Cidades Do Amanha Fichamento 1

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    A CIDADE COMO LOCUSDA VIDA

    RESUMO

    Mais de um sculo aps o surgimento das primeiras teorias de planejamento urbano, as cidades

    ainda nos assombram. O novo milnio parece estar consagrado busca da soluo indispensvel

    sobre como melhorar a qualidade de vida nos assentamentos urbanos, marco indispensvel para

    a questo de como melhorar a qualidade de vida no planeta. Torna-se indispensvel buscar

    outras formas de propor o urbano. Analisaremos a contribuio trazida pela obra da jornalista

    americana Jane Jacobs (1916-2006), Death and life of great american cities, datada de 1961,

    crtica que entraria para a histria por abalar os princpios estabelecidos pelo urbanismo. Muitas

    das idias de Jacobs apresentam novos mtodos de abordagem da problemtica urbana. Partindo

    da anlise das vertentes de planejamento mais utilizadas na poca e por meio da observao de

    cidades reais, a autora estabelece princpios que visam a conformao de lugares dotados de

    vitalidade socioeconmica. Refazendo o caminho da crtica de Jane Jacobs e com base no

    argumento de outros autores, buscaremos compreender suas proposies, que mostram que a

    natureza ignorada das metrpoles tem muito a nos ensinar. Longe de pretender esgotar a

    discusso sobre o seu pensamento, esse texto visa explicitar a contribuio da autora quanto a

    uma nova forma de fazer cidades, pautada pelo seu reconhecimento como grande palco que

    engendra a vida e a civilizao.

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    A CIDADE COMO LOCUSDA VIDA

    INTRODUO

    Mais de um sculo aps o surgimento das primeiras teorias de planejamento urbano, as cidadesainda nos assombram, sem que possamos afirmar compreender sua verdadeira natureza. No

    entanto, o crescente papel por elas assumido nas discusses ambientais, assim como o aumento

    incessante da populao urbana, parece ter consagrado o novo milnio busca por essa soluo

    indispensvel: como melhorar a qualidade de vida nos assentamentos urbanos, assumindo-os

    como os locais escolhidos pela humanidade como sua forma de habitar, de viver no espao?

    Discusso cada vez mais urgente, que em ltima instncia, serve como marco

    indispensvel para a questo de como melhorar a qualidade de vida no planeta. Hoje, mais do

    que nunca, indispensvel buscar outras formas de se propor o urbano.

    Nessa investigao, analisaremos a contribuio trazida pela obra da jornalista americana

    Jane Jacobs (1916-2006), que teria seu primeiro livro, Death and life of great american cities,

    lanado no ano de 1961. Assumido pela autora como um ataque aos fundamentos do

    planejamento e da reurbanizao ento vigentes, o texto entraria para a histria como a crtica

    que abalaria os princpios estabelecidos pela cincia do urbanismo. No entanto, acreditamos que

    muitas das idias de Jacobs podem ser consideradas sob outro prisma, por apresentarem novos

    mtodos de abordagem da problemtica urbana.Remetendo-nos origem da palavra crtica, percebemos que esta advm do grego, sendo

    a mesma que a da palavra crise, designando o estado de mudana de algo, para melhor ou para

    pior. Assim, possvel dizer que toda crtica tem incio em uma crise. No caso de Jacobs, o que

    se pretende mostrar que essa crtica serviu de base para a criao de uma nova forma de se

    pensar e intervir nas cidades.

    Partindo da anlise das vertentes de planejamento mais utilizadas na poca, tais quais a

    teoria da Cidade-Jardim e sua continuidade por meio do Planejamento Regional, bem como o

    Urbanismo Funcionalista e o movimento City Beautiful, mas, sobretudo, lanando mo da

    observao de cidades reais, a autora estabelece uma srie de princpios que visam a

    conformao de lugares dotados de vitalidade socioeconmica.

    Assim, refazendo o caminho da crtica de Jane Jacobs e com base no argumento de outros

    autores, buscaremos compreender os alicerces das suas proposies. Em sua obra, Jacobs

    mostrar que a natureza ignorada e desprezada das metrpoles tem muito a nos ensinar. Longe

    de pretender esgotar a discusso sobre o seu pensamento, esse texto visa explicitar a

    contribuio da autora quanto a uma nova forma de fazer cidades, pautada pelo seureconhecimento como grande palco que engendra a vida e a civilizao.

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    1 A CIDADE COMO ATENTADO VIDA

    Em meados do sculo XIX, uma srie de avanos tecnolgicos viria a deflagrar e disseminar a

    Revoluo Industrial. Alcanando, num primeiro momento, a Inglaterra, e espalhando-se,

    posteriormente, por toda a Europa, esse acontecimento histrico daria ensejo configurao de

    um novo tipo de cidade, cujo crescimento avassalador seria viabilizado por meio da produo de

    bens seriados, assim como pelo aparecimento de novos meios de transporte e de comunicao.

    O surgimento e a implantao de fbricas nos arredores das cidades atraram inmeras

    levas de camponeses que, visando escapar situao de misria existente no campo, acorriam

    ao meio urbano em busca de trabalho e melhores oportunidades, passando a constituir bairros

    superlotados e insalubres. As pssimas condies de vida decorrentes das altas concentraes

    populacionais, do adensamento das construes e da infra-estrutura deficiente notadamente notocante ao saneamento ambiental tornaram-se fonte de grande descontentamento, dando

    origem crena na cidade como origem de todos os males sociais, como algo a ser combatido.

    As novas cidades levariam, para muitos, degenerao do corpo, da mente e do esprito

    humano. Na Inglaterra, pas pioneiro na industrializao, pensadores como John Ruskin (1819-

    1900) apontariam a cidade como corruptora da moral dos indivduos. A cidade significava o

    trabalho desumanizado, sem criatividade e exaustivo, porque atrelado mquina; era sinnimo da

    habitao precria, construda sem esmero, de forma arranjada e, muitas vezes, impessoal;

    implicava em uma vida enferma, passada longe do contato com a natureza e sujeitada fumaadas indstrias.

    Como bem destaca Hall (2005), espalhou-se pelas capitais europias, especialmente por

    Londres e Berlim, o temor de que os habitantes das cidades fossem biologicamente incapazes,

    inferiores aos homens do campo no sendo, como estes, forjados pela vida sadia ao ar livre,

    estariam fadados perda de seu vigor, chegando-se a duvidar de sua capacidade de se

    reproduzir.

    Por todos os lados, jornalistas e religiosos, pensadores e polticos, denunciavam oshorrores existentes no meio urbano, valendo-se de uma concepo idealizada do meio rural. Ao

    mesmo tempo, a concentrao de miserveis nas metrpoles era fonte de levantes e distrbios, a

    ela creditando-se, ainda, a promoo de vcios e delitos de toda a espcie. Como bem atesta

    Schorske: A cidade simbolizava em tijolos, fuligem e imundcie o crime social da poca

    (SCHORSKE, 2000, p. 61).

    Assim, nesse contexto que sero buscadas as primeiras respostas s questes

    suscitadas pela metrpole, visando, inicialmente, conter seu crescimento e devolver o homem ao

    campo, onde este disporia de melhores condies para um desenvolvimento sadio. No por

    acaso, muitas destas propostas viriam a surgir na Inglaterra, pas com ampla tradio de vida

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    campestre. Tais idias apresentavam ares profundamente saudosistas: cogitava-se a

    possibilidade de reverso da sociedade s condies pr-industriais, ignorando-se, dessa forma, a

    ruptura ocasionada pela revoluo tecnolgica.

    Nessa tentativa de pensar a problemtica representada pela cidade, ir se desenvolver o

    campo do planejamento urbano, como uma espcie de reao aos seus diversos males. Aprimeira dessas iniciativas surgir ainda na Inglaterra, com a teoria da Cidade-Jardim de Ebenezer

    Howard.

    2 AS TENTATIVAS DE REMEDIAR A CIDADE

    Ebenezer Howard (1850-1928) publicou seu primeiro livro, To-morrow: A Peaceful Path to Real

    Reform(Amanh: Um Caminho Tranqilo para a Reforma Autntica) no ano de 1898. Reeditada

    em 1902, a obra passaria a ser conhecida como Garden Cities of To-morrow(Cidades-Jardins doAmanh)1, dando origem ao epteto com que ficaria conhecido o conjunto de suas idias.

    Taqugrafo de formao, era o que se poderia chamar de reformador social.

    Visando uma soluo definitiva para o problema das cidades europias, Howard percebeu

    que os ncleos urbanos possuam inmeros atrativos que deveriam ser aproveitados,

    especialmente no tocante disponibilidade de empregos, e props unir essas facilidades s

    benesses promovidas pela vida no campo, tais como as melhores condies ambientais e o

    contato com a natureza. Como forma de evitar o inchao das grandes metrpoles, ele sugeriu a

    criao de constelaes de cidades (Hall, 2005), entremeadas por grandes extenses de terras

    cultivveis e cintures verdes. A maior destas cidades deveria ter no mximo 58.000 habitantes,

    enquanto as demais no deveriam ultrapassar a faixa dos 30.000. A imagem 01 mostra um

    diagrama da Cidade-Jardim conforme proposto por Howard na primeira edio de seu livro2.

    Segundo o autor, a implantao dessa proposta seria capaz de promover uma pulverizao das

    cidades grandes e concentradas em vrias cidades menores, bem como um repovoamento do

    campo, ento abandonado por seus antigos habitantes.

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    As tradues dos ttulos das obras seguem as verses oferecidas pela traduo de Prola de Carvalho para a obra dePeter Hall: Cidades do Amanh: uma histria intelectual do planejamento e do projeto urbanos no sculo XX.So Paulo: Perspectiva, 2005.2 Ainda segundo Hall (2005), este diagrama, em sua forma integral, foi retirado da verso de 1902 e reproduesposteriores da obra de Howard, prejudicando a compreenso da proposta defendida pelo autor.

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    Jardim termina por desprezar a verdadeira natureza da metrpole, que constitui seu principal

    atrativo: as oportunidades quase ilimitadas de crescimento surgidas justamente pela concentrao

    de milhares de pessoas, responsveis pela diversificao econmica, de necessidades e de

    gostos.

    Howard acreditava ser possvel manter essas vantagens em ncleos pulverizados.Entretanto, tais possibilidades, na Cidade-Jardim, se veriam seriamente ameaadas, tanto pela

    limitao populacional quanto pelo zoneamento, fator restritivo da mistura de usos. Como

    destacado por Jacobs (2003), a teoria da Cidade-Jardim se constituiria em um mtodo bastante

    eficiente de eliminar a metrpole. Ela exemplifica bem a questo ao observar as caractersticas

    inerentes s reas centrais dos ncleos urbanos:

    Todos sabem que uma quantidade imensa de pessoas concentra-se nos centrosdas cidades e que, se no houvesse tal concentrao, no haveria centro urbanoque se prezasse certamente no com a diversidade tpica dos centros

    (JACOBS, 2003, p. 222).No obstante, o ideal da Cidade-Jardim serviria como base para o planejamento de

    cidades em todo o mundo, embora, muitas vezes, de maneira bastante diversa daquela pensada

    por seu criador. Os rebatimentos tornaram-se comuns na forma de projetos de subrbios-jardim,

    cidades-satlites ou cidades-dormitrio apesar da nfase da teoria howardiana na auto-

    suficincia dos ncleos urbanos, aparentemente, era mais prtico resolver as demandas

    populacionais no mbito das metrpoles j existentes.

    As idias de Howard tomariam outro carter a partir das formulaes do chamado

    Planejamento Regional, bastante popular, sobretudo, nos Estados Unidos, por meio do qual se

    alastraria uma viso de planejamento de grandes reas, conformadas a partir de constelaes de

    cidades-jardins distribudas ao longo do territrio, tendo por base a aplicao do conceito de

    Regio, tomado de emprstimo geografia pelo bilogo Patrick Geddes (1854-1932). A imagem

    02 mostra a famosa seo de vale desenhada por Geddes, em que ele relaciona as

    caractersticas culturais dos povos s caractersticas naturais presentes em seus locais de origem.

    Mineiro Lenhador Caador Pastor Campons Jardineiro PescadorImagem 02 A Seo de Vale. Segundo Hall (2005), a essncia do esquema regional de Geddes.

    Fonte: HALL, Peter. Cidades do Amanh. 2005.

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    A nfase na desconcentrao e disperso das cidades ganharia novo flego com a

    utilizao desse conceito. Era preciso planejar em grande escala, levando em considerao as

    relaes apresentadas pelos lugares entre si. Conforme dito antes, eram tambm levadas em

    conta as possibilidades surgidas com as novas tecnologias, bem como suas implicaes no modo

    de vida das pessoas e no funcionamento das cidades. A esse respeito, Hall (2005) cita Lewis

    Mumford (1895-1990), grande entusiasta do Planejamento Regional, segundo o qual (...)

    qualquer projeto elaborado no sentido de concentrar as pessoas em reas da grande-cidade vai

    chocar-se s cegas com as oportunidades que o automvel oferece, com destaque tambm para

    o papel desempenhado pelo telefone, o rdio, o servio de correios e a eletricidade nessa

    mudana de paradigmas.

    Do reconhecimento das possibilidades e implicaes da mquina, o planejamento urbano

    passaria rapidamente apologia das novas invenes. Caberia ao Urbanismo Funcionalista levar

    s ltimas conseqncias o apelo tecnologia um novo tempo sobreviera s cidades, gerandomudanas irreversveis em seu modo de vida: tornava-se, portanto, necessrio considerar tais

    avanos como premissas para a construo de espaos inteiramente novos. A arte de edificar

    ancorada no passado mostrava-se insuficiente em suas respostas. O novo momento histrico

    exigia solues sem precedentes.

    Nesse sentido, podemos encontrar na Carta de Atenas, documento sntese das discusses

    do 3 Congresso Internacional de Arquitetura Moderna CIAM, datado de 1933, os princpios

    constitutivos do Urbanismo Funcionalista. De forma esclarecedora, o texto afirma que

    A era do maquinismo introduziu tcnicas novas, que so uma das causas dadesordem e da confuso das cidades. a ela, no entanto, que preciso pedir asoluo do problema (Carta de Atenas, 1933).

    O redator do texto, o arquiteto Le Corbusier (1887-1965), seria um dos grandes

    propagadores da nova doutrina, por meio de projetos como o da Ville Radieuse(1933), proposto

    para Paris. Como pode ser visto na imagem 03, largas avenidas ortogonais e grandes edifcios

    construdos em srie substituem a malha irregular e compacta da metrpole.

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    Imagem 03 Justaposio do plano da Ville Radieuse malha da cidade de Paris.Fonte: http://strates.revues.org/document5573.html.

    Uma vez mais, as cidades existentes deveriam ser descartadas porm, no mais visando

    sua pulverizao em cidades menores, mas sim a liberao do solo mediante o expediente da

    verticalizao das moradias, propiciado pelas novas tcnicas de construo. No terreno liberado,

    seriam locados grandes espaos verdes e equipamentos culturais e de entretenimento. Sob o

    mesmo enfoque pregado pela Carta de Atenas, visava-se, simultaneamente, ao atendimento das

    necessidades de habitao e lazer dos moradores, numa escala que variava desde a satisfao

    de demandas do bairro at as da cidade, prevendo-se ainda sua integrao com a regio.

    Outros aspectos previstos pela Carta, a serem contemplados pelo planejamento, diziam

    respeito s demandas de trabalho e circulao, observando-se a correta disposio das atividades

    no meio urbano, mediante seu zoneamento, de modo a garantir o bem-estar dos habitantes e a

    estabelecer a melhor relao quanto distncia percorrida e tempo despendido, promovendo-se o

    uso dos modos de transporte mais eficientes.

    Como se pode notar, h diversos pontos de semelhana com o iderio da Cidade-Jardim e

    do Planejamento Regional, no tendo o Urbanismo Funcionalista ficado alheio s suas

    proposies. Porm, como mencionado anteriormente, o papel dado tecnologia na criao dosnovos espaos se modificaria substancialmente.

    Com a destruio das cidades europias protagonizada pela Segunda Guerra Mundial

    (1939-1945), surgiria a oportunidade perfeita para a instituio dos princpios apregoados pelo

    Urbanismo Funcionalista. Como nos mostra Hall (2005)

    Toda uma gerao estava na expectativa da chamada: a gerao que, sada dasforas armadas, ingressara nas escolas inglesas de arquitetura, finalmentedeterminada a criar o admirvel mundo novo. (HALL, 2005, p. 258)

    Fato que tambm atestado por Choay (1996) segundo a autora, embora as iniciativas

    do novo urbanismo dominassem a cena na Europa j a partir da dcada de 1920, elas s foram

    significativamente aplicadas aps a guerra, devido necessidade de reconstruo dos lugares

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    arrasados. Assim, de maneira inesperada, a doutrina da tabula rasa via-se posta em prtica:

    graas dimenso do conflito, era preciso refazer, rapidamente, cidades inteiras, o que s seria

    possvel graas produo em srie e conseqente padronizao. Os novos projetos traziam a

    marca inconfundvel da mquina, consolidando uma nova dimenso esttica que encontraria a

    plena expresso.

    Por todos os lados, multiplicavam-se os clamores pela modernizao das cidades. E,

    assim, no tardaria para que a gerao do ps-guerra, tomada de entusiasmo pela tecnologia,

    passasse a ultracorbusiar Corbu inspirados pelo mestre e por outros arquitetos emblemticos

    do perodo, surgiriam projetos que ajudariam a sedimentar uma espcie de tradio da novidade

    (Hall, 2005).

    Ao mundo novo corresponderia um homem novo idia que ganhou fora atravs da

    mxima eternizada por Corbusier: Arquitetura ou Revoluo. Na busca pela ordem, eficincia e

    bem-estar da vida urbana, era necessrio acabar com o caos reinante nas grandes cidades e

    nesta campanha, empenharam-se os planejadores. No se tratava de transformar os lugares

    existentes e sim de refaz-los. Mas em nenhum momento cogitou-se se isso realmente

    agradaria queles que habitavam tais espaos.

    3 LIVREM-SE DA ARTIFICIALIDADE3

    Por breves instantes, vamos nos deter numa pequena alegoria de modo a ilustrar as proposies

    deste artigo.

    No filme A.I. Artificial Intelligence (I.A Inteligncia Artificial), lanado em 2001,

    contada a histria do rob-menino David, dotado por seu criador com a capacidade de amar como

    um menino de verdade. Abandonado por sua me humana, em certo ponto da narrativa, David

    aprisionado e levado para a Feira de Carne Celebrao da Vida, local onde os robs

    notadamente os de gerao ultrapassada so levados para serem destrudos, num misto de

    show de rock e arena circense claramente inspirado nos espetculos romanos.

    Na seqncia filmada, as mquinas so apreciadas pela multido em seu carter de

    simulacro, substituto perfeito do ser humano, porm desprovidas dos sentimentos e de

    apreenses relativas velhice e doenas e, sobretudo, morte, condies essenciais que

    configuram uma noo de humanidade. No entanto, no momento em que David levado ao

    extermnio, sua disposio de implorar por sua vida desperta a compaixo da platia, cujas

    manifestaes passam a se identificar com o que consideram ser somente uma criana, exigindo

    sua libertao.

    3 Purge yourselves of artificiality. Do filme A.I. Artificial Intelligence (na verso em portugus, I.A. IntelignciaArtificial). Lema da Feira de Carne Celebrao da Vida, arena onde os robs eram levados para serem destrudos.

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    Na base do argumento defendido, est a rejeio a no-vida, encarnada num ser

    artificial, capaz de imitar a vida, mas no de prov-la considerado ofensivo dignidade

    humana, anti-natural e, portanto, mentiroso em seu mago. Notavelmente, a tecnologia que

    consegue se inserir nos parmetros aceitveis de naturalidade encontra aceitao.

    Voltemos, agora, ao mbito do urbanismo. O que se verificou, mais adiante, foi uma crticamassiva ao carter supostamente mecanicista do planejamento. A nfase na funo passou a ser

    associada ao maquinismo e produo de espaos desrticos, frios e impessoais, despossudos

    de referncias para os habitantes das cidades. Como nos diz Choay (1979), um planejamento

    higinico e uma distribuio racional do espao, por si s, provaram no ser capazes de gerar

    uma impresso ou sensao de vida.

    A partir dos primeiros questionamentos, iniciados na dcada de 1950 no mbito do prprio

    CIAM, especialmente pelos jovens arquitetos do chamado Team X, passando pelas crticas de

    Jane Jacobs, do arquiteto americano Robert Venturi (1925-) e da vertente italiana, representada

    por Aldo Rossi (1931-1997), comea a ganhar fora, nos Estados Unidos e na Europa, a

    discusso sobre a valorizao dos modos de viver tradicionais e vernaculares.

    Em 1964, realizada pelo Museum of Modern Art MoMA, de Nova York, uma exposio

    intitulada Architecture Without Architects (Arquitetura Sem Arquitetos), em que so mostradas

    construes de povos ancestrais, que apresentam uma riqueza formal e de recursos que em

    muito ultrapassa a pobreza de certos locais urbanizados da modernidade. No ano seguinte, em

    seu artigo intitulado A city is not a tree, outro arquiteto americano, Cristopher Alexander (1936-),taxaria de artificiais as cidades deliberadamente criadas por projetistas e planejadores.

    Diversas outras frentes surgiro ainda nas dcadas de 1960 e 1970. Nessa poca,

    ganham destaque certos movimentos inseridos no campo artstico, relacionados com a Revoluo

    Cultural, tais como os Situacionistas, que defendem a importncia da subjetividade e o papel da

    arte em oposio passividade e alienao dos habitantes das metrpoles. Tambm emergem

    com bastante fora as discusses sobre a preservao do meio ambiente, que adquirem

    visibilidade poltica a partir da dcada de 1980.

    A nfase mais recente nas discusses sobre a espetacularizao das cidades e sobre a

    cidade descarnada revela uma busca desenfreada da contemporaneidade pela dimenso

    humana em toda a sua extenso. Esse interesse sbito pela figura do homem poder ser visto

    tambm no avano de cincias como a Antropologia, na hipertrofia do campo da memria, no

    fascnio pelo vivido, no predomnio das tcnicas relativas Histria Oral, como a coleta de

    depoimentos, e ainda, na crescente apologia da diferena. Tomando de emprstimo o termo

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    cunhado pelo fsico Marcelo Gleiser, poderamos dizer que o humanocentrismo4 impera na

    atualidade.

    Nessa necessidade de afirmao, nos deparamos com a nova face desse medo mais

    profundo, o medo do inumano, representado pela mquina. Em termos de criao de espaos,

    esse medo se ressente da perda de qualidade do viver habitual nas cidades. Confrontadas com aingerncia de suas vidas, as pessoas se viram presas do temor de virar mais um dente em uma

    imensa engrenagem e reagiram furiosamente.

    curioso notar que j em 1889, o arquiteto austraco Camillo Sitte (1893-1903), em sua

    clssica obra Der Stdtebau nach seinen knstlerichen Grndsatzen (A Construo das Cidades

    Segundo Seus Princpios Artsticos) aponta a perda de qualidade dos espaos da modernidade,

    devido desconsiderao dos recursos compositivos utilizados pelos antigos para conformar

    lugares belos e aprazveis para seus usurios, na configurao de ruas e praas.

    Desta feita, refora tambm o imperativo da presena do homem para dar vida a estes

    espaos. Mesmo no estabelecendo maiores discusses a tal respeito em sua obra, o autor

    reafirma a necessidade de que os lugares sejam utilizados, preenchidos com as atividades

    humanas.

    Tido como passadista, Camillo Sitte alvo freqente de leituras equivocadas. No entanto,

    um olhar mais atento demonstra suas verdadeiras intenes, visando tirar partido dos

    procedimentos tradicionalmente empregados pela arte de construir, adequando-os s exigncias

    da vida moderna. Sitte acreditava que esses preceitos no eram incompatveis com a novarealidade representada pela revoluo tecnolgica. De acordo com suas prprias palavras,

    Nem a vida moderna, nem a cincia tcnica moderna permitem que se copieservilmente a disposio das cidades antigas. Temos de reconhec-lo, se nonos quisermos abandonar a um sentimentalismo sem esperanas. Os modelosdos antigos devem reviver hoje, e no como cpias conscienciosas; examinando o que h de essencial em suas criaes e fazendo sua adaptao scircunstncias modernas que podemos atirar, num solo aparentemente estril, umgro capaz de germinar de novo. (SITTE, 1992, p. 125)

    A anlise feita por Sitte do espao desqualificado e desumanizado da modernidade ser

    empreendida, cerca de 70 anos mais tarde, por Jane Jacobs, em seu livro Death and life of great

    american cities, ganhando novos contornos. Por meio da observao do funcionamento das

    cidades na prtica a autora se prope a investigar os princpios do planejamento e as iniciativas

    de reurbanizao capazes de promover a vitalidade das cidades.

    Partindo da crtica ao planejamento vigente em sua poca, ela demonstra a srie de

    pressupostos equivocados que se tornaram referncia para a elaborao de planos e modelos

    urbanos, com base no iderio da Cidade-Jardim (propagado, como vimos, pelo Planejamento

    Regional), do Urbanismo Funcionalista e, por fim, do Movimento City Beautiful.

    4 Ver artigo do autor intitulado Raridade no milagre. Folha de So Paulo, Caderno mais!, pgina 6, domingo, 19 dejulho de 2009.

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    Tendo falado a respeito das primeiras, resta-nos destacar o papel dessa ltima teoria na

    definio efetuada por Jane Jacobs de sua City-Garden Beautiful Radieuse (algo como Cidade-

    Jardim Monumental Radiosa), espcie de sntese das premissas do planejamento urbano do

    perodo segundo a autora, tornou-se parte integrante desse iderio o expediente de construo

    de centros monumentais, amplamente utilizado pelo Movimento City Beautiful.

    A mescla dos preceitos apontados por Jacobs toma a forma de um mantra, em que se

    repetem o uso dos centros administrativos, dos empreendimentos verticais, das reas verdes e do

    zoneamento, estabelecendo uma espcie de senso comum do planejamento de cidades. Sua

    crtica permanece vlida, como se pode observar a partir das polticas pblicas brasileiras de

    nossos dias.

    4 A CIDADE COMOLOCUS

    DA VIDAComo muitos autores de sua poca, Jane Jacobs parte da crtica ao urbanismo moderno,

    ajudando a deflagrar a crise do planejamento. No entanto, embora se destaque o papel crucial de

    seus questionamentos, pouco ou nenhum espao dado s propostas que ela elabora, efetuando

    um conjunto de sugestes sobre como promover a revitalizao das reas urbanas.

    Mostrando-se favorvel existncia do planejamento enquanto prtica ancorada na cidade

    real, preciso que se diga que Jane Jacobs nunca concorreu para o esvaziamento desse campo.

    Muitas de suas observaes antecipariam debates extremamente atuais. Sua defesa da

    metrpole como ente que rene as condies mais favorveis prosperidade da civilizao

    humana adquire contornos nicos quando observamos que no mbito da conferncia internacional

    Habitat I, realizada pela ONU em 1976,

    as cidades, especialmente as megacidades, eram vistas (...) como uma desgraaa ser evitada a qualquer preo, e que todas as polticas ali recomendadasredundavam na mxima: fixar a populao no campo para evitar o xodo rural e,por conseguinte, o inchao das cidades (Agenda 21 Brasileira: Bases paradiscusso, 2000, p. 36).

    A partir da dcada de 1990 se solidifica, no mbito da Habitat II, datada de 1996, uma

    mudana significativa na compreenso da cidade como ambiente apropriado vida comum do

    homem.

    Nos anos 90, portanto, houve uma mudana expressiva de inflexo naabordagem da problemtica urbana e sua relao com o mundo rural. Asprincipais razes para essa mudana podem ser atribudas a dois fatoresirrefutveis: a) o fracasso das polticas de fixao da populao rural em todo omundo, independentemente do contexto poltico ou econmico; b) a efetividadedo fato de que a cidade parece ser a forma que os seres humanos escolherampara viver em sociedade e prover suas necessidades (Agenda 21 Brasileira:Bases para discusso, 2000, p. 36).

    Em seu livro, Jane Jacobs j apontava para o fato, dizendo que

    tolice negar o fato de que ns, norte-americanos, somos seres urbanos vivendonuma economia urbana e, no processo de negao, perder tambm todas as

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    zonas rurais verdadeiras das regies metropolitanas, como tem acontecidoconstantemente (JACOBS, 2003, p. 243).

    Na verdade, ela percebeu que quanto mais populosa a cidade se tornasse, mais compacta

    ela deveria ser, de modo a garantir que o espao urbano fosse otimizado e qualificado, dotado de

    todas as coisas necessrias a sua urbanidade: equipamentos pblicos, reas verdes, sistemas de

    transporte eficientes etc., conservando os ambientes naturais em sua integridade.

    Infelizmente, demorou bastante para que isso fosse percebido, no se chegando a

    implantar em larga escala essa viso. Os modelos de crescimento das cidades seriam cada vez

    mais baseados na cidade desconcentrada, cada vez mais favorecidos pela criao de rodovias e

    a expanso do uso do automvel, gerando os j conhecidos problemas de trfego e de

    encarecimento da infra-estrutura, assim como a excessiva antropizao do solo e a perda dos

    recursos naturais pela invaso dos ecossistemas, questes que ganham fora com a constatao

    da ameaa prpria vida do planeta, hoje to discutidas pelos ambientalistas.

    As iniciativas cada vez mais constantes de recuperao das reas centrais e

    preenchimento dos vazios urbanos, conformando uma nova poltica de utilizao do solo das

    cidades, tambm viria a reforar a tese de Jacobs, em que pesem suas muitas controvrsias.

    Ainda no tocante ao uso do automvel, a autora dedicaria um dos captulos de seus livros

    questo, o de nmero 18, intitulado Eroso das cidades ou reduo dos automveis. Embora

    essa fosse uma crtica j existente na poca, Jane Jacobs prope medidas como a criao de

    restries a veculos em certas reas, de modo a desestimular sua utilizao, uma vez que,

    segundo ela, quanto mais espao se der aos carros nas cidades, maior se tornar a necessidade

    do uso dos carros e, conseqentemente, de ainda mais espao para eles (JACOBS, 2003, p.

    391).

    Ela cita o exemplo da proibio de automveis no Washington Square Park, em Nova

    York, em vigor a partir de 1958, como um exemplo bem-sucedido de interrupo de um processo

    de retroalimentao positiva sob influncia da populao local, uma rua de trfego ao lado do

    parque teria sido fechada aos pedestres, sem se propor nenhum tipo de alargamento das vias

    perimetrais, o que teria acarretado a diminuio do trfego de forma generalizada na rea.No preciso mencionar que as demandas atuais por novos sistemas de transporte

    urbanos, baseados nos veculos de massa ou nos meios alternativos, como a bicicleta, provariam

    que ela tinha razo.

    CONSIDERAES FINAIS

    A partir de 2008, inverte-se um quadro planetrio que perpassou milnios da histria do homem:

    pela primeira vez, o mundo exibe maior nmero de pessoas morando em reas urbanas do que

    em reas rurais.

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    Ao mesmo tempo, nunca esteve to presente a discusso sobre a falncia do modelo de

    planejamento e consumo empregado hoje pelos diferentes povos, que implica em degradao

    ambiental, pobreza, desigualdade social e perda da qualidade de vida nos assentamentos

    humanos. A f na cidade como agente civilizador nunca esteve to severamente abalada. Como

    afirma Hall (2005), no final do seu livro, pode ser que as cidades estejam ainda no mesmo lugar

    de quando comearam. Talvez porque nos tenha faltado compreender sua verdadeira natureza.

    Porm, eis que ancorado nessas questes e no esteio dos grandes eventos de escala

    mundial, assiste-se ao retorno da discusso sobre a criao da cidade ideal. Momento mais que

    propcio, portanto, para discutirmos o que fazer a respeito de nossas cidades atuais, sobre como

    torn-las lugares melhores, que propiciem crescimento e felicidade a seus habitantes, em suma,

    investir na cidade que queremos, buscando compreender a que temos.

    Em sua poca, Camillo Sitte afirmou: Aqueles que se entusiasmam com as boas causas e

    crem nelas o bastante devem se convencer de que o nosso tempo ainda pode criar obras de

    beleza e de bondade (SITTE, 1992, p. 10). O maior dom humano, esse o ensinamento final do

    filme Artificial Intelligence, a habilidade de buscarmos os nossos sonhos.

    preciso reafirmar a potncia da arquitetura e do urbanismo, de sua contribuio possvel

    construo de espaos dignos de se viver. Nesse sentido, Jane Jacobs apresenta um grande

    legado, mostrando que a cidade possui uma ordem outra, diferente, em nada inferior e sim mais

    complexa, com a qual se deve aprender, a fim de se instaurar essa forma distinta de

    planejamento, propondo uma nova forma de se pensar e fazer o urbano.Se tem uma lio que a Histria nos ensina que podemos tudo que quisermos, tudo que

    formos capazes de imaginar. Nossas cidades sero aquilo que sonharmos e procurarmos realizar

    nelas, com elas e para elas, desde que isso sirva para melhorar a nossa vida, para nos trazer

    felicidade.

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