38
Cidade, modernidade e prática espiritual em Cruz e Sousa: o Dante Negro Eduardo Guerreiro Brito Losso Para: Universidade das Quebradas 1

Cidade, modernidade e prática espiritual em Cruz e Sousa ... · •Por ser negro, sofreu com o preconceito racial: não pôde, por exemplo, assumir o cargo de Promotor ... Ela é

Embed Size (px)

Citation preview

Cidade, modernidade e prática espiritual em Cruz e Sousa: o Dante

Negro

Eduardo Guerreiro Brito Losso

Para: Universidade das Quebradas

1

Balzac – Ilusões Perdidas (1839)

• Trecho da carta da senhora de Bargeton para Lucien de Rubempré

• “Não conseguiremos que aqueles que são a aristocracia da ignorância reconheçam o enobrecimento do espírito.”

• Sra de Bargeton é da nobreza de Angoulême. Lucien é um jovem belo e letrado, mas vem de baixo e quer ascender socialmente com sua poesia.

• “Em geral, o sentimento necessário à compreensão da poesia é raro na França, onde o espírito seca prontamente a fonte das santas lágrimas do êxtase, onde ninguém quer se dar ao trabalho de desbravar o sublime, de sondá-lo para perceber seu infinito. Lucien iria fazer sua primeira experiência das ignorâncias e friezas mundanas!”.

2

Trecho de “Fildago”, de Cruz e Sousa

• Fidalgo. Dicionário: “que ou quem possui título de nobreza, herdado de antepassados ou concedido pelo rei; nobre, aristocrata”

• “PÉ ESGUIO, fino leve, a Mefistófeles, para galgar, não já a Roma pomposa e purpúrea, enflorada em glórias; nem mesmo já até a Grécia estóica, de ouro e de mármore; mas para supremamente galgar as regiões infinitas e virgens da deslumbrante Originalidade.

• Colorido de graça, madrigalesco e maravilhoso, a luva negra vestindo a mão real de loiro e fantasioso Excentrista, a face meditadora e branca voltada para as Estrelas, donde surgiriam as leis transcendentes da Arte, penetrarias os pórticos suntuosos de palácios d'esmeralda e safira, subindo por escadarias de prata e pérola.”

3

• “A tua Obra, vasta e fecundadora, seria então singularmente traçada em panos mais largos que os de tendas de desertos e mais alvos ainda do que as neves imaculadas.”

• “E para que a correção inteira, a harmonia perfeita irradiasse na Obra, em luz mais clara, um pássaro estranho, verde, cor de brasa, branco, azul, conforme o tom do teu Ideal, cantaria, gorjearia em ruflagens d'asa ao alto da tua nobre cabeça fidalga, como que para te ritmar as ideias.”

• “E tu, como um deus mítico, afinarias pelo ritmo inefável do canto os pensamentos delicados da grande Obra, até produzires nela a harmonia, a cor, o aroma.”

• “Como as pérolas guardadas em cofre do Oriente, envoltas em areia do Mar Vermelho, para não perderem o raro esplendor, a tua Obra, coroada pelas rosas triunfais da Originalidade, ficaria afinal, ó Fidalgo da Arte! envolta nos mistérios do Sol, egregiamente cantando e chamejando, na helênica resplandecência da Forma”.

4

• Cruz e Sousa nasceu em Desterro, atual Florianópolis – Santa Catarina - em 1861 e morreu em 1898. Foi filho de escravos alforriados e criado pelos patrões de seus pais.

• Por ser negro, sofreu com o preconceito racial: não pôde, por exemplo, assumir o cargo de Promotor Público em Laguna, Santa Catarina.

• Começou sua carreira jornalística e literária em Desterro, colaborando para jornais e escrevendo textos abolicionistas.

• Apesar de tanto sofrimento, Cruz e Sousa é considerado o maior e melhor escritor simbolista brasileiro, suas obras “Missal” e “Broquéis” marcam o início deste período literário no Brasil, em 1893.

5

Ataques à aristocracia da ignorância

• Em “Página flagrante’, dois amigos conversam: “A verve esfuziava, mentalizada pela Análise, pela Abstração e pela Síntese; sátiras frias, cortantes como rijos e aguçados cutelos, espetavam a carne tenra, viçosa, próspera, de S. Majestade Imbecil; e, para supremamente assinalar todas as surpresas e elevação do Entendimento, uma psicologia rubra, flamante, sangrava, sangrava em jorro, torrencialmente sangrava.

• E eram boutades maravilhosas, a charge leve, pitoresca, ferretoando, zumbindo sobre os homens circunspectos, que passavam, o andar solene, ritmado, em cadência, como na marcha das procissões. E Ambos riam, riam, numa risada sonora e forte, como se festins cintilantes, bacanais, triclínios, todas as vermelhas orgias do Espirito, lhes cantassem cristalinamente no riso.

6

“Núbia”: dedicado a uma musa negra • “Então, nesses momentos em que um dolorimento secreto, misterioso, a

conturba e magoa, Ela parece serena divindade aureolada de martírios, macerada de prantos; e é talvez bem pequeno, bem frágil todo o amor do mundo para proteger, para amparar, como que numa redoma sagrada de Misericórdia, essa humilde criatura que o fatalismo das forças fenomenais da Natureza condenou à indiferença gelada e à desdenhosa ironia das castas poderosas e cultas.

• Assim, adorá-la em compunção afetiva, trazê-la no coração como relíquia rara num relicário estranho, claro é que não significa banal emoção transitória, que o rude desdém da análise fria pode, apenas com um golpe brusco, extinguir para sempre.

• Essa emoção, esse amor, cada vez mais profundo e espiritualizante, penetra impetuoso no sangue como a luz e o ar, deliciando e ao mesmo tempo afligindo como a Idéia e a Forma igualmente deliciam e afligem...

• E, nem mesmo, no fundo íntimo de qualquer ser tocado de uma intuição maravilhosa da origem terrestre da felicidade, podem resplandecer, mais do que a Núbia, as belezas de neve da Escócia e da Irlanda ou as formosuras originais e flagrantes da Armênia e da Circássia.”

7

• “Tudo ela possui de luminoso e perfeito, como a noite possui as Estrelas e a Lua, visto e sentido tudo através da harmonia espiritual, da alta compreensão requintada e subjetiva de quem a ama e deseja.”

• “E nenhum peito dedicado de nobre dama medieval nobiliárquica será mais gentil e dedicado que o seu peito, donde jorra, com firmeza e força, em onda original, talvez manado dessa simpleza de obscuridade, um inefável sentimento verdadeiro e virgem como o tenro broto verde dos arbustos. Ela é a Núbia-Noiva, singular e formosa, amada com religioso fervor artistico.”

8

“Sugestão”

• “TU, QUEM QUER QUE SEJAS, obscuro para muitos, embora, tens um grande espírito sugestivo.

• Os jornais andam cantando a tua verve flamante, pertences a uma seita de princípios transcendentais.”

• “Na tua terra os cretinos gritam, vociferam. • Não sabem o que tu escreves. Não entendem aquilo... Palavras,

palavras, dizem. • Tu tens, porém, uma tal orientação, uma tão profunda firmeza

artística, que não te abalas com a vozeria que se levanta. Pelo contrário! À bateria de frases ríspidas, que te assestam, rompe do teu cérebro a bateria viva das idéias. Não recuas, escreves.”

• “E assim, com a tua elevação mental e disciplina, julgas-te profundamente feliz. Não trocarias o teu espírito pela ostentação e pompas do mundo. Ah! se tu tens a pompa das idéias!”

9

“Ritmos da noite”: sobre a cidade; Emiliano Perneta a Nestor Vítor

• “Chego da rua. A vida ferve ainda nos cafés, com intensidade. No Londres, uns imbecis doirados de popularidade fácil, saudaram-me, e, nessa saudação, senti o ar episcopal das proteções baratas que os conselheiros costumam dar aos jovens esperançosos.

• Eu percebi o conselheirismo e tive uma careta, uma grimace diabólica de ironia...”

• Contava Emiliano Perneta que, ao entrarem juntos, o Poeta Negro e seus companheiros, no Café do Rio ou na Havanesa, sempre algum dentre eles o interpelava com afetada cordialidade: "Entre, Cruz e Sousa! Vamos tomar qualquer coisa!" Diplomacia, para evitar que aquele homem de cor, já célebre, fosse tratado com desconsideração, naquele tempo pouco distante da Abolição, e ainda exaltado. Também, e provavelmente mais do que tudo, secreta covardia, por estarem na companhia dum preto. E acrescentava Emiliano Perneta: "O Cruz, então, nos olhava, com aqueles seus olhos muito grandes..." Este o seu drama concreto: a sua cor.

10

• “No meu quarto, entro, enfim, agitado, da rua, com mil idéias, com mil impressões e dúvidas e fundamente considero, tenho tão estranhos monólogos mentais, que quase que me alucinam.”

• O coração cerra-se-nos de uma névoa triste, e, como um solitário monge, põe-se a balbuciar, não sei para que mundos distantes, orações indefinidas, kyries eternos e nostálgicos, de um nebuloso sentimentalismo, que estão no fundo de todos os seres espirituais.

• Por uma impressionabilidade indizível, por um toque no orgulho, por uma mancha no cetim branco da Arte, lá fica uma nobre cabeça doente, sob a febre das nevroses, sentindo ebulir o sangue em chama e sentindo até que o cronometro regular do pulso alterou a marcha das vibrações...

• Tudo o que nos vem às idéias são princípios de demolição, de destruição, armados das rijas couraças e das agudas lanças da sua inevitabilidade.

• O mundo surge-nos logo como uma formidável floresta dos tempos primitivos e só tremendos animais de uma colossal corpulência urram e bufam sanguinolentos.

• E a Noite, que verte fel no espírito, arrebatando-o não sei para que inferno de agitações, não sei para que tercetos do Dante, ainda mais pesadas barras de chumbo arroja sobre o florido arbusto da Crença, cujas flores luminosas já a indiferença humana calcou a pés, ou a ruidosa, jogralesca multidão dos cafés desdenhosamente cuspiu em cima.

11

Foucault sobre Baudelaire • “de fato, aos olhos de Baudelaire, o pintor moderno por excelência é aquele que, na hora

em que o mundo inteiro vai dormir. se põe ao trabalho, e o transfigura. Transfiguração que não é anulação do real, mas o difícil jogo entre a verdade do real e o exercício da liberdade: as coisas “naturais” tornam-se então “mais do que naturais", as coisas “belas” tornam-se “mais do que belas”, e as coisas singulares aparecem “dotadas de uma vida entusiasta como a alma do autor".

• Para a atitude de modernidade, o alto valor do presente é indissociável da obstinação de imaginar, imaginá-lo de modo diferente do que ele não é, e transformá-lo não o destruindo, mas captando-o no que ele é. A modernidade baudelairiana é um exercício em que a extrema atenção para com o real é confrontada com a prática de uma liberdade que, simultaneamente, respeita esse real e o viola.”

• No entanto, para Baudelaire, a modernidade não é simplesmente forma de relação com o presente; é também um modo de relação que é preciso estabelecer consigo mesmo. A atitude voluntária de modernidade está ligada a um ascetismo indispensável. Ser moderno não é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo dos momentos que passam; é tomar a si mesmo como objeto de uma elaboração complexa e dura:

• enfim. sobre o ascetismo do dândi que faz de seu corpo, de seu comportamento, de seus sentimentos e paixões, de sua existência, uma obra de arte. O homem moderno, para Baudelaire, não é aquele que parte para descobrir a si mesmo, seus segredos c sua verdade escondida; ele é aquele que busca invcntar-sc a si mesmo. Essa modernidade não liberta o homem em seu ser próprio; ela lhe impõe a tarefa de elaborar a si mesmo.”

12

Georg Simmel e Alfredo Bosi • Simmel: “O entusiasmo religioso, certos sacrifícios morais e a rigorosa

insistência da personalidade em seguir seu próprio modo de existir e cumprir o dever são, todos, valores que a alma deriva dos impulsos da sua própria inspiração ou da ação que exerce sobre si mesmo”

• Bosi: “O que importa é acompanhá-lo na sua fina percepção das diferenças qualitativas reais entre a cultura como sistema, indissociável do poder e do dinheiro, e os movimentos internos ou “internamente orientados” que não reproduzem simplesmente os modelos estabelecidos pela cultura dominante. Simmel chega a afirmar que essa diferença pode se aguçar até assumir formas de tensa divergência, casos em que “pessoas fortemente orientadas-para-dentro” podem sentir aversão aos produtos da cultura objetiva”[...] Na medida em que realizasse esses movimentos internos, a pessoa alcançaria um nível mais alto de concentração, integração do eu e auto-expressão.”

• “Simmel pensava provavelmente na situação de extrema singularidade, logo de difícil integração, do elan místico e do êxtase no cânon de uma liturgia já oficializada pela sua respectiva igreja; ou na problemática incorporação de uma obra excepcional na seqüência dos estilos da arte erudita ocidental.”

13

Bosi • “Primeiro, o da sua libertação pessoal enquanto negro injustiçado que

protesta contra a “ditadora ciência d’hipóteses”. E aqui as sugestões de Simmel vêm a calhar: as potencialidades do sujeito querem realizar-se e formar um todo coerente e autocentrado; se não encontram na cultura dominante, que constitui o todo público, as formas que as liberem e as perfaçam, põem-se em aberta luta contra o seu teor ideológico restritivo e opressivo. “

• “Como poeta íntimo da linguagem de Hugo, de Baudelaire e de Antero, Cruz e Sousa abraçou apaixonadamente o imaginário dos últimos românticos e dos simbolistas que faziam do artista o Profeta e o Prometeu, o decifrador dos mistérios cósmicos e o arquiteto de formas raras.”

• “O Emparedado é, dilaceradamente, o corpo que vive sob o império da carne, do sangue, da raça, e entre os muros de uma sociedade que é pura réplica da selva darwiniana, e a alma que sonha ardentemente com a transcendência estética (o Artista puro, o Poeta assinalado) e a transcendência mística. Trata-se de um misticismo cósmico, sem divindade pessoal, antes búdico do que cristão, pois aspira ao nirvana, ao nada que tudo dissolve, à pureza infinita das estrelas.”

14

• “O satanismo baudelaireano deve ser entendido no contexto já moderno do poeta das Flores do Mal, dandy, flâneur e solitário na metrópole parisiense. É o desprezo fulminante do artista contra o filisteu, o hipócrita, o senhor das convenções burguesas. Cruz e Sousa incorpora certamente na sua dicção muito da eloqüência ferina desse veio maldito, mas o seu léxico e as suas metáforas servem-lhe também para traduzir uma situação própria, que tem a ver com a maldição tanto coletiva quanto individual sofrida pelo descendente de africanos. A África é emblema do padecimento sem remissão, situando-se no pólo oposto à civilização refinada vinda da Europa, a qual, no entanto, oferece ao poeta culto imagens e ritmos para dizer a sua condição marginal. “

• “O maldito será, portanto, ora o poeta hostilizado mas indomável (“o Artista é um isolado, um esporádico, não adaptado ao meio, mas em completa, lógica e inevitável revolta contra ele, num conflito perpétuo entre a sua natureza complexa e a natureza oposta ao meio”), ora um temperamento fatalizado pelo sangue, o que é o destino do negro que traria no corpo os desejos e os estigmas do continente anatematizado. Adotando o vocabulário naturalista ao falar em “temperamento fatalizado pelo sangue”, Cruz e Sousa assimilou paradoxalmente a linguagem do determinismo racial contra a qual se insurgia.”

• “A perspectiva geral é análoga à da rota traçada por Baudelaire. Ser de exceção, o poeta deve sofrer as agruras do desprezo e da ira (salvo as que partem da mãe, odienta nas Flores do Mal, apenas “secretamente abalada” e distante, nas Evocações) até purificar-se e, pela aceitação da dor, merecer entrar no reino da luz. Em mais de uma passagem a redenção final é identificada com “os resplendores do Sonho”.” 15

Bosi e Mcginn

• “Mas não só de “Ciências e Críticas” se alimentava a cabeça dos intelectuais naquele contraditório final de século. Vimos como uma vertente da literatura do tempo, a que contemplava os videntes e os malditos, pôde oferecer a Cruz e Sousa uma saída para dentro de si mesmo, “emparedado dentro do teu Sonho”.”

• Mcginn sobre Platão: “Platão vê o verdadeiro sujeito humano, ou a alma, como um buscador inquieto incapaz de possuir permanentemente o Absoluto Bem que beatifica. Tal posse é alcançada através da theoria, ou contemplação, que é fruto de uma purificação ascendente (katharsis, askésis) tanto do amor quanto do conhecimento, e que atinge sua meta quando o Nous, o elemento divino na alma, é assimilado a essa fonte divina.” p. 54

• “A purificação gradual do amor e do conhecimento alcançada através dos esforços morais e intelectuais fornece a preparação necessária para a súbita manifestação da realidade última da Forma das Formas, variavelmente descrita como o Belo, o Bem e o Um.” P. 61

16

Mcginn sobre Plotino • Cada um dos aspectos do pensamento de Plotino faz surgir diferentes

possibilidades místicas que juntas geram um complexo de ideias que tiveram grande importância para a mística cristã posterior.137 O esquema hierárquico da emanação e retorno é o mais conhecido. Suas possibilidades espirituais estão bem ilustradas no famoso tratado sobre o Belo (En. 1.6). Aqui, as metáforas controladoras são aquelas da jornada, ascensão, esforço apaixonado, retorno à fonte e visão, como no Banquete, no qual o texto está baseado. Essa investigação sobre a natureza do belo e seu papel no retorno da alma à sua fonte começa, como em Platão, com a beleza dos corpos, que, segundo Plotino, não reside na simetria das partes, mas na participação da Forma mais elevada (1.6.1-3). O reconhecimento da verdadeira natureza da beleza corporal é o ponto de partida para uma ascensão que segue para a beleza dos "modos de vida e tipos de conhecimento" ( 1.6.4), depois para a beleza da alma purificada pela virtude, de tal modo que "pertença totalmente ao divino" (1.6.6), até que, por fim, "ultrapassando na ascensão tudo o que é estranho a Deus, se veja com o seu eu solitariamente n'Aquele [ser] solitário (autõ mono auto monon idê), simples, singular e puro, do qual tudo depende e para o qual todos olham e são e vivem e pensam" (1.6.7).138 O texto conclui com uma invocação apaixonada da necessidade de purificação e da introversão de modo a alcançar "o reino do Pai do qual proviemos" (1.6.8),139 assim como o lembrete de que esse processo é de deificação - "Você deve se tornar antes de tudo divino e todo belo, se tem a intenção de ver Deus e a beleza" p. 85

17

Mcginn sobre Orígenes

• O alexandrino não era avesso a falar da contemplação de Deus como envolvendo ou levando à deificação ou divinização da alma. "O intelecto que é totalmente purificado e é erguido acima do material para se dedicar à contemplação de Deus com a maior das atenções é deificado (theopoiêsthai) pelo que contempla", como um importante texto do Comentário a João coloca (32.27 [339], GCS Origen, 4.472). Tornar-se "como Deus", como já vimos, era central para a mística filosofica grega desde o tempo de Platão (ver Teeteto 76B), mas, ao argumentar com o platonista Celso, Orígenes estava ansioso para sublinhar o caráter distinto da divinização cristã:

• Pois os cristãos veem que, com Jesus, a natureza humana e a divina começam a ficar costuradas, de tal modo que, por irmandade com a divindade (to pros to theioteron koinõnia), a natureza humana possa se tornar divina, não apenas em Jesus, mas também em todos aqueles que creem e passam a viver a vida que Jesus pregou, a vida que leva todo mundo que vive de acordo com os mandamentos de Jesus sobre a amizade com Deus e irmandade com Jesus (Contra Celso 3.28).

18

Mcginn sobre Evágrio

• Os três estágios (praktikê, physiké, theologiké) marcam os níveis através dos quais o Nous é restaurado a seu lugar anterior.77 No final do Gnostikos, Evágrio resume a coisa assim: "A meta da praktikê é purificar o intelecto e torná-lo impassível; a da physiké" é revelar a verdade oculta em todas as coisas, e voltá-la para a Primeira Causa é o dom da theologiké (Gnostikos 49, ed. por Guillaumont, p. 191).78

19

Balzac-Lírio do vale

• A vos que les envidiais tantas cosas, ¿qué no os diré que no sepais de esas blancas sirenas, en apariencia impenetrables y tan presto conocidas, que creen que el amor basta al amor, y que importan el esplin entre los goces no variándolos, cuya alma solo tiene una nota, y la voz una silaba, océano de amor donde el que no haya na dado ignorará siempre algo de la poesía de los sentidos, asi como el que no ha visto el mar carecerá de algunas cuerdas en su lira?

• A vós que invejas tantas coisas, vós não dirais que não sejais essas brancas sereias, em aparência impenetráveis e rapidamente conhecidas, que creem que o amor basta ao amor, e que importam o spleen entre entre os gozos que não variam, cuja alma só tem uma nota, e a voz uma sílaba, oceano de amor de onde o que não foi dado ignorará sempre algo da poesia dos sentidos, assim como faltará àquele que não viu o mar algumas cordas de sua lira?

20

“Modos de ser”

• COM UMA NOBRE EMOÇÃO da Arte dizia Balzac que faltariam sempre cordas à lira de uma alma que nunca tivesse visto o Mar.

• Na verdade, sem o Mar, sem esse organismo vivo, movimentado, vibrante, as perspectivas como que são indecisas, vagas, a retina pouco se desenvolve e educa sem essa larga vastidão das ondas, de onde parece subir, nascer para o alto, como uma luz original, todo o sentimento indutivo das cousas.

• Diante do mar, à sua influência vital, que é a influência da força, do vigor do pensamento, as faculdades de cada um recebem impressões estéticas muito consideráveis, ampliando o seu modo de ser, dando-lhe a sugestão das latitudes geográficas, correspondentes também, para um espírito de indução e dedução fina e atilada, à amplidão das idéias.

• Gozar o Mar é viver, sentir a eflorescência da carne, crer nalgum poder forte e épico que nos encoraje, dê ao pulso e ao cérebro essa poderosa segurança de existir que levanta sobre rijos alicerces os princípios e crenças de cada homem.

21

Modos de ser 2 • Os efeitos maravilhosos que a visão recebe do Mar, como uma máquina

fotográfica recebe nitidamente as fisionomias, desenvolvem-se nos temperamentos artísticos em impressões, em nuances, em colorações, em estilos, em linhas, em sutilezas de percepção, em ductilidades, em fiorituras de imagens, em abundantes floras de imaginação, tão múltiplas e luminosas quantas são as infinidades de ilhas verdes de algas e de sargaço que o Mar contém no seu seio.

• Ele infiltra nos órgãos emocionais e pensantes todo um exuberante eletrismo nervoso, todo um fluido de luz e originalidade, uma essência, um gérmen rico e novo de graça e fantasia alada. Fica-se numa saudável impressão e frescura radiante de caça e pesca, numa alegria de sol undiflavando rouparias brancas e finas.

• Serenidade de Campo e Mar é esta em que estou agora. • Com o espírito livre, em asa aberta, eu procuro arrancar das vozes mudas,

inexprimíveis da Natureza, significações. Campo e Mar estendem-se até longe, ao infinito horizonte, fulgurando às luxuosíssimas sedas do sol.

• Como essas raças finas e louras a que nada mareia a pureza clara da carne civilizada, a idéia da Arte surge-me, alvorece-me no espírito, diante das ondas, sideral, imaculada, como uma doce monja vestida de linho branco e virgem.

22

• Sente-se-lhes isso na tortura da prosa, no funambulesco cabriolar do estilo, na acre violência das palavras, abertas umas em chagas e escorrendo sangue, outras brancas como Noivas amadas derramando lágrimas astrais...

• E, dentre esse exalar de vida espiritual dolorosa, rompem coros de catedrais entoados por veladas, místicas vozes freiráticas; ouvem-se Missas negras e abrem-se, num ritual cristão, para a contemplação dos áugures e dos símbolos, os medievos Hagiológios.

23

Emparedado • Então, à beira de caóticos, sinistros despenhadeiros, como outrora o doce e

arcangélico Deus Negro, o trimegisto, de cornos agrogalhardos, de fagulhantes, estriadas asas enigmáticas, idealmente meditando a Culpa imeditável; então, perdido, arrebatado dentre essas mágicas e poderosas correntes de elementos antipáticos que a Natureza regulariza, e sob a influência de desconhecidos e venenosos filtros, a minha vida ficou como a longa, muito longa véspera de um dia desejado, anelado, ansiosamente, inquietamente desejado, procurado através do deserto dos tempos, com angústia, com agonia, com esquisita e doentia nevrose, mas que não chega nunca, nunca!!

• Foi bastante pairar mais alto, na obscuridade tranqüila, na consoladora e doce paragem das Idéias, acima das graves letras maiúsculas da Convenção, para alvoroçarem-se os Preceitos, irritarem-se as Regras, as Doutrinas, as Teorias, os Esquemas, os Dogmas, armados e ferozes, de cataduras hostis e severas. Eu trazia, como cadáveres que me andassem funambulescamente amarrados às costas, num inquietante e interminável apodrecimento, todos os empirismos preconceituosos e não sei quanta camada morta, quanta raça d’África curiosa e desolada que a Fisiologia nulificara para sempre com o riso haeckeliano e papai!

• Elevando o Espírito a amplidões inacessíveis, quase que não vi esses lados comuns da Vida humana, e, igual ao cego, fui sombra, fui sombra! Como os martirizados de outros Gólgotas mais amargos, mais tristes, fui subindo a escalvada montanha, através de urzes eriçadas, e de brenhas, como os martirizados de outros Gólgotas mais amargos, mais tristes.

24

Emparedado 2

• Era mister respirar a grandes haustos na Natureza, desafogar o peito das opressões ambientes, agitar desassombradamente a cabeça diante da liberdade absoluta e profunda do Infinito. Era mister que me deixassem ao menos ser livre no Silêncio e na Solidão. Que não me negassem a necessidade fatal, imperiosa, ingênita de sacudir com liberdade e com volúpia os nervos e desprender com largueza e com audácia o meu verbo soluçante, na força impetuosa e indomável da Vontade. Cf. Simmel e Foucault

• Poderiam também parecer obscuros por serem complexos, mas ao mesmo tempo serem claros nessa obscuridade por serem lógicos, naturais, fáceis, de uma espontaneidade sincera, verdadeira e livre na enunciação de sentimentos e pensamentos, da concepção e da forma, obedecendo tudo a uma grande harmonia essencial de linhas sempre determinativas da índole, da feição geral de cada organização.

• Os caracteres nervosos mais sutis, mais finos, mais vaporosos, de cada temperamento, perder-se-iam, embora, na vaga truculenta, pesada, da multidão inexpressiva, confusa, que burburinha com o seu lento ar parado e vazio, conduzindo em seu bojo a concupiscência bestial enroscada como um sátiro, com a alma gasta, olhando molemente para tudo com os seus dois pequeninos olhos gulosos de símio.

25

• Essa é que fora a lei secreta, que escapara à percepção de filósofos e doutos, do verdadeiro temperamento, alheio às orquestrações e aos incensos aclamatórios da turba profana, porém alheio por causa, por sinceridade de penetração, por subjetivismo mental sentido à parte, vivido à parte, – simples, obscuro, natural – como se a humanidade não existisse em torno e os nervos, a sensação, o pensamento tivessem latente necessidade de gritar alto, de expandir e transfundir no espaço, vivamente, a sua psicose atormentada.

• Assim é que eu via a Arte, abrangendo todas as faculdades, absorvendo todos os sentidos, vencendo-os, subjugando-os amplamente.

26

• Assim é que eu a compreendia em toda a intimidade do meu ser, que eu sentia em toda a minha emoção, em toda a genuína expressão do meu Entendimento – e não uma espécie de iguaria agradável, saborosa, que se devesse dar ao público em doses e no grau e qualidade que ele exigisse, fosse esse público simplesmente um símbolo, um bonzo antigo, taciturno e cor de oca, uma expressão serôdia, o público A+B, cujo consenso a Convenção em letras maiúsculas decretara.

• No entanto, para que a Arte se revelasse própria, era essencial que o temperamento se desprendesse de tudo, abrisse vôos, não ficasse nem continuativo nem restrito, dentro de vários moldes consagrados que tomaram já a significação representativa de clichés oficiais e antiquados.

27

• Era uma politicazinha engenhosa de medíocres, de estreitos, de tacanhos, de perfeitos imbecilizados ou cínicos, que faziam da Arte um jogo capcioso, maneiroso, para arranjar relações e prestígio no meio, de jeito a não ofender, a não fazer corar o diletantismo das suas idéias. Rebeldias e instransigências em casa, sob o teto protetor, assim uma espécie de ateísmo acadêmico, muito demolidor e feroz, com ladainhas e amuletos em certa hora para livrar da trovoada e dos celestes castigos imponderáveis!

• Naturezas vacilantes e mórbidas, sem a integração final, sem mesmo o equilíbrio fundamental do próprio desequilíbrio e, ainda mais do que tudo, sem esse poder quase sobrenatural, sem esses atributos excepcionais que gravam, que assinalam de modo estranho, às chamejantes e intrínsecas obras d’Arte, o caráter imprevisto, extra-humano, do Sonho.

28

• Hábeis viveurs, jeitosos, sagazes, acomodatícios, afetando pessimismos mais por desequilíbrio que por fundamento, sentindo, alguns, até à saciedade, a atropelação do meio, fingindo desprezá-lo, aborrecê-lo, odiá-lo, mas mergulhando nele com frenesi, quase com delírio, mesmo com certa volúpia maligna de frouxos e de nulos que trazem num grau muito apurado a faculdade animal do instinto de conservação, a habilidade de nadadores destros e intrépidos nas ondas turvas dos cálculos e efeitos convencionais.

29

• Almas lassas, debochadamente relaxadas, verdadeiras casernas onde a mais rasgada libertinagem não encontra fundo; almas que vão cultivando com cuidado delicadas infamiazinhas como áspides galantes e curiosas e que de tão baixas, de tão rasas que são nem merecem a magnificência, a majestade do Inferno! Almas, afinal, sem as chamas misteriosas, sem as névoas, sem as sombras, sem os largos e irisados resplendores do Sonho – supremo Redentor eterno!

• O que eu quero, o que eu aspiro, tudo por quanto anseio, obedecendo ao sistema arterial das minhas Intuições, é a Amplidão livre e luminosa, todo o Infinito, para cantar o meu Sonho, para sonhar, para sentir, para sofrer, para vagar, para dormir, para morrer, agitando ao alto a cabeça anatematizada, como Otelo nos delírios sangrentos do Ciúme... Agitando ainda a cabeça num derradeiro movimento de desdém augusto, como nos cismativos ocasos os desdéns soberanos do sol que ufanamente abandona a terra, para ir talvez fecundar outros mais nobres e ignorados hemisférios...

30

• D’alto a baixo, rasgam-se os organismos, os instrumentos da autópsia psicológica penetram por tudo, sondam, perscrutam todas as células, analisam as funções mentais de todas as civilizações e raças; mas só escapam à penetração, à investigação desses positivos exames a tendência, a índole, o temperamento artístico, fugidios sempre e sempre imprevistos, porque são casos particulares de seleção na massa imensa dos casos gerais que regem e equilibram secularmente o mundo.

• Cf. Nietzsche, Adorno

31

• Desde que o Artista é um isolado, um esporádico, não adaptado ao meio, mas em completa, lógica e inevitável revolta contra ele, num conflito perpétuo entre a sua natureza complexa e a natureza oposta do meio, a sensação, a emoção que experimenta é de ordem tal que foge a todas as classificações e casuísticas, a todas as argumentações que, parecendo as mais puras e as mais exaustivas do assunto, são, no entanto, sempre deficientes e falsas. Ele é o supercivilizado dos sentidos, mas como que um supercivilizado ingênito, transbordado do meio, mesmo em virtude da sua percuciente agudeza de visão, da sua absoluta clarividência, da sua inata perfectibilidade celular, que é o gérmen fundamental de um temperamento profundo.

• Ah! benditos os Reveladores da Dor infinita! Ah! soberanos e invulneráveis aqueles que, na Arte, nesse extremo requinte de volúpia, sabem transcendentalizar a Dor, tirar da Dor a grande Significação eloqüente e não amesquinhá-la e desvirginá-la!

32

• "É preciso fechar com indiferença os ouvidos aos rumores confusos e atropelantes e engolfar a alma, com ardente paixão e fé concentrada, em tudo o que se sente e pensa com sinceridade, por mais violenta, obscura ou escandalosa que essa sinceridade à primeira vista pareça, por mais longe das normas prestabelecidas que a julguem – para então assim mais elevadamente estrelar os Infinitos da grande Arte, da grande Arte que é só, solitária, desacompanhada das turbas que chasqueiam, da matéria humana doente que convulsiona dentro das estreitezas asfixiantes do seu torvo caracol.“

• Até mesmo, certos livros, por mais exóticos, atraentes, abstrusos, que sejam, por mais aclamados pela trompa do momento, nada podem influir, nenhuma alteração podem trazer ao sentimento geral de idéias que se constituíram sistema e que afirmam, de modo radical, mas simples, natural, por mais exagerado que se suponha, a calma justa das convicções integrais, absolutas, dos que seguem impavidamente a sua linha, dos que, trazendo consigo imaginativo espírito de Concepção, caminham sempre com tenacidade, serenamente, impertubáveis aos apupos inofensivos, sem tonturas de fascinação efêmera, sentindo e conhecendo tudo, com os olhos claros levantados e sonhadores cheios de uma radiante ironia mais feita de demência, de bondade do que de ódio.

33

• Tu é que não podes ver-me, atentar-me, sentirme, dos limites da tua toca de primitivo, armada do bordão simbólico das convicções pré-históricas, patinhando a lama das teorias, a lama das conveniências equilibrantes, a lama sinistra, estagnada, das tuas insaciáveis luxúrias. Tu não podes sensibilizar-te diante destes extasiantes estados d’alma, diante destes deslumbramentos estesíacos, sagrados, diante das eucarísticas espiritualizações que me arrebatam. O que tu podes, só, é agarrar com frenesi ou com ódio a minha Obra dolorosa e solitária e lê-la e detestá- la e revirar-lhe as folhas, truncar-lhe as páginas, enodoar-lhe a castidade branca dos períodos, profanarlhe o tabernáculo da linguagem, riscar, traçar, assinalar, cortar com dísticos estigmatizantes, com labéus obscenos, com golpes fundos de blasfêmia as violências da intensidade, dilacerar, enfim, toda a Obra, num ímpeto covarde de impotência ou de angústia.

34

• Ah! Destino grave, de certo modo funesto, dos que vieram ao mundo para, com as correntes secretas dos seus pensamentos e sentimentos, provocar convulsões subterrâneas, levantar ventos opostos de opiniões, mistificar a insipiência dos adolescentes intelectuais, a ingenuidade de certas cabeças, o bom senso dos cretinos, deixar a oscilação da fé, sobre a missão que trazem, no espírito fraco, sem consistência de crítica própria, sem impulsão original para afirmar os Obscuros que não contemporizam, os Negados que não reconhecem a Sanção oficial, que repelem toda a sorte de conchavos, de compadrismos interesseiros, de aplausos forjicados, por limpidez e decência e não por frivolidades de orgulhos humanos ou de despeitos tristes.

• O que em nós outros Errantes do Sentimento flameja, arde e palpita é esta ânsia infinita, esta sede santa e inquieta, que não cessa, de encontrarmos um dia uma alma que nos veja com simplicidade e clareza, que nos compreenda, que nos ame, que nos sinta. E de encontrar essa alma assinalada pela qual viemos vindo de tão longe sonhando e andamos esperando há tanto tempo, procurando-a no Silêncio do mundo, cheios de febre e de cismas, para no seio dela cairmos frementes, alvoroçados, entusiastas, como no eterno seio da Luz imensa e boa que nos acolhe.

35

• Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua região desolada, lá no fundo exótico dessa África sugestiva, gemente, Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa flagelada África, grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo do mundo Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas!

• A África virgem, inviolada no Sentimento, avalanche humana amassada com argilas funestas e secretas para fundir a Epopéia suprema da Dor do Futuro, para fecundar talvez os grandes tercetos tremendos de algum novo e majestoso Dante negro!

• Dessa África que parece gerada para os divinos cinzéis das colossais e prodigiosas esculturas, para as largas e fantásticas Inspirações convulsas de Doré – Inspirações inflamadas, soberbas, choradas, soluçadas, bebidas nos Infernos e nos Céus profundos do Sentimento humano. Dessa África cheia de solidões maravilhosas, de virgindades animais instintivas, de curiosos fenômenos de esquisita Originalidade, de espasmos de Desespero, gigantescamente medonha, absurdamente ululante – pesadelo de sombras macabras – visão valpurgiana de terríveis e convulsos soluços noturnos circulando na Terra e formando, com as seculares, despedaçadas agonias da sua alma renegada, uma auréola sinistra, de lágrimas e sangue, toda em torno da Terra...

36

• Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado de uma raça. Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás, ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo – horrível! – parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto...

• E mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir – longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até as Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho...”

37

Dante – Inferno canto III • 16 Pois já somos chegados ao lugar • onde se vê a sofredora gente • que a luz do bem não soube conservar.”

• 19 Travando-me da mão, bondosamente, • como a animar-me com seus movimentos, • introduziu-me no secreto ambiente.

• 22 Ali, suspiros, queixas e lamentos • cruzavam-se pelo ar, na escuridão, • fazendo-me tremer por uns momentos.

• 25 Línguas estranhas, gíria em profusão, • exclamações de dor, acentos de ira, • gritos, rangidos e bater de mão,

• 28 produziam rumor que eu nunca ouvira, • no nevoeiro sem fim se propagando, • como a areia que um turbilhão expira.

38