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Marx, Engels e as cidades no capitalismo Vania Maria Cury
Estas centenas de milhares de pessoas, de todos os Estados
e de todas as classes, que se apressam e se empurram, no sero todas seres humanos possuindo as mesmas capacidades e o mesmo interesse na procura da felicidade? E no devero, enfim, procurar a felicidade com os mesmos mtodos e processos? E, contudo, estas pessoas cruzam-se apressadas como se nada tivessem em comum, nada a realizar juntas, e a nica conveno que existe entre elas o acordo tcito pelo qual cada uma ocupa sua direita no passeio, a fim de que as duas correntes da multido que se cruzam no se constituam mutuamente obstculo; e, contudo, no vem ao esprito de ningum a idia de conceder ao outro um olhar sequer. (ENGELS: 1985, 36)
Arquitetos, urbanistas, gegrafos escrevem muito, sempre, sobre as cidades.
Ao contrrio, os historiadores escrevem pouco, ou quase nada. Um levantamento
bibliogrfico preliminar sobre o tema pode dar a dimenso exata da lacuna que a
historiografia tem deixado no campo dos estudos urbanos. Apesar disso, as cidades, em
especial as metrpoles modernas, constituem objetos privilegiados para a histria.
Nelas, hoje, concentram-se os mais expressivos contingentes populacionais dos pases,
materializam-se as relaes sociais e econmicas mais importantes e instalam-se os
principais centros da atividade de produo e de distribuio de bens e servios.
As cidades, sobretudo as grandes cidades, representam os espaos fsicos e
sociais mais ricos e dinmicos da atualidade. Por todas as potencialidades que encerram
e realizam, j mereceriam uma especial ateno. Alm disso, graas expressiva
concentrao populacional que acolhem, constituem ainda o local exato onde milhes e
milhes de pessoas formaro suas famlias, construiro suas carreiras e experimentaro
vivncias afetivas e profissionais marcantes e variadas. Nelas sero produzidas ainda as
perspectivas e os sonhos de inmeros grupos e indivduos, sero realizadas as
experincias polticas e administrativas mais ousadas, sero postas em prtica novas
idias, sero testados novos produtos, sero criados novos projetos.
Ao mesmo tempo, as metrpoles contemporneas potencializam o grave mal-
estar do atual estgio de desenvolvimento do capitalismo, que se manifesta mais
abertamente nos congestionamentos de automveis, na poluio ambiental e sonora, na
exigidade dos espaos pblicos de confraternizao, na exploso de atos violentos e
desumanos, na ansiedade permanente dos indivduos, na presso populacional sobre os
bens e servios urbanos, nas disputas pelos terrenos disponveis. Guardadas as devidas
propores, todas as grandes cidades do mundo possuem alguns desses traos e
maneiras de combin-los que mais as aproximam, do que afastam. Viver, produzir e
criar num grande centro urbano, hoje, so desafios comuns a todos os cidados, em
todos os continentes.
Exatamente por sua capacidade de colocar os fenmenos sociais em
perspectiva, os estudos de histria tm uma notvel contribuio a dar ao conhecimento
dos processos formadores das grandes metrpoles. Conhec-las em profundidade,
buscando explicar suas origens e interpretar suas principais linhas de evoluo, um
esforo que pode ser amplamente recompensado. Para isso, alguns instrumentos da
anlise marxista tornam-se indispensveis, como vamos demonstrar em seguida. O
entendimento crtico do modelo de formao e crescimento dos centros urbanos, no
capitalismo, fundamental para o xito das iniciativas que visam ao enfrentamento dos
graves problemas por eles apresentados na atualidade.
A cidade capitalista
Cidades, mercados, mercadores estiveram na base de inmeras interpretaes
correntes sobre as origens das economias modernas industriais e capitalistas. De fato,
nessas concepes amplamente difundidas, tais elementos constituram o fundamento
mesmo do tipo de desenvolvimento econmico iniciado no Ocidente e propagado
mundo afora, a partir de meados do sculo XIX. O assim chamado modelo mercantil
de explicao 1 tem se apoiado quase integralmente na idia de que os mercados
seriam apenas os espaos de troca entre produtores especializados de mercadorias e
servios e seus consumidores. Sua expanso ininterrupta e acelerada, verificada na
Europa ocidental do sculo XV em diante, teria dado as condies necessrias para o
amplo estabelecimento das economias de mercado.
O alargamento dos mercados, ento, pareceu suficiente para a constituio e a
consolidao de uma economia de mercado, fundada sobre a base de uma liberdade
cada vez mais ilimitada para as prticas comerciais. Nesse processo, as cidades teriam
1 Para um exame cuidadoso e detalhado desse debate, ver Ellen Meiksins Wood. A origem do capitalismo. Traduo Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
desempenhado um papel crucial, dada a modalidade de especializao que tenderam a
desenvolver, dentro de uma realidade econmica essencialmente rural:
...Nesse ponto, deparamos com um dos pressupostos mais
comumente ligados ao modelo mercantil: a associao do capitalismo
com as cidades a rigor, a suposio de que, desde o comeo, as
cidades foram um capitalismo embrionrio. Na Europa, diz a tese,
surgiram as cidades com uma autonomia singular e sem precedentes,
cidades dedicadas ao comrcio e dominadas por uma classe
autnoma de habitantes de burgos (os burgueses), que viria a se
libertar de uma vez por todas dos grilhes das antigas restries
culturais e do parasitismo poltico. Esta libertao da economia
urbana, da atividade comercial e da racionalidade mercantil,
acompanhada pelos inevitveis aperfeioamentos das tcnicas de
produo que decorrem, evidentemente, da emancipao do
comrcio, aparentemente bastou para explicar a ascenso do
capitalismo moderno. (WOOD: 2002, 22-23)
Seguindo essa linha de raciocnio, observa-se a total identificao entre o lucro
comercial em grande parte decorrente da diferena entre os preos de compra e venda
e o lucro capitalista, produto da acumulao de capital. Do mesmo modo, estabelece-
se a associao indiscriminada entre burgus e capitalista, prescindindo-se da
necessidade de explicar, historicamente, o surgimento do capitalismo, ento definido em
termos de uma expanso acelerada da assim chamada economia de mercado. A
generalizao das trocas, portanto, bastaria para dar sentido ao novo modelo de
desenvolvimento implantado no Ocidente, tornando-se o mercado (identificado apenas
como o lugar das trocas) e, por conseguinte, as cidades o elemento libertador de
todas as restries ao progresso econmico das sociedades.
A dinmica do mercado no capitalismo, entretanto, pode ser pensada sob
outros pontos de vista, como bem demonstrou Ellen Wood. Os imperativos especficos
que ele produz e enraza nas vrias formaes sociais so de um tipo completamente
diferente. Nada tm a ver com o aumento das liberdades de troca e com o determinismo
da eficincia dos produtores. De fato, representam as condies essenciais de existncia
mesma das sociedades:
No capitalismo, entretanto, o mercado tem uma funo
distintiva e sem precedentes. Praticamente tudo, numa sociedade
capitalista, mercadoria produzida para o mercado. E, o que ainda
mais fundamental, o capital e o trabalho so profundamente
dependentes do mercado para obter as condies mais elementares da
sua reproduo. Assim como os trabalhadores dependem do mercado
para vender sua mo-de-obra como mercadoria, os capitalistas
dependem dele para comprar fora de trabalho e os meios de
produo, bem como para realizar seus lucros, vendendo os produtos
ou servios produzidos pelos trabalhadores. Essa dependncia do
mercado confere a este um papel sem precedentes nas sociedades
capitalistas, no apenas como um simples mecanismo de troca ou
distribuio, mas como o determinante e regulador principal da
reproduo social. (WOOD: 2001, 78)
Se aceitarmos essas ponderaes, examinando-as luz da histria do prprio
capitalismo, poderemos ento concluir que as cidades capitalistas tambm possuem
caractersticas distintas e inovadoras, que as destacam em relao aos centros urbanos
dos perodos histricos precedentes. As cidades capitalistas, assim, podem ser estudadas
a partir de condies e impulsos que lhes so exclusivos e determinantes. Sua evoluo
e seu crescimento, assim como seus desequilbrios, constituem objetos de anlise
pertinentes histria, como produtos que so da expanso econmica e social do
capitalismo. Em lugar de representar os espaos fsicos onde se instalam os mercados,
as cidades capitalistas so, elas mesmas, uma das faces mais visveis e contundentes do
modelo de sociedade produzido pelo capitalismo.
As descontinuidades, as rupturas e os novos desequilbrios fazem parte desse
processo. A cidade moderna, que constituiu o modelo de centro urbano adequado ao
desenvolvimento do capitalismo, saiu dos escombros da velha cidade preexistente,
demolida e reformada para dar passagem aos novos usos e necessidades. Assim como o
mercado capitalista no foi somente o resultado da expanso contnua e acelerada das
trocas mercantis, as cidades capitalistas tambm no surgiram apenas como
conseqncia natural do crescimento extraordinrio do comrcio e dos centros urbanos.
Elas tm uma natureza prpria. Sua forma e seu contedo expressam um novo arranjo
econmico e social. Nelas se imprime o selo de uma sociedade que se estrutura e se
reproduz tendo como eixo principal o processo de acumulao de capital.
Uma das evidncias mais imediatas das transformaes que cercaram a
emergncia de um novo tipo de cidade na histria a cidade capitalista foi a
apropriao rpida e definitiva que o capital fez do solo urbano. Poder-se-ia mesmo
argumentar que o nascimento de uma cidade capitalista diretamente correspondente
ao momento em que o capital transforma o solo urbano em instrumento da prpria
acumulao. Dessa condio aparentemente banal decorrero todas as circunstncias
importantes que marcam a distribuio do espao e a sua utilizao. A configurao
urbana das cidades modernas produto, principalmente, dos interesses e da lgica de
reproduo do capital. O quanto ambos se distanciam das necessidades sociais de
conforto e realizao uma questo a estudar.
dessa configurao urbana produzida pelo capitalismo que decorrem as
semelhanas observadas entre as grandes metrpoles contemporneas. Malgrado as
diferenas culturais e regionais que possam ser identificadas no mundo atual, verificam-
se indisfarveis similitudes nos estilos de vida das cidades mais importantes.
impressionante o quanto elas so planejadas para dar circulao ao automvel, para
abrigar eventos artsticos, culturais e esportivos de grande porte, para sediar os negcios
mais rentveis, para consolidar o processo de acumulao do capital. Sendo, ao mesmo
tempo, o lugar onde vive o maior nmero de pessoas, nelas que se expressam com
maior vivacidade as principais contradies que caracterizam o modelo capitalista de
sociedade, expondo conflitos e crises com relativa periodicidade.
A geografia das grandes cidades capitalistas, desde o seu nascedouro, expressa
a volpia do capital quanto aos seus meios de acumulao. Embora aprimoradas com o
passar do tempo, e muito em funo dos temores de contaminao provenientes da
disseminao de doenas, as condies de moradia e higiene das populaes mais
pobres sempre foram exemplos de degradao e misria. Incapacitadas para disputar os
melhores terrenos e construir habitaes confortveis, eram compelidas a compartilhar
os espaos mais despojados de conforto e limpeza existentes nas cidades:
...J a situao habitacional fcil de entender. Qualquer
observador desprevenido percebe que, quanto maior a centralizao
dos meios de produo, tanto maior o amontoamento correspondente
de trabalhadores no mesmo espao e, portanto, quanto mais rpida a
acumulao capitalista, tanto mais miserveis as habitaes dos
trabalhadores. Os melhoramentos urbanos que acompanham o
progresso da riqueza, a demolio de quarteires mal construdos, a
construo de palcios para bancos, lojas, etc., o alargamento de
ruas para o trfego comercial e para as carruagens de luxo, o
estabelecimento de linhas para bondes, etc., - desalojam
evidentemente os pobres, expulsando-os para refgios cada vez piores
e mais abarrotados de gente. (MARX: 1988, livro 1, vol. II, p. 764)
A apropriao do solo urbano pelo capital, com todas as conseqncias da
decorrentes para a distribuio dos espaos entre as classes sociais, foi decisiva para
configurar o modelo de cidade que predomina no capitalismo. A valorizao de reas
determinadas acabou criando um crculo vicioso de melhoramentos urbanos e
investimentos, cujo resultado mais imediato foi um aumento ainda mais significativo de
seu valor inicial e o correspondente afastamento dos mais pobres. Do ponto de vista dos
interesses do capital imobilirio, a marcha ascendente de seus terrenos no mercado
urbano era amplamente compensadora. Para aqueles que no podiam arcar com os altos
preos dos aluguis e dos lotes para construo, o caminho era a busca de locais cada
vez mais distantes da zona central. Uma rede de interesses e privilgios tecia-se em
torno da especulao imobiliria nas grandes cidades, desde o comeo dessa evoluo:
difcil encontrar uma casa em Londres que no esteja
cercada por um sem-nmero de corretores. O preo da terra em
Londres sempre mais elevado em relao renda anual, pois todo
comprador especula com a possibilidade de se desfazer da
propriedade mais cedo ou mais tarde por um preo de expropriao
fixado por um jri ou de ganhar uma valorizao extraordinria com
a proximidade de qualquer grande empreendimento. Em
conseqncia disso, h um comrcio regular de compra de contratos
de locao prestes a expirar. (MARX: 1988, livro 1, vol. II, p. 766)
Esse padro de apropriao e utilizao do solo urbano pelo capital tendeu a
generalizar-se por todas as cidades do capitalismo. No por acaso convencionou-se
identificar o processo de industrializao urbanizao. Indstrias e cidades cresceram
juntas, muitas vezes umas dando origem s outras. No foram raros os casos de imensas
redes urbanas criadas a partir da expanso fabril. Ao mesmo tempo, a posio das
classes dentro das cidades pareceu seguir tambm um padro comum as divises dos
bairros, a discriminao dos usos do espao territorial, a distribuio dos recursos ao
longo dos stios urbanos foram, desde os primrdios das sociedades capitalistas,
expresses das diferenas sociais e econmicas que opunham os indivduos:
Todas as grandes cidades possuem um ou vrios bairros
de m reputao onde se concentra a classe operria. certo que
freqente a pobreza morar em vielas escondidas, muito perto dos
palcios dos ricos, mas, em geral, designaram-lhes um lugar parte
onde, ao abrigo dos olhares das classes mais felizes, tem de se safar
sozinha, melhor ou pior. Estes bairros de m reputao so
organizados, em toda a Inglaterra, mais ou menos da mesma
maneira, as piores casas na parte mais feia da cidade; a maior
parte das vezes so construes de dois andares ou de um s, de
tijolos, alinhadas em longas filas, se possvel com pores habitados
e quase sempre irregularmente construdas. (ENGELS: 1985, 38)
Os terrenos melhor situados, e portanto mais caros, acabaram sendo destinados
aos mais abonados, que podiam pagar por eles, assim como pelas melhorias que iam
sendo paulatinamente introduzidas nos espaos urbanos. populao mais pobre,
constituda por contingentes cada vez mais numerosos de trabalhadores em busca da
subsistncia, eram oferecidas alternativas bem mais inferiores, tanto em termos da
localizao, quanto em termos da qualidade do equipamento urbano disponvel. Regra
geral, as casas dos trabalhadores ficavam em bairros mal servidos de redes de gua e
esgoto, fracamente iluminados e calados, carentes de lazer e sade, e apenas dotados
de transporte barato e regular por motivos bvios. Na base dessa discriminao, uma
justificativa baseada nos princpios do mercado: paga mais, quem pode pagar mais.
As redes de comunicao e transporte, aprimoradas com o advento de novas
tecnologias, acabaram contribuindo para deslocar as massas pobres da populao para
localidades cada vez mais distantes do ncleo central das cidades e, por conseguinte,
mais desvalorizadas e baratas. Embora os meios de transporte mais modernos, como o
metr e os trens eltricos, pudessem encurtar as distncias entre um lado e outro das
metrpoles, o fato que o tempo despendido pelos trabalhadores no deslocamento entre
a casa e o trabalho foi se tornando cada vez mais longo e penoso.
Do lado do poder pblico constitudo, as medidas a tomar incidiram
principalmente sobre a necessidade de disciplinar e regulamentar os usos do solo
urbano, impedindo ocupaes ilegais e construes inadequadas aos padres
arquitetnicos e urbansticos consentidos. Houve uma acentuada preocupao em tornar
as habitaes populares padronizadas, dentro das regras de higiene e saneamento ento
determinadas por mdicos e engenheiros. Na base dessas iniciativas, estava o temor
quanto disseminao de doenas e o esforo para manter os trabalhadores saudveis e
vigorosos para o trabalho.
Olhando as cidades capitalistas por esse ngulo, fica difcil acreditar que elas
tenham evoludo, sem cortes ou rupturas, das cidades preexistentes. Embora ocupando
um mesmo stio como o caso de inmeras metrpoles europias, que chegam a ter
mais de mil anos de existncia , elas constituem espaos diferenciados, com uma
natureza muito prpria, que pouco as identifica ao passado mais remoto de sua histria.
Elas podem ser denominadas capitalistas pela especificidade de sua forma e de seu
contedo. No resultaram de um aumento quantitativo dos mercados, dos mercadores e
do comrcio. So o produto acabado de um modelo de organizao social e econmica
que denominamos capitalismo.
No Brasil, uma cidade maravilhosa
A alcunha de cidade maravilhosa foi dada ao Rio de Janeiro no incio da
Repblica. A bem da verdade, a idia da cidade como carto-postal do Pas foi uma
produo dos primeiros governos republicanos, que pretenderam lanar a modernidade
para dentro do imenso territrio brasileiro, a partir de sua Capital. A primeira grande
reforma urbana do Rio de Janeiro, realizada pelas mos do prefeito Pereira Passos
(1902-06), teria representado, do ponto de vista de seus idealizadores, a oportunidade de
colocar o Brasil em compasso com as transformaes tecnolgicas e organizacionais
que vinham ocorrendo nos principais centros da Europa. Era de l que traziam as
inovaes, era para l que se dirigiam em viagens de lazer ou estudo. O modelo de
civilizao industrial e urbana implantado nas principais potncias da Europa era, assim,
o objetivo a ser alcanado pelas novas elites polticas e intelectuais brasileiras,
emergentes com a Repblica.
No foram pequenos os esforos para dotar o Pas de uma capital moderna,
asseada e dinmica, apesar dos inmeros obstculos antepostos, involuntariamente, a
esse projeto ambicioso, pela populao pobre e mestia que perambulava por todos os
lados da cidade. As demolies, os arrasamentos de morros, as imposies culturais que
foram implementados de modo autoritrio e sumrio pelos administradores municipais e
federais, revelavam a pressa que as elites viviam, no sentido de eliminar os vestgios
ainda marcantes do passado colonial e escravista da formao brasileira. Mudar a
aparncia da cidade, como os registros histricos assim o demonstram, no foi to
complicado. Alterar o seu contedo humano, no entanto, foi uma tarefa de amargar.
Do ponto de vista tecnolgico e profissional, pareciam abundar os recursos. Os
engenheiros brasileiros, artfices e executores da grande reforma urbana de 1902-06,
possuam os requisitos de competncia necessrios para os empreendimentos. O
financiamento dos projetos mais custosos foi obtido junto aos credores radicados na
City londrina. Os argumentos e as justificativas para reformular to amplamente a
regio central da Capital tambm foram divulgados e aceitos com rapidez por meio da
imprensa local. O grande problema, para as autoridades locais, foi ajustar a maior parte
da populao ao novo padro de organizao material, formal e social da cidade. Eles
simplesmente no se encaixavam. No podiam prover suas prprias moradias, seus
negcios, seus empreendimentos. No sabiam se colocar num mundo moderno.
Na base desse processo de transformao da aparncia do Rio de Janeiro,
estava a lenta transio em direo ao capitalismo que o Brasil realizava. O fim da
escravido e a emergncia de novas formas de relaes de produo, em especial as
assalariadas, foravam a modificao de grande parte da estrutura produtiva local, em
especial nos centros econmicos mais dinmicos do Pas. Em termos regionais, a
economia do Rio de Janeiro operava uma passagem gradual e difcil em direo aos
rumos capitalistas. Embora o campo tenha sido, at certo ponto, esvaziado com o
esgotamento da cafeicultura escravista, a cidade permaneceu como um centro porturio,
comercial e financeiro dos mais importantes.
E foi na evoluo urbana do Rio de Janeiro rumo sua forma capitalista que se
cristalizou um modelo de cidade adequado aos novos tempos que se instalavam no
Brasil. A transposio dos limites da velha aldeia colonial, que prevaleceram ainda
durante a fase do Imprio, foi a principal aspirao das novas elites republicanas. A
cidade moderna que servia ao capitalismo emergente era uma cidade de espaos bem
demarcados, para os vrios usos do solo urbano (moradias, fbricas e usinas, comrcio e
profisses). Como espaos construdos, tinham sua prpria cotao. O encarecimento
gradativo das reas urbanizadas e beneficiadas pelos investimentos e pelas reformas
forou o afastamento dos mais pobres, que no podiam pagar o alto custo dos espaos
formais da cidade capitalista moderna. A falta de polticas habitacionais voltadas para as
populaes de renda mais baixa acabou levando-as formao de reas residenciais
imprprias e irregulares, sobretudo nos morros desocupados da cidade.
Como ficou demonstrado nas citaes anteriores de Marx e Engels, a cidade
capitalista tem uma natureza prpria que se manifesta em todas as suas dimenses. Nos
pases industrializados e nos pases subdesenvolvidos, essa natureza prpria se faz
presente. Embora com escalas distintas, em ambos os casos observa-se a segregao
espacial das classes sociais. No caso do Rio de Janeiro, a transio em direo ao
capitalismo manifestou-se de modo marcante na reformulao de seu espao urbano,
sobretudo com as obras realizadas em 1902-06. O impacto dessa reforma foi to forte
que acabou transformando-se em um exemplo a ser seguido pelas grandes cidades
brasileiras ao longo de boa parte do sculo XX.
Referncias bibliogrficas:
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WOOD, Ellen M. A origem do capitalismo. Traduo de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
Marx, Engels e as cidades no capitalismo Vania Maria Cury