sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e

inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo

salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a

morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas

probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e

43

provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos

outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase

Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no

conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de

mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete

ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as

principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar

que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento

acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a

exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos

de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua

sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as

arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas

ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de

Tipo 4

Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer

a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem

sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave

arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se

apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO

2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja

ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo

O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de

expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave

traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo

sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os

baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os

capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E

como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil

tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o

44

segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a

debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais

aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera

mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom

a ajuda dos Deusesrdquo

Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz

parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam

implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos

os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos

deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva

uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte

incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo

425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor

QuisriacutesofoCleanor

VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples

camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu

ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como

gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a

fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro

A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno

VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem

patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de

vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou

prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos

enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que

trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu

sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se

para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os

14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo

15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros

45

Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra

eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase

Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de

tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por

Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por

Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte

vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas

relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos

aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o

elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso

de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que

ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor

Xenofonte

Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que

pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela

indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco

haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o

discurso nestes termos

VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem

inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles

necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos

capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela

Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos

com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria

Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram

graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou

16 στρατηγός no texto original

46

Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos

augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos

outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles

que estiverem de acordo ergam o braccedilo

Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave

Divindade Xenofonte prosseguiu

Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos

observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os

nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto

que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os

humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que

correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos

comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que

prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir

Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a

Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar

nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que

tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o

inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova

consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo

reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate

em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a

ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para

colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo

e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a

natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a

bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito

numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave

traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem

17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor

47

Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam

com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum

de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere

que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa

batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas

O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem

de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas

inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar

de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais

certeza de pocircr o corpo no seguro

Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou

Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com

a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os

mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse

Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas

da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E

quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los

onde os haacute e quantos nos decirc na gana

Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante

Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a

noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais

em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem

impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo

satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui

fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo

vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la

e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa

terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande

empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta

domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos

Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se

de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a

48

ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade

e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer

e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o

caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para

mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta

terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador

Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova

leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu

Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for

preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o

passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As

tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor

Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que

combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas

linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm

nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e

em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje

Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou

Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais

importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades

senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos

superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de

causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes

que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do

que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir

deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que

nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que

20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras

deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo

49

aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha

ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos

Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso

que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte

acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram

Xenofonte voltou entatildeo a dizer

IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se

discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer

que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito

me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda

semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e

deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso

eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a

impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute

nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos

que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse

E como todos se calassem desassombradamente proferiu

Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda

pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e

Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as

alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale

Ningueacutem o contraditou e concluiu

Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute

dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida

que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer

aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do

vencido

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase

50

O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e

com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo

mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees

pertinentes

Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o

nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a

exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem

ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo

Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto

pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]

Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso

Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio

possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata

do sacrifiacutecio de animais aos deuses

O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas

de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da

identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo

porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo

da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com

um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo

Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos

juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam

costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador

tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio

Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria

especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo

costumerdquo 22

Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis

edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a

qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e

os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses

22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um

dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da

paacutetria em ocasiotildees preacutevias

51

decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana

[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel

encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em

seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a

Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte

restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em

que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem

dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita

quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando

baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do

exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras

Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em

tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os

antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das

premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade

Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a

identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que

enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo

Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em

primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois

afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a

participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer

venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de

todosrdquo

Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente

compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos

a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel

estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo

ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as

canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um

animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir

Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a

relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda

de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por

exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o

52

fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem

duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam

uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida

(MEYER 2007 p 26)

Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente

natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que

sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar

Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]

que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim

do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero

epidiacutectico

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos

X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia

vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma

- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata

e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola

Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para

fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase

A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel

fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo

motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada

pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de

sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para

optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo

arranco23

23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois

no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante

deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda

53

Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo

dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e

para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de

valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave

sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga

tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o

fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo

Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado

criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada

por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do

cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo

com o restante da tropa

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los

em estilhas

()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo

dobrado

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase

O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um

uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a

premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em

estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel

Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute

fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos

reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN

TYTECA 2004p 302)

existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na

Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos

54

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e

aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os

grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os

companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via

disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse

XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que

ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os

Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram

com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem

podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se

afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila

connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente

diversa daquela com que se mediram haacute pouco

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase

Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que

poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a

devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante

constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e

exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)

que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute

por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a

cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo

Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas

principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus

proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus

argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias

reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem

castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade

55

em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso

por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua

companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele

incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que

pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas

agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a

vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o

inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar

de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute

estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso

acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das

tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a

certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo

tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma

oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte

sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado

dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar

salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que

natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a

cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de

tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de

maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que

nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos

para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da

vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em

jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante

Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade

toda e armasse tendas onde lhe desse gana

56

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase

O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o

inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela

exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja

buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que

julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos

No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta

a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como

ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a

agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para

oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar

um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de

acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)

O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo

algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis

ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem

recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem

de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada

O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a

respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de

pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no

discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador

todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com

integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade

entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se

todos pertencessem agrave mesma comunidade

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes

sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate

57

Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos

chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos

ouvirem contar os feitos que praticastes

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase

A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash

ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em

consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim

como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do

uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da

seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns

pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar

os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute

a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que

busquem a noccedilatildeo de pertencimento

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase

Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma

constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a

ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros

De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo

da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)

Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica

enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte

De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos

de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute

negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar

coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave

Greacutecia

24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)

58

Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios

retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a

distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os

baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais

possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o

orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que

todos pertencem a uma mesma comunidade

Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a

sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o

impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda

agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)

Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de

exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto

quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves

divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta

explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente

que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-

se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma

autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute

expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois

ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante

seus pares

Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por

sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade

43Arengas Militares na Ciropedia

A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem

de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p

59

537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no

quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1

Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 157-14 1 Ciro o Grande

2 2111 1 Ciro o Grande

3 2114-18 2 Ciro o Grande

4 232-4 2 Ciro o Grande

5 323-6 1 Ciro o Grande

6 3334-9 1 Ciro o Grande

7 3341-2 1 Ciro o Grande

8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios

9 3359 5 Soldados Persas

10 3361-2 5 Ciro o Grande

11 411-6 6 Ciro o Grande

12 4221-6 1 Ciro o Grande

13 6214-20 1 Ciro o Grande

14 6413-20 1 Ciro o Grande

15 7110-14 4 Ciro o Grande

16 7519-24 1 Ciro o Grande

Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia

Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2

podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a

obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso

ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo

que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma

grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou

seja as proferidas apenas aos capitatildees

Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada

pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um

25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo

Claacutessicos Jacson)

60

de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga

militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto

oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande

motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal

praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a

batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja

A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores

Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram

que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui

eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar

- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por

ventura nova coragem

- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais

elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons

arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco

uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio

preliminar

- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo

- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha

de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a

arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de

maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da

fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo

humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma

existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias

Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o

valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o

germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder

triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam

pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e

ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se

exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a

necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-

ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta

virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico

um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)

O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre

irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da

obra quatorze arengas

Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe

aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a

exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)

61

No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois

os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou

seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo

como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para

que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da

polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo

extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo

em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em

ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista

notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim

mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande

Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por

seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso

I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a

vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis

em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por

que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma

virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26

Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles

que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele

jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos

para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre

a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a

penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e

prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos

envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de

sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos

e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de

26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)

62

ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena

parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a

infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei

pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o

epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir

uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo

podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que

se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que

esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que

hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo

contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os

trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees

no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e

mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem

aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais

incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais

exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado

desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute

sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos

inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto

confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos

tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que

romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais

justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes

um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta

exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come

todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e

reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com

meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos

faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade

63

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia

Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-

comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de

comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos

pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade

devido agrave melhor formaccedilatildeo militar

Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a

resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera

rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como

tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes

CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de

comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra

Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia

considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso

conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha

enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de

gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis

fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos

O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que

os deuses satildeo favoraacuteveis

Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo

se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave

volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais

CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena

confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves

divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as

grandes quer as pequenas

O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo

AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente

puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses

Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre

CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos

persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence

Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e

nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar

os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos

Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um

importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte

utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que

Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar

cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa

64

cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o

reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer

O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio

irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem

a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal

Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN

TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma

Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar

espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se

entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute

gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois

de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei

ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que

depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria

deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e

estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se

poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para

motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate

mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um

grupo multieacutetnico

De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a

uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel

que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha

com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo

com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir

Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer

a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite

liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo

militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)

Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de

identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter

epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos

verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente

duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis

de Ciro que antecede a batalha de Sardes

65

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios

VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar

pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas

mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto

ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos

Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do

inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem

estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais

fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois

quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que

estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia

Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte

contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo

de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso

de pertencimento

Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas

vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia

do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses

valores

Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por

Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes

nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal

exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o

modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que

rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso

totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio

66

433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande

Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu

Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia

- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes

A outros

ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas

tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa

A outros

- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios

de possuir grandes bens mas dai provas de coragem

A outros

- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os

bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas

A outros

- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar

tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua

honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de

covardia ou de infacircmia

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia

Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se

trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a

totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a

exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga

extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro

O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de

pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso

explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1

67

Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um

padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as

arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista

de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes

de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e

antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica

- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a

pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 1124 2 Farnabazo

2 2413-17 3 Trasibulo

3 5114-17 2 Teleutias

4 7130 4 Arquidamo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27

Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes

palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de

olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era

quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e

crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre

todos os gregos

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica

Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio

do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante

lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No

entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras

de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim

27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu

68

Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como

nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um

discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel

Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias

metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo

literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte

Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da

Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no

corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante

regularidade

Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em

questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o

eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade

Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e

o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal

diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos

imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso

O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia

para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute

fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da

sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades

- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o

assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo

- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O

conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um

juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles

- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva

Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente

valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)

Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se

constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na

Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio

para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus

69

ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio

enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre

Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da

congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por

exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir

revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o

Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do

auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute

de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos

A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo

constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos

discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar

pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os

gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o

Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante

deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que

natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas

de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras

70

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos

discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por

Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em

perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos

detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que

esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou

ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso

definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o

pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()

Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila

atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as

arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o

Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria

de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o

Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos

que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los

Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra

personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de

Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao

longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em

questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador

Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio

natildeo eacute abolida

Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre

indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando

o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a

noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao

mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas

vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar

cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a

uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento

comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees

71

Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a

relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos

expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma

comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um

passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a

necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem

a uma mesma comunidade

A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia

verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que

formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas

virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite

compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um

auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal

como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um

estilo austero de uma vida militar

Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia

percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira

obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)

enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan

Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma

justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador

persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para

Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que

Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele

possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da

Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte

Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma

explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees

do autor em torno das arengas militares

De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um

discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo

aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que

almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta

72

para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo

de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir

um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo

Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da

histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas

epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras

Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise

retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a

necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua

sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal

A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos

interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno

da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu

muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio

para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas

possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema

73

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Disponiacutevel em lthttpgrbslibrarydukeeduarticleview1441gt Acesso em 02 out 2015

Page 6: Cidadania e Multietnicidade: a Noção de Pertencimento e as

6

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase 37

Tabela 2 ndash Arengas Militares da Ciropedia 59

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnicas 67

7

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 9

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA14

21 A Retoacuterica 14

22 Retoacuterica e Historiografia19

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica 20

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO 23

31 Xenofonte 23

311 Obras com Narrativas Histoacutericas25

3111 Anaacutebase 26

3112 Ciropedia 26

3113 Hellecircnica 27

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia 28

33 Identidade Helecircnica 30

34 Cultura Militar 31

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE 33

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo 33

42 As Arengas Militares na Anaacutebase 36

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro 38

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase 39

423 Arenga III ndash Anaacutebase (1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto) 40

424 Arengas IV e V ndash Anaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1 ndash Emissor Xenofonte41

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase 43

425 Arengas VI e VII ndash Anaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2 ndash Emissor QuisriacutesofoCleanor 44

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase 45

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 45

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase 49

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte52

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase 52

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 53

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase 53

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 54

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase 54

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 55

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase 56

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 56

8

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57

43 Arengas Militares na Ciropedia 58

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65

433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66

434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67

44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73

9

1 INTRODUCcedilAtildeO

A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na

base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica

da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC

com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou

resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os

generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de

enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo

Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de

exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do

auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para

motivaacute-los nas lutas de determinada batalha

Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente

de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes

ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos

princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente

devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e

historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)

Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares

e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos

discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan

Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa

destacando

Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso

presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le

antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos

constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en

apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten

maacutes (ZOIDO 2007 p 22)

Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma

diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense

Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de

10

ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por

ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito

transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte

Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo

tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo

profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo

militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento

perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua

vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou

para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde

dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios

gregos (JAEGER 2010 p 1215)

Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte

sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise

Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja

as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa

O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a

respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a

presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no

conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que

a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o

que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no

decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas

poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as

democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte

asiaacutetica

Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da

identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de

pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas

reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o

corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico

por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo

prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da

historiografia do mundo antigo

Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um

auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em

11

seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com

membros provindos de diferentes culturas

Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica

desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das

arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios

retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a

um auditoacuterio multieacutetnico

A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem

eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de

401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a

finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo

vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados

em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de

volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o

Grande fundador do Impeacuterio Persa

A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de

exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio

formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute

constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se

trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a

historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees

De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no

Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no

acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo

em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave

negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar

metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma

relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro

da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja

a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo

1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre

diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade

tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos

Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)

12

tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da

Escola do Annales Barros nota que

Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de

conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores

como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem

comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo

de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que

analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a

considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de

singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)

Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que

abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo

antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca

(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio

Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La

diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda

Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo

Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um

tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa

sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos

se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta

de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para

entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e

historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)

O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash

constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado

pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a

primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha

pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em

respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

(ZOIDO 2007 p 32)

De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute

dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o

Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as

novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com

13

os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa

pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores

gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas

militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees

preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por

fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que

consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas

primeiras partes desse trabalho

14

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE

CLAacuteSSICA

A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde

aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do

pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam

para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular

Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a

definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a

ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos

acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos

referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje

21 A Retoacuterica

A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica

do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de

Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o

fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de

ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)

Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis

que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)

O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-

se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia

qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos

das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)

Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a

forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada

narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo

do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do

orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da

coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES

Retoacuterica 1 3 1358b)

15

A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia

(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de

apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo

pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor

das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os

sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos

tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam

advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os

sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal

Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta

mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave

retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva

considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a

cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta

pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a

adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila

A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus

contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente

por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser

capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para

por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de

argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute

vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo

houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio

ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)

Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum

discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo

como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a

comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou

emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade

estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se

sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se

transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003

p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de

certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo

16

Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um

importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a

retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se

baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade

grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o

bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na

retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte

Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados

y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la

oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica

claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que

describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)

A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora

princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica

Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da

existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo

republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em

assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam

para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia

de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no

senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento

para aquisiccedilatildeo de influecircncia

Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus

clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano

(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de

sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos

discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu

Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica

orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma

participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se

representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute

centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja

devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser

reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto

conforme Reboul novas perspectivas surgem

17

Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas

democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o

testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc

(REBOUL 2004 p 76)

Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai

preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O

cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina

religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo

para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma

atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as

passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio

entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem

duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se

tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca

A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois

tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos

vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os

responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes

que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de

evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para

insinuar falsas ideias no espiacuterito

No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis

pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em

nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada

vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica

em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute

a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo

(REBOUL 2004 p 81)

Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso

na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda

e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de

indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a

esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de

possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer

18

do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do

apoio massivo da populaccedilatildeo

Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de

diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash

protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave

anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos

ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma

retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)

Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma

interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas

que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por

representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais

importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os

tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim

classificando diversos tipos de argumentos

Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e

Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de

um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os

juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram

por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)

Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia

que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute

que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua

classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica

Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica

originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor

da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2

Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram

atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim

como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De

maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de

manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim

2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo

19

vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter

ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para

Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo

que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define

retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo

(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores

que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a

medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da

distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)

Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la

mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por

meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila

entre os indiviacuteduos

Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se

retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas

que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito

do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo

proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma

retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e

se confirma (MEYER 2007 p 26)

Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele

atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito

de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a

argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta

apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)

Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da

problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide

Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira

[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos

trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso

para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito

e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-

resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases

(MOSCA 2007 p 9)

22 Retoacuterica e Historiografia

20

Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela

retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma

pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal

arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou

exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a

importante observaccedilatildeo de Zoido

Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir

em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso

historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para

persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores

pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica

emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica

(ZOIDO 2007 p 67)

Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos

historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura

Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias

concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia

como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos

autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela

tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do

Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e

sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se

servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo

Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as

conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos

retoacutericos

Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y

particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico

haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por

tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues

quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos

ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica

Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os

de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma

21

forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos

de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos

de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido

amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal

diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais

que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel

acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante

notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a

um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o

historiador

Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga

Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente

ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute

mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte

eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-

se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos

retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato

Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de

exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse

respeito afirma que

Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el

marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las

eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la

evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y

historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)

Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo

justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo

inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave

literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as

diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra

de uma morte gloriosa

Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)

como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess

enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo

de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus

apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la

22

elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la

retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)

No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande

entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico

Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric

antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de

las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla

historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)

Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares

protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a

polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os

principais autores em debate

Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras

que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el

general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel

utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)

Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram

realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do

testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the

Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de

Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de

pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior

enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de

argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto

O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos

tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia

contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa

que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais

discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo

23

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO

31 Xenofonte

Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC

pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer

em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua

juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua

personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras

Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas

no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo

aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se

evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que

adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha

declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves

concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates

Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que

rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes

Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o

encontro de Xenofonte com Soacutecrates

Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-

lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos

Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam

excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo

e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)

Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo

o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma

passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e

publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis

Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa

filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na

composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se

junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu

irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento

3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar

um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta

24

resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio

hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas

obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de

personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e

para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)

Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central

Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei

Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos

lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os

baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei

de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens

em Atenas

O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos

historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no

afastamento de suas respectivas paacutetrias

Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados

voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes

que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido

Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta

circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no

fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten

ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones

exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de

um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)

O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma

propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal

conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de

agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse

histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo

(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana

ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e

Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever

4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu

significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho

pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais

educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed

Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)

25

Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave

multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um

apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio

que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador

entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre

uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do

tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador

de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da

escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo

de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha

aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)

Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para

acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para

verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais

se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um

dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante

na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de

novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em

Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do

gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos

santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em

favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo

Medina

Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O

Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da

CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A

Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos

seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um

testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez

e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)

311Obras com Narrativas Histoacutericas

26

Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado

a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus

elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm

sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC

3111Anaacutebase

Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha

militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar

Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o

antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o

interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os

mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa

A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs

as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas

durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum

o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado

grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da

parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes

pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu

Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes

poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os

exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no

entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo

eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de

atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes

3112Ciropedia

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras

gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem

enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia

de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro

comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas

conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do

acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo

27

possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica

Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal

como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do

seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom

comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)

Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se

corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira

poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas

correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o

governante

O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas

como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra

daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso

ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado

nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p

85)

Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria

dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p

1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo

paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma

referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar

riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre

os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes

guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute

uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia

Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade

na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de

Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da

Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha

proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo

3113Hellecircnica

Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se

passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do

28

ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431

aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento

A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o

mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009

p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque

criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente

admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia

Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado

independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se

um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a

coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da

Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais

com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e

ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6

cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7

Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como

em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma

no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa

forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas

O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia

da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento

poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e

de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma

divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das

foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando

pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem

diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate

contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige

como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois

partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a

forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos

oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)

5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado

em batalha

29

Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em

assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas

levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa

caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra

em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de

influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade

Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse

expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de

pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas

reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo

com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas

quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma

elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da

retoacuterica no periacuteodo

Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como

explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato

deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue

o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos

perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade

caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a

comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela

instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis

Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de

um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma

forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento

de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a

fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da

comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da

populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma

formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou

ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas

8 Identificado pelo termo grego Isegoria

30

De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma

classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de

vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal

como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida

regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo

pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)

33 Identidade Helecircnica

Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania

costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute

importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham

membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma

mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o

tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas

caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo

momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados

com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato

recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade

helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos

O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas

nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra

natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido

dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o

quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a

mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados

por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute

bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o

responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos

do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos

templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes

natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o

ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos

para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e

bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis

subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis

fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo

aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando

novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-

lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)

31

Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em

relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos

sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com

os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao

contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio

grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar

agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo

de alteridade para com os baacuterbaros

Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da

Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de

reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade

sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle

sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de

um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos

como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)

34 Cultura Militar

A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o

advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha

Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os

soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de

batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes

heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns

Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda

modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir

uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da

cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo

modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a

formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual

ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua

posiccedilatildeo dentro da falange

Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura

necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo

9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as

liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo

32

compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de

sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees

cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave

imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas

sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a

braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma

mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais

manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para

proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua

esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem

comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)

Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na

guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e

escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na

cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do

cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos

eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)

De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de

guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os

imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No

entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que

soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC

33

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE

Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo

militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se

como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por

membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e

as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de

diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de

Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na

composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o

papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal

personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais

oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser

comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos

A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos

de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos

um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa

ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre

uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo

a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia

em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de

metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e

baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia

algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes

religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo

Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos

argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a

finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte

Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do

loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce

no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos

34

eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do

auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as

estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio

Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns

referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas

consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos

de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts

Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)

A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute

persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado

discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do

orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute

se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo

lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas

peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a

ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao

tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees

como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees

propostas por este trabalho

Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo

preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL

2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a

disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos

Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para

persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema

criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)

O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato

passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos

dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma

determinada identidade presente em ambos

P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades

P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo

35

faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem

seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)

O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada

conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A

entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A

utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que

natildeo se mostra expliacutecito

() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a

atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito

de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos

ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar

com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se

confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa

uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E

no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter

problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)

No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os

argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A

identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum

tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o

argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a

analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e

realidade

Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da

problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior

sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de

forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica

Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo

discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do

estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido

(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen

und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas

militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos

eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias

diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade

36

sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a

comunidade

dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da

superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo

estrateacutegica

endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo

ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares

Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso

em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de

importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da

que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de

satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de

possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos

Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate

Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)

anterior ao combate

Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem

indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)

Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode

tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito

Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate

Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate

42 As Arengas Militares na Anaacutebase

A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de

acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p

537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico

o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais

discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino

37

Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa

atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela

tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus

emissores como demonstrado na seguinte tabela

Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 173-4 1 Ciro

2 176-7 1 Ciro

3 1812 4 Ciro

4 3115-26 1 Xenofonte

5 3135-45 1 Xenofonte

6 322-3 2 Quiriacutesofo

7 324-6 2 Cleanor

8 328-32 2 Xenofonte

9 3234-39 2 Xenofonte

10 3446 4 Xenofonte

11 4814 4 Xenofonte

12 5419-21 2 Xenofonte

13 6312-18 2 Xenofonte

14 6323-4 4 Xenofonte

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase

Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves

caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute

possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados

apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de

observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto

pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos

emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas

expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute

autor apenas das trecircs primeiras arengas

10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957

Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash

seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco

de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu

38

Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do

priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos

generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve

um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um

consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar

do trono do Impeacuterio Aquemecircnida

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro

I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-

vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como

sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas

Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme

e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de

vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-

vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar

inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu

lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra

Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem

pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do

perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute

raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o

fazer ao que satildeo de desmesurados

II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor

toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do

frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo

Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu

medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai

tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma

coroa de oiro

39

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase

No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e

sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro

Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento

presente no conjunto de valores helenos

Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como

gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens

helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que

represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra

deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do

discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores

Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela

liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a

sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a

liberdade

O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos

baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos

isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de

acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade

entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela

qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta

ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de

questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste

caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado

para uma comunidade grega

No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir

qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a

preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos

em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao

perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas

11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original

40

fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para

obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos

anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash

isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a

possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo

de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica

de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no

iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō

aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas

homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o

proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo

aos outrosrdquo

Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo

bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era

inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma

identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria

inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu

auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o

auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de

batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute

diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos

esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma

maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente

foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de

atingir os reais valores do auditoacuterio

423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)

Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro

persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei

12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados

41

III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa

A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada

aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica

424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor

Xenofonte

IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho

diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo

natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se

por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a

cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte

imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou

mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte

infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o

guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que

vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me

inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da

terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir

quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens

senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os

juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me

mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que

implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que

esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses

declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios

enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos

Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela

compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos

trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso

braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do

que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo

percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais

13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo

42

ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais

valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde

voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus

poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades

Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-

no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio

V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo

prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar

armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema

pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-

nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os

soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como

cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os

exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa

obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em

tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra

tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for

necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute

prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes

nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede

do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute

reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como

eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se

dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de

distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente

com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal

que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na

guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra

sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e

inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo

salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a

morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas

probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e

43

provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos

outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase

Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no

conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de

mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete

ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as

principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar

que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento

acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a

exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos

de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua

sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as

arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas

ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de

Tipo 4

Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer

a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem

sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave

arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se

apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO

2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja

ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo

O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de

expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave

traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo

sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os

baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os

capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E

como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil

tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o

44

segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a

debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais

aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera

mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom

a ajuda dos Deusesrdquo

Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz

parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam

implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos

os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos

deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva

uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte

incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo

425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor

QuisriacutesofoCleanor

VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples

camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu

ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como

gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a

fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro

A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno

VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem

patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de

vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou

prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos

enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que

trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu

sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se

para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os

14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo

15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros

45

Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra

eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase

Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de

tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por

Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por

Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte

vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas

relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos

aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o

elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso

de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que

ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor

Xenofonte

Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que

pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela

indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco

haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o

discurso nestes termos

VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem

inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles

necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos

capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela

Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos

com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria

Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram

graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou

16 στρατηγός no texto original

46

Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos

augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos

outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles

que estiverem de acordo ergam o braccedilo

Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave

Divindade Xenofonte prosseguiu

Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos

observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os

nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto

que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os

humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que

correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos

comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que

prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir

Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a

Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar

nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que

tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o

inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova

consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo

reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate

em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a

ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para

colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo

e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a

natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a

bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito

numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave

traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem

17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor

47

Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam

com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum

de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere

que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa

batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas

O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem

de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas

inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar

de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais

certeza de pocircr o corpo no seguro

Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou

Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com

a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os

mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse

Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas

da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E

quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los

onde os haacute e quantos nos decirc na gana

Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante

Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a

noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais

em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem

impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo

satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui

fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo

vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la

e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa

terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande

empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta

domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos

Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se

de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a

48

ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade

e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer

e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o

caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para

mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta

terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador

Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova

leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu

Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for

preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o

passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As

tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor

Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que

combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas

linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm

nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e

em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje

Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou

Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais

importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades

senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos

superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de

causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes

que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do

que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir

deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que

nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que

20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras

deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo

49

aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha

ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos

Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso

que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte

acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram

Xenofonte voltou entatildeo a dizer

IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se

discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer

que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito

me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda

semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e

deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso

eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a

impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute

nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos

que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse

E como todos se calassem desassombradamente proferiu

Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda

pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e

Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as

alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale

Ningueacutem o contraditou e concluiu

Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute

dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida

que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer

aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do

vencido

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase

50

O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e

com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo

mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees

pertinentes

Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o

nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a

exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem

ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo

Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto

pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]

Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso

Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio

possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata

do sacrifiacutecio de animais aos deuses

O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas

de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da

identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo

porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo

da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com

um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo

Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos

juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam

costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador

tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio

Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria

especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo

costumerdquo 22

Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis

edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a

qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e

os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses

22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um

dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da

paacutetria em ocasiotildees preacutevias

51

decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana

[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel

encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em

seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a

Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte

restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em

que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem

dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita

quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando

baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do

exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras

Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em

tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os

antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das

premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade

Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a

identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que

enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo

Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em

primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois

afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a

participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer

venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de

todosrdquo

Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente

compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos

a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel

estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo

ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as

canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um

animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir

Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a

relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda

de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por

exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o

52

fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem

duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam

uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida

(MEYER 2007 p 26)

Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente

natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que

sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar

Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]

que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim

do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero

epidiacutectico

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos

X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia

vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma

- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata

e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola

Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para

fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase

A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel

fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo

motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada

pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de

sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para

optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo

arranco23

23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois

no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante

deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda

53

Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo

dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e

para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de

valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave

sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga

tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o

fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo

Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado

criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada

por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do

cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo

com o restante da tropa

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los

em estilhas

()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo

dobrado

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase

O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um

uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a

premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em

estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel

Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute

fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos

reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN

TYTECA 2004p 302)

existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na

Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos

54

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e

aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os

grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os

companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via

disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse

XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que

ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os

Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram

com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem

podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se

afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila

connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente

diversa daquela com que se mediram haacute pouco

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase

Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que

poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a

devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante

constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e

exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)

que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute

por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a

cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo

Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas

principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus

proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus

argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias

reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem

castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade

55

em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso

por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua

companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele

incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que

pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas

agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a

vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o

inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar

de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute

estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso

acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das

tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a

certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo

tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma

oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte

sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado

dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar

salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que

natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a

cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de

tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de

maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que

nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos

para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da

vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em

jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante

Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade

toda e armasse tendas onde lhe desse gana

56

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase

O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o

inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela

exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja

buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que

julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos

No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta

a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como

ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a

agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para

oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar

um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de

acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)

O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo

algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis

ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem

recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem

de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada

O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a

respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de

pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no

discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador

todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com

integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade

entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se

todos pertencessem agrave mesma comunidade

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes

sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate

57

Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos

chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos

ouvirem contar os feitos que praticastes

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase

A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash

ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em

consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim

como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do

uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da

seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns

pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar

os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute

a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que

busquem a noccedilatildeo de pertencimento

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase

Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma

constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a

ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros

De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo

da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)

Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica

enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte

De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos

de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute

negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar

coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave

Greacutecia

24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)

58

Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios

retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a

distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os

baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais

possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o

orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que

todos pertencem a uma mesma comunidade

Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a

sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o

impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda

agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)

Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de

exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto

quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves

divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta

explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente

que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-

se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma

autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute

expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois

ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante

seus pares

Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por

sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade

43Arengas Militares na Ciropedia

A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem

de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p

59

537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no

quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1

Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 157-14 1 Ciro o Grande

2 2111 1 Ciro o Grande

3 2114-18 2 Ciro o Grande

4 232-4 2 Ciro o Grande

5 323-6 1 Ciro o Grande

6 3334-9 1 Ciro o Grande

7 3341-2 1 Ciro o Grande

8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios

9 3359 5 Soldados Persas

10 3361-2 5 Ciro o Grande

11 411-6 6 Ciro o Grande

12 4221-6 1 Ciro o Grande

13 6214-20 1 Ciro o Grande

14 6413-20 1 Ciro o Grande

15 7110-14 4 Ciro o Grande

16 7519-24 1 Ciro o Grande

Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia

Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2

podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a

obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso

ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo

que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma

grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou

seja as proferidas apenas aos capitatildees

Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada

pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um

25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo

Claacutessicos Jacson)

60

de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga

militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto

oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande

motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal

praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a

batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja

A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores

Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram

que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui

eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar

- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por

ventura nova coragem

- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais

elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons

arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco

uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio

preliminar

- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo

- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha

de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a

arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de

maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da

fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo

humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma

existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias

Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o

valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o

germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder

triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam

pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e

ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se

exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a

necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-

ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta

virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico

um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)

O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre

irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da

obra quatorze arengas

Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe

aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a

exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)

61

No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois

os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou

seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo

como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para

que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da

polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo

extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo

em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em

ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista

notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim

mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande

Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por

seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso

I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a

vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis

em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por

que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma

virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26

Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles

que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele

jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos

para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre

a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a

penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e

prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos

envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de

sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos

e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de

26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)

62

ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena

parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a

infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei

pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o

epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir

uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo

podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que

se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que

esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que

hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo

contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os

trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees

no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e

mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem

aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais

incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais

exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado

desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute

sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos

inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto

confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos

tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que

romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais

justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes

um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta

exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come

todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e

reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com

meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos

faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade

63

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia

Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-

comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de

comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos

pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade

devido agrave melhor formaccedilatildeo militar

Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a

resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera

rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como

tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes

CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de

comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra

Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia

considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso

conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha

enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de

gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis

fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos

O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que

os deuses satildeo favoraacuteveis

Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo

se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave

volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais

CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena

confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves

divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as

grandes quer as pequenas

O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo

AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente

puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses

Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre

CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos

persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence

Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e

nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar

os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos

Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um

importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte

utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que

Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar

cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa

64

cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o

reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer

O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio

irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem

a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal

Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN

TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma

Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar

espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se

entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute

gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois

de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei

ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que

depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria

deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e

estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se

poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para

motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate

mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um

grupo multieacutetnico

De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a

uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel

que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha

com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo

com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir

Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer

a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite

liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo

militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)

Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de

identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter

epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos

verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente

duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis

de Ciro que antecede a batalha de Sardes

65

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios

VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar

pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas

mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto

ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos

Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do

inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem

estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais

fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois

quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que

estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia

Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte

contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo

de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso

de pertencimento

Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas

vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia

do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses

valores

Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por

Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes

nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal

exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o

modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que

rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso

totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio

66

433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande

Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu

Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia

- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes

A outros

ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas

tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa

A outros

- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios

de possuir grandes bens mas dai provas de coragem

A outros

- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os

bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas

A outros

- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar

tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua

honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de

covardia ou de infacircmia

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia

Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se

trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a

totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a

exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga

extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro

O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de

pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso

explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1

67

Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um

padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as

arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista

de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes

de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e

antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica

- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a

pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 1124 2 Farnabazo

2 2413-17 3 Trasibulo

3 5114-17 2 Teleutias

4 7130 4 Arquidamo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27

Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes

palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de

olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era

quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e

crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre

todos os gregos

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica

Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio

do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante

lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No

entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras

de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim

27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu

68

Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como

nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um

discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel

Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias

metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo

literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte

Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da

Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no

corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante

regularidade

Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em

questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o

eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade

Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e

o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal

diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos

imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso

O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia

para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute

fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da

sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades

- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o

assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo

- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O

conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um

juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles

- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva

Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente

valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)

Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se

constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na

Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio

para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus

69

ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio

enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre

Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da

congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por

exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir

revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o

Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do

auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute

de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos

A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo

constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos

discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar

pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os

gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o

Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante

deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que

natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas

de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras

70

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos

discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por

Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em

perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos

detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que

esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou

ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso

definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o

pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()

Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila

atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as

arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o

Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria

de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o

Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos

que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los

Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra

personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de

Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao

longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em

questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador

Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio

natildeo eacute abolida

Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre

indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando

o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a

noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao

mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas

vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar

cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a

uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento

comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees

71

Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a

relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos

expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma

comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um

passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a

necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem

a uma mesma comunidade

A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia

verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que

formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas

virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite

compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um

auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal

como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um

estilo austero de uma vida militar

Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia

percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira

obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)

enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan

Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma

justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador

persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para

Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que

Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele

possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da

Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte

Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma

explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees

do autor em torno das arengas militares

De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um

discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo

aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que

almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta

72

para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo

de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir

um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo

Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da

histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas

epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras

Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise

retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a

necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua

sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal

A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos

interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno

da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu

muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio

para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas

possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema

73

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

BARROS Joseacute Costa DrsquoAssunccedilatildeo A Escola dos Annales consideraccedilotildees sobre a Histoacuteria do

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Satildeo Paulo Madras 2003

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2 ed Satildeo Paulo UNESP 2010

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Satildeo Paulo Cultura acadecircmica 2011

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puacuteblico Pensamentos poliacuteticos selecionados Satildeo Paulo Nova Alexandria 2000

(Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de Ricardo Cunha Lima) p 85

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persas a la caiacuteda de Roma Silvia FURIOacute (trad) Barcelona Criacutetica 2012

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identidades Satildeo Paulo Annablume Satildeo Paulo Fapesp Campinas Unicamp 2012

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HEROacuteDOTO Histoacuteria Trad J Brito Broca Rio de Janeiro W M Jackson 1953 2ordm

volume (Claacutessicos da Jackson - vol XXIV)

HUTCHINSON Xenophon and the art of command Londres Greenhill Books

Pensilvacircnia Stackpole books 2000

JAEGER Werner Wilhelm 1888-1961 Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem gregoTrad Artur M

Parreira 4ordf Ed ndash Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

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Martins Fontes 1997

KENNEDY GA La retoacuterica claacutessica y su tradicioacuten cristiana y secular desde la

Antiguedad hasta nuestros diasLogrontildeo Riojanos 2003

LAERCIO Dioacutegenes Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres Trad Mario da Gama Kury

Brasiacutelia EdUnb 1977

LIVERANI Maacuterio El antiguo oriente Histoacuteria sociedade y economia Barcelona Criacutetica

1995

MEYER Michel A Retoacuterica Satildeo Paulo Aacutetica 2007

________ Questotildees de retoacuterica linguagem razatildeo e seduccedilatildeo Lisboa Ediccedilotildees 70 1998

MOMIGLIANO Arnaldo Arnaldo Ensayos de historiografia antigua y moderna

Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1993 (1970)

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MOSSEacute Claude Atenas a histoacuteria de uma democracia Brasiacutelia UnB 1982

PAULINELLI Maysa de Paacutedua Teixeira Retoacuterica argumentaccedilatildeo e discurso em

retrospectiva In Linguagem em (Dis)cursondash LemD Tubaratildeo SC v 14 n 2 p 391-409

maioago 2014

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VERNANT Jean Pierre As origens do pensamento grego 4ordf ed Satildeo Paulo DIFEL 1984

XEONOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de janeiro Editora WM Jackson

v1 1964(Coleccedilatildeo Claacutessicos Jackson)

XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo e Prefaacutecio de Aquilino Ribeiro

Amadora Livraria Bertrand 1957

ZOIDO J C Iglesias (dir) Retoacuterica e Historiografiacutea El discurso militar em la

historiografiacutea desde la Antiguumledad hasta el Renacimiento Madrid  Ediciones Claacutesicas 2007

ZOIDO Juan Carlos Iglesias La arenga militar en Jenofonte a propoacutesito de Ciropedia 3348-

55 Norba Revista de historia Extremadura v 16 n 1 p157-166 2003 Disponiacutevel em

lthttpdialnetuniriojaesservletarticulocodigo=809535gt Acesso em 25 nov 2015

ZOIDO Juan Carlos Iglesias The pre-battle speeches of Alexander at Issus and

Gaugamela Greek Roman And Byzantine Studies [si] v 50 n 2 p215-241 dez 2010

Disponiacutevel em lthttpgrbslibrarydukeeduarticleview1441gt Acesso em 02 out 2015

Page 7: Cidadania e Multietnicidade: a Noção de Pertencimento e as

7

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 9

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA14

21 A Retoacuterica 14

22 Retoacuterica e Historiografia19

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica 20

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO 23

31 Xenofonte 23

311 Obras com Narrativas Histoacutericas25

3111 Anaacutebase 26

3112 Ciropedia 26

3113 Hellecircnica 27

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia 28

33 Identidade Helecircnica 30

34 Cultura Militar 31

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE 33

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo 33

42 As Arengas Militares na Anaacutebase 36

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro 38

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase 39

423 Arenga III ndash Anaacutebase (1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto) 40

424 Arengas IV e V ndash Anaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1 ndash Emissor Xenofonte41

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase 43

425 Arengas VI e VII ndash Anaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2 ndash Emissor QuisriacutesofoCleanor 44

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase 45

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 45

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase 49

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte52

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase 52

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 53

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase 53

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 54

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase 54

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 55

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase 56

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 56

8

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57

43 Arengas Militares na Ciropedia 58

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65

433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66

434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67

44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73

9

1 INTRODUCcedilAtildeO

A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na

base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica

da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC

com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou

resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os

generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de

enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo

Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de

exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do

auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para

motivaacute-los nas lutas de determinada batalha

Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente

de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes

ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos

princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente

devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e

historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)

Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares

e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos

discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan

Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa

destacando

Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso

presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le

antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos

constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en

apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten

maacutes (ZOIDO 2007 p 22)

Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma

diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense

Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de

10

ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por

ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito

transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte

Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo

tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo

profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo

militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento

perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua

vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou

para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde

dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios

gregos (JAEGER 2010 p 1215)

Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte

sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise

Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja

as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa

O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a

respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a

presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no

conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que

a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o

que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no

decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas

poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as

democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte

asiaacutetica

Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da

identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de

pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas

reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o

corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico

por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo

prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da

historiografia do mundo antigo

Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um

auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em

11

seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com

membros provindos de diferentes culturas

Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica

desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das

arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios

retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a

um auditoacuterio multieacutetnico

A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem

eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de

401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a

finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo

vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados

em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de

volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o

Grande fundador do Impeacuterio Persa

A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de

exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio

formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute

constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se

trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a

historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees

De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no

Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no

acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo

em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave

negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar

metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma

relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro

da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja

a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo

1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre

diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade

tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos

Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)

12

tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da

Escola do Annales Barros nota que

Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de

conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores

como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem

comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo

de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que

analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a

considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de

singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)

Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que

abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo

antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca

(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio

Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La

diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda

Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo

Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um

tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa

sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos

se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta

de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para

entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e

historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)

O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash

constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado

pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a

primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha

pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em

respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

(ZOIDO 2007 p 32)

De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute

dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o

Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as

novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com

13

os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa

pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores

gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas

militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees

preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por

fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que

consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas

primeiras partes desse trabalho

14

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE

CLAacuteSSICA

A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde

aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do

pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam

para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular

Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a

definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a

ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos

acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos

referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje

21 A Retoacuterica

A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica

do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de

Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o

fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de

ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)

Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis

que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)

O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-

se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia

qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos

das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)

Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a

forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada

narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo

do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do

orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da

coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES

Retoacuterica 1 3 1358b)

15

A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia

(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de

apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo

pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor

das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os

sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos

tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam

advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os

sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal

Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta

mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave

retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva

considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a

cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta

pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a

adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila

A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus

contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente

por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser

capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para

por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de

argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute

vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo

houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio

ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)

Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum

discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo

como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a

comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou

emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade

estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se

sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se

transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003

p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de

certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo

16

Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um

importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a

retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se

baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade

grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o

bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na

retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte

Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados

y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la

oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica

claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que

describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)

A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora

princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica

Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da

existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo

republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em

assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam

para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia

de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no

senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento

para aquisiccedilatildeo de influecircncia

Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus

clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano

(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de

sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos

discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu

Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica

orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma

participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se

representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute

centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja

devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser

reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto

conforme Reboul novas perspectivas surgem

17

Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas

democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o

testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc

(REBOUL 2004 p 76)

Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai

preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O

cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina

religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo

para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma

atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as

passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio

entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem

duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se

tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca

A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois

tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos

vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os

responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes

que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de

evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para

insinuar falsas ideias no espiacuterito

No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis

pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em

nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada

vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica

em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute

a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo

(REBOUL 2004 p 81)

Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso

na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda

e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de

indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a

esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de

possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer

18

do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do

apoio massivo da populaccedilatildeo

Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de

diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash

protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave

anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos

ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma

retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)

Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma

interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas

que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por

representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais

importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os

tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim

classificando diversos tipos de argumentos

Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e

Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de

um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os

juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram

por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)

Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia

que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute

que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua

classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica

Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica

originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor

da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2

Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram

atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim

como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De

maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de

manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim

2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo

19

vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter

ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para

Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo

que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define

retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo

(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores

que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a

medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da

distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)

Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la

mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por

meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila

entre os indiviacuteduos

Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se

retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas

que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito

do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo

proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma

retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e

se confirma (MEYER 2007 p 26)

Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele

atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito

de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a

argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta

apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)

Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da

problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide

Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira

[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos

trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso

para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito

e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-

resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases

(MOSCA 2007 p 9)

22 Retoacuterica e Historiografia

20

Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela

retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma

pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal

arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou

exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a

importante observaccedilatildeo de Zoido

Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir

em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso

historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para

persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores

pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica

emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica

(ZOIDO 2007 p 67)

Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos

historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura

Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias

concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia

como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos

autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela

tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do

Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e

sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se

servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo

Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as

conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos

retoacutericos

Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y

particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico

haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por

tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues

quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos

ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica

Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os

de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma

21

forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos

de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos

de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido

amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal

diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais

que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel

acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante

notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a

um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o

historiador

Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga

Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente

ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute

mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte

eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-

se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos

retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato

Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de

exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse

respeito afirma que

Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el

marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las

eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la

evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y

historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)

Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo

justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo

inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave

literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as

diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra

de uma morte gloriosa

Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)

como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess

enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo

de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus

apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la

22

elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la

retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)

No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande

entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico

Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric

antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de

las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla

historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)

Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares

protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a

polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os

principais autores em debate

Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras

que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el

general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel

utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)

Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram

realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do

testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the

Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de

Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de

pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior

enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de

argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto

O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos

tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia

contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa

que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais

discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo

23

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO

31 Xenofonte

Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC

pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer

em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua

juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua

personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras

Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas

no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo

aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se

evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que

adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha

declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves

concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates

Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que

rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes

Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o

encontro de Xenofonte com Soacutecrates

Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-

lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos

Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam

excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo

e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)

Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo

o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma

passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e

publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis

Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa

filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na

composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se

junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu

irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento

3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar

um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta

24

resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio

hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas

obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de

personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e

para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)

Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central

Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei

Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos

lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os

baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei

de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens

em Atenas

O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos

historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no

afastamento de suas respectivas paacutetrias

Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados

voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes

que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido

Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta

circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no

fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten

ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones

exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de

um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)

O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma

propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal

conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de

agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse

histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo

(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana

ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e

Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever

4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu

significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho

pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais

educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed

Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)

25

Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave

multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um

apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio

que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador

entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre

uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do

tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador

de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da

escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo

de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha

aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)

Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para

acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para

verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais

se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um

dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante

na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de

novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em

Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do

gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos

santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em

favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo

Medina

Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O

Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da

CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A

Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos

seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um

testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez

e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)

311Obras com Narrativas Histoacutericas

26

Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado

a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus

elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm

sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC

3111Anaacutebase

Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha

militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar

Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o

antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o

interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os

mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa

A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs

as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas

durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum

o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado

grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da

parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes

pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu

Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes

poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os

exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no

entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo

eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de

atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes

3112Ciropedia

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras

gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem

enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia

de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro

comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas

conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do

acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo

27

possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica

Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal

como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do

seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom

comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)

Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se

corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira

poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas

correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o

governante

O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas

como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra

daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso

ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado

nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p

85)

Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria

dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p

1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo

paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma

referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar

riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre

os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes

guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute

uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia

Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade

na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de

Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da

Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha

proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo

3113Hellecircnica

Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se

passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do

28

ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431

aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento

A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o

mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009

p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque

criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente

admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia

Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado

independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se

um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a

coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da

Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais

com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e

ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6

cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7

Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como

em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma

no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa

forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas

O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia

da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento

poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e

de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma

divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das

foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando

pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem

diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate

contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige

como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois

partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a

forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos

oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)

5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado

em batalha

29

Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em

assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas

levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa

caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra

em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de

influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade

Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse

expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de

pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas

reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo

com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas

quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma

elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da

retoacuterica no periacuteodo

Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como

explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato

deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue

o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos

perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade

caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a

comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela

instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis

Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de

um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma

forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento

de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a

fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da

comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da

populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma

formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou

ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas

8 Identificado pelo termo grego Isegoria

30

De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma

classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de

vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal

como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida

regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo

pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)

33 Identidade Helecircnica

Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania

costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute

importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham

membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma

mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o

tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas

caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo

momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados

com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato

recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade

helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos

O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas

nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra

natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido

dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o

quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a

mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados

por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute

bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o

responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos

do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos

templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes

natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o

ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos

para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e

bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis

subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis

fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo

aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando

novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-

lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)

31

Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em

relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos

sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com

os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao

contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio

grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar

agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo

de alteridade para com os baacuterbaros

Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da

Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de

reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade

sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle

sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de

um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos

como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)

34 Cultura Militar

A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o

advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha

Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os

soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de

batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes

heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns

Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda

modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir

uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da

cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo

modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a

formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual

ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua

posiccedilatildeo dentro da falange

Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura

necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo

9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as

liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo

32

compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de

sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees

cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave

imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas

sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a

braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma

mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais

manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para

proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua

esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem

comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)

Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na

guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e

escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na

cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do

cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos

eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)

De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de

guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os

imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No

entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que

soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC

33

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE

Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo

militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se

como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por

membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e

as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de

diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de

Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na

composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o

papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal

personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais

oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser

comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos

A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos

de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos

um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa

ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre

uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo

a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia

em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de

metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e

baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia

algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes

religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo

Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos

argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a

finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte

Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do

loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce

no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos

34

eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do

auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as

estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio

Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns

referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas

consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos

de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts

Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)

A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute

persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado

discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do

orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute

se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo

lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas

peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a

ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao

tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees

como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees

propostas por este trabalho

Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo

preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL

2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a

disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos

Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para

persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema

criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)

O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato

passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos

dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma

determinada identidade presente em ambos

P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades

P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo

35

faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem

seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)

O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada

conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A

entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A

utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que

natildeo se mostra expliacutecito

() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a

atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito

de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos

ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar

com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se

confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa

uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E

no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter

problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)

No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os

argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A

identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum

tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o

argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a

analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e

realidade

Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da

problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior

sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de

forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica

Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo

discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do

estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido

(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen

und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas

militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos

eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias

diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade

36

sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a

comunidade

dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da

superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo

estrateacutegica

endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo

ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares

Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso

em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de

importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da

que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de

satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de

possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos

Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate

Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)

anterior ao combate

Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem

indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)

Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode

tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito

Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate

Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate

42 As Arengas Militares na Anaacutebase

A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de

acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p

537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico

o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais

discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino

37

Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa

atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela

tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus

emissores como demonstrado na seguinte tabela

Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 173-4 1 Ciro

2 176-7 1 Ciro

3 1812 4 Ciro

4 3115-26 1 Xenofonte

5 3135-45 1 Xenofonte

6 322-3 2 Quiriacutesofo

7 324-6 2 Cleanor

8 328-32 2 Xenofonte

9 3234-39 2 Xenofonte

10 3446 4 Xenofonte

11 4814 4 Xenofonte

12 5419-21 2 Xenofonte

13 6312-18 2 Xenofonte

14 6323-4 4 Xenofonte

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase

Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves

caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute

possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados

apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de

observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto

pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos

emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas

expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute

autor apenas das trecircs primeiras arengas

10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957

Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash

seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco

de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu

38

Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do

priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos

generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve

um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um

consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar

do trono do Impeacuterio Aquemecircnida

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro

I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-

vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como

sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas

Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme

e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de

vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-

vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar

inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu

lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra

Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem

pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do

perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute

raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o

fazer ao que satildeo de desmesurados

II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor

toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do

frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo

Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu

medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai

tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma

coroa de oiro

39

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase

No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e

sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro

Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento

presente no conjunto de valores helenos

Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como

gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens

helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que

represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra

deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do

discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores

Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela

liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a

sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a

liberdade

O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos

baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos

isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de

acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade

entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela

qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta

ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de

questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste

caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado

para uma comunidade grega

No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir

qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a

preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos

em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao

perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas

11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original

40

fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para

obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos

anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash

isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a

possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo

de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica

de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no

iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō

aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas

homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o

proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo

aos outrosrdquo

Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo

bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era

inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma

identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria

inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu

auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o

auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de

batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute

diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos

esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma

maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente

foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de

atingir os reais valores do auditoacuterio

423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)

Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro

persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei

12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados

41

III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa

A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada

aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica

424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor

Xenofonte

IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho

diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo

natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se

por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a

cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte

imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou

mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte

infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o

guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que

vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me

inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da

terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir

quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens

senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os

juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me

mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que

implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que

esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses

declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios

enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos

Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela

compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos

trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso

braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do

que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo

percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais

13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo

42

ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais

valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde

voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus

poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades

Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-

no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio

V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo

prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar

armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema

pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-

nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os

soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como

cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os

exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa

obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em

tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra

tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for

necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute

prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes

nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede

do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute

reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como

eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se

dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de

distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente

com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal

que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na

guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra

sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e

inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo

salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a

morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas

probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e

43

provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos

outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase

Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no

conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de

mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete

ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as

principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar

que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento

acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a

exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos

de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua

sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as

arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas

ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de

Tipo 4

Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer

a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem

sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave

arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se

apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO

2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja

ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo

O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de

expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave

traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo

sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os

baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os

capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E

como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil

tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o

44

segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a

debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais

aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera

mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom

a ajuda dos Deusesrdquo

Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz

parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam

implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos

os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos

deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva

uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte

incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo

425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor

QuisriacutesofoCleanor

VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples

camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu

ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como

gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a

fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro

A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno

VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem

patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de

vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou

prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos

enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que

trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu

sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se

para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os

14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo

15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros

45

Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra

eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase

Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de

tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por

Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por

Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte

vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas

relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos

aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o

elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso

de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que

ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor

Xenofonte

Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que

pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela

indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco

haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o

discurso nestes termos

VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem

inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles

necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos

capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela

Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos

com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria

Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram

graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou

16 στρατηγός no texto original

46

Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos

augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos

outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles

que estiverem de acordo ergam o braccedilo

Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave

Divindade Xenofonte prosseguiu

Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos

observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os

nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto

que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os

humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que

correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos

comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que

prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir

Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a

Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar

nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que

tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o

inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova

consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo

reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate

em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a

ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para

colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo

e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a

natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a

bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito

numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave

traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem

17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor

47

Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam

com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum

de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere

que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa

batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas

O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem

de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas

inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar

de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais

certeza de pocircr o corpo no seguro

Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou

Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com

a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os

mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse

Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas

da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E

quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los

onde os haacute e quantos nos decirc na gana

Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante

Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a

noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais

em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem

impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo

satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui

fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo

vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la

e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa

terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande

empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta

domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos

Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se

de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a

48

ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade

e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer

e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o

caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para

mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta

terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador

Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova

leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu

Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for

preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o

passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As

tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor

Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que

combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas

linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm

nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e

em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje

Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou

Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais

importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades

senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos

superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de

causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes

que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do

que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir

deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que

nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que

20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras

deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo

49

aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha

ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos

Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso

que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte

acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram

Xenofonte voltou entatildeo a dizer

IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se

discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer

que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito

me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda

semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e

deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso

eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a

impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute

nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos

que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse

E como todos se calassem desassombradamente proferiu

Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda

pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e

Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as

alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale

Ningueacutem o contraditou e concluiu

Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute

dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida

que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer

aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do

vencido

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase

50

O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e

com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo

mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees

pertinentes

Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o

nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a

exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem

ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo

Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto

pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]

Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso

Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio

possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata

do sacrifiacutecio de animais aos deuses

O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas

de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da

identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo

porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo

da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com

um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo

Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos

juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam

costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador

tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio

Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria

especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo

costumerdquo 22

Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis

edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a

qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e

os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses

22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um

dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da

paacutetria em ocasiotildees preacutevias

51

decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana

[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel

encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em

seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a

Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte

restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em

que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem

dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita

quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando

baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do

exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras

Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em

tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os

antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das

premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade

Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a

identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que

enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo

Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em

primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois

afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a

participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer

venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de

todosrdquo

Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente

compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos

a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel

estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo

ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as

canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um

animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir

Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a

relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda

de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por

exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o

52

fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem

duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam

uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida

(MEYER 2007 p 26)

Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente

natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que

sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar

Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]

que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim

do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero

epidiacutectico

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos

X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia

vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma

- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata

e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola

Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para

fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase

A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel

fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo

motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada

pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de

sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para

optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo

arranco23

23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois

no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante

deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda

53

Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo

dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e

para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de

valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave

sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga

tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o

fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo

Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado

criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada

por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do

cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo

com o restante da tropa

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los

em estilhas

()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo

dobrado

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase

O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um

uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a

premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em

estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel

Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute

fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos

reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN

TYTECA 2004p 302)

existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na

Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos

54

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e

aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os

grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os

companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via

disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse

XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que

ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os

Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram

com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem

podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se

afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila

connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente

diversa daquela com que se mediram haacute pouco

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase

Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que

poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a

devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante

constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e

exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)

que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute

por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a

cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo

Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas

principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus

proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus

argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias

reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem

castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade

55

em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso

por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua

companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele

incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que

pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas

agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a

vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o

inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar

de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute

estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso

acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das

tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a

certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo

tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma

oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte

sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado

dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar

salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que

natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a

cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de

tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de

maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que

nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos

para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da

vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em

jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante

Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade

toda e armasse tendas onde lhe desse gana

56

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase

O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o

inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela

exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja

buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que

julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos

No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta

a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como

ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a

agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para

oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar

um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de

acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)

O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo

algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis

ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem

recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem

de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada

O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a

respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de

pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no

discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador

todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com

integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade

entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se

todos pertencessem agrave mesma comunidade

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes

sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate

57

Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos

chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos

ouvirem contar os feitos que praticastes

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase

A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash

ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em

consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim

como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do

uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da

seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns

pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar

os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute

a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que

busquem a noccedilatildeo de pertencimento

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase

Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma

constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a

ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros

De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo

da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)

Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica

enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte

De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos

de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute

negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar

coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave

Greacutecia

24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)

58

Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios

retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a

distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os

baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais

possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o

orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que

todos pertencem a uma mesma comunidade

Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a

sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o

impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda

agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)

Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de

exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto

quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves

divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta

explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente

que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-

se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma

autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute

expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois

ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante

seus pares

Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por

sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade

43Arengas Militares na Ciropedia

A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem

de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p

59

537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no

quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1

Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 157-14 1 Ciro o Grande

2 2111 1 Ciro o Grande

3 2114-18 2 Ciro o Grande

4 232-4 2 Ciro o Grande

5 323-6 1 Ciro o Grande

6 3334-9 1 Ciro o Grande

7 3341-2 1 Ciro o Grande

8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios

9 3359 5 Soldados Persas

10 3361-2 5 Ciro o Grande

11 411-6 6 Ciro o Grande

12 4221-6 1 Ciro o Grande

13 6214-20 1 Ciro o Grande

14 6413-20 1 Ciro o Grande

15 7110-14 4 Ciro o Grande

16 7519-24 1 Ciro o Grande

Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia

Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2

podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a

obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso

ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo

que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma

grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou

seja as proferidas apenas aos capitatildees

Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada

pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um

25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo

Claacutessicos Jacson)

60

de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga

militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto

oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande

motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal

praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a

batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja

A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores

Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram

que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui

eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar

- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por

ventura nova coragem

- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais

elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons

arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco

uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio

preliminar

- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo

- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha

de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a

arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de

maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da

fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo

humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma

existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias

Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o

valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o

germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder

triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam

pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e

ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se

exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a

necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-

ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta

virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico

um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)

O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre

irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da

obra quatorze arengas

Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe

aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a

exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)

61

No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois

os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou

seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo

como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para

que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da

polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo

extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo

em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em

ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista

notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim

mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande

Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por

seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso

I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a

vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis

em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por

que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma

virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26

Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles

que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele

jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos

para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre

a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a

penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e

prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos

envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de

sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos

e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de

26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)

62

ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena

parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a

infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei

pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o

epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir

uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo

podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que

se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que

esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que

hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo

contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os

trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees

no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e

mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem

aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais

incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais

exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado

desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute

sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos

inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto

confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos

tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que

romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais

justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes

um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta

exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come

todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e

reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com

meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos

faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade

63

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia

Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-

comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de

comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos

pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade

devido agrave melhor formaccedilatildeo militar

Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a

resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera

rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como

tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes

CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de

comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra

Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia

considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso

conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha

enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de

gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis

fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos

O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que

os deuses satildeo favoraacuteveis

Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo

se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave

volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais

CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena

confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves

divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as

grandes quer as pequenas

O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo

AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente

puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses

Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre

CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos

persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence

Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e

nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar

os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos

Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um

importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte

utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que

Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar

cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa

64

cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o

reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer

O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio

irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem

a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal

Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN

TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma

Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar

espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se

entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute

gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois

de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei

ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que

depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria

deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e

estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se

poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para

motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate

mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um

grupo multieacutetnico

De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a

uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel

que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha

com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo

com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir

Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer

a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite

liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo

militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)

Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de

identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter

epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos

verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente

duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis

de Ciro que antecede a batalha de Sardes

65

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios

VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar

pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas

mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto

ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos

Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do

inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem

estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais

fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois

quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que

estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia

Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte

contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo

de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso

de pertencimento

Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas

vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia

do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses

valores

Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por

Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes

nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal

exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o

modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que

rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso

totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio

66

433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande

Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu

Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia

- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes

A outros

ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas

tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa

A outros

- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios

de possuir grandes bens mas dai provas de coragem

A outros

- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os

bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas

A outros

- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar

tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua

honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de

covardia ou de infacircmia

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia

Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se

trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a

totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a

exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga

extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro

O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de

pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso

explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1

67

Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um

padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as

arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista

de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes

de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e

antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica

- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a

pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 1124 2 Farnabazo

2 2413-17 3 Trasibulo

3 5114-17 2 Teleutias

4 7130 4 Arquidamo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27

Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes

palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de

olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era

quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e

crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre

todos os gregos

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica

Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio

do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante

lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No

entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras

de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim

27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu

68

Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como

nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um

discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel

Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias

metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo

literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte

Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da

Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no

corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante

regularidade

Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em

questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o

eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade

Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e

o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal

diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos

imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso

O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia

para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute

fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da

sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades

- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o

assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo

- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O

conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um

juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles

- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva

Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente

valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)

Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se

constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na

Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio

para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus

69

ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio

enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre

Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da

congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por

exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir

revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o

Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do

auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute

de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos

A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo

constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos

discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar

pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os

gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o

Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante

deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que

natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas

de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras

70

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos

discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por

Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em

perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos

detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que

esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou

ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso

definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o

pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()

Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila

atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as

arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o

Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria

de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o

Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos

que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los

Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra

personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de

Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao

longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em

questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador

Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio

natildeo eacute abolida

Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre

indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando

o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a

noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao

mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas

vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar

cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a

uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento

comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees

71

Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a

relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos

expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma

comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um

passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a

necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem

a uma mesma comunidade

A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia

verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que

formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas

virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite

compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um

auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal

como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um

estilo austero de uma vida militar

Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia

percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira

obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)

enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan

Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma

justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador

persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para

Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que

Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele

possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da

Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte

Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma

explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees

do autor em torno das arengas militares

De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um

discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo

aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que

almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta

72

para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo

de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir

um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo

Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da

histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas

epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras

Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise

retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a

necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua

sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal

A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos

interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno

da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu

muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio

para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas

possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema

73

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Page 8: Cidadania e Multietnicidade: a Noção de Pertencimento e as

8

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57

43 Arengas Militares na Ciropedia 58

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65

433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66

434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67

44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73

9

1 INTRODUCcedilAtildeO

A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na

base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica

da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC

com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou

resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os

generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de

enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo

Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de

exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do

auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para

motivaacute-los nas lutas de determinada batalha

Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente

de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes

ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos

princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente

devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e

historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)

Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares

e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos

discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan

Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa

destacando

Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso

presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le

antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos

constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en

apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten

maacutes (ZOIDO 2007 p 22)

Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma

diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense

Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de

10

ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por

ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito

transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte

Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo

tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo

profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo

militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento

perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua

vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou

para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde

dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios

gregos (JAEGER 2010 p 1215)

Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte

sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise

Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja

as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa

O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a

respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a

presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no

conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que

a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o

que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no

decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas

poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as

democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte

asiaacutetica

Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da

identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de

pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas

reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o

corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico

por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo

prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da

historiografia do mundo antigo

Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um

auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em

11

seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com

membros provindos de diferentes culturas

Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica

desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das

arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios

retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a

um auditoacuterio multieacutetnico

A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem

eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de

401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a

finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo

vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados

em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de

volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o

Grande fundador do Impeacuterio Persa

A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de

exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio

formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute

constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se

trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a

historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees

De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no

Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no

acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo

em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave

negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar

metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma

relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro

da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja

a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo

1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre

diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade

tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos

Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)

12

tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da

Escola do Annales Barros nota que

Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de

conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores

como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem

comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo

de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que

analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a

considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de

singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)

Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que

abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo

antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca

(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio

Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La

diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda

Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo

Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um

tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa

sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos

se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta

de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para

entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e

historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)

O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash

constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado

pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a

primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha

pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em

respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

(ZOIDO 2007 p 32)

De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute

dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o

Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as

novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com

13

os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa

pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores

gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas

militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees

preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por

fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que

consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas

primeiras partes desse trabalho

14

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE

CLAacuteSSICA

A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde

aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do

pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam

para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular

Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a

definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a

ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos

acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos

referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje

21 A Retoacuterica

A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica

do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de

Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o

fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de

ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)

Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis

que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)

O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-

se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia

qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos

das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)

Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a

forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada

narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo

do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do

orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da

coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES

Retoacuterica 1 3 1358b)

15

A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia

(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de

apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo

pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor

das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os

sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos

tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam

advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os

sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal

Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta

mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave

retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva

considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a

cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta

pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a

adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila

A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus

contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente

por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser

capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para

por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de

argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute

vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo

houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio

ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)

Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum

discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo

como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a

comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou

emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade

estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se

sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se

transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003

p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de

certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo

16

Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um

importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a

retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se

baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade

grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o

bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na

retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte

Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados

y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la

oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica

claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que

describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)

A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora

princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica

Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da

existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo

republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em

assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam

para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia

de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no

senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento

para aquisiccedilatildeo de influecircncia

Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus

clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano

(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de

sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos

discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu

Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica

orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma

participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se

representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute

centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja

devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser

reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto

conforme Reboul novas perspectivas surgem

17

Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas

democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o

testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc

(REBOUL 2004 p 76)

Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai

preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O

cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina

religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo

para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma

atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as

passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio

entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem

duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se

tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca

A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois

tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos

vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os

responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes

que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de

evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para

insinuar falsas ideias no espiacuterito

No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis

pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em

nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada

vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica

em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute

a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo

(REBOUL 2004 p 81)

Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso

na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda

e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de

indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a

esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de

possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer

18

do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do

apoio massivo da populaccedilatildeo

Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de

diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash

protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave

anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos

ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma

retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)

Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma

interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas

que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por

representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais

importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os

tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim

classificando diversos tipos de argumentos

Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e

Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de

um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os

juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram

por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)

Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia

que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute

que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua

classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica

Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica

originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor

da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2

Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram

atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim

como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De

maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de

manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim

2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo

19

vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter

ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para

Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo

que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define

retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo

(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores

que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a

medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da

distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)

Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la

mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por

meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila

entre os indiviacuteduos

Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se

retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas

que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito

do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo

proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma

retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e

se confirma (MEYER 2007 p 26)

Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele

atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito

de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a

argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta

apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)

Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da

problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide

Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira

[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos

trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso

para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito

e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-

resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases

(MOSCA 2007 p 9)

22 Retoacuterica e Historiografia

20

Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela

retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma

pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal

arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou

exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a

importante observaccedilatildeo de Zoido

Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir

em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso

historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para

persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores

pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica

emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica

(ZOIDO 2007 p 67)

Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos

historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura

Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias

concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia

como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos

autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela

tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do

Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e

sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se

servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo

Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as

conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos

retoacutericos

Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y

particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico

haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por

tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues

quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos

ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica

Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os

de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma

21

forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos

de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos

de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido

amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal

diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais

que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel

acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante

notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a

um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o

historiador

Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga

Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente

ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute

mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte

eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-

se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos

retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato

Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de

exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse

respeito afirma que

Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el

marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las

eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la

evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y

historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)

Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo

justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo

inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave

literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as

diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra

de uma morte gloriosa

Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)

como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess

enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo

de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus

apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la

22

elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la

retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)

No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande

entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico

Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric

antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de

las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla

historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)

Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares

protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a

polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os

principais autores em debate

Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras

que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el

general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel

utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)

Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram

realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do

testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the

Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de

Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de

pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior

enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de

argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto

O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos

tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia

contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa

que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais

discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo

23

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO

31 Xenofonte

Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC

pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer

em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua

juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua

personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras

Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas

no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo

aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se

evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que

adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha

declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves

concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates

Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que

rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes

Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o

encontro de Xenofonte com Soacutecrates

Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-

lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos

Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam

excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo

e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)

Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo

o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma

passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e

publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis

Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa

filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na

composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se

junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu

irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento

3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar

um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta

24

resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio

hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas

obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de

personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e

para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)

Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central

Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei

Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos

lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os

baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei

de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens

em Atenas

O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos

historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no

afastamento de suas respectivas paacutetrias

Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados

voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes

que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido

Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta

circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no

fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten

ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones

exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de

um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)

O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma

propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal

conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de

agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse

histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo

(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana

ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e

Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever

4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu

significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho

pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais

educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed

Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)

25

Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave

multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um

apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio

que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador

entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre

uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do

tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador

de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da

escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo

de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha

aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)

Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para

acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para

verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais

se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um

dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante

na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de

novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em

Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do

gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos

santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em

favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo

Medina

Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O

Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da

CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A

Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos

seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um

testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez

e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)

311Obras com Narrativas Histoacutericas

26

Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado

a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus

elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm

sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC

3111Anaacutebase

Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha

militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar

Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o

antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o

interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os

mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa

A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs

as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas

durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum

o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado

grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da

parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes

pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu

Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes

poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os

exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no

entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo

eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de

atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes

3112Ciropedia

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras

gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem

enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia

de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro

comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas

conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do

acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo

27

possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica

Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal

como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do

seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom

comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)

Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se

corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira

poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas

correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o

governante

O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas

como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra

daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso

ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado

nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p

85)

Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria

dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p

1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo

paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma

referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar

riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre

os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes

guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute

uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia

Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade

na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de

Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da

Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha

proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo

3113Hellecircnica

Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se

passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do

28

ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431

aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento

A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o

mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009

p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque

criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente

admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia

Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado

independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se

um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a

coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da

Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais

com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e

ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6

cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7

Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como

em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma

no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa

forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas

O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia

da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento

poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e

de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma

divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das

foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando

pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem

diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate

contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige

como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois

partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a

forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos

oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)

5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado

em batalha

29

Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em

assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas

levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa

caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra

em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de

influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade

Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse

expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de

pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas

reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo

com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas

quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma

elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da

retoacuterica no periacuteodo

Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como

explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato

deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue

o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos

perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade

caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a

comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela

instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis

Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de

um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma

forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento

de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a

fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da

comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da

populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma

formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou

ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas

8 Identificado pelo termo grego Isegoria

30

De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma

classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de

vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal

como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida

regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo

pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)

33 Identidade Helecircnica

Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania

costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute

importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham

membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma

mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o

tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas

caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo

momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados

com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato

recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade

helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos

O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas

nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra

natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido

dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o

quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a

mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados

por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute

bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o

responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos

do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos

templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes

natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o

ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos

para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e

bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis

subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis

fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo

aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando

novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-

lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)

31

Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em

relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos

sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com

os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao

contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio

grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar

agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo

de alteridade para com os baacuterbaros

Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da

Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de

reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade

sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle

sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de

um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos

como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)

34 Cultura Militar

A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o

advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha

Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os

soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de

batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes

heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns

Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda

modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir

uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da

cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo

modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a

formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual

ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua

posiccedilatildeo dentro da falange

Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura

necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo

9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as

liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo

32

compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de

sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees

cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave

imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas

sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a

braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma

mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais

manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para

proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua

esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem

comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)

Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na

guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e

escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na

cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do

cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos

eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)

De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de

guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os

imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No

entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que

soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC

33

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE

Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo

militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se

como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por

membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e

as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de

diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de

Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na

composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o

papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal

personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais

oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser

comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos

A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos

de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos

um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa

ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre

uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo

a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia

em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de

metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e

baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia

algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes

religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo

Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos

argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a

finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte

Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do

loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce

no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos

34

eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do

auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as

estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio

Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns

referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas

consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos

de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts

Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)

A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute

persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado

discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do

orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute

se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo

lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas

peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a

ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao

tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees

como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees

propostas por este trabalho

Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo

preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL

2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a

disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos

Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para

persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema

criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)

O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato

passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos

dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma

determinada identidade presente em ambos

P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades

P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo

35

faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem

seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)

O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada

conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A

entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A

utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que

natildeo se mostra expliacutecito

() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a

atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito

de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos

ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar

com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se

confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa

uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E

no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter

problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)

No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os

argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A

identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum

tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o

argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a

analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e

realidade

Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da

problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior

sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de

forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica

Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo

discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do

estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido

(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen

und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas

militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos

eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias

diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade

36

sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a

comunidade

dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da

superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo

estrateacutegica

endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo

ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares

Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso

em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de

importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da

que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de

satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de

possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos

Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate

Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)

anterior ao combate

Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem

indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)

Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode

tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito

Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate

Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate

42 As Arengas Militares na Anaacutebase

A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de

acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p

537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico

o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais

discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino

37

Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa

atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela

tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus

emissores como demonstrado na seguinte tabela

Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 173-4 1 Ciro

2 176-7 1 Ciro

3 1812 4 Ciro

4 3115-26 1 Xenofonte

5 3135-45 1 Xenofonte

6 322-3 2 Quiriacutesofo

7 324-6 2 Cleanor

8 328-32 2 Xenofonte

9 3234-39 2 Xenofonte

10 3446 4 Xenofonte

11 4814 4 Xenofonte

12 5419-21 2 Xenofonte

13 6312-18 2 Xenofonte

14 6323-4 4 Xenofonte

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase

Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves

caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute

possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados

apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de

observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto

pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos

emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas

expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute

autor apenas das trecircs primeiras arengas

10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957

Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash

seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco

de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu

38

Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do

priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos

generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve

um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um

consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar

do trono do Impeacuterio Aquemecircnida

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro

I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-

vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como

sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas

Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme

e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de

vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-

vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar

inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu

lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra

Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem

pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do

perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute

raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o

fazer ao que satildeo de desmesurados

II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor

toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do

frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo

Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu

medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai

tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma

coroa de oiro

39

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase

No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e

sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro

Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento

presente no conjunto de valores helenos

Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como

gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens

helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que

represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra

deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do

discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores

Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela

liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a

sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a

liberdade

O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos

baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos

isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de

acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade

entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela

qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta

ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de

questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste

caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado

para uma comunidade grega

No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir

qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a

preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos

em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao

perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas

11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original

40

fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para

obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos

anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash

isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a

possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo

de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica

de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no

iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō

aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas

homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o

proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo

aos outrosrdquo

Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo

bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era

inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma

identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria

inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu

auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o

auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de

batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute

diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos

esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma

maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente

foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de

atingir os reais valores do auditoacuterio

423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)

Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro

persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei

12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados

41

III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa

A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada

aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica

424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor

Xenofonte

IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho

diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo

natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se

por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a

cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte

imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou

mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte

infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o

guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que

vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me

inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da

terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir

quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens

senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os

juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me

mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que

implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que

esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses

declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios

enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos

Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela

compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos

trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso

braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do

que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo

percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais

13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo

42

ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais

valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde

voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus

poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades

Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-

no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio

V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo

prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar

armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema

pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-

nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os

soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como

cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os

exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa

obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em

tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra

tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for

necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute

prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes

nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede

do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute

reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como

eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se

dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de

distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente

com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal

que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na

guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra

sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e

inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo

salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a

morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas

probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e

43

provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos

outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase

Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no

conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de

mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete

ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as

principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar

que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento

acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a

exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos

de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua

sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as

arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas

ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de

Tipo 4

Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer

a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem

sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave

arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se

apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO

2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja

ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo

O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de

expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave

traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo

sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os

baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os

capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E

como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil

tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o

44

segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a

debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais

aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera

mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom

a ajuda dos Deusesrdquo

Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz

parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam

implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos

os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos

deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva

uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte

incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo

425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor

QuisriacutesofoCleanor

VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples

camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu

ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como

gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a

fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro

A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno

VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem

patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de

vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou

prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos

enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que

trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu

sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se

para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os

14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo

15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros

45

Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra

eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase

Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de

tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por

Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por

Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte

vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas

relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos

aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o

elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso

de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que

ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor

Xenofonte

Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que

pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela

indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco

haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o

discurso nestes termos

VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem

inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles

necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos

capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela

Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos

com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria

Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram

graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou

16 στρατηγός no texto original

46

Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos

augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos

outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles

que estiverem de acordo ergam o braccedilo

Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave

Divindade Xenofonte prosseguiu

Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos

observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os

nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto

que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os

humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que

correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos

comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que

prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir

Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a

Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar

nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que

tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o

inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova

consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo

reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate

em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a

ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para

colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo

e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a

natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a

bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito

numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave

traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem

17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor

47

Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam

com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum

de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere

que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa

batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas

O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem

de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas

inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar

de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais

certeza de pocircr o corpo no seguro

Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou

Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com

a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os

mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse

Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas

da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E

quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los

onde os haacute e quantos nos decirc na gana

Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante

Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a

noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais

em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem

impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo

satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui

fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo

vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la

e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa

terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande

empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta

domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos

Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se

de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a

48

ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade

e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer

e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o

caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para

mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta

terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador

Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova

leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu

Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for

preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o

passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As

tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor

Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que

combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas

linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm

nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e

em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje

Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou

Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais

importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades

senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos

superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de

causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes

que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do

que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir

deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que

nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que

20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras

deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo

49

aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha

ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos

Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso

que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte

acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram

Xenofonte voltou entatildeo a dizer

IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se

discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer

que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito

me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda

semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e

deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso

eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a

impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute

nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos

que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse

E como todos se calassem desassombradamente proferiu

Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda

pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e

Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as

alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale

Ningueacutem o contraditou e concluiu

Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute

dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida

que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer

aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do

vencido

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase

50

O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e

com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo

mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees

pertinentes

Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o

nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a

exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem

ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo

Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto

pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]

Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso

Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio

possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata

do sacrifiacutecio de animais aos deuses

O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas

de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da

identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo

porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo

da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com

um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo

Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos

juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam

costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador

tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio

Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria

especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo

costumerdquo 22

Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis

edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a

qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e

os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses

22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um

dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da

paacutetria em ocasiotildees preacutevias

51

decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana

[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel

encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em

seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a

Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte

restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em

que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem

dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita

quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando

baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do

exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras

Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em

tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os

antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das

premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade

Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a

identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que

enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo

Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em

primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois

afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a

participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer

venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de

todosrdquo

Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente

compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos

a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel

estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo

ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as

canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um

animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir

Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a

relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda

de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por

exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o

52

fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem

duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam

uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida

(MEYER 2007 p 26)

Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente

natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que

sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar

Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]

que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim

do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero

epidiacutectico

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos

X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia

vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma

- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata

e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola

Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para

fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase

A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel

fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo

motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada

pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de

sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para

optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo

arranco23

23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois

no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante

deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda

53

Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo

dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e

para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de

valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave

sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga

tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o

fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo

Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado

criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada

por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do

cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo

com o restante da tropa

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los

em estilhas

()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo

dobrado

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase

O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um

uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a

premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em

estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel

Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute

fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos

reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN

TYTECA 2004p 302)

existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na

Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos

54

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e

aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os

grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os

companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via

disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse

XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que

ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os

Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram

com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem

podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se

afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila

connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente

diversa daquela com que se mediram haacute pouco

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase

Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que

poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a

devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante

constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e

exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)

que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute

por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a

cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo

Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas

principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus

proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus

argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias

reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem

castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade

55

em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso

por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua

companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele

incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que

pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas

agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a

vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o

inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar

de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute

estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso

acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das

tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a

certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo

tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma

oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte

sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado

dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar

salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que

natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a

cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de

tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de

maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que

nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos

para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da

vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em

jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante

Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade

toda e armasse tendas onde lhe desse gana

56

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase

O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o

inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela

exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja

buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que

julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos

No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta

a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como

ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a

agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para

oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar

um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de

acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)

O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo

algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis

ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem

recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem

de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada

O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a

respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de

pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no

discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador

todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com

integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade

entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se

todos pertencessem agrave mesma comunidade

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes

sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate

57

Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos

chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos

ouvirem contar os feitos que praticastes

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase

A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash

ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em

consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim

como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do

uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da

seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns

pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar

os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute

a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que

busquem a noccedilatildeo de pertencimento

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase

Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma

constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a

ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros

De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo

da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)

Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica

enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte

De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos

de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute

negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar

coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave

Greacutecia

24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)

58

Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios

retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a

distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os

baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais

possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o

orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que

todos pertencem a uma mesma comunidade

Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a

sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o

impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda

agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)

Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de

exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto

quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves

divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta

explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente

que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-

se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma

autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute

expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois

ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante

seus pares

Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por

sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade

43Arengas Militares na Ciropedia

A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem

de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p

59

537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no

quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1

Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 157-14 1 Ciro o Grande

2 2111 1 Ciro o Grande

3 2114-18 2 Ciro o Grande

4 232-4 2 Ciro o Grande

5 323-6 1 Ciro o Grande

6 3334-9 1 Ciro o Grande

7 3341-2 1 Ciro o Grande

8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios

9 3359 5 Soldados Persas

10 3361-2 5 Ciro o Grande

11 411-6 6 Ciro o Grande

12 4221-6 1 Ciro o Grande

13 6214-20 1 Ciro o Grande

14 6413-20 1 Ciro o Grande

15 7110-14 4 Ciro o Grande

16 7519-24 1 Ciro o Grande

Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia

Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2

podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a

obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso

ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo

que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma

grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou

seja as proferidas apenas aos capitatildees

Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada

pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um

25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo

Claacutessicos Jacson)

60

de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga

militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto

oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande

motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal

praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a

batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja

A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores

Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram

que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui

eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar

- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por

ventura nova coragem

- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais

elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons

arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco

uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio

preliminar

- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo

- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha

de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a

arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de

maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da

fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo

humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma

existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias

Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o

valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o

germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder

triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam

pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e

ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se

exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a

necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-

ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta

virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico

um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)

O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre

irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da

obra quatorze arengas

Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe

aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a

exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)

61

No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois

os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou

seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo

como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para

que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da

polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo

extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo

em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em

ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista

notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim

mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande

Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por

seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso

I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a

vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis

em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por

que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma

virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26

Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles

que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele

jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos

para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre

a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a

penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e

prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos

envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de

sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos

e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de

26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)

62

ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena

parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a

infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei

pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o

epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir

uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo

podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que

se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que

esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que

hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo

contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os

trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees

no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e

mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem

aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais

incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais

exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado

desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute

sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos

inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto

confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos

tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que

romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais

justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes

um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta

exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come

todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e

reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com

meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos

faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade

63

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia

Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-

comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de

comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos

pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade

devido agrave melhor formaccedilatildeo militar

Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a

resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera

rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como

tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes

CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de

comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra

Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia

considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso

conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha

enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de

gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis

fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos

O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que

os deuses satildeo favoraacuteveis

Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo

se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave

volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais

CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena

confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves

divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as

grandes quer as pequenas

O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo

AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente

puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses

Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre

CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos

persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence

Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e

nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar

os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos

Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um

importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte

utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que

Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar

cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa

64

cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o

reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer

O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio

irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem

a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal

Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN

TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma

Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar

espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se

entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute

gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois

de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei

ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que

depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria

deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e

estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se

poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para

motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate

mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um

grupo multieacutetnico

De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a

uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel

que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha

com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo

com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir

Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer

a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite

liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo

militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)

Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de

identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter

epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos

verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente

duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis

de Ciro que antecede a batalha de Sardes

65

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios

VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar

pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas

mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto

ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos

Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do

inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem

estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais

fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois

quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que

estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia

Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte

contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo

de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso

de pertencimento

Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas

vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia

do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses

valores

Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por

Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes

nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal

exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o

modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que

rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso

totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio

66

433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande

Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu

Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia

- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes

A outros

ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas

tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa

A outros

- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios

de possuir grandes bens mas dai provas de coragem

A outros

- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os

bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas

A outros

- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar

tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua

honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de

covardia ou de infacircmia

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia

Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se

trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a

totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a

exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga

extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro

O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de

pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso

explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1

67

Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um

padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as

arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista

de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes

de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e

antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica

- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a

pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 1124 2 Farnabazo

2 2413-17 3 Trasibulo

3 5114-17 2 Teleutias

4 7130 4 Arquidamo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27

Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes

palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de

olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era

quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e

crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre

todos os gregos

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica

Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio

do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante

lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No

entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras

de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim

27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu

68

Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como

nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um

discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel

Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias

metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo

literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte

Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da

Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no

corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante

regularidade

Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em

questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o

eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade

Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e

o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal

diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos

imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso

O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia

para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute

fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da

sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades

- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o

assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo

- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O

conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um

juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles

- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva

Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente

valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)

Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se

constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na

Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio

para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus

69

ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio

enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre

Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da

congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por

exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir

revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o

Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do

auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute

de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos

A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo

constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos

discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar

pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os

gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o

Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante

deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que

natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas

de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras

70

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos

discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por

Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em

perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos

detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que

esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou

ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso

definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o

pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()

Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila

atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as

arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o

Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria

de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o

Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos

que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los

Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra

personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de

Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao

longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em

questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador

Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio

natildeo eacute abolida

Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre

indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando

o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a

noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao

mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas

vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar

cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a

uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento

comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees

71

Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a

relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos

expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma

comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um

passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a

necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem

a uma mesma comunidade

A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia

verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que

formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas

virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite

compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um

auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal

como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um

estilo austero de uma vida militar

Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia

percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira

obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)

enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan

Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma

justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador

persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para

Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que

Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele

possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da

Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte

Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma

explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees

do autor em torno das arengas militares

De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um

discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo

aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que

almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta

72

para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo

de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir

um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo

Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da

histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas

epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras

Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise

retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a

necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua

sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal

A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos

interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno

da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu

muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio

para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas

possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema

73

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XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo e Prefaacutecio de Aquilino Ribeiro

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ZOIDO J C Iglesias (dir) Retoacuterica e Historiografiacutea El discurso militar em la

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ZOIDO Juan Carlos Iglesias The pre-battle speeches of Alexander at Issus and

Gaugamela Greek Roman And Byzantine Studies [si] v 50 n 2 p215-241 dez 2010

Disponiacutevel em lthttpgrbslibrarydukeeduarticleview1441gt Acesso em 02 out 2015

Page 9: Cidadania e Multietnicidade: a Noção de Pertencimento e as

9

1 INTRODUCcedilAtildeO

A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na

base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica

da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC

com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou

resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os

generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de

enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo

Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de

exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do

auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para

motivaacute-los nas lutas de determinada batalha

Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente

de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes

ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos

princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente

devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e

historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)

Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares

e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos

discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan

Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa

destacando

Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso

presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le

antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos

constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en

apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten

maacutes (ZOIDO 2007 p 22)

Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma

diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense

Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de

10

ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por

ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito

transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte

Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo

tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo

profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo

militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento

perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua

vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou

para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde

dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios

gregos (JAEGER 2010 p 1215)

Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte

sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise

Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja

as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa

O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a

respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a

presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no

conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que

a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o

que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no

decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas

poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as

democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte

asiaacutetica

Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da

identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de

pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas

reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o

corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico

por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo

prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da

historiografia do mundo antigo

Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um

auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em

11

seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com

membros provindos de diferentes culturas

Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica

desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das

arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios

retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a

um auditoacuterio multieacutetnico

A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem

eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de

401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a

finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo

vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados

em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de

volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o

Grande fundador do Impeacuterio Persa

A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de

exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio

formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute

constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se

trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a

historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees

De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no

Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no

acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo

em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave

negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar

metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma

relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro

da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja

a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo

1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre

diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade

tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos

Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)

12

tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da

Escola do Annales Barros nota que

Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de

conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores

como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem

comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo

de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que

analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a

considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de

singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)

Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que

abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo

antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca

(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio

Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La

diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda

Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo

Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um

tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa

sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos

se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta

de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para

entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e

historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)

O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash

constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado

pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a

primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha

pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em

respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

(ZOIDO 2007 p 32)

De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute

dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o

Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as

novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com

13

os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa

pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores

gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas

militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees

preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por

fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que

consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas

primeiras partes desse trabalho

14

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE

CLAacuteSSICA

A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde

aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do

pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam

para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular

Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a

definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a

ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos

acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos

referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje

21 A Retoacuterica

A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica

do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de

Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o

fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de

ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)

Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis

que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)

O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-

se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia

qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos

das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)

Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a

forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada

narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo

do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do

orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da

coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES

Retoacuterica 1 3 1358b)

15

A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia

(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de

apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo

pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor

das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os

sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos

tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam

advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os

sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal

Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta

mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave

retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva

considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a

cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta

pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a

adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila

A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus

contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente

por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser

capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para

por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de

argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute

vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo

houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio

ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)

Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum

discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo

como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a

comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou

emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade

estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se

sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se

transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003

p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de

certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo

16

Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um

importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a

retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se

baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade

grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o

bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na

retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte

Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados

y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la

oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica

claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que

describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)

A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora

princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica

Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da

existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo

republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em

assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam

para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia

de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no

senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento

para aquisiccedilatildeo de influecircncia

Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus

clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano

(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de

sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos

discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu

Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica

orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma

participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se

representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute

centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja

devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser

reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto

conforme Reboul novas perspectivas surgem

17

Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas

democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o

testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc

(REBOUL 2004 p 76)

Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai

preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O

cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina

religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo

para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma

atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as

passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio

entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem

duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se

tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca

A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois

tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos

vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os

responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes

que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de

evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para

insinuar falsas ideias no espiacuterito

No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis

pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em

nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada

vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica

em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute

a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo

(REBOUL 2004 p 81)

Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso

na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda

e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de

indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a

esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de

possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer

18

do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do

apoio massivo da populaccedilatildeo

Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de

diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash

protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave

anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos

ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma

retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)

Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma

interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas

que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por

representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais

importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os

tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim

classificando diversos tipos de argumentos

Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e

Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de

um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os

juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram

por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)

Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia

que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute

que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua

classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica

Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica

originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor

da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2

Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram

atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim

como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De

maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de

manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim

2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo

19

vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter

ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para

Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo

que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define

retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo

(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores

que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a

medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da

distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)

Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la

mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por

meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila

entre os indiviacuteduos

Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se

retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas

que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito

do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo

proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma

retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e

se confirma (MEYER 2007 p 26)

Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele

atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito

de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a

argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta

apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)

Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da

problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide

Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira

[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos

trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso

para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito

e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-

resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases

(MOSCA 2007 p 9)

22 Retoacuterica e Historiografia

20

Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela

retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma

pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal

arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou

exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a

importante observaccedilatildeo de Zoido

Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir

em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso

historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para

persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores

pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica

emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica

(ZOIDO 2007 p 67)

Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos

historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura

Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias

concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia

como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos

autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela

tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do

Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e

sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se

servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo

Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as

conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos

retoacutericos

Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y

particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico

haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por

tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues

quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos

ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica

Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os

de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma

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forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos

de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos

de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido

amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal

diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais

que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel

acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante

notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a

um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o

historiador

Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga

Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente

ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute

mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte

eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-

se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos

retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato

Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de

exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse

respeito afirma que

Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el

marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las

eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la

evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y

historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)

Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo

justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo

inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave

literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as

diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra

de uma morte gloriosa

Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)

como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess

enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo

de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus

apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la

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elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la

retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)

No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande

entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico

Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric

antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de

las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla

historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)

Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares

protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a

polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os

principais autores em debate

Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras

que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el

general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel

utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)

Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram

realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do

testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the

Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de

Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de

pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior

enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de

argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto

O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos

tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia

contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa

que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais

discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo

23

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO

31 Xenofonte

Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC

pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer

em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua

juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua

personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras

Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas

no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo

aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se

evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que

adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha

declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves

concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates

Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que

rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes

Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o

encontro de Xenofonte com Soacutecrates

Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-

lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos

Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam

excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo

e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)

Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo

o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma

passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e

publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis

Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa

filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na

composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se

junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu

irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento

3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar

um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta

24

resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio

hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas

obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de

personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e

para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)

Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central

Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei

Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos

lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os

baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei

de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens

em Atenas

O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos

historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no

afastamento de suas respectivas paacutetrias

Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados

voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes

que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido

Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta

circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no

fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten

ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones

exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de

um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)

O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma

propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal

conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de

agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse

histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo

(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana

ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e

Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever

4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu

significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho

pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais

educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed

Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)

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Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave

multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um

apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio

que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador

entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre

uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do

tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador

de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da

escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo

de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha

aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)

Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para

acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para

verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais

se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um

dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante

na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de

novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em

Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do

gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos

santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em

favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo

Medina

Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O

Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da

CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A

Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos

seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um

testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez

e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)

311Obras com Narrativas Histoacutericas

26

Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado

a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus

elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm

sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC

3111Anaacutebase

Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha

militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar

Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o

antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o

interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os

mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa

A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs

as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas

durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum

o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado

grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da

parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes

pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu

Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes

poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os

exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no

entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo

eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de

atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes

3112Ciropedia

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras

gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem

enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia

de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro

comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas

conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do

acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo

27

possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica

Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal

como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do

seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom

comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)

Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se

corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira

poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas

correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o

governante

O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas

como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra

daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso

ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado

nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p

85)

Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria

dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p

1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo

paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma

referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar

riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre

os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes

guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute

uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia

Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade

na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de

Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da

Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha

proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo

3113Hellecircnica

Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se

passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do

28

ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431

aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento

A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o

mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009

p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque

criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente

admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia

Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado

independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se

um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a

coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da

Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais

com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e

ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6

cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7

Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como

em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma

no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa

forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas

O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia

da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento

poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e

de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma

divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das

foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando

pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem

diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate

contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige

como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois

partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a

forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos

oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)

5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado

em batalha

29

Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em

assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas

levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa

caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra

em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de

influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade

Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse

expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de

pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas

reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo

com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas

quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma

elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da

retoacuterica no periacuteodo

Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como

explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato

deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue

o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos

perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade

caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a

comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela

instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis

Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de

um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma

forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento

de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a

fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da

comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da

populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma

formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou

ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas

8 Identificado pelo termo grego Isegoria

30

De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma

classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de

vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal

como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida

regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo

pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)

33 Identidade Helecircnica

Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania

costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute

importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham

membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma

mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o

tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas

caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo

momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados

com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato

recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade

helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos

O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas

nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra

natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido

dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o

quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a

mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados

por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute

bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o

responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos

do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos

templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes

natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o

ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos

para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e

bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis

subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis

fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo

aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando

novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-

lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)

31

Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em

relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos

sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com

os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao

contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio

grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar

agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo

de alteridade para com os baacuterbaros

Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da

Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de

reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade

sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle

sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de

um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos

como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)

34 Cultura Militar

A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o

advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha

Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os

soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de

batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes

heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns

Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda

modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir

uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da

cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo

modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a

formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual

ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua

posiccedilatildeo dentro da falange

Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura

necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo

9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as

liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo

32

compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de

sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees

cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave

imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas

sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a

braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma

mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais

manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para

proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua

esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem

comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)

Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na

guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e

escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na

cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do

cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos

eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)

De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de

guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os

imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No

entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que

soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC

33

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE

Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo

militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se

como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por

membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e

as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de

diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de

Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na

composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o

papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal

personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais

oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser

comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos

A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos

de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos

um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa

ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre

uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo

a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia

em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de

metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e

baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia

algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes

religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo

Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos

argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a

finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte

Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do

loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce

no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos

34

eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do

auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as

estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio

Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns

referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas

consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos

de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts

Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)

A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute

persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado

discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do

orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute

se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo

lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas

peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a

ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao

tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees

como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees

propostas por este trabalho

Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo

preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL

2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a

disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos

Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para

persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema

criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)

O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato

passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos

dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma

determinada identidade presente em ambos

P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades

P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo

35

faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem

seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)

O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada

conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A

entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A

utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que

natildeo se mostra expliacutecito

() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a

atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito

de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos

ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar

com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se

confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa

uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E

no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter

problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)

No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os

argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A

identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum

tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o

argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a

analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e

realidade

Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da

problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior

sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de

forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica

Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo

discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do

estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido

(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen

und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas

militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos

eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias

diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade

36

sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a

comunidade

dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da

superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo

estrateacutegica

endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo

ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares

Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso

em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de

importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da

que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de

satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de

possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos

Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate

Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)

anterior ao combate

Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem

indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)

Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode

tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito

Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate

Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate

42 As Arengas Militares na Anaacutebase

A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de

acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p

537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico

o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais

discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino

37

Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa

atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela

tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus

emissores como demonstrado na seguinte tabela

Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 173-4 1 Ciro

2 176-7 1 Ciro

3 1812 4 Ciro

4 3115-26 1 Xenofonte

5 3135-45 1 Xenofonte

6 322-3 2 Quiriacutesofo

7 324-6 2 Cleanor

8 328-32 2 Xenofonte

9 3234-39 2 Xenofonte

10 3446 4 Xenofonte

11 4814 4 Xenofonte

12 5419-21 2 Xenofonte

13 6312-18 2 Xenofonte

14 6323-4 4 Xenofonte

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase

Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves

caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute

possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados

apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de

observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto

pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos

emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas

expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute

autor apenas das trecircs primeiras arengas

10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957

Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash

seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco

de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu

38

Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do

priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos

generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve

um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um

consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar

do trono do Impeacuterio Aquemecircnida

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro

I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-

vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como

sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas

Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme

e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de

vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-

vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar

inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu

lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra

Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem

pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do

perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute

raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o

fazer ao que satildeo de desmesurados

II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor

toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do

frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo

Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu

medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai

tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma

coroa de oiro

39

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase

No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e

sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro

Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento

presente no conjunto de valores helenos

Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como

gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens

helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que

represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra

deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do

discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores

Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela

liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a

sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a

liberdade

O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos

baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos

isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de

acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade

entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela

qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta

ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de

questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste

caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado

para uma comunidade grega

No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir

qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a

preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos

em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao

perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas

11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original

40

fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para

obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos

anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash

isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a

possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo

de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica

de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no

iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō

aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas

homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o

proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo

aos outrosrdquo

Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo

bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era

inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma

identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria

inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu

auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o

auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de

batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute

diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos

esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma

maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente

foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de

atingir os reais valores do auditoacuterio

423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)

Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro

persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei

12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados

41

III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa

A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada

aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica

424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor

Xenofonte

IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho

diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo

natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se

por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a

cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte

imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou

mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte

infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o

guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que

vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me

inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da

terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir

quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens

senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os

juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me

mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que

implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que

esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses

declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios

enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos

Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela

compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos

trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso

braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do

que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo

percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais

13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo

42

ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais

valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde

voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus

poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades

Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-

no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio

V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo

prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar

armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema

pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-

nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os

soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como

cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os

exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa

obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em

tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra

tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for

necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute

prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes

nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede

do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute

reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como

eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se

dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de

distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente

com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal

que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na

guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra

sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e

inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo

salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a

morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas

probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e

43

provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos

outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase

Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no

conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de

mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete

ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as

principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar

que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento

acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a

exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos

de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua

sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as

arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas

ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de

Tipo 4

Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer

a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem

sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave

arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se

apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO

2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja

ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo

O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de

expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave

traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo

sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os

baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os

capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E

como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil

tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o

44

segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a

debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais

aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera

mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom

a ajuda dos Deusesrdquo

Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz

parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam

implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos

os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos

deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva

uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte

incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo

425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor

QuisriacutesofoCleanor

VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples

camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu

ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como

gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a

fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro

A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno

VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem

patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de

vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou

prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos

enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que

trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu

sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se

para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os

14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo

15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros

45

Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra

eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase

Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de

tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por

Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por

Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte

vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas

relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos

aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o

elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso

de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que

ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor

Xenofonte

Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que

pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela

indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco

haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o

discurso nestes termos

VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem

inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles

necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos

capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela

Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos

com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria

Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram

graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou

16 στρατηγός no texto original

46

Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos

augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos

outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles

que estiverem de acordo ergam o braccedilo

Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave

Divindade Xenofonte prosseguiu

Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos

observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os

nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto

que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os

humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que

correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos

comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que

prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir

Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a

Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar

nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que

tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o

inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova

consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo

reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate

em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a

ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para

colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo

e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a

natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a

bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito

numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave

traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem

17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor

47

Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam

com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum

de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere

que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa

batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas

O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem

de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas

inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar

de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais

certeza de pocircr o corpo no seguro

Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou

Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com

a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os

mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse

Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas

da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E

quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los

onde os haacute e quantos nos decirc na gana

Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante

Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a

noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais

em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem

impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo

satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui

fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo

vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la

e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa

terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande

empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta

domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos

Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se

de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a

48

ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade

e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer

e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o

caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para

mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta

terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador

Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova

leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu

Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for

preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o

passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As

tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor

Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que

combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas

linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm

nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e

em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje

Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou

Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais

importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades

senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos

superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de

causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes

que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do

que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir

deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que

nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que

20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras

deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo

49

aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha

ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos

Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso

que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte

acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram

Xenofonte voltou entatildeo a dizer

IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se

discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer

que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito

me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda

semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e

deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso

eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a

impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute

nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos

que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse

E como todos se calassem desassombradamente proferiu

Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda

pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e

Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as

alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale

Ningueacutem o contraditou e concluiu

Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute

dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida

que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer

aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do

vencido

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase

50

O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e

com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo

mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees

pertinentes

Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o

nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a

exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem

ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo

Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto

pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]

Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso

Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio

possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata

do sacrifiacutecio de animais aos deuses

O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas

de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da

identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo

porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo

da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com

um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo

Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos

juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam

costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador

tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio

Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria

especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo

costumerdquo 22

Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis

edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a

qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e

os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses

22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um

dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da

paacutetria em ocasiotildees preacutevias

51

decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana

[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel

encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em

seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a

Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte

restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em

que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem

dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita

quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando

baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do

exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras

Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em

tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os

antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das

premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade

Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a

identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que

enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo

Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em

primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois

afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a

participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer

venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de

todosrdquo

Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente

compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos

a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel

estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo

ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as

canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um

animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir

Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a

relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda

de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por

exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o

52

fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem

duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam

uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida

(MEYER 2007 p 26)

Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente

natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que

sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar

Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]

que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim

do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero

epidiacutectico

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos

X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia

vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma

- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata

e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola

Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para

fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase

A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel

fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo

motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada

pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de

sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para

optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo

arranco23

23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois

no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante

deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda

53

Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo

dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e

para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de

valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave

sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga

tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o

fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo

Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado

criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada

por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do

cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo

com o restante da tropa

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los

em estilhas

()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo

dobrado

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase

O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um

uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a

premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em

estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel

Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute

fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos

reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN

TYTECA 2004p 302)

existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na

Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos

54

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e

aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os

grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os

companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via

disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse

XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que

ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os

Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram

com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem

podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se

afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila

connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente

diversa daquela com que se mediram haacute pouco

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase

Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que

poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a

devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante

constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e

exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)

que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute

por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a

cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo

Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas

principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus

proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus

argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias

reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem

castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade

55

em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso

por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua

companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele

incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que

pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas

agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a

vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o

inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar

de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute

estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso

acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das

tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a

certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo

tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma

oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte

sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado

dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar

salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que

natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a

cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de

tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de

maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que

nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos

para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da

vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em

jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante

Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade

toda e armasse tendas onde lhe desse gana

56

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase

O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o

inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela

exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja

buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que

julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos

No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta

a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como

ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a

agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para

oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar

um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de

acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)

O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo

algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis

ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem

recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem

de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada

O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a

respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de

pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no

discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador

todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com

integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade

entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se

todos pertencessem agrave mesma comunidade

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes

sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate

57

Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos

chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos

ouvirem contar os feitos que praticastes

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase

A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash

ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em

consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim

como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do

uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da

seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns

pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar

os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute

a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que

busquem a noccedilatildeo de pertencimento

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase

Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma

constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a

ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros

De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo

da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)

Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica

enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte

De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos

de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute

negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar

coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave

Greacutecia

24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)

58

Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios

retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a

distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os

baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais

possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o

orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que

todos pertencem a uma mesma comunidade

Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a

sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o

impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda

agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)

Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de

exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto

quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves

divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta

explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente

que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-

se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma

autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute

expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois

ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante

seus pares

Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por

sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade

43Arengas Militares na Ciropedia

A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem

de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p

59

537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no

quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1

Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 157-14 1 Ciro o Grande

2 2111 1 Ciro o Grande

3 2114-18 2 Ciro o Grande

4 232-4 2 Ciro o Grande

5 323-6 1 Ciro o Grande

6 3334-9 1 Ciro o Grande

7 3341-2 1 Ciro o Grande

8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios

9 3359 5 Soldados Persas

10 3361-2 5 Ciro o Grande

11 411-6 6 Ciro o Grande

12 4221-6 1 Ciro o Grande

13 6214-20 1 Ciro o Grande

14 6413-20 1 Ciro o Grande

15 7110-14 4 Ciro o Grande

16 7519-24 1 Ciro o Grande

Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia

Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2

podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a

obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso

ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo

que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma

grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou

seja as proferidas apenas aos capitatildees

Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada

pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um

25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo

Claacutessicos Jacson)

60

de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga

militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto

oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande

motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal

praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a

batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja

A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores

Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram

que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui

eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar

- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por

ventura nova coragem

- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais

elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons

arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco

uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio

preliminar

- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo

- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha

de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a

arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de

maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da

fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo

humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma

existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias

Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o

valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o

germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder

triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam

pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e

ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se

exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a

necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-

ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta

virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico

um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)

O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre

irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da

obra quatorze arengas

Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe

aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a

exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)

61

No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois

os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou

seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo

como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para

que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da

polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo

extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo

em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em

ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista

notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim

mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande

Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por

seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso

I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a

vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis

em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por

que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma

virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26

Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles

que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele

jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos

para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre

a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a

penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e

prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos

envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de

sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos

e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de

26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)

62

ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena

parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a

infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei

pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o

epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir

uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo

podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que

se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que

esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que

hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo

contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os

trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees

no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e

mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem

aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais

incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais

exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado

desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute

sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos

inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto

confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos

tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que

romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais

justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes

um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta

exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come

todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e

reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com

meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos

faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade

63

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia

Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-

comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de

comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos

pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade

devido agrave melhor formaccedilatildeo militar

Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a

resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera

rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como

tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes

CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de

comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra

Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia

considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso

conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha

enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de

gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis

fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos

O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que

os deuses satildeo favoraacuteveis

Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo

se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave

volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais

CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena

confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves

divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as

grandes quer as pequenas

O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo

AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente

puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses

Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre

CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos

persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence

Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e

nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar

os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos

Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um

importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte

utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que

Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar

cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa

64

cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o

reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer

O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio

irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem

a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal

Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN

TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma

Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar

espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se

entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute

gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois

de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei

ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que

depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria

deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e

estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se

poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para

motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate

mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um

grupo multieacutetnico

De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a

uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel

que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha

com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo

com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir

Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer

a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite

liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo

militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)

Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de

identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter

epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos

verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente

duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis

de Ciro que antecede a batalha de Sardes

65

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios

VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar

pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas

mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto

ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos

Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do

inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem

estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais

fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois

quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que

estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia

Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte

contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo

de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso

de pertencimento

Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas

vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia

do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses

valores

Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por

Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes

nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal

exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o

modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que

rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso

totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio

66

433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande

Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu

Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia

- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes

A outros

ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas

tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa

A outros

- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios

de possuir grandes bens mas dai provas de coragem

A outros

- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os

bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas

A outros

- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar

tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua

honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de

covardia ou de infacircmia

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia

Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se

trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a

totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a

exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga

extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro

O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de

pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso

explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1

67

Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um

padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as

arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista

de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes

de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e

antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica

- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a

pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 1124 2 Farnabazo

2 2413-17 3 Trasibulo

3 5114-17 2 Teleutias

4 7130 4 Arquidamo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27

Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes

palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de

olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era

quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e

crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre

todos os gregos

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica

Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio

do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante

lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No

entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras

de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim

27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu

68

Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como

nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um

discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel

Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias

metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo

literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte

Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da

Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no

corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante

regularidade

Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em

questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o

eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade

Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e

o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal

diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos

imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso

O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia

para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute

fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da

sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades

- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o

assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo

- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O

conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um

juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles

- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva

Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente

valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)

Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se

constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na

Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio

para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus

69

ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio

enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre

Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da

congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por

exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir

revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o

Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do

auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute

de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos

A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo

constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos

discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar

pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os

gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o

Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante

deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que

natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas

de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras

70

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos

discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por

Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em

perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos

detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que

esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou

ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso

definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o

pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()

Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila

atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as

arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o

Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria

de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o

Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos

que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los

Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra

personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de

Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao

longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em

questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador

Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio

natildeo eacute abolida

Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre

indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando

o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a

noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao

mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas

vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar

cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a

uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento

comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees

71

Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a

relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos

expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma

comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um

passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a

necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem

a uma mesma comunidade

A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia

verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que

formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas

virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite

compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um

auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal

como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um

estilo austero de uma vida militar

Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia

percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira

obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)

enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan

Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma

justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador

persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para

Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que

Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele

possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da

Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte

Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma

explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees

do autor em torno das arengas militares

De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um

discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo

aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que

almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta

72

para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo

de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir

um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo

Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da

histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas

epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras

Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise

retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a

necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua

sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal

A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos

interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno

da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu

muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio

para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas

possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema

73

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Page 10: Cidadania e Multietnicidade: a Noção de Pertencimento e as

10

ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por

ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito

transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte

Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo

tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo

profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo

militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento

perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua

vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou

para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde

dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios

gregos (JAEGER 2010 p 1215)

Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte

sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise

Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja

as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa

O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a

respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a

presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no

conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que

a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o

que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no

decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas

poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as

democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte

asiaacutetica

Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da

identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de

pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas

reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o

corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico

por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo

prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da

historiografia do mundo antigo

Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um

auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em

11

seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com

membros provindos de diferentes culturas

Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica

desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das

arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios

retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a

um auditoacuterio multieacutetnico

A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem

eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de

401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a

finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo

vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados

em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de

volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o

Grande fundador do Impeacuterio Persa

A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de

exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio

formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute

constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se

trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a

historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees

De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no

Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no

acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo

em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave

negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar

metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma

relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro

da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja

a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo

1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre

diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade

tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos

Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)

12

tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da

Escola do Annales Barros nota que

Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de

conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores

como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem

comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo

de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que

analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a

considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de

singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)

Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que

abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo

antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca

(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio

Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La

diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda

Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo

Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um

tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa

sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos

se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta

de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para

entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e

historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)

O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash

constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado

pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a

primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha

pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em

respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

(ZOIDO 2007 p 32)

De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute

dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o

Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as

novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com

13

os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa

pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores

gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas

militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees

preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por

fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que

consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas

primeiras partes desse trabalho

14

2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE

CLAacuteSSICA

A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde

aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do

pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam

para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular

Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a

definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a

ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos

acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos

referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje

21 A Retoacuterica

A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica

do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de

Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o

fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de

ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)

Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis

que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)

O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-

se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia

qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos

das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)

Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a

forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada

narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo

do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do

orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da

coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES

Retoacuterica 1 3 1358b)

15

A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia

(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de

apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo

pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor

das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os

sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos

tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam

advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os

sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal

Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta

mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave

retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva

considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a

cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta

pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a

adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila

A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus

contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente

por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser

capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para

por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de

argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute

vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo

houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio

ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)

Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum

discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo

como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a

comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou

emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade

estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se

sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se

transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003

p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de

certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo

16

Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um

importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a

retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se

baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade

grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o

bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na

retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte

Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados

y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la

oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica

claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que

describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)

A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora

princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica

Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da

existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo

republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em

assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam

para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia

de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no

senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento

para aquisiccedilatildeo de influecircncia

Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus

clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano

(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de

sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos

discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu

Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica

orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma

participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se

representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute

centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja

devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser

reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto

conforme Reboul novas perspectivas surgem

17

Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas

democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o

testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc

(REBOUL 2004 p 76)

Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai

preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O

cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina

religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo

para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma

atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as

passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio

entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem

duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se

tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca

A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois

tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos

vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os

responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes

que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de

evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para

insinuar falsas ideias no espiacuterito

No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis

pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em

nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada

vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica

em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute

a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo

(REBOUL 2004 p 81)

Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso

na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda

e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de

indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a

esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de

possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer

18

do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do

apoio massivo da populaccedilatildeo

Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de

diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash

protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave

anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos

ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma

retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)

Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma

interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas

que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por

representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais

importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os

tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim

classificando diversos tipos de argumentos

Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e

Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de

um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os

juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram

por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)

Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia

que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute

que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua

classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica

Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica

originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor

da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2

Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram

atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim

como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De

maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de

manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim

2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo

19

vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter

ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para

Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo

que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define

retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo

(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores

que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a

medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da

distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)

Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la

mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por

meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila

entre os indiviacuteduos

Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se

retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas

que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito

do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo

proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma

retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e

se confirma (MEYER 2007 p 26)

Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele

atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito

de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a

argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta

apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)

Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da

problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide

Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira

[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos

trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso

para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito

e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-

resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases

(MOSCA 2007 p 9)

22 Retoacuterica e Historiografia

20

Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela

retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma

pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal

arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou

exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a

importante observaccedilatildeo de Zoido

Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir

em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso

historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para

persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores

pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica

emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica

(ZOIDO 2007 p 67)

Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos

historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura

Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias

concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia

como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos

autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela

tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do

Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e

sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se

servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo

Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as

conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos

retoacutericos

Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y

particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico

haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por

tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues

quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos

ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)

23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica

Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os

de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma

21

forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos

de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos

de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido

amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal

diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais

que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel

acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante

notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a

um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o

historiador

Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga

Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente

ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute

mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte

eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-

se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos

retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato

Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de

exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse

respeito afirma que

Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el

marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las

eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la

evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y

historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)

Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo

justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo

inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave

literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as

diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra

de uma morte gloriosa

Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)

como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess

enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo

de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus

apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la

22

elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la

retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)

No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande

entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico

Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric

antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de

las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla

historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)

Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares

protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a

polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os

principais autores em debate

Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras

que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el

general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel

utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)

Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram

realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do

testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the

Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de

Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de

pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior

enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de

argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto

O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos

tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia

contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa

que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais

discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo

23

3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO

31 Xenofonte

Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC

pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer

em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua

juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua

personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras

Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas

no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo

aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se

evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que

adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha

declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves

concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates

Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que

rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes

Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o

encontro de Xenofonte com Soacutecrates

Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-

lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos

Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam

excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo

e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)

Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo

o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma

passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e

publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis

Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa

filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na

composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se

junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu

irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento

3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar

um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta

24

resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio

hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas

obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de

personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e

para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)

Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central

Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei

Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos

lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os

baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei

de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens

em Atenas

O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos

historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no

afastamento de suas respectivas paacutetrias

Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados

voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes

que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido

Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta

circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no

fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten

ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones

exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de

um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)

O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma

propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal

conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de

agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse

histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo

(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana

ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e

Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever

4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu

significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho

pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais

educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed

Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)

25

Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave

multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um

apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio

que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador

entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre

uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do

tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador

de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da

escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo

de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha

aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)

Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para

acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para

verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais

se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um

dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante

na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de

novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em

Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do

gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos

santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em

favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo

Medina

Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O

Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da

CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A

Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos

seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um

testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez

e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)

311Obras com Narrativas Histoacutericas

26

Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado

a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus

elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm

sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC

3111Anaacutebase

Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha

militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar

Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o

antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o

interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os

mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa

A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs

as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas

durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum

o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado

grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da

parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes

pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu

Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes

poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os

exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no

entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo

eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de

atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes

3112Ciropedia

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras

gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem

enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia

de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro

comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas

conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do

acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo

27

possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica

Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal

como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do

seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom

comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)

Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se

corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira

poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas

correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o

governante

O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas

como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra

daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso

ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado

nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p

85)

Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria

dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p

1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo

paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma

referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar

riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre

os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes

guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute

uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia

Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade

na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de

Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da

Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha

proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo

3113Hellecircnica

Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se

passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do

28

ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431

aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento

A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o

mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009

p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque

criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente

admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo

32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia

Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado

independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se

um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a

coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da

Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais

com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e

ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6

cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7

Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como

em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma

no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa

forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas

O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia

da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento

poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e

de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma

divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das

foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando

pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem

diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate

contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige

como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois

partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a

forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos

oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)

5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado

em batalha

29

Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em

assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas

levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa

caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra

em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de

influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade

Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse

expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de

pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas

reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo

com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas

quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma

elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da

retoacuterica no periacuteodo

Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como

explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato

deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue

o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos

perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade

caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a

comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela

instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis

Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de

um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma

forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento

de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a

fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da

comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da

populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma

formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou

ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas

8 Identificado pelo termo grego Isegoria

30

De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma

classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de

vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal

como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida

regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo

pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)

33 Identidade Helecircnica

Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania

costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute

importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham

membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma

mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o

tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas

caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo

momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados

com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato

recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade

helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos

O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas

nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra

natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido

dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o

quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a

mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados

por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute

bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o

responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos

do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos

templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes

natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o

ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos

para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e

bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis

subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis

fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo

aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando

novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-

lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)

31

Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em

relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos

sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com

os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao

contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio

grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar

agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo

de alteridade para com os baacuterbaros

Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da

Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de

reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade

sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle

sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de

um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos

como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)

34 Cultura Militar

A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o

advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha

Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os

soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de

batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes

heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns

Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda

modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir

uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da

cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo

modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a

formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual

ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua

posiccedilatildeo dentro da falange

Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura

necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo

9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as

liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo

32

compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de

sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees

cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave

imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas

sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a

braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma

mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais

manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para

proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua

esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem

comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)

Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na

guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e

escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na

cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do

cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos

eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)

De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de

guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os

imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No

entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que

soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC

33

4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE

Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo

militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se

como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por

membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e

as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de

diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de

Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na

composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o

papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal

personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais

oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser

comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos

A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos

de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos

um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa

ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre

uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo

a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia

em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de

metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e

baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia

algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes

religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande

41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo

Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos

argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a

finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte

Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do

loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce

no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos

34

eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do

auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as

estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio

Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns

referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas

consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos

de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts

Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)

A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute

persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado

discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do

orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute

se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo

lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas

peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a

ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao

tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees

como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees

propostas por este trabalho

Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo

preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL

2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a

disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos

Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para

persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema

criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)

O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato

passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos

dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma

determinada identidade presente em ambos

P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades

P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo

35

faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem

seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)

O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada

conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A

entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A

utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que

natildeo se mostra expliacutecito

() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a

atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito

de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos

ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar

com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se

confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa

uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E

no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter

problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)

No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os

argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A

identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum

tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o

argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a

analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e

realidade

Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da

problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior

sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de

forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica

Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo

discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do

estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido

(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen

und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas

militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos

eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias

diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade

36

sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a

comunidade

dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da

superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo

estrateacutegica

endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo

ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares

Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso

em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de

importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da

que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de

satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de

possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos

Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate

Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)

anterior ao combate

Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem

indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)

Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode

tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito

Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate

Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate

42 As Arengas Militares na Anaacutebase

A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de

acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p

537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico

o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais

discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino

37

Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa

atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela

tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus

emissores como demonstrado na seguinte tabela

Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 173-4 1 Ciro

2 176-7 1 Ciro

3 1812 4 Ciro

4 3115-26 1 Xenofonte

5 3135-45 1 Xenofonte

6 322-3 2 Quiriacutesofo

7 324-6 2 Cleanor

8 328-32 2 Xenofonte

9 3234-39 2 Xenofonte

10 3446 4 Xenofonte

11 4814 4 Xenofonte

12 5419-21 2 Xenofonte

13 6312-18 2 Xenofonte

14 6323-4 4 Xenofonte

Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase

Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves

caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute

possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados

apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de

observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto

pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos

emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas

expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute

autor apenas das trecircs primeiras arengas

10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957

Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash

seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco

de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu

38

Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do

priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos

generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve

um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um

consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar

do trono do Impeacuterio Aquemecircnida

421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro

I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-

vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como

sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas

Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme

e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de

vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-

vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar

inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu

lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra

Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem

pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do

perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute

raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o

fazer ao que satildeo de desmesurados

II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor

toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do

frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo

Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu

medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai

tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma

coroa de oiro

39

4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase

No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e

sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro

Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento

presente no conjunto de valores helenos

Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como

gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens

helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que

represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra

deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do

discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores

Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela

liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a

sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a

liberdade

O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos

baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos

isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de

acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade

entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela

qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta

ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de

questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste

caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado

para uma comunidade grega

No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir

qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a

preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos

em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao

perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas

11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original

40

fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para

obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos

anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash

isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a

possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo

de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica

de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no

iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō

aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas

homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o

proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo

aos outrosrdquo

Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo

bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era

inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma

identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria

inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade

destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu

auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o

auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de

batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute

diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos

esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma

maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente

foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de

atingir os reais valores do auditoacuterio

423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)

Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro

persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei

12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados

41

III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa

A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada

aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica

424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor

Xenofonte

IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho

diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo

natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se

por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a

cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte

imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou

mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte

infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o

guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que

vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me

inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da

terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir

quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens

senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os

juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me

mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que

implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que

esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses

declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios

enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos

Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela

compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos

trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso

braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do

que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo

percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais

13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo

42

ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais

valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde

voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus

poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades

Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-

no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio

V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo

prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar

armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema

pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-

nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os

soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como

cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os

exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa

obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em

tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra

tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for

necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute

prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes

nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede

do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute

reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como

eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se

dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de

distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente

com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal

que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na

guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra

sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e

inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo

salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a

morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas

probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e

43

provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos

outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais

4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase

Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no

conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de

mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete

ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as

principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar

que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento

acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a

exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos

de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua

sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as

arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas

ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de

Tipo 4

Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer

a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem

sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave

arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se

apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO

2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja

ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo

O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de

expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave

traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo

sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os

baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os

capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E

como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil

tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o

44

segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a

debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais

aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera

mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom

a ajuda dos Deusesrdquo

Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz

parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam

implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos

os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos

deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva

uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte

incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo

425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor

QuisriacutesofoCleanor

VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples

camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu

ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como

gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a

fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro

A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno

VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem

patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de

vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou

prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos

enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que

trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu

sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se

para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os

14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo

15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros

45

Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra

eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses

4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase

Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de

tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por

Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por

Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte

vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas

relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos

aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o

elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso

de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que

ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo

426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor

Xenofonte

Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que

pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela

indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco

haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o

discurso nestes termos

VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem

inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles

necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos

capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela

Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos

com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria

Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram

graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou

16 στρατηγός no texto original

46

Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos

augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos

outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles

que estiverem de acordo ergam o braccedilo

Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave

Divindade Xenofonte prosseguiu

Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos

observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os

nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto

que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os

humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que

correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos

comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que

prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir

Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a

Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar

nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que

tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o

inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova

consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo

reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate

em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a

ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para

colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo

e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a

natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a

bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito

numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave

traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem

17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor

47

Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam

com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum

de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere

que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa

batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas

O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem

de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas

inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar

de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais

certeza de pocircr o corpo no seguro

Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou

Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com

a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os

mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse

Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas

da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E

quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los

onde os haacute e quantos nos decirc na gana

Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante

Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a

noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais

em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem

impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo

satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui

fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo

vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la

e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa

terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande

empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta

domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos

Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se

de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a

48

ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade

e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer

e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o

caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para

mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta

terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador

Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova

leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu

Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for

preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o

passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As

tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor

Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que

combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas

linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm

nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e

em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje

Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou

Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais

importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades

senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos

superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de

causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes

que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do

que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir

deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que

nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que

20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras

deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo

49

aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha

ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos

Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso

que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte

acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram

Xenofonte voltou entatildeo a dizer

IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se

discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer

que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito

me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda

semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e

deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso

eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a

impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute

nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos

que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse

E como todos se calassem desassombradamente proferiu

Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda

pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e

Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as

alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale

Ningueacutem o contraditou e concluiu

Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute

dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida

que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer

aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do

vencido

4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase

50

O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e

com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo

mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees

pertinentes

Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o

nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a

exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem

ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo

Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto

pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]

Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso

Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio

possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata

do sacrifiacutecio de animais aos deuses

O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas

de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da

identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo

porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo

da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com

um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo

Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos

juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam

costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador

tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio

Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria

especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo

costumerdquo 22

Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis

edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a

qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e

os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses

22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um

dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da

paacutetria em ocasiotildees preacutevias

51

decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana

[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel

encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em

seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a

Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte

restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em

que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem

dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis

Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita

quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando

baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do

exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras

Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em

tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os

antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das

premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade

Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a

identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que

enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo

Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em

primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois

afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os

desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a

participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer

venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de

todosrdquo

Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente

compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos

a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel

estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo

ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as

canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um

animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir

Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a

relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda

de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por

exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o

52

fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem

duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam

uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida

(MEYER 2007 p 26)

Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente

natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que

sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar

Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]

que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim

do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero

epidiacutectico

427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos

X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia

vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma

- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata

e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola

Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para

fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros

4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase

A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel

fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo

motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada

pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de

sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para

optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo

arranco23

23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois

no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante

deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda

53

Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo

dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e

para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de

valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave

sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga

tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o

fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo

Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado

criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada

por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do

cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo

com o restante da tropa

428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los

em estilhas

()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo

dobrado

4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase

O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um

uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a

premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em

estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel

Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute

fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos

reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN

TYTECA 2004p 302)

existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na

Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos

54

429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e

aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os

grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os

companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via

disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse

XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que

ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os

Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram

com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem

podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se

afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila

connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente

diversa daquela com que se mediram haacute pouco

4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase

Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que

poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a

devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante

constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e

exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)

que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute

por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a

cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo

Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas

principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus

proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus

argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias

reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem

castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade

55

em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso

por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua

companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele

incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que

pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia

4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte

XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas

agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a

vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o

inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar

de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute

estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso

acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das

tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a

certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo

tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma

oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte

sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado

dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar

salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que

natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a

cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de

tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de

maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que

nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos

para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da

vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em

jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante

Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade

toda e armasse tendas onde lhe desse gana

56

42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase

O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o

inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela

exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja

buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que

julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos

No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta

a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como

ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a

agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para

oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar

um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de

acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)

O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo

algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis

ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem

recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem

de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada

O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a

respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de

pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no

discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador

todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com

integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade

entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se

todos pertencessem agrave mesma comunidade

4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte

XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes

sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate

57

Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos

chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos

ouvirem contar os feitos que praticastes

42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase

A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash

ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em

consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim

como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do

uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da

seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns

pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar

os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute

a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que

busquem a noccedilatildeo de pertencimento

4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase

Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma

constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a

ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros

De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo

da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)

Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica

enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte

De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos

de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute

negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar

coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave

Greacutecia

24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)

58

Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios

retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a

distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os

baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais

possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o

orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que

todos pertencem a uma mesma comunidade

Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a

sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o

impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda

agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)

Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de

exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto

quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves

divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta

explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente

que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-

se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma

autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute

expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois

ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante

seus pares

Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por

sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade

43Arengas Militares na Ciropedia

A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem

de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p

59

537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no

quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1

Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 157-14 1 Ciro o Grande

2 2111 1 Ciro o Grande

3 2114-18 2 Ciro o Grande

4 232-4 2 Ciro o Grande

5 323-6 1 Ciro o Grande

6 3334-9 1 Ciro o Grande

7 3341-2 1 Ciro o Grande

8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios

9 3359 5 Soldados Persas

10 3361-2 5 Ciro o Grande

11 411-6 6 Ciro o Grande

12 4221-6 1 Ciro o Grande

13 6214-20 1 Ciro o Grande

14 6413-20 1 Ciro o Grande

15 7110-14 4 Ciro o Grande

16 7519-24 1 Ciro o Grande

Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia

Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2

podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a

obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso

ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo

que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma

grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou

seja as proferidas apenas aos capitatildees

Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada

pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um

25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo

Claacutessicos Jacson)

60

de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga

militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto

oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande

motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal

praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a

batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja

A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores

Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram

que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui

eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar

- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por

ventura nova coragem

- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais

elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons

arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco

uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio

preliminar

- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo

- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha

de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a

arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de

maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da

fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo

humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma

existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias

Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o

valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o

germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder

triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam

pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e

ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se

exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a

necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-

ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta

virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico

um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)

O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre

irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da

obra quatorze arengas

Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe

aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a

exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)

61

No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois

os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou

seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo

como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para

que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da

polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo

extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo

em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em

ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista

notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim

mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada

431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande

Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por

seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso

I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a

vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis

em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por

que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma

virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26

Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles

que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele

jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos

para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre

a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a

penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e

prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos

envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de

sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos

e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de

26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)

62

ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena

parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a

infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei

pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o

epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir

uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo

podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que

se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que

esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que

hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo

contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os

trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees

no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e

mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem

aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais

incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais

exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado

desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute

sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos

inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto

confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos

tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que

romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais

justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes

um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta

exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come

todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e

reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com

meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos

faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade

63

4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia

Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-

comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de

comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos

pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade

devido agrave melhor formaccedilatildeo militar

Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a

resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera

rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como

tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes

CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de

comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente

desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra

Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia

considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso

conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha

enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de

gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis

fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos

O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que

os deuses satildeo favoraacuteveis

Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo

se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave

volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais

CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena

confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves

divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as

grandes quer as pequenas

O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo

AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente

puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses

Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre

CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos

persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence

Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e

nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar

os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos

Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um

importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte

utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que

Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar

cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa

64

cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o

reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer

O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio

irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem

a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal

Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN

TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma

Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar

espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo

acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se

entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute

gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois

de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei

ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que

depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria

deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e

estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se

poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos

Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para

motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate

mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um

grupo multieacutetnico

De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a

uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel

que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha

com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo

com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir

Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer

a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite

liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo

militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)

Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de

identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter

epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos

verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente

duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis

de Ciro que antecede a batalha de Sardes

65

432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios

VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar

pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas

mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto

ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos

Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do

inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem

estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais

fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois

quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que

estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade

4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia

Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte

contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo

de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso

de pertencimento

Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas

vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia

do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses

valores

Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por

Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes

nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal

exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o

modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que

rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso

totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio

66

433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande

Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu

Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia

- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes

A outros

ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas

tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa

A outros

- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios

de possuir grandes bens mas dai provas de coragem

A outros

- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os

bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas

A outros

- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar

tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua

honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de

covardia ou de infacircmia

4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia

Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se

trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a

totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a

exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga

extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro

O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de

pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso

explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1

67

Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um

padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as

arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista

de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes

de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e

antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica

- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a

pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR

1 1124 2 Farnabazo

2 2413-17 3 Trasibulo

3 5114-17 2 Teleutias

4 7130 4 Arquidamo

Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica

434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27

Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes

palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de

olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era

quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e

crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre

todos os gregos

4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica

Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio

do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante

lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No

entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras

de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim

27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu

68

Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como

nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um

discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel

Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias

metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo

literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor

44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte

Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da

Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no

corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante

regularidade

Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em

questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o

eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade

Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e

o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal

diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos

imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso

O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia

para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute

fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da

sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades

- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o

assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo

- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O

conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um

juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles

- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva

Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente

valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)

Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se

constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na

Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio

para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus

69

ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio

enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre

Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da

congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por

exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir

revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o

Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do

auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute

de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos

A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo

constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos

discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar

pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os

gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o

Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante

deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que

natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas

de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras

70

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos

discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por

Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em

perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos

detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que

esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou

ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso

definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o

pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()

Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila

atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as

arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o

Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria

de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o

Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos

que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los

Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra

personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de

Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao

longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em

questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador

Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio

natildeo eacute abolida

Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre

indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando

o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a

noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao

mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas

vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar

cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a

uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento

comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees

71

Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a

relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos

expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma

comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um

passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a

necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem

a uma mesma comunidade

A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia

verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que

formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas

virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite

compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um

auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal

como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um

estilo austero de uma vida militar

Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia

percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira

obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)

enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan

Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma

justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador

persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para

Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que

Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele

possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da

Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte

Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma

explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees

do autor em torno das arengas militares

De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um

discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo

aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que

almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta

72

para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo

de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir

um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo

Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da

histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas

epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras

Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise

retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a

necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua

sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal

A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos

interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno

da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu

muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio

para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas

possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema

73

6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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